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DELMIRO GOUVEIA:

PIONEIRO E
NACIONALISTA
F. MAGALHÃES
MARTINS
UM HOMEM SIMBOLO
E INSPIRAÇÃO

Este livro focalíza a existência de um


homem que foi realmente extraordinário
no seu tempo, realizador notável, cuja
obra aqui está descrita documentada
mente, para edificação dos brasileiros.
Trata-se de Delmiro Gouveia, pioneiro e
nacionalista, como lhe chama o autor,
filho da mesma terra, o Ipú, ao pé da
serra da Itaipaba, no Ceará. Ainda muito
jovem, órfão de pai, Delmiro emigrou
para o Recife. Aos 15 anos, perdeu a
mãe, passando a enfrentar a vida sòzi
nho. Tornou-se, pouco mais de uma dé
cada depois, grande comerciante, opulen
to e elegante, pois a natureza o dotara
de um físico excepcional. Explorava o
ramo de compra e exportação de couros
e peles. O "rei das peles" reunia em seu
luxuoso palacete de Apipucos o escol so
cial e artístico de Pernambuco, em jan
tares e saráus memoráveis.
Processado, sob a ameaça de prisão e
de morte, despojado de seus haveres, aos
40 anos de idade, Delmiro transferiu-se
para Alagoas, indo morar no lugarejo
Pedra, próximo do São Francisco. Con
tinuando a explorar, ali, o negócio de
compra de peles, foi aos poucos alargan
do o seu raio de ação por todo o Nordes
te, sem jamais abandonar a idéia de
aproveitar as ricas águas do grande rio
em atividades agro-pastoris e industriais,
visando a redimir do pauperismo sua
terra e sua gente.
Tendo enriquecido novamente, começa
a pôr em execução sua obra capital, que
o iria imortalizar como pioneiro da hi
drelétrica de Paulo Afonso. Para lá
transporta máquinas e uma pesadíssima
turbina em carros de boi, através do ser
tão bravo; puxa água, capta energia,
funda a fábrica, constrói a vila operá
ria e estradas, dotando de todos os me
lhoramentos urbanos aquêle humilde lu
garejo de apenas meia dúzia de casas,
quando lá chegou em 1903.
As linhas da primeira fábrica nacio
nal, marca "Estrêla", depressa se afir
maram, pelo preço e pela sua resistên
cia no mercado interno e externo, des
bancando os produtos similares vindos
da Grã-Bretanha, fabricados pela Ma
chine Cotton e vendidos tradicionalmen
te, com exclusividade, no Brasil e países
sulamericanos. Em vida, Delmiro rejei
tou propostas da mesma firma para ne
gociar sua fábrica, deixando consignada
em testamento cláusula pela qual os fi
lhos, seus únicos herdeiros, só poderiam
fazê-lo, na qualidade de principais acio
nistas, quando atingissem 30 anos. Mes
mo assim, as máquinas da Pedra foram
antes vendidas àquela organização in
glêsa, desmontadas, quebradas a marrê
ta, e atiradas dentro do São Francisco.
Daí acreditar-se ter sido o grande na
cicnalista morto por interêsse dos trus
tes, segundo voz do povo e até referên
cias literárias, inclusive registro na En
ciclopédia do IBGE, na parte alusiva ao
município alagoano que recebeu o nome
de Delmiro.

Seu gigantesco trabalho pioneiro, visto


hoje, meio século após, o engrandece não
só pelo que tanto se apregoa; mas, tam
bém, por ter sido um dos precursores do
serviço social, pater-familias educador,
mestre-escola e civilizador de uma re
gião atrasada e semibárbara. E o seu
grande sonho, de propiciar energia hi
drelétrica ao Nordeste, só se tornou rea
lidade 40 anos depois, com a fundação
da CHESF, Sociedade estatal organizada
com fartos capitais e orientada por
técnicos modernos e não por aquêle
homem só, incompreendido, atraiçoado.
"Impõe-se o confronto para medir-se a
intrepidez do começo" -

diz Mauro
Mota.

Está aí o homem Delmiro. O autor, F.


Magalhães Martins, conteur laureado
(Açude e outros contos, Mundo Agreste),
passou um ano inteiro pesquisando e afi
nal compôs êste livro admirável, escrito
com alma, amor, carinho, e, mesmo,
exaltação, como requer a figura legendá
ria do super-homem, que agora tem a
sua primeira biografia verdadeiramente
trabalhada. São 77 capítulos densos de
informações, colhidas aqui, ali, acolá,
contando, em estilo fluente, as origens,
vida e morte do pioneiro e nacionalista,
proporcionalmente maior que Mauá.

ALL RIGHT

Editora Civilização Brasileira S.A.


"

DELMIRO GOUVEIA

pioneiro e nacionalista

1
RETRATOS DO BRASIL

volume 17

VOLUMES PUBLICADOS NESTA COLEÇÃO

1 -
RADIOGRAFIA DE NOVEMBRO, de Bento Munhoz da Ro
cha Netto

2 PROBLEMAS DO DESENVOLVIMENTO ECONOMICO, de


Sérgio Magalhães
3
ANÍSIO TEIXEIRA: PENSAMENTO E AÇÃO, de Diversos
4 -
INFLAÇÃO E MONOPÓLIO NO BRASIL, de Alberto Passos
Guimarães

5 -
IMPERIALISMO E ANGÚSTIA, de Cláudio de Araújo Lima
6 -
RIO GRANDE DO SUL: UM NOVO NORDESTE, de Fran
klin de Oliveira

7 O RIO COMANDA A VIDA, de Leandro Tocantins


8 DUAS ARQUITETURAS NO BRASIL, de Benjamin de A.
Carvalho

9 BRASIL E AFRICA: OUTRO HORIZONTE, de José Honó


rio Rodrigues

10 -
REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO NO BRASIL, de
Franklin de Oliveria

11 TEMPOS DE JANIO E OUTROS TEMPOS, de Castilho


Cabral

12 -
CAFÉ UM DRAMA NA ECONOMIA NACIONAL, de Cid
Silveira

13 -
POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE, de San Tiago
Dantas

14 -
JAGUNÇOS E HERÓIS, de Walfrido Moraes
15 -
CANGACEIROS E FANÁTICOS, de Rui Facó

16 INTRODUÇÃO A REVOLUÇÃO BRASILEIRA, de Nelson


Werneck Sodré

17 DELMIRO GOUVEIA, PIONEIRO E NACIONALISTA, de


F. Magalhães Martins
18 RETRATO SEM RETOQUE, de Adalgisa Nery
F. MAGALHÃES MARTINS

DELMIRO GOUVEIA

pioneiro e nacionalista

"

uma das figuras mais notáveis na história in


dustrial do Norte do Brasil: o organizador da Fá
brica da Pedra, com energia de Paulo Afonso. Um
arrojado pioneiro. Está ainda por ser escrito o es
tudo biográfico que integre essa curiosa figura de
"self made man" na época e no meio mais incisiva
mente alcançados pelo seu arrojo e pela sua inteli
gência". (GILBERTO FREYRE, em notas à pág. 121 de
"O velho Félix e suas memórias de um Cavalcanti".

"Quem se dispuser a escrever uma biografia de Del


miro Gouveia menos ascética e enumerativa, vol
tada para dentro do homem e não apenas para
suas reações exteriores, há de sentir que êle já uti
lizava o primeiro emprêgo, de modesto ferroviário,
como um aprendizado de liderança e contacto com
os problemas económico-sociais de sua época".
(MAURO MOTA, in "A Estrêla de Pedra...")

EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.


RIO DE JANEIRO
desenho de capa:
EUGENIO HIRSCH

produção:
RUBENS LIMA

Exemplar No 2189

direitos autorais desta edição reservados à


1

EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.


Rua 7 de Setembro, 97 - Rio de Janeiro
-

1963

Impresso nos Estados Unidos do Brasil


Printed in the United States of Brazil
ÍNDICE

11114 17 22 27 323842
Intróito Biográfico
Data e Local do Nascimento
O Casarão da Fazenda Boa Vista
916
Uma Aventura Romanesca
O Bravo e Aventureiro Pai de Delmiro Gouveia
A Amorosa e Infeliz Mãe de Delmiro

Os Primeiros Passos do Menino Cearense que Emigrou


Goiaba de Pesqueira, Doce e Bonita, Mas Sem Semente 36
Como Passou de Comprador a "Rei das Peles"

46
Vida Sentimental Marcada por uma Fatalidade Inexorável 48

O Mercado do Dérbi e seu Incêndio Criminoso 55


Vítima da Situação Política e Econômico-Financeira 61

Influência do São Francisco Ponto Estratégico


-
67
Aproveitamento das Águas e da Cachoeira 72

Planos e Providências Para Fundação da Indústria 78

Organização e Instalação da Cia. Agro-Fabril Mercantil 82

Os Negócios e Atribuições da Firma Iona & Cia. 87


Retrato Físico e Moral de Sua Personalidade 92

Um dos Precursores do Serviço Social no Brasil 97

Seus Slogans, Frases, Hábitos e Sestros 102

"Pater Familias" Educador e Exigente Mestre de Civilidade 107


Bom Gôsto e Confôrto Adaptado ao Meio, Limpeza e Sim
plicidade 111

Talento, Perspicácia, Patriotismo, Cultura e Conhecimento


de Línguas 116
Princípios de Ordem, Disciplina e Moral Impostos a Todos 122

Apesar de Enérgico e Violento, Era Sensível e Generoso 126


Seus Parentes, Amigos, Sócios e Colaboradores 131
O Segrêdo de Seus Sucessos nos Negócios e na Sociedade 138

A Pedra se Transforma em "URBS" A "Canaã Sertaneja" 143


A Manchester Sertaneja do Norte 148

Nas Estradas os Automóveis Espantavam Cangaceiros, Ja


gunços e Beatos 153

Relações com Políticos e Homens de Estado 160

Seu Prestígio e Prosperidade Atraíam ódio e Inveja Mortais 167


Morte Trágica e Misteriosa do "Evangelizador dos Sertões" 172
Os Sicários e Mandantes do Crime 179
Planos, Idéias, Obras e Iniciativas Interrompidas 186
As Tramas da Concorrência, do Truste e do "Dumping" 192
Fim Melancólico da Fábrica Nacional de Linhas 199

Bibliografia 206
CAN

1) Delmiro Gouveia, Rei das Peles, fazedor de oásis, pioneiro do


aproveitamento da Paulo Afonso e fundador da cidade industrial
da Pedra, que hoje tem o seu nome
outras e Aragão Carvalho Sousa Ximenes
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Intróito Biográfico

Nascimento e batismo Nome completo,


adotado e o correto Filiação, nome e
-

apelido dos pais Duas advertências.

DELMIR
ELMIRO GOUVEIA nasceu a 5 de junho
de 1863 no município de Ipu, Estado do Ceará, ou seja, na
ſazenda Boa Vista ou nas suas cercanias. Foi batizado pelo
coadjutor do vigário da vizinha vila de Santa Quitéria, por
ocasião de desobriga, ali, no casarão daquela fazenda, onde
se costumava levantar altar para atos religiosos, inclusive ba
tizados.

O seu nome completo era Delmiro Augusto da Cruz Gou


veia, às vêzes simplificado para Delmiro da Cruz Gouveia,
nome errôneamente adotado, porquanto o correto devia ter
sido Delmiro Gouveia de Farias ou, ainda, Delmiro de Farias
Filho.

O pai, cearense, chamado na intimidade Belo ou Tio Belo,


foi o Major Delmiro Porfírio de Farias, morto a 2 de dezem

9
, na Guerra do Paraguai, nas linhas avan
bro doçadas
ano
do
1867
deTaji, às proximidades da picada de Caimbocá. (*)
A mãe, procedente de Pernambuco, nascida Leonila Flo
ra da Cruz Gouveia, ficou conhecida pelo apelido de Curica
nos sertões de Ipu e Santa Quitéria, onde viveu poucos anos,
voltando para o Recife, após a morte do herói Delmiro de Fa
rias, nome dado posteriormente a uma das ruas de Fortaleza.
Convém advertir que tanto o pai como o filho se chama
ram Delmiro. Usaremos epítetos e expressões ao referir-nos a
um e a outro, a fim de evitar confusão no espírito do leitor
menos atento; pois é necessário mencionar lances da vida aven.
tureira e sentimental do bravo Major Delmiro de Farias, os
quais justificam, pela força da hereditariedade, tendências tem
peramentais do nosso biografado.
Outrossim, este trabalho se divide em origem, vida e mor
te, estando a lª parte òbviamente integrada pelos seis capítu.
los iniciais. O leitor sôfrego em conhecer a parte relacionada
com a vida e morte de Delmiro Gouveia, pròpriamente dita,
poderá saltar os que se seguem a êste, começando a leitura em
"Os primeiros passos do menino cearense que emigrou".

(*) GUSTAVO BARROSO A Guerra do Lopez, ed. Getúlio M. Costa,


-

in "A Suprêsa de Caimbocá", pág. 161.

10
Data e Local do Nascimento

Dúvidas e controvérsias Batistério; os


livros de assentamento Festividades
programadas em Alagoas As antigas
vilas de Ipu e Santa Quitéria, e a cidade
de Sobral Sua localização e vida
eclesiástica.

O MESMO EQUÍVOco que envolveu o


mais glorioso nome cearense · José de Alencar
-
está ocor

rendo com Delmiro Gouveia, equívoco num e noutro caso não


esclarecido pelo batistério. Aliás, tôda a sua vida, desde o nas
cimento até a morte, está sob o signo do equívoco, do mistério
e da lenda...
Há dúvidas e controvérsias acerca do assunto que encima
estas linhas. O próprio Delmiro concorreu para a confusão,
dizendo-se de Sobral (Ce) e declarando, de próprio punho,
em proposta de seguro de vida para a Sul América, que a data
de seu natalício era a de 6 de junho de 1866. A Enciclopédia
e Dicionário Internacional, da Editôra Jackson, registra-o co
mo filho daquela cidade, mas nascido no ano de 1864.
Todavia, o audaz nordestino, tido por muitos como de
Pernambuco, Alagoas e outros Estados, é mesmo natural do
município de Ipu, Ceará, segundo o depoimento insuspeito de
4

11.
historiadores e inúmeras pessoas da região, inclusive familiares
seus. Isso consta, mesmo, de publicações oficiais (v. Enciclopé
dia dos Municípios Brasileiros, do I.B.G.E.), e de outras não
menos merecedoras de fé e bastante difundidas, como "O Cea
rá", organizado por Raimundo Girão e A. Martins Filho, "com
o objetivo de fazer melhor divulgação e propaganda honesta
da Terra, do Homem e das cousas cearenses".
O Governo de Alagoas chegou a organizar, em 1961, vasto
programa de festas (*), determinando se comemorasse o seu
centenário da maneira mais brilhante possível, com fogo sim
bólico, romaria, conferências etc., na capital e em todo o Estado.
Entretanto, surgiu a dúvida a respeito, suscitada por pessoa co
nhecedora da inscrição posta na lápide do imponente túmulo
de Delmiro, edificado na cidade que recebeu o seu nome, tendo
o Governador, por isso, telegrafado ao Bispo de Sobral e obti
do resposta de que o ano do nascimento era mesmo o de 1863.
Assim, foram suspensas as homenagens, entre as quais se havia
cogitado até da emissão de sêlo postal comemorativo.
Em artigo publicado no Ceará, (**) reproduzindo conver
sas ouvidas de sua avó Joana de Farias, irmã do Major Delmi
ro, diz Carlos Lobo: “É certo que Delmiro Gouveia, o pioneiro,
tenha nascido nas vizinhanças de Ipu, dizendo uns que o fato
se deu na fazenda Luva, outros, na fazenda Boa Vista". E
adianta ter sido êle batizado "por ocasião de desobriga, poden
do-se mesmo dizer que os santos óleos do batismo lhe foram
ministrados na capela do Frade" (hoje Irajá), o que nos pare
ce improvável por não haver, àquela época, capela no citado
lugarejo.
As terras do município de Santa Quitéria se revelaram
magníficas aos colonizadores para a criação de gado, mas sua se
de não experimentou, embora vizinha de Ipu, o progresso
que esta teve, a partir da última década do século passado,
com a chegada ali, em 1894, dos trilhos da Estrada de Ferro
de Sobral. Mas a velha localidade sertaneja, terra dos Sena
dores Pompeu e Catunda, era mais rica e importante do que
a outra, ao tempo do nascimento de Delmiro, que fôra bati
zado por padre vindo de lá, onde havia igreja grande e orga
nizada, com que Ipu ainda não contava: existia, sim, uma
* Diário Oficial do Estado, n.o 105, de 16-5-61.
("Delmiro de 20-8-61.

12
pequena capela em que os ofícios religiosos não se celebravam
com regularidade e por todo o ano. Seu vigário, o padre colado
Francisco Corrêa de Carvalho e Silva -
por sinal o primeiro
que ali se fixou, pois que, até então, a sede paroquial era no
antigo povoado de São Gonçalo da Serra dos Côcos - ausen

tava-se amiúde e exercia outras atividades, inclusive políticas.


Seus esforços no sentido de edificar uma Matriz em Ipu foram
infrutíferos, segundo Eusébio de Sousa.
Os livros de assentamentos da igreja de Santa Quitéria
foram transferidos, mais tarde, para o arquivo da sede dioce
sana, em Sobral, inclusive o que traz o batistério de Delmiro
Gouveia, registrado a fls. 40/verso, nos têrmos seguintes:

"DELMIRO B filho natural de Leonilla Flora da Cruz


Gouveia, nasceo a cinco de Junho e a trinta do
mesmo mez e anno de mil oitocentos e sessenta e
três foi batisado solenemente e com os santos óleos
em desobriga de licença minha pelo Rdo. Choadju
tor Bernardino d'Oliveira Memoria: foram PP Capm.
Elmiro de Sousa e Oliveira e D. Anna Rodrigues Ve
ras. Do que para constar fiz este assento que assino.
O Vigro Francisco Manoel de Lima e Albuquerque".

Sobral, chamada a Princesa do Norte, já era cidade nos


idos de 1863, enquanto as duas outras localidades não passa
vam de vila. Foi sempre a principal cidade da zona, de modo
que muitos cearenses daquelas bandas, mesmo que não hajam
nascido no perímetro da “urbs", se declaram oriundos de lá,
às vêzes para facilitar a identificação de sua origem. Delmiro
Gouveia foi um dêstes e, sem dúvida, pelo mesmo motivo.
Aliás, há um dito chistoso e depreciativo, glosado pelos so
bralenses da gema, geralmente muito ciosos disto, segundo o
qual é da Mutuca todo aquêle que, como Delmiro, se confessa
de Sobral, embora não tenha ali visto a luz solar pela primei
ra vez. Mutuca, pobre lugarejo que nem sabemos se ainda exis
te, é bem um símbolo explicativo...

13
O Casarão da Fazenda Boa Vista

O motivo por que foi erigido - Altar, na


sala, para a prática de atos religiosos
Os padres de Santa Quitéria e de Ipu
Terras e fazendas do Cel. Félix A es
-

pôsa e a numerosa prole Tio Belo e


Curica teriam morado na casa-velha -

Delmiro Gouveia nasceu na casa do Cap.


José Raimundo de Aragão Triste fim
do casarão.

O CASARÃO DA BOA VISTA tem a sua his


tória... Foi mandado erigir pelo Cel. Félix José de Sousa. Seu
primo, o Senador Pompeu (Tomaz Pompeu de Sousa Brasil)
trouxe-lhe a patente de Coronel da Guarda Nacional. O Cel.
Félix recusou-a, alegando que não queria morar na vila de
Ipu, ao que respondeu aquêle que isso não constituía obstá
culo. Persistindo o Cel. Félix na recusa, disse-lhe o Senador
Pompeu:
-
Se V. Mcê. não aceitar, nunca mais pisarei em sua casa.
Diante disso, o Cel. Félix respondeu que, como não dese
java que tal ameaça se cumprisse, ia aceitar a patente. E co
meçou a construir o casarão de Boa Vista, digna dum verda
deiro coronel (Comandante superior), homem cujo prestígio e
cuja família já eram grandes.
As terras do Cel. Félix compreendiam muitas fazendas
Escondido, Trapiá, Ipuzinho, Caraúbas, Tataíra, Boa Vista e
14
Formiga começando no sopé da Serra da Ibiapaba e termi
nando nas terras da fazenda Formiga, a mais oriental de tô
das. A Boa Vista fica acima do Bonito e ao lado da Formiga,
formando um triângulo, distando do Ipu cêrca de três léguas.
Situado numa elevação, o prédio tinha calçadas altas e
muitos quartos e dependências. As suas paredes externas eram
de 4 tijolos. Havia na frente duas salas, tendo a do lado direito
1 porta e 2 janelas, e a do esquerdo, 1 porta e 3 janelas, tôdas
encimadas por uma arcada ogival. Na sala menor se armava o
altar para as celebrações de atos religiosos pelos padres de
Santa Quitéria, pois que o de Ipu Pe. Corrêa não era bem
-

visto pelos donos da Boa Vista. O Cel. Félix, os filhos e filhas,


em número de 12, ao todo, não gostavam dêle, homem político
e de hábitos impróprios de um sacerdote. Assim, era chamado
o de Santa Quitéria para os ofícios religiosos, até para as con
fissões e comunhões.

Naquele casarão se realizavam batizados, casamentos e, em


alguns anos, cerimônias da quaresma, havendo, para isso, toa
lhas, velas e castiçais, inclusive 14 cruzes, para a via-sacra, que
se pregavam na parede. Em 1873 ou 74, fôra ali batizado o
menino Félix, filho do Cel. Porfírio. No ano de 1869, também
lá se dera o casamento, em ato festivo, do Cel. Félix de Sousa
Martins. Este fato nos foi narrado pelo filho dêste, com quase
80 anos, Francisco Elmiro Martins, e aquêles o foram por D.
Hermelinda Bessa, de 91 anos, filha do Cel. Porfírio.

D. Isabel, espôsa do Cel. Félix José de Sousa, por ser mui


to devota do Menino-Jesus, vinha ao Ipu assistir à missa do
Natal. Ele, porém, não a acompanhava. D. Isabel era mulher
ativa, desabusada, valente, ao contrário do marido, homem
manso, bom, pacato. Mesmo depois de construído o casarão,
foi conservada a casa-velha, ao lado, com os teares, arreios e
prensas de queijos, onde ela costumava permanecer, esqueci
da, tendo que ser chamada, às vêzes, para as refeições.
O Cel. Félix encarnava bem a figura respeitável de um
patriarca sertanejo. A casa sempre cheia de gente, das filhas
môças ou viúvas, de netos e sobrinhos. Conta-se o episódio
do casamento de D. Mariana, contra sua vontade, com Josino
Tôrres, que tinha origem espúria. Depois de algum tempo de
casada, veio ela pedir a bênção dos pais que lhe negaram, mas,

15
anos após, tendo morrido Josino Tôrres, o velho Cel. Félix
dissera:

· Bem, agora, que êle desapareceu, vou mandar buscar mi


nha filha e meus netos.
Até à época em que Delmiro Porfírio de Farias veio de
Pernambuco, trazendo a môça raptada, vivia, com a sua legí
tima espôsa e filhos, no sítio São Paulo, cuja metade pertencia
ao pai e a outra ao Cel. Félix. Ao chegar ali, o seu pai Joaquim
Porfírio de Farias, irmão de D. Isabel, embora achasse ruim
tal procedimento, mandou arrumar uns burros para que o
filho.viesse para o sertão morar nas terras dos parentes.
Consta que o casal, a princípio, correra seca e meca, mas
acabou por fixar-se à sombra protetora do seu tio afim, Cel. Fé
lix. Delmiro Porfírio se tornara conhecido no casarão da Boa
Vista, onde os inúmeros filhos de seus primos o chamavam tio,
isto é, Tio Belo; daí haver-se vulgarizado a alcunha por que
ficou conhecido nos sertões do Ipu.
É possível que sua moradia fôsse na casa velha, ao lado.
Quando se aproximou o parto do menino que recebeu o mesmo
nome do pai Delmiro teriam mandado Leonila para a
casa do Capitão José Raimundo de Aragão, amigo de Tio Belo
e genro querido do Coronel. Este não gostaria que, sob o teto
sacrossanto da Boa Vista, onde se armava altar, nascesse o filho
de uma mancebia, embora admitisse que o menino passasse
depois a conviver ali, com outros, seus netos.
Tudo indica que Delmiro Gouveia haja aberto os olhos
ao mundo num local próximo do atual açude Bonito, onde re
sidia o Cap. José Raimundo, local que dista apenas alguns
quilômetros do casarão da Boa Vista, aonde fôra trazido para
ser batizado 25 dias após ter nascido, por ocasião de desobriga
realizada pelo Coadjutor do vigário de Santa Quitéria.
O casarão teve um fim melancólico. É que chegara do
Pará o Dr. Francisco Leocádio Pessoa, irmão de D. Maria El
vira Pessoa, espôsa do Cel. Porfírio, trazendo uma doença mis
teriosa e até então desconhecida no Ipu, onde passou a residir
até morrer. Era a lepra na sua mais terrível forma de contágio,
vitimando várias pessoas, dentre as quais os jovens Félix e Má
rio Porfírio, que acabaram seus dias, isolados, no velho casarão.
Dêste só existem atualmente as ruínas, tendo sido retirados os
tijolos e madeirame para outras construções.

16
3

Uma Aventura Romanesca

Os cavalarianos Os boiadeiros e sua


rota O sertão e o brejo - O sertanejo
-

rude e a môça educada do litoral O

cunhado e o companheiro de aventuras


- A acidentada viagem de volta. Icó
e o desvio da rota O escândalo e a
expulsão do seio da família A mulher
e os filhos legítimos de Belo de Farias

Seus parentes do sertão Versões
-

de sua presença, ali, com Curica.

CHAMAVA-SE
HAMAVA-SE CAVALARIANO aquêle que
viajava, negociando com animais de sela ou de carga, geral
mente cavalos. No Nordeste, inclusive no Ceará, pelos meados
do século passado, adotou-se e em algumas partes intensificou
se essa profissão, que consistia em levá-los e vendê-los na re
gião do brejo, preferentemente, onde êles davam bom preço,
muito úteis que eram ao serviço nos engenhos e porque ali só
se cuidava, pràticamente, da cultura da cana.
Neste país "nenhum elemento econômico deixou marca
de sua preponderância como o açúcar", diz João Duarte Filho
em "O Sertão e o Centro". Recife já se afirmara como metró
pole do Nordeste e centro daquela riqueza que impulsionou o
primeiro surto industrial da região. Para lá e para outras cida
des, situadas na faixa litorânea onde florescia a indústria açu
careira, marchavam comboios de animais de vários pontos, até
da chamada zona norte do Ceará, limítrofe com o Piauí.

17
Nas épocas próprias de cada ano, o capitão José Raimun
do de Aragão, genro do Cel. Félix José de Sousa, a quem este
entregava a direção e negócios de suas fazendas, apartava as
reses eradas e os animais destinados à venda. Delmiro Porfírio
de Farias e José Soares de Sousa Fogo, sobrinhos do coronel -

ambos parecidos na índole andeja e aventureira, apesar da di


ferença na idade e no físico devem ter sido incumbidos de
-

tais transações; a princípio, como boiadeiros, tangendo gado pa


ra as feiras de Sobral, Granja, Fortaleza, Aquirás e outros luga
res, gado pertencente também a outros parentes, criadores nos
sertões de Santa Quitéria e Ipu.
Por volta de 1860, passaram a interessar, muito mais que
os negócios de bovinos, os de animais, em Pernambuco. E,
então, além dos dois cavalarianos, seguia como chefe da tropa
João de Mendonça Furtado, casado com Joana de Farias, ir
mã de Delmiro Porfírio e comerciante na antiga vila de Cam
po Grande sôbre a serra da Ibiapaba, em cujo sopé fica Ipu.
Era, portanto, pessoa aparentada e da inteira confiança
do povo da Boa Vista, sem o espírito estróina daqueles dois,
capaz de dar conta, fielmente, dos haveres postos em suas
mãos, ou seja, os animais retirados dos inúmeros lotes que
pastavam, à sôlta, nas fazendas do coronel, dos filhos e filhas
dêste.

De volta, traria do Recife, nos alforjes, nas bruacas, nos


bolsos das caronas, encomendas feitas pelos seus familiares; as
senhoras deviam encomendar-lhe jóias, perfumes, leques, pen
tes, sêdas, bordados, fitas, linhas, agulhas, etc. Não só trazia
essas coisinhas leves de conduzir, mas também outras, de utili
dade e gôsto da mesa portuguêsa, tais como o azeite e a pimenta
do reino, a pólvora e a espolêta para as espingardas de caça.
Mas João Furtado, como bom comerciante que era, não
deixaria de trazer também para sua loja em Campo Grande
(atual Guaraciaba) novidades da moda, artigos e objetos, co
mo cortes de tecidos, sapatos, armas de fogo, tudo enfim que
fosse possível conduzir em suas montadas e nas alimárias de
carga, restantes, coisas de fácil colocação e que ao mesmo tempo
lhe proporcionassem boa margem de lucro.
Os cavalarianos do Ceará tinham sua rota quase que obri
gatória pela cidade de Icó antiga capital da Província
-

ponto convergente de estradas de Pernambuco e Paraíba. A


18
cidade crescera perto da confluência do rio Salgado com o Ja
guaribe, cujas margens amplas e leito sêco no verão serviam de
caminhos naturais aos viandantes e cavaleiros. Aquêles que, na
volta, demandavam os sertões de Santa Quitéria e Ipu, não
iam certamente por lá e, sim, pelos campos de Quixeramobim
ou pelos Inhamuns.

Havia sempre demora, no Recife, para a venda dos cavalos


e muares, bem como para a compra dos artigos e objetos a
trazer. Delmiro de Farias, certa vez, nos idos de 1860, demo
rando-se ali, em Pau d'Alho ou També, veio a conhecer e na
morar a jovem Leonila Flora, descendente da ilustre família
dos Cruzes, senhores de engenhos, ao norte do Estado. Môça
bonita, além de possuir fina educação e saber tocar piano,
apaixonou-se por aquêle sertanejo queimado de sol, rude mas
atraente e audacioso. Que estranho e fascinante tipo de homem
seria o cavalariano cearense para tontear tão repentina quão
perdidamente a cabeça da môça?!
Só poderia ser mesmo um “rapaz forte, robusto, esbelto,
corado, guapo, corajoso," -

como o qualifica Carlos Lobo,


reproduzindo impressões ouvidas dos lábios de sua avó ra

zão por que "era chamado pelos sobrinhos de TIO BELO". Cons
ta que João Furtado, ao peceber que a jovem estava caindo
nas malhas de Belo de Farias, a advertiu de que seu cunhado
1 era casado e pai de filhos. E que Leonila, rindo-se, disse não
o acreditar, enfeitiçada pelos amavios sedutores do forasteiro,
D. Juan cigano, cavaleiro andante do Amor, que já tinha con
quistado aquêle frágil coração! O coração tem razões...
Para a sua louca aventura, contava Delmiro de Farias com

a solidariedade e astúcia de seu primo e companheiro insepa


rável, Zé-de-Fogo, exímio mateiro e conhecedor de estradas e
veredas, que logo se prontificou a acompanhar os dois fugi
tivos na travessia dos sertões. No dorso de um animal, fazia
proezas incríveis aquêle rapaz de 20 anos, assim retratado pelo
historiador Eusébio de Sousa:

"Desde mui criança o chamavam ZÉ DE FOGO, porque


era mesmo um FOGO nas traquinadas e até no as
pecto de menino rubro, alourado e no tom casta
nho amarelado dos olhos pequeninos.

19
"Quando adolescente, ninguém o excedera em au
dácia nos mais árduos misteres da vida sertaneja.
Havia mesmo nos seus atos requinte de temeridade
em que poucos dos seus camaradas ousavam imitá
lo. Nas vaquejadas escolhia o cavalo mais rebelde,
que atirava contra o barbatão mais arisco, e, de
preferência, no mais cerrado e acidentado das
caatingas."

Ao rapto da menor seguiu-se a fuga, tudo célere e bem


executado, mas a caminhada seria longa... Para se ter idéia,
basta dizer que a distância entre Recife e Ipu corresponde,
em linha reta, mais ou menos, às que separam:
SALVADOR de Barreiras ou Januária;
-

RIO DE JANEIRO de Araguari ou Ponta Grossa;


PORTO ALEGRE -

de Montevidéu, e
SÃO PAULO do rio Paraná, lá na fronteira do Paraguai.

40 dias, talvez, de viagem a cavalo, durou aquela cami


nhada! Os três sabiam que os parentes da môça, tão depressa
descobrissem a fuga, poriam tropas no encalço. E certificaram
se logo de que João Furtado havia sido prêso, e, assim, expli
caria a rota a seguir, revelando tudo. Ter-se-iam encaminhado
para Icó os perseguidores da menor raptada, munidos de pre
catória, com ordem de prisão e extradição do criminoso. Quan
do lá chegaram, demorando-se e fazendo investigações, não en
contraram sinal nem pista alguma. É que Zé-de-Fogo aconse
lhara o desvio da rota. Alcançando o Jaguaribe, seguiram por
suas margens possivelmente até Russas; atingiram Santana do
Acaraú, Granja, depois Viçosa, na Serra da Ibiapaba, e final
mente a vila de Campo Grande.
As tropas resolveram, entretanto, prosseguir viagem atrás
dos fugitivos, segundo dizem até os Inhamuns, ou até Sobral.
Aí pararam porque souberam da inutilidade e até perigo de
continuar, porquanto o conhecido e audaz cavalariano perten
cia à poderosa família dos Farias, sendo sobrinho do prestigioso
chefe político, Cel. Félix da Boa Vista.
Quando Belo de Farias chegou a Campo Grande acompa
nhado de Leonila, estourou o escândalo. O seu pai, Cel. Joa
quim Porfírio de Farias, cidadão severo, "não endossou a aven

20
tura amorosa e insensata" e Delmiro de Farias foi expulso
do ambiente de respeito em que viviam as famílias do pai, das
irmãs casadas e dêle próprio. Até então morara, com a mulher
e os 5 filhos legítimos, no sítio São Paulo, em cima da serra,
no caminho de Campo Grande para o Ipu.
A sua mulher chamava-se Francisca Delmira de Farias,
irmã de Cândida, Luzia, Joaquina e José, sendo a primeira
(Cândida) casada com Tomaz Catunda, irmão do Senador Ca
tunda. Embora condenando o procedimento do filho inconse
qüente, o Cel. Joaquim de Farias mandou arranjar uns burros
para que êle e a nova companheira viessem embora para as
terras dos sertões, onde habitavam muitos de seus parentes.
Existe a versão de sua estada ora na fazenda Luva, ora em

Jeramataia, do município de Santa Quitéria, onde teria passado


os primeiros tempos de sua união ilícita, de que resultou o
nascimento, em 1861, da primogênita chamada Maria Augusta.
Diz-se que sua legítima mulher, acompanhada dos filhos, viera
também morar em Santa Quitéria, ao lado de suas irmãs, den
tre as quais a espôsa de Tomaz Catunda. Essa proximidade
deve ter trazido inquietação e mal-estar a Delmiro de Farias,
que ouvia constantemente as lamentações de Curica, apelido
com que a distinguiam da espôsa.
Além disso, apareceram tropas de linha, na vila, com ordem
de capturá-lo, o que só não ocorreu porque era então Oficial
de Justiça, ali, seu amigo Manoel Egídio, que foi avisá-lo, fa
cilitando e até ajudando a sua fuga às pressas. De modo igual
mente vago, adianta-se que, continuando perseguido, Delmiro
de Farias fôra detido na cadeia de Ipu, de onde logo teria fu
gido, espetacularmente, num cavalo arranjado por um certo
José Alves.
Essas versões, se verdadeiras, fortalecem a outra, mais di
fundida e provável, de que Delmiro Porfírio de Farias, para
sua segurança e tranqüilidade, passara a acoitar-se à sombra
dos seus parentes da Boa Vista, onde a notícia de sua presen
ça, ao lado da amorosa e infeliz Curica, foi conservada pela
tradição, sendo a sua hitória contada por muitas formas e por
muita gente da região, que vem repetindo, através dos anos
e das gerações, essa aventura romanesca...

21
O Bravo e Aventureiro
Pai de Delmiro Gouveia

O pai e os avós de Delmiro Porfírio de


Farias Idade em que se casou; em
que conheceu Leonila Flora e a raptou
O governo de Lafayette, no Ceará; po
sição ocupada pelo Dr. Félix José de
Sousa Júnior Convocação do volunta
riado cearense Como e porque Del
miro de Farias seguiu para a Guerra
A morte do herói Seu nome numa rua
-

de Fortaleza.

DELMIRO
ELMIRO PORfírio dE FARIAS era filho

do Cel. Joaquim Porfírio de Farias, que contraíra matrimônio


3 ou 4 vêzes, a primeira das quais obrigado por sua severa e
rica progenitora - D. Ana Ferreira Passos - que, após a morte,
ficou conhecida como a serpente (*), dada a sua índole má
e autoritária; o último casamento do Cel. Joaquim foi com
uma mulher humilde que já era mãe de alguns de seus nume
rosos rebentos. Fácil é ver que tal cidadão, apesar de respeitá
vel por outros títulos, não podia legar a seus descendentes
exemplo de retidão na vida conjugal e amorosa.
Delmiro Porfírio -o Belo foi um dos mais velhos da
-

prole. Não há registro de seu nascimento, o qual se teria dado


em Campo Grande (atual Guaraciaba) ou no sítio São Paulo
(*) São mul interessantes as histórias sobre o matrimônio e sobre a
serpente, as quais, todavia, deixamos de contar, aqui, a fim de evitar di
gressões inúteis.

22
sobre a serra. Mas, o velho Francisco Elmiro Martins, com boa
lógica e por dedução em face do ano de nascimento de um
outro menino aparentado, nos disse presumir que Delmiro
Porfírio de Farias, rebento do primeiro matrimônio, à fôrça,
com Maria Francisca de Paula, sua genitora, haja visto a luz
do sol em 1825 ou 26.

Se verdadeira a presunção, andava êle, pai de 5 filhos como


era quando conheceu e raptou Leonila, pela casa dos 35 anos,
tendo, pois, quase 40 ao seguir para a Guerra do Paraguai.
E, se a seu primo e companheiro Zé-de-Fogo, cêrca de 15 anos
mais jovem que êle e com "educação rudimentar", foi dado o
lugar de 20 sargento - como nos informa o abalizado histo
riador Eusébio de Sousa o garboso, belo e valente Delmiro
de Farias deve ter recebido logo de entrada, indubitávelmente,
pôsto militar mais elevado.
Para tanto contribuíram os seus dotes físicos e mesmo inte

lectuais (porquanto há informações de que haja freqüentado es


colas, indo até o curso superior), bem como, e, principalmente,
o prestígio de seu primo legítimo Dr. Félix José de Sousa Jú
nior, professor do Liceu do Ceará, deputado provincial (de 1864
a 1870) e que, segundo o Barão de Studart, "foi preponderante
influência na administração Lafayette". Trata-se do mesmo La
fayette Rodrigues Pereira, elevado mais tarde a Conselheiro
e Ministro do Império, autor de obras de Direito e artigos em
defesa da obra literária de Machado de Assis atacada por Sílvio
Romero.

Quando o Gabinete Zacarias lhe confiara as rédeas presi


denciais da Província do Ceará, Lafayette tinha apenas 30
anos. Desconhecendo os problemas político-administrativos do
Estado nordestino, o mineiro culto, inteligente, mas meio bi
sonho ainda, escolheu uma espécie de "premier”, e êste foi o
Dr. Félix, filho do prestigioso chefe político do Ipu, o Cel.
Félix da Boa Vista. Era formado pela Faculdade de Direito de
Pernambuco, a qual teria sido também freqüentada por Del
miro Porfírio de Farias, que abandonara o curso no início, a
fim de casar-se contra a vontade paterna.
Lafayette teve ali uma gestão curta, porém brilhante, mo
vimentada, trabalhosa. Começou o ano de 1865. A Pátria via-se
gravemente ameaçada por Solano Lopez e, para defesa de seus

23
brios e soberania, S. M. o Imperador convidava o povo a for
mar corpos de voluntários, através do Decreto n° 3.371, de
7-1-1865. A esse apêlo o Ceará atendeu prontamente, dando-lhe
ênfase e larga divulgação por todos os recantos, espalhando cir
culares aos comandantes superiores, às câmaras, autoridades
judiciárias e policiais.
Dizem ter sido determinado em Santa Quitéria ou Ipu,
entre os membros da comissão incumbida do recrutamento,
formada por cidadãos preeminentes, que dois varões domi
ciliados na Boa Vista deviam apresentar-se para incorporação
às fôrças do brioso 26 "batalhão de escol, constituído pela
-

melhor gente do Ceará" o qual iria cobrir-se de glórias.


As conversações de família logo mostraram a inconveniên
cia e impossibilidade de seguirem dois filhos do Coronel Fé
lix, tanto mais quando membros da família ali residentes
Belo de Farias e Zé-de-Fogo se ofereciam espontâneamente.
O primeiro sentia-se ainda inseguro, fustigado pela Justiça, e
enxergou talvez naquilo uma tábua de salvação, um meio de
livrar-se da situação incômoda em que se metera, sem mais
poder viajar como dantes, porquanto estabelecia o diploma
imperial, entre as vantagens oferecidas:

-
Uma gratificação de 300 réis diários, além
dos vencimentos que percebem as praças de linha;
-
Dispensa do serviço apenas fôr declarada a
paz, com a percepção de uma gratificação de 300$000
e 22,500 braças quadradas de terra, e pronto regresso
às suas Províncias;
Graduação de Oficiais honorários do Exér
cito, com sôldo aos que se distinguirem por ato de
bravura.

Delmiro Porfírio de Farias foi engajar-se no batalhão que


partiu de Sobral, no início de 1865, sob o comando do Tte.
Viriato de Medeiros. Chegando a Fortaleza, foi ter com seu
ilustre primo Dr. Félix que, por certo, superintendeu as
-

providências de organização dos comandos e tropas a embarcar


-
sendo indicado, por todos os títulos e razões, para pôsto
destacado num dos batalhões que saíram rumo ao Paraguai,
nos meados daquele ano.

24
Em "A Guerra do Lopez" (Ed. Getúlio M. Costa) conta
Gustavo Barroso no capítulo "A Surprêsa de Caimbocá", à pág.
161 e seguintes, como morreu, gloriosamente, o bravo Delmiro
de Farias a 2 de dezembro de 1867, fazendo parte de um pelo
tão de reconhecimento que operava nas linhas avançadas do
território paraguaio. Vejamos:

"Desceram por um trilho da selva até um pequeno


meçavam a esgarçar-se os nevoeiros que subiam dos
pantanais, partiram do acampamento os explora
dores do 26: vinte e um soldados, dois cabos, um
sargento e o alferes Domingos Cândido de Carva
lho. Mal o piquete se pôs em forma, o comandante
do batalhão Major Sebastião Tamborim disse para
o capitão mandante Delmiro Farias:

Vamos acompanhar a fôrça?

"Desceram por um trilho da selva até um pequeno


t banhado. Tudo silencioso e deserto. Alguns pássa
3
ros voavam sôbre a água tranqüila. céu azulecia
por entre os nevoeiros que se adelgaçavam e rasga
3
vam. Tamborim dispôs os soldados do capitão Fran
klin em atiradores à beira do charco. Apeou-se com
os outros companheiros, amarraram os animais às
árvores e, flanqueando o banhado, na cauda do pi
quete explorador, foram sair num pequeno campo
atapetado de verbenas selvagens. Ali se detiveram
alguns minutos. A sua frente, o terreno se elevava
coberto de vegetação densa, na qual se distinguia a
3 bôca escura de uma picada denominada pelos pa
raguaios de Caimbocá.
"
O major Tamborim mandou o alferes Carvalho
2 explorar as proximidades da mata com meia dúzia
de homens. Com os outros, bateu êle mesmo o ter
reno em volta do pequeno campo. Nada viram de
suspeito. De repente, o alferes sai do bosque, aos
pulos, gritando:
Os paraguaios! Os paraguaios!

A luta renhidíssima demora uns 15 minutos.


S Ouvindo a gritaria, o rumor dos ferros entrecho
cantes, o capitão Franklin manda um cabo em busca
de socôrro, avança pelo banhado com a sua diminu
ta fôrça e atira no montão de paraguaios que se en
carniçam sôbre os brasileiros. Receando o ataque

25
duma tropa mais numerosa, o regimento inimigo,
que ignora o número de homens daquele pelotão de
apoio, foge e se dispersa na selva impenetrável. No
meio do campo, um único combatente está de pé."

Relata o Diário do Exército, de 2 de dezembro de 1867,


que "o capitão mandante, em consequência de mais de seis
golpes na cabeça e vários no corpo, foi encontrado com o crâ
nio partido". Os veteranos que conseguiram regressar ao Ceará,
depois dos 5 anos de encarniçados combates, completaram,
com pormenores vivos e arrepiantes, o relato daquela cilada
em que perdemos alguns de nossos irmãos, entre os quais o
belo e bravo filho do Ipu. Dizem que, depois do corpo-a-corpo
violentíssimo, oito ou dez inimigos jaziam em volta do seu
cadáver, enterrado ali mesmo, ao pé de uma árvore, com hon
ras de major.
O Ceará mandou para a Guerra do Paraguai mais de 5.800
homens, sendo grandes as perdas. Dentre os 14 que mais se
notabilizaram pela bravura, são citados os nomes dos dois
ipuenses Delmiro Porfírio de Farias e José Soares de Sousa
Fogo (*). E, em reconhecimento, o do primeiro Major Del
miro de Farias. foi imortalizado, pôsto em uma das ruas de
-

Fortaleza.

(*) EUSEBIO DE SOUSA in "História Militar do Ceará", pág. 143.

26
A Amorosa e Infeliz Mãe de Delmiro

Filha de senhor-de-engenho; neta de


grande vulto político Educação e grau
-

de instrução Local do nascimento, em


Pernambuco; onde vivera e fôra raptada
O ambiente hostil, inculto e sem con
fôrto do sertão Origem e significado
de "Curica" A volta para Pernambuco,
com os filhos Vergonha de contar sua
aventura O coração doente de Leonila
-

encontrou o do generoso Des. Meira de


Vasconcelos Casamento com êle, às
vésperas da morte Os filhos deixam o
-

lar do padrasto.

LEONILA
JEONILA FLORA DA CRUZ GOUVEIA era

filha do Comendador Ismael Cruz Gouveia, senhor de engenho


em Itabaiana (Pb), cujo pai merece ser citado por ter sido
destacado vulto político em Pernambuco. José da Cruz Gou
veia (era o seu some), português de origem, abraçara a vida
do campo, tornando-se rico proprietário de terras na região
do brejo, na fronteira de Pernambuco com Paraíba.
Deputado por Pernambuco à 1ª Constituinte do Império,
tomou parte na revolução de 17 (v. "História da Revolução
de Pernambuco", por Francisco Muniz Tavares). Quando D.
Pedro, com um golpe, dissolveu mais tarde a Constituinte, so
lidarizou-se êle com José Bonifácio (v. “História dos Funda
dores do Império" por Otávio Tarquínio de Sousa, livro cujo
volume I refere sua prisão, à pág. 284, no mesmo dia da
dissolução).

27
Apesar de filha bastarda do Comendador, Leonila Flora
fôra criada como legítima, dentro de bons princípios, recebendo
cuidadosa instrução, tanto que era professôra e tocava piano.
Nascera e criara-se numa casa das proximidades ou de dentro
do engenho do pai, com outras irmãs bastardas, estas bem
casadas, ao contrário dela, a única que se desviou do bom
caminho.

Môça finíssima, porte fidalgo, clara, olhos azuis ou esver


deados, tinha a fisionomia delicada e sonhadora.
Em Santa Quitéria existiu uma velha que transmitiu a
muitos a informação, vinda até nós, de que conhecera essa jovem
adiantando
-
bonita, educada, olhos e cabelos grandes
haver tomado banho de rio com ela na fazenda Jeramataia.
E que Curica, como era já então chamada, chorava muito por
ter sido iludida por Belo de Farias, que se dissera solteiro.
Consoante indicações veiculadas pela tradição, Leonila
estaria em Pau d'Alho, ou ocasionalmente no Recife, quando
fôra raptada por Delmiro de Farias. Outras fontes referem que
vivera em També ou noutra localidade do norte de Pernam
buco. Infelizmente, não se pôde tirar seu batistério, pois que
no antigo Itambé a cidade onde ela teria nascido, segundo
informe de um seu ilustre parente - não existem mais os livros
de assentamento da época (1840), certamente destruídos por
falta de zêlo ou pela ação do tempo, sendo inútil a busca dada
ali por Tadeu Rocha.
O Comendador queria muito bem à tão prendada filha;
contrariou-se bastante com a sua fuga e depressa providenciou
na expedição de tropas à procura dela, com mandado de pri
são para o raptor, que logo se soube ser casado. E êle - coitado!

nunca mais a veria, porque faleceu um ano após. Isso,


aliás, induz a acreditar-se que o regresso dela, a Pernambuco,
não se deveu às gestões do velho, como também que haja ces
sado ou pelo menos diminuído a ação perseguidora da polícia
para a captura do audaz cavalariano.
E admissível a presunção de que a jovem tenha sido en
ganada com promessa de casamento; e que, chegando ao Ceará,
haja sofrido profundo desapontamento em face da realidade,
porquanto os informes trazidos até nós pela tradição oral, de
que vivia sempre chorando, a queixar-se dêle por lhe haver
28
mentido, fazem crer que fosse olhada com certa antipatia e
tratada como intrusa pela parentela de Belo de Farias.
Quanto ao apelido de Curica, é possível que nesses fatos
esteja a sua origem, isto é, que tenha sido pôsto por essa gente,
de modo depreciativo. Registram os dicionários o nome como
designativo de uma ave, espécie de papagaio. Quem sabe se
não teria, ao contrário, sentido carinhoso ou afetivo? Pode mui
to bem ter sido sto o epíteto pelo próprio companheiro que
a trouxera de longe, a cavalo, e, grudada na garupa, a conduzia
para cima e para baixo, como um periquito ou papagaio que
se carrega no dedo. Não serviria êle, simplesmente, para dis
tingui-la da legítima espôsa que veio morar nas proximidades
do local em que o casal começara a viver?
Tudo isso são conjecturas, pois nada conseguimos apurar
de verdadeiro, sôbre o apelido e sôbre o significado do têrmo
Curica, como ficou conhecida a amorosa pernambucana nos
sertões de Santa Quitéria e Ipu. Fácil é imaginar que ela não
se sentisse bem naquelas brenhas incultas e sem confôrto, na
quele ambiente algo hostil, sendo pois natural que, chorando
e maldizendo da sorte, pedisse constantemente para voltar
à sua terra onde fôra tratada com cuidados e mimos.

Dizem que o Cel. Félix recebera carta da família de Leo


nila, solicitando-lhe providenciasse o seu retorno, e que êste
se teria dado às escondidas e numa ausência de Delmiro de
Farias, que, desgostoso, resolvera partir para a Guerra. Não é
verdade! Vimos um retrato dêle ao lado de Curica, sentada,
em cujo colo aparece o pequeno Delmiro Gouveia, com a idade
de mais de um ano, circunstância que nos faz admitir a hipó
tese de ter sido a foto tirada em Sobral no início de 1865, quan
do aquêle deve ter ido juntar-se ao corpo de voluntários que
dali seguiu logo depois.
A volta de Leonila Flora, com os 2 filhos, ou ocorreu na

quela ocasião, após haver convencido a Belo de Farias de que


seria melhor ficar no Recife, aguardando o seu regresso da
Guerra, do que permanecer na Boa Vista; ou, provavelmente,
se deu no decorrer do primeiro semestre de 1868, depois que
chegou à fazenda a notícia da morte dêle, ocorrida em dezem
bro do ano anterior. Aí, então, nada mais prendia Leonila
àquela terra em que só fôra encontrar decepções e amarguras,

29
que, com o desaparecimento do companheiro, iriam num cres
cendo levá-la ao desespêro.
Numa ou noutra hipótese, queremos crer que o papel
desempenhado pelo Dr. Félix de Sousa Júnior é como um elo
que nos faltava para ligar e explicar os acontecimentos rela
cionados com a volta de Leonila. Diz-se que o Cel. Félix, ante
os apelos da família da môça raptada e, posteriormente, dela
própria, mandou levá-la de volta, num comboio de animais,
que cremos hajam sido despachados para Fortaleza, com ordem
para que a ela fôssem fornecidas as passagens de navio e os
meios necessários para a viagem. E quem se incumbiu disso não
foi outro, certamente, senão o Dr. Félix, pessoa influente na po
lítica e que, no govêrno de Lafayette, fôra quem tratara do
embarque dos soldados para o Paraguai, entre os quais partira,
para lá morrer, tràgicamente, o seu valente primo Delmiro de
Farias, deixando na orfandade e desamparados os dois filhos
menores, que agora precisavam emigrar, com a inditosa pro
genitora.

Leonila Flora da Cruz Gouveia chega ao Recife. Só, então,


talvez, é que vem a saber do passamento do pai, que não lhe
deixou herança, dada a condição de filha natural, mas, possì
velmente, lhe deixou o fantasma do remorso por ter concorrido,
com o desgôsto, para apressar a sua morte. Está disposta a não
procurar parentes nem conhecidos. O anonimato é uma tática
que procura empregar desde os seus primeiros passos, de volta
à cidade-grande.
Observa-se o seu empenho em ocultar aos filhos pequenos
e a tôda a gente a história da aventura sentimental em que se
metera. Quando lhe faziam perguntas indiscretas e não podia
fugir às explicações, respondia vagamente que ficara viúva,
que o marido morrera do coração, no Ceará. Essa a conclusão
a que chegamos em face de várias circunstâncias, entre as quais
a de que os filhos cresceram na suposição de que o pai fôra um
certo Delmiro Augusto, um tal Capitão Belo...
Se isso é crime, não deixa de provar a vergonha e ressen
timento que Leonila guardou de seu passado e que suas virtudes
eram altas e belas, redimindo-a de tal crime e de seu passo

30
errado, que se deu, sem dúvida alguma, numa vertigem mo
mentânea provocada por irresistível conquistador.
Inútil investigar o modo como foram, na Mauricéia, seus
primeiros tempos de luta, possivelmente obscuros e difíceis,
mas enfrentados com galhardia e estoicismo, a ponto de serem
relembrados com orgulho por quem, em menino, os acompa
Inhou de perto Delmiro -
que conservava até a morte o
retrato da mãe, numa mesa de cabeceira, em sinal de reconhe
cimento e admiração.
Pouco ou nada se colheria em tal investigação. Tudo o
que se sabe é que ela conheceu, mais tarde, o advogado Meira
de Vasconcelos, em cuja casa foi servir, a princípio, como "sim
ples empregada doméstica", homem êsse que "tão saliente papel
veio a exercer na política e nas letras de sua província” (*),
destacando-se como ardoroso socialista e lider católico.

Já era figura conhecida o Desembargador José Vicente


Meira de Vasconcelos, decorridos alguns anos em que Leonila
vivia em sua companhia, desprendidamente, com o interêsse
apenas de criar bem os filhos, dando-lhes o exemplo do tra
balho honesto, sem os defeitos da ociosidade nem os percalços
da pobreza; já era, pois, importante èsse homem inteligente,
sensível e cheio de virtudes cristãs, capaz de apreciar as reve
ladas por Leonila, quando esta, após alguns anos com êle coa
bitando, veio a adoecer gravemente do coração - e quando êsse
homem, respeitável e reconhecido, resolveu com ela casar-se in
extremis.

Depois do falecimento de Leonila Flora, o Dr. Meira de


Vasconcelos continuou a amparar os enteados, como em vida
daquela e como ótimo padrasto que sempre foi. Não tardou,
porém, a chegar o dia em que Maria Augusta teve que deixar
o lar, a fim de constituir o seu, ao casar-se com um môço per
tencente à família Carvalho, do Ceará (curiosa coincidência!).
Delmiro Gouveia, então um rapazote de 15 anos, mas bastante
desenvolvido e senhor de si, acompanhava a irmã, isto é, dei
xava também a casa do padrasto, para enfrentar sòzinho a vida.

(*) JOSÉ BONIFACIO DE SOUSA, in "A vida audaciosa de Delmiro


Gouvela".

31
Os Primeiros Passos do Menino

Cearense que Emigrou

A paisagem nativa ficou-lhe gravada na


memória - A Serra-Grande e a Bica do
Ipu Outras quedas d'água; a Cachoei
-

ra de Paulo Afonso Recife, uma Ba


bilônia para o menino sertanejo Os -

primeiros empregos humildes e mal re


munerados Na Machambomba e num

armazém do cais do Ramos Emprega


do ou corretor de firmas exportadoras
de peles.

JOSÉ DE ALENCAR inspirou-se para criar


o "Iracema" numa visita à terra natal, trazendo-o escrito ou
apenas esboçado para o Rio. Ele mesmo o declara no prefácio,
onde diz que naquele momento "a espada heróica de muito
cearense vai ceifando no campo da batalha ampla messe de
glória". Datado de 1865, o prefácio fôra redigido exatamente
quando marchavam para a guerra do Paraguai, com o peito
enfunado de patriotismo, os briosos voluntários do Ceará, entre
os quais Delmiro de Farias.
Ao concluir a sua obra imortal, o romancista nos fala,
alegòricamente, sob o símbolo de Moacir filho da dor – dêsse
-

determinismo que persegue o seu povo, a que chama "predes


tinação de uma raça”. Veio a lume justamente naquele ano
-
1865 a história do amor infeliz da "virgem dos lábios de
-

mel", nascida nos sertões de Ipu, assim como Delmiro Gouveia,


fruto doutro não menos infeliz amor; e foi também quando o

32
pai dêste seguiu para a guerra, assim como para ela partira,
outrora, o pai de Moacir...
Confirmando-se a visão profética do escritor, estava selado
naquele ano o destino de mais um cearense e futuro emigrante,
cujo pai, em defesa da Pátria, partia e iria morrer. Não se sabe
exatamente com que idade o menino deixou o torrão natal: sc
com 5 anos, menos ou mais. O certo é que teria idade suficiente
para conservar a memória de Sobral e da paisagem da Serra
Grande, com a bica do Ipu, formada pelo riacho que dela se
desprende de mais de 100 metros, sendo avistada do alto sertão.
Diz um seu parente, Carlos Lobo, que o menino Delmiro
se criou vendo diàriamente a serra e constantemente a bica.
E a sensibilidade poética de Mauro Mota (*) imagina que
aquela criança via a água jogar-se "numa queda de suicídio,
para ir morrer mais adiante nos tabuleiros cearenses. A visão
dêsse desperdício, num meio de extremas penúrias, ter-se-ia gra
vado na retentiva do menino para ficar na do homem e do
homem exigir a compensação".
De fato, a paisagem nativa ficar-lhe-ia gravada nos olhos
e no coração. Delmiro haveria de levá-la pela existência afora,
como uma obsessão ou fatalismo. Quando em 1896/7 viajou
em excursão pelo Exterior, posando com a espôsa para uma fo
tografia histórica que vimos em poder de sua filha, escolheria
como pano de fundo a cachoeira do Niagara, ou outra. Anos
depois iria fixar-se na Pedra, próximo de Paulo Afonso, sonhan
do, permanentemente, com o aproveitamento do seu potencial
energético e das águas do São Francisco, como meios de redi
mir do pauperismo sua terra e seu povo.
É possível que, em criança, êle visse os teares na casa-velha
da Boa Vista, aquêle engenho rudimentar em que D. Isabel
ensinava as escravas a fiar e tecer peças grosseiras de fazendas;
como também visse sua mãe, professôra, ensinando a ler as
filhas e netas dos donos da fazenda, e a fazer bordados, crochés
e costuras, no paciente manejar de linhas e agulhas. E ficariam,
assim, retidas em sua mente essas cenas da infância, observadas
nos sertões cearenses, bem como a paisagem da serra e da bica
do Ipu...

(*) A Estrêla de Pedra: Delmiro Gouveia, evangelizador de Terras,


Águas e Gentes" Recife 1961.

33
Recife foi como uma Babilônia para o menino sertanejo.
Delmiro abandona o sertão à procura da cidade-grande do li
toral, como "a natureza do rio que corre para o oceano". A
imagem é do seu primeiro e esclarecido biógrafo, Plínio Caval
canti, à qual aduz a de que o contato do meio civilizado foi
a polia mecânica onde êle aprimorou as grandes virtudes
inatas e já evidentes.
Não se sabe, precisamente, como ensaia seus primeiros
passos naquela Metrópole. Consta da Enciclopédia Internacio
nal, da Jackson, que fôra tipógrafo aos 11 anos. Mal chega à
adolescência, depois da morte da mãe e do casamento da irmã,
deixa a casa do padrasto, para enfrentar a vida, com 15 anos,
sem levar consigo, porém, bons fundamentos de instrução, dado
que, com sua natureza independente e algo rebelde, não quis
submeter-se à disciplina das escolas.
Poder-se-ia resumir que, ainda aos 20 anos, era comerciá
rio. Em seu precioso "Depoimento" (*), conta-nos Adolfo San
tos -

seu amigo desde repazote, tendo-se casado depois com a


filha de D. Maria Augusta e sobrinha de Delmiro que êste,
-

nessa fase inicial, teve empregos humildes e mal remunerados.


Colocações incertas e modestas demais, não podiam preencher
os sonhos daquele jovem vivo, dinâmico e que, pela precoci
dade, aparentava mais idade do que tinha; daí talvez a razão
por que declarava ter nascido em 1861.
Primeiro, aparece como empregado e condutor de trem na
"Machambomba", como era chamada a Brazilian Street Rail
ways Company, concessionária de um sistema de transporte car
ril urbano, que fazia a ligação do Recife a Apipucos, com ramais
estendidos posteriormente a outros bairros. Ali, êle aprende
de ouvido a falar inglês, segundo o seu biógrafo-poeta, que o
lembra de farda azul ou de lanterna à mão, já como chefe de
estação em Caxangá.
Essa profissão parecia humilhante para um môço sonhador
que iria ocupar posição de destaque na sociedade e comércio
recifenses, servindo, por isso, de pretexto a um jornalista para
ofendê-lo, recordando o fato, anos depois. E êle, em revide, res
ponderia que jamais exercera função tão importante. Sim, "o
verde e o rubro das lanternas eram mais os da vigilância sobre
os guarda-freios, os maquinistas, os horários, a ordem na gare
(*) "Depoimento para um estudo blográfico" sôbre Delmiro, do qual
tivemos em mãos um exemplar, deixado com um de seus parentes.

34
e nos vagões" diz Mauro Mota, concluindo que Delmiro
"já utilizava o primeiro emprêgo, de modesto ferroviário, como
aprendizado de liderança e contacto com os problemas econô
mico-sociais de sua época".
Mas a sua carreira estava mesmo na compra-e-venda. Escre
ve Tadeu Rocha (*) que êle começou como mascate, condu
zindo cargas de louças que trocava por aves e ovos na zona do
Agreste, cujas fazendas e sítios visitava a cavalo, ao lado de um
almocreve. Ainda por volta de 1880, "seu" Delmiro hospedou-se
muitas vezes no Jaracatiá, perto de São Caetano, onde fêz ami
zade com o fazendeiro Julião de Albuquerque Melo, cujos filhos
Julião e Manuel Clementino ainda conservam a memória des
sas transações.
Com o traquejo adquirido e as relações feitas nos meios
comerciais, tornou-se encarregado de despachos de barcaças,
"o primeiro pôsto de responsabilidade que assumiu", no dizer
de Adolfo Santos. Conseguiu estabelecer-se, com sua mesa, ao
canto de um dos armazéns de compra de algodão e outras mer
cadorias, entre muitos que, nessa época, operavam no antigo
cais do Ra onde o pai daquele informante, Sr. Francisco
Xavier dos Santos, era também negociante do ramo.
Como o pôsto não lhe rendesse bem, Delmiro voltou-se à
compra de peles, na qualidade de empregado e depois corretor
das firmas que então incrementaram muito êsse comércio no
Nordeste, com escritório no Recife. As principais eram forma
das ou dirigidas por estrangeiros, como o americano John San
ford, o alemão Herman Lundgren, o francês Ernest Kant, o in
glês Clemente Levy, os italianos Lionelo Iona e Guido Ferrário.
Com esses compradores e exportadores de couros e courinhos,
o môço ativo e simpático iria travar e, mais tarde, estreitar
relações, tornando-se precioso elemento de ligação entre êles
e os vendedores ou produtores do interior.

(*) Professor, historiador e jornalista, escreveu uma série de artigos


sobre Delmiro no "Diário de Pernambuco", em 1953.

35
Goiaba de Pesqueira, Doce
e Bonita, mas sem Semente...

Como Delmiro conhece o Sr. Melo Falcão

A família dêste e sua filha Iaiá


Adoece e é tratado em casa do mesmo
Enamora-se da bela môça O casa
mento quando sua situação financeira
ainda não era boa Volta ao Recife e
começa a progredir —

Transforma-se
em homem mundano "Vila Anuncia
da": suas festas e jantares Incompa
tibilidade de gênios Atritos do casal e
a separação D. Iaiá volta para Pes

queira Vida de monja, enclausurada


-

Prefere o desquite à reconciliação


Delmiro confessa arrependimento
Morte de um e de outra.

PESQUEIRA AINDA não era conhecida,


como atualmente, por ser a cidade da goiaba e da sua indústria
de doces. Situada nos confins da região pernambucana do Agres
te, lá na parte que limita com o sertão, perto do município
de Arcoverde (antigo Rio Branco) e, para o lado da Paraíba,
não distante dos de Alagoa de Baixo, Custódia e Afogados de
Ingàzeira, era esta, em linhas gerais, sua posição geo-econômica.
Delmiro via a necessidade de alargar o seu raio de ação
como comprador de peles de carneiro e de bode, as chamadas
"criações" que ali vivem abundantemente e são abatidas em
grande quantidade. Localidade que progredia no centro de uma
zona próspera, quis êle estabelecer, em Pesqueira, um dos pos
tos avançados para as suas compras.

36
Tendo conhecido, no cais do Ramos, o velho Francisqui
nho Francisco Xavier dos Santos pai de Adolfo Santos e
-

ligado por laços de sangue e amizade a pessoas de Pesqueira,


solicitou ao mesmo o apresentasse a alguém de lá, a fim de
lhe facilitar as relações no meio que pretendia visitar. E foi
assim que veio a conhecer o Sr. Antônio Severiano de Melo
Falcão, natural do vizinho povoado de Cimbres e dono de um
cartório em Pesqueira. O tabelião tinha numerosa família, res
peitável e distinta, inclusive uma filha de nome Anunciada
Cândida, mais conhecida por Iaiá, a môça mais linda e pren
dada da terra.
Rapaz bonito, simpático, físico atraente, trato afável e
dotado de boa palestra, Delmiro distinguia-se dos viajantes que
por lá apareciam, sendo muito bem acolhido no seio da citada
família. E, para intensificar os seus negócios, continuou a via
jar pelo interior, andando a cavalo por cidades, vilas e lugare
jos, numa vida sem confôrto, levando sol e chuva, comendo e
dormindo nas péssimas hospedagens de alguns lugares.
Duma feita, e apesar da boa saúde que ostentava, chegou
bastante doente a Pesqueira, precisando de especiais cuidados.
O Sr. Melo Falcão não teve dúvida em chamá-lo para dentro
de casa e tratá-lo como a um parente dos mais chegados. Ao
recobrar a saúde, na convalescença, Delmiro estava enamorado
de Iaiá, e esta, por seu turno, perdida de amôres por êle, que
havia sentido de perto a delicadeza da alma daquela jovem que
ia, dentro em breve, transformar-se de enfermeira em noiva.
Por essa época, com 20 anos de idade, êle já ganhava razoà
velmente nas comissões sobre as peles adquiridas para a casa
do Recife de que era empregado e corretor. Porém, sua situação
financeira, longe de estável, com ordenado fixo pequeno, depen
dia do volume de compras naquela vida incômoda e errante.
O capitão Melo Falcão o teria convencido a ficar estabelecido
em Pesqueira, para de lá tentar aquêle e outros negócios.
Delmiro não devia estar, a essa altura, preparado finan
ceiramente para casar-se, o que se teria dado um tanto de afo
gadilho. Daí acharmos procedente o que escreveu José Bonifá
cio de Sousa, neste particular, reproduzindo informes ouvidos
de José Magalhães Pôrto – antigo empregado de Delmiro, diri
gente da filial de Iona & Cia., aberta em Fortaleza, e acionista
da fábrica de linha - o qual contava de Delmiro que "tão gran
37
de era a sua penúria que, para o casamento, teve de pedir
emprestado o paletó de um amigo".
O caso do paletó, talvez um eufemismo, serve para con
firmar o que pensamos e dissemos sôbre a sua situação e o
enlace apressado. Este teve lugar no dia 28-8-1883, conforme
assento constante do livro 1º, fls. 82, do cartório de Pesqueira.
É da mesma fonte citada esta informação complementar:
"Delmiro costumava referir que Pesqueira lhe restituíra a saú
de, mas em nada lhe melhorara a situação financeira. Uma vez
casado, resolveu voltar para o Recife, cujas possibilidades co
merciais eram para êle uma atração permanente".

Com sua natureza simples e discreta, Iaiá não se sentia


bem no convívio da alta roda. Não gostava dos adornos e afe
tação da moda, das jóias, luvas, chapéus, vestidos rodados e
incômodos espartilhos. Tinha, porém, que acompanhar o gosto
do marido, temperamento diferente do seu, vaidoso e aprecia
dor do mundanismo.

Delmiro adquiriu e reconstruiu, mais tarde, um palacete


a que deu o nome de "Vila Anunciada". Os seus luxuosos sa
lões primavam pelo bom-gôsto e bela decoração; a sala de refei
ções fôra pintada por exímio artista francês. Os banquetes ali
promovidos ficaram famosos pela excelência das comidas, pela
gentileza dos anfitriões e pela esmerada escolha dos comensais.
Figuras as mais preeminentes no comércio, na indústria, nas
artes, intelectuais como Faelante da Câmara, Gonçalves Maia e
Baltazar Pereira estavam sempre presentes, ao lado de músicos,
pintores, artistas diversos.
Vale a pena reproduzir uma cena evocada por Adolfo San
tos e assim descrita por Tadeu Rocha: "Um tenor italiano,
-

tão bom mestre da música como boêmio, quando voltava do


solar de Apipucos na derradeira "maxambomba" da noite, feria
o silêncio suburbano com a sua bela voz, para encanto dos an
fitriões e exaltação sentimental das jovens românticas dos sola
res do arrabalde. O próprio depoente, que era a êsse tempo
estudante de Humanidades, acordava no outro dia com “a alma
leve e o coração contente".

38
A

Delmiro Gouveia subia no prestígio social, brilhando por


sua elegância e finura de maneiras no grand-monde recifense.
O "Rei das Peles", como se tornaria conhecido, chegou até a
ditar modas masculinas, com os afamados colarinhos "Delmiro
Gouveia", altos, engomados e impecàvelmente brancos. Com a
fortuna que conseguiu amealhar, viajaria em excursão pela
Europa, acompanhado da espôsa, nos fins de 1896 e princípios
de 1897.

D. Iaiá esforçava-se ao máximo para acompanhar o marido


na roda-viva do mundanismo. Para adaptar-se, fêz tudo. Pro
curou adquirir boas maneiras. Tinha jóias finas, guarda-roupa
rico e variado. Tudo isso contra seu temperamento, simples,
humilde, caseiro. E o grande negociante ia cada vez mais tor
nando-se opulento, do mesmo modo que virava a cabeça, tonto
pelos encantos da vida social.
Invejado pelos homens, admirado por mulheres, cortejando
artistas, Delmiro foi, pouco a pouco, despertando ciúmes na
espôsa. Um tanto egoísta, voluntarioso, de gênio impulsivo, não
refreou seus instintos, nem moderou seus hábitos. Passavam-se
os anos, e o casal não tinha filhos. Amigo de crianças, êle sentia,
por certo, a falta delas, mas nada revelava à espôsa.
Não somente pela diferença de gênio mas, sobretudo, pela
ausência de filhos o que possivelmente o teria tornado prê
-

so ao lar começaram os desentendimentos. Na verdade, os


atritos eram só da parte dêle, pois D. Iaiá, paciente, mansa,
resignada uma santa! não respondia às recriminações e
-
-

impropérios de Delmiro. Este ainda mais se danava por causa


da resistência passiva, um tanto teimosa, que a mulher opunha
às suas vontades. O ciúme dela tinha essa forma velada, de
conformação, que irritava mais, talvez, que a zanga ou revolta
declarada. Não se sabe que profundas razões tinha essa alma
feminina, tão delicada e afetiva, por adotar tal atitude que
foi, sem dúvida, a mais infeliz. E assim não pôde mais prender
seu grande e único amor, mas, sim, perdê-lo irremediàvelmente.
Conta Adolfo Santos, como testemunha ocular, a tempesta
de final que fez soçobrar o barco do casal outrora tão feliz. Fala
va-se que Delmiro andava galanteando certa cantora de ópera de
uma das muitas companhias líricas que então passavam pelo
Recife. A "Parodi", por exemplo, fêz época. Ia haver grande
festa estrelada pela famosa cantora, de cujo sucesso Delmiro

39
se constituíra o mais ardoroso patrocinador. Para o completo
êxito da promoção empenhou-se vivamente, querendo abri
lhantá-la com a presença dos amigos e da própria espôsa.
A hora do jantar, no dia da festa, Iaiá surpreendeu a Del
miro com a notícia de que não iria comparecer. O mundo veio
abaixo, com a explosão do maior dos escândalos aos olhos estar
recidos de todos, pessoas da família, de sua estreita amizade e
estranhos. Delmiro quebrou pratos, copos de cristal e móveis,
pôs abaixo reposteiros e cortinas, tudo isso ante a atitude
silenciosa de D. Iaiá, o que, parece, mais o transtornava.
No auge da alucinação, teria dito que ela era inútil e
nunca fizera nada pela sua felicidade. Inútil, que nem filhos
lhe dera! Tinha aturado muito, mas era chegada a hora de
separar-se. Homem voluntarioso, de palavra férrea, que nunca
engolia o que dissesse, foi-lhe talvez penoso ter que afastar-se
do lar. A decisão porém estava tomada, depois daquele último
e desastroso escândalo.

Aí partiu para a Itália que, com a atração do Vesúvio,


era então o lugar onde os brasileiros ricos faziam parada nas
suas excursões pelo Velho Mundo. passar um ano por lá,
onde, dizem, arrumou amante. Meses se passavam -
e não
vinha carta para a espôsa. Esta, conhecendo o marido e vendo
o irremediável da situação, já se tinha decidido a abandonar
o lar, voltando para a casa da mãe, em Pesqueira, pois o velho
Melo Falcão já era morto.
Delmiro teve que regressar às pressas, por ter recebido
insistentes chamados, com a notícia de que iam mal os negó
cios de sua firma. Ao voltar, atarefado, não procurou a espôsa,
que levava na terra natal uma vida de reclusão. Adolfo Santos
lá a vira, anos depois, como verdadeira monja, pálida e de
olheiras pronunciadas, entregue a doloroso e prolongado cilício.
Isolar-se-ia daí por diante num dos quartos da casa, dêle só
saindo para as refeições e maiores necessidades. No aposento
havia um grande retrato de Delmiro, cujo nome deixou para
sempre de pronunciar. Só o mencionava com o pronome "êle".
A sua roupa consistia em uma saia azul-marinho e blusas claras,
sem jamais usar jóias nem objetos, dos muitos que possuía e
ostentava no Recife.
Nunca mais o casal se entenderia. Somente em 1910, já
pai de 3 filhos e separado da mãe dêles, D. Eulina, Delmiro

40
resolveu ir a Pesqueira tentar a reconciliação com sua legí
tima espôsa. D. Iaiá preferiu o desquite amigável, continuando
enclausurada, a ruminar suas tristezas, em silêncio, até ficar
meio "biruta"...A ação de desquite foi proposta em 15-7-1913,
sendo ratificada em cartório em 14-5-1914.
Nessa época Delmiro dizia que tinha sido um êrro sepa
rar-se dela, e que, se houvesse refletido bem, jamais o teria
cometido. É o que informa um íntimo seu, que vivia na Pedra,
o qual adianta que a separação foi motivada pela incompre
ensão de gênios, agravada pelo fato de, quando Delmiro fôra
prêso no Recife, D. Iaiá não o ter ido visitar, como inúmeras
pessoas, procedimento que o teria aborrecido muito e induzido
definitivamente a abandoná-la.
É preciso esclarecer ter êle lhe marcado uma mensalidade
que ia sendo aumentada, com o tempo, embora soubesse que
o dinheiro que lhe mandava, para Pesqueira, só servia para
os irmãos dela, uns malandros que a exploravam como o pró
prio Delmiro sabia. Com a mente perturbada, D. Iaiá morreria
em 1937, isto é, 20 anos depois de Delmiro ser assassinado. A
certidão de seu óbito, extraída do livro n° 10, fls. V. 169, do
escrivão Luís Nepomuceno de Siqueira, reza o seguinte:
"N.° 19 ANUNCIADA CÂNDIDA FALCÃO GOUVEIA. AOS
vinte e dois de janeiro de 1937, nesta cidade de Pes
queira, Estado de Pernambuco, em meu cartório
compareceu o senhor Antonio de Melo Falcão e disse
que hoje às treze horas, em casa de sua residência,
nesta cidade, à rua Duque de Caxias n.° 121, havia
falecido a sua irmã D. Anunciada Cândida Falcão

Gouveia, viúva que foi de Delmiro da Cruz Gouveia,


natural dêste Estado e residente nesta cidade, filha
legítima de Antonio Severiano de Melo Falcão e
Cândida Campelo Falcão, vítima de caquexia, con
forme atestado do médico assistente, Dr. Lydio Pa
rahyba, indo seu cadáver ser sepultado no Cemité
rio Público desta cidade. E para constar lavrou-se
êste têrmo..."

Assim faleceu a bela e boa Iaiá, assim fenecia, melancò


licamente, aquêle lírio do campo, delicado e simples! Pesqueira
-a cidade pernambucana, hoje geralmente conhecida por sua
excelente goiabada dera aquela goiaba cheirosa, de polpa
clara e apetecida, mas sem sementes... E, porque não tinha
semente germinadora, caiu e feneceu, inútil e abandonada...

41
Como Passou de Comprador a "Rei das Peles"

Delmiro volta, casado, ao Recife Vá

rias firmas e estrangeiros operam no co


mércio de couros e peles Keen Sutter
ly & Co., sua filial e seu gerente Con
centrou nela suas atividades A filial
não ia bem e ia fechar as portas Pri
meira viagem aos EUA, e volta como ge
rente O balanço e o relógio não in
ventariado Segunda viagem, e volta
como patrão Começa a trabalhar por
conta própria; a firma Delmiro Gouveia
& Cia. Seus sócios e auxiliares A

ligação com J. H. Rossbach, Brothers


Apoio financeiro, largo e ilimitado, por
tôda a vida Prosperidade rápida
Rei das peles e seu palácio em Apipucos.

DEE VOLTA AO RECIFE, casado, Delmiro


Gouveia ia atravessar ainda alguns anos obscuros e difíceis.
Isso em nada afetava o seu ânimo de lutador, que êle sempre
foi, tanto mais que, até então, não conhecia a abastança. Tinha
agora, para suavizar-lhe as agruras e canseiras, a companhia
da esposa boa e simples, com quem iria passar a etapa mais
feliz do consórcio conjugal.
E possível que se tenha fixado, exclusivamente, no negó
cio de courinhos e que haja continuado a viajar pelo interior.
Andar a cavalo, para êle, não era apenas um esporte. A sua
permanência em Pesqueira, a cujo meio se ligara pelos laços
do matrimônio e de amizades, concorreu para que visitasse
amiúde a localidade e conhecesse outras, a fim de ampliar suas
transações.

42
No Recife, várias pessoas e firmas operavam, ativamente,
no ramo da compra e exportação de couros e peles. Entre os
estrangeiros, podem ser citados os Rossbach, Herman Lundgren,
John Sanford, Albert Kant, John Krausé, José Clemente Levy,
Lionelo Iona, Guido Ferrário, etc. Delmiro constituíra-se
precioso elemento de ligação entre os compradores e os centros
produtores, tornando-se o mais vivo intermediário e o corretor
mais produtivo.

Os capitais estrangeiros vieram disputar o negócio in loco,


abrindo escritorio no Recife. O alemão Herman Lundgren
que se radicou no Brasil, sendo o pai dos conhecidos Lundgren,
industriais pernambucanos entrou também na compra e
-

exportação de peles, cuja procura era intensa. É o que conta


Raul de Góes, adiantando: "A fim de ajudá-lo nesse ramo
-

de comércio, escolheu um brasileiro de qualidades excepcio


nais, cujo nome ainda hoje é cercado de uma auréola de mis
tério e de espanto. Delmiro Gouveia percorria o interior nor
destino, por conta de Lundgren, comprando peles que eram
exportadas para o Velho Mundo e lá tornavam mais vivos o
interêsse e a curiosidade pelo Brasil" (*).
Em 1889, um grande curtume norte-americano Keen
Sutterly & Co., de Filadélfia mandava emissário ao Brasil
para estabelecer-se com filial no Recife. Era o Sr. John Roshore
Sanford, que sabia muito menos o português do que Delmiro
o inglês, aprendido a arranhar razoàvelmente com Mr. Henry
Fletcher e outros britânicos, com quem o brasileiro trabalhara
nos tempos da "machambomba".
Mas o certo que os dois se entenderam muito bem...
Pois é lembrado o Sr. Sanford ao lado de Delmiro, a passear
nos bonitos cavalos dêste, aos domingos, pelos arrabaldes da
Tôrre e Dois Irmãos. Consoante informe colhido num Alma
naque do Ceará, a novel firma "colocou a seu serviço Delmiro
Gouveia, inteligente, trabalhador, perspicaz, de modo que em
poucos meses de convivência com o americano estava falando
fluentemente o inglês, passando à categoria de primeiro em
pregado".

Em vez de emprêgo, com ordenado fixo, mas sujeito a


horário, acreditamos tenha êle logo optado por trabalhar à base
1 de produção, como corretor. Esse sistema, a que sempre deu
(*) "Herman Lundgren", v. pág. 28 (blografia, ed. "A Noite").

43
preferência (mesmo como patrão e principal dono da fábrica
de linhas), estava mais compatível com seu temperamento.
Tinha liberdade. Vendia suas partidas de peles a quem, even
tualmente, oferecesse melhor cotação.

De acordo com uma praxe ainda hoje vigorante no Nor


deste, é provável que fechasse contratos com negociantes da
praça, para entrega posterior, recebendo "adiantamento", isto é,
dinheiro antecipado; e que, em certas ocasiões, tenha se asso
ciado a um ou a outro, para exploração de determinada transa
ção. Mas, simplesmente, sociedade "de fato", passageira.
Desde que a filial de Keen Sutterly & Co. iniciou opera
ções, Delmiro concentrou nela suas atividades. O americano
Sanford tinha, porém, dificuldades em dirigi-la eficientemente,
a começar pelo desconhecimento da língua e dos hábitos de
nossa terra. Delmiro era quem manobrava e sustentava virtual
mente a empresa, que dependia, para sua sobrevivência, dos
produtos que êle lhe encaminhasse.
A firma não ia bem dessa forma. Mas Delmiro ganhava
bastante, tinha já folgada situação financeira, desfrutando exis
tência regalada, começando a projetar-se nas esferas comercial
e social. Ressentindo-se da defeituosa orientação, não sendo sa
tisfatórios os resultados auferidos, nem animadoras as perspec
tivas que se desenhavam no negócio, estava a emprêsa condena
da a fechar as portas de sua agência no Recife.
O Sr. Sanford tinha escrito à Matriz, em Filadélfia, mos
trando a inconveniência de continuar em Pernambuco e su
gerindo transferência da filial para Fortaleza. Tinha verificado,
em mais de dois anos ali, que melhores condições se ofereciam
no Ceará. Era de lá que saíam peles de cabra e ovelha em
maior número e melhor qualidade. O Recife ficava distante
das zonas de produção e estava minado por uma concorrência
desenfreada e estreita.
Os empregados, sob a ameaça de ficarem na rua, viram
em Delmiro o seu salvador, pois que êle fôra a alma dos negó
cios da filial, desde o comêço, e era a pessoa naturalmente
indicada para substituir o Sr. Sanford. Este, como seu àmigo,
não criaria dúvida em colaborar nisso. Os empregados expu
seram, então, êsse plano a ambos. A instâncias e expensas dêles,
Delmiro einbarcou para os Estados Unidos, lá entrando em
contato com os superiores do grande curtume. Expôs-lhes suas
44
idéias e pretensões, com inteligência, sagacidade e espírito co
mercial, as quais foram aceitas.
E, assim, por volta de 1892, Delmiro Gouveia foi feito
gerente da filial de Keen Sutterly & Co., em Pernambuco,
cargo que ia desempenhar com menores vantagens do que as
percebidas por seu antecessor, êste contratado por 3 anos, com
vencimentos altos. Antes, porém, de ocupar a gerência, exigiu
balanço completo dos haveres e pertences. Terminado o inven
tário, na presença inclusive dos empregados, Delmiro come
çou a correr a vista nas fôlhas de papel, dizendo, afinal:
Está errado!

Olhares atravessados, sorrisos de espanto e de dúvida fo


ram trocados. Delmiro, sério, balançava a cabeça, negativa
mente como que rejeitando aquela prestação de contas, porque
estava errada. O Sr. Sanford afirmava o contrário. Delmiro
persistia no seu ponto de vista, armando "suspense" sôbre a
curiosidade de todos. Aquêle retrucou que tudo tinha sido
arrolado, não faltava nada, nem havia nada de mais; e, por
fim, desafiou Delmiro a mostrar o êrro.

Este levantou o olhar e apontou para um relógio de pare


de, que, apesar de estar ali, a bater o tique-taque, deixara de
ser incluído, por mero esquecimento. Um "ah" geral fêz-se
cuvir, entre risos, que punham têrmo àquela expectativa um
tanto desagradável e até inquietante, sobretudo para o antigo
gerente, que tinha afirmado e reafirmado, solenemente, que ia
entregar tudo certo, no contado.
A moralidade dêsse caso, aparentemente sem importância,
está na atitude estudada de Delmiro, com a qual quis fazer ver
aos empregados haver notado tudo e examinado todas as coisas
e documentos de balanço, tendo, só êle, graças à sua argúcia,
descoberto a omissão. Se os empregados estavam acostumados
a um regime de tolerância e frouxidão, ficassem certos de que
o atual gerente era bastante vivo e, portanto, precisavam andar
na linha.

Há quem diga que Delmiro Gouveia não voltou da Améri


ca do Norte investido nas funções de gerente de Keen Sutterly
& Co., que estavam no firme propósito de encerrar as atividades
de sua filial no Recife. Concordaram apenas em que ele ficasse
como representante ou preposto, dando-lhe financiamento e

45
boas cotações, com exclusividade, para aquisição, no Estado,
dos couros e peles para seu curtume, mediante contrato.
Tal modalidade ter-lhe-ia sido proposta pelo próprio Del
miro, com a qual revelou tino e sagacidade. Daí a razão de
ter-se, eventualmente, associado a alguns dos muitos compra
dores, numa ou noutra transação, para a colocação, a melhor
preço, de determinadas partidas de peles. Assim, isto é, com
essa liberdade de ação, êle fêz grande movimento e ganhou
muito dinheiro.

Essa divergência de opinião não vem ao caso, nem tem


maior importância, visto como, fôsse na qualidade de gerente
ou de preposto comercial, com ou sem procuração, Delmiro
ficou apenas um ano, no máximo dois, agindo em nome da
quele curtume; e isso diga-se de passagem no mesmo -

local, nas mesmas instalações, com os mesmos empregados,


enfim, num escritório em que aparecera, desde o princípio,
como animador de suas transações.
E não tem importância, repetimos, porque a firma ame
ricana pouco tempo depois se dissolveu ou faliu. Delmiro fêz,
então, a segunda viagem aos EUA, com o fim de adquirir as
instalações de escritório e armazéns da extinta Keen Sutterly,
existentes no Recife. De lá voltou não mais como gerente mas
como patrão. Isso ocorreu por volta de 1894.
Sob a razão de Delmiro Gouveia & Cia., estabelecida na
rua do Apolo, nº 32, passou a trabalhar por conta própria.
Para sócio, convidou o capitalista Antônio Carlos Ferreira da
Silva, diretor-gerente do Banco de Pernambuco. Tratou depois
de eliminar os concorrentes, encampando os negócios da fir
ma de Ernest Kant e aproveitando os seus hábeis auxiliares,
Lionelo Iona, Guido Ferrário e Luiz Bahia. Com o judeu mal
tês José Clemente Levy, que o tinha lesado numa transação, é
que não quis conversa: começou a hostilizá-lo, chegou a agredi
-Ĵo, fazendo-lhe ferimentos, atacando-o pessoalmente por duas
vêzes no mesmo dia de sua fuga precipitada e mudança defini
tiva para o Ceará.
Data daí a sua ligação com outra grande emprêsa ameri
cana J. H. Rossbach, Brothers, de New York para a qual,-

mediante apoio financeiro, começou a trabalhar, comprando


e exportando peles (de cabra e ovelhas) e couros de boi. A
ligação ia ser por tôda a vida, acabando por não se traduzir
46
apenas em interêsses comerciais mas indo até às raias da ver
dadeira amizade e da confiança mútua. O apoio financeiro
era largo e ilimitado, proporcionando à firma de Delmiro
meios de abrir postos e entrepostos de compra por todo o
Nordeste, e "distribuir dinheiro aos criadores, sem pápeis em
cartório, sem comércio de juros", inovação com que espantava
os sócios, no dizer de Mauro Mota.

Foi, pois, sob os auspícios dos Irmãos Rossbach que os


negócios de Delmiro Gouveia & Cia. tiveram grande impulso e
se desenvolveram tão enormemente que até se inventava lenda
para justificar tal prosperidade. O homem subiu tanto que
chegou a rei... na bôca do povo. Um soberano precisa ter
palácio real, para que, nas festas realizadas nos luxuosos sa
lões da côrte, desfilem os nobres e o séquito dos áulicos... E
isso êle, o Rei das Peles, o teve no solar de Apipucos, onde
reunia, em memoráveis jantares, servidos por uma criadagem
escolhida, a fina-flor dos cultores das artes e das letras, para
deleite dos convivas, vultos de destaque social.

47
Vida Sentimental Marcada

Por uma Fatalidade Inexorável

Falsa a crença de ser Delmiro conquis


tador Seus ancestrais eram amorosos:
o avô materno deixou prole bastarda; o
paterno casou 3 ou 4 vêzes Pupila do
-

Gov. Sigismundo Gonçalves a menor Eu


lina, raptada por Delmiro Processado,
teve de deixar o Recife; fixando-se na
Pedra, mandou buscá-la Lá nasceram
seus 3 filhos Ciúmes e arrufos que se
-

extremaram com a chegada de D. Maria


Augusta Ela, de cabeça mudada, e a
dêle, cheia de planos Regularizou as
suntos desajustados: renovação do segu
ro de vida, perfilhação dos filhos e des
quite de D. Iaiá O chalé, na Pedra,
onde mantinha amante Não abusava
de môças, senhoras ou operárias Mas
a maledicência inventou casos Confis
são de D. Eulina, na velhice.

GENERALIZOU
ENERALIZOU-SE a crença de que Del
miro Gouveia era dado a conquistas amorosas. Para isso muito
concorreu o caso, assás conhecido, de seu desentendimento com
a legítima espôsa, dela separando-se e indo passar uma tempo
rada na Europa, enquanto a boa D. Iaiá se recolheu à casa dos
pais, em Pesqueira, renunciando aos encantos do mundo pelo
resto da vida.
Ao voltar, decorrido pouco tempo, não a procurou, e, com
quase 40 anos, o "Rei das Peles" raptaria a menor Carmélia
48
Eulina, o que provocou grande escândalo na vida social e
comercial do Recife, seguindo-se rumoroso processo, com sua
condenação e conseqüente fuga para as Alagoas. Vivendo lá,
na Pedra, maritalmente, com essa jovem, que se tornou mãe
de seus 3 filhos, deu-se, ao cabo de uns 6 anos, nova separação
de corpos. Natural é que se pense, pois, ter sido Delmiro um
insatisfeito, um devasso mesmo.

Bonito, forte, saudável, opulento, possuindo tudo que o


belo-sexo admira, essa sua fascinante estampa de homem não
podia, de fato, sugerir outro pensamento. Com efeito, desde
a compleição apolínea até a indumentária bem talhada; desde
a masculinidade gritante até a posição de destaque no grand
monde; desde a cabeça, coberta por basta e bem cuidada cabe
leira, até os pés, sempre metidos em sapatos impecávelmente
brancos, tudo nesse homem belo, elegante e raffiné, com sua
fisionomia de irradiante simpatia, sua palavra envolvente, seu
riso cascalhante, sua dentadura perfeita, emoldurada por lá
vios sensuais, tudo nêle favorecia a irresistível atração dos
sexos...

Nos homens do feitio de Delmiro há uma tendência à


volubilidade e poligamia. E, se são verdadeiras as lei de Men
del, uma fatalidade biológica o predispunha a novos amôres,
a borboletear de coração em coração, porque forte dose de
sangue ardente, amoroso e aventureiro corria em sua veias.
Um parente dêle nos disse atribuir ao revolucionário José Cruz
Gouveia, seu bisavô materno, português de origem, prêso por
se rebelar contra D. Pedro I, isso que êle tinha de atrevimento,
de rebeldia, de não suportar abusos nem levar desaforos para
casa, na luta pelos seus ideais de honra e justiça, o que o con
duzia, por vêzes, a extremos quixotescos.
O seu avô, Comendador Ismael, deixara uma prole bas
tarda, criada próximo da casa-grande de seu engenho e cuja
filha, Leonila Flora, mãe de Delmiro, metera-se na aventura
romanesca com o cavalariano cearense. Mas preferimos acre
ditar que a herança de fidalguia, de gôsto pela música, pelo
belo e pelas boas coisas, lhe fôra legada pela genitora, com
quem, aliás, aprendeu os hábitos refinados na convivência es
treita até a adolescência.

É de crer que a tara donjuanesca, êle a trazia, na massa


do sangue, dos Farias de Ipu. O seu avô paterno, Joaquim Por

49
fírio de Farias, casara 3 ou 4 vêzes, a última delas com uma
mulher humilde, mãe, já, de alguns filhos seus; a primeira,
com Maria Francisca de Paula, mãe de Delmiro Porfírio. Era
uma môça dos lados da Uruburetama ou Itapipoca, por onde
Joaquim andara a negócio ou passeio, a qual, depois de sedu
zida e abandonada, empregou o ardil que passamos a narrar.
Vestindo-se de homem, ela montou num cavalo e, fazendo
longa travessia, dissimulando o sexo por onde passava, dormin
do nos matos a fim de não ser reconhecida, chegou ao sítio
São Paulo na Serra-Grande e queixou-se à mãe de Joaquim.
A velha, autoritária e má, porém justiceira, ante as razões da
jovem ofendida pelo filho, obrigou-o a reparar o mal com o
matrimônio.

E o pai de Delmiro não foi outro senão o bravo e aventu


reiro Delmiro Porfírio de Farias, chamado na intimidade Belo,
que já casado e pai de 5 crianças, com 35 anos, raptara em Per
nambuco a menor Leonila Flora. Indo em seguida para a
Guerra do Paraguai, lá morreu e foi enterrado com honras de
major, feito herói. Tal pai, tal filho... Diante de tudo isso,
há que perdoar as descaídas cometidas por Delmiro Gouveia
no terreno aventureiro e sentimental, pois seu destino estava
marcado por uma fatalidade inexorável vinda no sangue e
reforçada pelos exemplos de família.

Carmélia Eulina Amaral Gusmão conforme opinião de


-

Tadeu Rocha era uma “jovem de extrema beleza, a quem


não assistiam bons costumes maternos". A mãe chamava-se Ana
de Gusmão, vulgo Doninha, mulher que nasceu com essa triste
sina de ser "esposa das multidões" e de se comprazer com os
homens nas solicitações de sexo. Não trepidou em vender a
filha menina que mal abria os olhos para o mundo
-
- ao

homem que, no seu errôneo entender, lhe pudesse fazer a fe


licidade.
Esse homem era Delmiro, quarentão opulento, rico e re
questado. Mulher interesseira, deve ter enxergado nêle um gran
de partido e há-de ter procurado tirar vantagens para si própria
nessa transação. O diabo é que, por uma dessas fatalidades para
a qual não encontramos explicação, a hetaira, tão bonita quanto
a filha, era amante de Sigismundo Gonçalves, governador
'do Estado e destacado membro da política de Rosa e Silva e
com a qual o raptor, casado, andava às turras.
50
Uns dizem que Carmélia Eulina era filha ilegítima; ou
tros, simples enteada e nós preferimos chamá-la, como Adolfo
Santos, de pupila de Sigismundo. Este se sentia na obrigação
de velar pelo destino da menina, e, assim, quando ecoou a
notícia de sua fuga com Delmiro, logo se viu a política inter
vindo, tomando prontas providências contra êle nas esferas
da polícia e da justiça. De um "Almanaque de Pernambuco”,
que reproduz as principais notícias do ano de 1902, extraímos
o registro do fato, assim feito:

"2/OUTUBRO Foi cercada a Usina Beltrão, residên


cia do Sr. Delmiro Gouveia, comerciante na praça
do Recife. A polícia procurava a menor Carmélia,
filha de Ana Gusmão, conhecida por Doninha, a
qual, segundo denúncia, teria sido raptada por aquê
le comerciante. Dada a busca minuciosa, não foi en
contrada a referida menor".

Dias após, encontrada a môça noutro local e entregue a


um tutor, ficando positivada a culpabilidade de Delmiro, foi
contra êle expedida ordem de prisão. E, no dia 24 de novem
bro, o juiz de direito a quem fôra distribuído o processo con
firmou a pronúncia do réu. O fato teve conseqüências vexató
rias e ruinosas para Delmiro, que, procurado pela polícia e
sob a ameaça de prisão, se viu obrigado a deixar Pernambuco,
homisiando-se em Alagoas.
Não demorou a encontrar sítio seguro para se instalar no
sertão, fixando-se na Pedra, uma parada na ferrovia de Piranhas
a Jatobá, ao lado do São Francisco, lugar que não tinha mais
que cinco casas. Isolado nessas brenhas, começou a sentir falta
de uma costela e saudades daquela flor de beleza em que mal
pousaram suas narinas de fauno... Aí contratou um "cabra"
disposto e de confiança, de nome Vicente Moura, a quem in
cumbiu de subtraí-la às garras das sentinelas que a mantinham
em custódia.

E foi assim que Eulina veio juntar-se a Delmiro, na longín


qua Pedra, onde iriam nascer os seus filhos: Noêmia (1904),
Noé (1905) e Maria (1907). Quando, com apenas 20 primave
ras, abriu os olhos e se deu conta de que já era mãe de três
filhos, começou a imaginar quanto era insípida a sua existên
cia. Delmiro desenvolvia extraordinária atividade, ampliando
51
os negócios, viajando muito e pouco demorando em casa. Vez
por outra, Eulina o acompanhava até o Recife, onde se sen
tia outra pessoa, admirada, e não aquela enterrada-viva da
estação da Pedra.
Queixava-se da solidão, tinha ciúmes de Delmiro, que deu
para passar os fins-de-semana fora de casa, viajando para as
localidades vizinhas, geralmente para Agua Branca. Os ciúmes
geraram arrufos que amiudaram depois que D. Maria Augusta
vem morar na Pedra, a convite do irmão, isso pelos meados
de 1908. A briga passa a ser maior e mais freqüente, agora
entre as duas. D. Maria defendia o mano querido, zelava por
tudo, até pelas crianças que viviam um tanto abandonadas,
tomando a seu cargo tôdas as obrigações da dona da casa, que
começa a odiá-la terrivelmente e chamá-la pelo apelido de
"hidra".

Com isso, o diabo entrou a atiçar nela o desejo de demorar


mais no Recife. Duma feita, voltando de lá, quando chegou
a Quebrangulo, arrependeu-se, tomando a brusca resolução de
não prosseguir viagem e, sim, voltar à sua querida cidade. E
assim procedeu. Mandou uma carta para Delmiro, comunican
do que não voltaria mais à Pedra, que não suportaria mais
aquêle inferno.
Delmiro encarou a realidade e logo percebeu que Eulina
não se conformaria em permanecer no sertão, estava de cabeça
mudada - e a dêle cheia de planos. Tinha enriquecido de
nôvo, decidindo-se a ser industrial; precisava viajar sempre,
indo talvez até a Europa. Mandou Eulina ficar com a mãe, no
Recife, e entregou a direção de sua casa à irmã, separada do
marido, bem como a criação e educação dos 3 meninos.
Pretendia ir à Inglaterra, a fim de fechar negócio com
a fábrica a ser instalada às margens de Paulo Afonso. Dera
antes um balanço nos haveres e na vida particular, regula
rizando as coisas desajustadas, renovando o seguro de vida na
Sul-América, em 1909, com o limite elevado para 200 contos,
em favor dos filhos. Viajaria depois a Pesqueira, a fim de
sondar a legítima espôsa no tocante à reconciliação. Quando
o fêz, D. Iaiá preferiu o desquite, consentindo na perfilhação
dos menores, a que se procedeu em junho de 1910 no cartório
de Agua Branca. Marcou para ela uma mesada enquanto fôsse
52
viva, o que seria assegurado no testamento, assim como a ins
tituída em favor de D. Maria Augusta.
Carmélia Eulina, que recebia dêle igual quantia mensal,
passara alguns anos no Recife, onde, por volta de 1912, apa
nhou um filho de outrem (menino êste chamado Francisco
e falecido em 1937). Veio depois para o Rio, onde sua men
salidade, de 500 mil réis, continuou a ser paga, às vêzes ante
cipadamente, por intermédio do sr. Ademar Mendonça, re
presentante comercial da Cia. Agro-Fabril, o qual nos informou
que D. Eulina era ainda uma dama bonita naquela época.
Quando Delmiro vinha ao Rio, hospedando-se no Hotel Cen
tral, com ela se avistava, como amigo, dando-lhe mais dinheiro,
o que era motivo de desconfiança e zangas para D. Maria
Augusta, que a detestava ferozmente.
Quando se meteu a industrial, Delmiro beirava os 50 anos,
sendo porém dotado de exuberante vitalidade. E, tendo que
demorar muito tempo na Pedra, superintendendo os trabalhos
da fábrica, começou a sentir pungente falta de uma compa
nheira. Mas não podia nem devia dar maus exemplos na
comunidade que, como chefe, estava construindo dentro de
bons princípios morais. Veio-lhe então a idéia de ter o chalé,
fora do perímetro industrial, cercado de arame, para resolver
o seu problema.
Do Recife trouxe uma mulher; depois outras, inclusive a
de nome Jovelina, a mais falada de tôdas e com quem passou
mais tempo. O povo não reparava, nem falava mais, acostu
mado com o que se passava dentro do chalé, que era como
que uma área morta, um departamento estanque naquela la
boriosa e recatada colmeia. Segundo versão mais difundida,
Jovem, como era chamada a dita mulher, estava mesmo ao lado
de Delmiro, quando foi baleado e morto. Quiseram-lhe tomar
até um colar de pérolas, com que a presenteara. Dizem que
ela morreu tuberculosa, em Garanhuns, dois anos após.
Essa a vida amorosa ou sentimental de Delmiro, que muitos
de seus contemporâneos afirmam não ter sido de galanteios,
nem de conquistas e muito menos de devassidão. Apresentam
o forte argumento de que não abusava de môças e senhoras
de família, nem de suas operárias, que se sentiriam até honra
das com suas atenções. Nesse particular, o depoimento de Adol
fo Santos é claro e insofismável, ao qual se junta o daquele

53
seu velho conhecido desde os áureos tempos do Recife, que,
para refutar o conceito de que Delmiro fôsse mulherengo, cos
tuma designá-lo como "conquistador de homens". Na Pedra,
não podendo ficar anos e anos, solitário, impondo à sua viri
lidade um ascetismo penoso e estúpido, teve que mandar fazer
o chalé, estando, assim, salvas as aparências...
Há contudo quem insinue, em desabono de sua conduta
moral, um ou outro caso, inventado pela maledicência e quase
sempre para justificar o seu assassinato. Dentre êles, o caso
de uma tal D. Francelina Luna, que tinha 3 filhas môças, uma
das quais, diziam, fôra ofendida por Delmiro, que, em paga,
dera uma loja de fazendas. Outro, muito citado, é o de Firmino
Rodrigues, cuja filha teria pedido condução no carro que ia
até Garanhuns levar Delmiro, que, em caminho, procurara
violentá-la, segundo queixas da môça ao pai. Êste tinha resi
dência ao lado do chalé, tornando-se suspeito no crime, por
que, na noite fatídica e até poucos momentos antes, estivera
conversando com Delmiro. Era tido como amigo e protegido do
coronel, que lhe dera permissão para abrir uma padaria na
Pedra uma mina! - circunstância que afasta, de certo modo,
a suspeita levantada.
Tudo que se diz contra sua reputação não resiste a um
exame mais detido. A única coisa que a macula, realmente,
foi o seu romance com Carmélia Eulina, e pelo qual pagou
caro. Fica-se a pensar como e por que, numa cidade grande e
de tantas mulheres, onde reinava como um nababo, êsse rei
querido, belo e popular, foi escolher justamente a pupila de
Sigismundo Gonçalves! Fatalidade? Paixão? Capricho de amor?
Despique contra aquêles que o humilharam e incendiaram o
Dérbi? Não se sabe. Nunca se saberá...
Há uma circunstância em que devemos meditar. Dizem
que D. Eulina, já no fim da vida, muitos anos após a morte
de Delmiro, a êle se referia saudosa e com lágrimas nos olhos.
Pois, apesar de tudo, êles se amaram muito e ela jamais o
esqueceu. Todavia, aos familiares, como que desculpando-se
dos seus erros e ingratidões, do passo errado de sua fuga e,
sobretudo, de não o haver amparado no instante culminante
de sua carreira, Eulina repetia sempre: "Eu fui vendida a

Delmiro", ou: "Delmiro me comprou à minha mãe!"

54
O Mercado do Dérbi e Seu Incêndio Criminoso

Recife no tempo da varíola, febre ama


rela e mais a peste da política Delmi

ro sonha transformá-lo numa cidade mo


derna A campina do Dérbi, área im
prestável, inundada nas cheias do Capi
baribe O mercado e suas instalações,
funcionando à noite como parque de di
versões O ódio dos "tubarões" e açam
barcadores Fiscalização e diligências
determinadas pelo Prefeito Delmiro
-

reage, promovendo passeata de carroças


Vem ao Rio pedir providências a Rosa
e Silva, chefe político de Pernambuco
Este nega-se a recebê-lo Insiste Del

miro, é repudiado e agride aquêle na


Rua do Ouvidor Dá-se em seguida o
incêndio do Dérbi, sendo presos seus Di
retores, inclusive Delmiro Em sinal de
protesto, o comércio fechou e os jornais
não circularam Depoimento insuspeito
de contemporâneos.

ESTA IMPORTANTE iniciativa de Delmi


ro Gouveia não teve duração nem alcançou o êxito desejado,
por motivos alheios à sua vontade. Já era opulento comerciante,
conhecido como "Rei das Peles", e acalentava o sonho de
modernizar a vida do seu querido Recife. O nome de Veneza
Americana não passava, então, de uma fantasia de poeta, lugar
onde a varíola e a febre amarela completavam a obra nefasta
dos políticos. Esta a frase de Plínio Cavalcanti, que acrescenta:
- "Ele concebeu a idéia grandiosa de transformar o Recife numa

55
cidade moderna, com higiene, com eletricidade e com o con
fôrto dos grandes centros civilizados".
E Delmiro Gouveia adquiriu os terrenos do antigo Derby
Club como negócio de ferro velho, pois seus proprietários qui
seram ver-se livres dêles, na expressão de Mauro Mota. A cam
pina do Derby não passava de uma área abandonada, ainda
marcada pelas patas dos cavalos lameiros sob a cantiga noturna
dos sapos, segundo a imagem daquele poeta, com seus mangues
inundados nas cheias do Capibaribe, espalhados pelas ilhotas
de lama e areia que formavam aquela campina.
Comecemos a explicar o que era o famoso Mercado do
Dérbi, a que se prentendeu dar o nome de Mercado da Estância,
ou Coelho Cintra. Vamos encontrar no "Dicionário Corográ
fico, Histórico e Estatístico de Pernambuco", de Sebastião de
Vasconcelos Galvão, edição de 1908 da Imprensa Nacional,
págs. 292/93, uma descrição completa, que resumiremos a se
guir. Em 1898, sendo prefeito do município o Dr. José Cuper
tino Coelho Cintra, firmou êste com o cidadão Delmiro da
Cruz Gouveia um contrato para a realização de tão útil me
lhoramento, mediante o privilégio, com isenção de impostos
municipais, de o cessionário explorá-lo durante 25 anos, findos
os quais passaria ao município. Foi inaugurada a primeira
seção do mercado em 13 de maio de 1899, sendo todo êle en
tregue ao público em 7 de setembro do mesmo ano. Naquela
época não existia no país melhor nem igual melhoramento
do gênero.
A sua área media 129 m de comprimento, por 28 de lar
gura, com 18 portões e 112 janelas e venezianas. No centro,
erguia-se um pavilhão superior, do qual se observava todo o
movimento. O mercado, dividido em muitas seções, contava
com 264 compartimentos, servidos de balcão de mármore, dis
postos em forma de três ruas, paralelas. As cobe as laterais
dos dois corpos principais do edifício eram suspensas por quatro
linhas e várias colunas de ferro, e a coberta central, elevada
e suspensa sôbre tesouras, era servida por ventiladores de re
novação de ar, dando luz à parte interna. Chafarizes e torneiras
distribuíam água por todo o prédio, com perfeito sistema de
esgôto. Em frente à fachada principal, havia uma área ajar
dinada. Todo o pátio, a leste do estabelecimento, era apro
veitado por um velódromo, com a extensão de quatrocentos

56
metros. Existiam dependências, ao lado, destinadas a uma lu
xuosa hospedaria e a vários jogos, bares, divertimentos.
A iluminação elétrica, então ignorada no Recife, espa
lhava-se profusamente pelo mercado e grande parte da campina.
Uma linha de bonde vinda do centro, com a indicação do
estabelecimento, fazia lá seu ponto de parada. Ali se expunham
e vendiam, até altas horas da noite, mercadorias de todo o gê
nero, nacionais e estrangeiras, muitas desconhecidas do co
mércio comum. Era um atraente ponto, para onde afluía a
população de tôdas as classes, principalmente à noîte, para
fazer compras ou tomar parte nas diversões: Carrosséis, re
-

tretas, barracas de prenda, teatro, regatas, além do velódromo


para ciclismo, que estava em moda.
Durante o dia, no mercado, funcionava a sua grande feira
de abastecimento à população, notadamente de gêneros alimen
tícios e de primeira necessidade. Organizava-se uma tabela de
preços inferiores aos dos demais mercados, terminando, assim,
o jogo nocivo dos intermediários e açambarcadores. Essa assis
tência ao povo no dizer de Mauro Mota -

"inspiraria o
ódio a grosso e a granel de alguns donos de armazéns e êles
ıçam na praça a bandeira negra de guerra e morte". A situação
se extrema com as dificuldades criadas ao tráfego dos gêneros,
tendo os agentes das repartições fiscais recebido ordem para
embargá-lo, alegando o cumprimento de leis.
Escreve a tal respeito o jornalista Tadeu Rocha: "A pre
texto de fiscalização, várias diligências policiais foram feitas
no estabelecimento do Dérbi e até mercadorias da emprêsa
foram mandadas apreender pelo prefeito Esmeraldino Bandei
ra, quando aguardavam embarque na estação ferroviária". A
coisa se azeda com a intransigência e implicância dessa autorida
de, ligada à política da oligarquia de Rosa e Silva, em Pernam
buco. Delmiro sente-se incompreendido, invejado por muitos
e hostilizado pela política vesga dominante no Estado. Certa
vez, desobedecendo a uma proibição, fêz descarregar um trem
de víveres destinados ao mercado, munido de uma ordem de
habeas corpus para legitimar o seu ato. Diz José Bonifácio
de Sousa que, "à frente de verdadeira frota de carroças, Delmiro
percorreu as principais ruas da cidade, aos aplausos entusiás
ticos da população, conduzindo os cereais da estação ferroviá

57
ria para o mercado do Dérbi e sob as iras impotentes dos agen.
tes municipais".
Por tudo isso, e a fim de remover os óbices criados com
êsses incidentes, resolveu vir ao Rio de Janeiro entender-se
com o Conselheiro Rosa e Silva, então vice-presidente da Re
pública (período 1898/1902), e que ocupou interinamente o
lugar do Presidente Campos Sales, em outubro/novembro de
1899. Como êle recusou recebê-lo, Delmiro forçou um encon
tro, o que se deu na rua do Ouvidor em ocasião de grande
movimento. Instado para que o ouvisse, sôbre o impasse criado
com aquela autoridade do Recife, Rosa e Silva ter-se-ia negado
àsperamente e em têrmos ofensivos a ter com êle qualquer
entendimento. E, então, ali mesmo, naquele sábado à tarde,
dia 17 de junho de 1899, Delmiro agrediu-o a bengala defronte
da "Chapelaria Inglêsa" do comerciante Artur Watson, na
qual o Conselheiro penetrou para abrigar-se, perseguido e aos
muxicões.

Como bem se pode imaginar, o insólito e grave desacato


provocaria revide por parte daquele preposto do chefão político
do Norte. E assim foi que a um contingente de polícias deram
a triste e nefanda incumbência de, na noite de 10 para 2 de
janeiro de 1900, atear fogo no Mercado do Dérbi. Tanto Del
miro Gouveia como o diretor Napoleão Duarte foram presos
e ficaram incomunicáveis. O comércio do Recife fechou suas
portas, sendo nomeada uma comissão para entender-se com o
Governador Sigismundo Gonçalves, levando o protesto contra
a prisão arbitrária. Por motivo da insegurança reinante na
cidade, naquele mesmo dia não circularam os jornais "Gazeta
da Tarde", "Jornal Pequeno” e, na manhã seguinte, não apare
ceram nem "À Província” nem “A Concentração”. Uma ordem
de habeas corpus, expedida no dia 3, restituiu à liberdade o
proprietário e o diretor do mercado.
Testemunho insuspeito sobre o revoltante e criminoso in
cêndio do Dérbi está inserto nas Memorias de um Cavalcanti,
livro incorporado às obras de Gilberto Freyre. Foi assim que
aquêle seu ilustre parente registrou o fato: Amanheceu o
día 2 de janeiro de 1900, no Recife, sob a mais dolorosa impres
são, causada pelo incêndio do Dérbi, tendo sido lançado o fogo
ainda a horas mortas da noite de primeiro de janeiro. Ao
incêndio seguiu-se a prisão do proprietário daquele estabele

58
cimento, o coronel Delmiro Gouveia. Esta prisão foi executada
com todo o aparato, por um verdadeiro exército (...) Tran
caram o prêso em um quartel, deixando-o incomunicável. Se
gundo a voz pública, iam matá-lo envenenado.
A notícia da prisão do Coronel Delmiro espalhou-se pelo
Recife, criando indignação entre muita gente. O comércio fe
chou em sinal de protesto.
O que era o Mercado do Dérbi? Um monumento. Uma
obra tal que certo alemão, indo visitá-lo, disse que o Brasil
não estava em condições de possuir uma obra daquele porte.
Qual o empenho do Coronel Delmiro em empreender tão im
portante obra? Abrilhantar a cidade, proporcionar cômodos a
mais de 100 famílias, melhorar a vida do pobre, vendendo
gêneros de primeira necessidade mais barato que o mercado
de São José. Além disso, era um centro de divertimento dos
que queriam distrair-se. Qual o empenho do Governador em
acabar com o Dérbi? Agradar a Rosa e Silva, inimigo de
Delmiro.

Dizem que uma vez Delmiro mandara comprar 300 sacos


de farinha para vender mais barato do que se estava vendendo
no Mercado São José. O prefeito do Recife, Esmeraldino Ban
deira, foi ao Dérbi com praças da polícia, tirou a farinha,
fazendo-a conduzir para a Estação Central. Delmiro, que na
ocasião não se achava presente, ao chegar depois e informado
do sucedido, reuniu algumas pessoas, dirigiu-se àquela estação
e fêz voltar a farinha. Daí, a grande briga entre êles.
Indo Delmiro ao Rio de Janeiro, dizem que Esmeraldino
enviou daqui um tal João Molambo para agredir aquêle Coro
nel. Este, sabendo ser Esmeraldino protegido de Rosa e Silva,
procurou o Conselheiro para com êle ter uma explicação. O
Conselheiro não quis dar atenção a Delmiro, que, indignado,
encontrando-se depois com o Conselheiro, procurou agredi-lo
a bengaladas. Rosa, porém, pôde penetrar a tempo numa loja,
livrando-se do agressor. E assim conclui textualmente o Velho
Cavalcanti: "O que queria dizer tanto aparato e tanta fôrça,
a semana passada, para prender um homem desprevenido e
que estava só? É que receavam a represália do povo".
A este depoimento insuspeito, de um contemporâneo, po
demos juntar as palavras do Desembargador Meroveu Men
donça, então um menino, que lembra o Recife daquele tempo

59
"uma cidade provinciana e estacionária, sem vida noturna e
distrações, iluminada pela luz mortiça dos combustores de gás
carbônico e candeeiros de querosene", e que, depois do incên
dio do Dérbi, voltou ao marasmo, "a ser uma cidade triste,
de mercados sujos e desinteressantes, e a ignorar a iluminação
elétrica por mais de uma dezena de anos".

60
Vítima da Situação Política
e Econômico-Financeira

Política deflacionista de Joaquim Murti


nho Dificuldades e falências por toda
a parte Pruridos de revolta no Govêr
no de Prudente de Moraes Campos
Sales fortaleceu a "política de governa
dores" Oposição em Pernambuco, che
fiada por Rosa e Silva Exaustão da in
dústria açucareira entregue a uma casta
decadente e sem iniciativas O açúcar
era de péssima qualidade, vendido a pre
ço vário e vil Delmiro sonhou ser lider,
para salvar essa gente e sua terra A

Usina Beltrão; sua finalidade, seus fun


dadores e continuadores A
-
refinaria
não funcionou full power -
A desgraça
vem sempre acompanhada A guerra
do Transvaal; o cancelamento do con
trato de câmbio Dificuldades e falên
cias Reorganização de outra firma.

PARA COMPREENDER os planos, inicia


tivas, realizações e até insucessos de Delmiro Gouveia, na últi
ma etapa vivida em Pernambuco, é preciso situá-lo dentro do
meio e da época, assim como interpretar os seus atos e reações,
em face dos fenômenos políticos e econômico-financeiros da
quele Estado e do Brasil em geral, que o colheram como vítima
das que mais sofreram.
Num livro do escritor pernambucano José Maria Belo,
conhecedor profundo de sua terra e de sua gente, vamos en
contrar explicação para certos atos do pioneiro, até para seus

61
aparentes fracassos e deslizes. Em “História da República", êle
nos mostra como a economia brasileira no govêrno de Prudente
de Moraes, terminado em 1898, ficou debilitada, mal se ampa
rando no café de São Paulo e na borracha da Amazônia.

Constantes crises abalavam os alicerces do regime republi


cano, ainda vacilante e desacreditado no seio de ponderáveis
correntes da opinião pública, havendo inquietação e pruridos
de revolta por tôda a parte. Basta dizer que, em 1897, um aten
tado no Rio de Janeiro, visando à pessoa daquele Presidente,
vitimou o Ministro Bittencourt, que teve morte estúpida.
As medidas deflacionistas, impostas na pasta da Fazenda
por Joaquim Murtinho, atingiam em cheio a deficiente orga
nização do comércio e crédito bancário. Sucediam-se as falên
cias, sendo notórias as dificuldades do Banco da República
(nascido da fusão do Banco do Brasil com o da República),
culminando com a falência dêsse estabelecimento semi-oficial,

que suspendeu os pagamentos, provocando enorme pânico (v.


pág. 227, da obra citada).
Aos trancos e barrancos, chegávamos à era de 1900, e o
govêrno de Campos Sales não mudava a ordem das coisas; até
pelo contrário, a fim de poder sustentar-se, fortificara as oli
garquias estaduais, combatidas tenazmente por desvirtuarem a
própria essência dos princípios democráticos, sendo isto, pois,
"a mais grave conseqüência” da chamada política dos governa
dores que se procurava consolidar.
"Convertia-se a Federação em vasto agrupamento de feu
dos, grandes e pequenos, muito mais atentos aos interêsses
regionais do que aos de ordem geral da Nação" (pág. 225).
Em Pernambuco era onde mais se sentia o reflexo dessa
situação. “A decadência ecônomica do açúcar, reduzido aos mo
destos mercados internos, arruinara os senhores de engenho do
Nordeste, tão fracos, aliás, de iniciativas" (pág. 221), tornando
se ainda mais grave o statu quo, ali, porque o descontentamen
to gerara um "movimento político de oposição, chefiado pelo
vice-presidente da República, Rosa e Silva"- (pág 228, da obra
citada).
O açúcar produzido nos engenhos ainda por processos
empíricos e rotineiros era entregue ao consumo em péssima
qualidade e colocado a preço vário, às vêzes vil, sujeito às
imediatas leis da procura e da oferta reguladas por especula

62
dores. Pelas notas deixadas no livro "Memórias do Velho Ca
valcanti" (coleção das obras completas de Gilberto Freyre),
podemos certificar-nos disso, ante as cotações da época, a saber:

AÇÚCAR Preço por arrôba de 15 kg, em 1900

Branco 5$500 a 7$600


Somenos 4$600 a 5$500
Mascavado 3$600 a 3$800
Bruto Sêco 3$000 a 3$200
Id. melado 2$700 a 3$000
Restame 2$300 a 2$500

O espírito de patriota e negociante de Delmiro Gouveia


inquietava-se com o problema. Via, como todo mundo, na in
dústria açucareira, o sustentáculo da vida pernambucana,
a viga mestra em que se apoiava a economia do Nordeste; e,
no entanto, sujeita a altos e baixos, impelida à bancarrota na
quela conjuntura. A matéria-prima produtora dessa riqueza
estava nas mãos de uma casta decadente de parasitas, fracos
de vontade e de iniciativas, carecendo de um líder e timoneiro
de mão-de-ferro, para orientá-los. Só um renovador progressista
e capaz poderia uni-los e tirá-los do caos. Delmiro sonhava
com isso, desejava ser o salvador dessa gente desorientada e
da economia debilitada de sua terra adotiva.
Estava ali a Usina Beltrão, parada e sem utilidade. A sua
excelente maquinaria fôra trazida da Europa pelos irmãos
Pedro da Cunha Beltrão, advogado, e Antônio Carlos de Arru
da Beltrão, engenheiro, morando o primeiro na Paraíba, sem
poder cuidar dos interêsses dum tão grande empreendimento
que, entretanto, já nasceu falido à falta de recursos, sobretudo
administração e dinamização.
Não era pròpriamente “usina” e, sim, refinaria destinada
a trabalhar com açúcar bruto dos engenhos e banguês, segundo
c processo de dupla cristalização, a vácuo, isto é, preparava
o açúcar refinado, à moda da Europa. Delmiro acabava de
vir de lá, com a cabeça arejada e cheia de planos. A Usina pa
rara e entrara em leilão. Empreendedor, amante do progresso
e da técnica, desejando melhorar a qualidade do açúcar, prin
cipal indústria e esteio econômico da região, êle se interessou
em entrar no negócio. Convidou para sócios os srs. José Maria
Carneiro da Cunha e Luís Francisco Siqueira Netto. Arrema

63
tando em hasta pública a chamada Usina Beltrão, tornou-se
êle, assim, dirigente e proprietário da "maior refinação de
açúcar da América do Sul", segundo registro consignado na
"Enciclopédia e Dicionário Internacional", da Jackson.
Mas o povo nordestino, naquela época de tremenda crise,
carente de capacidade aquisitiva, só podia consumir mesmo
açúcar bruto, tipo mascavo, mais barato e com que estava
acostumado. O refinado, cristalizado em tablette, não era para
sua bôlsa nem para seu paladar... Essa, a primeira dificuldade
com que logo se defrontou o grupo que arrematou a Usina;
outra, porém, iria surgir e tornou-se impossível removê-la.
É que o desentendimento surgido com o Prefeito Esme
raldino Bandeira e que se extremou a ponto de ser crimino
samente ateado fogo ao mercado do Dérbi, no alvorecer de
1900, colocou Delmiro incompatível com as correntes políticas
e financeiras do Estado, vale dizer: com a classe de usineiros
e senhores de engenho que, por bem ou por mal, viviam acor
rentados à política dominante no Estado, chefiada por Rosa
e Silva. Ora, essa gente temia represálias no caso de fornecer
e assim esta,
a matéria-prima à Usina Beltrão para refinar
mais uma vez, estava condenada ao insucesso.
A emprêsa, fundada com “o propósito de encontrar solu
ção definitiva para o caso da refinação do açúcar pernam
bucano", e "com capacidade para beneficiar tôda a produção
açucareira do Estado" - segundo expressões de José Bonifácio
de Sousa continuava apresentando deficit, "não só à vista
do elevado custo das instalações como também porque não
apareceu a produção que se esperava para o seu funcionamento
full power".
O competente engenheiro (Antônio Carneiro da Cunha)
permaneceu como técnico, com ordenado régio. As despesas
de manutenção eram bastante elevadas, para que ela trabalhas
se com pequena quantidade de açúcar bruto que um ou outro
dono de engenho mais ousado quisesse encaminhar-lhe, com
risco de cair no desagrado e nas perseguições do situacionismo
pernambucano que tinha decretado guerra fria e implacável
às organizações sob o comando de Delmiro.
Ficava situada entre Recife e Olinda, ao lado do canal
de Tacaruna que vai até o Dérbi. Há quem diga que houve
proibição de funcionamento da Usina, ou por não poder ser

64
usada a água dêsse canal ou para que êste não recebesse a
água suja, pútrida e fétida, que as usinas açucareiras jogam
fora. Par isso ou por sabotagem, o certo é que ela não pôde
funcionar, até a época em que Delmiro teve que dissolver
sua firma Delmiro Gouveia & Cia., organizando outra, sob a
razão de Silva Cordeiro & Cia., e partindo em seguida para
o Exterior.

Há um ditado no Norte, segundo o qual "a desgraça


nunca vem só". E é muito certo. Delmiro mudou de firma,
porque sérias dificuldades 1he sobrevieram, aconselhando-o, em
virtude, também, do rompimento com a espôsa, a fazer essa
nova viagem à Europa. E, em meio a tudo isso, existe um
pormenor pouco conhecido e que passamos a contar.
O London and River Plate Bank fizera adiantamento à
firma de Delmiro, sob contrato de câmbio, para exportação
de peles, e, depois, não só anulou o contrato como lhe exigiu
cobertura. A firma, colhida pelo cancelamento do negócio en
tabulado, ficou com grandes estoques sem comprador, por
causa da Guerra do Transvaal (1899-1902). Foi compelida pelo
Banco a liquidar seu grande compromisso num regime parce
lado mas extenuante. E só saiu do embrulho porque contava
com a habilidade de Guido Ferrário, e, sobretudo, porque
a situação mudou e os americanos apareceram para comprar os
estoques todos.
A firma pôde liquidar os compromissos bancários, reabi
litando-se até perante o River Plate Bank, que nunca mais lhe
negaria crédito, dada a lisura demonstrada no curso da liqui
dação. Ferrário, que tinha sido contador do Banco, acompa
nhou de perto a atitude de Delmiro, servindo de financista e
até de advogado na questão; tornar-se-ia seu amigo para o resto
da vida, sendo convidado por êle a integrar as suas organiza
ções, e nascendo daí em diante, entre os dois, confiança e ami
zade indissolúveis.

Quando regressou da Itália, a insistentes chamados de seus


sócios, Delmiro logo percebeu ser realmente "insustentável a
situação" de Silva Cordeiro & Cia., tal como êles lhe comunica.
ram por telegrama. E requereu concordata para pagamento
na base de 21%, com que não se acomodaram os credores,
65
exigindo a falência, na qual receberam apenas 2%. Dita firma,
organizada quando para lá embarcara, era formada por Antô
nio Carlos Ferreira da Silva, já componente da sucedida, Ma
noel Cordeiro de Carvalho, chefe dos armazéns e Luiz Bahia,
chefe dos escritórios.

Depois da falência é que se reorganizou sob a denomina


ção social de Iona & Krause, constituída por Lionelo Iona,
John Krause, Guido Ferrário e Luiz Bahia, embora êle conti
nuasse como cabeça, em quem os financiadores americanos
sempre acreditaram, transacionando sem solução de continui
dade, mediante crédito aberto nos bancos. Transferindo-se para
Alagoas, devido às perseguições e ameaça de prisão no Recife,
e tendo saído o sócio John Krause, lá fundou, em 1903, a
firma Iona & Cia., com sede em Maceió (Jaraguá).

66
Infuência São Francisco
Ponto Estratégico

Processado e desgostoso, Delmiro deixa o


Recife, rumo a Alagoas Os sócios o
acompanham, com os quais funda a fir
ma Iona & Cia., em Maceió Aporta em
Penedo, viajando até Agua Branca Aí -

se encontra com o Sen. Ulisses Luna,


chefe da política alagoana, que lhe dá
proteção Busca a proximidade da ca
choeira de Paulo Afonso O ramal fer
roviário de Piranhas a Jatobá, e a esque
cida estação da Pedra Instala arma
zém para compra de couros e pensa nas
atividades agropastoris Quer ser in -

dustrial, aproveitando as águas do S.


Francisco Desenvolve grande ativida
de, viaja constantemente A compa
nheira não o compreende e o abandona;
os sócios o advertem; mas o sonhador
prossegue, obstinadamente.

ERSEGUIDO E HUMILHADO, Delmiro

viu-se inesperadamente na dura contingência de sair, às pressas,


do seu mui amado Recife, procurando um pouso seguro. Pro
cessado, com ordem de prisão decretada e até sob a meaça de
morte; arruinado, com a fortuna comprometida no Dérbi e na
Usina Beltrão, iniciativas de grande porte que tiveram de
parar, sem possibilidade de ressarcimento; alvo da trama da
politicalha, que culminou com o incêndio criminoso daquele
mercado; vítima da crise financeira do país, que colheu sua
firma, levando-a à falência, o negociante de peles só contava,
67

Svandensnakarat
mesmo, para reerguer-se, com o apoio dos financiadores ameri
canos, os irmãos Rossbach.
Por outro lado, o rompimento com a espôsa, seguido do
rapto em circunstâncias ousadas e escandalosas da menor Eu
lina, por quem êle perdera a cabeça, afetara-lhe a reputação
nos arraiais do comércio e da sociedade, vendo-se o quarentão
inopinadamente sózinho, despojado de seus haveres e obrigado
a empreender a fuga para lugar afastado, que lhe oferecesse
possibilidades de recomeçar a vida.
O Estado de Alagoas, já sob o domínio dos Malta, ace
nava-lhe com maiores vantagens. Eram mínimas as taxas de
exportação lá cobradas sôbre couros e peles, não havendo o
propósito deliberado do oficialismo em majorá-las, como vinha
ocorrendo em Pernambuco. É o que diz José Bonifácio de
Sousa, um dos que melhor apreciaram a vida do pioneiro,
nessa fase. O "Rei das Peles", com deslocar o centro de suas
operações para outro Estado, imporia a Pernambuco, de par
com a represália às perseguições que lhe foram movidas pela
oligarquia de Rosa e Silva, "não só a perda da hegemonia nesse
ramo de negócio, como também a queda acentuada na arre
cadação dos impostos de exportação sobre produtos de origem
animal".

Os seus sócios e fiéis colaboradores, principalmente Lio


nelo Iona e Guido Ferrário, que tinham pouco a perder, pois
que o resultado de anos de trabalho fôra de roldão com a
débâcle de Delmiro, ainda confiavam na recuperação dêste
e se dispunham a segui-lo rumo às Alagoas. Sòmente o sócio
e amigo John Krausé, corretor de câmbio, foi quem não o
acompanhou, ponderando a impossibilidade de afastar-se do
Recife, onde outros interêsses o prendiam. E, com sua retirada,
nasceria a nova firma Iona & Cia., em Maceió, sucessora da
que vinha explorando o comércio de couros.
Delmiro alimentava o desejo de conhecer o São Francisco,
"rio fadado a presidir, através de sucessivas fases históricas, a
integração social e econômica dos sertões nordestinos". Nunca
se apagara da mente do menino cearense a lembrança da pai
sagem nativa, com a bica do Ipu correndo perenemente da
Serra-Grande, a desperdiçar suas águas... Daí talvez porque
buscou a proximidade da cachoeira de Paulo Afonso, no alto
sertão.

68
Levava a idéia de iniciar-se nas lides do campo, de fundar
uma agricultura e criação em moldes racionais. Tinha o san
gue dos sertanejos cearenses e a alma de citadino, aberta às
vastidões oceânicas. Era um eclético, pois, com misto de medi
terrâneo e talássico... Quando em criança chegara à cidade
do Recife para nela crescer, formando o espírito, e, mais tarde,
aos 20 anos, para lá voltara, vindo de Pesqueira, poderia ter
exclamado como um grego maravilhado, olhando o mar, dian
te do grande pôrto: "Talassa! Talassa!!" E, agora, quando
- -

tornava ao hinterland, devia sentir pulsar nas veias o sangue


do homem sertanejo, que ama a terra e a vida rural.
Delmiro Gouveia aporta em Penedo, onde foi recomendado
ao Cel. José Antônio da Silva Costa, da firma Peixoto & Cia.
Tinha que dali seguir para Agua Branca, onde se encontraria
com o Cel. Ulisses Luna, senador e prestigioso chefe da polí
tica alagoana. Este lhe daria a prometida ajuda e proteção,
acobertando-o da sanha incruenta de seus perigosos inimigos
pernambucanos.
Penedo era, então, importante pôrto fluvial, até aonde
iam, diretamente, vapôres não só da América mas de tôda a
Europa (Inglaterra, Holanda, Suécia, Noruega, etc.), trazendo
artigos e comestíveis, como o apreciado bacalhau. Era, por
outro lado, o escoadouro no baixo São Francisco da grande pro
dução dos vastos sertões adjacentes, inclusive peles e couros.
É de imaginar-se a sensação de Delmiro, viajando rio
acima, só, desgostoso, falido, em meio àquele cenário soberbo,
que tem por fundo as serranias acompanhadas pela enorme
caudal. Depois da cachoeira, o rio aprofunda-se num grande
canion até chegar ao lugar denominado Piranhas, vencendo a
diferença de nível de 120 metros.
A localidade de Piranhas não passava de um "arruado
rústico, encravado nas lombadas que se alteiam à margam do
rio". Ali terminava, como ainda hoje, a navegação dos navios
e barcaças, começando em terra firme o ramal ferrocarril que
segue, paralelamente, o trecho não navegável da corrente até
a antiga Jatobá de Tacaratu, atual Petrolândia.
Pelo traçado sinuoso da linha, o trem galga os alcantis,
ora coleando o São Francisco, ora embrenhando-se pela mata
ria, oferecendo grandioso espetáculo que causa admiração a
viajantes daquela época, como Plínio Cavalcanti. "Depois de

69
extenso voltear pela caatinga, ei-lo, de nôvo, à beira dos penhas
cos ribeirinhos. Dessas alturas, a perspectica da paisagem nos
domina, ao contemplar o rio, guardado como um colar de
turquesa".
Em novembro de 1902, Delmiro chega a Água Branca.
Com êle conversando demoradamente, e conhecendo melhor
suas qualidades empreendedoras, Ulisses Luna, que o toma
como hóspede ilustre, aconselha-o a fixar-se naquela zona, fa

cilitando-lhe a instalação em tudo quanto necessário e possível.


Já no comêço de 1903, o pioneiro havia escolhido um
ponto ideal para moradia, distando 18 quilômetros de Agua
Branca e pouco mais de 20 da cachoeira. Era na desconhecida
Pedra, estação da ferrovia, lugarejo inexpressivo de apenas
5 casas, perdido no deserto e na solidão daquela silva horrida
descrita por Martius.
Aquêle homem sociável, fino, afeito ao convívio dos gran
des centros, deve sofrer muito naquele meio atrasado e inós
pito, distante do litoral cêrca de 400 quilômetros. Costuma vir
à Água Branca, a cavalo, para bater papo em casa do Cel. Ulis
ses, matando assim o tédio que devia devorá-lo nas brenhas
onde morava. Sente-se todavia livre da tenaz perseguição do
situacionismo pernambucano. Pode ali reencetar a luta, esta
belecendo o seu quartel-general da compra de peles, orien
tanto as vendas e exportações pelo pôrto de Maceió; ao mesmo
tempo, pensa em fundar remotamente uma subsidiária indus
trial, dedicando-se logo às lides agropastoris, como atividades
conexas.

Adquire de um certo Manoel Francisco Correia Teles,


por 3 contos, uma casa de tijolos, meia-água, com seus terre
nos e cercados, na qual se instala com armazém de compra de
courinhos, local defronte à estação; mas logo se muda para o
lado oposto da linha, a uns 300 metros da primitiva localiza
ção. Essa fazenda, onde erigiu a "casa-grande", tomaria o nome
de Rio Brancoe, depois, Buenos Aires, sendo comprada por
13 contos de réis a José Correia de Figueiredo genro do
Cel. Ulisses Luna segundo o registro de imóveis que reza: -

"Um cercado com uma casa e mais benfeitorias, e mais uma


posse de terra contígua para o lado de cima do lugar Pedra".
Vê-se, pois, que o povoado era insípido, desértico, falho
de tudo. Entretanto, a sua posição geográfica em plena zona

70
criadora dos sertões, na confluência de quatro Estados Ala
goas, Bahia, Sergipe e Pernambuco favorecia o desenvolvi
-

mento de seus negócios. Havia a estrada de ferro Piranhas-Ja


tobá, que facilitava o transporte dos produtos a adquirir e
adquiridos.
A maior dificuldade a enfrentar, de início, residia na falta
de água, sendo que a potável vinha de longe, no trem semanal,
pois Delmiro não descria nos malefícios de micróbios e parasitas.
Por isso, mandou construir, no córrego da Paricônia, o açude
do Desvio, assim chamado por ficar atrás da estação. Em 1907
começou o da Pedra Velha, barrando o riacho da Mosquita e
que tomou água no inverno seguinte.
E, daquele ponto estratégico, estava pronto a deflagar a
revolução industrial com que vinha sonhando. Assim é que,
por volta de 1909/10, atrai à Pedra, para estudos no rio e na
cachoeira, a missão americana chefiada por Mister Moore e,
em seguida, entra em contato com a firma Bromberg, do Rio,
e depois pede projetos a W. R. Brand & Co., de Londres.
No comércio de peles, tinha enriquecido novamente e
dilatado seus domínios. Desenvolve grande atividade, não pára,
viaja constantemente, quando não para longe, pelo menos para
Agua Branca, a fim de trocar idéias com seus amigos. Compra
terras, adquire opções às margens do rio, chama gente para
Pedra, que vai tornando-se, dia a dia, numa colmeia de tra
balho e de vida.
A companheira, D. Eulina, não compreende a razão da
quela azáfama e o abandona. Os sócios o advertem. Mas êle
-

não liga para nada. Teimoso, sabendo o que quer, volta-se


para a cachoeira e para as águas do rio, visando ao seu apro
veitamento em fins agropecuários ou industriais. Sem isso, não
haverá salvação para sua terra e sua gente... E aquêle Mauá
redivivo, fazedor de oásis e fundador de indústrias, atirar-se
como um louco contra as águas rugidoras, caudalosas, indo
máveis do grande rio, como, outrora, D. Quixote se arremessava
contra moinhos de vento...

71
Aproveitamento das Águas e da Cachoeira

Leis federais sobre a Paulo Afonso; os


concessionários A missão Moore vai à
-

Pedra, examina as cataratas e o rio


Emprêsa de grande porte a ser criada
com capitais americanos e brasileiros
Delmiro compra terras e adquire direito
sôbre outras Sonda os governantes dos
Estados limítrofes. Recusa formal e in
compreensível de Dantas Barreto O
primeiro problema, naquela zona sêca, é
o da água Pensa numa usina de açú
car, numa fábrica de fios e termina na
de linhas Consegue leis de concessão
do Governo de Alagoas Volta-se para
a queda de Angiquinhos É preciso
atravessar o braço pedregoso do rio
Os serviços o absorvem Não pensa
noutra coisa, nem nas mulheres Em
bora esquecido até pelos Governos, foi,
de fato, o pioneiro.

COM O ADVENTO da República, o pri


meiro diploma legal a dar concessão para o aproveitamento
energético da Paulo Afonso foi o Decreto nº 1.113, de
29-11-1890, em favor de João José do Monte, nos têrmos do
qual este ficava obrigado a organizar companhia exploradora
no prazo de 5 anos e, dentro de 8, haver utilizado a fôrça de
1.000 HP, no mínimo, "sob pena de caducidade da concessão",
o que ocorreu.
O inglês George Richard Reidy, em 1910, pleiteou tal
direito não só em relação àquela cachoeira como a outras que

72
das do São Francisco. O seu pedido não logrou deferimento,
sendo, na fase de estudos no Ministério da Agricultura, dada
a regalia mediante Decreto nº 8753, de 31-5-11, aos engenheiros
Francisco de Paula Ramos e Hans Hacker, os quais nada fi
zeram. Pelo Decreto nº 10.571, de 19-11-13, o sr Francisco
Pinto Brandão também obteve a concessão, cassada pelo de
número 10.775, de 18-2-14, porque o concessionário demons
trou “falta de idoneidade para levar a efeito os serviços”.
Diante da confusão de leis que davam e tiravam o pri
vilégio, quem poderia aventurar-se a trabalhar e a inverter
capitais numa indústria com base em energia captada de Pau
lo Afonso? Quem, utilizando as águas do rio, naquele local,
se sentiria seguro contra a surprêsa de uma ação reivindicató
ria? Delmiro, com maior razão, nunca poderia estar tranqüi
lo, pois sabia a espécie de seus inimigos, rancorosos e vinga
tivos, que viviam a espreitá-lo para o bote, na primeira oportu
nidade.

Por isso, abriu os olhos desde muito cedo. .. Além das


duas posses de terras logo compradas dentro da Pedra, come
çou a dilatar seus domínios ao fixar domicílio na casa-grande,
adquirindo as fazendas Dois Irmãos e Caraibeiras, a que alu
de Adolfo Santos, informando que "já havia comprado, então,
uma faixa de terra vizinha, do outro lado do riacho Morros,
que cortava o terreno de norte a sul".
Agia com sigilo e máxima discrição. Não se sabe como
veio ter ao lugarejo a missão Moore. Nem dela se teria notí
cia, não fôsse o depoimento do referido cidadão, que viu,
presumivelmente por volta de 1909/10, chegar ali aquela co
mitiva procedente de Washington, chefiada pelo capitalista Mr.
Moore e constituída de cientistas e engenheiros. Dentre êstes,
havia um de nome Stewart, o mais conhecido porque foi o úl
timo a regressar e também por gostar muito de amendoim,
que êle estava sempre a comer, torrado ou cozido. Stewart
percorreu o rio São Francisco, de Piranhas a Jatobá, acompa
nhado de alguns operários, conduzindo instrumentos portá
teis de precisão, e, terminada essa viagem de exploração cien
tífica, demorou na Pedra, ainda, para voltar aos EUA sòmente
cerca de 15 dias após.
Mas, logo no dia imediato à chegada da caravana, e tendo
sido visitadas as cataratas, formou-se mesa redonda na casa

73
de Delmiro, com êste e os da comitiva reunidos para discussão,
servindo de intérprete um engenheiro brasileiro. A conferência
durou tôda a manhã, tendo as conversações, depois do almôço,
prosseguido no escritório. Os pormenores do entendimento, rea
lizado entre 4 paredes, ficaram em sigilo. Soube-se, porém, que
o seu objetivo era a fundação de poderosa emprêsa a se consti
tuir com capitais americanos e brasileiros, para aproveitamento
do São Francisco e suas margens, visando não sòmente àquilo
que muito mais tarde fêz a CHESF mas, também, a um vasto e ra
cional plano agrícola-industrial conexo.
Bem discutido o grandioso empreendimento, e acertados
os ponteiros, Delmiro assinou com Mr. Moore, como incorpo
rador da Companhia, contrato pelo qual se obrigava a conse
guir os terrenos adjacentes à cachoeira, com todas as cláusulas
acauteladoras dos recíprocos direitos e obrigações. Era condição
sine qua non, para a vinda dos capitais, a cobertura de leis de
garantia e amparo à exploração, mesmo que fôssem conseguidas
dos Estados limítrofes beneficiados com o melhoramento.
Com o regresso da comitiva, o pioneiro se pôs em campo.
Conhecendo os condôminos das terras à margem da Paulo
Afonso, obteve para si, individualmente, outros contratos de
opção de compra e venda das mesmas, sem revelar a ninguém o
jôgo que estava fazendo, armando-se, assim, com os trunfos
necessários à concretização do negócio entabulado.
O primeiro problema a atacar era o da água e da irrigação
porque, segundo acentua Tadeu Rocha, "a aspereza do solo e
do clima refletia-se na pobre vegetação da zona, em que mal
se sustentavam pequenos rebanhos de gado bovino. A agricul
tura de subsistência, dependendo das chuvas (...), era muito
precária. A cultura do algodão, atrasada..." Daí, porque entra
ra em suas cogitações desenvolver as atividades agropastoris,
como passo inicial.
"Quem tem água não morre pagão!” — exclamava o pionei
-

ro, constantemente, imaginando salvar aquela terra ressequida


e sua gente desgraçada, com as águas fartas do Jordão do Nor
deste, que, entretanto, passava a 24 quilômetros daquela Jeru
salém... Para encaná-las, entendeu-se com seus amigos Ulisses
Luna e Faustino Torres, donos de terras do lado esquerdo do
rio, os quais consentiram na passagem dos canos, ante a pro
messa que êle lhes fêz de, em paga, deixar uma polegada do
74
precioso líquido em dois lugares das propriedades de ambos,
sendo meia polegada para cada um.

Quanto à concessão legal, também diligenciou em obtê-la,


começando por auscultar os governos dos Estados, sendo que
o de Pernambuco estava ainda em mãos de seus tradicionais

e irreconciliáveis inimigos. Era só falar, e conseguiria a permis


são do de Alagoas. O Decreto n.º 499, publicado em 29-9-1910,
veio conferir à firma Iona & Cia. o direito de explorar as ter
ras sêcas e devolutas do município de Agua Branca, sendo
ratificada pelo de nº 503, de 30 de novembro daquele ano,
que concedia, inclusive, isenção de impostos para a fábrica
de linhas, e o de n° 520, de 12-8-11, dava concessão para cap
tar a energia de Paulo Afonso.
Delineia-se claro o resultado da eleição a Governador de
Pernambuco, acenando a queda do "rosismo" com a provável
vitória de Dantas Barreto, que, de fato, é guindado ao poder
em fins de 1911. Com seus amigos e futuros diretores da Cia.
Agro-Fabril, o pioneiro pede audiência para expor a S. Exa. o
plano de eletrificação. Registra-se, então, aquela triste e his
tórica cena descrita pelo jornalista Josimar Moreira em repor
tagem da “Última Hora” (junho/julho de 1951), na qual
adianta haver Delmiro pedido "apenas autorização para a pas
sagem, pelo território pernambucano, da linha condutora aos
centros de consumo", e conclui com estas palavras: - "O Ge

neral respondeu, cortando pela raiz a pretensão do cearense


arrojado: "O negócio que o sr. propõe é tão vantajoso para
-

o Estado que deve envolver alguma velhacaria!"


Difícil imaginar e muito menos compreender tal atitude
de desconfiança do nôvo Governador. Delmiro se decepciona,
mas procura reagir, pois sabe que nunca poderá contar com
os poderes públicos. Recolhe-se ao degrêdo da Pedra e pensa
na melhor maneira de levar avante seu ideal, embora tenha
que mudar o plano inicial, que é levar energia hidrelétrica
ao Recife. Era o fracasso da emprêsa, a ser criada com capitais
norte-americanos, e a rescisão do respectivo contrato para cujo
adimplemento se fazia mister a base legal, que lhe era negada,

75
peremptoriamente, por Pernambuco, onde se pretendia apli
car maior soma de quilowatts da Paulo Afonso.
Informou-nos Luis Luna -

um menino naquela época,


tendo acompanhado, mais tarde, já adolescente, os trabalhos
de fundação do parque industrial na Pedra de que Delmiro
pensou, então, e com isso conversou com o Cel. Ulisses, pai
do informante, em aproveitar a queda da Boa Vista, e não
pròpriamente a grande cachoeira, para montar uma usina de
açúcar, tendo mesmo, com essa idéia, feito a viagem à Ingla
terra.

Mas, de volta, veio comunicar a Ulisses Luna haver fecha


do negócio com uma fábrica de fios (depois adaptada a pro
duzir, também, linhas de coser) e que, por isso, ia querer
mesmo uma queda da Paulo Afonso, o salto de Angiquinhos,
no lado alagoano do rio, onde ficavam terras daquele senhor.
Para evitar percalços e complicações, obteve dêle cessão dos
direitos dos terrenos ribeirinhos, assunto em que já havia tocado
quando pensara na Boa Vista.
Para se chegar até a cachoeira, era preciso atravessar um
braço do rio sobre pedras ponteagudas, numa distância de 50
metros, aproximadamente, isso no período da sêca ou verão,
quando as águas baixam; no das cheias, as pedras ficavam
semicobertas, sem se poder chegar à margem da caudal turbi
lhonante, que se precipita, formando 18 quedas, segundo têm
contado alguns, e produzindo um barulho ensurdecedor.
Os primeiros trabalhos de instalação elétrica vão começar
em 1911, com material encomendado às casas Bromberg e Sie
mens Schukert, ainda sob a responsabilidade da firma Iona
& Cia. A fôrça a produzir seria destinada uma parte à fábrica
e iluminação e outra à bomba hidráulica de 150 HP., que im
pulsionaria água para a vila, transpondo no trajeto de 24
km duas elevações de 180 metros.
Delmiro trabalha incessantemente, não pensa noutra coisa,
sobretudo nos anos de 1912 e 13. Não se conhece nenhum caso
de amor dêsse homem incompreendido e, pode-se dizer, aban
donado por D. Eulina, a partir do segundo semestre de 1908,
quando houve a separação. Esse homem, em quem a maledi
cência só vê o devasso e mulherengo, mergulha de corpo e
alma no seu grande sonho, de fundar a indústria redentora do
76
Nordeste, de fazer oásis num deserto, e dêle não se ouve contar,
naquela época, nenhum caso de rabo de saias...
Superintende todos os serviços, está presente em todos os
setores. Costumava viajar a cavalo na 2.ª feira, para inspecio
nar e dirigir as obras, só voltando à Pedra no fim da semana,
cansado de corpo mas com a alma incansável... E foi assim
que um homem sonhador, só e incompreendido, fêz o primeiro
aproveitamento das águas e do potencial da cachoeira, que
estava rouca de gritar pelos homens do Brasil...
Não lhe podem negar a glória de pioneiro. D. Maria, sua
filha, queixou-se amargamente do esquecimento a que o rele
garam, quando da inauguração da CHESF, 40 anos depois da
quele heróico empreendimento. Os discursos oficiais, inclu
sive do Presidente da República, não fizeram menção ao nome
e à obra do grande pioneiro que, "perseguido em vida pelo
truste internacional, continua perseguido, na morte, pelo truste
nacional do silêncio" (*).
Mas há os que o não esquecem, como o Dr. Harold R.
Levy, que visitou as obras da CHESF e, recentemente, em estu
do sobre as mesmas, disse em boa mas já atrasada hora: -

"Em se falando da cachoeira de Paulo Afonso, justo é que se


ressalte o nome de Delmiro Gouveia, o grande pioneiro cea
rense que ali instalou uma usina de 1.500 HP., com os olhos
voltados para o grande e futuro desenvolvimento industrial
daquela região".

(*) "DELMIRO GOUVEIA, O PIONEIRO ESQUECIDO DA HIDRO


ELÉTRICA", reportagem de Abelardo Romero para "O Jornal".

77
Planos e Providências
Para Fundação da Indústria

Delmiro muda de plano O malôgro


-

junto a Dantas Barreto não arrefece seu


ânimo Trabalho ciclópico a enfrentar
no rio imenso Início das instalações
-

em 1911 - Material hidrelétrico vindo da


Alemanha e Suíça; a fábrica foi compra
da na Inglaterra Desenvolve grande
atividade nos anos de 1911/13 -
A se
mana tôda ao pé da obra A maquina
ria chegada inicialmente - Produção de
-

energia e sua destinação prevista Di


ficuldades, inclusive técnicas A esca
da, em espiral, até o Ninho da Aguia -
A lenda de que Delmiro mandou amarrar
Borela; e a de que foi êle mesmo quem se
fêz amarran, para descer o talhado
Raul Azêdo descreveu a descida -
Ponte
no braço do rio, passando um trole
Tudo transportado por ali, até a pesada
turbina.

COM O INSUCESSO do entendimento jun


to ao governo do General Dantas Barreto, fracassou o primei
ro e grande plano de Delmiro Gouveia, para o aproveitamento
do potencial energético da Paulo Afonso. Ao invés de uma
instalação destinada a distribuir fôrça elétrica no Nordeste,
tendo Recife como principal centro consumidor, trataria êle
de montar outra indústria. E, por intermédio da firma Iona
& Cia., mandou pedir orçamento, bem como projetos, aos fa
bricantes W. R. Bland & Co., da Inglaterra, para uma fábrica
de novêlos de fio.

78
O fracasso daquele empreendimento não arrefeceu o seu
ânimo de lutador; ao contrário, despertou-lhe a idéia de apro
veitar, êle mesmo, aquelas ricas águas, em iniciativas atacadas
progressivamente. Entre a idéia e a ação decorreram poucos
meses, pois cuidou logo da aquisição e de obter direito de
opção das terras de ambas as margens do rio.
Só quem conhece a cachoeira de Paulo Afonso diz Plínio
-

Cavalcanti poderá fazer uma idéia do trabalho ciclópico do


pioneiro, para aproveitar as águas do São Francisco. Este tem
ali “alguma cousa de trágico, o belo horrível que deslumbra
e apavora. É o dilúvio canalizado do rio imenso que espadana
em borbotões de espuma, rugindo por entre o dédalo das
cataratas". Havia sido escolhida a queda de Angiquinhos,
onde seria construída a casa de força, chamada pelo nome poé
tico de Ninho da Aguia. Para lá chegar, tinha-se que atraves
sar um braço do rio, formando-se uma espécie de ilha que
foi preciso ligar à terra firme por uma ponte de madeira.
A instalação hidrelétrica foi iniciada em 1911 com mate
rial comprado às casas Bromberg & Co. e Siemens Schukert.
Sob a responsabilidade de Iona & Cia., com a orientação técnica
de engenheiros, inclusive europeus, iria dar-se início às obras
e instalações. Fôra contratado o fornecimento do material da
usina, relativo à parte hidráulica, com a emprêsa alemã J. M.
Worth e com a suíça Picard Pictet & Co.; na parte elétrica,
com Bergman & Co. e com a firma suíça Brown Boveri & Co.
Os maquinismos industriais da fábrica de linha foram enco
mendados aos fornecedores Dobson & Barlow, de Boston, Ingla
terra, aonde Delmiro foi, a fim de fazer melhor escolha.
Os anos de 1912 e 1913, dedicou-os o pioneiro às novas
instalações industriais. Adiantava-se a montagem da usina hi
drelétrica, ao mesmo tempo que se construíam as linhas de
transmissão de energia e as adutoras d'água. Na Pedra se tra
balhava, intensamente, na edificação da fábrica e da vila
operária.
Delmiro Gouveia superintendia todos os serviços, numa
ação dinâmica, incansável, onipresente. Viajava a cavalo para
o pé das obras às 2ªs. feiras e só voltava a casa no fim da sema
na, até ver concluída a montagem da turbina hidráulica, do
gerador elétrico e bomba centrífuga, bem como as linhas trans
missoras e os canos adutores até a Vila da Pedra.

79
A maquinaria que veio inicialmente se compunha, em
linhas gerais, do seguinte: turbina, gerador e material elétri
co; bomba e tubos condutores para abastecimento d'água;
aparelhagem de fabricação, inclusive coberta metálica para o
edifício da fábrica. Pretendia-se produzir fôrça elétrica de 3.000
volts, conduzida em sistema trifásico, a ser aplicada uma parte
à fábrica e à iluminação, e a outra para a bomba de 150 HP.
Lá na cachoeira seriam assentadas as turbinas eletromotoras

e a possante bomba de propulsão.


Segundo Plínio Cavalcanti, ninguém pode calcular o que
representou a instalação das primeiras turbinas no antro da
quele abismo em que as águas se precipitam, produzindo um
barulho que se ouve a 5 léguas de distância. Enormes e inú
meras foram as dificuldades, inclusive de ordem técnica. Pelo
talhado abaixo ia sendo pregada uma escada de ferro em
espiral, trabalho considerado de incrível temeridade.
Dizem que o Engº. Luigi Borella chegou a esmorecer no
comêço de sua construção. Delmiro teria, então, mandado
amarrá-lo, ameaçando-o sob revólver a descer o precipício. A
lenda mais difundida e aceita é, porém, de que foi o pró
prio Delmiro quem se mandou amarrar para escalar o abismo,
ante a perplexidade e pavor de todos, inclusive operários, que
o admiravam nesses rasgos de coragem inaudita. Lá embaixo
ficava a sapata onde se precisava sentar a turbina e construir
o "Ninho da Águia".
Descreveu o jornalista Raul Azêdo "a descida para a am
pla galeria, aberta a dinamite no lanço granítico inferior, para
assentamento dos geradores, vencida pela colocação de uma
extensa escada metálica em espiral, prêsa à rocha por fortes
braços de ferro", terminando por declarar que fêz a descida
por essa escada, o que constituía prova de coragem para os
visitantes.

Antes de chegar ao pé da cachoeira, isto é, para atraves


sar o braço do São Francisco, fêz-se mister construir uma ponte
sôbre a qual passavam dois trilhos presos a dormentes suspen
sos no ar, nos quais um trole deslizava carregando o material
destinado às instalações. Também fala Raul Azêdo do mêdo
que teve ao passar "sôbre pedras, à grande altura, em um
pequeno trole de madeira, correndo, sem anteparo algum, em
trilhos estendidos apenas sôbre dormentes".

80
Até à beira do rio, o material, inclusive a turbina, foi
transportado em carros de muitas rodas puxados por juntas
de bois, pois havia muitos em serviço. Vale a pena contar um
episódio a nós relatado por Luis Luna, que ainda menino o
presenciou: Chegou o dia de se transportar a grande turbina,
pesadíssima, pela ponte de madeira, que ameaçou vir abaixo.
Delmiro, chamado, veio às pressas, e ficou ao lado do enge
nheiro temeroso do desastre, vendo a ponte balançar ao pêso
da carga enorme; examinou um pouco a situação e, resoluta
mente, deu ordem para prosseguirem com o trole por cima
da ponte que dançava, perigosamente, aos olhos espavoridos
de todos.

Assistiu, com Borela, passar o trole até alcançar o outro


lado, sem acontecer nada; e sem dizer nada, também, voltou
com a mesma pressa. A resolução e coragem do homem prá
tico vencia a técnica e mêdo do engenheiro... deixando o
exemplo a seus operários boquiabertos. "Evitava discussões
teóricas e, muita vez, contrariando a opinião dos engenheiros,
resolvia a cousa num golpe de intuição" declara Plínio.
-

Em 1913, seria inaugurada a primeira hidrelétrica na


cachoeira de Paulo Afonso. No dia 26 de janeiro a água jorra
ria na Pedra, abundante, ante o contentamento de todos e a
exclamação do pioneiro: "E isso é uma gôta d'água que tirei
do oceano!" A luz encandearia os matutos presentes naquela
noite memorável da história dos sertões. E a fábrica começa
ria a funcionar no dia 5 de junho de 1914, que era, precisa
mente, a data do aniversário do grande pioneiro.

81
Organização e Instalação da
Cia. Agro-Fabril Mercantil

Iona & Cia. foram os incorporadores


A 1.a e 2.a reuniões de Assembléia Geral
Os estatutos; capital, diretoria e fl
nalidade da emprêsa Instalações, ter
renos e concessões pertencentes àquela
firma Avaliados por 150 contos; dados
por conta da compra de 400 ações Del
miro continuava, na Pedra, orientando os
negócios de Iona & Cia. e superitendia os
da Fábrica -
Os acionistas, entre os
quais seus auxiliares Tomadas todas
as providências para início da fabrica
ção Tipos de linhas, fios e fitas
Escolhida a marca, bem como o símbolo
Somente os carretéis, vazios, eram im
portados A 1.a fábrica de linhas, no
1

sertão, que aproveitou o homem e a ma


téria-prima regionais.

AINDA
INDA NA FASE da montagem da hi
drelétrica e da construção do edifício da fábrica, Delmiro Gou
veia achou oportuno fundar sociedade anônima que encampas
se as responsabilidades da indústria nascente. Até então agira
em nome de Iona Cia., que foram os incorporadores da Cia.
Agro-Fabril Mercantil, designação escolhida para a empresa
fundada, cujos estatutos foram elaborados e prontos em maio
de 1912, na capital pernambucana. Reunindo-se ali os acio
nistas na primeira assembléia geral, em 18 daquele mês, e
realizando-se a segunda em 8 de junho, foram aprovados os
estatutos.

82
Vamos dar a seguir, em linhas gerais, a constituição e fins
da emprêsa. Capital 1.200:000$000, compreendendo 2.400
ações de 500 mil réis, cada; duração, 50 anos e sede, a cidade
do Recife. A diretoria ficou assim representada: Diretor-Pre

sidente Balthazar de Albuquerque Martins Pereira; Secretário


Guido Ferrário; Tesoureiro John Krause.
Eis a sua finalidade, segundo o texto do art° 4°: A -

Companhia tem por fim explorar nos Estados de Pernambuco,


Alagoas e Bahia o comércio de gado vacum, cavalar, cabrum e
ovino, plantio de algodão, irrigação de terras sêcas, fôrça elé
trica e suas aplicações em indústria fabril, para o que se utili
zará dos direitos e concessões feitas pelo govêrno do Estado de
Alagoas aos incorporadores ou organizadores da Cia., os senho
res Iona & Cia., conforme decretos 499, 503 e 520, que conce
deram o direito de aproveitamento das terras sêcas e devolu
tas no município de Agua Branca, a isenção de impostos para
a exploração de uma fábrica de linhas e o aproveitamento da
fôrça hidrelétrica e sua transmissão em todo o Estado, con
cessões e direitos êstes que entraram para composição da Cia.
no valor arbitrado por peritos.
Consta da ata que pediu a palavra o Sr. Guido Ferrário,
para dizer que, à vista da finalidade da emprêsa, propunha à
Assembléia Geral autorizar, desde logo, a Diretoria a adquirir
por compra a instalação hidro-elétrica que a firma Iona & Cia.
estava montando naquele município, bem como os terrenos,
ali existentes, necessários e próprios à exploração, uma vez
que ditas instalações e referidos bens estivessem em condições
satisfatórias.

Também pediu a palavra o Sr. Lionelo Iona, para propor


que a Assembléia Geral autorizasse a Diretoria a emitir e
colocar ao par obrigações preferenciais até a quantia de 500
contos de réis, ao juro de 8% ao ano, a fim de a Companhia
poder desenvolver com mais amplitude o seu ramo de negó
cio e indústria. Uma e outra proposta tiveram aprovação.
Compareceram à reunião os srs. Lionelo Iona, por si e
pela firma Iona & Cia., Guido Ferrário, por si e como pro
curador de Balthazar Pereira, Luiz Bahia, Joaquim Gomes
Coimbra, Dr. Adolfo Tácio da Costa Cirne, Raul Brito, por
si e como procurador de Osvaldo Gouveia de Carvalho e Adol
fo Santos, John Krause, além de Delmiro Gouveia, todos subs

83
critores da Cia. Agro-Fabril Mercantil, representando mais
de dois terços (2/3) do capital social.
O subscritor Luiz Bahia propôs que os avaliadores fossem
indicados pelo Sr. Presidente, recaindo a escolha na pessoa dos
senhores Julius von Sohsten, Dr. Rodolfo Silveira e Carlos
Alberto Burle, que depois forneceram laudo de avaliação,
onde assim se pronunciaram: - "Depois de detido exame sobre
os decretos n.o 499, de 29-9-1910, referente ao aproveitamento
de terras sêcas e devolutas existentes no município de Agua
Branca, no Estado de Alagoas; decreto n.º 503, de 30-11-1910,
referente à exploração livre de direitos estaduais e munici
pais de uma fábrica de linhas; decreto n.º 520, de 12-8-1911,
referente à utilização de fôrça hidro-elétrica e transmissão de
energia para todo o Estado de Alagoas, sua forma jurídica e
direitos dêles decorrentes, bem como as vantagens que de sua
exploração possam advir a seus concessionários, passamos, con
soante o critério e juízo que temos formado, a dar-lhe englo
badamente o valor de 150 contos de réis".
Sendo êste o valor das concessões e direitos com que os srs.
Iona & Cia. entraram para a sociedade, e havendo êles subs
crito 800 ações no valor de 400 contos, prontificaram-se a cobrir
os 250 contos restantes em dinheiro de contado, a fim de fi
carem integralizadas as suas ações. Os atos constitutivos da
sociedade foram publicados na imprensa do Recife e de Maceió,
transcrevendo o número 174, de 26-6-1912, do "Jornal do Reci
fe", a ata de venda da concessão e bens pertencentes à firma
Iona & Cia., à Cia. Agro-Fabril Mercantil, pela aludida quantia
de 150 contos de réis.
Delmiro Gouveia, domiciliado na Pedra, passou não só
a orientar os negócios de Iona & Cia. mas também a superin
tender os da Cia. Agro-Fabril Mercantil. O capital inicial desta
foi logo elevado para 2.000 contos de réis, existindo 12 acio
nistas, entre os quais diversos empregados antigos, a quem, de
ordem do chefe, foram distribuídas ações ao portador, de acordo
com a eficiência e dedicação de cada um.
Tinham sido já superados todos os entraves, inclusive de
ordem legal. Delmiro tentara obter leis federais e dos Estados
limítrofes para a exploração da cachoeira. Cansou-se de sondar
os políticos, aborreceu-se com a lenga-lenga dos advogados e
acabou por empreender a obra no peito. Ora, já tinha concessão
84
do govêrno de Alagoas, e bastava. "O rio pode ser federal
-

dizia mas a queda de Angiquinhos é do lado dêste Estado,


-

onde me fiz dono e usufrutuário das terras marginais. Logo,


quero ver quem me priva do direito de explorar o que é meu,
usando a cachoeira!"

A pior dificuldade de engenharia a vencer foi, sem dúvida,


a provocada pelo mêdo dos técnicos, pedreiros e operários,
que não queriam, no início, descer o talhado para o assenta
mento das escadas. Delmiro pensou em muita coisa, até em
usar cordas grossas de couro cru, para a descida dêles com o
material até o embasamento da turbina na casa de fôrça. Teve
que empregar energia, coragem, gritar e dar o exemplo. Agora,
estavam feitas as escadas, com mais de 200 degraus, seguras no
granito: uma, a prumo, dando para o abismo, as duas seguin
tes mais inclinadas, com 40, 52 e 35 pisos, respectivamente, e a
última com 75.

Não foi fácil conseguir profissionais e mão-de-obra espe


cializada. Técnicos europeus dirigiam o serviço de montagem
das máquinas em suas bases, examinando peças, mandando
colocá-las nos lugares e apertar os parafusos e juntas. Aqui, a
fiação; ali, o fabrico; lá, o polimento e encarretelagem; acolá,
a rotulagem e encaixotamento. Pareciam monstros de bôcas
dentadas e pernas estendidas para as paredes e teto, com suas
engrenagens, rolamentos, mancais e roldanas deslizando nas
correias e polias...
Os técnicos da estranja, sob a chefia de um, man
dado pela casa Dobson & Barlow, ensinavam aos nossos os mis
teres e segredos dos mecanismos, a mexer nas alavancas e a
resolver os enguiços. Muitos operários vinham trabalhando
noutros serviços da emprêsa, desde as primeiras instalações;
alguns tinham sido contratados no Recife, em Maceió e nas
fábricas de tecelagem de Rio Largo, mas desconheciam como
aquela, de linha de costura, iria funcionar. Era preciso expli
car tudo aos operários, inclusive mulheres: - "O algodão che
gava aos batedores, entrava em pasta nas cardas, alongava-se
em cabos grossos e fofos, indo até os passadores, daí passava à
penteadeira e maçaroqueira, dançava nas espulas e caía na
""

dobação, feito meada, torcido e retorcido... (*)


(*) PEDRO MOTTA LIMA "Fábrica da Pedra", romance editado no
Rio (1962).

85
As máquinas estavam prontas, pois, para movimentar a
manufatura, compreendendo linhas, fios e fitas de vários ti
pos e espessuras. A linha teria a marca registrada "Estrêla"
e, por símbolo, dois gigantes a puxar um fio, passando pelo
polimento antes de ir para os carretéis, cujo enchimento seria
assistido por môças, atentas aos defeitos de fabricação.
Os carretéis cheios seriam acondicionados em caixotes, êstes
com caixinhas de dúzia, 12 dúzias destas em cada caixa.
As caixas seriam feitas com tábuas de pinho vindas do Pa
raná. Sòmente os carretéis eram importados, vazios, da Finlân
dia, bem como o primeiro algodão que foi mandado vir do
Egito. Depois foi que se utilizou, com vantagem, o nacional
seridó, tendo a emprêsa procurado plantá-lo em suas terras.
Tudo mais, portanto, era brasileiro e fabricado na Pedra, onde
havia até litografia para imprimir o material empregado nos
rótulos e embalagens.
Segundo Tadeu Rocha, quando o algodão foi colocado
nos batedores, ali se começou pela primeira vez, no sertão,
a fabricar linha de coser, bem como a aproveitar, industrial
mente, o homem e matéria-prima regionais. Vale dizer: o algo
dão seridó e o braço e a inteligência do caboclo nordestino,
cuja capacidade e poder de adaptação, admiráveis, iriam ser
comprovados, eficientemente, 40 anos depois, nas obras da
Cia. Hidro-Elétrica do São Francisco.

86
Os Negócios e Atribuições da Firma Iona & Cia.

Onde foi aberta a compra de peles e gê


neros, na Pedra A sede da firma, em
-

Maceió Sua constituição, ramo de ne


gócio e raio de ação Dois armazéns e
o escritório central, nos fundos Ferrá

rio era o gerente Forma de embala


gem e embarque das peles Do seu
quartel-general, Delmiro orientava as
transações Na Pedra, a ferrovia e o
telégrafo facilitavam os transportes e as
comunicaçã - Ali, passou a haver es
critório bem montado Tropas de bur
-

ros chegam, diàriamente, de vários Es


tados Peles e couros tratados no ser
viço de envenenamento e salga -
Os
fardos seguem, rio abaixo, até o pôrto de
Jaraguá Movimento e lucros realiza
dos Tática de arrematar impostos,
anualmente Na sede, a centralização
das grandes operações, dos serviços ban
cários e contábeis.

DE
ELMIRO GOUVEIA desembarcara na

longínqua e esquecida Pedra, em princípios de 1903, indo mo


rar numa casa adquirida a um tal Manoel Francisco Correia
Teles, erguida defronte da estação. Ali abriu a compra de
peles e de gêneros, mudando-se, porém, em pouco tempo, para
uma propriedade do outro lado da linha e a 300 metros, apro
ximadamente, do primitivo local. Esta fazenda, a que deu o
1
nome de Buenos Aires, depois de construída a "casa-grande",
serviu simultâneamente de moradia, escritório e armazém.

87
A sua firma tinha sede em Maceió, estabelecida à Rua
Conselheiro Saraiva, no bairro portuário de Jaraguá. Era for
mada pelos componentes da extinta Iona & Krause, do Recife,
com exceção do sócio John Krause, também corretor de câm
bio e que, apesar de grande amigo do chefe, que o tomaria,
mais tarde, para padrinho de uma de suas filhas, deixou de
acompanhá-lo com a sociedade, por motivos já explicados
noutro local. Seu ramo principal de negócios era a compra e
exportação de peles de cabra e carneiro e couros de boi, bem
como mamona e, posteriormente, algodão.
A nova firma, sob a razão social de IONA & CIA., tinha
compradores espalhados pelo Nordeste, a princípio nas praças
de Fortaleza, Moçoró e Campina Grande. Com a intensifica
ção dos negócios, outras filiais e entrepostos foram abertos em
vários Estados, com um raio de ação abrangendo desde o norte
do Ceará até a Bahia. As peles passaram a vir não só de Ala
goas, Sergipe e Bahia, mas também de Estados mais afastados
Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.
Ao sócio interessado Guido Ferrário, homem dinâmico,
culto e da confiança de Delmiro, coube a direção dos negó
cios da sede em Maceió. Ali havia dois armazéns, um para
peles e couros e o outro destinado, mais tarde, ao Depósito
Geral das linhas e fios da Fábrica, ficando o escritório central
localizado na parte dos fundos. Raul Brito, cunhado de Lio
nelo Iona, era chefe do escritório, exercendo as funções de
subgerente e substituto eventual de Ferrário. Na capital de
Alagoas se realizavam os grandes negócios, o fechamento de
câmbio e os embarques para o exterior.
As peles e couros eram exportadas para a América do
Norte; de raro em raro, para a Inglaterra, assim vendidas
diretamente, em conta de participação de lucros com os finan
ciadores Lossbach. A embalagem das peles, dobradas, se fazia
em fardos de 500 e os embarques, de 200 fardos, cada vez, eram
feitos, geralmente, pelos navios da Harrison & Lines, que tam
bém traziam mercadorias para a organização, desembarcadas
nos trapiches de Jaraguá.

Delmiro Gouveia tinha assentado seu quartel-general na


Pedra, ponto estratégico, a despeito de acanhado, rústico e
88
carente de tudo, quando lá chegou. Bem na confluência de
quatro Estados, próximo do grande rio da unidade nacional
e ao pé da ferrovia, que facilitava os transportes e escoamento
dos produtos de vasta zona do alto sertão, era, por outro lado,
ótimo local para centralizar e desenvolver suas atividades de
comprador e exportador de gêneros, bem como para fundar
a subsidiada agropastoril com que sonhara.
Dentro de pouco tempo, tornou-se conhecido e foi, dia
a dia, aumentando a irradiação de seus negócios por todo o
Nordeste, fazendo compras a têrmo em larga escala. Dali emi
tia ordens diretas às suas agências e corretores; ao mesmo tem
po, orientava as grandes transações por intermédio de sua
Matriz, em Maceió. Disse-me o então telegrafista de Penedo,
meu colega e amigo Heráclito Lima, que sentia o movimento
crescer através dos despachos pelo fio, que passavam e cruza.
vam ali.

Depois, Delmiro pleiteou um pôsto telegráfico para a


estação da Pedra. Então, já tinha escritório bem montado,
dirigido pelo competente Adolfo Santos, com a supervisão do
poliglota Iona e que transmitia despachos para tôda parte,
até em línguas estrangeiras, muitas vezes nos códigos "Ribeiro"
e "Bentley". Depois, com a criação da Companhia Agro-Fabril,
esta fêz construir, por sua conta exclusiva, prédio especial com
mobiliário próprio, para nêle o telégrafo ser instalado, à par
te. O dito pôsto chegou a registrar renda superior a dois contos
de réis, por mês, o que se considerava um "record".
Em seu escritório, na Pedra, Delmiro era informado, por
telefone, do que se passava nos diferentes departamentos de
sua organização, transmitindo-lhe o telégrafo os fatos comer
ciais ou políticos de maior importância, em avisos procedentes,
geralmente, de Maceió ou Recife. As vêzes, andava inspecio
nando o serviço da fábrica, ou outro qualquer, quando se ou
via trilar o seu apito, porque ali chegava um mensageiro com
aviso ou tinha que ser expedida ordem urgentíssima por meio
de um de seus atentos guardas, que saíam correndo.
Em certos dias, chegaram à Pedra 200 a 400 burros vindos
do interior de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do
Norte (notadamente de Moçoró e Campina Grande) e da
Bahia, isto é, do outro lado do São Francisco, principalmente
da zona de influência de Feira de Santana, com carregamento

89
de peles e outras mercadorias. Declara Adolfo Santos que a
própria organização possuía tropa de mais de 200 burros entre
gues a almocreves, os quais levavam, na ida ao sertão, cargas
de querosene, sabão e sacas de café.
Na Pedra, os couros e courinhos recebiam o conveniente
trato: depois de imunizados, eram submetidos a classificação
e enfardados. O serviço de salga e envenenamento dos couros
espichados e peles de cabra e ovelha estava a cargo de Mestre
Pedro, que veio do Recife e era encarregado da manipulação
do serviço, na chamada "casa inglesa", com sabão arsenical
e sal de azêda.

Da estação da Pedra seguiam os fardos de couros por trem


até Piranhas, daí pelo São Francisco em canoas até Penedo,
e daí para o mar até o pôrto de Jaraguá, nas barcaças de nomes
"Pajussara" e "Sertaneja". Segundo um informante, as peles
eram embarcadas para a América do Norte em média anual de
um milhão e meio e, na estimativa de outros, o total exportado
anualmente, pela organização Iona & Cia., para os Estados Uni
dos e Inglaterra, regulava entre 3 e 5 milhões de unidades de
courinhos e espichados.
O movimento comercial da emprêsa passou logo a ser de
veras intenso, e cada vez mais se ampliava. Chegou ela a ter,
em dada oportunidade, lucro líquido da ordem de 800 contos,
só num semestre. E de outra feita ganhou 1.000 contos de
réis, com o seguinte procedimento: Chegaram avisos telegrá
ficos dos curtumes financiadores que, mediante convênio, re
solveram fazer sensível baixa nos preços de peles; Delmiro,
consultado, mandou responder que havia 150.000 peles a reco
lher, quando, na verdade, grande quantidade teve que ser
adquirida às pressas e em partidas maiores.
Calcula-se que Delmiro tinha amealhado 5.000 contos de
réis ao enveredar no ramo industrial. Um dos fatores que o
tornaram o maior comerciante do sertão, conhecido como "Rei
das Peles", foi, sem dúvida, a tática de comprar impostos nas
barreiras e entrepostos estaduais e municipais. A sua organi
zação pagava 600 contos de réis anuais, para isentar de impos
tos a si e a seus agentes e compradores que lhe destinavam
peles e outras mercadorias, procedentes até de Pernambuco,
Sergipe, Bahia, etc. Alguns comentavam que o fisco dêstes Es
tados era lesado; outros achavam ser besteira arrematar os tri

90
butos, pagando em janeiro tudo quanto o Estado iria arreca
dar, aos poucos, no correr do ano.
Como se vê, a sede da firma Iona & Cia., em Maceió, den
tro do ramo de compra e exportação de peles e outras mercado
rias, fazia o serviço puramente financeiro, o bancário de vendas
de cambiais, os faturamentos em moedas estrangeiras e a cen
tralização dos serviços contábeis dos negócios que se proces
savam naquele escritório central, inclusive os relacionados com
as filiais do Ceará e da Paraíba, que sempre fizeram grande mo
vimento. Da parte contábil se incumbía o conhecido guarda
livros Juvêncio Lessa, no que tinha a ajuda de Antenor Xavier
de Almeida, ambos ainda vivos e em condições de completar
essa história da casa IONA & CIA....

91
Retrato Físico e Moral de Sua Personalidade

Forma e altura do corpo; côr da pele e


cabelos Gentleman, vestia bem, pre
ferindo o branco Bon vivant, adoran
do música e flôres Na Pedra queria
-

limpeza e simplicidade Sereno, gene


roso, conturbado por impulsos violentos
Valente, não suportava desaforos
Acolhia a todos, sem olhar defeitos
Não admitia ociosos, nem viciados Ri
Inte
goroso nos princípios de moral -

ligência sem superstição nem cangaço


Progressista, desenvolveu o comércio
de peles; enriquecendo, fêz-se industrial
Nacionalista, tinha contudo colabora
Nasceu antes do
dores estrangeiros
tempo.

PRETEND
RETENDEMOS TRAÇAR, resumidamente,
o aspecto físico e os caracteres morais do nosso biografado, com
base em informações de pessoas que o conheceram e, também,
em trabalhos escritos a seu respeito.
Delmiro Gouveia era fisicamente forte, corpo cheio, nota
damente o tronco, mas bem proporcionado, com a estatura de
mais ou menos 1,75 metro, um tanto elevada, para o comum
dos nortistas. Tipo de homem bonito, másculo, moreno claro,
de cabelos e bigodes densos e bem cuidados, os quais se foram
tornando grisalhos em Alagoas, e a pele queimada pelo sol.
Daria "um bloco resplendente de energia o torso viril dêsse
Apolo tropical", na expressão de Plínio Cavalcanti. Físico
arrogante de saxônio tropical diz, ainda com a astúcia
-
-

92
mameluca de nossa raça. Simpático, atraente, dono de boa
palestra, ostentando uma dentadura alva e bem constituída. O
banqueiro Artur Pio dos Santos, seu contemporâneo no Recife,
embora com menos doze anos do que êle, relembrando-o, repe
te amiúde que "Delmiro era um conquistador de homens”, para
-refutar a idéia generalizada de que fosse mulherengo e de ins
tintos materialistas.

Nos seus áureos tempos do Recife, onde viveu até aos 40


anos, ficou conhecido como gentleman, sempre elegante, per
fumado, bem vestido. Suas roupas, quando não talhadas em
Londres, eram feitas pelos melhores alfaiates da época, pelo
Ferreira, vulgo Maniva, estabelecido na Rua Nova, ou por
Almeida Rabelo, no Rio de Janeiro. Em certo tempo usava,
quando estêve em moda, paletó de alpaca preta, com o res
tante branco, desde o chapéu de palheta até os sapatos, êstes
de bico quadrado; o colarinho muito alto, a seu modo e a seu
gôsto, daí o chamarem de "Delmiro Gouveia".
Na Pedra, andava de dólmã de linho bem talhado, com
flor numa das casas dos botões. Sempre limpo, bem asseado,
todo de branco, inclusive os sapatos. Ao morrer, foram encon
trados dezesseis pares, no seu quarto. Quotidianamente, no
trabalho, não tinha luxo no vestir. Porém, mesmo dentro do
simples e do rústico, como era o aspecto de sua moradia, que
ria limpeza, boas coisas e boas comidas.
Quando viajava, geralmente para os Estados vizinhos,
indo raramente à Capital Federal, escalava no Recife, hospe
dando-se no Parque Hotel, à rua do Hospício, onde havia
aposento reservado para êle, com um guarda-roupa completo,
De aparência nobre e imponente, era, ao mesmo tempo, sim
pático e cativante: enfim, um gentil-homem e um diploma
ta por índole".
Tinha uma natureza de epicurista e bon vivant, numa
alma simples e sensitiva. Adorava flôres, música, pássaros,
crianças. Coração bom, generoso e acolhedor, conturbado, às
vêzes, por tempestades violentas, por impulsos irrefreáveis de
cólera, que foram causa de profundas dissensões. Com efeito,
tornava-se por vêzes agressivo para quem o desconsiderasse,
tendo explosões de mau gênio quando alguém lhe contradi
tava as opiniões. Os desaforos, revidava-os à altura e resolvia-os
no peito. Caso típico foi a agressão a Rosa e Silva. Corajoso e

93
arrogante, a sua bravura pessoal causava admiração aos humil
des e pavor aos potentados. "Era o orgulho ancestral do môço
guarani, querendo dominar a tribo, consciente da fôrça olím
pica que chegara até êle, no sangue de seus avós", diz Plínio
Cavalcanti, que acrescenta: "Caboclo formidável, cuja vida
heróica e campeadora tem qualquer coisa de um Cid bárbaro”.
O seu contacto com o sertão agreste e semibárbaro tor
nou-o mais áspero e violento, "como um cacto ouriçado de
espinhos". Como desbravador de zona brava e selvagem, ao
mesmo tempo extensa, teve de aceitar, na sua indústria, gente
de todos os quadrantes do Nordeste, com os seus defeitos de
origem e de formação, precisando, pois, agir com pulso forte,
para afugentar os irrecuperáveis e propensos ao crime.
Vida paradoxal e contraditória! Não admitia imoralidade,
nem vícios. Rigoroso nisso até consigo mesmo, exigindo res
peito à moral e à ordem, na localidade que fundou. Apesar de
ser homem de sangue quente, como o de seus ancestrais, jamais
abusou de uma donzela, dentro do arame.
Tratava com energia, mas também com humanidade. Não
alimentava a capangagem ostensiva. Tinha apenas guardas,
para o auxiliarem na supervisão das tarefas da fábrica, pelos
quais mandava recados a seus lugares-tenentes, chamando-os
com o silvo de um apito que trazia sempre no bolso. Era dota
do de cérebro lúcido e progressista, grande capacidade diretiva
e larga visão de negócios. Descobriu e intensificou uma transa
ção desconhecida no Brasil a das peles de ovelhas, e, nota
-

damente, de caprinos, cujo habitat é o Nordeste árido e sêco 1

para proporcionar ao seu gênio inventivo recursos com que


fundou a indústria de linhas, feitas com matéria-prima regio
nal - o algodão seridó com as quais desbancou o similar
estrangeiro, da Machine Cotton, que se constituíra um pode
roso monopólio.
A impressão que, em criança, teve do gênio de Delmiro,
nunca se apagou de sua mente, declara o desembargador Mero
veu Mendonça, frisando: "Foi a personalidade mais impres
sionante que encontrei em minha já longa vida. Forte, tenaz,
dinâmico, não se deixou abater pela destruição de um patri
mônio que lhe custou anos de insano labor". Realmente, desde
a infância, com as próprias mãos, construiu no Recife aquêle
edifício incendiado e destruído criminosamente; depois dos

94
quarenta anos, tomava outro rumo, para nêle prosperar espan
tosamente.

Termina aquêle ilustre magistrado por chamá-lo idea


lizador e organizador. A sua obra se apresenta - diz Moacir
-

Sant'Ana como um dos mais belos resultados do esfôrço,


inteligência e tenacidade humanas. Inteligência sem supers
tições, sem tabus, sem cangaço, numa terra de místicos, de
facínoras, em cujas mãos iria cair morto. De invulgar argúcia,
possuía alto poder de assimilação e apreensão, com que supria
suas deficiências de instrução. Tipo acabado de autodidata!...
Com o traquejo do convívio social e comercial no Recife e
das viagens até para o estrangeiro, adquirira o lustre e jeito
de um civilizado.

A grandiosidade de sua obra deve ser referida em relação


ao meio e ao tempo em que viveu. Merecem citação as palavras
de Mauro Mota: "A Companhia Hidro-Elétrica do São Fran
cisco, com o seu aperfeiçoamento técnico, sua amplitude, suas
valorosas equipes e com os benefícios que distribui, significa
a continuidade do trabalho de Delmiro Gouveia, dirigida não
por um indivíduo, mas por uma nação; custeada não pelos
recursos pessoais de um fazendeiro e exportador de peles, mas
pelos investimentos do Govêrno e de uma sociedade de econo
mia mista. Impõe-se o confronto para medir-se a intrepidez do
começo".

"Uma das maiores expressões de homem que sabe querer


e fazer", disseram muitos. Chama-o self made man, em várias
passagens de sua vasta obra, o sociólogo Gilberto Freyre. Nêle
o homem e a terra formavam um binômio maravilhoso diz -

o acadêmico Josué Montello. Foi, sem dúvida, um super


homem ainda não devidamente avaliado, em torno do qual se
tem feito, às vêzes, controvérsia e confusão; outras, a campa
nha da ma-fé e do silêncio, denunciada por sua filha, dona
Maria Gouveia.

A sua vida exuberante fê-lo herói nacional! Nacionalista


sem demagogia. Patriota, sem a ortodoxia do xenófobo. Pois
tinha sócios estrangeiros, como os italianos Lionelo Iona e
Guido Ferrário. Contratou técnicos de vários países, inclusive o
conhecido Luigi Borella. O seu primeiro chofer, na Pedra,
veio da Alemanha.

95
Quando o seu filho, Noé, chegou aos EUA e foi visitar a
firma Rossbach, em Nova Iorque, encontrou um grande re
trato de Delmiro Gouveia pregado a uma parede, como sinal
de preito de admiração e amizade àquele brasileiro extraor
dinário que nasceu antes do tempo, na opinião do ricaço ame
ricano Jacob Rossbach.

96
Um dos Precursores do Serviço Social no Brasil

Pioneiro social antes das duas guerras


- Amparo ao trabalhador e à família
Regime de 8 horas de trabalho diário
Assistência médico-sanitária Água, es -

gôto, bombeiro, etc. Escolas para


crianças e para adultos Cursos de
aperfeiçoamento profissional para ho
Imens e de trabalhos manuais para mu
lheres Abastecimento e alimentação; a
grande feira semanal Tabela de pre
-

ços para evitar especuladores Dispen -

sa de impostos aos produtores Diver


sões como meio de educar o povo e me
lhorar a produção - O próprio Delmiro
comprou os instrumentos da música
Festas e baile de Ano-Bom - Amparo até
aos animais e pássaros Ações da Em
prêsa distribuídas aos colaboradores
Modo de evitar remessa de lucros.

D'ELMIRO GOUVEIA deu à sua obra


cunho de pioneirismo, até nos assuntos de assistência social,
obra que pode ser vista a distância em todos os seus contor
nos, agora, decorrido meio século, para ser devidamente in
terpretada a sua enorme e indiscutível significação. Com efei
to, após o mundo haver atravessado as duas grandes guerras,
dando largas passadas rumo às conquistas sociais, e ter o Brasil,
seguindo o ritmo apressado dessa marcha, implantado as leis
de amparo ao trabalhador e à família, é que podemos avaliar
o mérito de seu feito, sob êsse aspecto.

97
"Homem privado com espírito público" é a frase com que
Gilberto Fleyre classifica Delmiro, ao apreciar-lhe as primeiras
preocupações sociais demonstradas no Mercado do Dérbi. Ti
nha apenas 35 anos! Estávamos ainda no século passado, quan
do êle abrira aquêle estabelecimento para vender gêneros mais
baratos à população do Recife. Mais tarde, em Alagoas, a sua
preocupação tornou-se mais visível e atuante nesse particular,
desenvolvendo, no meio atrasado, intensa ação nos setores do
ensino, educação, higiene, alimentação, etc.
Na Pedra, Delmiro cuidou de abrir escolas, cuja super
visão pôs a cargo de bons professôres. A assistência mé
dico-sanitária estava aos cuidados de esculápios e odontólogos.
Para bem-estar do povo, foram introduzidos os serviços de água,
esgôto, lavanderia, bombeiro, ministrando-se-lhe ensinamentos
higiênicos e profiláticos. Homens, mulheres e meninos não
podiam andar imundos ou rotos, só se utilizando dos chafari
zes quando limpos e penteados.
Muitos de nossos homens públicos ignoram o lema de
Disraeli, segundo o qual o cuidado com a higiene do povo é
o seu primeiro dever, ao passo que o homem privado qu
êle era jamais o esqueceu. Tornou indispensável o banho diá
rio, o uso da escôva de dentes, da vassoura, do sabão e de antis
séticos. Os guardas multavam aquêles que fôssem apanhados
a praticar atos de incivilidade, como cuspir ou jogar papel
no chão, estar em casa com o chapéu na cabeça ou com o
peito desnudo, revertendo as multas em benefício da caixa
escolar.
Pedra chegou a ter oito escolas, sem falar nas de alfabe
tização de adultos, estas abertas à noite, a fim de não prejudi
car o trabalho. Havia cursos de aperfeiçoamento para os que
revelassem pendor para êste ou aquêle ofício ou arte, assim
como aulas de trabalhos manuais para as môças. O ensino era
prático e racional. Todos aprendiam logo a cantar o hino
nacional e tinham que decorar regras do bom-tom.
O empregado pagava 2$000 por mês para ter direito a
escola, médico, dentista, remédio e até diversões. Chegou a
haver três facultativos a serviço da Emprêsa. Certa vez, um
dos médicos veio dizer a Delmiro que não tinha receitado o
melhor remédio a um doente porque era muito caro, como
que sondando se podia fazê-lo doutra feita. Isso causou pro
98
funda revolta em Delmiro, que começou por indagar: - "Dou
tor, eu já perguntei alguma vez quanto custava o remédio
para operário meu?" - O facultativo molestou-se, ficando abor
recido com o tom áspero e recriminativo como foi tratado pelo
chefe, que, depois de ligeira troca de palavras, mandou dar-lhe
as contas e levá-lo para o Recife.

Na fábrica foi instituído o regime de 8 horas diárias de


trabalho, com descanso no domingo. Nesse dia, às 11 horas,
suspendia-se uma bandeira, anunciando o início da feira. An
tes dessa hora, era proibido vender até uma caixa de fósforo.
Havia tabela de preço organizada, a fim de evitar manobras
especulativas em detrimento dos consumidores. Se os feirantes
quisessem vender por mais, sofriam a concorrência dos arma
zéns da Emprêsa, que ofereciam os produtos aos preços tabela
dos. Os operários e donas de casa só se sujeitariam à majoração,
se o quisessem; os vendeiros, por sua vez, não eram punidos
pela inobservância das cotações. Mas a Emprêsa intervinha,
de pronto, para não permitir a alta, oferecendo gêneros de
seus depósitos pelos preços da tabela. Esta poderia ser altera
da, mas só na outra semana, em caso de justificar-se a
majoração.
No setor de alimentação e abastecimento, as providências
iam sendo tomadas com o crescimento da população, abrin
do-se açougue, padaria, mercearias e lojas. Em 1915 inaugu
ram-se grandes estabelecimentos e funda-se aquela famosa feira,
mediante certas condições contratadas com a Prefeitura de
Agua Branca, sede do município, junto à qual a entidade fa
bril arrematou os impostos devidos, para isentar os feirantes e
produtores, do pagamento do tributo direto.
Nada faltava no comércio local, desde os artigos finos aos
básicos de alimentação. Conta-se a história seguinte: Delmiro
tinha induzido um comerciante a importar comestíveis e be
bidas finas, tais como passas, figos, castanhas, nozes, frutas
e vinhos europeus. Ora, os matutos não estavam acostumados
a tal luxo, e o resultado foi que essa mercadoria ficou enca
lhada nas prateleiras. O comerciante queixou-se do iminente
prejuízo, em conversa com Delmiro, que, logo depois, às escon
didas e por interposta pessoa, mandou comprar todo o esto
que, recolhendo-o à sua despensa para o consumo próprio.
99
Com isso êle animava o comerciante a fazer novas encomendas

dêsses artigos, a fim de não faltarem na localidade.


Com a parte social-recreativa o pioneiro se preocupava
tanto que foi êle mesmo quem escolheu e comprou, no Rio,
os instrumentos para a Euterpe local, tendo contratado maes
tro de fora para regê-la. A banda de música e o rinque de pa
tinação foram recebidos pelos operários sob demonstração de
contentamento. Lá havia, ainda, cinema, carrossel, salão de
festas, onde êles se distraíam à larga.
Essa preocupação diversional mostra o espírito adiantado
de Delmiro, que via nisso um fator importante para educa
ção do trabalhador, bem como para melhoria de produção
no trabalho. Daí seu biógrafo-poeta haver dito: . "Os inves
timentos se sucedem (ali) sob o comando de um condutor de
homens. Ele restitui o que ganha. Guarda para si o arrôjo de
ganhar mais para também restituir em obras e serviços de
utilidade pública".
As festas domingueiras eram animadas pela Filarmônica,
cujos acordes alegravam aquêles ermos em que, no decorrer
dos dias úteis, só se ouvia o rumor do trabalho marcado pelos
apitos da fábrica. Era ansiosamente esperada a grande festa
de Ano-Bom, abrilhantada com a presença de Delmiro, a val
sar, entre os pares que dançavam, em ambiente sadio e de
respeito. Só participava das danças quem estivesse decentemen
te trajado, de gravata e com bons modos.
Delmiro dava até amparo aos animais e às aves, que lá
andavam sôltas, sendo proibido prendê-las ou matá-las. Ainda
é o poeta quem se refere a êsse estranho amparo, assim:
"Como São Francisco de Assis falava aos pássaros e Santo
Antônio aos peixes, êle fala aos bichos que haviam transporta
do, nas pranchas com rodas, os equipamentos da primeira usi
na hidrelétrica. Compõe uma cena patética quando grita aos
bois e burros: "Estão todos aposentados. São também meus
-

operários e meus irmãos!"


Lembremos ainda ter êle mandado destinar, a seus bons
auxiliares, ações da Cia. Agro-Fabril, quando de sua fundação.
E para evitar remessa de lucros coisa em que tanto se fala
hoje, sem se encontrar uma solução arranjava jeito de per
-

suadir seu sócio italiano, Lionelo Iona, a aplicá-los no Brasil,


obrigando-o a subscrever mais ações de aumento de capital
100
das organizações que fundara e das outras que estava fundando,
quando morreu.
Tudo isso mostra como o nosso biografado foi um espírito
evoluído e progressista, um dos precursores, sem dúvida algu
ma, da questão sócio-econômica em nossa terra, com instituir
na sua indústria a primeira forma nítida e concreta de ação e
justiça social que tivemos, pelo menos naquela região atra
sada e ainda hoje subdesenvolvida.
1

101
L

Seus Slogans, Frases, Hábitos e Sestros

Fibra, resignação e tenacidade do serta


nejo cearense Devia-se dizer time is
-

more then money "Quem tem água


não morre pagão" "Quem manufatura
nunca está fazendo bem feito demais"
O coronel do sertão vale pelo mal que
possa fazer Fingia-se de ingênuo e
-

ignorante; sabia outras línguas, mas des


pistava e tinha letra ruim Não ligava
a juízos errôneos e pouco lisonjeiros
sôbre seus dotes intelectuais Gostava
de armar suspense e causar efeito, com
atitudes estudadas O relógio de pa
rede não arrolado; o trole pesado sobre
a frágil ponte; o emissário da Machine
Cotton cozinhado em água fria Ses
tros e hábitos pessoais.

Сомо TODOS OS HOMENS de personali


dade forte e marcante, Delmiro Gouveia tinha ditos e modos
peculiares. Aquêle self made man - designação feliz de Plínio
-

Cavalcanti, repetida por outros, inclusive Gilberto Freyre


desde menino, órfão de pai com menos de 5 anos, teve que
ganhar a vida na cidade-grande, lutando contra as adversida
des. Sózinho, enfrentou-as e venceu-as, abrindo picadas e ca
minhos, com as próprias mãos, por terreno sáfaro, pedregoso,
difícil. Herdara a fibra e resignação do sertanejo, que perde
tudo, inesperadamente, numa sêca, e ainda diz, na sua tão
conhecida filosofia isso não vale nada, desgraça pouca é
-

tiquim e só se conta de arroba para cima.


102
Por duas vezes, perdera a fortuna: a 1ª, por fatores econô
mico-financeiros, estranhos e de ordem geral; e a 2ª, vítima
de inveja, vingança e perseguição da politicagem. Nunca esmo.
receu, porém, diante do malôgro, do prejuízo, da perda total,
recomeçando a luta com o mesmo ânimo, com a tenacidade e
resignação que lhe eram peculiares. Certa vez, conversava com
o Cel. Ulisses Luna, quando êste se mostrou admirado de se
haver restabelecido financeiramente tão depressa, em Alagoas,
e Delmiro respondeu, simplesmente, que o inglês é burro por
adotar o slogan time is money, dizendo que o correto é time
is more then money. "Porque eu fui três vêzes rico, depois
de haver perdido tudo, de modo que tempo é muito mais que
dinheiro..."

Quando dera início à instalação do parque industrial na


Pedra, vira logo a necessidade de puxar água encanada do
São Francisco, distante dali 24 km. Dia e noite, ouvia-se o ba
ter das foices e picaretas, varando a caatinga... Dentre as
dificuldades a vencer, o pessimismo até dos engenheiros. A
torrente do rio, num braço escarpado, impedia a construção
dos viadutos e suportes para a colocação dos canos condutores
do precioso líquido.
A tenacidade e arrôjo do "fazedor de oásis" como ficou
-

conhecido o pioneiro superou a descrença e a técnica inti


midada. Em poucos meses, jorrava no arraial, trazida por
um cano de 8 polegadas, a seiva bendita que iria transformar
aquêle deserto. O acontecimento causou inusitada alegria ao
povo, no meio do qual Delmiro exultava aos gritos: "Quem
-

tem água só morre pagão se quiser!" Este slogan tem sido re


petido com outras palavras: Quem tem água não morre
-

pagão ou foi uma góta d'água que tirei do Oceano.


Delmiro queria que sua indústria de linha se aperfeiçoasse
mais e mais, desejando que todos trabalhassem imbuídos da
perfeição e se esmerassem em apresentar, cada dia, um produto
capaz de competir, vantajosamente, com o similar estrangeiro.
Para isso, adotou a seguinte máxima que era afixada em le
treiros nas paredes da Fábrica: "Jamais se poderá dizer que

o produto é irrepreensível ou livre de defeito. Quem manufa


tura nunca está fazendo bem feito demais. Enfim, todos os
dias, deve-se cuidar do melhoramento do produto".

103
Como desejava que seus operários se alfabetizassem, pro
curava incentivá-los no sentido de freqüentarem as aulas no.
turnas. Assim, usava uma espécie de refrão aditado ao cumpri
mento com que respondia ao dos mais idosos: "Cabra velho,
já sabe ler?" ou então:
-

"Cabra velho, já está na escola?"


-

Quando se foi tornando conhecido nos sertões, generali


zou-se a alcunha de "Coronel" que lhe era dada em razão,
sobretudo, de ser poderoso e possuir guardas e serviçais. Ana
lisando o significado dessa patente dada aos mandões e chefes
sertanejos que se fazem respeitar pelo número e ferocidade de
seus capangas, êle proclamava com tristeza esta sentença:
"Aqui, o valor do homem está na relação do mal que possa
fazer e não do bem que possa proporcionar".
Homem inteligentíssimo, com largos conhecimentos apren
didos no livro da vida, a ponto de discorrer com proficiência
sôbre assuntos de natureza vária, Delmiro fingia-se, todavia,
de ignorante, ingênuo ou bôbo, para melhor poder passar.
Compreendia o inglês, um pouco de francês e chegou a falar
regularmente o italiano; isso não obstante, agia daquela forma,
simulando não perceber o que se falava a seu respeito, em
tais idiomas.

Damos, como exemplo, o episódio da missão americana,


quando Mr. Moore teria dito em particular a expressão no

fool sôbre Delmiro, que a entendeu mas ficou calado.


1


depois revelou o fato a Adolfo Santos que o narra, dizendo que
os dois vocábulos muito o envaideceram, pondo-o de sobrea
viso. Assim conclui o informante o caboclo do Sul mostrou
-

ao civilizado do Norte que não era tolo, realmente, nem se


deixaria seduzir pelos dólares, passando a discutir os negócios
com altivez, de igual para igual.
Outro exemplo está no caso da conversa que teve Ferrário
com um estrangeiro, que teria feito referências desairosas
ofensivas a êle, ali presente, conversa que se acalorou de tal
forma que seu sócio italiano levantou a voz e expulsou o outro
de casa. Delmiro fêz-se desentendido e chegou a indagar o que
tinha havido.

Duma feita, escrevia em presença do Cel. Ulisses Luna,


que o censurou por ter letra ruim, quase ilegível, ao que res
pondeu: "eu escrevo assim, para que ninguém descubra
meus erros de português". - Ora, sabe-se não ser esta a razão,

104
pois êle possuía instrução acima da média e apreciáveis conhe
cimentos gerais, tendo assinado artigos de jornais, os quais
lia assiduamente.

Essa falsa modéstia, êsse papel de bôbo ou ignorante de


sentendido atitude paradoxal e contrastante com o seu todo
foi que levou muita gente a pensar que Delmiro era um
pavão de pés feios, um nouveau riche qualquer, um coronel
que começara como “condutor de trens”. É que êle tinha cons
ciência de seu valor e de suas deficiências, não se sentindo
ofendido em sua vaidade com certos juízos errôneos e menos
lisonjeiros. Enfim, era bastante sabido para ver quando devia
passar por tolo..

Outrossim, gostava de armar "suspense", provocar admi


ração e causar efeito com atitudes estudadas, em certas oca
siões. Podemos citar, por exemplo, o caso que mencionamos
quando foi receber os bens e haveres da firma Keen Sutterly
& Co. Tendo exigido balanço, disse que êste estava errado,
persistindo nisso por muito tempo até que, afinal, apontou
para um relógio de parede que deixara de ser arrolado.
É de lembrar o fato ocorrido quando foi transportada, por
cima do braço do rio, a grande turbina. A frágil ponte de ma
deira, com trilhos apoiados em dormentes mal seguros, amea
çava cair - e a turbina se perderia entre os vagalhões da cor
renteza. O engenheiro Borella, temeroso, mandou chamar Del
miro, que veio, às pressas. Examinou rápido a situação e, re
solutamente, deu ordem para prosseguirem com o trole, que
dançava na ponte, perigosamente, com a preciosa e pesadíssima
carga. Delmiro assistiu com o engenheiro, e sob os olhares de
expectativa do operariado, à passagem do trole até chegar ao
outro lado, sem nada acontecer. E, sem dizer uma palavra
sequer, voltou com a mesma pressa, deixando aos operários,
que o admiravam nesses lances de ousadia, mais um exemplo
de resolução e coragem com que vencia a técnica e o mêdo do
engenheiro...
Eis outro: A Machine Cotton mandou um emissário enta

bular negociações com a fábrica de linha. Delmiro hospedou-o,


mostrando-lhe tudo. O homem fêz cálculos e apresentou os
têrmos da vantajosa proposta. Delmiro ouviu-o solene e aten

105
tamente -
e pediu prazo, porque havia detalhes e pontos a
estudar. Longa espera, e o intermediário mostrou-se impaciente
pela resposta. Delmiro disse, ainda, que negócio de tal porte
precisava ser bem examinado. Nova espera. como o homem
insistisse, Delmiro respondeu mais ou menos com estas pala
vras: "Essa mesma proposta da Machine, eu a faço para
comprar a fábrica e negócios dos seus patrões aqui no Brasil.
O Sr. pode dizer-lhes que, em vez de vender, eu compro a fá
brica dêles, nas mesmas condições...'
""

Quando preocupado, o pioneiro costumava sentar-se e cru


zar as mãos, movendo os polegares em sentido rotativo. Para
posar perante as câmaras fotográficas, ou quando, nas reuniões,
era alvo de olhares da multidão, assumia uma atitude circuns
pecta, colocando a mão sob o queixo. Tinha, ainda, o hábito
engraçado, e muito seu, de coçar o ouvido, depois do banho,
futucando-o com o dedo, frenèticamente.
Adorava flôres e rosas, gostando de andar com uma no
peito, sempre limpo e bem perfumado, sobretudo de loções.
E era, como muito se tem dito, um maníaco pelo branco
roupas, camisas, sapatos, até o chapéu que era ou de palhinha
ou o chamado "Panamá". Chegou a ser árbitro da elegância,
ditando modas no Recife. Existe até o episódio ocorrido numa
récita do Teatro Municipal, do Rio, a que êle compareceu
impecàvelmente de branco, contrastando com o traje a rigor
usado pela totalidade dos homens, o que foi motivo de cen
suras, ao que respondeu: "Ora, nós estamos nos trópicos e
-

não podemos andar de roupas de lã, escuras e quentes”,

106
"Pater Familias" Educador
E Exigente Mestre de Civilidade

Os processos engenhosos As escolas,

para meninos e adultos Os prêmios e


estímulos Carinho e cuidados dispen
sados à alfabetização Os regulamen
tos e regras do bom-tom O cuspo, a

roupa limpa, o cabelo penteado, o cha


péu na cabeça, a camisa fora da calça
Multas e castigos: os casos em que elas
incidiam Não era permitido namôro
apertado, e em lugar escuso - A prote
ção dada à mulher operária: noivas e
gestantes.

J₁Á SE TEM DITO, repetidamente, a par


tir da observação de Plínio Cavalcanti, aquêle que primeiro
ressaltou a obra extraordinária de Delmiro Gouveia, que êste
fôra, ao mesmo tempo, "pater familias" e mestre-escola. A
sua missão patriarcal e educadora, êle não a esquece em mo
mento algum; ao contrário, a põe sempre em prática, ao lado
da função de chefe de emprêsa comercial ou de diretor de
indústria.

A sua notável obra de pioneiro não foi sòmente a que tanto


se apregoa, acentua, por outro lado, o Des. Meroveu Men
donça. Foi também o trabalho de civilização do operariado da
Pedra, recrutado das populações semibárbaras das caatingas,
transformando sertanejos rudes e ignorantes, descalços e mal
trapilhos, nômades ou habitantes de taperas, em operários efi

107
cientes, nutridos, limpos, ordeiros, moradores em casas higiêni
cas, às quais logo se adaptaram.
Delmiro conseguia tudo daquela gente pelos processos
mais engenhosos e persuasivos. Costumava sair, de manhã, em
"incertas" pelas casas dos operários, ensinando uns, admoestan
do outros sobre hábitos de higiene doméstica. Nenhum indus
trial brasileiro teve aquêle dom de educar o trabalhador, de
obter de criaturas rústicas tanta coisa e tão depressa. Os seus
processos eram os mesmos, ao alcance de todo mundo. O êxito
que êle obtinha com sua aplicação é que constitui verdadeiro
milagre, uma conquista sem precedentes e sem continuador
que cresce de importância aos olhos de quem hoje examina
sua obra dentro do meio, do espaço e do tempo em que foi
realizada.

Quando êle foi assassinado, a vila da Pedra, com 2.500


trabalhadores numa população global de cêrca de 6.000 almas,
possuía 8 escolas, além das profissionais, tôdas custeadas pela
organização sob seu comando. As crianças, a quem dedicava
particular carinho, filhas de operários, eram obrigadas a fre
qüentar a aula. As que obtivessem boas notas no estudo e no
comportamento, durante a semana, recebiam, como prêmio,
ingresso grátis para o cinema e o carrossel.
As escolas funcionavam durante o dia para os meninos, e,
à noite, para os adultos. O primeiro cuidado do professor era
chamar a atenção do aluno para não riscar as paredes, não
roer as unhas, não cuspir, respeitar os mais velhos, etc. Todos
aprendiam logo o Hino Nacional. Era comovente, conforme
evoca Plinio Cavalcanti, ouvir daquelas bôcas juvenis, ecoando
pelas quebradas, “as estrofes dêsse salmo belíssimo que o pe
queno canta com orgulho nativo de sua raça, afeita a todos os
martírios, desde a fome ao flagelo das sêcas inclementes".
Delmiro Gouveia tinha preocupação constante com a ins
trução de sua gente. Queria que todos, não apenas as crianças,
mas também os velhos, se alfabetizassem. Quando os rapazes
tinham aprendido a garatujar frases, estimulava-os, permitin
do-lhes dirigirem cartas e declarações às operárias e eleitas de
seu coração.
Segundo o jornalista de início citado, pretendeu êle, em
certa ocasião, ir até São Paulo, cuja Escola Normal era um
modêlo, donde saíam os melhores pedagogos, sòmente com o

108
fim de contratar alguns. "O sr. não avalia dizia-lhe Delmiro,
mais tarde - o carrossel e o rinque de patinação têm feito
prodígios. A meninada da Pedra é capaz de tôdas as travessuras,
mas não esquece a lição porque eu dou semanalmente entrada
grátis ao que tirar boas notas".
As casinhas da vila eram bem cuidadas e asseadas. Ele
recomendava aos seus ocupantes que zelassem pela latrina, pois
era o prolongamento de seus intestinos. Aboliu o mau hábito
de cuspir, ensinando que a saliva facilita a digestão e mandou
colocar nas paredes impressos ou placas, proibindo êsse costume
tão comum entre gente da roça. Implicava com as velhas que
pitavam em cachimbos de barro, quebrando-os. E chegou até
a idealizar um tipo de alpercatas destinadas aos homens que
mourejavam no campo, somente para que não continuassem
a andar de pés descalços, sob a alegação de que os tinham
achatados.

Tornou obrigatório o banho diário, propagou o uso do


sabão e o da escôva de dente; proibiu a cachaça nas vendas, a
faca de ponta, o jôgo de bicho, o pé no chão, o cabelo despen
teado, desaparecendo daquele meio não sòmente o crime e o
roubo, mas também, a sarna, o bicho de pé, percevejos e pio
lhos. Ainda em conseqüência, os jogadores contumazes e os
bêbedos inveterados, assim como os propensos ao crime e à
ociosidade, viam-se forçados a evadir-se do ambiente, onde não
podiam dar expansão a seus vícios e taras.
os guardas estavam sempre alerta para repreender os fal
tosos ou para multar os reincidentes na prática de atos consi
derados de incivilidade. Não era permitido cuspir, jogar papel
no chão, andar com camisa fora da calça, etc.; nem tinha
acesso à lavanderia mecânica e chafarizes públicos quem não
estivesse limpo. Dentre os casos de multa mais originais, é
sempre citado aquêle que pagava o dono da casa em cujo
recinto fosse surpreendido um indivíduo sentado com o cha
péu na cabeça ou com o torso desnudo.
Outro, curioso, é o do rapaz da fábrica que havia batido
numa mocinha, sua irmã. Tendo Delmiro tomado conheci
mento da ocorrência, concluiu, em inquirição rápida, que o jo
vem fôra grosseiro e desarrazoado. Ali mesmo, dentro da fábri
ca, após o trabalho do dia, com o pessoal atento, formando um
círculo, Delmiro proferiu a sentença: a operária castigaria o
109
irmão com 6 bôlos e... 12 beijos. Alguns riem, outros têm
lágrimas nos olhos, em volta do chefe, cuja figura austera e
imperturbável dava à cena indizível gravidade que os presentes
devem ter aproveitado como lição de sabedoria salomônica...
Delmiro mandava vigiar os casos de namoros apertados,
de colóquios em lugares escusos, de desrespeito à honra das
donzelas, obrigando o elemento culpado a contrair matrimônio
com a môça difamada. As noivas recebiam da emprêsa empre
gadora enxoval de casamento. As mulheres gestantes tinham
direito a três meses de descanso no trabalho, antes e depois da
delivrance.

Pedra, com seu ambiente de fábrica, numa vila acanhada


e pequena, perdida nos sertões longínquos, era êsse primor de
ordem e harmonia social, de organização e limpeza. Os traba
lhadores, ali, há meio século atrás, quando ainda nem se pen
sava em questões sociais nem se dizia que elas podiam ser
resolvidas na polícia, viviam felizes, sem problemas e sem re
calques, ostentando saúde na alma e no corpo. E o seu chefe
e condutor era aquêle pater familias educador e exigente
mestre de civilidade...

110
Bom-Gôsto e Confôrto adaptado
ao meio, Limpeza e Simplicidade

O palacete de Apipucos, no Recife, rica


mente mobilado e ajardinado; suas fa
mosas reuniões e jantares Como era,
na Pedra, a casa-grande, simples e sem
fôrro, porém confortável Limpeza, as
-

seio, brancura, em lugar do luxo apara


toso Quartos de hóspedes e de banho,
bem instalados Jardim na área gran
de Cravos, violetas e flôres em profu
-

são Colhidas, tôdas as manhãs, en


chiam um lençol O cheiro ativo do
roseiral e o canto da passarada Να -

mesa, boa comida; na despensa, vinhos


e bebidas finas Do branco, Delmiro
fazia verdadeira religião Prêmios às
operárias elegantes e bem vestidas, com
simplicidade O chalé tinha também
plantas e flôres, assim como trepadeiras
nos caramanchões.

D'ESDE OS ÁUREOS TEMPOs do Recife,


Delmiro Gouveia tornou-se conhecido como apreciador do belo,
do confôrto e bom-gôsto. O seu palacete de Apipucos era ates
tado disso, centro de reuniões e tertúlias rendez-vous des
amis onde se juntavam pianistas, pintores, músicos, decla
-

madores, literatos da terra e em trânsito, assim como cantores


e estrêlas das companhias que faziam temporada no Teatro
Santa Isabel.

Ficaram famosas as suas festas, ali, freqüentadas pelo escol


social e artístico de Pernambuco. O ponto alto eram os janta
res em que não se sabia o que mais admirar: se a distinção e

111
fidalguia dos anfitriões, se a excelência das iguarias e bebidas.
Vivia-se o período do último qüinqüênio do século xix, antes
e depois da excursão que Delmiro fizera pela Europa, acom
panhado de sua meiga e distinta espôsa.
Atingira, então, o fastígio de sua carreira no comércio e
sociedade recifenses. Tinha prazer de alardear prestígio no seio
da classe e destaque nas altas rodas, com a ostentação de con
fôrto, riqueza e mesmo luxo. Nos grandes saraus, é lembrado
vestido de fraque, colarinho alto e gravata branca. Na quadra
de verão, andava todo de branco, às vêzes com o paletó de
alpaca prêto. Sempre o homem elegante e fino, o "causeur"
brilhante em dia com as coisas, a estadear na imagem de
-

Mauro Mota - "a sua bela figura humana, com a classe e as


boas maneiras de um lorde sertanejo".
O solar de Apipucos, adquirido por Delmiro, servira antes
de residência para o gerente da filial do British Bank. O seu
gôsto apurado e eclético, mais do que arquitetônico, orientou
a remodelação dêsse palacete, mandando vir mármore de
Carrara, móveis de jacarandá, tapeçaria e lustres caros. Logo
à entrada, sôbre o arco do portão, via-se o nome “Vila Anun
ciada" feito em letras de bronze, singelas. A aléia de palmei
ras imperiais vinha até à sua frente, pelo jardim bem cuidado,
onde se destacavam as lindas magnólias, entre flôres variega
das, notadamente as vermelhas, que formavam renques con
trastantes com o roxo das orquídeas.
Era uma vivenda vasta, opulenta, espaçosa. Situada no
largo de Apipucos, nº 92, foi adquirida em 1958 pelo Ministé
rio da Educação, servindo atualmente de sede do Centro Regio
nal de Pesquisas Educacionais. Fôra a moradia de Delmiro, até
a época em que adquiriu os terrenos do Dérbi, para edificar o
mercado e, nas proximidades, sua nova residência, um dos pri
meiros palacetes levantados naquele bairro residencial.

Na Pedra, o Coronel Delmiro era o mesmo homem fino


dos salões e das rodas elegantes do Recife da belle époque,
embora procurasse suprir os requintes do luxo e os aparatos
da grandiosidade com a limpeza, o asseio, a bracura e outros
requisitos de conforto e comodidade adaptados à rusticidade
112
do ambiente daquele lugarejo perdido nos sertões rudes, áspe
ros e longínquos do Nordeste.
A casa-velha foi logo substituída pela conhecida casa-gran
de, que, no relato de Adolfo Santos, era clara, arejada e de
alpendre. Ao lado esquerdo, formando ângulo reto com o cor
po da casa, os espaçosos quartos de banho servidos de grande
banheira esmaltada, lavatório e sanitário. Havia até banho
turco instalado num dos quartos.
No prolongamento das dependências, uma linha de quar
tos para os hóspedes e para os empregados, os quais "formavam
com o oitão da residência área descoberta, tendo a fechá-la
no fundo o banheiro, seguido do quarto de queijo e a cocheira
muito asseada". Por detrás desta, ficava o grande curral, com
vacas das raças turina e zebu, entre as quais se salientava, impo
nente, o cupim do touro “Patrão".
Na área grande e descoberta, era o jardim, cercado de
baixos toros de madeira e arame farpado, entregue aos cuida
dos de Ezequiel e oferecendo à vista deslumbrada o espetáculo
da profusão de flôres, na maioria rosas brancas e as violetas
da predileção de Delmiro. De manhãzinha, aquêle jardineiro,
ajudado por outros homens, as regava, apanhando flôres lindas
e variadas cravos, buganvílias, violetas, etc.
-

expostas num
-

lençol aberto no terraço, a espalhar um cheiro ativo e de onde


se tiravam buquês para o adôrno da casa. Ao passar ali, Delmi
ro tirava uma ou outra, para colocar no peito, numa das casas
dos botões do dólmã.

Conta Plínio Cavalcanti que sabia existir bom hotel na


localidade, porém tivera a honra de ser hospedado num daque
les quartos da casa, claro e amplo, cujas janelas abriam para
o terraço e roseiral. E evoca o seu primeiro dia ali passado,
com "a linda manhã impregnada do cheiro das rosas e do canto
dos passarinhos a correr casa a dentro”, tendo a impressão de
se achar num aposento caro, tal o conforto e bem-estar. Mag
nífico apartamento, bem instalado, com banho, donde saiu
para o café gordo e, depois, a visita à vila da Pedra.
Desde logo, viu que a limpeza era observada religiosa
mente. "O próprio vestuário do chefe, branco como a cal dos
edifícios, era um exemplo..." Delmiro costumava vestir, então,
dólmã de linho feito no Pará, segundo modêlo deixado pelos
inglêses (pág. 682, de "Ordem e Progresso" - II tomo, de Gil
113
berto Freyre). Da brancura e da limpeza fazia verdadeira reli
gião, quando industrial em Alagoas. Sapatos especiais, inclusive
de lona, mandados vir da Inglaterra, assim como as camisas
de linho, encomendadas às dúzias.
Não se pense que essa vivenda tinha o fausto e o luxo dos
palacetes de Botafogo. "Era antes a simplicidade elegante e
sadia da construção inglêsa adaptada ao clima dos trópicos.
Nada de estofos e reposteiros caros; apenas o necessário"
relata Plínio Cavalcanti, explicando: "O senso prático orna
-

va sua sala de visitas com animais empalhados ou suas peles,


e panóplias de armas. Em cima do piano, uma onça dava o
cachet sertanejo àquela vivenda senhoril".
“Compreendia-se a sua intenção — emenda o Des. Meroveu
Mendonça, que também lá estêve de não desfigurar o aspec
to rústico e característico da região e talvez a de provar, como
Jacinto de "A Cidade e as Serras", que, numa propriedade ser
taneja sem luxo, pode-se ter mais confôrto do que em uma
luxuosa residência de Paris". A casa era simples, sem fôrro,
embora ampla, bem iluminada e rigorosamente limpa; o seu
mobiliário, comum.

Assim, andava de branco e sempre limpo, cercando-se de


conforto em sua casa da Pedra, onde a comida era farta e boa.
Na despensa conservas, doces, vitualhas, temperos, o sal
-

"Morton", bebidas como os vinhos "Bordeaux" e as champa


nhas "Veuve Clicot" e "Cordon Rouge". Procurava, pois, levar
todo o bem-estar possível àquele meio rústico e atrasado, mas
limpo e branco, de que eram símbolo suas vestes, sua moradia,
seus modos.
E fazia questão de estender êsses hábitos ao modus vivendi
dos demais moradores e operários da localidade. Como incen
tivo à prática dos bons costumes de limpeza e civilidade, insti
tuiu concurso com prêmio a ser conferido, mensalmente, às
operárias que se apresentassem nas festas com vestido mais
simples e ao mesmo tempo elegante. O que era difícil era esco
lher o vestido dentro da elegância, aliada à simplicidade e
beleza que eram requisitos indispensáveis à distribuição do
prêmio.
Conta-se o seguinte episódio que, se não verdadeiro, serve
pelo menos para refletir a sua maneira pessoal de procurar
adaptar a indumentária ao nosso clima quente. Teria ido a
114
uma récita no Teatro Municipal, do Rio, impecávelmente de
branco, contrastando com a totalidade da assistência, o que
foi motivo de comentário até pelos jornais da época.
Nos últimos anos de vida na Pedra, Delmiro trocou a
dormida na casa-grande pelo chalé, mandado construir num
alto próximo à estação e à margem da ferrovia. Era um pré
dio pequeno, mas arejado, limpo e poético, com 2 janelas na
fachada e varandas laterais em prosseguimento às biqueiras,
tendo a cumeeira ao centro, longitudinalmente. Havia plantas
e flores em derredor, trepadeiras nos caramanchões, bem como,
espalhados, diversos vasos brancos com roseiras.

115
Talento, Perspicácia, Patriotismo,
Cultura e Conhecimento de Línguas

Confronto com Mauá Não se sabe


Del
como ambos aprenderam a ler
miro aparentava ser bastante culto
Autodidata, bom conversador e observa
dor; falava outras linguas As viagens,
inclusive ao Exterior, lhe desenvolveram
os conhecimentos e despertaram idéias
O primeiro automóvel no interior do
Nordeste Mauá traz da Inglaterra a
fundição da Ponte da Areia; Delmiro, a
fábrica de linhas da Pedra Aquêle
inaugura as primeiras estradas de ferro;
êste, as de rodagem. - Ambos sofrem re
vezes, perseguições, invejas São os sol
-

dados esquecidos da Pátria.

Q UEREMOS ABRIR êste capítulo, fazen


do um confronto entre Delmiro e Mauá. Com efeito, quem
se detém a observar os fatos que marcaram os destinos dêstes
insignes brasileiros, um do Norte e outro do Sul, verifica mui
tos pontos semelhantes e em comum, não obstante as diferen
ciações determinadas por influências não apenas do meio mas,
também, do tempo em que viveram.
Não queremos aludir às facetas da personalidade de Mauá
como estadista, banqueiro, financista, homem de sociedade, li
gado à Côrte, rico e poderoso durante muitos anos de sua longa
existência; mas, sim, ao nacionalista fervoroso, pioneiro de
notáveis empreendimentos, sempre preocupado com a nossa
116
emancipação econômica, incentivador de múltiplas atividades
vitais da indústria e comércio do País. Enfim, ao "homem arro
jado, teimoso, infatigável, com alma de patriota", de que nos
fala seu lúcido e apaixonado biógrafo, Alberto de Faria.
Não é novidade, nem desarrazoado, o que pretendemos.
Já disse de Delmiro aquêle que melhor e mais entusiàsticamen
te o definiu Plínio Cavalcanti que a sua individualidade
pode ser comparada à do grande Mauá, se bem que tenham
agido em esferas díspares. Do confronto acrescenta Adolfo
Santos deve sair com maior refulgência de glória o cearense
-

plebeu e audaz do que o gaúcho nobiliárquico e poderoso; um


viveu e lutou em ambiente estreito que só êle pôde alargar a
golpes de encarniçado esfôrço; o outro, na Metrópole, teve as
facilidades inerentes ao meio.

Aquêle menino gaúcho, chamado Irineu, aos cinco anos


ficou órfão de pai (êste assassinado, de noite, numa barraca
de campanha), razão por que teve tão pequeno que deixar o
torrão natal em busca de melhor sorte. Delmiro Gouveia não

tinha ainda completado aquela idade quando foi morto o pai,


também em circunstâncias trágicas, vindo o menino cearense,
na companhia da mãe, ganhar a vida no Recife.
Em seu livro refere Alberto de Faria, às págs. 105, a preo
cupação que teve em desvendar "o mistério que envolve a for
mação mental de Mauá", porquanto, conclui à pág 68, "como
aprendeu a ler não se sabe exatamente”. O mesmo se poderá
dizer de Delmiro, repetindo as palavras do Des. Meroveu Men
donça: "Tendo necessidade de trabalhar desde menino, não
pôde adquirir uma maior instrução. Mas o seu talento, pers
picácia e trato com pessoas ilustres supriram-lhe as deficiências.
Aparentava, mesmo, ser um homem bastante culto".
Delmiro Gouveia entendia um pouco de francês, chegou a
"arranhar” razoávelmente o italiano e mui especialmente o
inglês. Esta língua, que começou a aprender de ouvido no em
prêgo da Machambomba, teve de ser usada, mais tarde, nas
suas relações com estrangeiros que atuavam na praça do Recife,
sobretudo com o Sr. John Sanford, gerente do escritório comer
cial da emprêsa Keen Sutterly & Co., onde êle ingressou para
se tornar o Rei das Peles.

117
Logo descobriu a conveniência de adotá-la no exercício
de suas funções e realização de seus negócios, assim como acon
tecera com Mauá, que teria enxergado, desde cedo, a vantagem
que lhe adviria em falar tal idioma, ao ser tomado como cai
xeiro do inglês Ricardo Carruthers, de quem se tornaria ami
go e sócio.
A expressão de que Mauá "conquistara o mundo pela con
fiança e pela amizade de seus comandados" (pág. 62, ib.), com
maior propriedade se aplica a Delmiro. Basta lembrar a razão
por que empreendeu a sua primeira viagem aos Estados Uni
dos. Sabia cativar, como ninguém, afirmando-se com suas atitu
des no conceito e admiração de quantos o rodeavam.
Em ocasiões precisas, dava exemplo de desprendimento,
decisão e coragem invulgares. Assim foi que, para levar avante
as obras difíceis da Paulo Afonso, se fêz amarrar para descer
o penhasco e, doutra feita, mandou seguir o trole pesadíssimo
com perigo de afundar nas águas encapeladas, ante a perplexi
dade do engenheiro Borela e o estarrecimento dos operários,
atos com que pasmava a todos.
Diz aquêle biógrafo (pág. 28, op. cit.) que "Mauá teve
que conquistar o seu lugar ao sol", sendo um self made man
que, enriquecendo no comércio, depois se voltou ao interêsse
da Pátria". Curioso é que outros têm usado a mesma expressão
inglêsa com relação a Delmiro, notadamente o sociólogo Gil
berto Freyre, e isso por diversas vêzes, como consta do tomo II
de "Ordem e Progresso" e de nota aposta às "Memórias de
um Cavalcanti".
E cremos não ser menor o interêsse nacional no ousado
cearense. Tendo perdido o pai, em defesa da Pátria, por ela
Delmiro sacrificou tudo: comodidades, fortuna e, pode-se dizer,
a própria vida. Na verdade, com prejuízo das comodidades pes
soais, empenhou sua grande e nova fortuna, àrduamente adqui
rida nos confins do sertão inóspito ao invés de procurar
-

gozá-la egolsticamente como um sibarita empregando-a numa


indústria de resultado duvidoso, porque com ela imaginava
alcançar a redenção econômica de sua terra e de seu povo.
Após haver prosperado, pressentiu que sua vida estava ameaça
da, mas enfrentou a luta e o perigo até à morte.
Mauá partiu para a Inglaterra, com a imagem da Pátria
sempre presente, de lá trazendo a equipagem de sua famosa
118
fundição e "a cabeça cheia de grandes projetos". Assim Delmiro,
quando lá foi buscar a fábrica de linhas, sempre pensando em
explorar as nossas riquezas naturais, o aproveitamento energé
tico da Paulo Afonso, bem como das águas do São Francisco,
para fins de abastecimento e de irrigação. No dia em que
jorrou água nas torneiras da Pedra, exclamou: "Um povo
-

que tem água não morre pagão!... e isso é apenas uma gôta
d'água que tirei do oceano!" como se quisesse dizer que
-

aquilo era o comêço de seus empreendimentos.


O Barão costumava dizer que “a indústria que manipula
o ferro é a mãe de tôdas as indústrias", e da fundição partiu
para outras iniciativas e conquistas: as estradas de ferro, a
navegação do Amazonas, o telégrafo submarino, sem falar nos
melhoramentos urbanos introduzidos no Rio, como a ilumina
ção a gás, os bondes, o abastecimento d'água, a abertura do
canal do Mangue. Também Delmiro: primeiro, saneando a
campina do Dérbi e estreando luz elétrica no Nordeste; depois,
inaugurando luz e água na Pedra. A iluminação sem filamento
do Dérbi é, na afirmação de Mauro Mota, "a primeira luz elé
trica de Pernambuco”, que só conhecia a dos lampiões. E em
1914 a Paulo Afonso gerava a melhor luz elétrica do Brasil.
"Era um dos sonhos de Mauá Pernambuco. A posição
geográfica daquele pôrto não podia deixar de seduzi-lo" (pág.
558). Outro era a criação de um grande empreendimento
agropastoril e industrial; para isso, Mauá falava em adquirir,
no Brasil, duzentas léguas de bons campos" (pág. 560). Esta
informação de Alberto de Faria faz-nos lembrar o carinho e
veneração que Delmiro tinha por Recife e o seu trabalho pro
gressista ali desenvolvido, bem como a ação profícua do pio
neiro e "fazedor de oásis" no campo agro-industrial.
Para êle Recife era tudo, o lugar de seus sonhos de patriota
e de homem de negócios. Quando instado pelos familiares de
sua espôsa a permanecer em Pesqueira, respondeu: "Não! -

lá é que é meu lugar!" Mesmo distante dêle, amava-o enterne


cidamente. Segundo depoimento do Des. Meroveu, gostava de
conversar com os que de lá vinham sôbre coisas e figuras de
seu passado naquela cidade. Recorda Plínio Cavalcanti o seu
contentamento ao saber que hospedava na Pedra a um per
nambucano, pois, embora dali banido, Delmiro permanecia fa
nático por Pernambuco. E contou-lhe, então, "tôda a história

119
de sua vida cavalheiresca, o seu desejo de fazer do Recife uma
cidade confortável e o maior empório comercial do continente".
Sem ter podido freqüentar os bancos escolares, Delmiro
Gouveia formou seu intelecto no grande livro da vida. Auto.
didata, servido por extraordinário talento, perspicácia, palavra
fácil e invulgar capacidade de assimiliação, desenvolveu essas
qualidades no contato com outros povos. E os seus conheci
mentos foram empregados no bem comum e na grandeza da
Pátria.

Além das viagens que freqüentemente empreendeu no


País, fêz nada menos que cinco ao exterior, sendo duas delas
aos EUA, uma pela Europa, acompanhado da espôsa, outra,
sozinho, quando dela se separou, com estada prolongada na
Itália e, finalmente, outra (que não sabemos se foi mesmo a
última), especialmente para comprar na Inglaterra a fábrica
de linhas. A experiência adquirida nessas viagens dilatou sua
visão e aperfeiçoou sua cultura, educação e aprendizado co
mercial. O que via de bom e revolucionário introduzia em
nosso meio por métodos racionais de adaptação, concebidos
dentro do seu gôsto e critério pessoais.
Foi dos primeiros brasileiros que importaram o automó
vel, a fim de transitar nas estradas por êle abertas nos ínvios
e atrasados sertões do Nordeste. Estradas que atravessavam o
território alagoano e parte do pernambucano, indo até Gara
nhuns, estradas que eram como um traço de união, um abraço
que êle mandava ao seu jamais esquecido Recife... O carro
de Delmiro passou a correr por aquelas paragens desertas, com
seus olhos de fogo, assustando os roceiros e inspirando os can
tadores a fazer versos, como êstes que ainda vivem na memória
do povo: -

Minha mãe, o que é aquilo


Que vem assombrando a gente?
É o carro do Delmiro
Com um fogo acêso na frente.

Tem duas coisas no mundo


Que eu vejo e me admiro:
É o trem lá de Piranha
E o carro de Delmiro...

120
Não podemos encerrar este capítulo sem voltar ao paralelo
de Delmiro com Mauá. E isso porque, se as primeiras estradas
de rodagem nordestinas foram mandadas fazer pelo pioneiro
da Paulo Afonso, as de ferro, inclusive o ramal de Piranhas, o
foram pelo Visconde, aquêle que “primeiro assentou trilhos no
solo do Brasil" (pág. 162, op. cit.). “A segunda inauguração
de trilhos foi a Estrada de Ferro de Recife ao São Francisco... e

Mauá não podia estar estranho a essa emprêsa" (pág. 173). “A


da Bahia ao S. Francisco, a quarta inaugurada" (pág. 175).
Mauá, que "passa a ser suspeitado como indivíduo peri
goso, com mania de grandeza", sofre revezes, perseguições e
injustiças como seu êmulo nordestino. Em 1857 ocorreu o in
cêndio criminoso de sua fundição, sôbre o qual se manifesta o
seu biógrafo, às págs. 133, dizendo que, se o incêndio não teve
essa origem, garante, todavia, um certo e autorizado Comen
dador Casemiro Costa que "os modelos ou moldes de cons
trução naval da Ponta da Areia foram criminosamente inuti
lizados por mãos estrangeiras".
E no relatório a seus credores dizia, melancòlicamente, o
próprio Mauá, já no fim da vida: "Infelizmente o período
-

de prosperidade até aquela época percorrido fazia pesar sôbre


mim o que em nossa terra se chama inveja”. "Sentimento
tão pródigo em nosso país quando aparece uma figura fora do
comum, capaz de profícuas iniciativas em bem da coletivida
de”, na frase do escritor cearense Waldery Uchoa, que bem
a podia aplicar em relação ao seu conterrâneo, Delmiro Gou
veia.

"Era, porém, tarde demais. Quem tem inimigo não dorme,


e Mauá a todos fazia benefícios, sem observar que, às vêzes,
armava almas pequeninas contra êle próprio”. Estas expressões
do mesmo escritor se ajustam, como uma luva, ao destino do
benfeitor nordestino, que foi mandado matar, a tiros, traiçoei
ramente, pelos seus gratuitos e invejosos inimigos.
Somente depois de 50 anos de sua morte é que foi escrita
a grande e completa biografia de Mauá, o que era para lamen
tar, como o fêz o seu autor (v. págs. 377), chamando-o de
"nosso soldado esquecido". Como tudo isso se aplica, adequada
mente, ao inditoso e até hoje olvidado pioneiro do aproveita
mento energético da Paulo Afonso?

121
Princípios de Ordem, Disciplina
e Moral Impostos a Todos

O chalé, limpo e florido, onde Delmiro


A casa
pernoitava nos últimos tempos
grande ficou destinada a hospedar visi
tantes Regulamento para os hóspe
Por certos
des, para tudo e para todos -

atos considerados de incivilidade, era


Os casos
prevista multa aos infratores
de namoros apertados e de licenciosida
de O episódio do viajante surpreendi
do a bulir com uma môça no cinema
Não havia cadeia, nem crime, roubo ou
desacato; tampouco punhal, jogo ou ca
chaça Época do "Urupês", de pessi
-

mismo na capacidade do brasileiro


A obra de Delmiro era um desmen
tido: prosperou, dentro da ordem, do tra
balho e da disciplina.

D₁ ELMIRO GOUVEIA era, fundamental


mente, limpo e organizado, exigente e disciplinador. Estas
facetas do seu caráter logo se apresentavam ao primeiro contato
com sua pessoa, seus modos, sua moradia e tudo mais. O chalé
em que passou a dormir, na Pedra, todo caiado de branco,
ficava num alto, ao lado do atêrro da ferrovia. Era bem insta
lado, o quarto de dormir forrado de sêda, as varandas largas e
os caramanchões em frente dos terraços laterais. Dos canteiros
e dos jarros espalhados em derredor, brotavam variegadas
flôres.

Na casa-grande, onde êle vivera antes, durante muito tempo,


veio residir sua mana, D. Maria Augusta, que tomou a si a cria
122
ção dos sobrinhos menores. E também servia para hospedar
comerciantes, políticos, jornalistas e outros ilustres visitantes.
Um regulamento colocado à parede do quarto de dormir dava
a entender ao hóspede, de modo gentil, que estava obrigado a
observar, ali, tudo aquilo que o cidadão educado tem a fazer,
independentemente de prescrições... Quando uma pessoa, inad
vertidamente, se sentava à mesa sem colarinho, o regulamento
lhe era exibido como menu, fim de fazê-lo respeitar o proto
colo da casa...
Logo de manhãzinha, a gente despertava com o canto de
uma sereia mecânica. E, mais tarde, uma campainha elétrica
instalada na casa-grande soava estridente, dando ordem às
pessoas hospedadas para deixar a cama. Na indústria que
fundou, a ordem, o respeito e a disciplina eram rigorosamen
te obedecidas. Organizava-se um programa, de véspera, que
era cumprido à risca, pelas turmas dos trabalhadores, cada
um com suà tarefa determinada na agenda.
Na vida civil existia regulamento para tudo e para todos,
com multas previstas para os transgressores. Não se podia cus
pir ou jogar papel na rua, andar sujo, despenteado, de pés
descalços ou com a camisa fora das calças. Banho diário obri
gatório. Não era permitido apanhar água nas torneiras e cha
farizes, nem utilizar a lavanderia pública, a quem se apre
sentasse maltrapilho e asqueroso.
Era proibido não só fumar em cachimbo de barro, tão do
gôsto das velhas operárias, mas, também, andar de punhal ou
faca de ponta, praticar jogos de azar ou do bicho, vender ou
beber cachaça num raio de 12 léguas. Os bêbedos e jogadores
inveterados eram banidos do meio. Os atos criminosos ou

infringentes das regras do bom-tom eram punidos de acordo


com a sua gravidade. Os guardas, sempre alerta, prendiam ou
multavam os infratores; no caso de multas, estas revertiam em
benefício da caixa escolar.

As vêzes, fazia-se mister punir e multar com rigor; outras,


apenas chamar a atenção com bons modos, como por exemplo
ensinando e convencendo que a saliva servia para facilitar a
digestão e preparar o bôlo alimentício; que as crianças preci
savam freqüentar, assiduamente, a escola e não deviam riscar as
paredes, nem desrespeitar os mestres e os mais velhos.

123
No entanto, não havia cadeia nem soldados na vila da
Pedra, com seus 6.000 habitantes. Dormia-se de portas abertas,
sem ouvir falar num crime, num roubo, num desacato. Para

que se abolisse a cadeia explicava Delmiro indispensávei


era proceder assim nos primeiros tempos, pelo menos durante
10 anos; depois, com os ensinamentos e as escolas, tudo de mal
iria desaparecer, até que aquela comunidade pudesse atestar
que o nosso país não está perdido, nem é o que, com pessimis
mo, dizem os charlatães da política tendenciosa.
Convém lembrar que, na época, o Brasil estava contami
nado pela mais negra descrença e negativismo. Delmiro foi
morto em fins de 1917 e, no ano seguinte, aparecia o “Urupês”,
obra de Monteiro Lobato consagrada pelo verbo de Rui Bar
bosa, em seu memorável discurso às classes conservadoras,

com que advertia a Nação, num libelo de fogo, sôbre a men


sagem contida naquele livro impressionante. Monteiro Loba
to mostrava o nosso matuto, sob o símbolo de Jeca-Tatu, comi
do de verminoses, sem ânimo, preguiçoso, finalmente um ser
imprestável, portador de fraqueza ingênita. E o exemplo co
lhido na Pedra revelava justamente o contrário, mostrando
que o caboclo nordestino podia ser útil e realizar grandes fei
tos, desde que assistido e orientado.
Delmiro Gouveia acreditava no seu povo e na sua reden
ção. Sabia que, com as lições, as escolas, as normas de bem-vi
ver, podia tirar bons resultados, transformando no melhor
operário e no perfeito cidadão o caboclo rude, geralmente
vindo dos rincões sertanejos, onde imperavam o atraso, o anal
fabetismo, a injustiça das leis e dos homens. Mas precisou
dar-lhe, às vêzes, aparentemente, com um rigor de Drácon, e,
outras, com um ridículo à D. Quixote, os ensinamentos que
lhe pareceram necessários à vida social e civil do núcleo que
fundara, ousadamente, naquelas brenhas incultas e esquecidas.
Era rigoroso e exigente até consigo mesmo. Após separar-se
de D. Eulina, mãe dos seus 3 filhos, nascidos na casa-grande,
e, precisando de mulher, para suas relações de sexo, mandou
construir o chalé na cidade-livre, isto é, fora do "arame". Era
assim chamada a divisão que cercava de arame farpado a fá
brica e a vila operária. Delmiro tinha sempre uma dessas mu
lheres, ali, mandadas buscar fora, geralmente trazidas do Reci
fe. Não era um devasso ou conquistador, como se tem apre

124
goado. Tinha procedimento correto com respeito às famílias re
sidentes na Pedra, desde as mais humildes às mais importantes.
Sendo da teoria dc que a justiça para ser boa começa de casa,
era o primeiro a dar o exemplo de moralidade.
Dentro do "arame" não admitia coisas atentatórias da mo

ral: libidinagens, amor-livre, ligações irregulares. Intervinha


até em casos de namoros apertados, impondo a realização ime
diata do casamento, dizendo: "O primeiro filho será meu
-

afilhado". Daí porque davam a muitas crianças o nome do


padrinho, em sinal de reconhecimento, motivo do qual se
aproveitaram os maliciosos para insinuar que êsses meninos
eram filhos seus. E mandava dar, a título de dote, vestido de
casamento, grinalda e sapatos para as noivas, bem como au
mentar os vencimentos dos futuros nubentes.

Eram punidos aquêles que fossem encontrados em idílios


suspeitos e em lugares escusos. Vale a pena recordar o seguinte
episódio, relatado por um contemporâneo. Certa vez, um via
jante, de nome Antônio Pinto e da firma Rodrigues Cardoso,
de Maceió, foi pegado a bolinar uma operária no cinema.
Sabendo-o, Delmiro mandou prendê-lo num tronco, para exem
plo, comunicando ao irmão do viajante e seu conhecido, sr.
Fernando Pinto, a causa da prisão e advertindo-o de que êle
não devia mais voltar lá.
Por tudo isso, Delmiro foi tido como autoritário, violento
e até perverso. Mas, examinando-se o meio e o tempo em
que criou aquela comuna, conclui-se que havia motivos para
as medidas e normas adotadas, até para alguns excessos. A
verdade é que sua obra em pouco tempo prosperou, sendo
um exemplo para a posteridade, e a sua morte trágica foi
chorada por todos que lá viviam. Porque quem atravessava
o deserto daqueles sertões e chegava àquela Pedra florida e
organizada, notava a ordem, a limpeza, o respeito, o trabalho,
a disciplina...

125
Apesar de Enérgico e Violento,
era Sensível e Generoso

Desbravador de zona atrasada, teve que


agir com energia, ou com humanidade
Violento e agressivo para quem o des
considerasse- Era entretanto um sen
Adorava
sitivo, um coração generoso -

os pássaros, flores, crianças, música -

Os episódios do pseudo-químico, da ope


rária de vestido rasgado, da operação de
Dutra na Alemanha O motivo da
agressão de J. Clemente Levy, que o te
mia, segundo relato de Gustavo Barro
SO- Não admitia engodos, falcatruas,
espertezas, nem que alguém faltasse à
palavra e o enganasse.

A PAR DA FÉRREA energia, Delmiro era


dotado de coração generoso e fina sensibilidade, possuindo
personalidade paradoxal: forte, audacioso, por vêzes violento;
no fundo, um espírito delicado, amável, sensitivo. Tratava
ou com energia ou com humanidade, quando preciso. Como
desbravador de uma zona nova e atrasada dos sertões, carente
de recursos, até de braços humanos, teve que aceitar gente de
fora, desconhecida, e, para mantê-la dentro da ordem, precisou
adotar energia, banindo os maus e irrecuperáveis.
O seu contato prolongado com o sertão pusera-o áspero
como o mandacaru. Espírito crepitante, ardente, mas sensível,
disse, a seu respeito, Josué Montello, acrescentando: "Cac
-

tus e bromelias", em meio à terra calcinada por um sol abra

126
sador. Verdor em seu espírito e em certas plantas, por entre
escombros, cascalhos, pedras, misérias". O leão indomável e
orgulhoso que ele fôra, esmagara um dia, com uma resposta
de cordeiro, certo diretor de jornal, quando pensou ofendê-lo,
dizendo que o "poderoso coronel" havia sido condutor de
trem. Delmiro replicou-lhe, de pronto, "nunca ter exercido em
sua vida lugar tão importante".
Violento e agressivo para quem o desconsiderasse e para
quem lhe contraditasse as idéias. Neste particular, o caso típico
foi o do incidente com Rosa e Silva. Delmiro chegou a agredi
lo em plena rua do Ouvidor, porque êsse senador e vice-presi
dente da República negou-se a recebê-lo e a ouvi-lo; em re
presália a essa desfeita e, também, às perseguições que lhe
eram movidas em Pernambuco, Delmiro chegou àquele extre
mo, que tantos infortúnios lhe iria acarretar. Temperamen
tal, incontrolável, com explosões que tiveram, às vêzes, resul
tado desastroso em seu destino. Como exemplo, vamos repetir
o triste episódio que provocou a separação de sua legítima
espôsa.
Ia haver uma festa em que tomaria parte saliente uma
prima-dona, a quem Delmiro andava arrastando a asa. Para
o êxito da festa, empenhou-se vivamente, querendo abrilhan
tá-la com a presença dos amigos e da própria espôsa que fôra
avisada. A hora do jantar, exatamente no dia do sarau, D.
Iaiá ficou amuada, surpreendendo o marido com a notícia
de que não ia comparecer. Delmiro explodiu, então, com o
maior dos escândalos, ante a estupefação de várias pessoas pre
sentes. Quebrou pratos, louças, derrubou móveis e rasgou cor
tinas. Tudo isso por causa da negativa da espôsa a um desejo
seu, a uma idéia sua, contrariada.
Esse caso teve conseqüência imprevisível, porquanto Del
miro chegara ao auge de declarar que ia separar-se dela e afas
tar-se do lar, sendo-lhe talvez penoso ter que cumprir a palavra,
que era férrea e irreversível. No entanto, esse homem aparen
temente violento era um sensitivo. Adorava os pássaros, as flô
res, as crianças. Quando passava em Santana do Ipanema, fazia
parada na casa do Cel. Manoel Rodrigues da Rocha, para ouvir
num gramofone músicas e óperas, como a do "Rigoleto". Até
nas atitudes, em que queria agir com rigor, via-se o sentido
humano e generoso. Senão, vejamos:

127
Delmiro precisava de um químico especialista no tingi
mento em côr firme e indelével de cordões e fitas de embrulho,
tendo, para isso, contratado um técnico vindo de São Paulo,
que afirmara possuir o segrêdo do processo, mas exigiu rendo
so contrato de trabalho, mediante o ordenado mensal de 5
contos de réis e a multa de 50, no caso de rescisão do contrato.
Mas, foi um fracasso! Apesar de lhe serem facultados todos
os recursos, o químico não acertou com o tingimento firme
dos cordões. M gulhados numa solução com 20% de cloro,
perderam a coloração, do mesmo modo que acontecia com o
tingimento em azul, vermelho e marrom, como já era fabrica
do sem resultado, sobretudo a linha na ingrata côr preta, pelos
técnicos e operários que ali o vinham tentando.
Delmiro não admitia tapeações ou engodos, que alguém
faltasse à palavra empenhada, enganando-o, como o referido
profissional, que lhe deu inclusive prejuízo de monta,
pois grande quantidade de material e fios fôra especialmente
preparada para aquêle fim; por isso, disse para o pseudo-téc
nico: "Você é um borragaita como muitos que tenho por
aqui. Vai ficar amarrado, como São Sebastião".
E mandou amarrá-lo, para exemplo, na braúna existente
no pátio da Fábrica para punir os malfeitores e criminosos.
A mulher do químico, usando de astúcia, chorosa, foi implorar
a Mestre Pedro o serviçal da inteira confiança do coronel
-

- livrá-lo daquela humilhante situação. E, já sendo decorridas


horas, Pedro resolveu soltá-lo. Quando Delmiro deu pela coisa,
informado do que tinha acontecido, exclamou: "Sabida, -

ela apelou para o bom São Pedro!". Mandou então que Lio
nelo Iona desse ao forasteiro 10 contos de réis e o mandasse

deixar no Recife, como geralmente ocorria com os que eram


despedidos do trabalho da emprêsa.
Certa vez, êle assist à entrada dos seus operários quando
viu uma mulher com o vestido rasgado, tendo-lhe então inda
gado àsperamente porque andava daquele jeito, ao que a em
pregada respondeu: "Com o que eu ganho, não posso econo
-

mizar, não, coronel, para comprar vestido; por isso eu só tenho


êste e uma muda".
Delmiro autorizou-a a ir à loja de Virgílio Lisboa e, em
seu nome, comprar fazenda para outro vestido, acrescentando:
-
"Depois venha cá, para me mostrar". Quando a empregada
128
fêz o vestido e se apresentou a Delmiro, êste mostrou-se satis
feito e, correndo a vista no corpo da mulher, exclamou:
"Ah! agora, sim!"
Vamos narrar outro caso bastante ilustrativo da bondade
do seu coração: - João Carlos Dutra, que chefiava a seção de
engomados da Fábrica, apareceu com uma inflamação rebel
de na garganta. Indo ao Recife consultar-se com um especia
lista, êste declarou que não lhe podia dar jeito e que só mesmo
indo êle tratar-se na Alemanha. O pobre do homem já nem
podia falar. Era no tempo da Guerra Européia, daí ter Delmiro
perguntado se êle tinha coragem de viajar para lá; e como res
pondesse que sim, o chefe mandou dar-lhe dinheiro, provi
denciando o necessário.

Passados meses, Dutra voltou bom e foi conversar com o


coronel. Falou da operação e das despesas que montavam a
28 contos, uma fortuna naquela época. Delmiro perguntou-lhe
OP
se tinha gostado da Europa, principalmente das alemãs, salien
tando que estas eram doidas por morenos brasileiros, assim
como êles dois. Pôs-se a brincar, colocando Dutra à vontade,
indagando sempre se tinha "conhecido" as lemãs. Dutra con
tinuava encabulado e enternecido de gratidão, pedindo que
o coronel estabelecesse uma forma de pagar o que tinha gasto.
No mesmo tom de brincadeira, Delmiro respondeu mais
ou menos assim: -

"Seu vagabundo, como pode você me pagar


tanto dinheiro com o seu ganho? Tinha que passar a vida
tôda, e ainda não me pagava tudo. Já mandei botar tôda a
despesa na minha conta".
Quanto às censuras que lhe eram feitas, por ter abando
nado a mulher, relegando-a ao esquecimento, é preciso escla
recer que Delmiro lhe marcou uma mensalidade que foi sempre
mantida e aumentada, embora soubesse que o dinheiro que
lhe mandava para Pesqueira só servia para os irmãos dela, uns
malandros como êle próprio os chamava.
A pessoa que nos contou alguns dêsses episódios concluiu
a sua narrativa assim: — “Coração bom como o daquele homem
pode haver, mas eu não acredito". E revolvendo o fundo das
memórias, terminou: "Lembro-me da última gratificação de fim
de ano, que me foi dada por Ferrário, sob cujas ordens passei
a trabalhar, o qual me entregou um envelope fechado, dizendo:
- "Taí sua gratificação que o coronel mandou dar". Era tanto

129
dinheiro que ainda hoje lembro que tremia ao contar as cédu
las, perdendo a conta; eu e mamãe, lá em casa, contamos e
recontamos todo aquêle pacote de dinheiro. Cinco contos de
réis, uma bolada que eu nunca esperei receber".
Gustavo Barroso relata, à pág. 53 e 54, em “Liceu do
Ceará", um fato que precisa ser conhecido e explicado. Ei-lo,
nas palavras do historiador, dono de prodigiosa memória: -

"J. Clemente Levy fôra, em outros tempos, sócio daquele ho


mem extraordinário que se chamou Delmiro Gouveia, fun
dador da Fábrica da Pedra, na cachoeira de Paulo Afonso,
que varreu a linha inglêsa dos mercados brasileiros e pode-se
-

dizer dos sul-americanos, perecendo de maneira misteriosa,


como se tivesse sido vítima de manejos de interêsses ocultos.
Dissolveram a sociedade e tornaram-se inimigos. Delmiro acusa
va o judeu de ter querido passar-lhe a perna. Odiavam-se.
Levy viera para o Ceará, fugindo de Delmiro, que temia.
Quando êste uma vêz apareceu em Fortaleza a negócios, o
judeu de Malta, o filho e o sobrinho trancaram-se em casa,
sem coragem de pôr sequer o nariz à janela".
Delmiro Gouveia o agredira e chegara a feri-lo, no mesmo
dia em que Levy, fugindo do Recife, embarcara para o Ceará.
Ele era assim. Não tolerava falcatruas nem logros, que alguém
faltasse à palavra e o lesasse, usando artimanhas e espertezas.
Tornava-se irritado e violento, resolvendo as suas diferenças
no peito e indo até às ultimas conseqüências. Não tinha mêdo,
'

"nem deixava ofensa sem duro revide". Mas, no fundo, era


uma alma sensível e delicada, um coração bom e generoso.

130
Seus Parentes, Amigos, Sócios e Colaboradores

A mãe e a irmã Adolfo Santos, seus


dotes intelectuais e o lugar que exerceu
na Pedra Os filhos do pioneiro Os
-

sócios italianos Iona e Ferrário; Iona foi


se embora, levando fortuna; Ferrário
passou a ser o homem forte, de confian
ça Os diretores da Cia. Agro-Fabril
Eram seus amigos vultos da intelectua
lidade, política, indústria e comércio,
bem como do clero Os políticos ala
goanos Comerciantes de maior in
fluência em sua vida Alguns parentes
ilustres de Delmiro Os principais co
laboradores e serviçais Omissões
explicáveis.

D AS PESSOAS que exerceram maior


influência na vida do pioneiro, temos que destacar, inicial
mente, a figura de sua genitora, que lhe incutiu o gôsto pelas
boas coisas e lhe deu exemplo de dignidade, resignação e cora
gem, sobretudo aquela estranha fôrça de resistência e tena
cidade que jamais se abateu ante as adversidades, injustiças
e incompreensões.
D. Leonila Flora morreu antes que Delmiro chegasse aos
15 anos de idade, deixando-lhe, porém, inapagável e grata
recordação, tanto que êle conservaria em sua mesa de cabe
ceira o retrato dela, por tôda a vida. Aquêle carinho que Del
miro devotava às crianças, dispensando-lhes especiais cuidados,
não era senão uma compensação, uma paga daquilo que vira
131
em casa, com a falta do pai tão cedo desaparecido e com a
mãe lutando, desesperadamente, para criar os filhos pequenos.
A irmã, D. Maria Augusta, foi outro anjo tutelar do pio
Oneiro. Um ano mais velha que Delmiro, exercia sobre este
certa ascendência, talvez por ficar preenchendo o lugar da
mãe morta, sem mais outros parentes próximos. Chamou-a
para ficar tomando conta do seu lar quando foi viajar pela
Europa e ao se desentender com D. Iaiá; mais tarde, na Pedra,
fêz oʻ mesmo quando ia se separar de D. Eulina, entregando-lhe
a direção da casa e a criação de seus três garôtos.
Laura, a filha de D. Maria Augusta, casara com Adolfo
Santos e o filho, Osvaldo Gouveia, começou como professor
de primeiras letras, na Pedra, e acabou seus dias, muitos anos
depois, como comerciante no Recife. Adolfo Santos, uns
quinze anos mais môço que Delmiro, acompanhou-lhe as pe
gadas na luta dos primeiros tempos, bem como a ascenção
maravilhosa no comércio e na indústria, assistindo-lhe, mes
mo, os últimos momentos. Era filho de Francisco Xavier dos
Santos o velho Francisquinho que, como negociante no
cais do Ramos, deu o primeiro emprêgo a Delmiro e quem,
natural de Pesqueira, o aproximou do tabelião Melo Falcão,
pai de D. Iaiá.
Adolfo Santos, espírito culto, voltado para as belas letras
e autor de livros de poesias, veio em novembro de 1908 para
a Pedra, a fim de assumir o lugar de chefe de escritório de Iona
& Cia. e da firma individual de Delmiro, que tinha interêsses
ligados a outras entidades, inclusive com Rossbach Brazil Co.,
bem como, mais tarde, da Cia. Agro-Fabril Mercantil.
Após a morte de seu grande amigo e parente, continuou
ocupando o pôsto nas organizações remanescentes, donde se
afastou amargurado e -

dizem ainda vive assim, muito


velho e escondido. Escreveu precioso trabalho sôbre o pio
neiro, a que deu o título de "Depoimento para um estudo
biográfico", entregue a seus descendentes, naturalmente com
o fim de esclarecer alguns pontos controvertidos e deturpados.
Os três filhos de Delmiro Gouveia Noêmia, Noé e
Maria estão vivos e residindo no Rio de Janeiro, achando-se
-

aquela, a mais velha, há muitos anos, internada num hospital


de doenças mentais, sendo a sua recuperação considerada de
todo improvável. A mais nova, D. Maria, forneceu-nos valiosos
132
elementos para a presente obra, escrita por um conterrâneo e
admirador do pioneiro da Paulo Afonso, como contribuição
9.

para divulgar-lhe a vida extraordinária, mas quase desconhe


cida, por ocasião do centenário de seu nascimento.
Dentre os sócios integrantes das emprêsas de Delmiro, desde
o tempo de Pernambuco, tais como Antônio Carlos Ferreira da
Silva, Manoel Cordeiro de Carvalho, Napoleão Duarte e
outros, há que destacar as figuras dos italianos Lionelo Iona e
Guido Ferrário.

Iona, judeu triestino, casado com uma pernambucana, ho


mem de gabinete, culto, poliglota, foi, inicialmente, o princi
pal dêles, e uma espécie de testa-de-ferro. Não sabemos porque,
decaiu depois da confiança de Delmiro, que o mantinha sob
suas vistas na Pedra. Ali exercia a função de auditor, encarre
gado de relatar contratos e documentos, traduzir papéis em
línguas estrangeiras e consultor financeiro. Delmiro passou
a ter-lhe certa prevenção, tratá-lo com rispidez e menosprêzo,
zombando dêle, como certa vez em que o chamou de porco e
explicou a um ouvinte: "O Iona depois que toma banho
é que faz as necessidades fisiológicas, enquanto nós fazemos
isso primeiro para depois tomar banho".
De ar tímido, mesquinho, quase usurário, vivia ali com
o rabo entre as pernas, sem ter quase o que fazer e nada que
mandar. Duma feita, em conversa com o Cel. Ulisses Luna,
Delmiro ter-lhe-ia dito: -
"Esse gringo só quer o nosso dinhei
ro. Mas eu o obrigo a gastar e a aplicar o dinheiro aqui, no
Brasil, nos empreendimentos que vou fundando”. Dizem que
êle jamais comprara imóveis ou outros bens, nem mesmo casa
para morar.

Após a morte do pioneiro, Iona ocupou-lhe a vaga, na


direção de todos os negócios na Pedra. Contaram-nos que,
por volta de 1925, ao se desligar dêles, Iona estava riquíssimo.
Tinha tôdas as suas grandes e suspeitíssimas economias depo
sitadas num banco estrangeiro, no montante de 13 mil contos
de réis. Dessa quantia teria destinado 3 mil contos para seu
cunhado Raul Brito fundar o Banco do Nordeste do Brasil,
em Maceió. E o judeu triestino foi-se então embora para o
exterior, já viúvo e sem filhos, com uma fortuna de 10 mi
lhões, cuja origem esconde talvez um mistério...

133
Guido Ferrário era sócio-gerente de Iona & Cia., em Ma.
ceió (AL), homem dinâmico, forte, inteligente, sabendo con
versar em 6 idiomas e possuindo grande prática bancário-comer.
cial, pois fôra empregado do River Plate Bank, tendo servido
até na Grécia. Por isso, entendia o grego e o alemão, sabia as
línguas latinas e escrevia o português corretamente. Passou a
ser, nos últimos tempos, o homem forte e da inteira confiança
de Delmiro, de quem tinha carta branca para resolver todos
os negócios. Essa confiança começou ao tempo em que se mos
trou seu intransigente defensor e advogado esclarecido na
falência de Silva Cordeiro & Cia., no Recife.
A história da falência e da atuação de Ferrário acha-se
contada, com pormenores, no capítulo em que situamos o
pioneiro como vítima da conjuntura econômico-financeira.
Ésse italiano radicou-se em nosso país, onde morreu, em 1922,
de modo estranho, com suspeita de envenenamento, tendo
casado com mulher brasileira e deixado prole. Seu nome de
origem Ferrari foi abrasileirado.
-

Napoleão Duarte, que foi diretor do Dérbi, acabou atri


tando com Delmiro, dando-lhe um tiro à queima-roupa, por
baixo de uma mesa onde ambos discutiam, indo a bala alo
jar-se na perna e sendo extraída sem maiores conseqüências.
A Cia. Agro-Fabril Mercantil, supervisionada por Delmiro, teve,
em sua primeira eleição, como diretores, os srs. Baltazar de
Albuquerque Martins Pereira, John Krause, os dois citados
italianos, Luiz Bahia, Joaquim Gomes Coimbra, Adolfo Costa
Cirne, Raul Brito e Osvaldo Gouveia.
Dentre os seus amigos intelectuais, podem ser menciona
dos Faelante da Câmara, Gonçalves Maia e Martins Júnior,
que, com o segundo, serviu de advogado no processo movido,
no Rio, pela agressão a Rosa e Silva. Outros vultos ilustres
da intelectualidade, da política, indústria e comércio, foram
amigos e admiradores de Delmiro, alguns dêles visitando-o na
Pedra, a saber: Pinheiro Machado, Oliveira Lima, Assis
Brasil, Trajano de Medeiros, Barão Homem de Melo, D. Pe
dro de Orleans, Lauro Borba e Sérgio Loreto Fo (os dois úl
timos lá foram de automóvel, em caravana); Assis Chateau
briand,Raul Azêdo, Alberto Marroquim, Dácio Rabelo, Jai
me d'Altavila, Demóstenes Gracindo e outros. Também se
hospedaram na Pedra, excursionando até a cachoeira, figuras
134
preeminentes do clero, como D. Sebastião Leme, D. Duarte
Leopoldo e Côn. Benício Lira.
Na galeria de seus amigos, na política de Alagoas, con
vém citar, de passagem, os nomes dos Malta (Euclides, José,
Izídio e Joaquim Paulo), Ulisses e Genésio Luna, os irmãos
Torres, de Agua Branca, Manoel Rodrigues da Rocha, de
Santana do Ipanema, Aureliano Gomes Menezes, de Jatobá.
Dentre os comerciantes que influiram diretamente na sua
carreira, além dos referidos no capítulo em que mostramos
como chegou a "Rei das Peles", devemos fazer menção espe
cial aos Irmãos Rossbach (Leopoldo e Jacob), Tota Camurim,
apelido de Antônio Mendes Fernandes Ribeiro, chefe da co
nhecida firma Mendes Lima & Cia., do Recife, o português
Manoel Souto, capitalista e banqueiro em Penedo e, sobretudo,
John Roshore Sanford, que veio dos EUA a fim de abrir e ge
renciar a filial do curtume KEEN SUTTERLY & co., e que foi,
além de amigo pessoal de Delmiro, seu protetor, concorrendo
para que o substituísse naquele pôsto.
Impossível citar a infinidade de colaboradores seus, ali
nharemos a seguir os mais destacados ao tempo da obra na
Paulo Afonso: Luigi Borela e Vicent Knowles, engenheiros;
João Eulálio e Francisco Figueiredo, médicos; José Missano,
dentista; Antonio Ivo, farmacêutico; Juvêncio Lessa, guarda
livros; Ademar Mendonça, agente no Rio; José Magalhães
Pôrto, gerente da filial em Fortaleza e João Otacílio, despa
chante em Penedo. Seguem-se outros servidores e serviçais:
Joaquim Grande, encarregado dos armazéns; Mestre Pedro,
idem do envenenamento e salgamento de peles e couros na
"casa inglêsa"; João Carlos Dutra, chefe da seção de engoma
dos; Antonio Cruz, chofer, tendo João de Deus como ajudante;
Ezequiel Urias de Barros, jardineiro, Joaquim Alexandre Cor
deiro, vulgo Zé Pó, encarregado da casa de moradia; Virgínia
Bezerra, engomadeira e Francisca, copeira.
É preciso frisar que Delmiro encontrou, no começo, sérias
dificuldades para atrair, ao burgo que fundara, médicos, en
genheiros, dentistas, professores e outros profissionais. Bons
ordenados eram-lhes oferecidos, além de conforto, bem-estar,
residência, garantias.
O pioneiro acenava com vantagens, porque a localidade em
formação precisava de todos, nacionais ou estrangeiros. Insis

135
tia em vão para que muitos permanecessem naquele lugarejo
humilde e desconfortável. Isso aconteceu, por exemplo, com
a professôra Belmira de Almeida, môça recifense que demorou
pouco tempo, na Pedra, por não poder suportar o horror da
quelas brenhas.
Depois de inaugurada a fábrica, e edificada a vila operá
ria, espalhando-se a notícia das boas condições que lá eram
oferecidas, não mais foi defícil conseguir braços e especialistas
para a obra. E ainda muito menos difícil isso se tornou com o
advento da sêca de 15, que assolou o Nordeste, destruindo
plantações e rebanhos, empobrecendo ou deixando muitos, até
os mais remediados, na miséria e sem meios de vida.
Quando Delmiro chegava a Maceió, Fortaleza ou outra
cidade por onde viajava, era assediado por uma legião de pes
soas a pedir colocação. Foi assim que Antenor Xavier, segundo
nos disse, ingressou na casa Iona, tornando-se guarda-livros
auxiliar, após curto estágio na Pedra. Soubemos do caso de
Sílvio Coelho, de Sobral, que, através de indicação do Padre
Monte, foi chamado à Pedra e lá ficou trabalhando até depois
da morte de Delmiro. Um cidadão de Santa Quitéria, da fa
mília Simplício de Farias - descendente direto e legítimo do
bravo Capitão Belo encontrando-se em Fortaleza com José
Cândido de Sousa Carvalho, relatou-lhe as dificuldades de
vida que estava atravessando. Sendo levado à casa Iona, naque
la praça, a qual transmitiu o que se passava a Delmiro, êste
mandou buscar Simplício com tôda a família.
Abrimos um parêntesis para esclarecer que era primo de
Delmiro o aludido José Cândido, pai de Milton, Nilo e Lauro
de Sousa Carvalho, fundadores e donos das lojas "A Capital",
"A Exposição", "Ducal", etc. e grandes beneméritos de sua
terra natal, Ipu. Também eram seus primos, em 1º e 20 graus,
o Coronel José Soares de Sousa Fogo, herói do Paraguai, os
ilustres sacerdotes Cônego Assis Memória e Mons. João Fur
tado; Amadeu Furtado, médico humanitário, muito conhecido
no Ceará; o grande filósofo Farias Brito, o antigo deputado
provincial Dr. Teodureto Carlos de Farias Souto, presidente
dos Estados de Santa Catarina e Amazonas, deputado e senador
da República e que pertencia à "ilustre família Farias, de
Ipu", na fase do Barão de Studart, assim como Francisco Fa
rias, atual diretor do Banco Nacional de Minas Gerais.

136
Quem faz citações incorre no perigo das omissões... Estas
ocorrem aqui, indubitàvelmente, pelo que nos penitenciamos,
dentre as quais são perfeitamente explicáveis algumas feitas
conscientemente, como por exemplo a da figura meiga e doce
de D. Iaiá, do jornalista Plínio Cavalcanti, do Des. Merovcu
Mendonça e de tantos outros, aos quais teríamos de fazer alu
sões demoradas mas desnecessárias, de vez que êsses persona
gens aparecem em muitas passagens desta obra.
O que prentendíamos era, com ligeiras referências, neste
capítulo, pintar um quadro integrado por pessoas da convi
vência do pioneiro, que tiveram com êle significativo contato.
influência direta em seu destino, ou que o honraram com sua
amizade ou aprêço. Muitas delas vivem ainda hoje, mas que
a nós, infelizmente, não foi dado conhecer nem ouvir, para
obter maiores subsídios, além dos arrolados na presente bio
grafia, escrita com base em opiniões e referências ouvidas em
conversas ou lidas através de jornais, revistas e opúsculos.

137
O Segrêdo de Seus Sucessos
No Comércio e na Sociedade

Sua simpatia e elegância, fatôres de êxi


to, sobretudo com as mulheres -
Era,
isto sim, conquistador de homens Mo
tivo da amizade de Tota Camurim
Amizade pessoal e confiança mútua com
os Irmãos Rossbach Jacob foi ataca
do de febre amarela e Delmiro o salvou
Perseverança, fidelidade e correção
nos negócios A conta da Rossbach era
creditada, na exata, pelas comissões
sôbre vendas a terceiros A
— história
dos dois couros tirados de uma só cria
ção; nada encoberto, nem esperteza
A tática de comprar impostos Gran -

des lucros na compra e venda de peles


Os da Fábrica, no primeiro ano de
funcionamento A fortuna que deixou
-

o pioneiro.

NÃO
ÃO É DEMASIADO dizer que a vida
de Delmiro Gouveia, desde o comêço até a morte, está sob o
signo da lenda e do mistério, formando, em tôrno, uma espês
sa cortina que encobre os contornos reais da verdade. A prova
mais palpável disso temos no assunto à epígrafe, para o exame
do qual tentaremos explicar os motivos de seus retumbantes
êxitos e conquistas, como cidadão, comerciante e industrial.
Muitas pessoas o tiveram por sabido e oportunista, que
teria agido por processos inconfessáveis e escusos na conse
cução de seus objetivos. Puro engano! Até onde pode ser limpo,
138
correto e criterioso, quer como homem de sociedade, quer
como comerciante ou industrial, Delmiro Gouveia o foi em
tôda a extensão dessas palavras.
Davam sua beleza e elegância como fator preponderante
de sucesso, principalmente com as mulheres, no que era aju
dado por sua inteligência, sagacidade e atração pessoal. O
banqueiro e capitalista Artur Pio dos Santos, que foi seu con
temporâneo no Recife, apesar de 12 anos mais nôvo que êle, di
zia-nos, há pouco tempo, que Delmiro foi um conquistador
de homens, refutando assim o conceito errôneo em que muitos
o têm, como mulherengo e dado a conquistas amorosas.
Com aquêle sorriso bonito na cara chata e simpática de
cearense, conseguia tudo, impondo sua vontade, realizando
suas pretensões. Tinha dentes de pérola, gostava do branco,
sempre muito elegante, com sapatos de bico quadrado, chapéu
de palhinha e paletó de alpaca prêto. E assim que o recorda
aquêle cidadão, ao concluir: "Costumo dizer que Delmiro
não era o que falam por aí, isto é, um devasso e conquistador
de mulheres. Nada disso! êle era um conquistador de homens!'
Ensejou-nos o venerável e lúcido ancião, com seus 88 anos,
explicar um ponto importante e pouco conhecido da vida do
pioneiro, mostrando a razão de sua amizade com Tota Camurim
Antônio Mendes Fernandes Ribeiro chefe da conceituada
-

firma Mendes Lima & Cia., do Recife. Sabe-se que essa orga
nização deu apoio financeiro a Delmiro, principalmente para
fundação da fábrica de linha. Eis a razão: Viajando da
Europa com Delmiro Gouveia, Tota Camurim se enamorou de
u'a môça uruguaia, da família Cardozo Guani, tendo sido
aquêle quem fêz o pedido da jovem e serviu, depois, de padri
nho do casamento. Daí nasceu o reconhecimento e afeição de
Tota para com Delmiro.
Todos referem que os negócios do Rei das Peles experi
mentaram grande desenvolvimento e expansão, graças ao apoio
financeiro dos irmãos Rossbach que nunca lhe foi negado, nen.
mesmo nos momentos mais difícieis e incertos. Mas poucos
sabem como nasceu a confiança mútua e amizade pessoal, bem
mais forte que os laços puramente comerciais.
Jacob Rossbach, ou Jacob Astor Rossbach, fizera uma
viagem ao Brasil. Homem rico, sadio, alto, no apogeu da ida
de, ao chegar ao Recife foi acometido da febre amarela que

139
então grassava e fazia muitas vítimas. Delmiro Gouveia tirou-o
do hotel e levou-o para a sua casa, sem temer o contágio da
terrível moléstia. Hospedando-o no próprio lar, cercou-o da
melhor assistência médico-hospitalar que havia no Recife da
quela época. Delmiro e sua esposa, D. Iaiá, se desdobraram em
cuidados e atenções, revezando-se, sem afastar-se do leito do
enfêrmo. Assim tratado com carinho e confôrto, ao lado dos
requisitos higiênicos, Jacob recobrou a saúde, só deixando
a casa de seu benfeitor depois de estar inteiramente resta
belecido.

Esse fato teve decisiva influência nas relações comerciais


e amistosas entre Delmiro e os capitalistas americanos. Tanto
é verdade que, quando Noé Gouveia estêve nos Estados Uni
dos, depois da morte de seu pai, e fêz uma visita aos escritórios
comerciais de J. H. Rossbach, Brothers, viu um retrato dêle
pregado a uma parede, sinal do preito de gratidão àquele que
salvara a vida de Jacob. E ouviu dos lábios dêste a admiração
que guardara, para o resto da vida, daquele brasileiro extra
ordinário que, dizia, nascera antes do tempo.
A perseverança dos negócios com a firma americana es
treitou e reforçou os laços de amizade entre aquela e a pessoa
do Rei das Peles, que, por seu turno, foi de uma fidelidade e
correção dignas do aprêco que mereceu da grande organização,
até a morte.
Na conta da Rossbach, Brazil Co., Delmiro mandava cre

ditar, religiosamente e na exata, as bonificações sõbre vendas


de peles quando feitas, com audiência dela, mas diretamente, a
compradores da Europa, geralmente da Inglaterra, que ocasio
nalmente ofereciam melhor cotação. Para isso havia uma conta
de participação de lucros com a Rossbach, em que Delmiro
fazia questão de agir com a maior lisura, como era,aliás,do
seu feitio.
Pois bem, foram os Irmãos Rossbach e Tota Camurim que
emprestaram 2.000 e 1.500 contos de réis, respectivamente, em
conta corrente, sem aval nem títulos de dívida, para que Del
miro Gouveia completasse o capital necessário à instalação de
sua indústria, para o que não bastavam os seus 5.000 contos,
juntos.
E como conseguira economizar tanto? Conta-se a lenda de
ter sido Delmiro quem descobriu a esperteza de tirar duas

140
peles de cabra de uma só, história que tanto se apregoa, mas
pouca gente sabe contar direitinho. Expliquemos: —

A pele
normal, de tamanho comum, é tirada do animal com um só
corte ao longo das pernas, pela barriga, de ponta a ponta; a
que se tirava do "pai-de-chiqueiro", ou outro animal avan
tajado, podia ser transformada em duas, esfolando-se o couro
pelas pernas e pelo tronco do animal, de um lado e outro: uma
ficava do lado do espinhaço, e outra, da barriga.
Essas peles eram compradas e também vendidas por menos.
Os americanos sabiam disso. Depois não quiseram mais rece
bê-las, refugando-as. Ficou então estabelecido que as grandes
tinham uma bonificação de preço, sendo classificadas pela or
dem, como: bodão, bode e cabrito, respectivamente; por
outro lado, as defeituosas, assim como as de pêso inferior a 400
gramas, com furo de berne ou polia, eram classificadas como
segunda, sofrendo um rebate de 20%. Não havia, pois, nada
encoberto, nem esperteza ou desonestidade, em tal negócio,
em que muitos viam o segredo da prosperidade comercial do
pioneiro.
Também se diz que um dos fatôres que o tornaram o maior
e mais poderoso comerciante de peles foi, sem dúvida, a táti
ca de comprar impostos nas barreiras estaduais e municipais,
isentando dêles os produtores e vendedores. Houve o caso por
nós comentado noutro local e ocorrido com José Gomes de Sá,
Coletor em Jatobá de Tacaratu, além do que passamos a
contar.

Os dirigentes municipais de Água Branca acertaram com


êle a arrematação dos impostos da Pedra, então distrito da
quele município. Delmiro prontificou-se a pagar, adiantada
mente, importância maior, aliás, do que a prevista, segundo
depoimento do Desembargador Meroveu Mendonça. E, quando
lhe disseram que passariam à sua disposição os soldados que
costumavam assegurar a cobrança dos impostos aos feirantes,
êle respondeu que o dispensava e não ia promover nenhum
ressarcimento, porque o seu objetivo era justamente permitir
maior liberdade de comércio, principalmente aos que vendiam
os produtos do seu próprio trabalho ou lavoura.
Atingia, em média, um milhão e meio de peles a compra
anual, em Alagoas, registrando-se em dada oportunidade o
lucro líquido de 800 contos só num semestre. Quando chegava

141
um telegrama da Rossbach, ou de outro curtume, com novas
cotações para peles, tinha que se dar a posição e fazer o reco
lhimento imediato dos estoques comprados. De uma feita, por
ocasião de grande baixa, Delmiro telegrafou ao curtume, di
zendo que tinha 150.000 peles a recolher, e ganhou 1.000 contos
nessa ocasião.
Sómente no primeiro ano de funcionamento da fábrica,
lucrou o pioneiro cêrca de 6.000 contos de réis, sendo logo
resgatados os empréstimos que antes contraíra. E, não obtante
os grandes gastos havidos na instalação do parque industrial,
na vila operária, nas estradas etc., ganhou nos últimos 3/4
anos de vida, em seus negócios, fortuna avaliada em 20.000
contos de réis, aproximadamente.

142
A Pedra se Transforma em
"URBS" -
a "Canaã Sertaneja"

Origem do nome Casas existentes em


1903, 1912 e depois -
Impressões de al
guns visitantes A vila operária, com
suas 258 casas O parque industrial e
a "cidade-livre" A pequena "urbs"
dispõe de lua, água, esgôto, bombeiro, la
vanderia, diversões etc. Água abun
dante, dava para manter um lago arti
ficial Ordem, asseio e paz social
Não havia malfeitores, viciados, prosti
tutas, nem cárcere Leis que deram o
-

nome de Delmiro Gouveia ao município


e sua sede Número atual de prédios
-

e de habitantes O túmulo do funda


-

dor, e o marco com o cruzeiro.

O NOME DA PEDRA provém das rochas


amontoadas em frente à estação local da ferrovia, ou da cons
tituição rochosa de suas terras em plena caatinga agressiva.
Quando lá chegou Delmiro, em 1903, aquêle lugarejo se res
tringia a meia dúzia de casebres. E não tinha mais que duas
dezenas de moradias por volta de 1912, época a partir da
qual passou a desenvolver-se ràpidamente, adquirindo foros
de "urbs", até transformar-se na "Canaã Sertaneja", a que
Plínio Cavalcanti se refere ao visitá-la em 1915, dizendo:
"Nunca mais se apagará de meus olhos de excursionista
deslumbrado a risonha miragem daquela cidadezinha tão bran
ca e limpa que, à primeira vista, julguei um grande algodoal
de capulhos alvejantes. Tive naquela hora a ilusão prismática

143

(
da Fata Morgana dos campônios húngaros, e, só depois de
despertado da sonolência que me dera a paisagem monótona
do agreste nordestino, ajuizei ter chegado ao vergal que Del
miro Gouveia criara dentro da brenha san franciscana e que
sonhara transformar em florida Canaã de paz e trabalho. Co
movido, admirei com entusiasmo aquela estranha flor de
civilização e nunca mais deixei de bendizer o homem singular
que, entre cactos e bromélias, conseguira fazer vingar tão viren
te flor..."

Essa imagem foi-nos repetida, recentemente, pelo poeta


cearense Néri Camelo, que avistou a Pedra dos contrafortes
da serra, com as casas lá embaixo, alvinitentes, como capulhos
de algodão. Já o Desembargador Meroveu Mendonça a recorda,
à noite, com sua fábrica e casas brancas, depois de haver atra
vessado pelo caminho escuro aquela região adusta e quase de
serta; de repente, ao aproximar-se da vila, esta se lhe depara,
refletida pelos focos de iluminação, cujo clarão lembrava o
que de longe se avistava na antiga campina do Dérbi.
Possuía a Pedra, então, a melhor luz elétrica do Brasil,
vila operária, água encanada, fábrica de gêlo, jardins, telégra
fo, telefone, banda de música, cinema, tipografia; escolas para
crianças e adultos, ordem e justiça social. E não tinha ladrões,
desordeiros, vagabundos, nem prostitutas. Arno Pearse vê, ali,
"uma cidade especialmente construída onde as casas são espa
çosas e a arquitetura e o plano da cidade, modernos; onde é
mantida estrita disciplina; os operários são bem comportados,
limpos e bem trajados. Ao dirigirem-se para o trabalho estão
mais bem vestidos do que o europeu médio no domingo" (*).
Eles vieram de diferentes pontos, à procura de trabalho.
Os oficiais, tecelães, mecânicos, torneiros, pedreiros, carpinas
etc., bem como as mulheres, eram convidados com insistência
e oferecimento de vantagens, sendo procurados até nos centros
distantes. No primeiro ano, a indústria funcionou com pouca
gente, mas, adotado tal expediente, e depois que se declarou a
sêca de 15, passou a congregar cêrca de 800 pessoas e iria ter
1.000, mais tarde. O operariado trabalhava de segunda até
sábado e descansava no domingo.
(*) MAURO MOTA - citando Jorge Apud Zarur in publicação sobre
o São Francisco, pelo I.B.G.E. (1946).

144
Ao meio-dia, a população regurgitava na feira, fazendo
compras, com grande burburinho, por entre sacos e surrões
abertos, de gêneros, cereais e comestíveis diversos. Na praça, as
fileiras das barracas, com bugingangas, sabonetes, perfumes
baratos como a "Oriza". Nos balcões e mostruários, miçangas,
espelhos, pentes, rosários, medalhas, grampos, lenços e echarpes.
No extremo do barracamento, as mesas de café e os tabuleiros
de bôlos e doces. Armados num canto, os cavalinhos a rodar
com o pescoço enfreado, as ventas acesas e os olhos mortos...
De tarde, as senhoras e môças das principais famílias sen
tavam-se nas calçadas, em cadeiras austríacas, exibindo seus
vestidos domingueiros. E, mal se acendiam as luzes, começavam
as diversões: cinema, carrossel, retreta, dança, tudo puxado
pela música afinada da “Filarmônica”, que tinha até saxofone,
flautim e clarinete. No último domingo de cada mês, o baile
no Cassino constituía o ponto alto, porque era quando se
fazia entrega dos dois prêmios de 20 mil réis para os vestidos
femininos mais elegantes e simples, isto é, um para a môça
mais garrida e outro para a mais modesta.
Nas sete ruas da Pedra, por onde, às vêzes, passava o
automóvel do Coronel, fonfonando e causando admiração ao
povo, se entrecruzavam negociantes, comboieiros e viajantes de
várias procedências. Os primeiros traziam, com seus cavalos
de sela e em seus burros cargueiros, não só couros, peles e
algodão, mas também outros gêneros e mercadorias, como fei
jão, arroz, milho, farinha, rapadura, etc.

Alguns jornalistas, visitantes, comerciantes e políticos eram


hospedados por Delmiro na casa-grande, em apartamento que
oferecia todas as comodidades. Descreve Plínio que, na volta
que deu, após o café matinal, viu ao lado do curtume a má
quina de gêlo; aqui, um aparelho para a desinfecção de esgô
to; ali, o enorme galinheiro, cheio de galináceos, patos, gansos
e pavões; acolá, a ceva com cêrca de 500 porcos na engorda e,
finalmente, os currais com gado de raça. Havia, ainda, bonitos
e bem tratados cavalos, na estrebaria, onde descansavam os de
nome "Rochedo", "Floresta" e "Itabaiana". O primeiro, bra
vio, derribara Delmiro, certa vez, ao espantar-se com o gesto
duma mulher que, de urupema, atirava arroz ao vento para
tirar-lhe as cascas.

145
A vila operária, caiada de branco, irrepreensivelmente
asseada, tinha 258 vivendas, edificadas em série; tôdas iguais, li
gadas umas às outras por parede e meia, de porta e janela, com
3 cômodos e a puxada com a cozinha. Na frente, por tôda a ex
tensão, largo alpendre, suspenso por colunatas à romana, cer
tamente inspiradas nas construções da Itália, onde Delmiro
estivera antes, em longa vilegiatura.
A luz e a água eram istribuídas gratuita e abundante
mente. O Coronel não queria ver casa no escuro e com sujeira.
Cuspo, detritos ou cascas de banana pelo chão, multa de-

"O Coro
500 a 2.000 réis. Os fiscais repetiam, justificando:
nel não quer! A limpeza Deus amou, minha gente!" -

O pre
cioso líquido, canalizado em tubos de 150 milímetros, viera
proporcionar a limpeza, a felicidade e, sobretudo, o milagre
de fazer desabrochar o deserto em eterna primavera. Dava para
tudo, para irrigar plantas e flôres, bem como para manter um
lago artificial, onde se criavam peixes, patos e marrecos.
A irrigação dos terrenos era feita com a água servida; de
pois de usada nos seus fins, ia ter a grande reservatório, dentro
do pomar, daí deslizando por canais a fim de fertilizar a terra
em derredor. Arvores, frutas e flôres agora se viam brotar,
viçosas, daquele solo outrora sáfaro. A bendita água encanada
do rio era como o sangue para os pulmões da vida daquela co
muna, cujo coração a bater em sístoles e diástoles, dia e noite,
era a máquina da bomba e turbina encravadas lá no flanco
do penhasco...
E dizer-se que aquela Canaã Sertaneja, a 400 km. do
litoral, não passava de uma fazenda, com meia dúzia de habi
tações, quando lá chegara o pioneiro, pouco mais de 10 anos
antes! Dera execução ao seu grandioso plano urbanístico e
industrial, com o machado, a foice e a picareta, animado do
propósito de construir prédios, abrir estradas e realizar os ser
viços úteis de melhoramento, até fazer surgir aquela “urbs”,
ao lado da indústria.
A localidade compreendia o parque industrial, separado
por cêrcas de arame farpado, e a "cidade-livre", o povoado
velho, com o prédio da estação ferroviária, próximo da qual
ficava o chalé, a última moradia do pioneiro, que nêle per
noitava com seus serviçais de confiança. Quando Delmiro de
sapareceu, em 1917, a Pedra contava com 6 mil habitantes.
146
Cidade pequena do interior, mas dotada de conforto, limpeza,
ordem, assistência escolar e médico-sanitária; com eletricidade,
água, esgoto, lavanderia, recreação, desportos etc. Não havia
jogo do bicho ou de azar, bebidas, facas de ponta, malfeitores,
ociosos, nem safadeza. Por isso, não carecia de cadeia, nem de
polícia: Os soldados amarelos tão odiados por Fabiano e outros
matutos...

1918 foi inaugurada a capela sob a invocação de N.


Senhora do Rosário e inspiração devota de D. Marieta, espôsa
de Iona. O jornal "O Correio da Pedra", dirigido por Adolfo
Santos, teve seu primeiro número impresso em 12 de outubro
daquele ano. A vila era, então, conhecida por Pedra de Del
miro, designação que tomou, oficialmente, através do Dec. lei
nº 2.909, de 30-12-43, quando da divisão administrativa e ju
rídica do Estado. Criado o município, ex-vi da Lei nº 1.623,
de 16-6-52, foi-lhe dado o nome de "Delmiro Gouveia".
Pelo recenseamento de 1950, a sede municipal, com 1.350
prédios, possuía 5.080 habitantes, constando existir, atualmen
te, população global de cêrca de 15 mil pessoas. Reverenciando
o seu patrono e fundador, há na cidade monumento erigido à
sua memória um marco com cruzeiro no local do chalé,
demolido tempos após a sua morte.
O chalé, de varandas largas, com o jardim e vasos espa
lhados em volta, ostentando rosas lindas e perfumosas, ficava
situado em ponto alto, arejado, não recebendo a poeira le
vantada pela ventania do verão. Defronte, passava a linha
férrea; mais adiante, em frente, estava o edifício da Fábrica;
ao lado, para o sul, o cassino, o parque de diversões e a capela;
e, do outro lado, depois do rio, o cemitério, onde se mandou
construir o imponente túmulo do pioneiro.

147
A Manchester Sertaneja do Norte

A pequena estação da Pedra Ferrovia

em constantes deficits e sem movimento


Como era o prédio da Fábrica
funcionamento desta; grande barulho,
mas sem poeira, fuligem ou sujeira
Número de empregados no início e no
período áureo Os tipos de linhas e fios
fabricados Depósitos, viajantes e pro
Vo
paganda em vários pontos do país
lume de vendas nos mercados interno e
externo Embasamento de novas tur
binas Comparação de verbas dos ba
lanços Aumento de capital para 3.000
-

contos de réis Bom resultado finan


ceiro ainda em 1923 - 3.500 pessoas man
tidas pela Cia. Agro-Fabril e Iona & Cia.

O TÍTULO ACIMA é o mesmo que deu


Plínio Cavalcanti a um de seus magistrais trabalhos de repor
tagem e divulgação, vasados no estilo colorido de seu verbo
flamejante, sôbre a fábrica de linhas levantada na Pedra. Uma
homenagem, pois, ao brilhante jornalista, o escritor que pri
meiro propagou, aos quatro cantos, com ênfase e entusiàstica
mente, o trabalho pioneiro de Delmiro Gouveia às margens
da cachoeira de Paulo Afonso, considerando-o feito notável,
sem paralelo.
Já vimos o que era aquela pequena estação perdida nos
confins dos sertões alagoanos, a dormitar, esquecida, no pedaço
de ferrovia mandado fazer pelo Imperador, com o intuito, não
de servir àquela região pouco promissora, mas de matar a fome
148
de nordestinos num tempo de sêca, "onde os trens sem ter o
que conduzir apenas faziam uma viagem semanal".
A chamada "Estrada de Ferro Paulo Afonso" fôra inau

gurada em 1883 e, decorridos tantos anos, estava na iminência


de parar por falta de renovação de seu material rodante, desa
nimada a direção da Great Western com os deficits sôbre de
ficits apresentados em seus balanços. Não havia jeito, nem
ordem, nem horário, nos seus calhambeques, que andavam su
jos e às môscas.
Certa vez, Delmiro Gouveia ia viajando, quando inopina
damente o comboio parou em meio à estrada. Pensava-se que
era mais um dos costumeiros desarranjos. Os poucos passa
geiros, na conversa que logo se travou, comentavam que aquilo
ocorrera únicamente porque o maquinista estava a comer me
lancia lá na frente da composição. Delmiro encaminhou-se para
lá e reclamou enèrgicamente. Enfurecendo-se, o homem inves
tiu com a própria faca com que cortava a fruta, contra o re
clamante, que se viu obrigado a sacar, em legítima defesa, do
punhal que trazia consigo, por sinal um rico presente ofertado
por Pinheiro Machado, ferindo levemente o agressor, que foi
contido.

No entanto, a citada ferrovia, falida e desarticulada, ia


servir maravilhosamente ao plano do pioneiro, assim como
àquele pobre, recôndito e acanhado lugarejo, de meia dúzia de
casas, numa das quais dormiu sua primeira noite, ali, no inver
no de 1903, entre trevas densas e ouvindo, na calada dos ermos,
o rumor cavo das cataratas, a cêrca de 3 km de distância em
linha reta.
Lancemos as vistas sobre aquêle lugar, passados 10 anos,
ou seja, por volta de 1914/15. A localidade, já servida de água
abundante, passa, nos meados de 1914, a contar com boa luz
elétrica e, em seguida, a indústria entra a funcionar, observan
do-se repentina mudança na fisionomia física e humana da
quelas paragens. O vasto prédio da fábrica, ao lado da vila
operária, compreendia três grandes pavilhões, unidos, tendo os
dois laterais quatro amplas janelas sôbre claraboias, e oito,
o maior, em cujo centro havia o portão principal a que se
tinha acesso por uma escadaria.
Quem entrasse nêle, seria aturdido pelo trepidar das
máquinas, por entre o rumor das conversas dos homens e mu

149
lheres, das cantigas e risadas destas. Barulho de engrenagens,
vozes humanas, pisadas de tamancos e alpercatas e, de longe em
longe, o silvo estridente e rápido da sirena, dando aviso. As má
quinas precisavam parar para isso e aquilo, num defeito a cor
rigir, na hora de descansar, de o pessoal comer ou revezar-se. E
logo o trabalho recomeçava, voltando o ruído dos maquinismos,
o canto dos fusos, o vaivém dos braços metálicos, o girar das
bobinas, com o algodão entrando aqui e desdobrando-se ali, os
fios correndo nos fusos, a linha passando acolá, até chegar ao
encarretelamento...

Tudo fôra instalado e pôsto a funcionar no edifício da


fábrica: as máquinas, com os batedores e os fusos; oficina diri
gida por técnicos, inclusive um alemão; a seção de polimento
das linhas de costura; a de engomados e tingimento dos fios
e fitas; a de encarretelamento, assistido pelas môças; tipografia
e litografia, no fundo, onde eram impressos rótulos e etiquetas;
o escritório comercial, ao lado da fábrica, dando para esta.
Daí o barulho que se ouvia ao abrir a porta de comunicação;
mas não havia poeira, sugada para o teto pelos aparelhos de
renovação de ar.
O recinto do prédio fabril era bem limpo, inexistindo
fuligem, sujeira ou ferrugem próprias dos ambientes de traba
lho dos motores com caldeiras alimentadas à base de carvão

ou lenha, pois os dali o eram à eletricidade, e, além de haver


exaustores, era feita a limpeza das máquinas pelos operários,
todo domingo, quando, depois das 10 horas, ficavam livres e
iam receber a féria semanal.

No primeiro ano de funcionamento, a Cia. empregava não


mais de 800 homens e mulheres, produzindo, diàriamente, ape
nas 1.500 a 2.000 carretéis. No comêço, as máquinas apresen
tavam enguiços, demoravam a engrenar bem, havendo suspeita
de sabotagem, sobretudo por parte dos técnicos estrangeiros.
Conta Pedro Motta Lima, em seu romance, que certa manhã
estourou a bomba. "Mestre Teodósio, mais dois mecânicos
de Rio Largo, ajustaram as máquinas a noite passada e quando
o trabalho começou foi aquela beleza! Pela primeira vez a
fábrica tinha virado o dia todo sem parar".
Quando se desenvolveu, o fabrico compreendia linhas
de coser, em carretel ou novêlo, e de bordar, inclusive sedosas:
fios mercerizados e gaseados para malharia, rêdes e outros fins;
150
cordões e fitas para amarrados, brancos ou coloridos. Em ou
tras palavras: linhas para costura, para rendas e bordados,
-

fios e cordões de algodão cru em novêlos, fios encerados e fitas


gomadas para embrulhos.
A linha de carretel, grossa ou fina, isto é, de número 20
a 70, era acondicionada em tubos de 200 jardas, mas havia
também de 100 e custava 200 réis, tipo êste popular, de com
bate, a fim de concorrer com os novêlos da "Coats", tendo a
marca “ABC”. O artigo clássico tinha a marca “Estrêla”. Ha
via, ainda, a linha “Barrilejo", com um pequeno barril estam
pado no rótulo dos carretéis, destinada a exportação para o
exterior.

Quando os produtos se impuseram à aceitação, tornando-se


acreditados e preferidos por sua resistência, os operários tive
ram que trabalhar dia e noite, sem parar, revezando-se em tur
mas de 8 horas. Para que os pedidos fossem direta e mais pron
tamento atendidos, mantinha-se depósito nas principais cidades
- Rio, Recife, Paraíba e Fortaleza com grande e completo
-

sortimento, em linha de carretel, novêlo, bobinas ou meadas,


havendo viajante em cada Estado, para fazer venda e propagan
da. Por ocasião de uma das grandes e tradicionais festas de
Nazaré, em Belém, foi lá armado magnífico pavilhão, com
mostruário e sortimento dos produtos da Pedra, novidade que
se constituiu em verdadeiro sucesso.
Em 1916, a fábrica nacional intensifica ainda mais a pro
dução, tendo com a linha "Barrilejo" afirmado seu nome no
estrangeiro, com as primeiras exportações feitas para a Argen
tina, Chile, Peru e outros países dos Andes. Aquela altura,
produz 150 grosas de carretéis diários e coloca, nos mercados
interno e externo, cêrca de 2.000 contos de réis de seus artigos.
No mesmo ano, começam os trabalhos de ampliação, junto à
furna dos Morcegos, com o embasamento das 4 turbinas adqui
ridas, para captação de energia, num total de 10.000 HP., convin
do lembrar que, logo ao verificar-se o florescimento da indús
tria, tinham sido encomendadas duas: uma de 1.000 HP., na Suí
ça, e outra de 3.000, em Filadélfia (EUA).
Um ligeiro confronto dos balanços da Cia. Agro Fabril
do ano de 1914, quando a manufatura teve início e do refe
rente ao exercício de 1917, quando o pioneiro foi morto,
revela a marcha evolutiva e acelerada de seus empreendimentos.
151
No 1º, a instalação hidrelétrica figurou com a verba de Rs.
1.177:230$690, enquanto o edifício industrial apareceu com
Rs. 297:758$170, custando a fábrica de linhas Rs. 572:125$940.
Três anos depois, as instalações hidrelétricas atingiam o mon
tante de Rs. 2.191:836$690, e na fábrica tinha sido aplicado
o valor de Rs. 1.920:127$260, sem falar no importe gasto na
melhoria e ampliação do edifício.
As despesas com as construções da vila, residências, arma
zéns e outros prédios montavam a Rs. 110:000$000, até o fim de
1914; no balanço de 1917, já muito aumentadas, chegavam a
quase Rs. 600:000$000, o que era, na época, respeitável cifra.
E isso tudo sem se levar em conta quanto fôra aplicado em
outros melhoramentos necessários ao bom andamento da in
dústria, mui especialmente nas estradas de rodagem, em que
Delmiro dizia haver despendido, sòmente com a construção de
56 léguas no território alagoano, 100 contos de réis.
O aumento do capital da emprêsa, de 2.000 para 3.000
contos, foi providenciado em 1918, por iniciativa de Lionelo
Iona, o que motivou o protesto, mais tarde, dos filhos de
Delmiro, logo que atingiram a maioridade. Os negócios da
companhia continuaram prósperos por mais alguns anos, tendo,
ainda em 1923, fechado balanço com dividendo de 10%; mas,
a partir de então, decaíram até chegar ao completo fracasso.
No período áureo, as organizações fundadas pelo pioneiro,
compreendendo a Cia. Agro-Fabril e Iona & Cia., chegaram a
abrigar cêrca de 3.500 pessoas, mantidas por seus diversos de
partamentos e setores de trabalho.

152
Nas Estradas os Automóveis Espantavam
Cangaceiros, Jagunços e Beatos...

O homem nordestino sofria perseguições,


injustiças, explorações Os mandões,

políticos e poderosos o oprimiam e espo


liavam Arrastado ao crime, virava
bandido ou místico Quem detinha os
podêres espiritual e temporal As revo
luções do Conselheiro e Pe. Cícero; os
ataques por Antônio Silvino e seu bando
Delmiro Gouveia, fôrça nova, diferen
te Meios de transporte e comunica
ções, na Pedra, deficientes e precários
O"positivo" e suas caminhadas Aber

tura de estradas, sem auxílio oficial


Despesas e dificuldades a vencer Os

automóveis; o espanto que causavam.

ASSIS SSIS CHATEAUBRIAND


que estêve na
Pedra, apreciando aquela colmeia de trabalho dissera que a
admirável obra de Delmiro era uma resposta a Canudos, Meca
do tismo, Moloch insaciável que devorou cêrca de 5.000
vidas brasileiras, desaparecidas no fogo e sangue de uma guer
ra fratricida que estarreceu a Nação e despertou o gênio de
Euclides. Outro jornalista, Plínio Cavalcanti, que também vi
sitou a "Manchester Sertaneja do Norte", proclamou aos qua
tro ventos que aquilo era o feito mais notável de que se tinha
notícia em nossa história.

Eles viram de perto o empreendimento levantado pelo


pioneiro numa região semi-árida e longínqua, executado pelas

153
mãos de um povo tido como incapaz; êles conheciam muito
bem os problemas sócio-econômicos daquela pobre gente, o seu
baixo nível de vida, as suas misérias de corpo e alma, a sua
mentalidade destorcida por fatôres mesológicos, o abandono a
que fôra relegada pelos governos; e, portanto, consideraram
milagre o que realizou Delmiro, nos sertões, "sem a cruz, o
hábito do missionário e os dinheiros públicos".
O homem daquela zona sofria perseguições, injustiças so
ciais e da lei mal aplicada, vivendo sem escolas, sem garantias,
sem proteção. Oprimido, explorado pelo mais forte que lhe
roubava a terra ou a filha môça, êle tinha que matar, para se
defender, limpar a honra ou desabafar a consciência, e logo
corria aos pés de Deus. Nascia e crescia sob o cruel fatalismo
do punhal e da cruz; do rifle e do rosário...
O poder espiritual, emanado de Deus, para proporcionar o
bem, para evitar ou redimir pecados, para impor castigos,
como a sêca, era simbolizado, na terra, por vultos como Antô
nio Conselheiro e Padre Cícero; o poder temporal era empunha
do pelos juízes, delegados e soldados de polícia, sofrendo, às vê
zes, a influência perniciosa dos políticos, ricos ou potentados, os
quais recorriam, na satisfação de seus baixos instintos, aos can
gaceiros, capangas e sicários. Esses podêres não raro se con
fundiam, juntando-se para o combate às fôrças de oposição,
sendo difícil distinguir o bem do mal.
A chamada literatura modernista, em que pontificaram os
romancistas do Norte, José Américo, Lins do Rêgo, Raquel
de Queiroz, Graciliano e outros, focalizou essa chaga social
em côres vivas e tipos por vêzes caricatos mas bastante expres
sivos. Ainda recentemente, o velho escritor Ulisses Lins dizia
em artigo intitulado “Nascimento, Vida e Morte do Cangaço"
que os sertanejos "foram arrastados ao crime por injustiças
tremendas, perseguições inomináveis, numa época em que a
Justiça era a vontade e o capricho dos mandões de aldeia".
Antônio Conselheiro, no fim do século passado, armou na
Bahia a revolução contra as forças da República nascente; An
tônio Silvino com seu grupo atacava, no limiar dêste século,
a usina do Cel. Santos Dias e, em 1906, assaltava a fazenda do
Cel. Paulino Rafael, perto de Afogados de Ingàzeira; Padre
Cícero, por volta de 1913/14, fêz-se chefe da rebelião armada
que depôs o govêrno de Franco Rabelo, no Ceará. E os sertões do
154
Nordeste passaram a abrigar beatos, cangaceiros e jagunços,
egressos dessas revoluções e integrantes, alguns, de falanges
do roubo, homens válidos, afastados de suas ocupações normais
e transformados em ociosos, rebeldes e celerados.
Entre Canudos do Conselheiro e Juazeiro do Pe. Cícero
surgiu uma fôrça nova, diferente... Estava escrito que entre
os dois cearenses o beato e o sacerdote apareceria por
-

coincidência o terceiro, Coronel Delmiro Gouveia. Ia êste


crescendo, quando certa vez, numa roda, ouviu a alusão feita
por alguém que pensou envaidecê-lo, de que êle era já o mais
importante e respeitado "coronel" da redondeza, porque tinha
o maior número de homens a seu serviço, ao que observou
com ar melancólico: "Aqui o valor do homem não se mede
pelo bem que possa fazer e, sim, pelo mal que possa pro
porcionar!"
Aquêle "coronel" veio dar trabalho e pão, sem mandar
matar ninguém; puxar água nos canos e luz boa nos fios para
a cidade que fundou, onde não permitia punhal, nem cacha
ça; abrir escolas, como também estradas, na caatinga desolada,
por onde seu automóvel corria até de noite, espantando can
gaceiros, jagunços, beatos, párias...

Os meios de transporte e de comunicações com que Del


miro contava, na estação da Pedra, eram o do ramal ferroviário
até Piranhas e o do aparelho telegráfico que êle pleiteou e
conseguiu fôsse instalado naquela parada de trem. Esses meios,
que o punham em contacto com o mundo, tornaram-se, porém,
insuficientes e precários com o desenvolvimento de seus negócios
de peles e, máxime, depois de inaugurada a fábrica de linhas.
Estávamos em 1914. A Cia. Agro-Fabril começa logo a
funcionar em ritmo acelerado, para atender à grande procura
de seus produtos, de vez que os similares da Machine Cotton,
tradicionalmente vindos da Grã-Bretanha, escasseavam no mer
cado por falta de novas remessas, dadas as dificuldades de trans
porte marítimo causadas pela Grande Guerra.
Como solução para um dos aspectos do problema, Delmiro
tratou de arranjar um "positivo" para levar, duas vêzes por
semana, a vasta correspondência que passou a expedir e rece
ber. Esse herói anônimo palmilhava aquêles caminhos, apressa
155
damente, no lepo-lepo das alpercatas, fazendo a longa e rápida
viagem de ida e volta a Garanhuns, isto é, à estação de Gli
cério, ponto de entroncamento dos trens de Maceió e Recife.
Seria aleatório e duvidoso cuidar da intensificação e me
lhoramento da navegação fluvial, via São Francisco, em virtude
das mesmas dificuldades trazidas pela Guerra, e, assim, o pio
neiro voltou suas vistas para o automóvel, essa invenção que
veio revolucionar o mundo civilizado ainda no alvorecer do

século xx. O automóvel, imaginou êle, seria a solução, desde


que houvesse estradas atravessando o sertão, pelas quais o veí
culo marchasse velozmente, conduzindo seus auxiliares e a êle
próprio, quando urgente.
Era pois preciso atacar a abertura de estradas mediterrâ
neas. Para isso contava com os conhecimentos práticos e técnicos
de Domingos Mota (pessoa que até pouco tempo vivia ainda
em Arapiraca), a quem confiou a direção do serviço, que foi
feito, a bem dizer, com a foice, a enxada, a picareta e a pá.
Escusado acentuar o que foi essa epopéia levada a efeito por
aquêle Rondon do Nordeste, sem os favores do Poder Público.
Conta-se o único caso da ajuda de apenas 50 contos, dados
pelo Estado de Alagoas, o qual vale a pena relembrar ao menos
para mostrar a clarividência, a fôrça da personalidade e o espí
rito persuasivo de Delmiro, segundo depoimento do Prof. Car
los Garrido, que o acompanhou ao Palácio do Govêrno, em
Maceió, e testemunhou o ocorrido que passamos a resumir.
Delmiro foi até lá, em 1914, pedir ao Presidente Batista
Acióli um auxílio daquele montante para as obras que estava
fazendo, sózinho, quando elas eram do interêsse público. Ale
gava um gasto da ordem de cem contos com as estradas, numa
extensão de 56 léguas, sòmente no território alagoano; da Pedra
a vários pontos, inclusive o trecho que se dirigia para Vitória,
atual Quebrangulo.
Após ouvi-lo atentamente, o Presidente respondeu que re
conhecia a justeza da pretensão, mas que o Estado era pobre,
vivia em deficit, com um orçamento de 15 mil contos anuais
apenas, e que êle e sua organização eram, por sinal, dos maio
res contribuintes. Acabou dizendo mais ou menos o seguinte:
Não posso, coronel, dar essa importância, mesmo por
que era preciso que a verba fôsse votada antes. Se lhe der o
156
dinheiro, vão criticar-me na Câmara e na imprensa... Como
vê, coronel, não posso!
Pode, sim! e de modo muito simples. O Sr Governador
abre o crédito por decreto ad referendum da Assembléia...
e pronto.
Batista Acioli lançou um olhar para seu secretário, enquan
to Delmiro se levantava e se despedia. Um ou dois dias depois,
o Diário Oficial do Estado publicava um decreto, abrindo o
crédito de 50 contos para aquêle fim, pagáveis em dois anos e
duas prestações iguais, tudo na forma sugerida pelo postulante.
Depois de cinco anos em que se ouviu, incessantemente, o
bater das ferramentas nas caatingas e no chão sêco daqueles
ermos, estavam construídos 520 quilômetros de ótimas estra
das carroçáveis, assim calculados: 24 para Paulo Afonso; 20
para Água Branca; 25 até Mata Grande; 300 até Quebrangulo,
com trânsito por Santana do Ipanema e Palmeira dos índios e,
finalmente, 151 até Garanhuns, passando por Bom Conselho,
pelo ramal que partia do município de Santana.
Pedra, já servida pela ferrovia Piranhas-Jatobá, passou
a ser ligada, por rodagem, primeiramente, à cachoeira e aos
núcleos urbanos mais próximos; depois, a estrada se dirigiu
rumo às linhas da Great Western, alcançando Garanhuns em
frente e, de lado, o ponto terminal de Quebrangulo. Por estas
estradas, mais tarde, os caminhões puderam penetrar o inte
rior, e, desde logo, serviram elas aos viajantes e aos turistas
que queriam ver a famosa Paulo Afonso.
Esse trabalho pioneiro e civilizador de Delmiro Gouveia
só pode ser avaliado por aquêles que conhecem os sertões
nordestinos e que, à época, lá estiveram. Vamos transcrever, a
seguir, a impressão de dois jornalistas, começando pela de Raul
Azêdo, que fêz a travessia de Jatobá a Rio Branco (atual
Arcoverde).

"De Floresta, partimos para Rio Branco, qua


renta e tantas ou cinqüenta léguas, já nem sei bem,
atravessando a enorme e riquíssima região de pastos
do Navio, na qual, entretanto, só vimos terrenos in
cultos, aqui e ali salpicados de montículos de pedras
encimados por cruzes de madeira, a marcarem se
pulturas de vítimas de emboscadas ou de sangren
tos combates. Ali só se falava em Casimiro Honório,
Antônio Boiadeiro e quejandos, em assaltos e lutas

157
de cangaceiros com a polícia, ou de uns com os
outros. Passamos pela sepultura do tenente Frede
rico, abatido no meio dos seus soldados, por uma
bala que lhe varara o crânio. Passamos pela casa
do célebre Antônio Boiadeiro, verdadeira fortaleza
com espessas paredes crivadas de seteiras, que estava
abandonada e mostrava os violentos vestígios de um
assalto sustentado na véspera. Atravessamos Sam
bambaia e fomos pernoitar na casa do fazendeiro
Coronel Joaquim Xavier, também armada em forta
leza com espessas paredes crivadas de seteiras. An
tes duas léguas de chegarmos, nós encontramos cen
tenas daqueles cangaceiros célebres em todo o nor
deste, acompanhando, e a rezar em altas vozes, dois
missionários que se dirigiam para a igreja de
Sambambaia".

Plínio Cavalcanti escreveu o seguinte:


"De Garanhuns à Pedra, marchamos 253 km
através do agreste e de caatingas, quase no deserto.
Léguas e léguas sem encontrar uma casa. Quando
se nos depara uma choça, as figuras que correm para
o automóvel lembram-nos como deveriam ser as
criaturas a quem Delmiro Gouveia ensinou o amor
ao trabalho, vestiu, barbeou e penteou: esfarrapa
das, hirsutas, seminuas, famintas, vivendo ao Deus
dará...

"Cidades, vilas e lugarejos humildes, onde sò


mente os carros de boi conseguem penetrar, vêem-se
de repente surpreendidos com os curiosos motores
de combustão dos automóveis modernos. Delmiro,
com sua palavra colorida, contava casos de suas ex
cursões. De uma feita, uma velha que fazia lenha à
beira da estrada, ao avistar o FIAT que êle guiava,
correra atrás do carro com uma fúria de megera,
amaldiçoando-o com uma vara. De outra, um va
queiro, ao ver-se vencido na disparada, deixa a es
trada e, atalhando-o em rodeio pelas trilhas do mato,
enfrenta-o para apostar a correr consigo dentro da
caatinga".

Foram grandes as despesas e muitas as dificuldades a


vencer, compreendendo, entre aquelas, a da conservação das
estradas, para o que foram destacadas duas turmas permanentes
de trabalhadores. A gasolina vinha por Penedo, em caixas de
2 latas, como o conhecido querosene "Jacaré", trazido como
158
outras mercadorias importadas pelos vapôres da Europa e da
América.

Um chofer europeu foi contratado, sendo escolhido o ca


boclo Antônio Cruz para seu ajudante. Cruz acabou substi
tuindo aquêle, tornando-se mecânico hábil que consertava os
carros e até piano, desfrutando tôda a confiança e sendo auxi
liado por João de Deus, que, até pouco tempo atrás, vivia em
Palmeira dos Indios.
Os automóveis eram um bonito FIAT, um AUSTIN grande,
outro pequeno e, finalmente, um enorme NAG, os quais causa
vam espanto e admiração por onde passavam. Conta o jorna
lista Tadeu Rocha o sucesso que faziam ao chegar à sua cidade
natal, Santana do Ipanema, onde o povo conhecia, de longe,
cada um dêles, só pelo som da buzina. “Daí a pouco, o automó
vel parava em frente do sobrado do Cel. Manoel Rodrigues:
era Delmiro, Iona, Adolfo Santos, Borella, Ferrário ou o médico
da Pedra, de passagem. Enquanto o hóspede jantava lá em
cima, o chofer se desdobrava em complicados serviços: botava
óleo e gasolina, bulia numa pequena bomba misteriosa e pre
parava os faróis de acetileno para viajar durante a noite".
E havia, também, na longínqua cidade do interior de Ala
goas, naqueles recuados tempos, um tal de Honorato Avelino
que, embora tivesse pacto com o demônio, segundo a crença
popular, certa feita apostou carreira com o FIAT e perdeu lon
ge... Era mesmo o anticristo - virgem! -

que passava esprita


do, com olhos de fogo, levantando poeira nas estradas e espan
tando roceiros, malfeitores, retirantes e megeras...

159
Relações com Políticos e Homens de Estado

Falta de vocação política As perse


guições e ameaças, até de morte - Ade

riu às correntes oposicionistas Fêz


parte de conclaves partidários e de uma
caravana Sua prisão, na Pedra, pela
-

polícia de Pernambuco A reação do


Governo e povo de Alagoas Punhal
oferecido por Pinheiro Machado que lhe
serviu de defesa A farsa do grupo ar
mado em volta do canhão Rosa e Silva

o denuncia do Senado A eleição de


Dantas Barreto e o entusiasmo geral
A queda do "rosismo" é cantada em verso
e no cancioneiro; a "Vassourinha"
nome de Delmiro volta a ser lembrado
no Recife Pede apenas a substituição
do chefe político de Jatobá; pleiteia do
Governo a concessão para explorar a
Paulo Afonso.

DELMI
ELMIRO GOUVEIA não tinha queda
para a política, a difícil arte de Maquiavel, que exige, freqüen
temente, espinha dorsal maleável, falsidade, bajulação. Dotado
de vontade própria e forte personalidade, o líder do comércio
e da indústria, espírito prático e realizador, nunca poderia
ficar atrelado ao carro velho e sujo da oligarquia pernambu
cana. Faltava-lhe vocação para a subserviência, para as injun
ções partidárias, para os cambalachos feitos em surdina, impos
tos por um soba às assembléias apáticas em que predomina
vam servis e decadentes senhores-de-engenho.

160
Assim como Mauá, Delmiro não nascera, positivamente,
para a vida de político, e muito menos "para lidar com os
podêres públicos" (V. pág. 422, da biografia de Mauá, por
Alberto de Faria). E poderia ter declarado, como o Barão,
àqueles que o convidavam a procurar as camarilhas oficiais,
a fim de não continuar sob a ameaça de prisão e de morte, que
tal coisa era impossível, porque "fizemos voto de dedicar toda
a nossa vida aos melhoramentos materiais, sejam quais forem
os desgostos que nos advenham”.
Mas estava escrito que a política haveria de envolvê-lo.
O enorme prestígio que desfrutava, não só entre os homens
de negócio, mas também nas altas rodas e no meio das massas,
atraiu sôbre si o ódio e despeito dos políticos. Ele mesmo o
declarou, explicando em artigo publicado no "Jornal do Co
mércio", do Rio: "Um choque entre meus interêsses comer
ciais, na qualidade de proprietário do Mercado da Estância,
no Recife, e os interêsses políticos do Prefeito Municipal da
quela cidade, chamou sôbre mim as prevenções da política
partidária do Dr. Rosa e Silva, a quem aquêle prefeito é fi
liado".

A princípio, fizeram-lhe campanha surda, guerra de ner


vos, picuinhas, visando a irritá-lo e persegui-lo. Conta Mauro
Mota que eram vistos, a tocaiá-lo, capangas em travesti andando
pela rua do Brum e pelos canteiros floridos do Dérbi. Quando
êle resolveu ir ao Rio solicitar providências ao chefe-mor, o
Prefeito Esmeraldino Bandeira fêz seguir atrás um conhecido
desordeiro de nome João Molambo, com a incumbência de eli
miná-lo. Graças ao aviso de um amigo comum, Delmiro soube
do perigo que corria, indo responsabilizar a Rosa e Silva pelo
que viesse a sofrer, no que foi repelido de forma ostensiva
mente grosseira.
Perpetrado o inominável incêndio do Dérbi, não podia
êle permanecer insensível e acovardado ante tamanha afronta,
dirigida mais contra o povo do que a si mesmo, daí ter que
aderir às correntes de oposição que já vinham lutando pela
queda da oligarquia. Lembra Adolfo Santos que, na qualidade
de integrante de conclaves partidários, êle fizera parte de uma
caravana que fôra ao interior, em propaganda eleitoral. Che
gando a Pesqueira, instado por seus amigos e conhecidos, e
aclamado pela assistência, Delmiro pronunciou empolgante
161
discurso ali, o primeiro e único de que se tem notícia, sendo
bastante aplaudido e felicitado pelo orador oficial que disse
estar êle muito bem iniciado na arte de falar...
Esforçou-se para não cair nas malhas da política; porém,
arrastado à arena da luta, à guerra de vida e morte, entrou
nela de armas e bagagens. Logo depois, processado e sob amea
ça de morte, teve que sair do Recife e, por isso, deixou o
cenário da luta. Por volta de 1904, precisamente a 21 de maio,
foi prêso na estação da Pedra pelo Tte. João Izidoro, oficial da
polícia de Pernambuco, fato que faz suspeitar numa armadilha
preparada por seus tradicionais e ferrenhos inimigos.
Viajando pelo ramal da Paulo Afonso uma tropa de sol
dados, o seu referido comandante, ao descer naquela parada,
reconheceu Delmiro, a quem deu ordem de prisão e conduziu
a Jatobá. A notícia do ocorrido imediatamente se espalhou,
chegando a Maceió e Recife. Euclides Malta, governador de
Alagoas, protestou veemente, por telegrama, junto a seu colega
de Pernambuco, Sigismundo Gonçalves, recomendando a seus
correligionários sertanejos que formassem piquetes para impe
dir a passagem dos policiais com o prisioneiro. A recomendação
foi cumprida, especialmente pelo Cel. Manoel Rodrigues da Ro
cha, de Santana do Ipanema, que convocou voluntários, para
tal fim, espalhados pelas estradas, bem como pelo Cel Ulisses
Luna, de Água Branca, que reuniu mais de 100 homens despa
chados, a cavalo, para Jatobá, devidamente armados.
Enquanto o sertão ficava assim em pé de guerra, os amigos
do ilustre prêso, lá no Recife, sabedores da ocorrência, foram
entender-se, juntamente com o jurista Faelante da Câmara,
com o Governador de Pernambuco; e, no dia 23 de maio, o
Tte. Izidoro teve ordem do Chefe de Polícia daquele Estado
para soltar Delmiro, que regressou a casa com enorme acom
panhamento, tendo chegada festiva. Pelo sim e pelo não, a
cabroeira do Cel. Ulisses demorou alguns dias na Pedra, du
rante os quais Delmiro mandava abater um boi, diàriamente,
para dar-lhe alimentação.
O oficial da polícia prosseguiu viagem, amedrontado, na
diligência mandada ao sertão de Cabrobó e, de volta, julgou
se na obrigação de pedir a Delmiro licença para passar, na
Pedra, com a tropa volante, no que aquêle consentiu, desde
162
que ela viajasse em trem expresso e com os carros fechados.
O incidente, valorizado pela reação do Govêrno e povo de
Alagoas, culminando com o relaxamento da prisão, ensejou
lhe sérios aborrecimentos, mas serviu para aumentar-lhe a
notoriedade. E era mais uma razão para que Delmiro voltas
se a combater a oligarquia de Pernambuco, que, mesmo de
longe, não o perdoava nem esquecia...
Pinheiro Machado deu-lhe, de presente, um punhal com
cabo trabalhado em ouro e prata, que foi usado, como arma
de defesa, numa viagem de Piranhas a Pedra, contra a fúria
de um maquinista. Este foi por êle advertido, em virtude de
estar comendo melancia, após haver parado o comboio em
meio à estrada, sem nenhuma consideração a seus deveres nem
à sorte dos passageiros. O maquinista investiu insólita e feroz
mente, de faca em punho, para agredir Delmiro, que teve
de sacar o punhal, com o qual o atingiu de leve.
Certa vez, concebeu a idéia de reunir alguns operários,
fardados, de boné e empunhando carabina "Winchester", em
volta de duas rodas velhas de carrêta, com o eixo atravessado
por grosso tubo de ferro, o que dava idéia dum canhão. Man
dou bater fotografia do grupo, a qual foi por um pseudo
viajante, que por ali passava, remetida em carta a Rosa e
Silva, à guisa de denúncia, advertindo-o do perigo iminente da
intentona que Delmiro preparava com homens e canhões,
para derrubar o govêrno constituído no Norte.

Com a autoridade de chefe político regional, Rosa e


Silva foi à tribuna do Senado chamar a atenção do Govêrno e
das forças armadas para o que se conspirava naquela região,
palco de outros movimentos sediciosos, como o de Canudos
e de Juazeiro. Isso provocou celeuma no Parlamento, pondo
em foco, nas manchetes da imprensa do país inteiro, o nome
de Delmiro Gouveia. Este gozou muito por ter a brincadeira
alcançado o seu objetivo, que era ridicularizar o austero Se
nador Houbigant, rindo a valer com os soldados do batalhão
que ali chegou, depois, sendo règiamente hospedado, o qual
tivera ordens de dissolver a conspirata e aprisionar o seu cabeça.
Em 1911, Pernambuco pegou fogo com a eleição para
governador. Avolumou-se a "onda popular", encabeçada pelas
fôrças vivas e pensantes, interessadas em pôr têrmo à oligar
163
quia emperrada e nociva, que, havia 16 anos, dominava o
Estado. Dantas Barreto, general pernambucano, amigo de
Hermes da Fonseca, serviu de bandeira ao movimento. Pelo
entusiasmo geral logo despertado, tinha-se como certa a sua
eleição e, conseqüentemente, a queda do “rosismo". Até na
Capital Federal, a opinião pública estava empolgada com o
pleito. Os jornais, igualmente; cheios de notícias a respeito,
previam o resultado das urnas, glosando-o em versos jocosos
como êstes:

Do Rosa o suave perfume


No Recife se evapora
Da espada afia-se o gume
E cheira a chamusco agora.

Por um famoso prodígio


Eis que uma certa manhã
Rolou por terra o prestígio
Do Senador Houbigant.

Confirmou-se o vaticínio. Dantas obtivera maciça votação


e seria o vitorioso. As ruas do Recife se engalanam para re
cebê-lo. A imprensa local o elogia e incentiva, ao passo que
verbera os erros do regime e dos homens depostos. Os poetas,
com a verve estimulada, fazem versos que caem no domínio
público. Andam muito em voga os seguintes, na música da
"Vassourinha", canção cantada de bôca em bôca:

Pela onda popular,


Pela onda popular,
Rosa e Silva é esmagado;
General Dantas Barreto,
General Dantas Barreto,
Vai salvar o nosso Estado.

Cantemos, pernambucanos,
Cantemos, pernambucanos,
Um hino santo em louvor.
General Dantas Barreto,
General Dantas Barreto,
É o nosso salvador!

164

COMPON
ESTRIBILHO

Salvai! Salvai!
Querido General
O nosso Estado
Das mãos do traidor!
Vem libertar
O povo escravizado
Vem espalhar
A paz, a luz, o amor!

Em meio à alegria, ninguém podia olvidar aquêles que,


como Delmiro Gouveia, sofreram perseguição do situacionis
mo e batalharam para derrubá-lo. Seus amigos e correligio
nários indagaram-lhe sôbre as pretensões, ao que se limitou a
responder que nada queria, ia continuar no interior, onde já
estava radicado. Apenas pediu que entregassem a chefia polí
tica de Jatobá, há muito tempo nas mãos de José Gomes de
Sá, a uma pessoa de sua amizade e confiança, como Aureliano
Gomes de Menezes, que, como se sabe, substituiu aquêle.
Delmiro só pensava, então, era no aproveitamento hidre
létrico da Paulo Afonso. Conhecendo os condôminos das ter

ras à margem da cachoeira, adquiriu direitos sobre elas. Ou


tras providências preliminares era preciso tomar, como obter
concessões dos Governos estaduais, através de lei que assegu
rasse direitos, privilégios e isenções, necessários à exploração
agro-industrial.
Pernambuco, o principal, tinha de ser consultado, pois
Alagoas concordava e Bahia, embora vacilasse, acabaria de
acordo, acompanhando os outros. Delmiro manteve sempre
diga-se de passagem as melhores relações com os governos
-

alagoanos (Euclides, Paulo e novamente Euclides Malta -

o que motivou a reviravolta que acabou com a oligarquia


dos Malta Clodoaldo da
-

Fonseca, Batista Acióli e Fernan


des Lima).
E foi entender-se com Dantas Barreto, empossado no
Govêrno em fins de 1911. Expôs-lhe todo o plano, de envolta
com sua pretensão, que consistia em obter autorização legal
para que os fios de alta tensão atravessassem o território per
nambucano, levando energia elétrica ao Recife, sem que o
Estado tivesse ônus com isso, nem precisasse subscrever capital.
165
Tendo acabado de subir ao poder na crista dum movi
mento geral de simpatia, o General talvez haja pensado que
iria reavivar ódios se prestigiasse a grandiosa obra de quem,
como Delmiro, foi inimigo ferrenho e declarado da oligarquia
derrubada, que, todavia, ainda estava bulindo, congregando
grandes vultos e poderosas fôrças do Leão do Norte. O cea
rense era tido como forasteiro, perigoso, irresponsáveľ, dado
a negociatas, enfim um visionário que já havia falido e acar.
retado prejuízos de monta, com seus planos considerados
mirabolantes.

Só assim se explica por que Dantas Barreto assumiu aque


la inesperada e infeliz atitude de recusa, em que persistiu a
dizer que "êsse negócio é tão arrojado, tão vantajoso para o
Estado que está cheirando mal", negando-se, mesmo, a permi
tir o assentamento dos postes nas terras do Estado. O General
saiu do encontro, segundo já se disse, com esta de cabo-de-es
quadra... e Delmiro, com o coração cheio de amargura e
decepção.
Decididamente, êle não tinha sorte com os políticos nem
com os podêres públicos. Era, pois, seguir o seu destino, sò
zinho e incompreendido, abrindo com as próprias mãos a sua
estrada de pedra mas luminosa, sem jamais esperar por êles.
E, hoje, ainda é mais oportuno repetir a frase lapidar de
Plínio Cavalcanti: "Num país de retóricos e parasitas em
que o indivíduo vive e morre na tutela dos favores públicos,
sem ânimo nem coragem para se afirmar como homem e ci
dadão livre, Delmiro Gouveia constitui um símbolo de esperan
ça para todos os que lutam e confiam".

166
Seu Prestígio e Prosperidade
Atraíam Ódio e Inveja Mortais

A figura de Delmiro ofuscava os podero


sos, em qualquer parte - Primeiro, no
Recife, onde gozava grande popularida
de; depois, na Pedra, onde voltou a afir
mar-se, tornando-se o maior dos coro
néis Na capital, o incêndio criminoso
do Dérbi - Suas explicações numa série
de artigos, e a versão (desconhecida) do
Prefeito Esmeraldino Bandeira No ser

tão, Zé Rodrigues, de Piranhas, e Zé Go


mes, de Jatobá, tornaram-se seus inimi
gos ferrenhos Motivos do incidente
com o primeiro e da rixa do segundo -
Conluio dos dois, mandantes do atenta
do, na maior das vinganças.

CONFORME DISSEMOS em capitulo ante


rior, a sombra projetada pela figura de Delmiro Gouveia, a
auréola de luz que dela irradiava, ofuscando os poderosos, des
pertava-lhes inveja e ódio. Isso ocorreu a princípio, no Recife,
quando êle adquiriu a Usina Beltrão, e, nos terrenos baldios
do Dérbi, construiu o modelar Mercado; o fato se repetiu, mais
tarde, quando o pioneiro se afirmava com sua "autoridade
social" nos sertões nordestinos, diminuindo a fôrça e apagando
o prestígio dos coronéis de aldeia.
Com efeito, a oligarquia pernambucana chefiada pelo
Senador Rosa e Silva e exercida, tirânicamente, por seus asse
clas do Recife, não podia ver com bons olhos aquêle homem

167
progressista, com pinta de líder e ídolo popular, de tal modo
que o seu nome era reverenciado e querido como o de Passos,
no Rio. Houve época em que a música do "Dobrado Delmiro
Gouveia" era assobiada e cantada, nas ruas da Muricéia, como
uma Marselhesa...
Segundo muito bem escreveu um contemporâneo, o enor
me prestígio do grande comerciante se tornava, dia a dia, mais
real e vultoso e a sua permanência, ali, representava cons
tante ameaça ao situacionismo dominante, podendo "fazer ir
pelos ares tôda a máquina política do capitão-mor daquela
feitoria republicana. Eliminá-lo seria precipitar os aconteci
mentos, lançar no ânimo do povo oprimido o rastilho de uma
revolução. Ao invés da fôrça, seria mais oportuno acender a
fogueira da inquisição”. – E, assim, era melhor tocar fogo ao
-

Dérbi.

O rapto da menor Eulina, pupila do Governador Sigis


mundo Gonçalves, veio a calhar, servindo de excelente pre
texto para escorraçá-lo. Ninguém podia imaginar era que
aquêle homem processado, falido e expulso da liça voltasse
depois a afirmar-se, inclusive financeiramente, feito Rei das
Peles e capitão da indústria, com o nome repetido pelo Nor
deste inteiro como um símbolo de fôrça tenaz e realizadora
que emerge do chão. Anteu moderno a erguer e dominar a
avalanche da cachoeira que, na imagem poética, estava rouca
de clamar pelos homens do Brasil...
Na etapa vivida no Recife, as principais ocorrências com
Delmiro e as perseguições que lá sofreu estão referidas e co
mentadas em muitas passagens desta obra, principalmente no
capítulo sôbre o Mercado do Dérbi. Fizemo-lo com base no
material de pesquisa colhido em informes verbais, de imprensa
e de livros, sobretudo nos insuspeitos depoimentos de contem
porâneos.
Soubemos que o Prefeito Esmeraldino Bandeira publicou
um opúsculo, à guisa de defesa, narrando (a seu modo, sem
dúvida) os motivos da questão. Não conseguimos ler o referido
trabalho, nem conhecer a versão que dá ao caso, com seus
antecedentes e pormenores. Acreditamos, todavia, que, se não
houve inconfessáveis motivos, tudo que ocorreu foi devido ao
que Delmiro explicou nos artigos publicados no "Jornal do
Comércio", do Rio, e transcritos na "A Província", do Recife,

168
isto é, resultou do choque de seus interêsses com os da política
oligárquica e feudal de Rosa e Silva, defendida encarniçada
mente a baioneta e a bala, à moda da época, pelos seus tru
culentos sequazes.
Seria ocioso repetir aqui tais fatos, razão por que nos
ocuparemos apenas dos ocorridos na Pedra, também motiva
dos por baixos sentimentos de inveja e rancor aninhados na
alma tôrva de dois mandões da roça que, num pavoroso con
luio, longamente concebido e ditado pela maior das viganças,
mandaram eliminar tão preciosa existência.

O caso de José Rodrigues de Lima, rico latifundiário e


chefe político em Piranhas, originou-se da fôrça e prestígio
que o pioneiro passou a gozar, nas localidades em volta, e que
se foi, pouco a pouco, alargando por todo o Nordeste,
transformando-o em grande autoridade social e financeira.
Eis o incidente havido no escritório da Fábrica, assistido por
Adolfo Santos, que o narra mais ou menos como segue.
Quando da construção de vários prédios da nova Pedra,
Delmiro contratou com o Sr. Clarindo Sandes o fornecimento

de milhares de tijolos e telhas, para cujo preparo foi escolhido


um sítio próximo onde havia barro apropriado e lenha abun
dante para caieira. O terreno ficava aquém do lugar Olho
d'Agua, encravado nas terras de Delmiro, que o cedeu para
dito fim, e limitava com as de José Rodrigues. Este, homem
mau, façanhudo e protetor de facínoras, entendeu um dia de,
pretextando que aquêle trabalho estava arrasando suas pro
priedades e matas, mandar suspendê-lo, sob a pressão de ho
mens armados, parando assim a faina da olaria e o corte de
lenha.
Delmiro sentiu-se desautorado e até ferido no seu direito
de legítima posse e, em revide à ofensa, mandou seus guardas,
também armados, garantir a continuação do serviço. No dia
seguinte, veio José Rodrigues à Pedra tomar satisfação e re
clamar, alegando que aquêle trato de terra fazia parte de seus
domínios. Falando alto e mal-humorado, insistia no refrão
de que o dissídio tinha agora de ser tratado entre homens, de
homem para homem, até que Delmiro perdeu a calma e res
pondeu enèrgicamente:

169
1

José Rodrigues, v. está a insinuar que é homem, pois


saiba que sou homem também... e os tijolos serão feitos onde
os mandei preparar, porque o terreno meu e ninguém me
impede.
outro retirou-se visivelmente irritado, para nunca mais
voltar às boas com o pioneiro. Até então houvera amizade
entre os dois. Delmiro mandara mesmo, numa ocasião, buscar
na capital, às pressas, sôro vacínico contra a peste bubônica,
para ser aplicado num filho de José Rodrigues, o qual estava
atacado e foi salvo da morte.
Vamos ao outro caso: José Gomes de Sá era coletor e
chefete político em Jatobá de Tacaratu (atual Petrolândia,
município de Pernambuco). A firma Iona & Cia. arrematava,
anualmente, os impostos de exportação sobre couros e peles
do Estado de Alagoas. Vendo a vantagem que a firma obteria,
recebendo peles de Pernambuco, sem pagar direitos, para se
rem embarcadas como produto alagoano, o sabido coletor en
trou em combinação com um exportador para facilitar essa
espécie de contrabando na fronteira, que era justamente a sede
daquela coletoria. E pela prestação đêsse serviço, José Gomes
auferia boa gratificação, todos os meses.
Mas, tendo havido mudança de Govêrno, o fisco de Ala
goas aboliu o sistema de pôr os impostos de exportação em
hasta pública, passando a cobrá-los sob guia. Assim, desapa
receu a vantagem com que jogava o exator e foi suspensa,
por isso, a mensalidade que lhe era paga. José Gomes recla
mou, aborreceu-se, insistiu, inclusive junto a Delmiro, e, não
sendo atendido, tornou-se seu desafeto e detrator.
Quando Dantas Barreto assumiu a curul presidencial de
Pernambuco, sendo Delmiro intimamente ligado a seus parti
dários e mentores, influiu junto aos mesmos para que as posi
ções políticas de Jatobá caíssem em mãos de amigos, sendo
escolhido Aureliano Gomes de Menezes para substituir a José
Gomes, cujas iras contra o pioneiro se reacenderam "numa
fogueira crepitante de ódios traiçoeiros".
E assim conclui Adolfo Santos Delmiro ficou entre
círculo de duas desafeições ferrenhas, surgidas quase ao mes
mo tempo. E foram os dois "Zés", bandidos de paletó e grava
ta, os conhecidos mandantes do crime nefando, os quais con
ceberam o plano sinistro de armar as mãos assalariadas de
170
três outros bandidos, irresponsáveis, de alpercatas e chapéu
de couro, para a empreitada de vingança extrema.
Como se vê, o seu prestígio e prosperidade, aliados à bra
vura pessoal com que costumava agir, em defesa dos princípios
de honra, de dignidade e dos direitos usurpados, foram, por
tôda a vida, causas de profundos aborrecimentos, choques e
inimizades que atraíram contra a sua pessoa sentimentos de
ódio e inveja mortais.

171
Morte Trágica e Misteriosa
Do "Evangelizador dos Sertões"

Dia soturno e de presságios Delmiro


sentia que ia ser morto Mas não tinha -

mêdo, cautela, nem vigilância Muito

respeitado e benquisto na região Fa


laram disso os jornalistas Geraldo Rocha
e Raul Azêdo O caso da quadra que
brada descrito por Josué Montello Di
rigentes e empregados da casa Iona, em
Maceió, choraram ante a notícia da mor
te Como esta se deu; os antecedentes,
a cena e a repercussão - "Prenderam os
cabras?" e "Valha-me, Nossa Senhora!",
as palavras derradeiras Aspecto do
velório, comentários e suposições
Todos vieram ver o cadáver Coroas
mortuárias feitas com as rosas do jar
dim Operários choravam a morte do
homem e da própria fábrica O entêrro
concorrido e o monumento com a ins
crição.

E RA QUARTA-FEIRA, 10 de outubro de
1917. Escreve um jornalista alagoano que aquêle dia do verão
sertanejo amanhecera sombrio, sob nuvens pesadas, como pro
testo veemente da natureza contra a monstruosidade do aten
tado que se projetava para eliminar a vida do bandeirante
ilustre. Durante todo o decorrer do dia, o ambiente soturno

pressagiava funesto acontecimento. (*)


(*) M. MALTA, in reportagem para a "Gazeta de Alagoas", dividida
em três publicações, nos meados de 1961.

172
Muitos têm dito que Delmiro Gouveia tinha desconfi
ança, algum aviso ou pressentimento de que seria assassinado.
Ainda recentemente o sr. Octávio Brandão repetia, em artigo
estampado na revista "Leitura" (v. número de março de 1962),
que êle afirmara aos amigos sentir-se "ameaçado de morte
pela Machiuc Cotton e não duraria muito tempo". Sua filha
D. Maria apresenta, como prova disso, o fato de haver Delmiro
feito testamento poucos meses antes do desenlace.
Homem conhecido como afoito, de incomum bravura pes
soal, não vivia em sobressalto, temeroso do perigo que o ron
dava, e, portanto, não tomou as cautelas aconselhadas. Assim
é que não se cercava de capangas, não tinha guarda-costas a
seu serviço, nem mesmo o seu cão "Chaleira" estava sôlto,
nem os dinamarqueses, grandes e ferozes, se encontravam
vigiando o chalé no dia fatídico. Nunca, talvez, pensara na
forma como seria atacado, nem jamais imaginara que seus mes
quinhos e gratuitos desafetos tivessem a inominável covardia
de mandar trucidá-lo, de emboscada, na calada da noite.

Delmiro tornou-se extremamente respeitado e benquisto


nos sertões. Entretanto, foi morto a tiros, traiçoeiramente, por
sicários, na varanda de seu chalé, enquanto lia jornais, intei
ramente despreocupado, "porque se sabia o ídolo de tôda a
região”, segundo se lê num livro de Geraldo Rocha. (¹)
"Quem conhece os costumes sertanejos não ignora que jamais
um cabra, ou um homem de condição humilde, ousa atacar
um grande chefe, senão em cumprimento a uma ordem de pes
soa que êle julga em situação de assumir a responsabilidade de
protegê-lo ou libertá-lo".
A propósito, vale a pena reproduzir o trecho dum artigo
de Raul Azêdo (2). Este fêz visita à Pedra, e, no momento da
partida, se preparava para atravessar o alto sertão em animais
um tanto cansados, quando Delmiro, vendo-os assim, ofereceu
outros para ele e seu companheiro poderem viajar com segu
rança e comodidade. Depois de recebidos o cavalo e o burro de
sela, grandes e bonitos, o jornalista pediu, também, lhe em
prestasse uma das espingardas que vira ali.

(1) GERALDO ROCHA 0 Rio São Francisco, obra da coleção Brasi


liana.
(2) DELMIRO GOUVEIA -
heróico precursor da usina de energia elé
trica da Paulo Afonso.

173
O Coronel mostrou-se admirado de que Raul Azêdo, gos
tando de caçar, nada lhe tivesse dito durante a estada em um
lugar com tanta abundância de caça, ao que respondeu, jus
tificando-se, não lhe haver querido contrariar as determinações,
que eram, como todos sabiam, no sentido de não matar nem
ofender os bichose pássaros. Só desejava saber onde e a quem
poderia entregar os animais e a espingarda. Delmiro acalmou-o:
Poderá deixar tudo onde e a quem quiser; até no
-

meio da estrada, com a declaração de pertencer a mim, que


tudo chegará aqui, sem falta.
Afigurou-se a Raul Azêdo excessivo êsse otimismo, mas
o fato é que, 10 léguas adiante, dando sinais de afrontamento
o cavalo demasiado gordo para viajar tanto sob o sol ardente,
dirigiu-se êle a um almocreve que vinha carregando fardos de
algodão e fêz-lhe entrega do bucéfalo. Muito mais longe, na
cidade de Floresta, o burro adoeceu de uma epizootia. O pro
prietário da farmácia local, fazendeiro também, reparou no
estado do animal, montado e já de saída, fazendo-lhe ver que
estava doente e devia ser deixado ali para tratamento.
Mas êsse burro ponderou - pertence a Delmiro Gou
1

veia, a quem terá de ser restituído.


-
Ah, se é do Coronel Delmiro, não tenha o menor re
ceio; eu mesmo me encarrego de curá-lo e mandá-lo entregar
ao Coronel. Sou seu fornecedor de peles e tenho tôda semana
portadores para lá.
Conclui Azêdo o seu relato com a informação de Del
que
miro, indo depois ao Recife, dissera tudo haver sido entregue
na Pedra, no devido tempo e em ordem, até mesmo a espingar
da, devolvida por mãos de homens suspeitos, encontrados perto
de Rio Branco.

Vamos contar, a seguir, episódio aproveitado e descrito


por Josué Montello, com o fim de mostrar como Delmiro
Gouveia era benquisto e admirado por seu povo que ainda
hoje o venera. É o caso da trilogia ou quadra que Paulo Dan
tas refere (in Revista Brasiliense), ouvida de um tipo popular
que pontificava em 1955: "Môço, estou procurando formar
a quadra dos grandes homens do Nordeste, mas não acho
não! Só conheço é mesmo três: Lampião, na valentia; Padre
Cícero, na oração; Delmiro, no trabalho." E o acadêmico comen
ta: -

"Lampião, cansado de injustiça e sendo rude, bravo e

174
forte, respondeu os desafios à força - e foi admirado; Padre
Cícero, interpretando o sentimento místico de sua gente, não
respeitou sequer a liturgia católica e fêz "milagres". Tornou-se
um forte e foi admirado! Delmiro, apesar da época, viveu a
mentalidade dos melhores de nossos dias. Lutou e erigiu

uma obra magistral. Tombou para que pudessem destruí-la.


Triunfou pelo exemplo e foi admirado!" · Daí a quadra que
brada e a trilogia perfeita do folclore sertanejo.
Pessoa que residia em Maceió, trabalhando na organização
chefiada por Delmiro, assim evoca como soube do seu passa
mento:
"Lembro-me que cheguei ao escritório de Iona &
Cia., como, de hábito, às 7 horas da manhã do dia 11 de outu
bro de 1917. Logo o meu companheiro Pompeu Luna me
transmitiu a terrível notícia, com o telegrama aberto na mão
a mostrar-me os têrmos, isto porque, à primeira vista, duvidei
do que êle me dissera nestas palavras: "Aconteceu uma des
-

graça: mataram o Coronel!" -


Depois chegaram ali Ferrário
e Raul Brito, e, inteirando-se também do ocorrido, baixaram
a cabeça para chorar. Todos nós, homens feitos, choramos
copiosamente a morte do nosso amigo e benfeitor".

Cidadão venerando, que, por sinal, vendeu a Delmiro um


dos pedaços de tera na Pedra, onde o pioneiro fôra localizar-se
em 1903; que viveu e ainda vive naquele ambiente, sempre ou
vindo todas as conversas em torno daquela tragédia, emitiu
esta opinião em que se deve atentar bem: "A morte dêle
é ainda hoje um mistério".
A cena do nefando crime foi rápida e brutal! Delmiro
tinha jantado em companhia de seu vizinho Firmino Rodri
gues, que, depois de longa conversa, dêle se despede, saindo,
com um "boa noite". E prepara-se para ler, como de costu
me, os jornais do Recife que lhe trazem as notícias do mundo,
inclusive da Grande Guerra. Senta-se na sua cadeira de vime,
colocada entre outras no alpendre, ao lado direito do chalé,
apurando na leitura a vista algo cansada, com o auxílio de
uma lâmpada elétrica, em cima, que clareia bem o local e
a sua imagem.
São 21 horas. O silêncio da noite, na vila, é acalentado
pelo perpassar da brisa e pelo trepidar das máquinas da fá

175
brica, entre vozes e cantigas das operárias do serão. Três
vultos vindos da pequena curva da linha férrea, em frente,
se dirigem para as proximidades da casa, esgueirando-se como
reptis por entre os vasos e plantas do jardim. Da penumbra
parte a descarga inesperada e certeira, ouvindo-se os tiros de
rifle que vão fulminar o pioneiro. Um dos projetis atinge-lhe
o braço, outro o coração e o terceiro se perde na amplidão.
Todos acorrem ao local. Zé Pó, que tinha servido o jantar,
correu e encontrou seu patrão gravemente ferido, agarrando-se
pelas cadeiras do terraço. Conduzido ao leito, ainda pôde re
ceber socorros, de todo inúteis, porquanto forte hemorragia
interna foi-lhe paralisando logo os sentidos. Em estado cons
ciente, chegou apenas a indagar se os cabras tinham sido
presos, e, nas vascas da morte, ainda pronunciou um valha-me,
Nossa Senhora!

Mal os tiros fatais ecoaram, deu-se o alarme seguido de


vozerio pânico, que foi aumentando ràpidamente; tôda a vila
da Pedra ficou em polvorosa, cheia de gente, a exclamar -

Mataram o Coronel! - e a correr, pressurosa, para o chalé,


onde estava já sem vida o corpo do dono. Poucos, portanto,
os que assistiram a seus últimos momentos. Mestre Pedro,
servo de confiança, foi dos primeiros a chegar e permanecer
a seu lado. Tratou logo de distribuir armas com mais de 100
homens incumbidos de capturar, imediatamente, os assassinos,
por todos os recantos e estradas.
A cena do afluxo do povo ao local é, assim, pintada pelo
romancista de "Fábrica da Pedra": "Vinham vê-lo na câ
mara ardente as operárias das seções de fiação e encarretela
mento. Vinham em macacão os mecânicos, os maquinistas, os
carregadores dos armazéns, o pessoal da usina elétrica. Vinham
os moradores da Vila, lojistas e caixeiros, alfaiates, funileiros,
carpinteiros, mães de famílias que raramente saíam à rua, mo
cinhas e meninos. Vinham os sitiantes, pequenos agricultores
e criadores (...), caboclos do eito nos algodoais, camisa por
fora da calça. De mais longe ainda, sertanejos ricos, fazendei
ros, vaqueiros em seus gibões de couro..
A sentinela ia pela noite adentro, com o clamor no
seio da multidão insone, agitada, a comentar que o coronel
vira os cabras. Agora, estava ali o seu cadáver de mãos cruza
das, com a palidez dos fuzilados. Parecia dormir. "O rosto
176
cheio, pálpebras cerradas, aquela expressão tão sua, o per
manente sorriso irônico, repuxando o bigode num dos cantos
da bôca". Quem poderia dizer? Aquêle homem forte, rico, bom,
tão cheio de vida... Tão astuto, sagaz como ninguém e, ao
mesmo tempo, ingênuo, a ponto de se deixar matar, dentro de
casa!

As mulheres, assustadas e chorosas, algumas com flôres


ou rosários nas mãos, e os homens, de cabeça pendida, silen
ciosos ou conversando baixo, pareciam recriminar-se uns aos
outros. "Por que deixaram o chefe assim exposto, sem vigilân
cia, se o sabiam destemido e sem maldade? Se êle facilitou
tanto, de peito aberto, sem sobrosso, era porque confiava no
seu povo, que, entretanto, deixou que os capangas viessem
alvejá-lo de perto, com uma bala bem em cima do coração!"
Quem seriam os cabras perversos? indagavam. Mestre
Pedro jurava que, se os pegasse, acabaria com êles. Mandaria
soltá-los no cimo da cachoeira! Tirar-lhes-ia a pele a navalha,
até ficar na carne viva! Botava-os dentro da "casa inglêsa"
para serem comidos pelos seus venenos, feitos de sabão arse
nical e sal de azêdas! Os presentes sorriam, enxugando os olhos
e lambendo os beiços, num impulso de raiva e sêde de vigan
ça, ansiosos por ver os sicários presos e castigados. Pairava
nas fisionomias estáticas, nos olhos úmidos, nos lábios trêmu
los, essa interrogação aflitiva: "Prenderam os cabras?"
E o velório continuava, com os comentários e suposições...
Dentro da noite sertaneja, extensa e trágica, o sussurro magoado
da Paulo Afonso parecia chorar, de longe, a morte do pionei
ro. O canto dos galos era como um agouro esquisito de cousas
tão ruins que chegava a arrepiar! Dir-se-ia que tudo, o canto
dêles, o urro dos bois, o orneio dos jumentos, tudo estava a
clamar pela prisão dos criminosos.
A madrugada seguinte, com as barras de sangue tingindo
o nascente, veio tornar ainda mais vermelhos os olhos indormi
dos e chorosos daquela gente, em prolongada vigília. E as rosas
do jardim do pioneiro também amanheceram mais rubras,
no dizer de seu biógrafo-poeta. E os pássaros perderam o seu
cantar sonoro; os bentevis escarneciam e as rôlas fogo-apagou
pareciam também indagar: "Prenderam os cabras?"
Do caixão onde jazia Delmiro pendiam crepes; amontoa
vam-se, pelo chão e ao pé das paredes, inúmeras coroas mortuá

177
rias feitas por piedosas mãos com as rosas apanhandas no
jardim por Ezequiel, para aquêle fim e não mais para adornar
os jarros da casa, como acontecia nos dias anteriores. Mulhe
res, môças, mocinhas e até homens debulhavam-se em lágrimas,
rezavam alto, acompanhando os benditos tirados por D. Marie
ta. "Ao pé do esquife, alguém se enrodilhava de tão recurvo,
contorcendo-se como sob a ação de uma dor física, chorando
convulsivamente, ambas as mãos à cabeça, os braços cobrindo o
rosto". Era Chico Nazaré (informa o romancista), justamente
aquêle que devia estar até satisfeito, de peito lavado, com a
tragédia, por ter sido despedido do trabalho na indústria, pou
co tempo antes.
Diz ainda o escritor que aquêles homens e mulheres não
choravam apenas a morte do chefe mas, também, a da própria
fábrica por êle fundada. Ouvia-se a voz grave dum velho tra
"Atira
balhador da seção de cardas, a repisar essa opinião:-

ram no homem para matar a fábrica também". Era Leonel,


naquela hora mais encanecido "porque aos cabelos grisalhos
trazia aderida a penugem do algodão".
A tarde, foi o entêrro, concorrido, demorado, solene, como
nunca mais se viu na Pedra. O povo que acompanhou o fé
retro e que conheceu Delmiro, em vida, jamais esqueceu o
grande ídolo. E, para que êle ficasse eternamente lembrado
pela posteridade, foi erigido, no lugar em que o mataram,
um marco em cuja lápide se lê esta inscrição: - "Aqui o evan
gelizador dos sertões e fundador da Pedra, Delmiro Gouveia,
tombou mortalmente ferido, pela bala homicida de sicários
assalariados, no dia 10 de outubro de 1917".

178
Os Sicários e Mandantes do Crime

A procura dos criminosos Sensação de


vazio e desespêro A fábrica voltou a
trabalhar; os operários, absortos, a con
versar pelos cantos Prisão dos suspei
tos, Jacaré e Róseo Embora condena
dos, são tidos como bodes expiatórios
Nunca se soube, com certeza, quem ma
tou e quem mandou matar José Ro
drigues e José Gomes, mandantes, te
riam feito conluio com Firmino Rodri
gues No consenso foram os trus
tes que assalariaram o crime, empreitado
por inimigos de Delmiro, na região
Reforçada tal crença, quando a Machine
Cotton comprou e destruiu as máquinas
-

Foi o maior crime contra o Nordeste


- Versões, controvérsias e suspeitos, in
clusive Iona José Rodrigues e José
Gomes não foram presos; mas acaba
ram tràgicamente.

INÚTIL
NÚTIL A BUSCA, dia e noite, por ho
mens conhecedores da região, da gente e dos caminhos, para
prender os criminosos. Tudo indicava que êstes tinham vindo
de fora, mas, apesar de rastejados pelas estradas e varejados
por toda a parte, nenhuma pista dêles se encontrava. Passaram-se
alguns dias e nenhum sinal, nada!
O povo sentia um desespêro, um ôco no mundo! Sensação
de vazio e impaciência! Corria para a estação, a ver se sabia
algo pelo trem, que apitava desde longe e, depois, na curva
próxima, triste e longamente... Mas o maquinista e os passa
179
geiros é que já vinham de cabeça para fora e logo indagavam
se prenderam os cabras.
A fábrica voltou a funcionar, o apito rouco e estridente
avisando a retomada do trabalho, os maquinismos entoando,
como dantes, dia e noite, a mesma música dos ruídos. Iona
precisou exortar os operários, dizendo que a desgraça estava
feita e, agora, o jeito era todos se conformarem. Eles faltavam
e, quando volviam ao serviço, ficavam um tempão parados,
absortos ou a conversar nos cantos. "Quem foi? quem seriam
os cabras?". Custava-lhes crer na dura realidade, na morte do
Coronel! Ou sofriam com o pressentimento de que a fábrica
ia parar dentro de pouco tempo.
Decorriam os dias, 3 a 4 semanas se passaram, até que
chegou a notícia de que os suspeitos eram os pistoleiros de
nome Jacaré e Róseo, detidos no outro lado do rio. Fugiram
para longe, assim como de longe vieram, diz Geraldo Rocha,
com a missão de abater o titã. "Os assassinos de Delmiro Gou
veia jamais haviam tido o menor contacto com êle, nenhum
interesse dos mesmos fôra contrariado, nem recebida qualquer
ofensa. Os sicários cumpriram, certamente, missão de um
mandante longínquo, que por sua vez fôra mandatário de en
tidades alienígenas, cujos interêsses se achavam ameaçados
por iniciativas audazes do forte nordestino que sonhava com
a grandeza e independência econômica de sua pátria".
Presos os dois cabras e conduzidos à cidade de Água Bran
ca, por lá teve início e correu o processo policial, aliás muito
mal orientado desde as primeiras inquirições até o sumário de
culpa. Sabe-se que a êles foram infligidas sevícias atrozes, com
o fim de arrancar-lhes a confissão de autoria do crime, razão
por que são tidos como simples bodes expiatórios. Eis o que
refere Tadeu Rocha: "Os mandatários que a Polícia e a
-

Justiça julgaram haver identificado teriam sido os cabras Ja


caré, Róseo e Antônio Félix, pobres vítimas de um meio social
atrasado, se não o foram das autoridades que os apontaram
como criminosos".

Por questão de segurança, foram êstes transferidos para


a cadeia de Maceió. José Inácio Pio, apelidado Jacaré, repetia
ali: Matei Delmiro auxiliado por João Róseo e Antonio
Félix. O outro, João Róseo de Moraes, que cumpriu pena ce
180
lular de 14 anos, ao sair do cárcere costumava declarar:
Juro por Deus que não matei Delmiro.
Há de convir que a vítima chegou a ver os cabras quando
o alvejaram, talvez à queima roupa, os quais, segundo vários
cronistas, vieram de longe e de diferentes pontos, tendo-se re
conhecido uns aos outros, no lugar da empreitada, pela senha
pactuada: "Tudo pronto! Cheguei". É o que informa o
alagoano M. Malta, acrescentando que os sicários abandonaram
as armas no local do crime. Assim, forçoso é admitir-se que
eram cabras verdadeiros os vislumbrados pela vítima, ou, en
tão, pessoas disfarçadas como tal, sôbre o que encarecemos a
atenção do leitor.
No tocante aos indiciados, resta aduzir que pouco se sabe
acêrca de Antônio Félix e sôbre o papel secundário que teve no
crime. Convém frisar que êles sofreram as maiores crueldades,
açoites e maus tratos. Com os pés inchados, disformes, a ponto
de não poderem andar, enfim com a desumana pressão poli
cial exercida, não tiveram outra alternativa senão a de se

confessar culpados e executores do atentado. Essa, aliás, a


idéia geralmente aceita, hoje mais que ontem. Mesmo porque
nunca souberam dizer ao certo, sem sombra de dúvida, quais
foram os mandantes.

No processo instaurado, apareceram, é certo, os nomes


de José Rodrigues de Lima e José Gomes de Sá, que acabaram
condenados. Mas o primeiro acobertou-se com as imunidades
de deputado estadual e o outro foragiu-se, primeiro nos ser
tões do Ceará, depois desaparecendo. Também foi citado Fir
mino Rodrigues, parente daquele, por indícios circunstanciais,
a que aludiremos mais adiante, não tendo sido pronunciado.
Nunca se soube, nem jamais se saberá, com certeza, quem ma
tou e quem mandou matar o pioneiro.
As alegações populares se contradiziam e, hoje, se ema
ranham num cipoal de controvérsias, quanto às causas princi
pais e ao verdadeiro móvel de tão covarde quão bárbaro atenta
do. Falava-se que José Gomes (ou um tal de Anjo da Gia)
era amigo do ex-governador de Pernambuco, Sigismundo Gon
çalves, que o teria mandado eliminar como vingança ao sucedi
do, muitos anos antes, com sua pupila, Carmélia Eulina. A
(*) JOSIMAR MOREIRA, em artigo para a "Ultima Hora" Rio, repro
duzido no "O Povo", de 20-7-51.

181
hipótese mais propalada, na ocasião, referia-se à intriga entre
Delmiro e José Rodrigues, que teria feito conluio com José
Gomes e seu primo Firmino.
José Rodrigues de Lima, chefe político em Piranhas, bri
gara com Delmiro por causa das olarias que faziam tijolos e
telhas para as construções na Pedra, alegando que a terra onde
era feito tal fabrico lhe pertencia e estava sendo devastada,
tentando, mesmo, obstar a continuação do serviço. José Gomes
de Sá, ex-coletor em Jatobá de Tacaratu, recebia propinas e
subtraía rendas de impostos, que deixaram de ser pagos sob
arrematação em hasta pública, sistema mudado pelo do paga
mento em guia, cobrado na barreira interestadual.
A história dessas desavenças, com a da demissão daquele
coletor, na qual Delmiro teria influído, acha-se contada porme
norizadamente, no penúltimo capítulo. Quanto a Firmino Ro
drigues, diziam ser cúmplice, facilitando a missão dos crimino
SOS e
quem sabe?
-
acoitando-os em sua casa, não só antes co
-

mo até depois do atentado, assim agindo por questão de família.


Já referimos, noutra passagem, o mui comentado caso de sua
filha, que se teria queixado de haver sido desonrada pelo
famoso e opulento coronel, quando com êste viajava, de auto
móvel, para Garanhuns. Acresce que fôra Firmino quem esti
vera conversando com Delmiro na noite fatídica, com êle até
jantando e, depois, ao despedir-se, dera um boa-noite em altas
vozes, o que levou a presumir-se fosse o aviso combinado para
que os cabras saíssem do esconderijo, preparados para o ataque.
Muitos negavam a conivência de Firmino, dadas as suas
ligações de amizade com o pioneiro, que até lhe dera o privilé
gio de explorar uma padaria na Pedra, com a qual estava fi
cando rico. Havia também dúvida na suspeição levantada
contra José Rodrigues como um dos autores intelectuais, e isso
por ter êle vindo imediatamente até ali, sendo, com Virgílio
Lisboa, comerciante local, os que mais auxiliaram a localizar e
prender os criminosos.
No consenso geral vive, até hoje, a idéia de que foram os
dirigentes da Machine Cotton os assalariadores do crime, exe
cutado por sicários empreitados por desafetos de Delmiro,
moradores na região e interessados em seu extermínio. Na
verdade, somente a êsses interessava a morte do vitorioso indus
trial e poderoso chefe daquela comunidade situada no alto

182
sertão onde queriam, livremente, mandar e desmandar tais
coronéis circunstância que, de certo modo, afasta os inglêses
da suspeição, dada a impossibilidade material de execução do
atentado; a menos que hajam recebido oferecimento de alguém
dali ou das proximidades, capaz de comprometer-se a levá-lo
a efeito, após o infamante conciliábulo, incentivado pelo di
nheiro grosso dos magnatas...
"O que o capitalismo internacional não podia fazer o bar
barismo nacional executou com perfeição", declara Tadeu
Rocha. Ademais, argumenta-se, a morte do pioneiro da Paulo
Afonso só aproveitava, mesmo, comercialmente, aos trustes es
trangeiros que, por longos anos e até antes do aparecimento da
fábrica nacional, detinham o monopólio do mercado de linhas
no Brasil e em outros países sul-americanos. Tratava-se do grupo
da conhecida e poderosa Machine Cotton, encabeçado por J. P.
Coats & Co, de que eram subsidiadas Clark & Co., Ross & Dun
can e a Cia. Brasileira de Linhas para Coser, sediada em São
Paulo.

Essa crença, ainda hoje arraigada no espírito público, ficou


fortalecida por êste relevante fato: Com a morte de Delmiro,

e passados alguns anos, os mesmos trustes voltaram a querer


adquirir a Fábrica da Pedra (só então obtendo êxito no que
vinham tentando), com o fim de destruí-la e jogar suas peças,
quebradas, nas águas profundas do São Francisco. De acôrdo
com opinião de economistas, citada por Moacir Sant'Ana, tal
destruição representou o maior golpe no desenvolvimento in
dustrial dos sertões alagoanos. Pode-se afirmar que isso, jun
tamente com a morte do pioneiro, foi crime de extensão regio
nal, o maior atentado à economia do Nordeste, crime até hoje
impune e não desvendado, devidamente, consoante expressões
a nós repetidas pelo poeta popular Néri Camelo.
Os inglêses da Machine dizem uns tinham lá suas
razões de ordem comercial para tão revoltante procedimento.
Eles não visavam a comprar as máquinas e, sim, a marca da
linha "Estrêla"... tanto que quebraram aquelas, a fim de po
derem vender, livremente, seu produto mais caro e que foi,
daí por diante, sempre subindo de preço. Acreditam outros
que êles mandaram jogar no rio algumas máquinas de linha,
velhas, obsoletas, de pouco rendimento e cujo transporte para
São Paulo não compensava; as máquinas boas, ainda aprovei
183
táveis, estas foram levadas notadamente as de fios e fitas,
emenda outro informante.

Uma das correntes de opinião, sem negar que os interêsses


dos trustes se beneficiaram com a morte de Delmiro Gouveia,
sustenta que o assassínio dêste foi mais um episódio do cangaço
implantado no sertão de Alagoas (*), que se tornou palco de
tantos trucidamentos até em nossos dias. E não ficou fora de
cogitações a possibilidade de vingança por casos de aventuras
sentimentais e de ofensa à honra de donzelas, pura maledicência,
conforme entendemos e já argumentamos, exaustivamente,
noutro capítulo.
Entre os suspeitos e responsáveis pela tragédia, ainda se
inculcavam seus sócios (sobretudo Lionelo Iona), os quais
estariam desgostosos com a maneira absorvente e autoritária
de Delmiro, que impunha sua vontade à de todos, despòtica
mente. A propósito, devemos lembrar que o judeu triestino,
avarento, de jeito tímido e falso, culto, sabido e que era tratado
pelo chefe, nos últimos tempos, com certo desprêzo e rispidez,
teve atitudes bastante tendenciosas, máxime posteriormente,
voltando para a Europa com grande fortuna.
"A morte de papai diz D. Maria Gouveia foi um
complô tècnicamente preparado". – Êle previu a morte, tinha
aviso ou desconfiança, tanto que elaborou o testamento pouco
tempo antes de falecer. Em seu romance, narra Motta Lima
que certo cabra fôra interrogado em Mata Grande, por estar,
bêbado, gabando-se de haver sido peitado para assassinar um
figurão, conduzindo tal indivíduo muito dinheiro e carta de
recomendação para alguém residente na Pedra. A denúncia
dêsse fato chegou ao conhecimento de Delmiro, que se limitou a
dizer: Eles sabem que não morro de caretas. Se quiserem
-

fazer das suas, façam bem feito".


Enfim, o processo indicou, como sicários, aquêles pistoleiros
atrás mencionados e, como mandantes, José Rodrigues e José
Gomes, em quem a justiça dos homens não conseguiu por a
mão. Mas uma incompreendida justiça divina, no dizer de
Adolfo Santos, ia interferir para que aquêle político, feito
deputado, estando, uma noite de 1929, no centro da capital
alagoana, defronte à Sorveteria Helvética, fôsse morto, com um

(*) MOACIR MEDEIROS DE SANT'ANA in "Pequena História de Del


miro Gouvela", o "Rei do Sertão".

184
balaço no peito, por certo sargento da polícia, que fôra antes
perseguido e surrado por capangas, a mando do mesmo José
Rodrigues, e dêste assim se desforrou...
Conta Noé Gouveia que um padre de Goiás revelou ha
ver-lhe José Gomes confessado ser, realmente, mandante do
atentado contra Delmiro. Pronunciado no feito, José Gomes
fugira para os sertões cearenses, onde chefiara um bando de
desordeiros, fugindo depois para lugar ignorado. Teria ido
para Pôrto Nacional, onde fêz fortuna, sempre malquisto pelo
seu gênio desonesto sanguinário. E foi morto por um dos
seus desafetos, em circunstâncias trágicas, cortado aos pedaços,
num requinte de pavorosa vingança, pelos muitos males que
espalhou, também naquela zona...

185
Planos, Idéias, Obras e Iniciativas Interrompidas...

Delmiro nas lides agropastoris Cria

ção racional de gado vacum, suíno, ca


brum e ovino Campo experimental,
com plantação de cereais e algodão
O povo não acreditava em arados e tra
tores Gado zebu e holandês cruzado
com o nosso A palma ou palmatória;
-

a lenda e a versão provável de como essa


planta foi introduzida nos sertões A

região dos Apeninos, em volta do Vesú


vio; sua semelhança com a zona de Paulo
Afonso As 4 turbinas e seu embasa
-

mento na Furna dos Morcegos Fábri


ca de tecidos com 2.000 teares Anali
sadas as nossas fibras e cactáceas De
-

pé, o velho plano de levar energia elé


trica por todo o Nordeste O homem
não parava, tinha muitas idéias.

A AGRICULTURA é a mãe de todas as


indústrias, segundo Xenofonte, citado por Humberto de Cam
pos, que disse ser ela a primeira, a mais honesta, útil e nobre
ocupação do homem, daí explicar-se o carinho de Diocleciano
dispensado às suas flores e alfaces, em Salona. Delmiro Gouveia
também pensava assim, e, ao seguir para o hinterland, levava
no sangue o amor telúrico, a flama ardente, o gôsto inato dos
colonizadores que povoaram os sertões do Ceará, cultivando
a terra e criando gado nos campos de Ipu e Santa Quitéria, na
bacia do rio Acaraú.

Dentro de si êle sentia pulsar, febricitante, a missão de


pioneiro, de patriota, de homem esclarecido e viajado, mais
186
em dia com as cousas do que aquêles primitivos desbravadores.
Queria explorar as atividade agropastoris, mas não por pro
cessos empíricos. Desejava ver em nossos sertões a lavoura tèc
nicamente cuidada, a pecuária produtiva, enriquecida por
bovinos graúdos e leiteiros da raça zebu e holandesa, por
especímenes escolhidos das raças suína, cavalar, cabrum e
ovina. Impossível estudar a evolução econômica e social da
zona de Paulo Afonso, nos começos do século, sem analisar a
figura de Delmiro Gouveia, que introduziu nos sertões do Nor
deste o grande comércio e a moderna indústria manufatureira
na expressão de Tadeu Rocha e mui especialmente, com
a pecuária racional, ensinamentos e práticas agrícolas que mui
tos ignoram ainda hoje.
O problema da água, para abastecimento e irrigação das
terras, naquele deserto, foi desde o início a sua grande preo
cupação. Primeiro, teve que mandar fazer barragens de açudes,
prendendo as águas de dois córregos que passavam na Pedra.
Quando ali aporta a missão Moore, por volta de 1909/10, êle
mostra que a emprêsa industrial, a ser criada com capitais
norte-americanos e brasileiros, não pode prescindir do ramo
agropastoril, batendo-se denodadamente pelo aproveitamento
das terras e ribeirinhas do S. Francisco, com tal brilho e pro
ficiência que o capitalista ianque se rendeu à forte argumen
tação, virando-se para os seus companheiros e, em particular,
pronunciando o célebre "no-fool"."
Uma das maiores alegrias de sua vida registrou-se, segundo
depoimento de contemporâneos, naquele memorável dia de
1913, quando o precioso e abundante líquido do S. Francisco
chegou à Pedra, conduzido pelo encanamento que deixava uma
sangria ali, outra acolá, em meio do caminho, duas vazantes
naquele trecho desértico, de 24 quilômetros, onde se formou
campo experimental para plantação de cereais e algodão. Diz
Pedro Motta Lima: "Todas as terras da Companhia Agro
-

Fabril Mercantil e as dos sítios e fazendolas beneficiados pela


irrigação cobriam-se de algodoais. A mão do homem alterava
a paisagem. Enorme faixa da caatinga libertava-se do flagelo
da sêca. E tinham não apenas o algodão reclamado pela fábrica.
Era já também a abundância nas primeiras safras de mandioca,
feijão, milho e arroz".

187
Vencida a dificuldade da falta d'água, era preciso combater
a mentalidade retrógrada e rotineira, dominante, secularmente
mal acostumada. Delmiro Gouveia conhecia, como ninguém,
a índole pessimista daquela gente e de seu administrador a
quem certa vez assim falava: "Imagine o compadre o que
será isso quando chegarem os arados e os tratores? Quando êste
solo fôr ajudado pelos adubos de nossa fabricação!" É O -

que conta aquêle romancista, acrescentando: "Mesmo diante


de vitória tão evidente não se entusiasmava (o administra
dor). Temia inovações, achando artificiais e passageiras as
vantagens. Para que modificar os hábitos e tirar da terra mais
do que ela dá, como Deus a fêz? A enxada e o braço do ca
boclo sóbrio, alimentado com feijão chilre, um pedaço de ra
padura e dois punhados de farinha, seria ainda por muito
tempo a garantia da lavoura. Discordava intimamente das
idéias do Coronel. Ora, comprar máquinas para plantar
algodão..."
O certo é que muitos se lembram dos arados que o pio
neiro mandou buscar no exterior e de um que, até bem pouco,
se via, velho e abandonado, às margens daqueles campos culti
vados. Ali se plantava, por métodos científicos, o algodão “Sea
Island” para fabricar fios sedosos em cujo preparo, como no
dos demais tipos de linhas e fios, havia empenho no sentido
da perfeição e a fim de que os produtos “Estrêla” se apresentas
sem cada vez melhor.
As iniciativas do pioneiro refletiram-se, benèficamente, na
pecuária da zona. Tratou de melhorar a criação de bodes e
carneiros, adquirindo alguns casais apurados das espécies, assim
como de suínos raceados, grandes. Mas foi, principalmente, no
tocante aos bovinos, que o seu exemplo frutificou de maneira
notável. Não só procurou aumentar a caixa do gado de corte,
com a mestiçagem do zebu, como a produção de leite, através
da cruza do gado holandês, chamadas as vacas respectivas de
turinas. Para o problema da forragem, cuidou de plantar em
suas terras um tipo de cactácea a palmatória ou palma (*)
-

que era dada, aos pedaços, com caroço de algodão.


No tempo de sêca ou repiquete, quando o sertanejo, hoje
em dia, corta, com o seu facão, a palma chamuscada, para dar
(*) Não se trata das nossas palmatórias, "as palmatórias do inferno,
opúntias de palmas diminutas, diabòlicamente eriçadas de espinhos".
(Euclides da Cunha, in "Os Sertões" 19a Edição pág. 44).

188
às reses famintas e, assim, salvá-las da fome e atenuar-lhes a
sêde, não sabe que foi Delmiro Gouveia quem introduziu e
divulgou essa planta no Nordeste. Conta Tadeu Rocha a se
guinte lenda que em tôrno dela se formou: Delmiro lera
na revista "La Hacienda” que já se tinha obtido, cientìfica
mente, certa variedade de cacto que estava sendo empregado
como forragem. Comentando o assunto com Ulisses Luna e
dizendo-lhe pretender importar essa cactácea, êste informou
possuí-la em suas terras em estado nativo e sem utilidade. E
mandou de presente ao coronel, dono da fazenda Buenos Aires,
alguns exemplares do vegetal.
Isso carece de verdade, porquanto se sabe que a palma
não é nativa em nossos sertões. Nós, que estivemos na Europa
e percorremos a Itália, inclusive o trecho abrangido por Ná
poles, Capri, Fórmia e Gaeta, podemos apresentar versão mais
consentânea e plausível, atribuindo a possibilidade de terem
sido importados de lá os primeiros pés dessa milagrosa planta,
que basta ser enxertada aos pedaços, na terra sêca, para logo
viçar e multiplicar-se, fàcilmente.
A região dos Apeninos, próxima do Vesúvio, com seus
morros escalavrados e vegetação rasteira, assemelha-se muito
com o fácies géológico da zona sanfranciscana, entre Pi
ranhas e Pedra. Ali, temos a terra entorroada e dura dos
agrestes de que nos fala Plínio -
entre lages de quartzo e
veios rochosos de feldspato, ouriçados de espinhos. Delmiro
passara quase um ano, em vilegiatura, passeando por aquela
região sêca e acidentada, onde o referido cacto nasce, aqui e
ali, abundante, empinado no interstício das pedras, nas encos
tas dos morros, à beira dos caminhos sôbre altos e baixos, por
onde êle e nós andamos, em épocas diferentes...
Chegado à Pedra, pouco tempo após sua estada em Nápo
les e arredores, e defrontando-se, ali, com a sequidão da caatin
ga e a escassez de pastagem para o gado, logo se lembrou o
pioneiro de importar da Itália mudas do vegetal, a fim de
plantá-lo em nosso sertão, onde encontrou habitat ideal,
alastrando-se por tôda a parte; pois, não sendo homem para
esconder os seus êxitos, começou a ensinar aos amigos a utili
zação da palma, dada aos bovinos como alimento, de mistura
com caroço de algodão explica Tadeu Rocha. Se outros
benefícios não tivessem chegado às caatingas do Nordeste, gra
189
ças a Delmiro Gouveia - acrescenta aquêle - sòmente o emprê
go da palmatória forrageira seria bastante para ligar, eterna
mente, "o seu nome ao progresso da civilização telúrica dos
nossos sertões".

Caso não fosse Delmiro assassinado, tão cedo, a região


de Paulo Afonso seria hoje uma potência industrial. Antes,
haviam chegado, ali, as 4 turbinas de 2.500 HP., cada, destinadas
a captar energia para a fábrica de tecidos, de sêdas vegetais,
de papel e até de cigarros. Pois êle queria plantar fumo, bem
como cana para produzir açúcar e extrair do seu bagaço a
celulose. Tinha mandado analisar na Itália as nossas fibras -

paco-paco, sisal e caroá, bem como as nossas cactáceas xi

quexique, mandacaru, coroa-de-frade rabo-de-rapôsa, quipá,


etc.

Com o êxito alcançado pela indústria de linhas, que tanto


aguçou a cobiça do forte concorrente, Delmiro Gouveia, tão
logo deu resposta negativa ao representante da Machine Cot
ton, encomendou o projeto de uma fábrica de tecidos, com
2.000 teares, para morins, bramantes, cambraias, brins e ris
cados. Para isso, o capital da Cia. Agro-Fabril foi elevado, já
estando subscrito, quando êle morreu. A essa altura, as manufa
turas da Pedra podiam contar com 2.000 operários prontos e
de capacidade suficientemente comprovada.
Ó pioneiro ainda viu chegar as 4 turbinas e equipamento
de fôrça, num total de 10.000 HP. Pretendia levar avante o
velho plano de estender energia até o Recife, a despeito do
malôgro inicial pela recusa de Dantas Barreto. O embasamento
dos novos geradores foi feito às proximidades da Furna dos
Morcegos. Logo abaixo, começa o canion do S. Francisco, ao
pé daquela famosa gruta, escolhida para base do seu grande
e derradeiro empreendimento. Admira-se, ainda hoje, declara
Macedo Soares, a estrutura preparada para a câmara de carga.
A segunda turbina permanecia até pouco tempo, ali, abando
nada no local da base. Uma delas fôra requisitada pelo Gal.
Almério de Moura, por ocasião da segunda guerra, encontran
do-se atualmente instalada no Rio Grande do Sul.
O embasamento dessas turbinas era em local de difícil

acesso e penetração, afastado daquele em que se montara a

190
primeira casa-de-fôrça de 1.500 HP. Fala Plínio, seguido por
muitos, em duas outras turbinas (?), uma de 1.000 cavalos,
suíça, e outra, de 3.000, adquirida em Filadélfia. O objetivo
do pioneiro, bem se vê, não se restringia apenas à fabricação
de fios e linhas. Ele mesmo, citado por Motta Lima, dizia: --

“Primeiro me firmo nessa fábrica. Muita coisa virá em seguida.


Oferecerei energia elétrica por êsse mundo afora. Irrigarei as
terras, nosso sertão remoçará. Estradas de rodagem e trilhos
acompanharão a rêde de alta tensão por Alagoas, Pernambuco
e êstes Estados vizinhos..."
Aquêle audaz capitão da indústria e "fazedor de oásis"
estava sempre com a cabeça cheia de idéias grandiosas. Uma in
finidade de problemas vivia latente a atormentá-lo, desafiando
solução, e a atemorizar seus sócios, receosos de vê-lo falir, com
as imobilizações de vulto e a multiplicidade de iniciativas. O
homem não parava, tinha muitos planos... Pensava até em
construir uma ponte pênsil sôbre o rio S. Francisco, para
desenvolver seus negócios do lado da Bahia, o que os faci
litaria muito com o Sul, como sempre dizia. E quem sabe se
não foi por causa disso que se armou a cilada fatal, intercep
tando a arrojada marcha daquele visionário, que deixou tantos
planos, idéias, obras e iniciativas interrompidas?

191
As Tramas da Concorrência,
Do Truste e do "Dumping"

Delmiro foi morto por "forças ocultas"


Essa crença popular evoluiu para a li
teratura Como se fala da concorrên
cia da Machine Cotton · Propostas para
-

comprar a fábrica ou participar de sua


direção O emissário daquela; a ati
tude e resposta do pioneiro Cenas e
-

episódios relatados A Machine regis


trou no Exterior a marca "Estrêla" como

sua Em 1924 o truste voltou carga


Saiu Iona da administração e entra
ram os herdeiros de Delmiro O Decre
-

to n.º 17.383 alude à terrível concorrên


cia Preços mais baratos do que no
país de origem - A Lei n.º 5.650 dobrou
as tarifas O embaixador inglês falou
com o Presidente Washington, que cedeu
à ameaça dos Rotschild A fábrica na
cional está asfixiada Fica de pé o mo
nopólio.

NÃO É DEMASIADO repetir que a crença


popular, a versão mais difundida, aceita e hoje arraigada no
consenso geral, é de que o pioneiro, fundador da nossa primeira
e promissora fábrica de linhas, fôra morto pelo truste interna
cional, que, se não assalariou, pelo menos favoreceu o seu
atentado. O que está no domínio público evoluiu para o plano
literário, de tal modo que diversas obras e escritores têm vei
culado esse ponto de vista. De nossa parte, sem podermos afir
má-lo nem tampouco negá-lo, preferimos comentar o fato,
192
apoiando-nos em opiniões de várias pessoas que a seu respeito
se manifestaram através da palavra escrita ou falada.
Basta dizer que a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros,
organizada pelo IBGE, afirma textualmente e sem rebuços, no
capítulo sôbre a cidade de Delmiro Gouveia que o seu fundador
"morreu bàrbaramente assassinado, vítima de interêsses de
trustes estrangeiros". Ficou sobejamente provado que a indús
tria nacional sofrera forte concorrência do grupo da Machine
Cotton, encabeçado pela firma inglêsa J. P. Coats & Co., sub
sidiária, inclusive, da Companhia Brasileira de Linhas para
Coser, estabelecida em São Paulo.
É notório e confirmado por muitas fontes haver Delmiro
recebido propostas que o dito grupo fazia, ou mandava fazer,
para comprar a fábrica ou participar de sua direção, as quais
foram rejeitadas sempre com sobranceria e elevado espírito
nacionalista. Lemos em carta de Juvêncio Lessa o guarda
livros do escritório central da organização de Delmiro, com
sede em Maceió expressões bem elucidativas, vasadas mais
ou menos nestes têrmos: A Machine Cotton tudo fêz para
-

desbancar a nossa fábrica, inclusive proposta de comprá-la;


porém Delmiro respondia que era brasileiro, acima de tudo,
e não havia dinheiro ou interêsse algum para negociá-la, da
qual muito se ufanava, como todos os seus colaboradores e
empregados.

Luís Luna refere o caso de proposta apresentada por um


emissário, que veio à Pedra especialmente entabular negócio.
O episódio, muito curioso, aliás, por revelar a maneira de ser
do pioneiro, foi contado noutro local e por isso vamos resu
mi-lo: Delmiro hospedou o emissário, mostrou-lhe tôdas as
instalações e aguardou a proposta; quando esta foi formulada,
com muitos cálculos, êle pediu prazo; depois, respondeu sim
plesmente que não podia fazer a transação. Indagado do motivo,
disse que a mesma quantia e condições, êle, Delmiro, oferecia
pela indústria da Machine Cotton, em São Paulo.

Em artigo publicado em 1961, Josué Montello declara


que Delmiro recebera propostas e mais propostas e não arreda
ra, na convicção de que aquilo nos pertencia. E, recentemente, o
romancista Pedro Motta Lima pinta-nos êste quadro bem
imaginado:

193:
"A cada batalha perdida pelos inglêses se suce
dia uma parlamentação, apresentando novas e sem
pre mais elevadas condições de paz. Isto é, condi
ções de capitulação para a indústria brasileira.
Um gentleman de meia idade, sentou-se diante
do sertanejo teimoso e seu sócio italiano.
Nossa proposta de aquisição da fábrica é ago
ra de dez mil contos.

Delmiro respondeu negativamente num demora


do rodar de cabeça. Decidia por si e por Iona. O
inglês retrucou, numa jogada elegante.
Calculem mais ou menos os lucros visados
nos próximos dez anos. Estamos dispostos a acres
centar isso ao preço da fábrica. A título de
indenização.
Mister Hallan, nós somos ainda mais ambi
ciosos do que o senhor imagina. Os nossos planos
vão muito além dêsse primeiro negócio de linhas.
Acompanhava-o como introdutor um advogado
untuoso, o Dr. Zéfiro Pena Costa.

Eu aconselharia os amigos a fazerem sua


contraproposta. Um acôrdo razoável é sempre me
lhor do que o melhor pleito.
A cabeça do sertanejo abanou, devagar, num re
dondo não. O Dr. Zéfiro soprava brandamente as
vantagens do negócio proposto, como se Delmiro não
houvesse alcançado a grande monta:
Negócio de pai para filho. Mais de três vêzes
o capital realizado e ainda por cima os lucros pos
síveis num trabalho de dez anos! Em tôda a minha
carreira cível e no comercial ainda não vi condições
tão generosas.
Já disse e repeti que não, Dr. Pena Costa. E
o senhor, que nos conhece, porque também nasceu
no interior, bem sabe que lá em nossos mundos um
homem não volta atrás de sua palavra.
Sinto como se vocês fôssem os meus clientes!
Acreditem. É trocar uma bela oportunidade pelos
azares da luta desigual.
Delmiro sentara-se a uma poltrona, as pernas
abertas, o chapéu-do-chile à cabeça. Foi sacudido,
primeiro, por um breve frouxo de riso. Deteve o
advogado um momento:
Olhe aqui, Dr. Pena Costa. Agora que esta
mos a sós, entre brasileiros, quer saber qual é mesmo
a minha resposta?

194
Levou o charuto à bôca, fechou a mão direita,
bateu violentamente o pulso contra a palma da mão
esquerda, no desabafo nortista:
Aqui! Para êsses fias-da-puta!"

O autor de "Fábrica da Pedra" fala-nos, em seguida, de


outra proposta vinda por intermédio de Lionelo Iona. Desta
feita, não se tratava de compra mas apenas de participação
mínima, no dizer do romancista, ao relatar o episódio que va
mos também reproduzir, em linhas gerais:

"Iona reabriu a questão. Porque, argumentava,


afinal de contas não cederiam grande coisa. Teriam
em suas mãos o poder administrativo e com a cessa
ção da luta o movimento poderia redobrar, a linha
estrangeira se retrairia e as marcas da Pedra se im
poriam como únicas em tôdas as praças do país e
nos mercados que iriam conquistando já pela Amé
rica do Sul.

O coronel pediu a opinião de seus auxiliares. Ao


ver do major Bezerra, que se apressava a opinar, 0
negócio tinha uma dupla vantagem. Além da soma
que os dois sócios principais embolsariam, para apli
car em atividades mais sólidas, como por exemplo a
pecuária, e na aquisição de novas terras, o capital
reforçado na fábrica e a cessação da luta comercial
poriam fim a todas as dores de cabeça.
Que diz o compadre Adolfo?
Adolfo Santos não vacilou. Achava que a luta
devia ser levada até ao fim. A menor concessão ao
adversário poderia ter conseqüências funestas. O
truste contentava-se em pôr apenas um dedo, para
depois fazer passar a mão, forçar o braço e acabar
entrando de corpo inteiro.
Franziam-se as pálpebras de Delmiro, apoiando
num pestanejar nervoso aquelas palavras de audácia.
Assim também penso eu, compadre.
Iona acrescentou, frisando que o fazia apenas
em caráter informativo:
Eles nos mandam dizer que será a última
proposta para uma solução pacífica.
Delmiro, que ouvia derreado na cadeira de mo
las, desempenou-se, ergueu-se sùbitamente, ambas as
mãos espalmadas no tampo de vidro da mesa, por
sôbre um grande mapa do Brasil:
Vocês estão vendo? por debaixo da manta, o
punhal. Estamos brigando há muitos anos. Eles já
recorreram a todos os meios. Ora fingindo bons pro

195
pósitos, ora atacando com todas as armas. Neste
momento, quando sentem o pêso de nossa vitória,
contramarcham, mas não sabem esconder a insolên
cia. Habituaram-se a assestar os canhões e esperar
a rendição antes mesmo de abrir fogo.
Sentou-se de nôvo, balançando-se lentamente
na cadeira. Seu tom agora não era de ênfase, com
pletava o pensamento com naturalidade.
Não se trata mais de um negócio. Hoje temos
um compromisso assumido com muita gente que
acredita em nós. Aqui no sertão, pelo Nordeste afo
ra, por todo o país. Não podemos capitular. Vamos
responder como Floriano respondeu um dia a êsses
gringos.
Não se fala mais nisso disse Iona, com
-

emoção, e foi abraçar Delmiro, do outro lado da


33
mesa."

O pioneiro não percebeu, pensamos nós, que bem poderia


ser um abraço de tamanduá aquêle que lhe deu o judeu tries
tino, astuto, ganancioso e que iria mais tarde ocupar-lhe a
vaga, tendo atuação suspeitíssima.
Não foi por mero diletantismo, pois, diz um comentarista,
que os homens do truste se abalaram a propor a Delmiro
comprar-lhe a fábrica, mas os anseios industriais dêste, o seu
nacionalismo sadio e inexpugnável ultrapassavam de muito a
fundação de uma simples indústria de fazer linhas e fios. E a
resposta negativa foi logo secundada pela encomenda de uma
fábrica de dois mil teares. O pioneiro não abandonaria, por
hipótese alguma, a fortaleza já construída para fazer face à
concorrência estrangeira.
Fato revoltante e tendencioso se daria em 1916, quando a
linha nacional se afirmava no conceito geral e transpunha as
nossas fronteiras. A firma inglêsa antecipou-se em registrar na
Argentina e no Chile a marca "Estrêla" como sua. Sucedeu
que, quando os produtos nacionais chegaram àqueles países,
não puderam ser expostos à venda, sendo preciso recambiá-los
e fazer novos rótulos com a marca "Barrilejo", registrada de
vidamente lá e cá. Isso mostra até que ponto desceram os pro
cessos da tenaz e baixa concorrência.
Com a morte de Delmiro Gouveia, e a partir de 1924, o
truste voltou a agir de modo ativo e indisfarçável. No relatório
apresentado pela Diretoria da Cia. Agro-Fabril Mercantil, em
196
15-4-1925, fêz-se expressa referência à pressão do concorrente
que desenvolveu forte campanha à nossa fábrica no ano findo.
Álém da crise comercial, sofreu a emprêsa sensível mudança
em sua administração, dela desligando-se Lionelo Iona, tão logo
os filhos de Delmiro atingiram a maioridade, assumindo a
sua direção. Conseguiram êles do Congresso Nacional lei ten
dente a restringir ou mesmo proibir a importação de qualquer
produto estrangeiro, ao se verificar que seus fabricantes, re
presentantes ou importadores, concedendo vantagens especiais,
procuravam embaraçar ou prejudicar a venda do similar
brasileiro.

O então Presidente da República, Senhor Artur Bernardes,


baixou decreto de número 17.383, de 19-7-1926, elevando a
taxa de importação sobre a linha de coser de 2 para 10.000
réis por quilo. No texto do diploma legal alude-se à terrível
concorrência movida contra a única fábrica brasileira de linha.

Depois de acentuar que a indústria estrangeira estava oferecen


do vantagens especiais a comerciantes que se comprometiam
a não vender os produtos da fábrica da Pedra, o decreto escla
recia que, dos documentos apresentados pela Cia. Agro Fabril,
se evidenciava o propósito dos fabricantes estrangeiros de ex
tinguir a concorrência nacional, para, dominando o mercado,
estabelecerem preços exorbitantes. E ainda se referia ao dum
ping: os preços de venda dêsses produtos, nos próprios países
de origem, eram muito mais elevados que os vigentes no Brasil,
não obstante as despesas advindas de frete, seguro, impostos
etc.

Os herdeiros, já sem recursos, desanimados, decidiram


negociar suas ações. Aquelas tarifas protecionistas de 1926
foram, 2 anos após, revogadas pelo Govêrno, apesar dos esforços
despendidos por nacionalistas interessados, com a ajuda, inclu
sive, dos governadores alagoanos, Srs. Costa Rêgo e Álvaro
Paes, êste já quando a fábrica tinha passado ao poder de Mene
zes Irmãos & Cia. A linha inglêsa continuava sendo importada
a 2 mil réis o quilo. Apelou-se em vão para o Presidente da
República, no sentido de ser cumprida a lei nº 5.650, que
determinava dobrar as tarifas aduaneiras.

O Sr Washington Luís, homem de bem, estava disposto


a atender ao apêlo, quando teria sido procurado pelo Sr. Henry
Lynch, embaixador britânico e representante dos Rotschild, o

197

NOUPOT
qual cientificara que os banqueiros londrinos considerariam
ato de hostilidade a barreira alfandegária contra a tradicional
importação. Dominado pela idéia de estabilizar a moeda, para
cuja execução precisava dos Rotschild, Washington Luís cedeu,
abandonando a fábrica de Delmiro à própria sorte (*).
A miopia econômico-financeira do chefe do Executivo e
da maioria das duas casas do Congresso diz Tadeu Rocha
-

determinou o colapso da indústria brasileira, no mesmo ano


de 1929. Então, a Agro-Fabril sofreu grande prejuízo, dada
a crise mundial e intensificação da concorrência da Machine,
que conseguiu burlar as frouxas leis brasileiras. A emprêsa
nacional procurou vencer as dificuldades, aceitando, por fim,
proposta da competidora, à qual vendeu sua fábrica. E esta,
desmantelada e partida, foi jogada ao fundo do rio para, con
forme declaração de Geraldo Rocha, manter-se nesses Brasis
o monopólio da Machine Cotton, poderoso truste que se sacia
de nossa seiva. Ou seja, o imperialismo voraz, na expressão
de Raymundo Nonato, autor do livro "Figuras e Tradições do
Nordeste" (Pongetti, 1958).

(*) V. Boletim Comercial do Monitor Mercantil, nº. 23.113, de 22-6-62.

198
Fim Melancólico da Fábrica Nacional de Linhas

Aumento de capital e empréstimo em


debêntures - Prosseguimento das obras,
montagem de turbinas e reequipamen
to da fábrica Iona mandava, em nome
da maioria das ações - Os filhos de Del
miro chegam à maioridade e questionam
contra Iona e seu tutor Assumem a
direção da empresa O Presidente Ber
-

nardes prometeu empréstimo e baixou lei


protecionista O orçamento da União.
para 1926, dá podêres ao Executivo, até
de vedar a importação -

Tudo inútil,
pela incompreensão do Govêrno e do
Congresso - Desamparados e já sem re
cursos, os herdeiros venderam suas ações
A escritura de venda e a de quitação
O humilhante acordo a venda da

fábrica, num dia de finados As má


quinas são quebradas a marrêtas e ati
radas ao rio.

COM O DESAPARECIMENTO do chefe,


Lionelo Iona ocupou-lhe o lugar no quartel-general da Pedra,
comandando os negócios da firma Iona & Cia. e os trabalhos
da Cia. Agro-Fabril Mercantil. Cuidou logo do aumento do
capital desta, de 2 para 3.000 contos de réis, e do empréstimo
de 1.000 contos em debêntures, medidas autorizadas pela Assem
bléia Geral de acionistas, realizada em 26 de janeiro de 1918,
presentes os Srs. Balthazar de Albuquerque Martins Pereira e
Lionelo lona, êste testamenteiro de Delmiro Gouveia e aquêle
tutor de seus filhos e ambos diretores da Companhia.

199
Com esses recursos pretendia-se atacar as obras de monta
gem das novas turbinas e outras de caráter social, beneficente e
religioso. Não se sabe qual o destino dado à fábrica têxtil de
2.000 teares, encomendada ainda em vida do pioneiro a que
muitos têm aludido nem tampouco se sabe se foram introdu
duzidas na de linha melhorias de vulto, no tocante à ampliação
ou à renovação da maquinaria. Devia Iona mostrar-se mais in
clinado ao reaparelhamento da indústria de fios e de linhas, do
tando-a de outras máquinas. Tudo indica que o seu espírito me
ticuloso e tímido achava que o alargamento de atividades indus
triais, com a energia da Paulo Afonso, não era para processar-se
em ritmo acelerado, conforme planejara o gênio ousado de
Delmiro.

No romance de Motta Lima (v. pág. 189), certo persona


gem indaga, admirado, do judeu, sôbre os motivos por que
estavam interrompidas as obras de ampliação da usina, ao
que respondeu, justificando-se: "Um aumento de dois para
dez mil cavalos! Eram por demais grandiosos os planos do
falecido."

As decisões de Iona, sua palavra e vontade pessoal pas


saram a ser soberanas. Ao poder de chefe somava-se o das ações
que representava: as da firma Iona & Cia., as que detinha
individualmente e as de seu cunhado Raul Britto. Em nome
da maioria delas falava, e era ouvido religiosamente. Além disso,
contava com o beneplácito do Diretor-Presidente Balthazar Pe
reira e com as simpatias e a colaboração do Gerente Adolfo
Santos, que talvez visse nêle a única pessoa capaz de levar
avante a obra formidável fundada por Delmiro, na qual con
centrava seus entusiasmos líricos de patriota e suas esperanças
mesmas de estabilidade e subsistência material.
Os filhos de Delmiro, principalmente o jovem Noé Gou
veia, esperavam ansiosamente atingir a barreira legal da maiori
dade para desfechar ação de perdas e danos, sob pretexto de
atos lesivos a seus interêsses os praticados por Iona e por Bal
thazar, seu tutor, dando-se pressa em elevar o capital social
da Cia.. para da mesma se apossarem, conferindo-se por ato
de simulação a qualidade de maiores acionistas, que até então
pertencia aos herdeiros, seus representados.
Em 1924 ingressam em juízo e têm ganho de causa, re
conhecido o cabimento da ação pela Justiça, segundo sentença
200
proferida em 9-2-25. Pelos têrmos em que esta foi prolatada,
Lionelo Iona era obrigado a entregar 1.035 ações ao portador
que Iona & Cia, têm na Companhia; 830 que tem éle, Lionelo
Iona, e 40 que tem Raul Brito, como igualmente se obriga a
entregar aos mesmos (3 herdeiros) 875 debentures da Cia. que
são tôdas as que a firma e éle possuem atualmente, e a trans
ferir para o nome dêles o crédito de 1.300 contos de réis que
IÕNA & CIA. têm na Agro-Fabril Mercantil e o de 370 contos
de réis que tem Lionelo Iona (...) Obriga-se éste também
a transferir tódas as terras e propriedades que a firma IONA
tem na vizinhança da Cachoeira Paulo Afonso e na Pedra
(...) entregando-lhes todo o material existente em Maceió
importado pela Companhia (...) e que foi arrematado pelo
importe de Rs. 65.000$000 pelo Sr. Raul Brito (...) Garante
que o estoque de produtos manufaturados pela Cia. em seus
depósitos de Jaraguá, Recife, Rio de Janeiro etc. é de cêrca de
803 contos de réis.

Em 1925, Lionelo Iona foi afastado, desaparecendo do


país para sempre. Já no ano anterior havia começado a de
gringolada financeira da emprêsa, que sofrera, inclusive, o
impacto de tenaz e forte concorrência da Machine Cotton. Os
herdeiros de Delmiro assumem o comando dos negócios da or
ganização, com a presença, na Pedra, do môço Noé Augusto
Gouveia, saído de um colégio na Inglaterra, inexperiente,
estouvado, estróina e que começa a influir na administração
e destinos da firma. Lembram-no, a essa época, no Recife,
aonde ia passear no seu carro "NAG", a gastar desordenadamente
e a fazer maluquices, coisas próprias dum jovem rico de sua
idade.

Mas êles tinham apoio e simpatia de muitas figuras influ


entes na política, inclusive do governo de Alagoas, de vultos
de prestígio na Câmara e Senado, bem como na Imprensa,
amigos e admiradores de Delmiro Gouveia, todos procurando
amparar a fábrica em tal conjuntura. O Presidente da Repú
blica, Artur Bernardes, a quem foi exposta a situação difícil
por que passava a Agro-Fabril, prometeu não só empréstimo
pelo Banco do Brasil, de 3.000 contos de réis, como baixar
lei protecionista da indústria nacional, criando entraves ao
truste estrangeiro, já de garras de fora, ostensivamente, como
polvo absorvente. Saiu realmente o decreto, de nº 17.383, em

201
19-7-26, permitindo o aumento da taxa de importação sôbre
a linha de coser, de 2.000 para 10.000 réis por quilo.
Por intermédio do Centro Industrial de Fiação e Tecela
gem de Alagoas, e com a campanha da imprensa, os ditos.
herdeiros ainda conseguiram que o Congresso Nacional pusesse
na lei que orçou a Receita da União, para 1926, autorização ao
Poder Executivo para restringir, ou mesmo proibir, a impor
tação de qualquer produto estrangeiro, ao verificar que fabri
cantes, representantes ou importadores, concedendo vantagens
especiais ao comerciante que se comprometesse a não vender
o similar nacional, procuravam, assim, prejudicar o artigo
brasileiro.

Em 15 de novembro de 1926, subia à curul presidencial o


Sr. Washington Luís. Os herdeiros de Delmiro Gouveia aca
bariam ficando exaustos e sem esperança do empréstimo pro
metido, resolvendo desfazer-se de suas ações da fábrica. Esta
era um elefante branco, com as patas cravadas na Pedra, lugar
onde êles não queriam viver...
Visando a preservar aquêle patrimônio tão cobiçado e
do alto interesse nacional, o pioneiro estabelecera, em testa
mento, cláusula pela qual os filhos só poderiam vender ou alie
nar por qualquer forma tais ações depois que atingissem 30
anos de idade. No entanto, houve jeito para que, muito antes,
isto é, em 1927, êles pudessem transferir, com autorização do
sr. Juiz de Água Branca, o dito patrimônio aos srs. Menezes
Irmãos & Cia., pela quantia de 3.600 contos de réis, emprega
da em ações da dívida pública, nas quais só poderiam pôr a
mão com a idade de 30 anos.

Abrimos um parêntesis para transcrever trecho da escritura


de quitação de dívida, lavrada muitos anos após (23-10-43),
constante do livro 421, fls. 94, do 11º Ofício de Notas, de
Fernando de Azevedo Milanez, rua Buenos Aires, 47, Rio de
Janeiro. Reza o documento que a dívida então remanescente
era "proveniente da compra e venda de ações de capital da
Cia. Agro-Fabril Mercantil, de debêntures de emissão da mes
ma, créditos e bens dela outorgante (D. Maria Gouveia) e
de seus irmãos, conforme escritura pública de 7-5-27, em notas
do citado 4º ofício desta cidade etc.etc., no valor de 3.600
contos de réis e de que a devedora pagou à vista a importância
202
ponteagudas pedras as enchentes nas cobrem
,
, águas cujas rio
, do braço
o sobre trole do passagem para madeira de ponte
,
primitiva a substituiu que Viaduto )6

T
‫יויווץ‬
/
4) A tubulação e as escadas paralelas até a casa-de-fôrça, onde
foi assentada a turbina geradora de energia elétrica, de 1.500 HP
A

7
5) A escada em espiral, vista de perfil, prêsa ao flanco do
penhasco e cuja construção foi considerada obra de incrível
temeridade
monueto
inscrição
tôpo

com
cruzeiro
um

no

tendo

,
em morto Delmiro onde varanda a com chalé O 7
erigiu

se tarde
, mais que
, local , foi )

RESIDNCIA A
DE
DELMIRO
GOUVÊA
T
de 600 contos, ficando a dever 3.000 contos representados em
17 promissórias, com vencimento até 7 de maio de 1932; que,
pela citada escritura, autorizada por alvará do referido Juízo
de Direito de Água Branca, parte do valor de dita compra
e venda, compreendendo a quantia recebida e parte do valor
dos títulos que se fôssem vencendo, enquanto a outorgante e
seus irmãos não atingissem 30 anos de idade, seria convertida
em apólices da dívida pública federal, nestas, nos ditos títulos
enquanto vincendos e apólices que pelo produto dêsses títulos
fossem adquiridos, e até completar a outorgante 30 anos, se
sub-rogariam as ações de capital da Cia. Agro-Fabril Mercantil,
debêntures e créditos, objeto da mencionada compra e venda
em observância à disposição testamentária...”
A insensibilidade patriótica, a incúria administrativa, a
miopia enconômica e financeira do Pres. Washington Luís, bem
como da maioria das duas casas do Parlamento, foram o tiro de
misericórdia, ou melhor, a última pá de cal na desamparada
e mal dirigida fábrica da Pedra; e isso no ano de 1929, quando
a crise mundial atingiu o auge, refletindo também no Brasil
seus maléficos efeitos.
A Cia. Agro-Fabril tivera grandes prejuízos, devidos a
isso, e, sobretudo, à intensificação da concorrência da Machine
Cotton, fortemente apoiada nas nossas leis falhas; e não encon
trou saída senão a de entabular negócio com a sua tradicional
competidora. Tôdas as formas de compromissos, para trabalhar
por conta da Machine, ou para restringir a produção da Pedra
a determinados limites, mediante cláusulas de uma concorrên
cia ajustada, foram antes apresentadas em vão. Estudou-se, fi
nalmente, uma oferta firme da Machine Cotton, emanada de
seus principais J. P. Coat Ltd., de Paislay, para a Fábrica da
Pedra cessar a fabricação de linhas de coser e entregar por
venda seus maquinismos.
Convém acentuar que, ainda em decorrência dos esforços
envidados pelo referido Centro e pelos herdeiros de Delmiro,
encabeçados pelo marido de sua filha Maria, o engenheiro
Clóvis Santiago na Nóbrega, foi votada pelo Congresso a Lei
n° 5.650, de 9-1-29, elevando ao dôbro a tarifa alfandegária,
isto é, de 2 para 4 mil réis o quilo de linha importada, o que
se tornou letra morta, inexequível. O que dói e estarrece em
tudo isso é ver-se que homens incorrutíveis, e da estatura moral
203
dum Pres. Washington Luís e dum Senador Paulo de Frontin,
não enxergaram a trama do truste internacional, deixando ao
desamparo a nossa indústria, ao invés de promulgar leis coerci
tivas e não aquelas fracas e ineficazes.

Era um dia de finados, 2 de novembro de 1929. Em Paislay


- Escócia, firmava-se acordo entre a Machine Cotton e a Com
panhia Agro-Fabril Mercantil, pelo qual esta lhe vendia por
27.000 libras a sua fábrica de linhas, com maquinismos e aces
sórios.

O truste exigiu, ficando isso estabelecido, que um seu


emissário viesse à Pedra para fiscalizar a entrega das máquinas
vendidas e declaradas, a fim de não ficar nada de fora. A Cia.
Agro-Fabril e a firma Menezes Irmãos & Cia. se compromete
ram, no contrato, pelo espaço de 10 anos, e os industriais, seus
sócios, Luís e Vicente Lacerda de Menezes, por cinco, "a não
reentrarem no negócio de linha". E a Machine Cotton se obri
gava a essa condição surpreendente: -

a pagar mais £ 5.000


pelos gastos que a emprêsa brasileira teria para transformar
sua fábrica de linhas em manufatura de tecidos! Tudo muito
claro, humilhante, tendencioso...
Ao toque dos sinos de finados de 1929, no centro industrial
de Paislay diz Tadeu Rocha - ficou selado o destino da nossa
-

indústria de linhas de coser. Três semanas após, exatamente


no dia 23 de novembro, na cidade do Recife, o Conselho Fiscal
da Agro-Fabril, em reunião conjunta com a Diretoria da Em
prêsa, emitiu parecer favorável à aceitação do aviltante acordo.
Em 9 de dezembro, a Assembléia Geral da sociedade fundada
por Delmiro homologou o ajuste. Seguiu-se a inevitável exe
cução na fábrica, com o encaixotamento e transferência de
algumas máquinas para o Sul do país e a destruição da maioria,
a marretadas. O relatório da Cia. Agro-Fabril, referente àquele
ano, após esclarecer que aceitara as condições da Machine
Cotton depois de frustrados todos os esforços junto ao governo
federal para melhor amparar a indústria de linha nacional,
falava melancòlicamente no desaparecimento da marca “Es
trêla", pois executamos fielmente aquêle ajuste.

204
Em abril de 1930 viu-se e ouviu-se, noite e dia, na cidade
da Pedra, então silente e perplexa, o desmantelamento de
máquinas, com o ranger de ferros e o bater incessante das
marrêtas. Finalmente, viam-se faiscar chispas de fogo nas pedras,
quando suas peças, partidas, eram atiradas ao fundo do penhas
co, para sumirem nas águas revôltas do rio chamado da unidade
nacional, últimos estertores da primeira grande fábrica nacio
nal de linhas, fundada e mantida com inaudito esfôrço e assim
melancòlicamente desaparecida...
Muita gente viu, todo mundo sabe e ninguém disse nada!
Os operários, de longe, ouvindo o tan-tan-tan cadenciado das
marrêtas, ou debruçados à beira do abismo, espiando sem
entender aquêle desatino, apenas comentavam: "Estão aca
-

bando com a fábrica do Coronel!"


Talvez o seu espírito, lá da eternidade e sem nada poder
fazer, de braços cruzados, mão no queixo e lágrimas nos olhos,
tenha visto também o espetáculo triste e revoltante, sentindo
que tal ato predatório representava a destruição dos anseios
que acalentara e por que perdera a vida, determinando consi
derável atraso no processo de desenvolvimento e salvação do
Nordeste. Somente meio século após, o seu sonho tornou-se
realidade, quando a energia da Paulo Afonso foi levada a
vários pontos da região, pela Cia. Hidro-Elétrica do São Fran
cisco, obra fundada e dirigida pelo Estado, com todos os re
cursos de capital e de técnica, e não por aquêle homem só,
incompreendido, atraiçoado Delmiro Gouveia, o pioneiro
e nacionalista...

205
BIBLIOGRAFIA

LIVROS E PUBLICAÇÕES DIVERSAS

ALBERTO DE FARIA Biografia de Mauá


BARÃO DE STUDART "Dicionário Bio-Bibliográfico do
Ceará"
EUSÉBIO DE SOUSA "História Militar do Ceará"
GUSTAVO BARROSO "A Guerra do Lopez" e "Liceu do
Ceará"
- FRANCISCO MUNIZ BARRETO "História da Revolução
de Pernambuco"

OTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA "História dos Fundado


res do Império", vol. I
JOÃO DUARTE FILHO "O Sertão e o Centro"
MAURO MOTA "A Estrêla de Pedra: Delmiro Gouveia,
-

evangelizador de Terras, Águas e Gentes"


RAUL DE GOES "Herman Lundgren"
- SEBASTIÃO DE VASCONCELOS GALVÃO "Dicionário Co

rográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco"


JOSÉ MARIA BELO "História da República"
GILBERTO FREYRE "Ordem e Progresso" e "O velho
Félix e suas memórias de um Cavalcanti"
TADEU ROCHA "Roteiros do Recife"
RAYMUNDO NONATO "Figuras e Tradições do Nordeste"
GERALDO ROCHA "O Rio São Francisco"
-

MOACIR MEDEIROS DE SANT'ANA "Pequena. História de


-

Delmiro Gouveia"
PEDRO MOTTA LIMA "Fábrica da Pedra"
JOSÉ LOPES DE MORAES Trabalho enfeixado em "Uma

excursão ao S. Francisco"
- ANTÔNIO C. PALHARES M. REIS Idem, idem, idem
HÉLIO MACEDO SOARES Relatório sôbre o rio S. Fran
cisco e a Paulo Afonso.
estudo
ADOLFO SANTOS Depoimento para um
biográfico"
de
ENCICLOPÉDIA E DICIONÁRIO INTERNACIONAL -

Jackson Editôra

206
DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DE ALAGOAS -
n.° 105,
de 16-5-61
- BOLETIM COMERCIAL DO "MONITOR MERCANTIL"
n.º 23.113, de 22-6-62
ALMANAQUE DO CEARÁ de 1962
ALMANAQUE DE PERNAMBUCO de 1908

ARTIGOS EM JORNAIS E REVISTAS

PLÍNIO CAVALCANTI Diversos artigos e conferências


-

TADEU ROCHA Série de artigos no "Diário de Pernam


buco" (1953)
JOSÉ BONIFÁCIO DE SOUSA "A vida audaciosa de
Delmiro Gouveia"
EUSÉBIO DE SOUSA "José Soares de Sousa Fogo"
CARLOS LÔBO "Delmiro Gouveia, o pioneiro"
-

MANOEL F. FRADIQUE ACIÓLI Conferência publicada


na "Revista do Clube de Engenharia" (Ceará)
MEROVEU MENDONÇA "Delmiro Gouveia"
HAROLD R. LEVY "Paulo Afonso Obra ciclópica da
-

engenharia brasileira"
RAUL AZÊDO "Delmiro Gouveia, heróico precursor da
usina de energia elétrica da Paulo Afonso"
M. MALTA Reportagens (3) na "Gazeta de Alagoas" (1961)
JOSIMAR MOREIRA Idem em "Última Hora", reprodu
-

zida em "O Povo"

ABELARDO ROMERO "Delmiro Gouveia, o pioneiro es


quecido da Hidro-Elétrica"
JOSUÉ MONTELLO "Delmiro Gouveia evocação"
OCTAVIO BRANDÃO "Delmiro Gouveia na indústria
nacional"

ULISSES LUNA "Nascimento, Vida e Morte do Cangaço"

PESSOAS QUE NOS DERAM INFORMAÇÕES

FRANCISCO ELMIRO MARTINS (Ipu)


)
MANUEL BESSA
NCISCO
E HERMELINDA
MARTINS
Ipu
DE PINHO
BESSA
( Ipu
)(por carta
HAROLDO MAGALHÃES (Santa Quitéria)
CARLOS FÉLIX DE SOUSA (Santa Quitéria)
HUMBERTO SANFORD (Fortaleza)
OSWALDO ARAUJO (Fortaleza)
CARLOS LOBO (Fortaleza)
NÉRI CAMELO (Fortaleza)
TADEU ROCHA (Recife)
ARTUR PIO DOS SANTOS (Recife)
FERNANDO CRUZ GOUVEIA (Recife)
SÍLVIO. COELHO (Recife)
MARIA GOUVEIA (Rio)

207
NOE AUGUSTO GOUVEIA (Rio)

ANTENOR XAVIER DE ALMEIDA (Rio)


HERACLITO LIMA (Rio)
ADEMAR MENDONÇA (Rio)
HILDEGARDO D. MENDONÇA (Rio)
CARLOS GARRIDO (Rio)
PEDRO BELTRÃO S. DIAS (Rio)
JOÃO DUARTE, FILHO (Rio)
GIL MARANHÃO (Rio)
LUIS LUNA (Penedo)
JOSÉ CORREIA DE FIGUEIREDO (Penedo) por carta
FÉLIX LIMA JUNIOR (Maceió), inclusive por carta
-

JUVENCIO LESSA (Maceió) por carta para Humberto Silva


Lima -e muitas outras pessoas.

208
ESTA OBRA FOI EXECUTADA NAS OFICINAS DA
COMPANHIA GRÁFICA LUX, RUA FREI CANECA,
224 RIO DE JANEIRO, PARA A EDITORA
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.
DELMIRO GOUVEIA,

PIONEIRO E NACIONALISTA

as origens, vida e morte de


um brasileiro excepcional,

um brasileiro tão grande


que acabou transformado
em figura legendária
a vida de um homem

que lutou até o fim


para tornar o Brasil
forte e independente
a história de um homem progressista, exemplo de
civismo criador, modêlo de fibra e capacidade rea
lizadora, cuja. obra os trustes destruiram.

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