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PIONEIRO E
NACIONALISTA
F. MAGALHÃES
MARTINS
UM HOMEM SIMBOLO
E INSPIRAÇÃO
diz Mauro
Mota.
ALL RIGHT
DELMIRO GOUVEIA
pioneiro e nacionalista
1
RETRATOS DO BRASIL
volume 17
1 -
RADIOGRAFIA DE NOVEMBRO, de Bento Munhoz da Ro
cha Netto
5 -
IMPERIALISMO E ANGÚSTIA, de Cláudio de Araújo Lima
6 -
RIO GRANDE DO SUL: UM NOVO NORDESTE, de Fran
klin de Oliveira
10 -
REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO NO BRASIL, de
Franklin de Oliveria
12 -
CAFÉ UM DRAMA NA ECONOMIA NACIONAL, de Cid
Silveira
13 -
POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE, de San Tiago
Dantas
14 -
JAGUNÇOS E HERÓIS, de Walfrido Moraes
15 -
CANGACEIROS E FANÁTICOS, de Rui Facó
DELMIRO GOUVEIA
pioneiro e nacionalista
"
produção:
RUBENS LIMA
Exemplar No 2189
1963
11114 17 22 27 323842
Intróito Biográfico
Data e Local do Nascimento
O Casarão da Fazenda Boa Vista
916
Uma Aventura Romanesca
O Bravo e Aventureiro Pai de Delmiro Gouveia
A Amorosa e Infeliz Mãe de Delmiro
46
Vida Sentimental Marcada por uma Fatalidade Inexorável 48
Bibliografia 206
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Intróito Biográfico
DELMIR
ELMIRO GOUVEIA nasceu a 5 de junho
de 1863 no município de Ipu, Estado do Ceará, ou seja, na
ſazenda Boa Vista ou nas suas cercanias. Foi batizado pelo
coadjutor do vigário da vizinha vila de Santa Quitéria, por
ocasião de desobriga, ali, no casarão daquela fazenda, onde
se costumava levantar altar para atos religiosos, inclusive ba
tizados.
9
, na Guerra do Paraguai, nas linhas avan
bro doçadas
ano
do
1867
deTaji, às proximidades da picada de Caimbocá. (*)
A mãe, procedente de Pernambuco, nascida Leonila Flo
ra da Cruz Gouveia, ficou conhecida pelo apelido de Curica
nos sertões de Ipu e Santa Quitéria, onde viveu poucos anos,
voltando para o Recife, após a morte do herói Delmiro de Fa
rias, nome dado posteriormente a uma das ruas de Fortaleza.
Convém advertir que tanto o pai como o filho se chama
ram Delmiro. Usaremos epítetos e expressões ao referir-nos a
um e a outro, a fim de evitar confusão no espírito do leitor
menos atento; pois é necessário mencionar lances da vida aven.
tureira e sentimental do bravo Major Delmiro de Farias, os
quais justificam, pela força da hereditariedade, tendências tem
peramentais do nosso biografado.
Outrossim, este trabalho se divide em origem, vida e mor
te, estando a lª parte òbviamente integrada pelos seis capítu.
los iniciais. O leitor sôfrego em conhecer a parte relacionada
com a vida e morte de Delmiro Gouveia, pròpriamente dita,
poderá saltar os que se seguem a êste, começando a leitura em
"Os primeiros passos do menino cearense que emigrou".
10
Data e Local do Nascimento
11.
historiadores e inúmeras pessoas da região, inclusive familiares
seus. Isso consta, mesmo, de publicações oficiais (v. Enciclopé
dia dos Municípios Brasileiros, do I.B.G.E.), e de outras não
menos merecedoras de fé e bastante difundidas, como "O Cea
rá", organizado por Raimundo Girão e A. Martins Filho, "com
o objetivo de fazer melhor divulgação e propaganda honesta
da Terra, do Homem e das cousas cearenses".
O Governo de Alagoas chegou a organizar, em 1961, vasto
programa de festas (*), determinando se comemorasse o seu
centenário da maneira mais brilhante possível, com fogo sim
bólico, romaria, conferências etc., na capital e em todo o Estado.
Entretanto, surgiu a dúvida a respeito, suscitada por pessoa co
nhecedora da inscrição posta na lápide do imponente túmulo
de Delmiro, edificado na cidade que recebeu o seu nome, tendo
o Governador, por isso, telegrafado ao Bispo de Sobral e obti
do resposta de que o ano do nascimento era mesmo o de 1863.
Assim, foram suspensas as homenagens, entre as quais se havia
cogitado até da emissão de sêlo postal comemorativo.
Em artigo publicado no Ceará, (**) reproduzindo conver
sas ouvidas de sua avó Joana de Farias, irmã do Major Delmi
ro, diz Carlos Lobo: “É certo que Delmiro Gouveia, o pioneiro,
tenha nascido nas vizinhanças de Ipu, dizendo uns que o fato
se deu na fazenda Luva, outros, na fazenda Boa Vista". E
adianta ter sido êle batizado "por ocasião de desobriga, poden
do-se mesmo dizer que os santos óleos do batismo lhe foram
ministrados na capela do Frade" (hoje Irajá), o que nos pare
ce improvável por não haver, àquela época, capela no citado
lugarejo.
As terras do município de Santa Quitéria se revelaram
magníficas aos colonizadores para a criação de gado, mas sua se
de não experimentou, embora vizinha de Ipu, o progresso
que esta teve, a partir da última década do século passado,
com a chegada ali, em 1894, dos trilhos da Estrada de Ferro
de Sobral. Mas a velha localidade sertaneja, terra dos Sena
dores Pompeu e Catunda, era mais rica e importante do que
a outra, ao tempo do nascimento de Delmiro, que fôra bati
zado por padre vindo de lá, onde havia igreja grande e orga
nizada, com que Ipu ainda não contava: existia, sim, uma
* Diário Oficial do Estado, n.o 105, de 16-5-61.
("Delmiro de 20-8-61.
12
pequena capela em que os ofícios religiosos não se celebravam
com regularidade e por todo o ano. Seu vigário, o padre colado
Francisco Corrêa de Carvalho e Silva -
por sinal o primeiro
que ali se fixou, pois que, até então, a sede paroquial era no
antigo povoado de São Gonçalo da Serra dos Côcos - ausen
13
O Casarão da Fazenda Boa Vista
15
anos após, tendo morrido Josino Tôrres, o velho Cel. Félix
dissera:
16
3
CHAMAVA-SE
HAMAVA-SE CAVALARIANO aquêle que
viajava, negociando com animais de sela ou de carga, geral
mente cavalos. No Nordeste, inclusive no Ceará, pelos meados
do século passado, adotou-se e em algumas partes intensificou
se essa profissão, que consistia em levá-los e vendê-los na re
gião do brejo, preferentemente, onde êles davam bom preço,
muito úteis que eram ao serviço nos engenhos e porque ali só
se cuidava, pràticamente, da cultura da cana.
Neste país "nenhum elemento econômico deixou marca
de sua preponderância como o açúcar", diz João Duarte Filho
em "O Sertão e o Centro". Recife já se afirmara como metró
pole do Nordeste e centro daquela riqueza que impulsionou o
primeiro surto industrial da região. Para lá e para outras cida
des, situadas na faixa litorânea onde florescia a indústria açu
careira, marchavam comboios de animais de vários pontos, até
da chamada zona norte do Ceará, limítrofe com o Piauí.
17
Nas épocas próprias de cada ano, o capitão José Raimun
do de Aragão, genro do Cel. Félix José de Sousa, a quem este
entregava a direção e negócios de suas fazendas, apartava as
reses eradas e os animais destinados à venda. Delmiro Porfírio
de Farias e José Soares de Sousa Fogo, sobrinhos do coronel -
zão por que "era chamado pelos sobrinhos de TIO BELO". Cons
ta que João Furtado, ao peceber que a jovem estava caindo
nas malhas de Belo de Farias, a advertiu de que seu cunhado
1 era casado e pai de filhos. E que Leonila, rindo-se, disse não
o acreditar, enfeitiçada pelos amavios sedutores do forasteiro,
D. Juan cigano, cavaleiro andante do Amor, que já tinha con
quistado aquêle frágil coração! O coração tem razões...
Para a sua louca aventura, contava Delmiro de Farias com
19
"Quando adolescente, ninguém o excedera em au
dácia nos mais árduos misteres da vida sertaneja.
Havia mesmo nos seus atos requinte de temeridade
em que poucos dos seus camaradas ousavam imitá
lo. Nas vaquejadas escolhia o cavalo mais rebelde,
que atirava contra o barbatão mais arisco, e, de
preferência, no mais cerrado e acidentado das
caatingas."
de Montevidéu, e
SÃO PAULO do rio Paraná, lá na fronteira do Paraguai.
20
tura amorosa e insensata" e Delmiro de Farias foi expulso
do ambiente de respeito em que viviam as famílias do pai, das
irmãs casadas e dêle próprio. Até então morara, com a mulher
e os 5 filhos legítimos, no sítio São Paulo, em cima da serra,
no caminho de Campo Grande para o Ipu.
A sua mulher chamava-se Francisca Delmira de Farias,
irmã de Cândida, Luzia, Joaquina e José, sendo a primeira
(Cândida) casada com Tomaz Catunda, irmão do Senador Ca
tunda. Embora condenando o procedimento do filho inconse
qüente, o Cel. Joaquim de Farias mandou arranjar uns burros
para que êle e a nova companheira viessem embora para as
terras dos sertões, onde habitavam muitos de seus parentes.
Existe a versão de sua estada ora na fazenda Luva, ora em
21
O Bravo e Aventureiro
Pai de Delmiro Gouveia
de Fortaleza.
DELMIRO
ELMIRO PORfírio dE FARIAS era filho
22
sobre a serra. Mas, o velho Francisco Elmiro Martins, com boa
lógica e por dedução em face do ano de nascimento de um
outro menino aparentado, nos disse presumir que Delmiro
Porfírio de Farias, rebento do primeiro matrimônio, à fôrça,
com Maria Francisca de Paula, sua genitora, haja visto a luz
do sol em 1825 ou 26.
23
brios e soberania, S. M. o Imperador convidava o povo a for
mar corpos de voluntários, através do Decreto n° 3.371, de
7-1-1865. A esse apêlo o Ceará atendeu prontamente, dando-lhe
ênfase e larga divulgação por todos os recantos, espalhando cir
culares aos comandantes superiores, às câmaras, autoridades
judiciárias e policiais.
Dizem ter sido determinado em Santa Quitéria ou Ipu,
entre os membros da comissão incumbida do recrutamento,
formada por cidadãos preeminentes, que dois varões domi
ciliados na Boa Vista deviam apresentar-se para incorporação
às fôrças do brioso 26 "batalhão de escol, constituído pela
-
-
Uma gratificação de 300 réis diários, além
dos vencimentos que percebem as praças de linha;
-
Dispensa do serviço apenas fôr declarada a
paz, com a percepção de uma gratificação de 300$000
e 22,500 braças quadradas de terra, e pronto regresso
às suas Províncias;
Graduação de Oficiais honorários do Exér
cito, com sôldo aos que se distinguirem por ato de
bravura.
24
Em "A Guerra do Lopez" (Ed. Getúlio M. Costa) conta
Gustavo Barroso no capítulo "A Surprêsa de Caimbocá", à pág.
161 e seguintes, como morreu, gloriosamente, o bravo Delmiro
de Farias a 2 de dezembro de 1867, fazendo parte de um pelo
tão de reconhecimento que operava nas linhas avançadas do
território paraguaio. Vejamos:
25
duma tropa mais numerosa, o regimento inimigo,
que ignora o número de homens daquele pelotão de
apoio, foge e se dispersa na selva impenetrável. No
meio do campo, um único combatente está de pé."
Fortaleza.
26
A Amorosa e Infeliz Mãe de Delmiro
lar do padrasto.
LEONILA
JEONILA FLORA DA CRUZ GOUVEIA era
27
Apesar de filha bastarda do Comendador, Leonila Flora
fôra criada como legítima, dentro de bons princípios, recebendo
cuidadosa instrução, tanto que era professôra e tocava piano.
Nascera e criara-se numa casa das proximidades ou de dentro
do engenho do pai, com outras irmãs bastardas, estas bem
casadas, ao contrário dela, a única que se desviou do bom
caminho.
29
que, com o desaparecimento do companheiro, iriam num cres
cendo levá-la ao desespêro.
Numa ou noutra hipótese, queremos crer que o papel
desempenhado pelo Dr. Félix de Sousa Júnior é como um elo
que nos faltava para ligar e explicar os acontecimentos rela
cionados com a volta de Leonila. Diz-se que o Cel. Félix, ante
os apelos da família da môça raptada e, posteriormente, dela
própria, mandou levá-la de volta, num comboio de animais,
que cremos hajam sido despachados para Fortaleza, com ordem
para que a ela fôssem fornecidas as passagens de navio e os
meios necessários para a viagem. E quem se incumbiu disso não
foi outro, certamente, senão o Dr. Félix, pessoa influente na po
lítica e que, no govêrno de Lafayette, fôra quem tratara do
embarque dos soldados para o Paraguai, entre os quais partira,
para lá morrer, tràgicamente, o seu valente primo Delmiro de
Farias, deixando na orfandade e desamparados os dois filhos
menores, que agora precisavam emigrar, com a inditosa pro
genitora.
30
errado, que se deu, sem dúvida alguma, numa vertigem mo
mentânea provocada por irresistível conquistador.
Inútil investigar o modo como foram, na Mauricéia, seus
primeiros tempos de luta, possivelmente obscuros e difíceis,
mas enfrentados com galhardia e estoicismo, a ponto de serem
relembrados com orgulho por quem, em menino, os acompa
Inhou de perto Delmiro -
que conservava até a morte o
retrato da mãe, numa mesa de cabeceira, em sinal de reconhe
cimento e admiração.
Pouco ou nada se colheria em tal investigação. Tudo o
que se sabe é que ela conheceu, mais tarde, o advogado Meira
de Vasconcelos, em cuja casa foi servir, a princípio, como "sim
ples empregada doméstica", homem êsse que "tão saliente papel
veio a exercer na política e nas letras de sua província” (*),
destacando-se como ardoroso socialista e lider católico.
31
Os Primeiros Passos do Menino
32
pai dêste seguiu para a guerra, assim como para ela partira,
outrora, o pai de Moacir...
Confirmando-se a visão profética do escritor, estava selado
naquele ano o destino de mais um cearense e futuro emigrante,
cujo pai, em defesa da Pátria, partia e iria morrer. Não se sabe
exatamente com que idade o menino deixou o torrão natal: sc
com 5 anos, menos ou mais. O certo é que teria idade suficiente
para conservar a memória de Sobral e da paisagem da Serra
Grande, com a bica do Ipu, formada pelo riacho que dela se
desprende de mais de 100 metros, sendo avistada do alto sertão.
Diz um seu parente, Carlos Lobo, que o menino Delmiro
se criou vendo diàriamente a serra e constantemente a bica.
E a sensibilidade poética de Mauro Mota (*) imagina que
aquela criança via a água jogar-se "numa queda de suicídio,
para ir morrer mais adiante nos tabuleiros cearenses. A visão
dêsse desperdício, num meio de extremas penúrias, ter-se-ia gra
vado na retentiva do menino para ficar na do homem e do
homem exigir a compensação".
De fato, a paisagem nativa ficar-lhe-ia gravada nos olhos
e no coração. Delmiro haveria de levá-la pela existência afora,
como uma obsessão ou fatalismo. Quando em 1896/7 viajou
em excursão pelo Exterior, posando com a espôsa para uma fo
tografia histórica que vimos em poder de sua filha, escolheria
como pano de fundo a cachoeira do Niagara, ou outra. Anos
depois iria fixar-se na Pedra, próximo de Paulo Afonso, sonhan
do, permanentemente, com o aproveitamento do seu potencial
energético e das águas do São Francisco, como meios de redi
mir do pauperismo sua terra e seu povo.
É possível que, em criança, êle visse os teares na casa-velha
da Boa Vista, aquêle engenho rudimentar em que D. Isabel
ensinava as escravas a fiar e tecer peças grosseiras de fazendas;
como também visse sua mãe, professôra, ensinando a ler as
filhas e netas dos donos da fazenda, e a fazer bordados, crochés
e costuras, no paciente manejar de linhas e agulhas. E ficariam,
assim, retidas em sua mente essas cenas da infância, observadas
nos sertões cearenses, bem como a paisagem da serra e da bica
do Ipu...
33
Recife foi como uma Babilônia para o menino sertanejo.
Delmiro abandona o sertão à procura da cidade-grande do li
toral, como "a natureza do rio que corre para o oceano". A
imagem é do seu primeiro e esclarecido biógrafo, Plínio Caval
canti, à qual aduz a de que o contato do meio civilizado foi
a polia mecânica onde êle aprimorou as grandes virtudes
inatas e já evidentes.
Não se sabe, precisamente, como ensaia seus primeiros
passos naquela Metrópole. Consta da Enciclopédia Internacio
nal, da Jackson, que fôra tipógrafo aos 11 anos. Mal chega à
adolescência, depois da morte da mãe e do casamento da irmã,
deixa a casa do padrasto, para enfrentar a vida, com 15 anos,
sem levar consigo, porém, bons fundamentos de instrução, dado
que, com sua natureza independente e algo rebelde, não quis
submeter-se à disciplina das escolas.
Poder-se-ia resumir que, ainda aos 20 anos, era comerciá
rio. Em seu precioso "Depoimento" (*), conta-nos Adolfo San
tos -
34
e nos vagões" diz Mauro Mota, concluindo que Delmiro
"já utilizava o primeiro emprêgo, de modesto ferroviário, como
aprendizado de liderança e contacto com os problemas econô
mico-sociais de sua época".
Mas a sua carreira estava mesmo na compra-e-venda. Escre
ve Tadeu Rocha (*) que êle começou como mascate, condu
zindo cargas de louças que trocava por aves e ovos na zona do
Agreste, cujas fazendas e sítios visitava a cavalo, ao lado de um
almocreve. Ainda por volta de 1880, "seu" Delmiro hospedou-se
muitas vezes no Jaracatiá, perto de São Caetano, onde fêz ami
zade com o fazendeiro Julião de Albuquerque Melo, cujos filhos
Julião e Manuel Clementino ainda conservam a memória des
sas transações.
Com o traquejo adquirido e as relações feitas nos meios
comerciais, tornou-se encarregado de despachos de barcaças,
"o primeiro pôsto de responsabilidade que assumiu", no dizer
de Adolfo Santos. Conseguiu estabelecer-se, com sua mesa, ao
canto de um dos armazéns de compra de algodão e outras mer
cadorias, entre muitos que, nessa época, operavam no antigo
cais do Ra onde o pai daquele informante, Sr. Francisco
Xavier dos Santos, era também negociante do ramo.
Como o pôsto não lhe rendesse bem, Delmiro voltou-se à
compra de peles, na qualidade de empregado e depois corretor
das firmas que então incrementaram muito êsse comércio no
Nordeste, com escritório no Recife. As principais eram forma
das ou dirigidas por estrangeiros, como o americano John San
ford, o alemão Herman Lundgren, o francês Ernest Kant, o in
glês Clemente Levy, os italianos Lionelo Iona e Guido Ferrário.
Com esses compradores e exportadores de couros e courinhos,
o môço ativo e simpático iria travar e, mais tarde, estreitar
relações, tornando-se precioso elemento de ligação entre êles
e os vendedores ou produtores do interior.
35
Goiaba de Pesqueira, Doce
e Bonita, mas sem Semente...
Transforma-se
em homem mundano "Vila Anuncia
da": suas festas e jantares Incompa
tibilidade de gênios Atritos do casal e
a separação D. Iaiá volta para Pes
—
36
Tendo conhecido, no cais do Ramos, o velho Francisqui
nho Francisco Xavier dos Santos pai de Adolfo Santos e
-
38
A
39
se constituíra o mais ardoroso patrocinador. Para o completo
êxito da promoção empenhou-se vivamente, querendo abri
lhantá-la com a presença dos amigos e da própria espôsa.
A hora do jantar, no dia da festa, Iaiá surpreendeu a Del
miro com a notícia de que não iria comparecer. O mundo veio
abaixo, com a explosão do maior dos escândalos aos olhos estar
recidos de todos, pessoas da família, de sua estreita amizade e
estranhos. Delmiro quebrou pratos, copos de cristal e móveis,
pôs abaixo reposteiros e cortinas, tudo isso ante a atitude
silenciosa de D. Iaiá, o que, parece, mais o transtornava.
No auge da alucinação, teria dito que ela era inútil e
nunca fizera nada pela sua felicidade. Inútil, que nem filhos
lhe dera! Tinha aturado muito, mas era chegada a hora de
separar-se. Homem voluntarioso, de palavra férrea, que nunca
engolia o que dissesse, foi-lhe talvez penoso ter que afastar-se
do lar. A decisão porém estava tomada, depois daquele último
e desastroso escândalo.
40
resolveu ir a Pesqueira tentar a reconciliação com sua legí
tima espôsa. D. Iaiá preferiu o desquite amigável, continuando
enclausurada, a ruminar suas tristezas, em silêncio, até ficar
meio "biruta"...A ação de desquite foi proposta em 15-7-1913,
sendo ratificada em cartório em 14-5-1914.
Nessa época Delmiro dizia que tinha sido um êrro sepa
rar-se dela, e que, se houvesse refletido bem, jamais o teria
cometido. É o que informa um íntimo seu, que vivia na Pedra,
o qual adianta que a separação foi motivada pela incompre
ensão de gênios, agravada pelo fato de, quando Delmiro fôra
prêso no Recife, D. Iaiá não o ter ido visitar, como inúmeras
pessoas, procedimento que o teria aborrecido muito e induzido
definitivamente a abandoná-la.
É preciso esclarecer ter êle lhe marcado uma mensalidade
que ia sendo aumentada, com o tempo, embora soubesse que
o dinheiro que lhe mandava, para Pesqueira, só servia para
os irmãos dela, uns malandros que a exploravam como o pró
prio Delmiro sabia. Com a mente perturbada, D. Iaiá morreria
em 1937, isto é, 20 anos depois de Delmiro ser assassinado. A
certidão de seu óbito, extraída do livro n° 10, fls. V. 169, do
escrivão Luís Nepomuceno de Siqueira, reza o seguinte:
"N.° 19 ANUNCIADA CÂNDIDA FALCÃO GOUVEIA. AOS
vinte e dois de janeiro de 1937, nesta cidade de Pes
queira, Estado de Pernambuco, em meu cartório
compareceu o senhor Antonio de Melo Falcão e disse
que hoje às treze horas, em casa de sua residência,
nesta cidade, à rua Duque de Caxias n.° 121, havia
falecido a sua irmã D. Anunciada Cândida Falcão
41
Como Passou de Comprador a "Rei das Peles"
42
No Recife, várias pessoas e firmas operavam, ativamente,
no ramo da compra e exportação de couros e peles. Entre os
estrangeiros, podem ser citados os Rossbach, Herman Lundgren,
John Sanford, Albert Kant, John Krausé, José Clemente Levy,
Lionelo Iona, Guido Ferrário, etc. Delmiro constituíra-se
precioso elemento de ligação entre os compradores e os centros
produtores, tornando-se o mais vivo intermediário e o corretor
mais produtivo.
43
preferência (mesmo como patrão e principal dono da fábrica
de linhas), estava mais compatível com seu temperamento.
Tinha liberdade. Vendia suas partidas de peles a quem, even
tualmente, oferecesse melhor cotação.
45
boas cotações, com exclusividade, para aquisição, no Estado,
dos couros e peles para seu curtume, mediante contrato.
Tal modalidade ter-lhe-ia sido proposta pelo próprio Del
miro, com a qual revelou tino e sagacidade. Daí a razão de
ter-se, eventualmente, associado a alguns dos muitos compra
dores, numa ou noutra transação, para a colocação, a melhor
preço, de determinadas partidas de peles. Assim, isto é, com
essa liberdade de ação, êle fêz grande movimento e ganhou
muito dinheiro.
47
Vida Sentimental Marcada
GENERALIZOU
ENERALIZOU-SE a crença de que Del
miro Gouveia era dado a conquistas amorosas. Para isso muito
concorreu o caso, assás conhecido, de seu desentendimento com
a legítima espôsa, dela separando-se e indo passar uma tempo
rada na Europa, enquanto a boa D. Iaiá se recolheu à casa dos
pais, em Pesqueira, renunciando aos encantos do mundo pelo
resto da vida.
Ao voltar, decorrido pouco tempo, não a procurou, e, com
quase 40 anos, o "Rei das Peles" raptaria a menor Carmélia
48
Eulina, o que provocou grande escândalo na vida social e
comercial do Recife, seguindo-se rumoroso processo, com sua
condenação e conseqüente fuga para as Alagoas. Vivendo lá,
na Pedra, maritalmente, com essa jovem, que se tornou mãe
de seus 3 filhos, deu-se, ao cabo de uns 6 anos, nova separação
de corpos. Natural é que se pense, pois, ter sido Delmiro um
insatisfeito, um devasso mesmo.
49
fírio de Farias, casara 3 ou 4 vêzes, a última delas com uma
mulher humilde, mãe, já, de alguns filhos seus; a primeira,
com Maria Francisca de Paula, mãe de Delmiro Porfírio. Era
uma môça dos lados da Uruburetama ou Itapipoca, por onde
Joaquim andara a negócio ou passeio, a qual, depois de sedu
zida e abandonada, empregou o ardil que passamos a narrar.
Vestindo-se de homem, ela montou num cavalo e, fazendo
longa travessia, dissimulando o sexo por onde passava, dormin
do nos matos a fim de não ser reconhecida, chegou ao sítio
São Paulo na Serra-Grande e queixou-se à mãe de Joaquim.
A velha, autoritária e má, porém justiceira, ante as razões da
jovem ofendida pelo filho, obrigou-o a reparar o mal com o
matrimônio.
53
seu velho conhecido desde os áureos tempos do Recife, que,
para refutar o conceito de que Delmiro fôsse mulherengo, cos
tuma designá-lo como "conquistador de homens". Na Pedra,
não podendo ficar anos e anos, solitário, impondo à sua viri
lidade um ascetismo penoso e estúpido, teve que mandar fazer
o chalé, estando, assim, salvas as aparências...
Há contudo quem insinue, em desabono de sua conduta
moral, um ou outro caso, inventado pela maledicência e quase
sempre para justificar o seu assassinato. Dentre êles, o caso
de uma tal D. Francelina Luna, que tinha 3 filhas môças, uma
das quais, diziam, fôra ofendida por Delmiro, que, em paga,
dera uma loja de fazendas. Outro, muito citado, é o de Firmino
Rodrigues, cuja filha teria pedido condução no carro que ia
até Garanhuns levar Delmiro, que, em caminho, procurara
violentá-la, segundo queixas da môça ao pai. Êste tinha resi
dência ao lado do chalé, tornando-se suspeito no crime, por
que, na noite fatídica e até poucos momentos antes, estivera
conversando com Delmiro. Era tido como amigo e protegido do
coronel, que lhe dera permissão para abrir uma padaria na
Pedra uma mina! - circunstância que afasta, de certo modo,
a suspeita levantada.
Tudo que se diz contra sua reputação não resiste a um
exame mais detido. A única coisa que a macula, realmente,
foi o seu romance com Carmélia Eulina, e pelo qual pagou
caro. Fica-se a pensar como e por que, numa cidade grande e
de tantas mulheres, onde reinava como um nababo, êsse rei
querido, belo e popular, foi escolher justamente a pupila de
Sigismundo Gonçalves! Fatalidade? Paixão? Capricho de amor?
Despique contra aquêles que o humilharam e incendiaram o
Dérbi? Não se sabe. Nunca se saberá...
Há uma circunstância em que devemos meditar. Dizem
que D. Eulina, já no fim da vida, muitos anos após a morte
de Delmiro, a êle se referia saudosa e com lágrimas nos olhos.
Pois, apesar de tudo, êles se amaram muito e ela jamais o
esqueceu. Todavia, aos familiares, como que desculpando-se
dos seus erros e ingratidões, do passo errado de sua fuga e,
sobretudo, de não o haver amparado no instante culminante
de sua carreira, Eulina repetia sempre: "Eu fui vendida a
54
O Mercado do Dérbi e Seu Incêndio Criminoso
55
cidade moderna, com higiene, com eletricidade e com o con
fôrto dos grandes centros civilizados".
E Delmiro Gouveia adquiriu os terrenos do antigo Derby
Club como negócio de ferro velho, pois seus proprietários qui
seram ver-se livres dêles, na expressão de Mauro Mota. A cam
pina do Derby não passava de uma área abandonada, ainda
marcada pelas patas dos cavalos lameiros sob a cantiga noturna
dos sapos, segundo a imagem daquele poeta, com seus mangues
inundados nas cheias do Capibaribe, espalhados pelas ilhotas
de lama e areia que formavam aquela campina.
Comecemos a explicar o que era o famoso Mercado do
Dérbi, a que se prentendeu dar o nome de Mercado da Estância,
ou Coelho Cintra. Vamos encontrar no "Dicionário Corográ
fico, Histórico e Estatístico de Pernambuco", de Sebastião de
Vasconcelos Galvão, edição de 1908 da Imprensa Nacional,
págs. 292/93, uma descrição completa, que resumiremos a se
guir. Em 1898, sendo prefeito do município o Dr. José Cuper
tino Coelho Cintra, firmou êste com o cidadão Delmiro da
Cruz Gouveia um contrato para a realização de tão útil me
lhoramento, mediante o privilégio, com isenção de impostos
municipais, de o cessionário explorá-lo durante 25 anos, findos
os quais passaria ao município. Foi inaugurada a primeira
seção do mercado em 13 de maio de 1899, sendo todo êle en
tregue ao público em 7 de setembro do mesmo ano. Naquela
época não existia no país melhor nem igual melhoramento
do gênero.
A sua área media 129 m de comprimento, por 28 de lar
gura, com 18 portões e 112 janelas e venezianas. No centro,
erguia-se um pavilhão superior, do qual se observava todo o
movimento. O mercado, dividido em muitas seções, contava
com 264 compartimentos, servidos de balcão de mármore, dis
postos em forma de três ruas, paralelas. As cobe as laterais
dos dois corpos principais do edifício eram suspensas por quatro
linhas e várias colunas de ferro, e a coberta central, elevada
e suspensa sôbre tesouras, era servida por ventiladores de re
novação de ar, dando luz à parte interna. Chafarizes e torneiras
distribuíam água por todo o prédio, com perfeito sistema de
esgôto. Em frente à fachada principal, havia uma área ajar
dinada. Todo o pátio, a leste do estabelecimento, era apro
veitado por um velódromo, com a extensão de quatrocentos
56
metros. Existiam dependências, ao lado, destinadas a uma lu
xuosa hospedaria e a vários jogos, bares, divertimentos.
A iluminação elétrica, então ignorada no Recife, espa
lhava-se profusamente pelo mercado e grande parte da campina.
Uma linha de bonde vinda do centro, com a indicação do
estabelecimento, fazia lá seu ponto de parada. Ali se expunham
e vendiam, até altas horas da noite, mercadorias de todo o gê
nero, nacionais e estrangeiras, muitas desconhecidas do co
mércio comum. Era um atraente ponto, para onde afluía a
população de tôdas as classes, principalmente à noîte, para
fazer compras ou tomar parte nas diversões: Carrosséis, re
-
"inspiraria o
ódio a grosso e a granel de alguns donos de armazéns e êles
ıçam na praça a bandeira negra de guerra e morte". A situação
se extrema com as dificuldades criadas ao tráfego dos gêneros,
tendo os agentes das repartições fiscais recebido ordem para
embargá-lo, alegando o cumprimento de leis.
Escreve a tal respeito o jornalista Tadeu Rocha: "A pre
texto de fiscalização, várias diligências policiais foram feitas
no estabelecimento do Dérbi e até mercadorias da emprêsa
foram mandadas apreender pelo prefeito Esmeraldino Bandei
ra, quando aguardavam embarque na estação ferroviária". A
coisa se azeda com a intransigência e implicância dessa autorida
de, ligada à política da oligarquia de Rosa e Silva, em Pernam
buco. Delmiro sente-se incompreendido, invejado por muitos
e hostilizado pela política vesga dominante no Estado. Certa
vez, desobedecendo a uma proibição, fêz descarregar um trem
de víveres destinados ao mercado, munido de uma ordem de
habeas corpus para legitimar o seu ato. Diz José Bonifácio
de Sousa que, "à frente de verdadeira frota de carroças, Delmiro
percorreu as principais ruas da cidade, aos aplausos entusiás
ticos da população, conduzindo os cereais da estação ferroviá
57
ria para o mercado do Dérbi e sob as iras impotentes dos agen.
tes municipais".
Por tudo isso, e a fim de remover os óbices criados com
êsses incidentes, resolveu vir ao Rio de Janeiro entender-se
com o Conselheiro Rosa e Silva, então vice-presidente da Re
pública (período 1898/1902), e que ocupou interinamente o
lugar do Presidente Campos Sales, em outubro/novembro de
1899. Como êle recusou recebê-lo, Delmiro forçou um encon
tro, o que se deu na rua do Ouvidor em ocasião de grande
movimento. Instado para que o ouvisse, sôbre o impasse criado
com aquela autoridade do Recife, Rosa e Silva ter-se-ia negado
àsperamente e em têrmos ofensivos a ter com êle qualquer
entendimento. E, então, ali mesmo, naquele sábado à tarde,
dia 17 de junho de 1899, Delmiro agrediu-o a bengala defronte
da "Chapelaria Inglêsa" do comerciante Artur Watson, na
qual o Conselheiro penetrou para abrigar-se, perseguido e aos
muxicões.
58
cimento, o coronel Delmiro Gouveia. Esta prisão foi executada
com todo o aparato, por um verdadeiro exército (...) Tran
caram o prêso em um quartel, deixando-o incomunicável. Se
gundo a voz pública, iam matá-lo envenenado.
A notícia da prisão do Coronel Delmiro espalhou-se pelo
Recife, criando indignação entre muita gente. O comércio fe
chou em sinal de protesto.
O que era o Mercado do Dérbi? Um monumento. Uma
obra tal que certo alemão, indo visitá-lo, disse que o Brasil
não estava em condições de possuir uma obra daquele porte.
Qual o empenho do Coronel Delmiro em empreender tão im
portante obra? Abrilhantar a cidade, proporcionar cômodos a
mais de 100 famílias, melhorar a vida do pobre, vendendo
gêneros de primeira necessidade mais barato que o mercado
de São José. Além disso, era um centro de divertimento dos
que queriam distrair-se. Qual o empenho do Governador em
acabar com o Dérbi? Agradar a Rosa e Silva, inimigo de
Delmiro.
59
"uma cidade provinciana e estacionária, sem vida noturna e
distrações, iluminada pela luz mortiça dos combustores de gás
carbônico e candeeiros de querosene", e que, depois do incên
dio do Dérbi, voltou ao marasmo, "a ser uma cidade triste,
de mercados sujos e desinteressantes, e a ignorar a iluminação
elétrica por mais de uma dezena de anos".
60
Vítima da Situação Política
e Econômico-Financeira
61
aparentes fracassos e deslizes. Em “História da República", êle
nos mostra como a economia brasileira no govêrno de Prudente
de Moraes, terminado em 1898, ficou debilitada, mal se ampa
rando no café de São Paulo e na borracha da Amazônia.
62
dores. Pelas notas deixadas no livro "Memórias do Velho Ca
valcanti" (coleção das obras completas de Gilberto Freyre),
podemos certificar-nos disso, ante as cotações da época, a saber:
63
tando em hasta pública a chamada Usina Beltrão, tornou-se
êle, assim, dirigente e proprietário da "maior refinação de
açúcar da América do Sul", segundo registro consignado na
"Enciclopédia e Dicionário Internacional", da Jackson.
Mas o povo nordestino, naquela época de tremenda crise,
carente de capacidade aquisitiva, só podia consumir mesmo
açúcar bruto, tipo mascavo, mais barato e com que estava
acostumado. O refinado, cristalizado em tablette, não era para
sua bôlsa nem para seu paladar... Essa, a primeira dificuldade
com que logo se defrontou o grupo que arrematou a Usina;
outra, porém, iria surgir e tornou-se impossível removê-la.
É que o desentendimento surgido com o Prefeito Esme
raldino Bandeira e que se extremou a ponto de ser crimino
samente ateado fogo ao mercado do Dérbi, no alvorecer de
1900, colocou Delmiro incompatível com as correntes políticas
e financeiras do Estado, vale dizer: com a classe de usineiros
e senhores de engenho que, por bem ou por mal, viviam acor
rentados à política dominante no Estado, chefiada por Rosa
e Silva. Ora, essa gente temia represálias no caso de fornecer
e assim esta,
a matéria-prima à Usina Beltrão para refinar
mais uma vez, estava condenada ao insucesso.
A emprêsa, fundada com “o propósito de encontrar solu
ção definitiva para o caso da refinação do açúcar pernam
bucano", e "com capacidade para beneficiar tôda a produção
açucareira do Estado" - segundo expressões de José Bonifácio
de Sousa continuava apresentando deficit, "não só à vista
do elevado custo das instalações como também porque não
apareceu a produção que se esperava para o seu funcionamento
full power".
O competente engenheiro (Antônio Carneiro da Cunha)
permaneceu como técnico, com ordenado régio. As despesas
de manutenção eram bastante elevadas, para que ela trabalhas
se com pequena quantidade de açúcar bruto que um ou outro
dono de engenho mais ousado quisesse encaminhar-lhe, com
risco de cair no desagrado e nas perseguições do situacionismo
pernambucano que tinha decretado guerra fria e implacável
às organizações sob o comando de Delmiro.
Ficava situada entre Recife e Olinda, ao lado do canal
de Tacaruna que vai até o Dérbi. Há quem diga que houve
proibição de funcionamento da Usina, ou por não poder ser
64
usada a água dêsse canal ou para que êste não recebesse a
água suja, pútrida e fétida, que as usinas açucareiras jogam
fora. Par isso ou por sabotagem, o certo é que ela não pôde
funcionar, até a época em que Delmiro teve que dissolver
sua firma Delmiro Gouveia & Cia., organizando outra, sob a
razão de Silva Cordeiro & Cia., e partindo em seguida para
o Exterior.
66
Infuência São Francisco
Ponto Estratégico
Svandensnakarat
mesmo, para reerguer-se, com o apoio dos financiadores ameri
canos, os irmãos Rossbach.
Por outro lado, o rompimento com a espôsa, seguido do
rapto em circunstâncias ousadas e escandalosas da menor Eu
lina, por quem êle perdera a cabeça, afetara-lhe a reputação
nos arraiais do comércio e da sociedade, vendo-se o quarentão
inopinadamente sózinho, despojado de seus haveres e obrigado
a empreender a fuga para lugar afastado, que lhe oferecesse
possibilidades de recomeçar a vida.
O Estado de Alagoas, já sob o domínio dos Malta, ace
nava-lhe com maiores vantagens. Eram mínimas as taxas de
exportação lá cobradas sôbre couros e peles, não havendo o
propósito deliberado do oficialismo em majorá-las, como vinha
ocorrendo em Pernambuco. É o que diz José Bonifácio de
Sousa, um dos que melhor apreciaram a vida do pioneiro,
nessa fase. O "Rei das Peles", com deslocar o centro de suas
operações para outro Estado, imporia a Pernambuco, de par
com a represália às perseguições que lhe foram movidas pela
oligarquia de Rosa e Silva, "não só a perda da hegemonia nesse
ramo de negócio, como também a queda acentuada na arre
cadação dos impostos de exportação sobre produtos de origem
animal".
68
Levava a idéia de iniciar-se nas lides do campo, de fundar
uma agricultura e criação em moldes racionais. Tinha o san
gue dos sertanejos cearenses e a alma de citadino, aberta às
vastidões oceânicas. Era um eclético, pois, com misto de medi
terrâneo e talássico... Quando em criança chegara à cidade
do Recife para nela crescer, formando o espírito, e, mais tarde,
aos 20 anos, para lá voltara, vindo de Pesqueira, poderia ter
exclamado como um grego maravilhado, olhando o mar, dian
te do grande pôrto: "Talassa! Talassa!!" E, agora, quando
- -
69
extenso voltear pela caatinga, ei-lo, de nôvo, à beira dos penhas
cos ribeirinhos. Dessas alturas, a perspectica da paisagem nos
domina, ao contemplar o rio, guardado como um colar de
turquesa".
Em novembro de 1902, Delmiro chega a Água Branca.
Com êle conversando demoradamente, e conhecendo melhor
suas qualidades empreendedoras, Ulisses Luna, que o toma
como hóspede ilustre, aconselha-o a fixar-se naquela zona, fa
70
criadora dos sertões, na confluência de quatro Estados Ala
goas, Bahia, Sergipe e Pernambuco favorecia o desenvolvi
-
71
Aproveitamento das Águas e da Cachoeira
72
das do São Francisco. O seu pedido não logrou deferimento,
sendo, na fase de estudos no Ministério da Agricultura, dada
a regalia mediante Decreto nº 8753, de 31-5-11, aos engenheiros
Francisco de Paula Ramos e Hans Hacker, os quais nada fi
zeram. Pelo Decreto nº 10.571, de 19-11-13, o sr Francisco
Pinto Brandão também obteve a concessão, cassada pelo de
número 10.775, de 18-2-14, porque o concessionário demons
trou “falta de idoneidade para levar a efeito os serviços”.
Diante da confusão de leis que davam e tiravam o pri
vilégio, quem poderia aventurar-se a trabalhar e a inverter
capitais numa indústria com base em energia captada de Pau
lo Afonso? Quem, utilizando as águas do rio, naquele local,
se sentiria seguro contra a surprêsa de uma ação reivindicató
ria? Delmiro, com maior razão, nunca poderia estar tranqüi
lo, pois sabia a espécie de seus inimigos, rancorosos e vinga
tivos, que viviam a espreitá-lo para o bote, na primeira oportu
nidade.
73
de Delmiro, com êste e os da comitiva reunidos para discussão,
servindo de intérprete um engenheiro brasileiro. A conferência
durou tôda a manhã, tendo as conversações, depois do almôço,
prosseguido no escritório. Os pormenores do entendimento, rea
lizado entre 4 paredes, ficaram em sigilo. Soube-se, porém, que
o seu objetivo era a fundação de poderosa emprêsa a se consti
tuir com capitais americanos e brasileiros, para aproveitamento
do São Francisco e suas margens, visando não sòmente àquilo
que muito mais tarde fêz a CHESF mas, também, a um vasto e ra
cional plano agrícola-industrial conexo.
Bem discutido o grandioso empreendimento, e acertados
os ponteiros, Delmiro assinou com Mr. Moore, como incorpo
rador da Companhia, contrato pelo qual se obrigava a conse
guir os terrenos adjacentes à cachoeira, com todas as cláusulas
acauteladoras dos recíprocos direitos e obrigações. Era condição
sine qua non, para a vinda dos capitais, a cobertura de leis de
garantia e amparo à exploração, mesmo que fôssem conseguidas
dos Estados limítrofes beneficiados com o melhoramento.
Com o regresso da comitiva, o pioneiro se pôs em campo.
Conhecendo os condôminos das terras à margem da Paulo
Afonso, obteve para si, individualmente, outros contratos de
opção de compra e venda das mesmas, sem revelar a ninguém o
jôgo que estava fazendo, armando-se, assim, com os trunfos
necessários à concretização do negócio entabulado.
O primeiro problema a atacar era o da água e da irrigação
porque, segundo acentua Tadeu Rocha, "a aspereza do solo e
do clima refletia-se na pobre vegetação da zona, em que mal
se sustentavam pequenos rebanhos de gado bovino. A agricul
tura de subsistência, dependendo das chuvas (...), era muito
precária. A cultura do algodão, atrasada..." Daí, porque entra
ra em suas cogitações desenvolver as atividades agropastoris,
como passo inicial.
"Quem tem água não morre pagão!” — exclamava o pionei
-
75
peremptoriamente, por Pernambuco, onde se pretendia apli
car maior soma de quilowatts da Paulo Afonso.
Informou-nos Luis Luna -
77
Planos e Providências
Para Fundação da Indústria
78
O fracasso daquele empreendimento não arrefeceu o seu
ânimo de lutador; ao contrário, despertou-lhe a idéia de apro
veitar, êle mesmo, aquelas ricas águas, em iniciativas atacadas
progressivamente. Entre a idéia e a ação decorreram poucos
meses, pois cuidou logo da aquisição e de obter direito de
opção das terras de ambas as margens do rio.
Só quem conhece a cachoeira de Paulo Afonso diz Plínio
-
79
A maquinaria que veio inicialmente se compunha, em
linhas gerais, do seguinte: turbina, gerador e material elétri
co; bomba e tubos condutores para abastecimento d'água;
aparelhagem de fabricação, inclusive coberta metálica para o
edifício da fábrica. Pretendia-se produzir fôrça elétrica de 3.000
volts, conduzida em sistema trifásico, a ser aplicada uma parte
à fábrica e à iluminação, e a outra para a bomba de 150 HP.
Lá na cachoeira seriam assentadas as turbinas eletromotoras
80
Até à beira do rio, o material, inclusive a turbina, foi
transportado em carros de muitas rodas puxados por juntas
de bois, pois havia muitos em serviço. Vale a pena contar um
episódio a nós relatado por Luis Luna, que ainda menino o
presenciou: Chegou o dia de se transportar a grande turbina,
pesadíssima, pela ponte de madeira, que ameaçou vir abaixo.
Delmiro, chamado, veio às pressas, e ficou ao lado do enge
nheiro temeroso do desastre, vendo a ponte balançar ao pêso
da carga enorme; examinou um pouco a situação e, resoluta
mente, deu ordem para prosseguirem com o trole por cima
da ponte que dançava, perigosamente, aos olhos espavoridos
de todos.
81
Organização e Instalação da
Cia. Agro-Fabril Mercantil
AINDA
INDA NA FASE da montagem da hi
drelétrica e da construção do edifício da fábrica, Delmiro Gou
veia achou oportuno fundar sociedade anônima que encampas
se as responsabilidades da indústria nascente. Até então agira
em nome de Iona Cia., que foram os incorporadores da Cia.
Agro-Fabril Mercantil, designação escolhida para a empresa
fundada, cujos estatutos foram elaborados e prontos em maio
de 1912, na capital pernambucana. Reunindo-se ali os acio
nistas na primeira assembléia geral, em 18 daquele mês, e
realizando-se a segunda em 8 de junho, foram aprovados os
estatutos.
82
Vamos dar a seguir, em linhas gerais, a constituição e fins
da emprêsa. Capital 1.200:000$000, compreendendo 2.400
ações de 500 mil réis, cada; duração, 50 anos e sede, a cidade
do Recife. A diretoria ficou assim representada: Diretor-Pre
83
critores da Cia. Agro-Fabril Mercantil, representando mais
de dois terços (2/3) do capital social.
O subscritor Luiz Bahia propôs que os avaliadores fossem
indicados pelo Sr. Presidente, recaindo a escolha na pessoa dos
senhores Julius von Sohsten, Dr. Rodolfo Silveira e Carlos
Alberto Burle, que depois forneceram laudo de avaliação,
onde assim se pronunciaram: - "Depois de detido exame sobre
os decretos n.o 499, de 29-9-1910, referente ao aproveitamento
de terras sêcas e devolutas existentes no município de Agua
Branca, no Estado de Alagoas; decreto n.º 503, de 30-11-1910,
referente à exploração livre de direitos estaduais e munici
pais de uma fábrica de linhas; decreto n.º 520, de 12-8-1911,
referente à utilização de fôrça hidro-elétrica e transmissão de
energia para todo o Estado de Alagoas, sua forma jurídica e
direitos dêles decorrentes, bem como as vantagens que de sua
exploração possam advir a seus concessionários, passamos, con
soante o critério e juízo que temos formado, a dar-lhe englo
badamente o valor de 150 contos de réis".
Sendo êste o valor das concessões e direitos com que os srs.
Iona & Cia. entraram para a sociedade, e havendo êles subs
crito 800 ações no valor de 400 contos, prontificaram-se a cobrir
os 250 contos restantes em dinheiro de contado, a fim de fi
carem integralizadas as suas ações. Os atos constitutivos da
sociedade foram publicados na imprensa do Recife e de Maceió,
transcrevendo o número 174, de 26-6-1912, do "Jornal do Reci
fe", a ata de venda da concessão e bens pertencentes à firma
Iona & Cia., à Cia. Agro-Fabril Mercantil, pela aludida quantia
de 150 contos de réis.
Delmiro Gouveia, domiciliado na Pedra, passou não só
a orientar os negócios de Iona & Cia. mas também a superin
tender os da Cia. Agro-Fabril Mercantil. O capital inicial desta
foi logo elevado para 2.000 contos de réis, existindo 12 acio
nistas, entre os quais diversos empregados antigos, a quem, de
ordem do chefe, foram distribuídas ações ao portador, de acordo
com a eficiência e dedicação de cada um.
Tinham sido já superados todos os entraves, inclusive de
ordem legal. Delmiro tentara obter leis federais e dos Estados
limítrofes para a exploração da cachoeira. Cansou-se de sondar
os políticos, aborreceu-se com a lenga-lenga dos advogados e
acabou por empreender a obra no peito. Ora, já tinha concessão
84
do govêrno de Alagoas, e bastava. "O rio pode ser federal
-
85
As máquinas estavam prontas, pois, para movimentar a
manufatura, compreendendo linhas, fios e fitas de vários ti
pos e espessuras. A linha teria a marca registrada "Estrêla"
e, por símbolo, dois gigantes a puxar um fio, passando pelo
polimento antes de ir para os carretéis, cujo enchimento seria
assistido por môças, atentas aos defeitos de fabricação.
Os carretéis cheios seriam acondicionados em caixotes, êstes
com caixinhas de dúzia, 12 dúzias destas em cada caixa.
As caixas seriam feitas com tábuas de pinho vindas do Pa
raná. Sòmente os carretéis eram importados, vazios, da Finlân
dia, bem como o primeiro algodão que foi mandado vir do
Egito. Depois foi que se utilizou, com vantagem, o nacional
seridó, tendo a emprêsa procurado plantá-lo em suas terras.
Tudo mais, portanto, era brasileiro e fabricado na Pedra, onde
havia até litografia para imprimir o material empregado nos
rótulos e embalagens.
Segundo Tadeu Rocha, quando o algodão foi colocado
nos batedores, ali se começou pela primeira vez, no sertão,
a fabricar linha de coser, bem como a aproveitar, industrial
mente, o homem e matéria-prima regionais. Vale dizer: o algo
dão seridó e o braço e a inteligência do caboclo nordestino,
cuja capacidade e poder de adaptação, admiráveis, iriam ser
comprovados, eficientemente, 40 anos depois, nas obras da
Cia. Hidro-Elétrica do São Francisco.
86
Os Negócios e Atribuições da Firma Iona & Cia.
DE
ELMIRO GOUVEIA desembarcara na
87
A sua firma tinha sede em Maceió, estabelecida à Rua
Conselheiro Saraiva, no bairro portuário de Jaraguá. Era for
mada pelos componentes da extinta Iona & Krause, do Recife,
com exceção do sócio John Krause, também corretor de câm
bio e que, apesar de grande amigo do chefe, que o tomaria,
mais tarde, para padrinho de uma de suas filhas, deixou de
acompanhá-lo com a sociedade, por motivos já explicados
noutro local. Seu ramo principal de negócios era a compra e
exportação de peles de cabra e carneiro e couros de boi, bem
como mamona e, posteriormente, algodão.
A nova firma, sob a razão social de IONA & CIA., tinha
compradores espalhados pelo Nordeste, a princípio nas praças
de Fortaleza, Moçoró e Campina Grande. Com a intensifica
ção dos negócios, outras filiais e entrepostos foram abertos em
vários Estados, com um raio de ação abrangendo desde o norte
do Ceará até a Bahia. As peles passaram a vir não só de Ala
goas, Sergipe e Bahia, mas também de Estados mais afastados
Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.
Ao sócio interessado Guido Ferrário, homem dinâmico,
culto e da confiança de Delmiro, coube a direção dos negó
cios da sede em Maceió. Ali havia dois armazéns, um para
peles e couros e o outro destinado, mais tarde, ao Depósito
Geral das linhas e fios da Fábrica, ficando o escritório central
localizado na parte dos fundos. Raul Brito, cunhado de Lio
nelo Iona, era chefe do escritório, exercendo as funções de
subgerente e substituto eventual de Ferrário. Na capital de
Alagoas se realizavam os grandes negócios, o fechamento de
câmbio e os embarques para o exterior.
As peles e couros eram exportadas para a América do
Norte; de raro em raro, para a Inglaterra, assim vendidas
diretamente, em conta de participação de lucros com os finan
ciadores Lossbach. A embalagem das peles, dobradas, se fazia
em fardos de 500 e os embarques, de 200 fardos, cada vez, eram
feitos, geralmente, pelos navios da Harrison & Lines, que tam
bém traziam mercadorias para a organização, desembarcadas
nos trapiches de Jaraguá.
89
de peles e outras mercadorias. Declara Adolfo Santos que a
própria organização possuía tropa de mais de 200 burros entre
gues a almocreves, os quais levavam, na ida ao sertão, cargas
de querosene, sabão e sacas de café.
Na Pedra, os couros e courinhos recebiam o conveniente
trato: depois de imunizados, eram submetidos a classificação
e enfardados. O serviço de salga e envenenamento dos couros
espichados e peles de cabra e ovelha estava a cargo de Mestre
Pedro, que veio do Recife e era encarregado da manipulação
do serviço, na chamada "casa inglesa", com sabão arsenical
e sal de azêda.
90
butos, pagando em janeiro tudo quanto o Estado iria arreca
dar, aos poucos, no correr do ano.
Como se vê, a sede da firma Iona & Cia., em Maceió, den
tro do ramo de compra e exportação de peles e outras mercado
rias, fazia o serviço puramente financeiro, o bancário de vendas
de cambiais, os faturamentos em moedas estrangeiras e a cen
tralização dos serviços contábeis dos negócios que se proces
savam naquele escritório central, inclusive os relacionados com
as filiais do Ceará e da Paraíba, que sempre fizeram grande mo
vimento. Da parte contábil se incumbía o conhecido guarda
livros Juvêncio Lessa, no que tinha a ajuda de Antenor Xavier
de Almeida, ambos ainda vivos e em condições de completar
essa história da casa IONA & CIA....
91
Retrato Físico e Moral de Sua Personalidade
PRETEND
RETENDEMOS TRAÇAR, resumidamente,
o aspecto físico e os caracteres morais do nosso biografado, com
base em informações de pessoas que o conheceram e, também,
em trabalhos escritos a seu respeito.
Delmiro Gouveia era fisicamente forte, corpo cheio, nota
damente o tronco, mas bem proporcionado, com a estatura de
mais ou menos 1,75 metro, um tanto elevada, para o comum
dos nortistas. Tipo de homem bonito, másculo, moreno claro,
de cabelos e bigodes densos e bem cuidados, os quais se foram
tornando grisalhos em Alagoas, e a pele queimada pelo sol.
Daria "um bloco resplendente de energia o torso viril dêsse
Apolo tropical", na expressão de Plínio Cavalcanti. Físico
arrogante de saxônio tropical diz, ainda com a astúcia
-
-
92
mameluca de nossa raça. Simpático, atraente, dono de boa
palestra, ostentando uma dentadura alva e bem constituída. O
banqueiro Artur Pio dos Santos, seu contemporâneo no Recife,
embora com menos doze anos do que êle, relembrando-o, repe
te amiúde que "Delmiro era um conquistador de homens”, para
-refutar a idéia generalizada de que fosse mulherengo e de ins
tintos materialistas.
93
arrogante, a sua bravura pessoal causava admiração aos humil
des e pavor aos potentados. "Era o orgulho ancestral do môço
guarani, querendo dominar a tribo, consciente da fôrça olím
pica que chegara até êle, no sangue de seus avós", diz Plínio
Cavalcanti, que acrescenta: "Caboclo formidável, cuja vida
heróica e campeadora tem qualquer coisa de um Cid bárbaro”.
O seu contacto com o sertão agreste e semibárbaro tor
nou-o mais áspero e violento, "como um cacto ouriçado de
espinhos". Como desbravador de zona brava e selvagem, ao
mesmo tempo extensa, teve de aceitar, na sua indústria, gente
de todos os quadrantes do Nordeste, com os seus defeitos de
origem e de formação, precisando, pois, agir com pulso forte,
para afugentar os irrecuperáveis e propensos ao crime.
Vida paradoxal e contraditória! Não admitia imoralidade,
nem vícios. Rigoroso nisso até consigo mesmo, exigindo res
peito à moral e à ordem, na localidade que fundou. Apesar de
ser homem de sangue quente, como o de seus ancestrais, jamais
abusou de uma donzela, dentro do arame.
Tratava com energia, mas também com humanidade. Não
alimentava a capangagem ostensiva. Tinha apenas guardas,
para o auxiliarem na supervisão das tarefas da fábrica, pelos
quais mandava recados a seus lugares-tenentes, chamando-os
com o silvo de um apito que trazia sempre no bolso. Era dota
do de cérebro lúcido e progressista, grande capacidade diretiva
e larga visão de negócios. Descobriu e intensificou uma transa
ção desconhecida no Brasil a das peles de ovelhas, e, nota
-
94
quarenta anos, tomava outro rumo, para nêle prosperar espan
tosamente.
95
Quando o seu filho, Noé, chegou aos EUA e foi visitar a
firma Rossbach, em Nova Iorque, encontrou um grande re
trato de Delmiro Gouveia pregado a uma parede, como sinal
de preito de admiração e amizade àquele brasileiro extraor
dinário que nasceu antes do tempo, na opinião do ricaço ame
ricano Jacob Rossbach.
96
Um dos Precursores do Serviço Social no Brasil
97
"Homem privado com espírito público" é a frase com que
Gilberto Fleyre classifica Delmiro, ao apreciar-lhe as primeiras
preocupações sociais demonstradas no Mercado do Dérbi. Ti
nha apenas 35 anos! Estávamos ainda no século passado, quan
do êle abrira aquêle estabelecimento para vender gêneros mais
baratos à população do Recife. Mais tarde, em Alagoas, a sua
preocupação tornou-se mais visível e atuante nesse particular,
desenvolvendo, no meio atrasado, intensa ação nos setores do
ensino, educação, higiene, alimentação, etc.
Na Pedra, Delmiro cuidou de abrir escolas, cuja super
visão pôs a cargo de bons professôres. A assistência mé
dico-sanitária estava aos cuidados de esculápios e odontólogos.
Para bem-estar do povo, foram introduzidos os serviços de água,
esgôto, lavanderia, bombeiro, ministrando-se-lhe ensinamentos
higiênicos e profiláticos. Homens, mulheres e meninos não
podiam andar imundos ou rotos, só se utilizando dos chafari
zes quando limpos e penteados.
Muitos de nossos homens públicos ignoram o lema de
Disraeli, segundo o qual o cuidado com a higiene do povo é
o seu primeiro dever, ao passo que o homem privado qu
êle era jamais o esqueceu. Tornou indispensável o banho diá
rio, o uso da escôva de dentes, da vassoura, do sabão e de antis
séticos. Os guardas multavam aquêles que fôssem apanhados
a praticar atos de incivilidade, como cuspir ou jogar papel
no chão, estar em casa com o chapéu na cabeça ou com o
peito desnudo, revertendo as multas em benefício da caixa
escolar.
Pedra chegou a ter oito escolas, sem falar nas de alfabe
tização de adultos, estas abertas à noite, a fim de não prejudi
car o trabalho. Havia cursos de aperfeiçoamento para os que
revelassem pendor para êste ou aquêle ofício ou arte, assim
como aulas de trabalhos manuais para as môças. O ensino era
prático e racional. Todos aprendiam logo a cantar o hino
nacional e tinham que decorar regras do bom-tom.
O empregado pagava 2$000 por mês para ter direito a
escola, médico, dentista, remédio e até diversões. Chegou a
haver três facultativos a serviço da Emprêsa. Certa vez, um
dos médicos veio dizer a Delmiro que não tinha receitado o
melhor remédio a um doente porque era muito caro, como
que sondando se podia fazê-lo doutra feita. Isso causou pro
98
funda revolta em Delmiro, que começou por indagar: - "Dou
tor, eu já perguntei alguma vez quanto custava o remédio
para operário meu?" - O facultativo molestou-se, ficando abor
recido com o tom áspero e recriminativo como foi tratado pelo
chefe, que, depois de ligeira troca de palavras, mandou dar-lhe
as contas e levá-lo para o Recife.
101
L
103
Como desejava que seus operários se alfabetizassem, pro
curava incentivá-los no sentido de freqüentarem as aulas no.
turnas. Assim, usava uma espécie de refrão aditado ao cumpri
mento com que respondia ao dos mais idosos: "Cabra velho,
já sabe ler?" ou então:
-
Só
depois revelou o fato a Adolfo Santos que o narra, dizendo que
os dois vocábulos muito o envaideceram, pondo-o de sobrea
viso. Assim conclui o informante o caboclo do Sul mostrou
-
104
pois êle possuía instrução acima da média e apreciáveis conhe
cimentos gerais, tendo assinado artigos de jornais, os quais
lia assiduamente.
105
tamente -
e pediu prazo, porque havia detalhes e pontos a
estudar. Longa espera, e o intermediário mostrou-se impaciente
pela resposta. Delmiro disse, ainda, que negócio de tal porte
precisava ser bem examinado. Nova espera. como o homem
insistisse, Delmiro respondeu mais ou menos com estas pala
vras: "Essa mesma proposta da Machine, eu a faço para
comprar a fábrica e negócios dos seus patrões aqui no Brasil.
O Sr. pode dizer-lhes que, em vez de vender, eu compro a fá
brica dêles, nas mesmas condições...'
""
106
"Pater Familias" Educador
E Exigente Mestre de Civilidade
107
cientes, nutridos, limpos, ordeiros, moradores em casas higiêni
cas, às quais logo se adaptaram.
Delmiro conseguia tudo daquela gente pelos processos
mais engenhosos e persuasivos. Costumava sair, de manhã, em
"incertas" pelas casas dos operários, ensinando uns, admoestan
do outros sobre hábitos de higiene doméstica. Nenhum indus
trial brasileiro teve aquêle dom de educar o trabalhador, de
obter de criaturas rústicas tanta coisa e tão depressa. Os seus
processos eram os mesmos, ao alcance de todo mundo. O êxito
que êle obtinha com sua aplicação é que constitui verdadeiro
milagre, uma conquista sem precedentes e sem continuador
que cresce de importância aos olhos de quem hoje examina
sua obra dentro do meio, do espaço e do tempo em que foi
realizada.
108
fim de contratar alguns. "O sr. não avalia dizia-lhe Delmiro,
mais tarde - o carrossel e o rinque de patinação têm feito
prodígios. A meninada da Pedra é capaz de tôdas as travessuras,
mas não esquece a lição porque eu dou semanalmente entrada
grátis ao que tirar boas notas".
As casinhas da vila eram bem cuidadas e asseadas. Ele
recomendava aos seus ocupantes que zelassem pela latrina, pois
era o prolongamento de seus intestinos. Aboliu o mau hábito
de cuspir, ensinando que a saliva facilita a digestão e mandou
colocar nas paredes impressos ou placas, proibindo êsse costume
tão comum entre gente da roça. Implicava com as velhas que
pitavam em cachimbos de barro, quebrando-os. E chegou até
a idealizar um tipo de alpercatas destinadas aos homens que
mourejavam no campo, somente para que não continuassem
a andar de pés descalços, sob a alegação de que os tinham
achatados.
110
Bom-Gôsto e Confôrto adaptado
ao meio, Limpeza e Simplicidade
111
fidalguia dos anfitriões, se a excelência das iguarias e bebidas.
Vivia-se o período do último qüinqüênio do século xix, antes
e depois da excursão que Delmiro fizera pela Europa, acom
panhado de sua meiga e distinta espôsa.
Atingira, então, o fastígio de sua carreira no comércio e
sociedade recifenses. Tinha prazer de alardear prestígio no seio
da classe e destaque nas altas rodas, com a ostentação de con
fôrto, riqueza e mesmo luxo. Nos grandes saraus, é lembrado
vestido de fraque, colarinho alto e gravata branca. Na quadra
de verão, andava todo de branco, às vêzes com o paletó de
alpaca prêto. Sempre o homem elegante e fino, o "causeur"
brilhante em dia com as coisas, a estadear na imagem de
-
expostas num
-
115
Talento, Perspicácia, Patriotismo,
Cultura e Conhecimento de Línguas
117
Logo descobriu a conveniência de adotá-la no exercício
de suas funções e realização de seus negócios, assim como acon
tecera com Mauá, que teria enxergado, desde cedo, a vantagem
que lhe adviria em falar tal idioma, ao ser tomado como cai
xeiro do inglês Ricardo Carruthers, de quem se tornaria ami
go e sócio.
A expressão de que Mauá "conquistara o mundo pela con
fiança e pela amizade de seus comandados" (pág. 62, ib.), com
maior propriedade se aplica a Delmiro. Basta lembrar a razão
por que empreendeu a sua primeira viagem aos Estados Uni
dos. Sabia cativar, como ninguém, afirmando-se com suas atitu
des no conceito e admiração de quantos o rodeavam.
Em ocasiões precisas, dava exemplo de desprendimento,
decisão e coragem invulgares. Assim foi que, para levar avante
as obras difíceis da Paulo Afonso, se fêz amarrar para descer
o penhasco e, doutra feita, mandou seguir o trole pesadíssimo
com perigo de afundar nas águas encapeladas, ante a perplexi
dade do engenheiro Borela e o estarrecimento dos operários,
atos com que pasmava a todos.
Diz aquêle biógrafo (pág. 28, op. cit.) que "Mauá teve
que conquistar o seu lugar ao sol", sendo um self made man
que, enriquecendo no comércio, depois se voltou ao interêsse
da Pátria". Curioso é que outros têm usado a mesma expressão
inglêsa com relação a Delmiro, notadamente o sociólogo Gil
berto Freyre, e isso por diversas vêzes, como consta do tomo II
de "Ordem e Progresso" e de nota aposta às "Memórias de
um Cavalcanti".
E cremos não ser menor o interêsse nacional no ousado
cearense. Tendo perdido o pai, em defesa da Pátria, por ela
Delmiro sacrificou tudo: comodidades, fortuna e, pode-se dizer,
a própria vida. Na verdade, com prejuízo das comodidades pes
soais, empenhou sua grande e nova fortuna, àrduamente adqui
rida nos confins do sertão inóspito ao invés de procurar
-
que tem água não morre pagão!... e isso é apenas uma gôta
d'água que tirei do oceano!" como se quisesse dizer que
-
119
de sua vida cavalheiresca, o seu desejo de fazer do Recife uma
cidade confortável e o maior empório comercial do continente".
Sem ter podido freqüentar os bancos escolares, Delmiro
Gouveia formou seu intelecto no grande livro da vida. Auto.
didata, servido por extraordinário talento, perspicácia, palavra
fácil e invulgar capacidade de assimiliação, desenvolveu essas
qualidades no contato com outros povos. E os seus conheci
mentos foram empregados no bem comum e na grandeza da
Pátria.
120
Não podemos encerrar este capítulo sem voltar ao paralelo
de Delmiro com Mauá. E isso porque, se as primeiras estradas
de rodagem nordestinas foram mandadas fazer pelo pioneiro
da Paulo Afonso, as de ferro, inclusive o ramal de Piranhas, o
foram pelo Visconde, aquêle que “primeiro assentou trilhos no
solo do Brasil" (pág. 162, op. cit.). “A segunda inauguração
de trilhos foi a Estrada de Ferro de Recife ao São Francisco... e
121
Princípios de Ordem, Disciplina
e Moral Impostos a Todos
123
No entanto, não havia cadeia nem soldados na vila da
Pedra, com seus 6.000 habitantes. Dormia-se de portas abertas,
sem ouvir falar num crime, num roubo, num desacato. Para
124
goado. Tinha procedimento correto com respeito às famílias re
sidentes na Pedra, desde as mais humildes às mais importantes.
Sendo da teoria dc que a justiça para ser boa começa de casa,
era o primeiro a dar o exemplo de moralidade.
Dentro do "arame" não admitia coisas atentatórias da mo
125
Apesar de Enérgico e Violento,
era Sensível e Generoso
126
sador. Verdor em seu espírito e em certas plantas, por entre
escombros, cascalhos, pedras, misérias". O leão indomável e
orgulhoso que ele fôra, esmagara um dia, com uma resposta
de cordeiro, certo diretor de jornal, quando pensou ofendê-lo,
dizendo que o "poderoso coronel" havia sido condutor de
trem. Delmiro replicou-lhe, de pronto, "nunca ter exercido em
sua vida lugar tão importante".
Violento e agressivo para quem o desconsiderasse e para
quem lhe contraditasse as idéias. Neste particular, o caso típico
foi o do incidente com Rosa e Silva. Delmiro chegou a agredi
lo em plena rua do Ouvidor, porque êsse senador e vice-presi
dente da República negou-se a recebê-lo e a ouvi-lo; em re
presália a essa desfeita e, também, às perseguições que lhe
eram movidas em Pernambuco, Delmiro chegou àquele extre
mo, que tantos infortúnios lhe iria acarretar. Temperamen
tal, incontrolável, com explosões que tiveram, às vêzes, resul
tado desastroso em seu destino. Como exemplo, vamos repetir
o triste episódio que provocou a separação de sua legítima
espôsa.
Ia haver uma festa em que tomaria parte saliente uma
prima-dona, a quem Delmiro andava arrastando a asa. Para
o êxito da festa, empenhou-se vivamente, querendo abrilhan
tá-la com a presença dos amigos e da própria espôsa que fôra
avisada. A hora do jantar, exatamente no dia do sarau, D.
Iaiá ficou amuada, surpreendendo o marido com a notícia
de que não ia comparecer. Delmiro explodiu, então, com o
maior dos escândalos, ante a estupefação de várias pessoas pre
sentes. Quebrou pratos, louças, derrubou móveis e rasgou cor
tinas. Tudo isso por causa da negativa da espôsa a um desejo
seu, a uma idéia sua, contrariada.
Esse caso teve conseqüência imprevisível, porquanto Del
miro chegara ao auge de declarar que ia separar-se dela e afas
tar-se do lar, sendo-lhe talvez penoso ter que cumprir a palavra,
que era férrea e irreversível. No entanto, esse homem aparen
temente violento era um sensitivo. Adorava os pássaros, as flô
res, as crianças. Quando passava em Santana do Ipanema, fazia
parada na casa do Cel. Manoel Rodrigues da Rocha, para ouvir
num gramofone músicas e óperas, como a do "Rigoleto". Até
nas atitudes, em que queria agir com rigor, via-se o sentido
humano e generoso. Senão, vejamos:
127
Delmiro precisava de um químico especialista no tingi
mento em côr firme e indelével de cordões e fitas de embrulho,
tendo, para isso, contratado um técnico vindo de São Paulo,
que afirmara possuir o segrêdo do processo, mas exigiu rendo
so contrato de trabalho, mediante o ordenado mensal de 5
contos de réis e a multa de 50, no caso de rescisão do contrato.
Mas, foi um fracasso! Apesar de lhe serem facultados todos
os recursos, o químico não acertou com o tingimento firme
dos cordões. M gulhados numa solução com 20% de cloro,
perderam a coloração, do mesmo modo que acontecia com o
tingimento em azul, vermelho e marrom, como já era fabrica
do sem resultado, sobretudo a linha na ingrata côr preta, pelos
técnicos e operários que ali o vinham tentando.
Delmiro não admitia tapeações ou engodos, que alguém
faltasse à palavra empenhada, enganando-o, como o referido
profissional, que lhe deu inclusive prejuízo de monta,
pois grande quantidade de material e fios fôra especialmente
preparada para aquêle fim; por isso, disse para o pseudo-téc
nico: "Você é um borragaita como muitos que tenho por
aqui. Vai ficar amarrado, como São Sebastião".
E mandou amarrá-lo, para exemplo, na braúna existente
no pátio da Fábrica para punir os malfeitores e criminosos.
A mulher do químico, usando de astúcia, chorosa, foi implorar
a Mestre Pedro o serviçal da inteira confiança do coronel
-
ela apelou para o bom São Pedro!". Mandou então que Lio
nelo Iona desse ao forasteiro 10 contos de réis e o mandasse
129
dinheiro que ainda hoje lembro que tremia ao contar as cédu
las, perdendo a conta; eu e mamãe, lá em casa, contamos e
recontamos todo aquêle pacote de dinheiro. Cinco contos de
réis, uma bolada que eu nunca esperei receber".
Gustavo Barroso relata, à pág. 53 e 54, em “Liceu do
Ceará", um fato que precisa ser conhecido e explicado. Ei-lo,
nas palavras do historiador, dono de prodigiosa memória: -
130
Seus Parentes, Amigos, Sócios e Colaboradores
133
Guido Ferrário era sócio-gerente de Iona & Cia., em Ma.
ceió (AL), homem dinâmico, forte, inteligente, sabendo con
versar em 6 idiomas e possuindo grande prática bancário-comer.
cial, pois fôra empregado do River Plate Bank, tendo servido
até na Grécia. Por isso, entendia o grego e o alemão, sabia as
línguas latinas e escrevia o português corretamente. Passou a
ser, nos últimos tempos, o homem forte e da inteira confiança
de Delmiro, de quem tinha carta branca para resolver todos
os negócios. Essa confiança começou ao tempo em que se mos
trou seu intransigente defensor e advogado esclarecido na
falência de Silva Cordeiro & Cia., no Recife.
A história da falência e da atuação de Ferrário acha-se
contada, com pormenores, no capítulo em que situamos o
pioneiro como vítima da conjuntura econômico-financeira.
Ésse italiano radicou-se em nosso país, onde morreu, em 1922,
de modo estranho, com suspeita de envenenamento, tendo
casado com mulher brasileira e deixado prole. Seu nome de
origem Ferrari foi abrasileirado.
-
135
tia em vão para que muitos permanecessem naquele lugarejo
humilde e desconfortável. Isso aconteceu, por exemplo, com
a professôra Belmira de Almeida, môça recifense que demorou
pouco tempo, na Pedra, por não poder suportar o horror da
quelas brenhas.
Depois de inaugurada a fábrica, e edificada a vila operá
ria, espalhando-se a notícia das boas condições que lá eram
oferecidas, não mais foi defícil conseguir braços e especialistas
para a obra. E ainda muito menos difícil isso se tornou com o
advento da sêca de 15, que assolou o Nordeste, destruindo
plantações e rebanhos, empobrecendo ou deixando muitos, até
os mais remediados, na miséria e sem meios de vida.
Quando Delmiro chegava a Maceió, Fortaleza ou outra
cidade por onde viajava, era assediado por uma legião de pes
soas a pedir colocação. Foi assim que Antenor Xavier, segundo
nos disse, ingressou na casa Iona, tornando-se guarda-livros
auxiliar, após curto estágio na Pedra. Soubemos do caso de
Sílvio Coelho, de Sobral, que, através de indicação do Padre
Monte, foi chamado à Pedra e lá ficou trabalhando até depois
da morte de Delmiro. Um cidadão de Santa Quitéria, da fa
mília Simplício de Farias - descendente direto e legítimo do
bravo Capitão Belo encontrando-se em Fortaleza com José
Cândido de Sousa Carvalho, relatou-lhe as dificuldades de
vida que estava atravessando. Sendo levado à casa Iona, naque
la praça, a qual transmitiu o que se passava a Delmiro, êste
mandou buscar Simplício com tôda a família.
Abrimos um parêntesis para esclarecer que era primo de
Delmiro o aludido José Cândido, pai de Milton, Nilo e Lauro
de Sousa Carvalho, fundadores e donos das lojas "A Capital",
"A Exposição", "Ducal", etc. e grandes beneméritos de sua
terra natal, Ipu. Também eram seus primos, em 1º e 20 graus,
o Coronel José Soares de Sousa Fogo, herói do Paraguai, os
ilustres sacerdotes Cônego Assis Memória e Mons. João Fur
tado; Amadeu Furtado, médico humanitário, muito conhecido
no Ceará; o grande filósofo Farias Brito, o antigo deputado
provincial Dr. Teodureto Carlos de Farias Souto, presidente
dos Estados de Santa Catarina e Amazonas, deputado e senador
da República e que pertencia à "ilustre família Farias, de
Ipu", na fase do Barão de Studart, assim como Francisco Fa
rias, atual diretor do Banco Nacional de Minas Gerais.
136
Quem faz citações incorre no perigo das omissões... Estas
ocorrem aqui, indubitàvelmente, pelo que nos penitenciamos,
dentre as quais são perfeitamente explicáveis algumas feitas
conscientemente, como por exemplo a da figura meiga e doce
de D. Iaiá, do jornalista Plínio Cavalcanti, do Des. Merovcu
Mendonça e de tantos outros, aos quais teríamos de fazer alu
sões demoradas mas desnecessárias, de vez que êsses persona
gens aparecem em muitas passagens desta obra.
O que prentendíamos era, com ligeiras referências, neste
capítulo, pintar um quadro integrado por pessoas da convi
vência do pioneiro, que tiveram com êle significativo contato.
influência direta em seu destino, ou que o honraram com sua
amizade ou aprêço. Muitas delas vivem ainda hoje, mas que
a nós, infelizmente, não foi dado conhecer nem ouvir, para
obter maiores subsídios, além dos arrolados na presente bio
grafia, escrita com base em opiniões e referências ouvidas em
conversas ou lidas através de jornais, revistas e opúsculos.
137
O Segrêdo de Seus Sucessos
No Comércio e na Sociedade
o pioneiro.
NÃO
ÃO É DEMASIADO dizer que a vida
de Delmiro Gouveia, desde o comêço até a morte, está sob o
signo da lenda e do mistério, formando, em tôrno, uma espês
sa cortina que encobre os contornos reais da verdade. A prova
mais palpável disso temos no assunto à epígrafe, para o exame
do qual tentaremos explicar os motivos de seus retumbantes
êxitos e conquistas, como cidadão, comerciante e industrial.
Muitas pessoas o tiveram por sabido e oportunista, que
teria agido por processos inconfessáveis e escusos na conse
cução de seus objetivos. Puro engano! Até onde pode ser limpo,
138
correto e criterioso, quer como homem de sociedade, quer
como comerciante ou industrial, Delmiro Gouveia o foi em
tôda a extensão dessas palavras.
Davam sua beleza e elegância como fator preponderante
de sucesso, principalmente com as mulheres, no que era aju
dado por sua inteligência, sagacidade e atração pessoal. O
banqueiro e capitalista Artur Pio dos Santos, que foi seu con
temporâneo no Recife, apesar de 12 anos mais nôvo que êle, di
zia-nos, há pouco tempo, que Delmiro foi um conquistador
de homens, refutando assim o conceito errôneo em que muitos
o têm, como mulherengo e dado a conquistas amorosas.
Com aquêle sorriso bonito na cara chata e simpática de
cearense, conseguia tudo, impondo sua vontade, realizando
suas pretensões. Tinha dentes de pérola, gostava do branco,
sempre muito elegante, com sapatos de bico quadrado, chapéu
de palhinha e paletó de alpaca prêto. E assim que o recorda
aquêle cidadão, ao concluir: "Costumo dizer que Delmiro
não era o que falam por aí, isto é, um devasso e conquistador
de mulheres. Nada disso! êle era um conquistador de homens!'
Ensejou-nos o venerável e lúcido ancião, com seus 88 anos,
explicar um ponto importante e pouco conhecido da vida do
pioneiro, mostrando a razão de sua amizade com Tota Camurim
Antônio Mendes Fernandes Ribeiro chefe da conceituada
-
firma Mendes Lima & Cia., do Recife. Sabe-se que essa orga
nização deu apoio financeiro a Delmiro, principalmente para
fundação da fábrica de linha. Eis a razão: Viajando da
Europa com Delmiro Gouveia, Tota Camurim se enamorou de
u'a môça uruguaia, da família Cardozo Guani, tendo sido
aquêle quem fêz o pedido da jovem e serviu, depois, de padri
nho do casamento. Daí nasceu o reconhecimento e afeição de
Tota para com Delmiro.
Todos referem que os negócios do Rei das Peles experi
mentaram grande desenvolvimento e expansão, graças ao apoio
financeiro dos irmãos Rossbach que nunca lhe foi negado, nen.
mesmo nos momentos mais difícieis e incertos. Mas poucos
sabem como nasceu a confiança mútua e amizade pessoal, bem
mais forte que os laços puramente comerciais.
Jacob Rossbach, ou Jacob Astor Rossbach, fizera uma
viagem ao Brasil. Homem rico, sadio, alto, no apogeu da ida
de, ao chegar ao Recife foi acometido da febre amarela que
139
então grassava e fazia muitas vítimas. Delmiro Gouveia tirou-o
do hotel e levou-o para a sua casa, sem temer o contágio da
terrível moléstia. Hospedando-o no próprio lar, cercou-o da
melhor assistência médico-hospitalar que havia no Recife da
quela época. Delmiro e sua esposa, D. Iaiá, se desdobraram em
cuidados e atenções, revezando-se, sem afastar-se do leito do
enfêrmo. Assim tratado com carinho e confôrto, ao lado dos
requisitos higiênicos, Jacob recobrou a saúde, só deixando
a casa de seu benfeitor depois de estar inteiramente resta
belecido.
140
peles de cabra de uma só, história que tanto se apregoa, mas
pouca gente sabe contar direitinho. Expliquemos: —
A pele
normal, de tamanho comum, é tirada do animal com um só
corte ao longo das pernas, pela barriga, de ponta a ponta; a
que se tirava do "pai-de-chiqueiro", ou outro animal avan
tajado, podia ser transformada em duas, esfolando-se o couro
pelas pernas e pelo tronco do animal, de um lado e outro: uma
ficava do lado do espinhaço, e outra, da barriga.
Essas peles eram compradas e também vendidas por menos.
Os americanos sabiam disso. Depois não quiseram mais rece
bê-las, refugando-as. Ficou então estabelecido que as grandes
tinham uma bonificação de preço, sendo classificadas pela or
dem, como: bodão, bode e cabrito, respectivamente; por
outro lado, as defeituosas, assim como as de pêso inferior a 400
gramas, com furo de berne ou polia, eram classificadas como
segunda, sofrendo um rebate de 20%. Não havia, pois, nada
encoberto, nem esperteza ou desonestidade, em tal negócio,
em que muitos viam o segredo da prosperidade comercial do
pioneiro.
Também se diz que um dos fatôres que o tornaram o maior
e mais poderoso comerciante de peles foi, sem dúvida, a táti
ca de comprar impostos nas barreiras estaduais e municipais,
isentando dêles os produtores e vendedores. Houve o caso por
nós comentado noutro local e ocorrido com José Gomes de Sá,
Coletor em Jatobá de Tacaratu, além do que passamos a
contar.
141
um telegrama da Rossbach, ou de outro curtume, com novas
cotações para peles, tinha que se dar a posição e fazer o reco
lhimento imediato dos estoques comprados. De uma feita, por
ocasião de grande baixa, Delmiro telegrafou ao curtume, di
zendo que tinha 150.000 peles a recolher, e ganhou 1.000 contos
nessa ocasião.
Sómente no primeiro ano de funcionamento da fábrica,
lucrou o pioneiro cêrca de 6.000 contos de réis, sendo logo
resgatados os empréstimos que antes contraíra. E, não obtante
os grandes gastos havidos na instalação do parque industrial,
na vila operária, nas estradas etc., ganhou nos últimos 3/4
anos de vida, em seus negócios, fortuna avaliada em 20.000
contos de réis, aproximadamente.
142
A Pedra se Transforma em
"URBS" -
a "Canaã Sertaneja"
143
(
da Fata Morgana dos campônios húngaros, e, só depois de
despertado da sonolência que me dera a paisagem monótona
do agreste nordestino, ajuizei ter chegado ao vergal que Del
miro Gouveia criara dentro da brenha san franciscana e que
sonhara transformar em florida Canaã de paz e trabalho. Co
movido, admirei com entusiasmo aquela estranha flor de
civilização e nunca mais deixei de bendizer o homem singular
que, entre cactos e bromélias, conseguira fazer vingar tão viren
te flor..."
144
Ao meio-dia, a população regurgitava na feira, fazendo
compras, com grande burburinho, por entre sacos e surrões
abertos, de gêneros, cereais e comestíveis diversos. Na praça, as
fileiras das barracas, com bugingangas, sabonetes, perfumes
baratos como a "Oriza". Nos balcões e mostruários, miçangas,
espelhos, pentes, rosários, medalhas, grampos, lenços e echarpes.
No extremo do barracamento, as mesas de café e os tabuleiros
de bôlos e doces. Armados num canto, os cavalinhos a rodar
com o pescoço enfreado, as ventas acesas e os olhos mortos...
De tarde, as senhoras e môças das principais famílias sen
tavam-se nas calçadas, em cadeiras austríacas, exibindo seus
vestidos domingueiros. E, mal se acendiam as luzes, começavam
as diversões: cinema, carrossel, retreta, dança, tudo puxado
pela música afinada da “Filarmônica”, que tinha até saxofone,
flautim e clarinete. No último domingo de cada mês, o baile
no Cassino constituía o ponto alto, porque era quando se
fazia entrega dos dois prêmios de 20 mil réis para os vestidos
femininos mais elegantes e simples, isto é, um para a môça
mais garrida e outro para a mais modesta.
Nas sete ruas da Pedra, por onde, às vêzes, passava o
automóvel do Coronel, fonfonando e causando admiração ao
povo, se entrecruzavam negociantes, comboieiros e viajantes de
várias procedências. Os primeiros traziam, com seus cavalos
de sela e em seus burros cargueiros, não só couros, peles e
algodão, mas também outros gêneros e mercadorias, como fei
jão, arroz, milho, farinha, rapadura, etc.
145
A vila operária, caiada de branco, irrepreensivelmente
asseada, tinha 258 vivendas, edificadas em série; tôdas iguais, li
gadas umas às outras por parede e meia, de porta e janela, com
3 cômodos e a puxada com a cozinha. Na frente, por tôda a ex
tensão, largo alpendre, suspenso por colunatas à romana, cer
tamente inspiradas nas construções da Itália, onde Delmiro
estivera antes, em longa vilegiatura.
A luz e a água eram istribuídas gratuita e abundante
mente. O Coronel não queria ver casa no escuro e com sujeira.
Cuspo, detritos ou cascas de banana pelo chão, multa de-
"O Coro
500 a 2.000 réis. Os fiscais repetiam, justificando:
nel não quer! A limpeza Deus amou, minha gente!" -
O pre
cioso líquido, canalizado em tubos de 150 milímetros, viera
proporcionar a limpeza, a felicidade e, sobretudo, o milagre
de fazer desabrochar o deserto em eterna primavera. Dava para
tudo, para irrigar plantas e flôres, bem como para manter um
lago artificial, onde se criavam peixes, patos e marrecos.
A irrigação dos terrenos era feita com a água servida; de
pois de usada nos seus fins, ia ter a grande reservatório, dentro
do pomar, daí deslizando por canais a fim de fertilizar a terra
em derredor. Arvores, frutas e flôres agora se viam brotar,
viçosas, daquele solo outrora sáfaro. A bendita água encanada
do rio era como o sangue para os pulmões da vida daquela co
muna, cujo coração a bater em sístoles e diástoles, dia e noite,
era a máquina da bomba e turbina encravadas lá no flanco
do penhasco...
E dizer-se que aquela Canaã Sertaneja, a 400 km. do
litoral, não passava de uma fazenda, com meia dúzia de habi
tações, quando lá chegara o pioneiro, pouco mais de 10 anos
antes! Dera execução ao seu grandioso plano urbanístico e
industrial, com o machado, a foice e a picareta, animado do
propósito de construir prédios, abrir estradas e realizar os ser
viços úteis de melhoramento, até fazer surgir aquela “urbs”,
ao lado da indústria.
A localidade compreendia o parque industrial, separado
por cêrcas de arame farpado, e a "cidade-livre", o povoado
velho, com o prédio da estação ferroviária, próximo da qual
ficava o chalé, a última moradia do pioneiro, que nêle per
noitava com seus serviçais de confiança. Quando Delmiro de
sapareceu, em 1917, a Pedra contava com 6 mil habitantes.
146
Cidade pequena do interior, mas dotada de conforto, limpeza,
ordem, assistência escolar e médico-sanitária; com eletricidade,
água, esgoto, lavanderia, recreação, desportos etc. Não havia
jogo do bicho ou de azar, bebidas, facas de ponta, malfeitores,
ociosos, nem safadeza. Por isso, não carecia de cadeia, nem de
polícia: Os soldados amarelos tão odiados por Fabiano e outros
matutos...
147
A Manchester Sertaneja do Norte
149
lheres, das cantigas e risadas destas. Barulho de engrenagens,
vozes humanas, pisadas de tamancos e alpercatas e, de longe em
longe, o silvo estridente e rápido da sirena, dando aviso. As má
quinas precisavam parar para isso e aquilo, num defeito a cor
rigir, na hora de descansar, de o pessoal comer ou revezar-se. E
logo o trabalho recomeçava, voltando o ruído dos maquinismos,
o canto dos fusos, o vaivém dos braços metálicos, o girar das
bobinas, com o algodão entrando aqui e desdobrando-se ali, os
fios correndo nos fusos, a linha passando acolá, até chegar ao
encarretelamento...
152
Nas Estradas os Automóveis Espantavam
Cangaceiros, Jagunços e Beatos...
153
mãos de um povo tido como incapaz; êles conheciam muito
bem os problemas sócio-econômicos daquela pobre gente, o seu
baixo nível de vida, as suas misérias de corpo e alma, a sua
mentalidade destorcida por fatôres mesológicos, o abandono a
que fôra relegada pelos governos; e, portanto, consideraram
milagre o que realizou Delmiro, nos sertões, "sem a cruz, o
hábito do missionário e os dinheiros públicos".
O homem daquela zona sofria perseguições, injustiças so
ciais e da lei mal aplicada, vivendo sem escolas, sem garantias,
sem proteção. Oprimido, explorado pelo mais forte que lhe
roubava a terra ou a filha môça, êle tinha que matar, para se
defender, limpar a honra ou desabafar a consciência, e logo
corria aos pés de Deus. Nascia e crescia sob o cruel fatalismo
do punhal e da cruz; do rifle e do rosário...
O poder espiritual, emanado de Deus, para proporcionar o
bem, para evitar ou redimir pecados, para impor castigos,
como a sêca, era simbolizado, na terra, por vultos como Antô
nio Conselheiro e Padre Cícero; o poder temporal era empunha
do pelos juízes, delegados e soldados de polícia, sofrendo, às vê
zes, a influência perniciosa dos políticos, ricos ou potentados, os
quais recorriam, na satisfação de seus baixos instintos, aos can
gaceiros, capangas e sicários. Esses podêres não raro se con
fundiam, juntando-se para o combate às fôrças de oposição,
sendo difícil distinguir o bem do mal.
A chamada literatura modernista, em que pontificaram os
romancistas do Norte, José Américo, Lins do Rêgo, Raquel
de Queiroz, Graciliano e outros, focalizou essa chaga social
em côres vivas e tipos por vêzes caricatos mas bastante expres
sivos. Ainda recentemente, o velho escritor Ulisses Lins dizia
em artigo intitulado “Nascimento, Vida e Morte do Cangaço"
que os sertanejos "foram arrastados ao crime por injustiças
tremendas, perseguições inomináveis, numa época em que a
Justiça era a vontade e o capricho dos mandões de aldeia".
Antônio Conselheiro, no fim do século passado, armou na
Bahia a revolução contra as forças da República nascente; An
tônio Silvino com seu grupo atacava, no limiar dêste século,
a usina do Cel. Santos Dias e, em 1906, assaltava a fazenda do
Cel. Paulino Rafael, perto de Afogados de Ingàzeira; Padre
Cícero, por volta de 1913/14, fêz-se chefe da rebelião armada
que depôs o govêrno de Franco Rabelo, no Ceará. E os sertões do
154
Nordeste passaram a abrigar beatos, cangaceiros e jagunços,
egressos dessas revoluções e integrantes, alguns, de falanges
do roubo, homens válidos, afastados de suas ocupações normais
e transformados em ociosos, rebeldes e celerados.
Entre Canudos do Conselheiro e Juazeiro do Pe. Cícero
surgiu uma fôrça nova, diferente... Estava escrito que entre
os dois cearenses o beato e o sacerdote apareceria por
-
157
de cangaceiros com a polícia, ou de uns com os
outros. Passamos pela sepultura do tenente Frede
rico, abatido no meio dos seus soldados, por uma
bala que lhe varara o crânio. Passamos pela casa
do célebre Antônio Boiadeiro, verdadeira fortaleza
com espessas paredes crivadas de seteiras, que estava
abandonada e mostrava os violentos vestígios de um
assalto sustentado na véspera. Atravessamos Sam
bambaia e fomos pernoitar na casa do fazendeiro
Coronel Joaquim Xavier, também armada em forta
leza com espessas paredes crivadas de seteiras. An
tes duas léguas de chegarmos, nós encontramos cen
tenas daqueles cangaceiros célebres em todo o nor
deste, acompanhando, e a rezar em altas vozes, dois
missionários que se dirigiam para a igreja de
Sambambaia".
159
Relações com Políticos e Homens de Estado
DELMI
ELMIRO GOUVEIA não tinha queda
para a política, a difícil arte de Maquiavel, que exige, freqüen
temente, espinha dorsal maleável, falsidade, bajulação. Dotado
de vontade própria e forte personalidade, o líder do comércio
e da indústria, espírito prático e realizador, nunca poderia
ficar atrelado ao carro velho e sujo da oligarquia pernambu
cana. Faltava-lhe vocação para a subserviência, para as injun
ções partidárias, para os cambalachos feitos em surdina, impos
tos por um soba às assembléias apáticas em que predomina
vam servis e decadentes senhores-de-engenho.
160
Assim como Mauá, Delmiro não nascera, positivamente,
para a vida de político, e muito menos "para lidar com os
podêres públicos" (V. pág. 422, da biografia de Mauá, por
Alberto de Faria). E poderia ter declarado, como o Barão,
àqueles que o convidavam a procurar as camarilhas oficiais,
a fim de não continuar sob a ameaça de prisão e de morte, que
tal coisa era impossível, porque "fizemos voto de dedicar toda
a nossa vida aos melhoramentos materiais, sejam quais forem
os desgostos que nos advenham”.
Mas estava escrito que a política haveria de envolvê-lo.
O enorme prestígio que desfrutava, não só entre os homens
de negócio, mas também nas altas rodas e no meio das massas,
atraiu sôbre si o ódio e despeito dos políticos. Ele mesmo o
declarou, explicando em artigo publicado no "Jornal do Co
mércio", do Rio: "Um choque entre meus interêsses comer
ciais, na qualidade de proprietário do Mercado da Estância,
no Recife, e os interêsses políticos do Prefeito Municipal da
quela cidade, chamou sôbre mim as prevenções da política
partidária do Dr. Rosa e Silva, a quem aquêle prefeito é fi
liado".
Cantemos, pernambucanos,
Cantemos, pernambucanos,
Um hino santo em louvor.
General Dantas Barreto,
General Dantas Barreto,
É o nosso salvador!
164
COMPON
ESTRIBILHO
Salvai! Salvai!
Querido General
O nosso Estado
Das mãos do traidor!
Vem libertar
O povo escravizado
Vem espalhar
A paz, a luz, o amor!
166
Seu Prestígio e Prosperidade
Atraíam Ódio e Inveja Mortais
167
progressista, com pinta de líder e ídolo popular, de tal modo
que o seu nome era reverenciado e querido como o de Passos,
no Rio. Houve época em que a música do "Dobrado Delmiro
Gouveia" era assobiada e cantada, nas ruas da Muricéia, como
uma Marselhesa...
Segundo muito bem escreveu um contemporâneo, o enor
me prestígio do grande comerciante se tornava, dia a dia, mais
real e vultoso e a sua permanência, ali, representava cons
tante ameaça ao situacionismo dominante, podendo "fazer ir
pelos ares tôda a máquina política do capitão-mor daquela
feitoria republicana. Eliminá-lo seria precipitar os aconteci
mentos, lançar no ânimo do povo oprimido o rastilho de uma
revolução. Ao invés da fôrça, seria mais oportuno acender a
fogueira da inquisição”. – E, assim, era melhor tocar fogo ao
-
Dérbi.
168
isto é, resultou do choque de seus interêsses com os da política
oligárquica e feudal de Rosa e Silva, defendida encarniçada
mente a baioneta e a bala, à moda da época, pelos seus tru
culentos sequazes.
Seria ocioso repetir aqui tais fatos, razão por que nos
ocuparemos apenas dos ocorridos na Pedra, também motiva
dos por baixos sentimentos de inveja e rancor aninhados na
alma tôrva de dois mandões da roça que, num pavoroso con
luio, longamente concebido e ditado pela maior das viganças,
mandaram eliminar tão preciosa existência.
169
1
171
Morte Trágica e Misteriosa
Do "Evangelizador dos Sertões"
E RA QUARTA-FEIRA, 10 de outubro de
1917. Escreve um jornalista alagoano que aquêle dia do verão
sertanejo amanhecera sombrio, sob nuvens pesadas, como pro
testo veemente da natureza contra a monstruosidade do aten
tado que se projetava para eliminar a vida do bandeirante
ilustre. Durante todo o decorrer do dia, o ambiente soturno
172
Muitos têm dito que Delmiro Gouveia tinha desconfi
ança, algum aviso ou pressentimento de que seria assassinado.
Ainda recentemente o sr. Octávio Brandão repetia, em artigo
estampado na revista "Leitura" (v. número de março de 1962),
que êle afirmara aos amigos sentir-se "ameaçado de morte
pela Machiuc Cotton e não duraria muito tempo". Sua filha
D. Maria apresenta, como prova disso, o fato de haver Delmiro
feito testamento poucos meses antes do desenlace.
Homem conhecido como afoito, de incomum bravura pes
soal, não vivia em sobressalto, temeroso do perigo que o ron
dava, e, portanto, não tomou as cautelas aconselhadas. Assim
é que não se cercava de capangas, não tinha guarda-costas a
seu serviço, nem mesmo o seu cão "Chaleira" estava sôlto,
nem os dinamarqueses, grandes e ferozes, se encontravam
vigiando o chalé no dia fatídico. Nunca, talvez, pensara na
forma como seria atacado, nem jamais imaginara que seus mes
quinhos e gratuitos desafetos tivessem a inominável covardia
de mandar trucidá-lo, de emboscada, na calada da noite.
173
O Coronel mostrou-se admirado de que Raul Azêdo, gos
tando de caçar, nada lhe tivesse dito durante a estada em um
lugar com tanta abundância de caça, ao que respondeu, jus
tificando-se, não lhe haver querido contrariar as determinações,
que eram, como todos sabiam, no sentido de não matar nem
ofender os bichose pássaros. Só desejava saber onde e a quem
poderia entregar os animais e a espingarda. Delmiro acalmou-o:
Poderá deixar tudo onde e a quem quiser; até no
-
174
forte, respondeu os desafios à força - e foi admirado; Padre
Cícero, interpretando o sentimento místico de sua gente, não
respeitou sequer a liturgia católica e fêz "milagres". Tornou-se
um forte e foi admirado! Delmiro, apesar da época, viveu a
mentalidade dos melhores de nossos dias. Lutou e erigiu
175
brica, entre vozes e cantigas das operárias do serão. Três
vultos vindos da pequena curva da linha férrea, em frente,
se dirigem para as proximidades da casa, esgueirando-se como
reptis por entre os vasos e plantas do jardim. Da penumbra
parte a descarga inesperada e certeira, ouvindo-se os tiros de
rifle que vão fulminar o pioneiro. Um dos projetis atinge-lhe
o braço, outro o coração e o terceiro se perde na amplidão.
Todos acorrem ao local. Zé Pó, que tinha servido o jantar,
correu e encontrou seu patrão gravemente ferido, agarrando-se
pelas cadeiras do terraço. Conduzido ao leito, ainda pôde re
ceber socorros, de todo inúteis, porquanto forte hemorragia
interna foi-lhe paralisando logo os sentidos. Em estado cons
ciente, chegou apenas a indagar se os cabras tinham sido
presos, e, nas vascas da morte, ainda pronunciou um valha-me,
Nossa Senhora!
177
rias feitas por piedosas mãos com as rosas apanhandas no
jardim por Ezequiel, para aquêle fim e não mais para adornar
os jarros da casa, como acontecia nos dias anteriores. Mulhe
res, môças, mocinhas e até homens debulhavam-se em lágrimas,
rezavam alto, acompanhando os benditos tirados por D. Marie
ta. "Ao pé do esquife, alguém se enrodilhava de tão recurvo,
contorcendo-se como sob a ação de uma dor física, chorando
convulsivamente, ambas as mãos à cabeça, os braços cobrindo o
rosto". Era Chico Nazaré (informa o romancista), justamente
aquêle que devia estar até satisfeito, de peito lavado, com a
tragédia, por ter sido despedido do trabalho na indústria, pou
co tempo antes.
Diz ainda o escritor que aquêles homens e mulheres não
choravam apenas a morte do chefe mas, também, a da própria
fábrica por êle fundada. Ouvia-se a voz grave dum velho tra
"Atira
balhador da seção de cardas, a repisar essa opinião:-
178
Os Sicários e Mandantes do Crime
INÚTIL
NÚTIL A BUSCA, dia e noite, por ho
mens conhecedores da região, da gente e dos caminhos, para
prender os criminosos. Tudo indicava que êstes tinham vindo
de fora, mas, apesar de rastejados pelas estradas e varejados
por toda a parte, nenhuma pista dêles se encontrava. Passaram-se
alguns dias e nenhum sinal, nada!
O povo sentia um desespêro, um ôco no mundo! Sensação
de vazio e impaciência! Corria para a estação, a ver se sabia
algo pelo trem, que apitava desde longe e, depois, na curva
próxima, triste e longamente... Mas o maquinista e os passa
179
geiros é que já vinham de cabeça para fora e logo indagavam
se prenderam os cabras.
A fábrica voltou a funcionar, o apito rouco e estridente
avisando a retomada do trabalho, os maquinismos entoando,
como dantes, dia e noite, a mesma música dos ruídos. Iona
precisou exortar os operários, dizendo que a desgraça estava
feita e, agora, o jeito era todos se conformarem. Eles faltavam
e, quando volviam ao serviço, ficavam um tempão parados,
absortos ou a conversar nos cantos. "Quem foi? quem seriam
os cabras?". Custava-lhes crer na dura realidade, na morte do
Coronel! Ou sofriam com o pressentimento de que a fábrica
ia parar dentro de pouco tempo.
Decorriam os dias, 3 a 4 semanas se passaram, até que
chegou a notícia de que os suspeitos eram os pistoleiros de
nome Jacaré e Róseo, detidos no outro lado do rio. Fugiram
para longe, assim como de longe vieram, diz Geraldo Rocha,
com a missão de abater o titã. "Os assassinos de Delmiro Gou
veia jamais haviam tido o menor contacto com êle, nenhum
interesse dos mesmos fôra contrariado, nem recebida qualquer
ofensa. Os sicários cumpriram, certamente, missão de um
mandante longínquo, que por sua vez fôra mandatário de en
tidades alienígenas, cujos interêsses se achavam ameaçados
por iniciativas audazes do forte nordestino que sonhava com
a grandeza e independência econômica de sua pátria".
Presos os dois cabras e conduzidos à cidade de Água Bran
ca, por lá teve início e correu o processo policial, aliás muito
mal orientado desde as primeiras inquirições até o sumário de
culpa. Sabe-se que a êles foram infligidas sevícias atrozes, com
o fim de arrancar-lhes a confissão de autoria do crime, razão
por que são tidos como simples bodes expiatórios. Eis o que
refere Tadeu Rocha: "Os mandatários que a Polícia e a
-
181
hipótese mais propalada, na ocasião, referia-se à intriga entre
Delmiro e José Rodrigues, que teria feito conluio com José
Gomes e seu primo Firmino.
José Rodrigues de Lima, chefe político em Piranhas, bri
gara com Delmiro por causa das olarias que faziam tijolos e
telhas para as construções na Pedra, alegando que a terra onde
era feito tal fabrico lhe pertencia e estava sendo devastada,
tentando, mesmo, obstar a continuação do serviço. José Gomes
de Sá, ex-coletor em Jatobá de Tacaratu, recebia propinas e
subtraía rendas de impostos, que deixaram de ser pagos sob
arrematação em hasta pública, sistema mudado pelo do paga
mento em guia, cobrado na barreira interestadual.
A história dessas desavenças, com a da demissão daquele
coletor, na qual Delmiro teria influído, acha-se contada porme
norizadamente, no penúltimo capítulo. Quanto a Firmino Ro
drigues, diziam ser cúmplice, facilitando a missão dos crimino
SOS e
quem sabe?
-
acoitando-os em sua casa, não só antes co
-
182
sertão onde queriam, livremente, mandar e desmandar tais
coronéis circunstância que, de certo modo, afasta os inglêses
da suspeição, dada a impossibilidade material de execução do
atentado; a menos que hajam recebido oferecimento de alguém
dali ou das proximidades, capaz de comprometer-se a levá-lo
a efeito, após o infamante conciliábulo, incentivado pelo di
nheiro grosso dos magnatas...
"O que o capitalismo internacional não podia fazer o bar
barismo nacional executou com perfeição", declara Tadeu
Rocha. Ademais, argumenta-se, a morte do pioneiro da Paulo
Afonso só aproveitava, mesmo, comercialmente, aos trustes es
trangeiros que, por longos anos e até antes do aparecimento da
fábrica nacional, detinham o monopólio do mercado de linhas
no Brasil e em outros países sul-americanos. Tratava-se do grupo
da conhecida e poderosa Machine Cotton, encabeçado por J. P.
Coats & Co, de que eram subsidiadas Clark & Co., Ross & Dun
can e a Cia. Brasileira de Linhas para Coser, sediada em São
Paulo.
184
balaço no peito, por certo sargento da polícia, que fôra antes
perseguido e surrado por capangas, a mando do mesmo José
Rodrigues, e dêste assim se desforrou...
Conta Noé Gouveia que um padre de Goiás revelou ha
ver-lhe José Gomes confessado ser, realmente, mandante do
atentado contra Delmiro. Pronunciado no feito, José Gomes
fugira para os sertões cearenses, onde chefiara um bando de
desordeiros, fugindo depois para lugar ignorado. Teria ido
para Pôrto Nacional, onde fêz fortuna, sempre malquisto pelo
seu gênio desonesto sanguinário. E foi morto por um dos
seus desafetos, em circunstâncias trágicas, cortado aos pedaços,
num requinte de pavorosa vingança, pelos muitos males que
espalhou, também naquela zona...
185
Planos, Idéias, Obras e Iniciativas Interrompidas...
187
Vencida a dificuldade da falta d'água, era preciso combater
a mentalidade retrógrada e rotineira, dominante, secularmente
mal acostumada. Delmiro Gouveia conhecia, como ninguém,
a índole pessimista daquela gente e de seu administrador a
quem certa vez assim falava: "Imagine o compadre o que
será isso quando chegarem os arados e os tratores? Quando êste
solo fôr ajudado pelos adubos de nossa fabricação!" É O -
188
às reses famintas e, assim, salvá-las da fome e atenuar-lhes a
sêde, não sabe que foi Delmiro Gouveia quem introduziu e
divulgou essa planta no Nordeste. Conta Tadeu Rocha a se
guinte lenda que em tôrno dela se formou: Delmiro lera
na revista "La Hacienda” que já se tinha obtido, cientìfica
mente, certa variedade de cacto que estava sendo empregado
como forragem. Comentando o assunto com Ulisses Luna e
dizendo-lhe pretender importar essa cactácea, êste informou
possuí-la em suas terras em estado nativo e sem utilidade. E
mandou de presente ao coronel, dono da fazenda Buenos Aires,
alguns exemplares do vegetal.
Isso carece de verdade, porquanto se sabe que a palma
não é nativa em nossos sertões. Nós, que estivemos na Europa
e percorremos a Itália, inclusive o trecho abrangido por Ná
poles, Capri, Fórmia e Gaeta, podemos apresentar versão mais
consentânea e plausível, atribuindo a possibilidade de terem
sido importados de lá os primeiros pés dessa milagrosa planta,
que basta ser enxertada aos pedaços, na terra sêca, para logo
viçar e multiplicar-se, fàcilmente.
A região dos Apeninos, próxima do Vesúvio, com seus
morros escalavrados e vegetação rasteira, assemelha-se muito
com o fácies géológico da zona sanfranciscana, entre Pi
ranhas e Pedra. Ali, temos a terra entorroada e dura dos
agrestes de que nos fala Plínio -
entre lages de quartzo e
veios rochosos de feldspato, ouriçados de espinhos. Delmiro
passara quase um ano, em vilegiatura, passeando por aquela
região sêca e acidentada, onde o referido cacto nasce, aqui e
ali, abundante, empinado no interstício das pedras, nas encos
tas dos morros, à beira dos caminhos sôbre altos e baixos, por
onde êle e nós andamos, em épocas diferentes...
Chegado à Pedra, pouco tempo após sua estada em Nápo
les e arredores, e defrontando-se, ali, com a sequidão da caatin
ga e a escassez de pastagem para o gado, logo se lembrou o
pioneiro de importar da Itália mudas do vegetal, a fim de
plantá-lo em nosso sertão, onde encontrou habitat ideal,
alastrando-se por tôda a parte; pois, não sendo homem para
esconder os seus êxitos, começou a ensinar aos amigos a utili
zação da palma, dada aos bovinos como alimento, de mistura
com caroço de algodão explica Tadeu Rocha. Se outros
benefícios não tivessem chegado às caatingas do Nordeste, gra
189
ças a Delmiro Gouveia - acrescenta aquêle - sòmente o emprê
go da palmatória forrageira seria bastante para ligar, eterna
mente, "o seu nome ao progresso da civilização telúrica dos
nossos sertões".
190
primeira casa-de-fôrça de 1.500 HP. Fala Plínio, seguido por
muitos, em duas outras turbinas (?), uma de 1.000 cavalos,
suíça, e outra, de 3.000, adquirida em Filadélfia. O objetivo
do pioneiro, bem se vê, não se restringia apenas à fabricação
de fios e linhas. Ele mesmo, citado por Motta Lima, dizia: --
191
As Tramas da Concorrência,
Do Truste e do "Dumping"
193:
"A cada batalha perdida pelos inglêses se suce
dia uma parlamentação, apresentando novas e sem
pre mais elevadas condições de paz. Isto é, condi
ções de capitulação para a indústria brasileira.
Um gentleman de meia idade, sentou-se diante
do sertanejo teimoso e seu sócio italiano.
Nossa proposta de aquisição da fábrica é ago
ra de dez mil contos.
194
Levou o charuto à bôca, fechou a mão direita,
bateu violentamente o pulso contra a palma da mão
esquerda, no desabafo nortista:
Aqui! Para êsses fias-da-puta!"
195
pósitos, ora atacando com todas as armas. Neste
momento, quando sentem o pêso de nossa vitória,
contramarcham, mas não sabem esconder a insolên
cia. Habituaram-se a assestar os canhões e esperar
a rendição antes mesmo de abrir fogo.
Sentou-se de nôvo, balançando-se lentamente
na cadeira. Seu tom agora não era de ênfase, com
pletava o pensamento com naturalidade.
Não se trata mais de um negócio. Hoje temos
um compromisso assumido com muita gente que
acredita em nós. Aqui no sertão, pelo Nordeste afo
ra, por todo o país. Não podemos capitular. Vamos
responder como Floriano respondeu um dia a êsses
gringos.
Não se fala mais nisso disse Iona, com
-
197
NOUPOT
qual cientificara que os banqueiros londrinos considerariam
ato de hostilidade a barreira alfandegária contra a tradicional
importação. Dominado pela idéia de estabilizar a moeda, para
cuja execução precisava dos Rotschild, Washington Luís cedeu,
abandonando a fábrica de Delmiro à própria sorte (*).
A miopia econômico-financeira do chefe do Executivo e
da maioria das duas casas do Congresso diz Tadeu Rocha
-
198
Fim Melancólico da Fábrica Nacional de Linhas
Tudo inútil,
pela incompreensão do Govêrno e do
Congresso - Desamparados e já sem re
cursos, os herdeiros venderam suas ações
A escritura de venda e a de quitação
O humilhante acordo a venda da
199
Com esses recursos pretendia-se atacar as obras de monta
gem das novas turbinas e outras de caráter social, beneficente e
religioso. Não se sabe qual o destino dado à fábrica têxtil de
2.000 teares, encomendada ainda em vida do pioneiro a que
muitos têm aludido nem tampouco se sabe se foram introdu
duzidas na de linha melhorias de vulto, no tocante à ampliação
ou à renovação da maquinaria. Devia Iona mostrar-se mais in
clinado ao reaparelhamento da indústria de fios e de linhas, do
tando-a de outras máquinas. Tudo indica que o seu espírito me
ticuloso e tímido achava que o alargamento de atividades indus
triais, com a energia da Paulo Afonso, não era para processar-se
em ritmo acelerado, conforme planejara o gênio ousado de
Delmiro.
201
19-7-26, permitindo o aumento da taxa de importação sôbre
a linha de coser, de 2.000 para 10.000 réis por quilo.
Por intermédio do Centro Industrial de Fiação e Tecela
gem de Alagoas, e com a campanha da imprensa, os ditos.
herdeiros ainda conseguiram que o Congresso Nacional pusesse
na lei que orçou a Receita da União, para 1926, autorização ao
Poder Executivo para restringir, ou mesmo proibir, a impor
tação de qualquer produto estrangeiro, ao verificar que fabri
cantes, representantes ou importadores, concedendo vantagens
especiais ao comerciante que se comprometesse a não vender
o similar nacional, procuravam, assim, prejudicar o artigo
brasileiro.
T
יויווץ
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4) A tubulação e as escadas paralelas até a casa-de-fôrça, onde
foi assentada a turbina geradora de energia elétrica, de 1.500 HP
A
7
5) A escada em espiral, vista de perfil, prêsa ao flanco do
penhasco e cuja construção foi considerada obra de incrível
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de 600 contos, ficando a dever 3.000 contos representados em
17 promissórias, com vencimento até 7 de maio de 1932; que,
pela citada escritura, autorizada por alvará do referido Juízo
de Direito de Água Branca, parte do valor de dita compra
e venda, compreendendo a quantia recebida e parte do valor
dos títulos que se fôssem vencendo, enquanto a outorgante e
seus irmãos não atingissem 30 anos de idade, seria convertida
em apólices da dívida pública federal, nestas, nos ditos títulos
enquanto vincendos e apólices que pelo produto dêsses títulos
fossem adquiridos, e até completar a outorgante 30 anos, se
sub-rogariam as ações de capital da Cia. Agro-Fabril Mercantil,
debêntures e créditos, objeto da mencionada compra e venda
em observância à disposição testamentária...”
A insensibilidade patriótica, a incúria administrativa, a
miopia enconômica e financeira do Pres. Washington Luís, bem
como da maioria das duas casas do Parlamento, foram o tiro de
misericórdia, ou melhor, a última pá de cal na desamparada
e mal dirigida fábrica da Pedra; e isso no ano de 1929, quando
a crise mundial atingiu o auge, refletindo também no Brasil
seus maléficos efeitos.
A Cia. Agro-Fabril tivera grandes prejuízos, devidos a
isso, e, sobretudo, à intensificação da concorrência da Machine
Cotton, fortemente apoiada nas nossas leis falhas; e não encon
trou saída senão a de entabular negócio com a sua tradicional
competidora. Tôdas as formas de compromissos, para trabalhar
por conta da Machine, ou para restringir a produção da Pedra
a determinados limites, mediante cláusulas de uma concorrên
cia ajustada, foram antes apresentadas em vão. Estudou-se, fi
nalmente, uma oferta firme da Machine Cotton, emanada de
seus principais J. P. Coat Ltd., de Paislay, para a Fábrica da
Pedra cessar a fabricação de linhas de coser e entregar por
venda seus maquinismos.
Convém acentuar que, ainda em decorrência dos esforços
envidados pelo referido Centro e pelos herdeiros de Delmiro,
encabeçados pelo marido de sua filha Maria, o engenheiro
Clóvis Santiago na Nóbrega, foi votada pelo Congresso a Lei
n° 5.650, de 9-1-29, elevando ao dôbro a tarifa alfandegária,
isto é, de 2 para 4 mil réis o quilo de linha importada, o que
se tornou letra morta, inexequível. O que dói e estarrece em
tudo isso é ver-se que homens incorrutíveis, e da estatura moral
203
dum Pres. Washington Luís e dum Senador Paulo de Frontin,
não enxergaram a trama do truste internacional, deixando ao
desamparo a nossa indústria, ao invés de promulgar leis coerci
tivas e não aquelas fracas e ineficazes.
204
Em abril de 1930 viu-se e ouviu-se, noite e dia, na cidade
da Pedra, então silente e perplexa, o desmantelamento de
máquinas, com o ranger de ferros e o bater incessante das
marrêtas. Finalmente, viam-se faiscar chispas de fogo nas pedras,
quando suas peças, partidas, eram atiradas ao fundo do penhas
co, para sumirem nas águas revôltas do rio chamado da unidade
nacional, últimos estertores da primeira grande fábrica nacio
nal de linhas, fundada e mantida com inaudito esfôrço e assim
melancòlicamente desaparecida...
Muita gente viu, todo mundo sabe e ninguém disse nada!
Os operários, de longe, ouvindo o tan-tan-tan cadenciado das
marrêtas, ou debruçados à beira do abismo, espiando sem
entender aquêle desatino, apenas comentavam: "Estão aca
-
205
BIBLIOGRAFIA
Delmiro Gouveia"
PEDRO MOTTA LIMA "Fábrica da Pedra"
JOSÉ LOPES DE MORAES Trabalho enfeixado em "Uma
excursão ao S. Francisco"
- ANTÔNIO C. PALHARES M. REIS Idem, idem, idem
HÉLIO MACEDO SOARES Relatório sôbre o rio S. Fran
cisco e a Paulo Afonso.
estudo
ADOLFO SANTOS Depoimento para um
biográfico"
de
ENCICLOPÉDIA E DICIONÁRIO INTERNACIONAL -
Jackson Editôra
206
DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DE ALAGOAS -
n.° 105,
de 16-5-61
- BOLETIM COMERCIAL DO "MONITOR MERCANTIL"
n.º 23.113, de 22-6-62
ALMANAQUE DO CEARÁ de 1962
ALMANAQUE DE PERNAMBUCO de 1908
engenharia brasileira"
RAUL AZÊDO "Delmiro Gouveia, heróico precursor da
usina de energia elétrica da Paulo Afonso"
M. MALTA Reportagens (3) na "Gazeta de Alagoas" (1961)
JOSIMAR MOREIRA Idem em "Última Hora", reprodu
-
207
NOE AUGUSTO GOUVEIA (Rio)
208
ESTA OBRA FOI EXECUTADA NAS OFICINAS DA
COMPANHIA GRÁFICA LUX, RUA FREI CANECA,
224 RIO DE JANEIRO, PARA A EDITORA
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.
DELMIRO GOUVEIA,
PIONEIRO E NACIONALISTA