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1968 S UM Á R I O
CONSELHO DE GERÊNCIA: Francisco Pinto
Balsemão, Pierre Lamunière, Luiz Vasconcellos,
Tibére Adler, Mário Lopes e Michel Preiswerk
DIRECTOR-GERAL: Mário Lopes
DIRECÇÃO EDITORIAL: Fernanda Dias
e Clara Marques 4 Imagens
DIRECTORA COMERCIAL E PUBLICIDADE:
Maria João Peixe Dias 18 Cronologia
DIRECTOR DE NEGÓCIO CUSTOMER
PUBLISHING: João Xara-Brasil 22 MAIO DE 68 O mais longo mês
DIRECTOR DE PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO: 22
Manuel Parreira 32 Entrevista Daniel Bensaïd: «Culturalmente ganhámos. E socialmente?»
DIRECTOR DE ASSINATURAS: Francisco Moita
DIRECTORA DE MARKETING: Ana Marta Heleno
34 A correspondência diplomática sobre o Maio de 68
DIRECTOR DE MULTIMÉDIA: Miguel Bragança 38 Portugal, uma longa marcha
DIRECTOR DE SISTEMAS INFORMÁTICOS:
José Calé e Manuel Simões (OfficeShare) 42 Os herdeiros da revolta
DIRECÇÃO DE CONTROLO DE GESTÃO:
Ana Sengo Costa 44 PRIMAVERA DE PRAGA Era uma vez a democracia
ENTIDADE PROPRIETÁRIA – EDITORA: 50 Pelos olhos dos portugueses 44
EDIMPRESA, EDITORA, LDA.
NPC : 506 336 387 CapitaI Social : 1.000.000€; CRC 54 Diário da invasão
Cascais: 15 639. Impresa SGPS, SA: 50% ;Edipresse
International SARL: 50%. R. Calvet de Magalhães, n.º 56 VIETNAME A guerra odiada
242, Laveiras, 2770-022 Paço de Arcos, Tel.: 214698000. 66 'Manifs' em Lisboa: guerra é guerra
Fax: 214698500. Impressão: Lisgráfica – Casal de Sta.
Leopoldina – 2745 Queluz de Baixo. Distribuição: Vasp 68 Martin Luther King, o homem que tinha um sonho
– Distribuidora de Publicações, Lda. MLP: Media Logistics
Park, Quinta do Grajal - Venda Seca. - 2739-511 Agualva 74 Império a preto e branco 56
Cacém. - E-mail: contactcenterLX@vasp.pt. Tel.: 808 206
545 e 21 433 70 01. Fax: 808 206 133. Atendimento ao 76 Na sombra de JFK
ponto de venda Telefone: (linha azul) 808 200 351 - E-mail:
pontodevenda@edimpresa.pt. 78 Entrevista Zuenir Ventura: «Quem éramos nós?»
80 JOGOS OLÍMPICOS Punhos de exclamação

v
DIRECTOR: Pedro Camacho
84
86
PORTUGAL Salazar, a queda do ano
Os números escondidos
80
DIRECTORES-ADJUNTOS: Áurea Sampaio, 88 Cultura: 2001 em 1968
Cláudia Lobo e Rui Tavares Guedes
DIRECTOR DE ARTE: Vasco Ferreira 90 Sonhos e pesadelos
EDITOR EXECUTIVO MULTIMEDIA: Filipe Luís
GABINETE EDITORIAL: José Carlos de Vasconcelos 92 Livro excelentíssimo
(coordenador), Daniel Ricardo (editor executivo),
Luís Almeida Martins (projectos especiais) 94 Mundo Pop
96 Quase 70
98
v
Ensaio: Manuel Villaverde Cabral 84

DIRECTORA: Cláudia Lobo


DIRECTOR DE ARTE: Vasco Ferreira
EDITOR: Luís Almeida Martins

LINHA DIRECTA UM PASSADO PRESENTE


TEXTOS: Alexandra Correia, Ana Margarida de Carvalho,
Ana Navarro Pedro, Ana Pereira da Silva, Daniel Ricardo,
Emília Caetano, Gabriela Lourenço, J. Plácido Júnior, Luís

O
Almeida Martins, Manuel Villaverde Cabral, Paulo Pena,
Pedro Dias de Almeida, Rui Tavares Guedes, Sara Belo Luís,
Sílvia Souto Cunha leitor tem nas mãos uma publicação «filha» da VISÃO. Com periodi-
DESIGNER EDITOR: Nuno Silva
EDITOR DE FOTOGRAFIA: Gonçalo Rosa da Silva cidade em princípio trimestral (embora sem excluir a possibilidade da
GRAFISMO: Teresa Sengo publicação de números sempre que se justifique), a VISÃO História pro-
PESQUISA FOTOGRÁFICA: Acácio Madaleno
e Fernando Negreira põe ao leitor viagens pelo passado, na convicção de que o conhecimento
REVISÃO: António Ribeiro, Monteiro Luís e Rui Carvalho
ASSISTENTES EDITORIAIS: Ana Paula Figueiredo, Inês deste é indispensável para a compreensão do presente e a construção, ou simples
Belo, Sofia Vicente, Teresa Rodrigues projecção, do futuro.
MARKETING: João de Deus O tema escolhido para o número inaugural foi 1968, o «ano que nunca acabou»,
PRODUÇÃO GRÁFICA: Pedro Guilhermino essa data-chave da segunda metade do século XX em que «tudo» aconteceu e
REDACÇÃO Telefone: 214 698 700 Fax: 214 698 547 cujas repercussões são ainda bem visíveis. O Maio de 68, a Primavera de Praga, a
Internet: www.visao.pt
Rua Calvet de Magalhães, n.º 242. Laveiras, 2770-022 reviravolta na Guerra do Vietname, os assassínios de Luther King e de Bob Kenne-
Paço de Arcos dy, a queda de Salazar e a sua substituição por Marcello Caetano ou o «escândalo»
email: visao@edimpresa.pt
Norte: R. Monte dos Burgos, n.º 1080, 4250–314 Porto do Black Power nos Jogos Olímpicos do México são exemplos de acontecimentos
Tel.: 228 347 525; Geral: 228 347 520; Fax: 228 347 557 que marcaram uma época e ainda hoje condicionam a nossa visão do mundo.
ASSINATURAS Telefone: 808 208 020
Fax: 214 698 501 O próximo número, com saída prevista para Julho, será inteiramente dedicado
internet: www.assineja.pt
Envie o seu pedido para: • Edimpresa, Editora Lda. à transição política portuguesa, equacionando-se os últimos tempos do salazaris-
– Remessa Livre 1120 – 2771-960 Paço de Arcos email: mo e a efémera e frustrante «primavera marcelista».
atendimento@edimpresa.pt
Serviço de atendimento: Helena Matoso (responsável) Boa leitura!

v 3
1968 I M AG E N S

4 v
O ano em que tudo aconteceu,
e que nunca chegou a terminar,
começou com uma viragem
espectacular na GUERRA
DOVIETNAME, que até então
parecia estar a ser ganha
pelos EUA...
v 5
Foto: EDDIEADAMS/AP
1968 LU T H E R K I N G

6 v
... assistiu, em Abril, ao
assassínio do líder americano
dos direitos cívicos, MARTIN
LUTHERKING, um pacifista
e admirador de Gandhi que,
40 anos antes do fenómeno
Obama, teve o «sonho»
de ver negros e brancos lado
a lado...
v 7
Foto: SIPA PRESS
8 v
... atingiu os píncaros em
MAIO, quando os estudantes
de Paris se revoltaram contra
as rotinas do Estado burguês
desencadeando um movimento
de massas a que adeririam
todos os trabalhadores do
país... v 9
Foto: D.R.
10 v
... sepultou a «PRIMAVERA
DEPRAGA» no Agosto infernal
em que tropas do Pacto de
Varsóvia, liderado pela URSS,
impuseram um fim sangrento
às inovadoras reformas
socialistas empreendidas
pelos vchecos... 11
Foto: JOSEF KOUDELKA/MAGNUM/FOTOTECA
12 v
... ficou caracterizado
pela eclosão do FLOWER
POWER, o Poder das Flores,
o movimento da juventude
hippie que fez tábua rasa
de tudo o que antes se
pensava e ofereceu novos
valoresv ao mundo... 13
Foto: ROGER MALLOCH/Magnum
14 v
... viu, num Portugal cinzento,
SALAZAR comemorar
a 27 de Abril 40 anos
no governo, cinco meses antes
de um hematoma cerebral
produzido por uma queda
o afastar definitivamente
do poder, sendo substituído
por Marcello
v Caetano... 15
Foto: Diário Notícias
MORTE DE UM GUERRILHEIRO O ‘GANDHI NEGRO’ O pastor
O momento exacto da protestante e activista
execução sumária de um líder político Martin Luther King,
Vietcong pelo brigadeiro que electrizara milhões
sul-vietnamita Nguyen Ngoc com os seus discursos sobre
Loan, chefe da polícia de a igualdade de direitos,
Saigão, é o tema dramático encheu o estádio Soldier
desta foto de Eddie Adams Field, em Chicago. Passados
que correu mundo, ganhou um 40 anos, Barack Obama, um
Prémio Pulitzer e permanece afro-americano como ele,
como uma das imagens mais corre para a presidência
memoráveis da Guerra do
Vietname

O ‘MAIO DE 68’ Na noite O AGOSTO DE PRAGA


de 9 para 10 de Maio, os O mundo tinha festejado
estudantes parisienses a Primavera política do regime
ergueram 60 barricadas socialista checo, mas, em
no Quartier Latin com as pleno Verão, os blindados
pedras arrancadas à calçada, do Pacto de Varsóvia
e a repressão policial que se invadiram a Checoslováquia
seguiu causou mais de mil e fizeram o país regressar
feridos e dezenas de prisões. à «normalidade» política do
A resposta dos jovens mais bloco de Leste. A população
radicais traduziu-se por 80 de Praga fez frente ao invasor
carros queimados. Os «bem- e conseguiu tomar alguns dos
-pensantes» tremeram tanques

O ‘PODER DA FLOR’ Uma O DITADOR Em 27 de Abril de


jovem patriota, de bandeira 1968, dia em que completou
dos EUA em punho, beija 40 anos no governo, Salazar,
um companheiro de luta o ditador mais antigo
decorado com uma grinalda do mundo, recebeu na
de flores, em Chicago. Contra residência de S. Bento um
a força bruta dos canhões e grupo de jovens alunas do
contra o poderio do capital, Instituto de Odivelas. Cinco
a juventude de 1968 erguia meses depois, o hematoma
uma barreira de pacifismo cerebral provocado por uma
militante queda afastálo-ia do poder,
abrindo caminho à efémera
e frustrada «Primavera
marcelista»

O ‘PODER NEGRO’ Não podemos


lembrar-nos dos Jogos
Olímpicos do México sem
nos vir à mente esta imagem
dos atletas afro-americanos,
Tommie Smith e John Carlos,
erguendo o punho ao jeito
da saudação do movimento
radical Black Power
... e viu, nos JOGOS
OLÍMPICOSDOMÉXICO,
atletas afro-americanos
erguerem no pódio o punho
enluvado de preto, a «temível»
saudação do Black Power,
o Poder v Negro 17
Foto: AP
Suharto
Richard Nixon

1968
salazar Svoboda

C R O N O LO G I A

DOZE MESES
TREPIDANTES
3 Congo Agostinho Neto anuncia 1 Vietname Um oficial da guerrilha Vietcong é 1 Portugal Mário Soares, Urbano Tavares Rodrigues
em Brazzaville que o MPLA vai executado com um tiro na cabeça por Nguyen e Francisco Sousa Tavares (também detidos por terem
transferir a sede para Angola Ngoc Loan, um chefe da polícia sul-vietnamita, denunciado os Ballet Rose) são libertados sem acusação
e a dramática cena é fotografada por Eddie
5 Checoslováquia Adams. A foto dá a volta ao mundo, ganha um 3 Holanda As embaixadas de Portugal, Espanha e Grécia
Alexandre Dubcek prémio Pulitzer e vira a opinião pública americana em Haia são alvos de atentados bombistas.
é eleito primeiro- contra a guerra EUa Richard Nixon anuncia que
-secretário do CC do PC vai candidatar-se à Casa Branca, pelo Partido 5 Checoslováquia Dubcek é eleito secretário-geral do PC
da Checoslováquia Republicano Checo
12 URSS O escritor Alexandre 2 Portugal O PR, Américo Tomás, parte 7 Vietname Começa a primeira batalha de
Ginzburg é condenado a cinco anos para uma visita à Guiné e Cabo Verde França Saigão; centenas de civis são mortos e a cidade
de prisão; é o início do apogeu Inauguram-se em Grenoble os X Jogos Olímpicos fica bastante danificada
da dissidência, um movimento de de Inverno
contestação intelectual ao regime 8 Polónia Após o encerramento da União
soviético 16 Reino Unido Os beatles dos Escritores, desencadeiam-se protestos
John Lennon e George estudantis em Cracóvia
21 Gronelândia Despenha-se um Harrison partem para a
B-52 com quatro bombas atómicas a Índia para fazer meditação 9 Vietname Westmoreland pede mais 206 mil soldados; dois
bordo, sem consequências de maior transcendental dias depois, Johnson concederá 50 mil

JANEIRO FEVEREIRO MARÇO


19 Guiné-Bissau O PAIGC ataca o aeroporto de 13 Checoslováquia É liberalizado o regime, com o
Bissalanca e toma a Base de Medina do Boé abrandamento da censura e a prisão de um ex-chefe da polícia
21 Portugal Manifestação, em Lisboa, contra a 15 Senegal O PAIGC entrega à Cruz Vermelha do Senegal
Guerra Colonial e a intervenção norte-americana três militares portugueses que fizera prisioneiros; Amílcar
no Vietname Cabral declara que suspenderá os combates se à Guiné for
reconhecido o direito à independência
24 Portugal
Uma lista não 16 Vietname A Companhia Charlie, comandada pelo capitão
afecta ao regime, Ernest Medina, massacra meio milhar de civis desarmados na
da qual faz parte aldeia sul-vietnamita de My Lai EUA O senador democrata
Daniel Cabrita, Robert Kennedy anuncia a candidatura à Casa Branca
22 Coreia O navio-patrulha vence as eleições
americano USS Pueblo é capturado para o Sindicato 18 Polónia Os operários da
no mar do Japão por forças navais dos Bancários siderurgia de Nowa Huta entram
da Coreia do Norte, sob a acusação vietname Os em greve de solidariedade com os
de levar a cabo uma missão de EUA efectuam o primeiro bombardeamento a estudantes de Cracóvia
espionagem Hanói; termina a batalha de Hué com a recaptura
da cidade pelos americanos 19 Portugal Mário Soares é de
25 Mediterrâneo O submarino novo preso pela PIDE, sendo-lhe
israelita Dakar, de fabrico britânico, 25 Chipre O comunicado que partirá para o exílio
afunda-se misteriosamente entre arcebispo Makários em S. Tomé EUA Os estudantes da
Creta e Chipre com 69 tripulantes é reeleito Presidente Universidade de Howard iniciam uma
a bordo na sua viagem inaugural, da República, com 96% greve contra a Guerra do Vietname
entre Portsmouth e Haifa. O caso dos votos e por um maior afrocentrismo
faz correr rios de tinta e dá azo
às mais diversas especulações e 28 Portugal Sai o 22 FRANÇA Daniel Cohn-Bendit mais sete estudantes
teorias conspirativas. Em 2000 será primeiro número do ocupam os edicios administrativos da Universidade de
encontrada no fundo do mar uma vespertino A Capital; Nanterre, exigindo maior liberdade sexual vietname
parte da ponte do submarino fundado por profissionais Westmoreland é substituído por Creighton Abrams
«dissidentes» do no comando EUA Rumo à Lua, é lançada a missão Apollo 5,
28 RFA O patinador Erahrd Keler Diário de Lisboa, foi a última não-tripulada
estabelece novo recorde mundial de inicialmente dirigido por
velocidade no gelo ao percorrer 500 Norberto Lopes e Mário Neves 24 Portugal Mais de 500 estudantes participam, em
metros em 39,2 segundos Lisboa, no IV Seminário de Estudos Associativos; reivindicam
29 Portugal O advogado José Magalhães a democratização e a reforma do ensino, a autonomia da
30 Vietname O Vietname do Godinho requer o habeas corpus para Mário Universidade, o reconhecimento do estudante como
Norte e o Vietcong lançam a grande Soares, preso desde 13 de Dezembro de 1967, jovem trabalhador intelectual, liberdade de
Ofensiva do Tet (Ano Novo budista) por, alegadamente, ter prestado informações à associação, de reunião e de expressão e direito
contra a Embaixada dos EUA imprensa estrangeira sobre o escândalo dos Ballet à greve académica
em Saigão e todas as guarnições Rose, um caso de orgias com raparigas menores
americanas estacionadas na zona. que envolveu pelo menos um ministro, além de 27 Urss O cosmonauta pioneiro Iuri Gagarine,
É a reviravolta no conflito outras figuras públicas; o processo judicial que que em 1961 fora o primeiro homem a partir
se seguiu foi abafado pelo regime, o que levou o para o Espaço, morre num desastre de aviação
Portugal Manifestação de ministro da Justiça, Antunes Varela, a demitir-se Indonésia Suharto sucede a Sukarno na
estudantes, no Porto, contra a EUa Robert McNamara demite-se de secretário presidência; milhares de alegados comunistas
Guerra do Vietname; morre, em da Defesa e é substituído por Clark Clifford serão executados
Lisboa, o preso político António
Firmino, serrador, na sequência das Portugal Suspensão, por 30 dias, do Diário 30 Checoslováquia Svoboda assume a Presidência
torturas que lhe foram infligidas de Moçambique, da Beira, por ter publicado um
pela PIDE texto não submetido à censura 31 EUA Johnson anuncia não se recandidatar à Casa Branca
Manchester United ganha
beatles a taça dos campeões
Velasco Ibarra
georges pompidou

submarino nuclear
americano Scorpion

2 RFA Bombas colocadas por Andreas Baader 2 Portugal O brigadeiro António de Spínola 2 Equador Velasco Ibarra é eleito
e Gudrun Ensslin, fundadores da Facção do é nomeado governador-geral e comandante-chefe na Guiné presidente pela 5.ª vez em 34 anos
Exército Vermelho, explodem em dois armazéns França Incidentes na universidade de Nanterre, onde as
de Frankfurt aulas são suspensas israel Começam as emissões 3 Portugal Está em curso a
de televisão greve da mala: durante três dias,
4 EUA Luther King é assassinado em Memphis, os cobradores da Carris não
Tennessee, e há tumultos em muitas cidades 4 Portugal O Governo é autorizado a abrir recebem o pagamento dos bilhetes
brasil Trava-se uma batalha campal entre os créditos consignados à Defesa Nacional para reequipamento de eléctricos e autocarro; após
estudantes cariocas e a polícia r. unido A extraordinário do Exército e da Força Aérea, até concentrações e recontros com a
espanhola Massiel vence, em Londres, o Festival 2 milhões de contos França São suspensas as aulas polícia, conseguem um aumento
Eurovisão da Canção, com La, la, la; Por Portugal na Sorbonne salarial médio de 20$00
canta Carlos Mendes
6 França O encerramento das faculdades de Paris motiva 5 EUA O
6 Guiné-Bissau O PAIGC ataca o quartel de uma manifestação de 50 mil estudantes; dos confrontos senador
Cantacunda, faz um morto e captura 11 com 20 mil polícias resultam mil feridos e 600 detenções Robert
portugueses espanha Madrid encerra a fronteira com Gibraltar Kennedy,
candidato à
7 RFA O piloto escocês de F1, Jim 7 Portugal James Earl Ray, presumível assassino de Luther presidência, é
Clark, morre num acidente no circuito de King, chega a Lisboa, com passaporte canadiano alvejado a tiro,
Hockenheim em Los Angeles

ABRIL MAIO JUNHO


8 Vietname 9 França A agitação estudantil atinge, além de Paris, as 6 EUA Robert Kennedy morre
Termina o cidades de Estrasburgo, Nantes, Rennes e Toulouse portugAl Maurice Béjart é
longo cerco expulso do País por falar da morte
de Khe Sanh 10 França Erguem-se 60 barricada em Paris; os confrontos de Kennedy no Coliseu de Lisboa
com a polícia causam mais de mil feridos e 80 carros
11 RFA O líder queimados 8 Reino Unido James Earl Ray é
estudantil Rudi preso em Londres, suspeito de ter
Dutschke é 13 França Greve geral e manifestação sindical em Paris. assassinado Martin Luther King
atingido a tiro Arrancam, em Paris, as conversações para a paz no Vietname
pelo direitista 7 Espanha A ETA reivindica o seu
Joseph 14 França De Gaulle parte para a Roménia, em visita oficial primeiro atentado mortal; a vítima é
Bachmann; sobrevive, mas morrerá das sequelas o guarda civil galego José Pardines
em 1979 15 França É ocupada a fábrica
Renault em Cléon 10 Itália A Itália sagra-se campeã
11 EUA Johnson assina o Acta dos Direitos Cívicos, europeia de futebol ao bater por 2-0
que proíbe a discriminação baseada no sexo, raça 16 França As greves estendem-se a Jugoslávia na finalíssima, em Roma
ou cor no tocante ao aluguer ou compra de casa a fábricas e empresas
12 Checoslováquia Dubcek divulga o programa 18 Angola O MPLA abre uma
político da chamada «Primavera de Praga» nova frente de combate, no
distrito de Luanda Moçambique
19 Portugal O padre José da Felicidade Alves Acção das forças portuguesas contra uma base da Frelimo,
apresenta ao Conselho Paroquial de Belém a em Cabo Delgado. França De Gaulle regressa em dia de
exposição Perspectivas Actuais de Transformação greve geral
nas Estruturas da Igreja, que lhe vale a abertura
de um processo, por ordem do cardeal Cerejeira 19 Itália A Democracia Cristã vence as legislativas nigéria
Forças governamentais cercam os rebeldes do Biafra
20 Canadá Pierre
Trudeau torna-se primeiro- 22 França Os sindicatos dizem-se dispostos a negociar com o
-ministro governo Atlântico O submarino nuclear americano Scorpion 14 Portugal Baltazar Rebelo de
naufraga com 91 homens a bordo Sousa, governador de Moçambique
23 EUA Estudantes da
Universidade de Columbia 24 França Um comissário de polícia é morto em Lyon 18 Guiné-Bissau Um sargento
iniciam uma greve contra a e sete soldados portugueses são
Guerra do Vietname 29 EUA A ONU decreta sanções contra a Rodésia de Ian Smith. feitos prisioneiros pelo PAIGC
reino unido Entra em r. unido O Manchester United derrota o Benfica por 4-1, no
circulação a moeda decimal Estádio de Wembley, na final da Taça dos Campeões Europeus 26 zaire São presos um sargento
e 12 soldados portugueses
27 Portugal Salazar comemora o 40.º 30 França De Gaulle dissolve a Assembleia, convoca eleições
aniversário da entrada para o Governo; Kaúlza e é alvo de uma grande manifestação de apoio em Paris 27 Checoslováquia Cientistas
de Arriaga pronuncia o discurso de regresso à e atletas pedem a democratização
política, após o afastamento por Salazar em 1961, 31 França O governo é remodelado
quando secretário de Estado da Aeronáutica 30 frança Nas legislativas, os
Portugal Decorrem greves de conserveiros em Setúbal gaullistas obtêm a maioria absoluta
29 Portugal Iniciam-se as comemorações e Olhão, onde a PIDE terá assassinado a tiro um trabalhador,
do IV Centenário de Pedro Álvares Cabral EUA e a paralisação dos pescadores estende-se à Figueira angola O director da PIDE, Silva
O musical Hair estreia-se na Broadway da Foz, Aveiro, Afurada, Espinho e outras localidades; os Pais, supervisiona a formação dos
operários da cordoaria Nicola, no Barreiro entram também «Flechas», os pides africanos
Moçambique Uma emboscada da Frelimo a uma em greve. A polícia dispersa uma concentração de estudantes
coluna militar portuguesa, em Cabo Delgado, faz contra a situação política, na Faculdade de Ciências, em moçambique É destruída uma
quatro mortos e sete feridos Lisboa. base da Frelimo, no Niassa
sonda espacial

1968
Zond 5
tropas francesas no chade

C R O N O LO G I A

junta militar grega

1 Europa Acabam as barreiras 2 Filipinas Um sismo faz 300 mortos em Manila 2 Portugal Faustosa festa oferecida pelo multimilionário
alfandegárias na CEE americano Pierre Schlumberger e sua mulher, a baronesa
8 EUA Richard Nixon é nomeado candidato à Maria da Conceição Schlumberger, portuguesa, no seu palácio
9 Moçambique Ataque da Frelimo presidência na Convenção Republicana de Miami da Quinta do Vinagre, em Colares; comparecem mais de mil
à base de Mueda. Portugal Entra convidados do jet-set internacional – príncipes, princesas,
em funcionamento o Centro de 9 Portugal É criada a Telescola, para o Ciclo estrelas de Hollywood, grandes empresários e banqueiros
Alcoitão, para mutilados de guerra Preparatório do Ensino Secundário
6 Portugal Festa na quinta do magnata boliviano do estanho,
10 Portugal É provisoriamente 11 Nigéria A Antenor Patiño, em Alcoitão. Entre as 800 individualidades
adjudicada ao consórcio ZAMCO, Cruz Vermelha presentes destacam-se Gina Lollobrigida, Maria Félix, Zsa Zsa
liderado pela África do Sul, a Internacional Gabor, Audrey Hepburn, Capucine, Douglas Fairbanks Jr.,
construção da barragem de Cabora suspende os voos de Curd Jurgens, Valentino, Pierre Cardin, membros das famílias
Bassa, em Moçambique FRANÇA auxílio às populações Rothschild, Niarcos, Rockefeller e Michelin, Henry Ford II,
Couve de Murville substitui do Biafra (onde Dominguin, a duquesa de Argyll, a princesa Ira de Furstenberg
Pompidou na chefia do governo diariamente morrem e as filhas de Américo Tomás. Com a quinta rodeada de polícias
de fome milhares que não deixavam ninguém aproximar-se, o jornalista Manuel
15 Polónia Reúnem-se em Varsóvia de pessoas) porque Beça Múrias, ao serviço da Associated Press, é detido quando
os dirigentes da Polónia, URSS, os seus aviões são tentava empoleirar-se no muro; segundo Franco Nogueira,
RDA, Hungria e Bulgária, hostis alvejados pelos Salazar proibira os ministros de comparecerem. No mesmo dia,
à liberalização na Checoslováquia governamentais. um derrame cerebral põe termo à carreira política de Salazar

JULHO AGOSTO SETEMBRO


17 Iraque Num 13 EUA A ONU informa: há 300 mil refugiados de 7 Portugal Salazar é operado, no Hospital da CVP, a um
golpe de estado, Angola no Zaire; 61 mil, da Guiné no Senegal; e hematoma subdural craniano, na sequência da queda que
dirigido por Hassan 122 mil, de Moçambique na Zâmbia e na Tanzânia. dera em Agosto; a operação corre bem e os médicos dizem
El-Bakr, Saddam grécia Tentativa de derrube da Junta Militar que em breve poderá voltar para casa; conta Franco Nogueira
Hussein torna-se que no caminho para o hospital, acompanhado pelos médicos
vice-presidente Vasconcelos Marques e Eduardo Coelho, pediu informações
do Conselho sobre a festa de Patiño
Revolucionário
11 França Um avião
23 Mediterrâneo Caravelle incendeia-se
Um avião da e despenha-se entre
companhia israelita El-Al, da a Córsega e Nice,
carreira Roma-Telavive, é desviado causando 95 mortos
para Argel por um comando
palestiniano 14 URSS É lançada a
sonda espacial Zond 5, que será a primeira a dar a volta à Lua
25 Vaticano Paulo VI publica 15 Reino Unido A estação «pirata» Radio Free e a regressar à Terra
a encíclica Humanae Vitae, London inicia as transmissões, mudando a Rádio
condenando o controlo dos 16 Portugal Salazar sofre um acidente vascular
nascimentos e suscitando críticas 16 Portugal Venâncio Deslandes é CEMGFA
dos sectores católicos progressistas 17 Portugal Reúne-se o Conselho de Estado; as opiniões
19 Portugal Remodelação do Governo: entram dividem-se quanto à necessidade de substituir Salazar
26 Vietname Gonçalves Rapazote (Interior), Dias Rosas
O líder (Finanças), Beencourt Rodrigues (Exército), 26 Portugal Falando ao País pela RTP, Américo Tomás diz ter
oposicionista Pereira Crespo (Marinha), José Hermano Saraiva decidido nomear Marcello Caetano presidente do Conselho
sul-vietnamita (Educação Nacional), Jesus Santos (Saúde e
Truong Dinh Dzu Assistência) e Canto Moniz (Comunicações) 27 Portugal Pelo Decreto n.º 48 597, Salazar é exonerado das
é condenado funções de chefe do Governo, mantendo as honras inerentes, e
a cinco anos 20 Checoslováquia Fim da «Primavera de para o substituir é designado Marcello Caetano, que toma posse
de trabalhos Praga», com a invasão pelo Pacto de Varsóvia como presidente do Conselho. O novo Executivo inclui: Vaz
forçados por propor a criação de Pinto (ministro de Estado Adjunto do presidente do Conselho
um governo de coligação para pôr 22 Colômbia Paulo VI inicia, uma de Ministros), Sá Viana Rebelo (Defesa Nacional), Rui Sanches
fim à guerra viagem pela América Latina (Obras Públicas) e Cancela de Abreu (Saúde e Assistência).
Permanecem 11 ministros do último Governo de Salazar, entre
Angola A Unita transfere a sede 24 Polinésia A França faz os quais Franco Nogueira (Negócios Estrangeiros), Silva Cunha
para o interior da colónia. Forças explodir a sua primeira bomba (Ultramar), Correia de Oliveira (Economia) e Gonçalves Rapazote
portuguesas destroem, no Lumeje, de hidrogénio, em Fangataufa (Corporações e Previdência). O PCP apoia, num documento
dois acampamentos do MPLA. intitulado O PCP e
A OUA reconhece o MPLA como 28 chade A França intervém o Momento Político
única organização nacionalista militarmente nesta sua ex-colónia Actual, a intervenção
de Angola da União Soviética na
Portugal Num dia não revelado do mês, Salazar Checoslováquia
Moçambique Realiza-se o II cai de uma cadeira de lona, no Forte de Santo
Congresso da Frelimo, na região António, em S. João do Estoril, batendo com 29 Grécia Um
do Niassa; Mondlane é reconhecido a cabeça no chão, e recusa-se a ser assistido pelo referendo aprova uma
como dirigente do movimento, seu médico, dr. Eduardo Coelho. Um comando nova constituição, que
contra a facção liderada por da LUAR tenta ocupar a Covilhã, para declarar confere mais poderes
Kavandam. Forças portuguesas a cidade «zona libertada»; a operação falha à Junta Militar. Guiné
helitransportadas destroem duas e a PIDE prende os elementos do grupo, entre Equatorial Francisco
bases da Frelimo a sueste de os quais Palma Inácio, Carlos Pereira e Fernando Macías é eleito
Mavinga Marques presidente
Apollo 8
Omar Torrijos guerra do Vietname

jogos olímpicos
do méxico

2 Portugal Morre, no hospital onde fora internado devido 5 EUA O republicano Richard Nixon 2 EUA Nixon nomeia
às sequelas da tortura a que tinha sido submetido na PIDE, vence as eleições presidenciais Henry Kissinger seu
o estudante de Direito Daniel Sousa Teixeira. méxico Dez com 301 votos do Colégio Eleitoral, conselheiro para
dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos, uma derrotando o candidato democrata assuntos de segurança
manifestação de estudantes da capital termina Hubert Humphrey (191 votos) e o
num banho de sangue independente George Wallace (46) 8 Portugal O Governo
encerra o Instituto
3 Peru Um golpe militar derruba Belaúnde 8 Portugal O cardeal-patriarca Superior Técnico, a
Terry e coloca no poder o general Velasco de Lisboa assina um decreto em que chama «centro
Alvarado, que institui um regime militar de que exonera Felicidade Alves das de subversão», e
esquerda (a via peruana para o socialismo) funções de pároco de Santa Maria suspende os dirigentes
de Belém e de S. Francisco Xavier, associativos
5 Portugal A polícia reprime, no Porto devido às ideias que aquele
e em Lisboa, manifestações da oposição, padre defendeu, na sua exposição 9 Portugal Estudantes de Lisboa decretam
comemorativas do 5 de Outubro ao Conselho Paroquial de Belém. «luto académico» pelo encerramento do IST
Dois dias depois, Felicidade
7 Portugal A PIDE apreende o livro de Francisco Alves havia de declarar ao Diário 16 Portugal Os socialistas aprovam um
Salgado Zenha Notas sobre a Instrução Criminal de Notícias que os processos Manifesto à Nação, que a censura não deixa
inquisitoriais não tinham ainda publicar, onde se exige liberdade de expressão,
8 Vietname Os americanos lançam a Operação Sealords acabado, em Portugal amnistia para os presos políticos e eleições livres

OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO


10 Portugal É criada a Secretaria de Estado da Informação 10 Portugal O Conselho de 20 EUA Morre de ataque
e Turismo (SEIT), que substitui o SNI, embora tenha idênticas Ministros autoriza Mário Soares a cardíaco, com 66 anos, o famoso
funções regressar de S. Tomé. O Conselho escritor John Steinbeck.
de Segurança da ONU condena
11 EUA É lançada de Cabo Portugal por promover incursões 21 EUA É lançada a Apolo 8,
Kennedy a Apollo 9, a primeira das suas tropas em território do a primeira missão tripulada
missão tripulada deste Zaire a orbitar a Lua Portugal
programa. Panamá O coronel Amnistia para o crime de
Omar Torrijos encabeça um 11 Vietname É desencadeada a emigração clandestina; as
golpe de estado contra o Operação Commando Hunter, remessas dos emigrantes
presidente Arnulfo Arias e destinada a cortar a entrada de (1 400 000 portugueses)
torna-se o homem forte do país abastecimentos ao Vietcong pela atingiam 20 milhões de contos em
estrada de Ho Chi Minh, através divisas, que o Governo utilizava para combater
12 México São inaugurados do Laos o défice da balança comercial
os XIX Jogos Olímpicos da era
moderna. Guiné Equatorial 18 URSS A sonda espacial Zond 6
Com este nome, torna-se regressa à Terra, após ter dado a volta
independente a colónia africana à Lua
espanhola de Rio Muni
16 México Os atletas afro-americanos Tommie Smith e John
Carlos fazem, no pódio, a saudação do Black Power. Jamaica
Tumultos estalam em Kingston após a expulsão de Walter
Rodney, defensor do Black Power no Caribe. Portugal
César Moreira Baptista é nomeado secretário de Estado da
Informação e Turismo
23 Coreia A tripulação do Pueblo é libertada,
19 Suécia É anunciado em Estocolmo que o escritor japonês após 11 meses de cativeiro Portugal Os Estudos
Yasunari Kawabata é o vencedor do Nobel da Literatura Gerais de Angola e Moçambique tornam-se
universidades
20 Grécia O multimilionário grego Aristóteles Onassis
e Jaquelinne Bouvier, viúva de John Kennedy, casam-se 22 Reino Unido Os Beatles lançam 25 Portugal A RTP 2 emite para Lisboa
na ilha de Skorpios o seu White Album
26 Portugal São considerados eleitores da
24 Portugal O chanceler da Alemanha Federal, Kurt 27 Portugal O cardeal-patriarca Assembleia Nacional os cidadãos maiores ou
Kiesinger, visita oficialmente o País inaugura a Universidade Católica emancipados que saibam ler e escrever ou que já
de Lisboa tenham sido recenseados. É alterada a orgânica
31 EUA Johnson anuncia a cessação total dos da PIDE (3 207 funcionários, 1 187 no Continente)
bombardeamentos do Vietname do Norte a partir do dia Portugal A ONU aprova
seguinte uma resolução contra a política Portugal Numa vigília, na Igreja de S.
«ultramarina» portuguesa. Domingos, 200 católicos condenam a política
Portugal Decorre no Palácio da Ajuda, em Lisboa, uma Trabalhadores ferroviários estão «ultramarina» do Governo. A UNESCO recusa
reunião da NATO, em vários países criticam a política colonial em luta por aumentos salariais. colaborar com o Portugal colonialista e racista.
portuguesa. Efectua-se, algures no País, a 4.ª Convenção São condenados a prisão, no Os 2 mil trabalhadores da Lisnave fazem
da Acção Socialista Portuguesa (ASP), embrião do PS. Tribunal Plenário de Lisboa, greve por melhores salários. Albino dos Reis
São detidos pela PIDE familiares de presos políticos que militares que se declaram é presidente da Comissão Central da UN e
se manifestavam, exigindo que estes fossem amnistiados. marxistas-leninistas. Estudantes o «liberal» Melo e Castro, presidente da sua
Spínola, em documento oficial, afirma: «Não hesitamos em manifestam-se em Coimbra Comissão Executiva
considerar como uma triste realidade a situação que hoje se pela autonomia da Universidade,
vive na Guiné, situação que abrange o aspecto económico- liberdade de expressão e eleições Angola Começa a extracção de petróleo em
-social e o aspecto militar» livres Cabinda, pela americana Cabinda Gulf Oil
1968 MAIO DE 68

22 v
FOTO: BRUNO BARBEY/MAGNUM

O
mais

v
longo
mês de
23
Maio
1968 MAIO DE 68

Em Maio de 68, nas ruas


de Paris, os estudantes
reclamam a libertação da
sexualidade, da palavra,
das hierarquias. A princípio
tolerante, a sociedade
francesa volta-se contra
eles quando pisam o risco
entre violência e guerra civil
• por Ana Navarro Pedro em Paris

N
N
o começo, tudo foi sexo. Ou
quase. Na Universidade de
Nanterre, um subúrbio po-
bre de Paris, o ministro da
Educação, muito solene,
inaugura uma piscina como
mais um sinal da moderni-
zação da França. Estamos
em Janeiro de 1968. A juba
ruiva de um estudante de So-
ciologia ainda anónimo, Daniel Cohn-Bendit,
atravessa o cortejo para se plantar em frente do
ministro e reclamar o direito de entrada dos ra-
pazes nas residências universitárias para rapa-
rigas. «Se tem problemas sexuais, vá tomar um
banho de água fria», responde o ministro. Teria
uma resposta diferente mudado o curso da His-
tória? Desde 1962 que os estudantes nas cidades
universitárias francesas reclamam a igualda-
de de tratamento entre rapazes e raparigas e o
direito de livre circulação entre as respectivas
residências. Isto acontece numa França que já
esqueceu as privações e o terror da II Guerra
Mundial. O pleno emprego impera no país. A
prosperidade da classe média envia centenas de revolucionárias mas que, naquela França do
milhares de estudantes para as universidades, velho general De Gaulle, acabam todas por se
que deixam de ser um templo para uma elite. cristalizar numa difusa mas obcecante revolta
Nos campus franceses comunga-se de uma contra as hierarquias rígidas e sufocantes da
FOTO: BRUNO BARBEY/MAGNUM

mesma revolta com os colegas americanos con- sociedade.


tra a guerra no Vietname. Segue-se com fervor
a Primavera de Praga, que promete um socia- ‘RAIVOSOS’
lismo de rosto humano no Leste da Europa. Daniel Cohn-Bendit não tomou um banho de
Fervilham mil ideias e teses mais ou menos água fria. O jovem, de nacionalidade alemã y

24 v
BATALHA CAMPAL
O ELEGANTE OMNIPRESENTE Estudantes e polícias
defrontam-se,
Com a idade, o antigo maoísta mostrou-se cada vez mais preocupado a partir de 3 de Maio,
em dar de si uma imagem de elegância. Comentador político na no Quartier Latin,
televisão e na rádio, foi um pilar do microcosmo mediático parisiense naquela que é a
até 2006. Nesse ano teve de deixar a direcção do diário Libération imagem da marca do
(fundado em 1973 por Jean-Paul Sartre) a pedido do principal accionista «Maio de 68»
SERGE JULY
e de uma parte da Redacção. Mas a sua omnipotência mediática
contribuiu muito, durante 33 anos, para o enfado das gerações
seguintes com os líderes do Maio de 68.

v 25
1968 MAIO DE 68

PALAVRAS-CHAVE y – os pais, judeus, tinham fugido da Alema-


nha nazi nos anos 30 e Dany, nascido em Fran-
BARRICADA
O corte das ça, teve o estatuto de apátrida até aos 14 anos
ruas com muros –, continua a namorar muito, a militar ainda
improvisados mais e a estudar, apesar de tudo.
feitos de pedras
A 22 de Março, é a faísca que vai atear o
ou outros
objectos tornou- Maio de 68. Diversos estudantes são presos
se um símbolo numa manifestação contra a Guerra do Vie-
das revoltas tname. Em reacção, Cohn-Bendit leva outro
parisienses
desde o tempo
grupo de estudantes a ocupar a torre adminis-
das Guerras de trativa da Universidade de Nanterre e a fundar
Religião, no século o Movimento 22 de Março, que será dos mais
XVI. O Maio de 68 activos na revolta do Quartier Latin. Seis dias
não fugiu á regra
depois, o reitor suspende as aulas em Nanter-
AG Durante os re. Os «raivosos (o adjectivo é do reitor) de 22
acontecimentos de Março» são convocados pelo conselho de
de Maio, todas
as decisões disciplina universitário. A agitação prossegue
importantes, tanto durante todo o mês de Abril, com inúmeros in-
a nível estudantil cidentes entre estudantes e polícia. Nos Estado
como operário,
Unidos, Martin Luther King é assassinado.
eram tomadas em
Assembleia Geral No dia 2 de Maio, Cohn-Bendit organiza um
(AG): continuação dia «anti-imperialista» em Nanterre. Excedido,
ou não das greves, o reitor suspende as aulas. No governo, o minis-
ocupação de
edicios, etc
tro da Educação quer o encerramento puro e
simples da Universidade. O conflito transborda
de Nanterre para a Sorbonne, onde três cente-
nas de estudantes decidem ocupar o pátio.
Ao fim do dia, assombro: os uniformes da
polícia desembarcam no pátio da Sorbonne
(que desde a Idade Média era uma zona pro-
tegida de qualquer intervenção das forças da
ordem) e prendem toda a gente. Nas ruas à
volta, os estudantes protestam contra a prisão
dos condiscípulos. Os primeiros incidentes re-
bentam e degeneram em confrontos violentos.
«Libertem os nossos camaradas»: estas pa-
lavras de ordem tornam-se no catalisador mais
poderoso da revolta, trazendo à rua os estu-
dantes não politizados, mas agora indignados.
Durante uma semana, entre o governo que

O CANSAÇO DO ‘MITO VIVO’


Ícone anarquista do Maio de 68, expulso de França até 1975, instalou-se
na Alemanha, onde se especializou primeiro nas questões de imigração
FOTO: HENRI CARTIER-BRESSON/MAGNUM

e de ecologia na Câmara de Frankfurt, distinguindo-se pelo seu


pragmatismo. Garante que adora continuar a ser um «mito vivo», mas
no começo de 2008 sentiu a necessidade de enterrar a bandeira negra
DANIEL
COHN-BENDIT de há 40 anos, declarando: «O Maio de 68 terminou, acabou, passou.»
Actualmente é deputado europeu dos Verdes alemães

26 v
LEGENDA Ainda odolore te duisl duipiss enisci tin vullamet vulla

mantém o Quartier Latin sitiado, e os estudan- Jacques Sauvageot, vindo do sindicalismo es- REVOLTA
tes cada vez mais numerosos e vindicativos, é a tudantil, seduz mais com o seu sentido de hu- Grandes
escalada. De norte a sul, as greves alastram nas mor, e um certo Bernard Kouchner consegue manifestações
estudantis
universidades. já na altura aparecer nas fotos com o melhor enchiam as
Primeiro algo amorfo, o movimento encontra perfil, bem destacado dos camaradas. avenidas da Rive
depressa os seus líderes, à volta de (ou contra) Gauche em Maio
Cohn-Bendit. Trotskistas como Alain Krivine NOITEDEBARRICADAS de 1968
ou maoístas como Serge July e Alain Geismar Sexta-feira, 10 de Maio. Primeira noite de bar-
têm uma capacidade de palavra empolgante. ricadas. Cerca das 20 horas, um cortejo de y

v 27
1968 MAIO DE 68

O ‘SOIXANTE-HUITARD’ QUE SE RETIROU CEDO


Hoje director da Escola de Belas Artes de Rennes, retirou-se da política
logo em Junho de 1968, mas há 40 anos, em Maio, as estudantes
adoravam o líder bonitão, sempre de gola alta e com um corte de
cabelo romântico. Pouco lhes importava que fosse sindicalista e
socialista. «Não se deve tentar compreender tudo sobre Maio de 68»,
JACQUES
SAUVAGEOT avisou Sauvageot em Fevereiro de 2008. Foi a sua única intervenção
pública neste 40.º aniversário.

UMA PAUSA DE VINTE ANOS


Senador socialita, ex-trotskista, manteve-se afastado da política
durante quase 20 anos para se consagrar à investigação, ao ensino e
para tomar conta dos filhos enquanto cresciam. Só depois regressou à
política.
HENRI WEBER

PALAVRAS-CHAVE y 30 mil pessoas sobe o célebre Boulevard Neste sábado, 11 de Maio, a população, em es-
Saint-Michel. Cohn-Bendit dá uma ordem: tado de choque, vira-se a favor dos estudantes
SIT-IN A expressão,
em inglês, que «Já que a polícia ocupa a Sorbonne, vamos nós matraqueados, contra a polícia e contra o go-
significa ‘ocupar ocupar o Quartier Latin à volta da Sorbonne.» verno. Em «solidariedade com os estudantes
determinado Pouco depois, uma barra de ferro arranca as e em protesto contra a brutalidade policial»,
lugar, sentando-
primeiras pedras da calçada. Os paralelepípe- os sindicatos anunciam uma greve geral para
se’, recupera uma
prática lançada na dos de granito passam de mão em mão, cadeias segunda-feira, 13 de Maio, com uma manifes-
Índia por Gandhi humanas começam a formar-se e aparece uma tação em Paris.
e relançada na barricada. Num piscar de olhos, milhares de
década de 1960
pelos estudantes
braços, em todo o Quartier Latin, amontoam GREVECHEGAAO‘FRENCHCANCAN’
americanos tábuas de madeira, pedras, grades metálicas, No domingo, o primeiro-ministro, Georges
em protesto carros. O ambiente ainda é eufórico. Mas, à Pompidou, anuncia a reabertura da Sorbonne.
contra a Guerra medida que o tempo passa, a tensão cresce. Às Mas, no dia seguinte, 300 mil manifestantes
do Vietname:
um grupo de
2 e 15 da madrugada, a polícia lança o assalto atravessam o Quartier Latin ainda devastado.
manifestantes contra a «fantochada». Na primeira fila, Cohn-Bendit parece estar
pacíficos senta-se A luta é terrível. A polícia de intervenção nas suas sete quintas. A vitória dos estudan-
no chão, em plena dispara 7 mil granadas lacrimogéneas nessa tes é total: em oito dias, vergaram o poder
rua, e interpela
a opinião pública noite. Os estudantes bombardeiam os polícias gaullista e o seu velho chefe. «Dez anos, já
sobre as razões com dezenas de milhares de pedras. Às 5 horas, chega», «De Gaulle, demissão», gritavam os
da sua luta. Houve as forças policiais obtêm o controlo do bairro estudantes.
também sit-ins sublevado. Este dia 13 de Maio marca a passagem de
no Maio de 68
francês À hora do pequeno-almoço, os franceses des- testemunho entre o movimento estudantil e o
cobrem uma cena de guerra. As ruas à volta da mundo dos adultos trabalhadores. Marca tam-
Sorbonne parecem um campo de ruínas e os bém o começo de negociações de bastidores en-
parisienses galgam prudentemente os restos tre o poder e os sindicatos que vão marginalizar
das barricadas. os estudantes. Mas eles ainda não o sabem.
O balanço da noite cai a meio da manhã: mil No dia seguinte ao gigantesco desfile sindi-
feridos, 50 dos quais em estado grave, e 500 cal, o general De Gaulle, depois de muitas hesi-
prisões. Em todo o país a emoção é grande. tações, decide levar avante uma visita oficial à

28 v
PRÓXIMO DO TERRORISMO ESQUERDISTA
Está hoje reformado da carreira que fez no ensino depois de ter
namorado com os «anos de chumbo» em França. O antigo líder do Maio
de 68 fundou (com Serge July) a Esquerda Proletária, um movimento
maoísta que quase derivou para o terrorismo de extrema-esquerda nos
anos de 1970, o que lhe valeu ser condenado à prisão depois de um
AIN GEISMAR processo espectacular.

UM SÍMBOLO DO TROTSKISMO
Embora reformado da política, o trotskista do Maio de 68 continua,
a ser um porta-voz da Liga Comunista Revolucionária (LCR), que
fundou em 1966. Antes de se reformar, escolheu para lhe suceder
como figura mediática da LCR um jovem carteiro, Olivier Besancenot,
que prossegue com brio a obra do seu mentor: dar dores de cabeça
AIN KRIVINE aos governantes em cada movimento social a pretexto de prometer a
grande revolução.

Roménia do ditador Nicolai Ceaucescu. Quan- do Odéon, ocupado, na rua, nas fábricas, em PALAVRAS-CHAVE
do De Gaulle regressa a Paris, quatro dias de- todo o lado, fala-se, fala-se, fala-se. De tudo e
SITUS Este era um
pois, a França está paralisada por uma greve. de nada. termo utilizado
O movimento alastrou à velocidade da luz. A Os muros também tomam a palavra, atra- para designar
greve começou nas fábricas e contaminou os vessados por slogans insolentes: «É proibido familiarmente os
situacionistas (ou
transportes, os laboratórios, os bancos, a cons- proibir.» «Sous les pavés, la plage» (debaixo conservadores);
trução civil, as seguradoras, as repartições da das pedras, a praia). «Sejam realistas, peçam muitos
segurança social: em menos de uma semana, o impossível.» «Quanto mais faço a revolu- desconhecem
7 milhões de empregados pararam o trabalho. ção, mais vontade tenho de fazer amor. Quanto é que já havia
em 1968 uma
A revolta estudantil serviu de detonador ao mais faço amor, mais vontade tenho de fazer a Internacional
maior movimento grevista da história social revolução.» Situacionista,
francesa. fundada em 1957
Os ecrãs do Festival de Cannes são apagados ALINHAVERMELHADAGUERRACIVIL por Guy Debord
pelos realizadores da Nouvelle Vague, Jean- A 22 de Maio, Daniel Cohn-Bendit é expulso
Luc Godard, François Truffaut, Louis Malle. de França. Numa manifestação de solidarieda-
Os bailarinos da Ópera recusam-se a dançar, e de com o anarquista alemão, os manifestantes
até as meninas das Follies Bergères se vestem e gritam: «Somos todos judeus alemães.»
fazem a greve do french cancan. No dia seguinte, nova noite de barricadas.
Não há metro nem autocarros, não há com- A atmosfera parece estar carregada de elec-
boios e não há aviões. De norte a sul, a França tricidade. Pequenos grupos dispersam-se em
atola-se em engarrafamentos gigantescos – até Paris. Um deles incendeia a Bolsa. Elementos
a gasolina faltar. Uns tiram todo o dinheiro fora de controlo rebentam montras, abatem
dos bancos e outros fazem grandes provisões árvores, incendeiam carros. Um polícia morre
de açúcar, farinha e óleo. A França instala-se nos confrontos de Lyon. A violência atinge um
numa greve longa. E, neste clima estranho, paroxismo que assusta.
acontece aquilo que ainda hoje é a melhor re- Um nada teria chegado para que tudo des-
cordação de Maio de 68 para quem o viveu: as cambasse. Para muitos historiadores, a linha
pessoas falam. vermelha que separa a violência e a guerra civil
Agora, tudo é verbo. Na Sorbonne, no teatro foi pisada nessa noite. De manhã, os franceses y

v 29
1968 MAIO DE 68

UMA VIRAGEM DE 180 GRAUS


Sobraçar a pasta dos Negócios Estrangeiros era o seu sonho desde
a fundação dos Médicos sem Fronteiras, logo a seguir ao Maio de
68. Oficialmente socialista, é o chefe da diplomacia de um governo
de direita, com o qual partilha a admiração pela política externa
americana. Antigo administrador da ONU no Kosovo, perdeu a seguir
BERNARD muito da sua aura em França ao redigir, por 25 mil euros, um relatório
KOUCHNER que ilibava a companhia petrolífera Total de ter beneficiado de mão-
68 ANOS -de-obra escrava na Birmânia, em cumplicidade com a junta militar.

PALAVRAS-CHAVE y acordam com medo. A opinião pública volta- manifestação que deve terminar a centenas de
se contra os estudantes. metros do Eliseu, epicentro do poder: 300 mil
PROVO A
contestação e A 25 de Maio, sindicatos e patronato reú- pessoas reclamam um «governo popular».
o espírito do nem-se no Ministério do Trabalho, na Rua de
Maio de 68 Grenelle, em Paris. As negociações foram pre- DEGAULLEVENCE
ultrapassaram
largamente
paradas nos bastidores por um jovem secretá- A psicose atinge as cúpulas. O general de Gaul-
as fronteiras rio de Estado, Jacques Chirac, que circulava le desapareceu de França, a bordo de um he-
da França; o em Paris de pistola no bolso. licóptero, com a mulher. A incerteza é total.
movimento Dois dias depois, acabam 48 horas de ne- Paris vive horas de loucura. Ninguém sabe que
com este nome
desenvolveu-se na gociações ininterruptas que entram na histó- o herói da II Guerra Mundial foi a Baden-Ba-
Holanda e a sua ria com o nome de «Acordos de Grenelle»: den, na Alemanha, onde estão estacionadas
arma era, como é criado um salário mínimo, concedida uma tropas francesas, averiguar da lealdade dos mi-
o nome indica, a quarta semana de férias, os di- litares ao regime.
provocação
reitos sindicais são protegidos Quinta-feira, 30 de Maio, 16 e
ZENGAKUREN Assim nas empresas. 30. De Gaulle retoma as rédeas
era conhecida
A maior central sindical, a
MITTERRAND do poder com três frases: «Enca-
a Federação
Japonesa das CGT, decreta o regresso ao tra- NÃOAPOIA rei nas últimas 24 horas todas as
Associações balho. Mas a greve continua. OMAIODE eventualidades – sem excepção
Autónomas de Ninguém compreende o que se – e tomei as seguintes resolu-
Estudantes,
passa neste movimento de Maio.
MASVÊNELE ções: nas circunstâncias presen-
que por esta
altura promoveu À crise social junta-se agora a UMACHANCE tes, não serei candidato à minha
manifestações crise política. As administrações DESUCEDER própria sucessão. E dissolvo hoje
violentas em estão paralisadas. Nos gabinetes a Assembleia Nacional.»
Tóquio
ministeriais há quem queime pa-
ADEGAULLE Um milhão de gaullistas ma-
péis confidenciais. Há outros que nifesta-se nos Campos Elísios.
preparam documentos de identi- «Cohn-Bendit para Dachau»,
dade falsos, para seguirem para o estrangeiro. gritam alguns. No dia seguinte, a gasolina rea-
E os mais pragmáticos viram a casaca e pres- parece como por milagre. A 5 de Junho, quase
tam (discretamente) vassalagem ao líder da todo o país está a trabalhar. Os graffiti são apa-
esquerda, François Mitterrand, que não aprova gados das paredes. As meninas das Folies Ber-
o movimento estudantil nem a greve, mas que gères voltam a despir-se para dançar o french
vê neles a ocasião de suceder a De Gaulle. cancan. As eleições legislativas dão uma vitó-
A 28 de Maio, Cohn-Bendit regressa clan- ria esmagadora aos gaullistas. As peripécias
destinamente a França, com o cabelo pinta- de Maio de 68 são só recordações. Mas estão
do de escuro, frisando assim a impotência do já em preparação as leis que irão modernizar a
governo. A 29 de Maio, a CGT organiza uma sociedade francesa, herdadas de Maio.

30 v
PASSADOS 40 ANOS
O Maio de 68 mudou a face da França, mas Sarkozy quer liquidar a herança

U
ns 40 livros sobre o Maio de
68, colóquios, exposições, ar-
tigos, documentários e mon-
tagens sonoras dão vida, 40
anos depois, às explosões de
granadas lacrimogéneas e
chuvadas de pedras. A França celebra os 40
anos do Maio de 68, mas não há nostalgia. Se
a efeméride acaba por ser recordada com tanta
intensidade, o «culpado» é o Presidente con-
servador e anti-Maio de 68 Nicolas Sarkozy.
Foi a 29 de Abril de 2007, na campanha pre-
sidencial. O candidato de direita precisa de um
discurso que lhe dê avanço sobre a socialista
Ségolène Royal. Vai desenterrar o Maio de 68:
«Os herdeiros do Maio de 68 impuseram-nos a SARKOZY E KOUCHNER O PR não poderia casar e descasar na TV se não fosse
ideia de que tudo vale o mesmo, de que não há o movimento em que participou o seu ministro dos Negócios Estrangeiros...
diferença entre o bem e o mal, entre verdade e
mentira (…) de que a vítima conta menos que libertação das regras sociais, da cultura, da
o delinquente.» E a seguir, a pedrada: «Nesta palavra, da sexualidade, da crítica da autori-
eleição, trata-se de saber se a herança do Maio dade.» A sociedade francesa lembrava em cer-
de 68 deve ser perpetuada ou liquidada.» tos aspectos o Portugal da época: as mulheres
Responsáveis das editoras começaram logo a casadas não podiam ter conta bancária nem
abrir as gavetas onde tinham fechado os projec- trabalhar sem a autorização do marido.
tos recusados sobre Maio de 68. Duas gerações Por militância dos anónimos que fizeram
vieram já ao mundo desde a revolta em que era 68, a França adopta leis que mudam o rosto do
proibido proibir. Perguntar aos jovens o que país: legalização do aborto, reforma do divór-
sabem desse período é como inquiri-los sobre a cio, partilha da autoridade parental, igualdade
Revolução Francesa: é uma página num manu- de direitos profissionais mulheres/homens,
al de História. Para as outras gerações, há um reconhecimento do direito sindical nas empre-
cansaço. Mas tudo vai mudar com a promessa sas. Mas não é isto que Sarkozy quer liquidar,
de Sarkozy de «liquidar a herança do Maio de dizem os inimigos da herança cultural de 68.
68». Daniel Cohn-Bendit começa a escrever A contestação incide sobretudo na perda de
um livro, Forget 68: «Não há nada a liquidar, valores morais, frisa o sociólogo Jean-Pierre
mas tudo a reinventar para mudar a política.» Le Goff, autor de Mai 68, l'héritage impos-
E, com a queda para a provocação intacta, su- sible: «Depois de 68 e nos anos 70, há uma
blinha em entrevistas que Sarkozy, divorciado desvalorização esquerdista da nossa história,
duas vezes e casado três, de pai húngaro e de uma crítica da nossa civilização que, na minha
mãe judia grega, nunca teria sido eleito PR opinião, penetrou profundamente na socieda-
FOTO: BENOIT TESSIER/REUTERS

em França sem o Maio de 68 e a libertação dos de francesa. É uma herança impossível porque
usos sociais imposta pela revolta. comporta uma parte de niilismo que não é in-
François Dubet, professor de Sociologia em tegrável na nossa história, e porque está ainda
Bordéus, constata: «Para além do movimento mascarada com demasiados clichés.»
operário, o Maio de 68 é um movimento de Afinal, o debate histórico só está a começar.

v 31
1968 MAIO DE 68

DANIEL BENSAÏD Discurso numa Assembleia de Alunos em Nanterre, na rentrée de 68

‘ Culturalmente ganhámos.
E socialmente?...

Daniel Bensaïd, 62 anos, filósofo, dirigente estudantil de Nanterre, defende que
houve algo de 68 nas revoltas dos anos 90 • por Paulo Pena

O
mundo mudou, no dia a batalha cultural. «Isso espanta-me», mar o Maio de 68 no pecado original,
22 de Março de 1968. confessa o ainda socialista, radical, responsável por todos os problemas
Daniel Bensaïd tinha Bensaïd. «Como podemos ter ganho da sociedade francesa: o desemprego,
22 anos e estudava filo- se, hoje, a situação social é, em cer- a perda dos valores familiares, a per-
sofia em Nanterre. Foi ta medida, bem pior que a de 1968?» da de sentido do esforço individual.
ali, no campus modelo Presente em Lisboa, num colóquio or- Por outro lado, deve-se também ao
do gaulismo, que Marx, o sexo e a li- ganizado pelo Instituto Franco Portu- aumento do discurso do medo, da de-
berdade se misturaram de uma for- guês e pelo Instituto de História Con- sordem, dos carros queimados. Não
ma única e irrepetida. A universida- temporânea da Universidade Nova, sei se foi calculado, mas houve carros
de onde Bensaïd lecciona Filosofia é este ex-dirigente, faz, para a VISÃO, o queimados na revolta dos jovens dos
aquela Paris VIII (Vincennes à Saint- seu balanço da revolta. subúrbios franceses, em 2005.
-Denis) que o governo francês criou
para destapar a panela de pressão do Porque acha que «liquidar a herança E isso tem eco na sociedade?
Maio de 68 (e há quem diga: para ti- de 68» ainda faz parte do programa É um pouco estranho e surpreen-
rar os estudantes do centro de Paris, político do Presidente Sarkozy? dente para nós, 40 anos depois, este
do Quartier Latin). O seu ex-colega Creio que se trata de um discurso de encarniçamento, e esta raiva, sobre
FOTOS: D.R. E JOSÉ CARIA

Daniel Cohn-Bendit acaba de lançar exorcismo. Acabar com o espectro de 68. Mas creio que a explicação se
um livro em que pede que se esqueça 68 é uma tentativa de exorcizar a cren- deve à necessidade de mobilização
68. «Danny Le Rouge» acredita que ça de que ele possa ressurgir. É um dis- do «partido da ordem e do medo».
os soixant-huitards, afinal, ganharam curso típico, que consiste em transfor- É preciso dizer que hoje, menos de

32 v
um ano depois da eleição de Sar- cordem, para ser franco –, a marca
kozy, essa operação foi completa- mais forte do Maio de 68 é um mo-
mente derrotada. Eu próprio fiquei mento simbólico: quando o secretá-
surpreendido, mas o mais recente rio-geral da CGT apresentou, perante
estudo de opinião do Nouvel Obser- dezenas de milhares de trabalhado-
vateur indica que 75% dos franceses res, em Boulogne-Billancourt, os re-
têm uma imagem positiva do Maio sultados das negociações, e foi vaiado.
de 68. É claro que estes dois terços O resultado foi vaiado. Isto demons-
mostram uma opinião que, como em trou que existia uma brecha. Hoje
todas as sondagens, se deve a razões temos dificuldade em acreditar que,
agregadas: uns estão satisfeitos pela naquela altura, a CGT tinha 3 milhões
legalização do aborto, outros pelo de filiados, hoje tem menos de 700
aumento da liberdade… FOIUMPOUCO mil, já contando com os reformados.
O Partido Comunista tinha entre 20
A bandeira anti-68 correu mal? ESTRANHO e 25% dos votos, e tinha um controlo,
Nessa mesma sondagem, 77% das PARANÓS quase um monopólio, sobre a maio-
pessoas dizem – e isto talvez seja ain- ANOS ria dos trabalhadores. Por isso, entre
da mais significativo – que se esti- estudantes e trabalhadores, em 68,
vessem em 68, estariam ao lado dos DEPOISESTA havia um muro de desconfiança. Não
estudantes e dos grevistas. O que de- RAIVAANTI-’ era uma desconfiança espontânea,
monstra que a operação de Sarkozy mas construída, principalmente pela
falhou rotundamente. CGT e pelo PCF. Hoje, esse muro foi
1975. O argumento de Cohn-Bendit destruído. Isso é positivo.
O discurso autoritário tem crescido… é que, culturalmente, nós ganhámos.
Sim. Acho que há uma mudança no E isso espanta-me. É claro que ga- O seu balanço é, então, positivo?
próprio discurso liberal. Deixou de nhámos alguma coisa: há mais liber- Por um lado, os trabalhadores estão
haver um acento no liberalismo eco- dade, mais autonomia individual. menos organizados e, por isso, me-
nómico para se passar a um liberalis- Mas, o que foi, na época, uma das nos capazes de resistir à brutalidade
mo autoritário. O que, em rigor, não nossas grandes conquistas, a liberda- da ofensiva neoliberal. Mas, por ou-
é novo, já Toqueville era um feroz de individual, entrou muito bem no tro lado, estão menos controlados
defensor do colonialismo na Argélia. esquema actual do indivíduo-con- por aparelhos e mais livres para lu-
Sempre houve uma face escondida correncial, da ideologia neoliberal. tas espontâneas.
do liberalismo que defende um Es- Culturalmente ganhámos, mas so-
tado forte, disciplinador e autoritá- cialmente? Como podemos ter ga- Há cinco anos pensou-se que o
rio. Costumo dizer, com um pouco nho se, hoje, a situação social é, em movimento antiglobalização podia
de ironia, que o modelo de Sarkozy certa medida, bem pior do que a de ser o novo Maio de 68. Hoje, tal não
é a China… Mas essa questão leva- 1968? Num país como a França, que parece provável…
-me, também, a fazer uma avaliação não é propriamente um país pobre, Eu não acreditava nisso na época, e
crítica da forma como a imprensa há 7 milhões de trabalhadores po- hoje ainda acredito menos… Na his-
apresenta o Maio de 68: uma revolu- bres e 3 milhões de desempregados. tória, nada se perde totalmente. Ha-
ção cultural e antiautoritária. Para os estudantes de 68 havia uma via algo de 68 nas várias revoltas dos
desconfiança face ao futuro, mas não anos 90 (os zapatistas, as greves em
E não foi apenas isso? tínhamos medo de não ter emprego. França, as manifestações de Seattle).
Até mesmo uma pessoa que teve, em Hoje, a situação é muito diferente. A ilusão, para alguns, era fazer do
Maio, um papel importante, como movimento uma espécie de sujeito
Cohn-Bendit, tem essa versão e aca- Qual é, para si, a marca mais forte que social unificado. Eu creio que não.
ba de publicar um livro chamado subsiste do Maio de 68? O termo Fórum era bom, porque é
Forget 68 em que diz que 68 acabou. Para mim, e esta é uma apreciação um lugar de troca entre projectos po-
É claro que acabou… Como o 25 de muito subjectiva – com a qual não líticos diferentes. Aí, a sua capacida-
Abril, aqui em Portugal, acabou em creio que a maioria das pessoas con- de não está esgotada.

v 33
1968 MAIO DE 68

UM EMBAIXADOR
EM ALERTA VERMELHO
A contenção de Marcello Mathias não impede
o recurso a cores vivas nos telegramas confidenciais
enviados para Lisboa sobre a revolta em França
e a resposta do presidente De Gaulle • por Pedro Vieira

A
larmado com o colapso der o voto do telegrama de 31 de
da autoridade, logo no Maio: «Que juntamente com a Fran-
telegrama recebido e ça se salve De Gaulle, que porventura
decifrado em 17 de Maio terá errado na sua apreciação da po-
de 1968 no Palácio das lítica planetária a que se consagrou
Necessidades, quando a com prejuízo e abandono da política
situação em França se torna «extre- interna, mas a quem Portugal tanto
mamente séria», o embaixador em deve, desde a grande traição e aban-
Paris se pergunta sobre qual a reac- dono a que fomos votados pelo mun-
ção das forças militares e policiais do anglo-saxónico e americano.»
«nesta época de anarquia que lembra Poeta e romancista, Marcello
época Kerensky na Rússia de 1917». Mathias já tinha rematado o seu tele-
Primeiro-ministro russo em 1917, grama recebido em 26 de Maio com
Alexander Kerensky acabou por pre- uma citação de um grande escritor
parar o caminho a Lenine, tornando- francês: «Nunca tanto como hoje
-se assim o símbolo de um governan- compreendi a frase de [Paul] Valéry:
te fraco incapaz de barrar a estrada a 'Nous [autres], civilisations, savons
minorias revolucionárias. maintenant que nous sommes mor-
Em Lisboa, Salazar e o seu minis- telles' ('Nós, civilizações, sabemos
tro dos Negócios Estrangeiros, Alber- agora que somos mortais')».
to Franco Nogueira, tinham todas as
razões para estar preocupados com a DENAPOLEÃOADEGAULLE
explosão política e social em França. Nascido em 1903 e falecido em a fundação da V República (presi-
Pelo receio dos efeitos de contami- 1999, com quase 96 anos, Marcello dencialista), em 1958, e a indepen-
nação, mas, sobretudo, porque Paris Gonçalves Nunes Duarte Mathias dência da Argélia, em 1962. Apesar
era uma das raras capitais que ainda foi embaixador em Paris de 1947 a disso, o embaixador chegou a duvidar
se mostravam compreensivas em re- 1958 e de 1961 a 1971, e ministro de que o homem do Apelo de 18 de
lação à política ultramarina portu- dos Negócios Estrangeiros de 1958 Junho de 1940 por uma França livre,
guesa. No telegrama recebido em 30 a 1961. Graças às suas funções, não com 77 anos em 1968 e que viria a
de Maio, Marcello Mathias chegou a só se encontrou em numerosas oca- morrer dois anos mais tarde, con-
traçar o quadro da «subida ao poder siões com De Gaulle, com o qual, seguisse fazer frente a um processo
de um Governo popular». Seria uma aliás, negociou a entrega a Portugal que parecia incontrolável. O próprio
viragem política de 180 graus que da Colecção Gulbenkian, mas tam- presidente Charles de Gaulle aludiu
poderia criar dificuldades imprevis- bém pôde testemunhar as grandes ao risco de «guerra civil», num dis-
FOTOS: D.R.

tas à continuação da guerra colonial. batalhas do general após o final da curso proferido em 24 de Maio, que,
É neste contexto que se deve enten- II Guerra Mundial, designadamente segundo o telegrama recebido em

34 v
COM O GENERAL DE GAULLE Apesar da ressava-se «dos problemas internos,
admiração pelo presidente francês, intendance [intendência], como pa-
expressa em alguns dos seus telegramas,
rece [que] ele qualificava os proble-
Marcello Mathias mostra reservas quanto
à sua «política planetária com prejuízo mas económicos e sociais, excessi-
e abandono da política interna» vamente confiado no seu prestígio e
no magnetismo da sua personalida-
de». Não é por acaso que De Gaulle
há muito e talvez De Gaulle já tenha se encontrava de visita à Roménia
pensado no trágico destino do antigo enquanto a França se encontrava ao
defensor de Verdun e chefe da França rubro.
de Vichy.» Dois dias antes, Marcello Mathias
Mais remotamente, compara-o a já tinha observado que «este regime,
Napoleão, quando o tendo-se sempre pre-
imperador regressou ocupado apenas com
da ilha de Elba para a 'administração' e
o governo dos Cem «NÓS não com a acção po-
Dias e a derrota em CIVILIZAÇÕES lítica, dominado por
Waterloo frente aos tecnocratas despidos
ingleses. «Queira a
SABEMOS de sensibilidade polí-
providência que estes AGORAQUE tica e de contacto com
próximos cem dias sal- SOMOS realidades humanas
vem a França, e o Oci- e sociais, vê-se agora
dente, do caos em que
MORTAIS» perplexo e impotente
este país se vem lenta, perante a hostilidade
26 de Maio, representava «a última mas gradualmente Paul Valéry, citado da generalidade da
por Marcello Mathias
tentativa deste para se manter no afundando», escreve população e o estado
poder e evitar que este país soçobre em 31 de Maio. insurreccional em que
no caos». A actuação do presidente Char- se encontra Paris, bem como as gra-
Marcello Mathias perscruta os les De Gaulle não estava isenta de ves desordens de Lyon, Estrasburgo e
pensamentos que por aqueles dias reparos devido ao seu afastamento Nantes, etc.».
dilaceram o seu espírito: «De Gaulle da política interna, que as «grandes
[...] encontra-se presentemente pe- qualidades de tacto, inteligência e 'COMOJÁHÁGASOLINA'
rante a grande decepção não só hosti- firmeza» do primeiro-ministro, Ge- Se dúvidas e receios o embaixador
lidade geral, mas actualmente peran- orges Pompidou, não chegavam para teve em relação à capacidade de o
te uma dúvida sobre a forma como a compensar. Ao mesmo tempo que presidente francês agarrar as réde-
História julgará o seu próprio perso- se consagrava «a uma visão plane- as da situação, houve um momento
nagem ante a falência e malogro final tária da política externa», escreve o em que elas se desfizeram. Esse mo-
da sua acção. Pétain não desapareceu embaixador em 27 de Maio, desinte- mento teve um dia e uma hora, y

v 35
1968 MAIO DE 68

y 30 de Maio às 16 e 30, guerra civil». Um perigo que a 6 de


quando o «General De Gaul- Junho o representante português ain-
le falou pela rádio à nação» da destacava: «Waldeck-Rochet e seu
e anunciou que «decidira partido [comunista], possuindo
continuar na Presidência da uma maturidade política muito
República para o que tinha a maior, receiam que a prolongar-
legitimidade que lhe conferiu -se a grave situação económica e
o povo francês» e que iria dis- política actual, De Gaulle tenha de
solver a Assembleia Nacional e declarar estado de emergência e de
convocar eleições «fixadas nos recorrer à intervenção das forças
termos e prazos previstos na armadas. Tal eventualidade pode-
Constituição». Segundo Mar- ria acabar na instalação de uma
cello Mathias, num dos telegra- ditadura militar (com De Gaulle
mas recebidos em 31 de Maio, ou sem De Gaulle) ou numa ver-
«o admirável discurso do gene- dadeira guerra civil que continua
ral De Gaulle foi curto, incisivo potencialmente presente.»
e mordaz. Foi dito com uma energia O embaixador não arrisca prog-
leonina que impressionou tanto os nósticos sobre os resultados das
seus partidários como os próprios ad- eleições a duas voltas marcadas
versários do regime. Aqueles porque para 23 e 30 de Junho. Uma das
já desanimavam e perdiam a fé, agora incógnitas é o sentido de voto de
recuperada. Estes porque já estavam 2 milhões e 500 mil novos eleito-
afanosamente negociando e distri- res, entre os 21 e os 26 anos. Mas a
buindo os vários ministérios no fu- RECEIOS Num dos seus despachos, verdade é que um mês mais tarde
turo governo demo-social-comunista, Marcello Mathias alerta para pôde escrever: «Derrota comunista
como se De Gaulle fosse um persona- a eventualidade do Centro Cultural e dos grupos esquerdistas [nas elei-
ou a Embaixada serem «objectivo
gem póstumo e a sua ressurreição um de qualquer tentativa de assalto» ções para a Assembleia Nacional]
escândalo inacreditável. Na sua alocu- toma proporções de verdadeira ca-
ção, De Gaulle encontrou o comoven- tástrofe, sendo de esperar que este
te diapasão dos grandes momentos da que qualquer fait divers pode romper. desastre tenha repercussões desen-
sua carreira. [...] Independentemente Mas como já há gasolina, dezenas de corajantes na agitação académica
de qualquer juízo de valor sobre o ho- milhares de parisienses saíram de Pa- que se vinha já afirmando noutros
mem de Estado, é impressionante e ris para o week-end.» países.» No mesmo telegrama, Mar-
admirável este velho lutador, que nem Não faltou quem não tivesse gos- cello Mathias prevê a partida do
os anos nem as desilusões desenco- tado de ouvir o presidente. Nomea- presidente: «Pessoalmente creio
rajaram e faz frente à adversidade e damente François Mitterrand, que que este imenso êxito das forças na-
às trágicas circunstân- 13 anos mais tarde cionais de França virão a consentir,
cias actuais e recria, viria a conquistar o dentro de algum tempo, que o ge-
com o charme da sua Palácio do Eliseu, e o neral De Gaulle renuncie ao poder.»
fulgurante persona- «OADMIRÁVEL líder comunista, Wal- Demitir-se-ia quando, em Abril de
lidade e com a magia DISCURSO deck Rochet, que se 1969, saiu derrotado do referendo
da sua palavra, uma insurgiram «indigna- sobre a regionalização.
nova esperança numa
DOGENERAL damente contra o dis-
grande parte da popu- DEGAULLE curso proferido por De EAGULBENKIANEMPARIS?
lação francesa». E a 3 FOICURTO Gaulle que acusam de A viragem política e psicológica desen-
de Junho, o embaixa- ter usado uma lingua- cadeada pelo discurso de De Gaulle
dor deixa este registo
INCISIVOE gem cheia de ameaças não fez parar, como por encanto, as
desanuviador: «Há MORDAZ» que conduzirá inevi- situações de ocupação, greves e para-
um equilíbrio instável tavelmente este país lisia dos serviços essenciais.

36 v
O MINISTRO FRANCO NOGUEIRA E O PRESIDENTE JOHN KENNEDY Marcello Mathias queixa-se da «grande traição e abandono
a que fomos votados pelo mundo anglo-saxónico e americano»

Data de 7 de Junho um telegrama recer protecção desse Governo.» ram Director da mesma casa e sua
confidencial assinado pelo ministro Em 26 de Maio, Marcello Mathias mulher a instalarem-se naquele Cen-
dos Negócios Estrangeiros e dirigido já havia informado que «vários pa- tro Cultural». Esclarece, porém, que
à Embaixada de Portugal em Paris, vilhões cidade universitária entre os «no Quai d'Orsay foi-nos respondido
que mostra a preocupação em rela- quais Argentina, Grécia, Espanha que de momento estas autoridades
ção à Fundação Gulbenkian na capi- e Portugal etc. foram ocupados por não estão em condições de intervir
tal francesa. «Temos notícia Instituto estudantes esquerdistas e operários para restabelecer a ordem e reins-
Britânico nessa cidade foi ocupado (entre ocupantes contam-se portu- talar autoridades legítimas nas ca-
estudantes que passaram designar gueses)». Na resposta ao pedido do sas ocupadas». De qualquer modo, o
instalações por 'Instituto Popular'. ministro Franco Nogueira, o embai- embaixador prepara o Governo para
Receamos que Centro Português da xador será mais pormenorizado. As- a eventualidade de o Centro Cultural
Fundação Gulbenkian no Palácio Iéna sim, escreve em 8 de Junho, «esta ou a Embaixada serem «objectivo de
possa ser vítima do mesmo assalto. Embaixada tem estado em perma- qualquer tentativa de assalto», refe-
Como Vexa sabe encontram-se nente contacto com Centro Cultu- rindo que a Sorbonne continua ocu-
ali espécies bibliográficas de valor ral Franco-Português e Director do pada revolucionariamente com ban-
e quadros importantes. Pensamos mesmo Centro tem por mais de uma deiras encarnadas e pretas. «É meu
por isso que seria conveniente pro- vez informado autoridades Prefeitu- dever pedir atenção de Vexa para a
curar conseguir essas autoridades ra dos receios a que alude telegra- precariedade das garantias ou segu-
protegessem segurança referido pa- ma de Vexa. Praticámos oportuna- ranças de que nesta matéria pode-
lácio evitando mesmo fosse objec- mente junto Quai d'Orsay diligência remos dispor uma vez que próprios
to desacato ou semelhante 'ocupa- relativa situação derivada ocupação franceses reconhecem a sua impossi-
ção'. Casa Portugal na Sorbonne é casa dos estudantes portugueses na bilidade assegurá-la.»
propriedade francesa mas Palácio cidade universitária onde têm sido
Correspondência disponibilizada pelo Arquivo
FOTOS: D.R.

Iéna é propriedade privada estran- realizadas depredações de vária or- Histórico-Diplomático do MNE. Optou-se por
geira pelo que julgamos deverá me- dem, furtos e violências que obriga- transcrever textualmente os telegramas

v 37
1968 MAIO DE 68

COIMBRA, 1969 A manifestação em frente ao edicio de Matemáticas, quando Alberto Martins desafia a hierarquia académica

PORTUGAL, UMA LONGA MARCHA


O pós-68 marcou um crescimento da radicalização. Estudantil e não só.
Durou até 1975, o nosso Maio • por Sílvia Souto Cunha e Paulo Pena

F
ora dos corredores políticos, poisos da lisboeta Avenida de Roma, Técnico e da Universidade Católica
as caixas de correio eram cai- falava-se disto mas também de cine- organizavam movimentos de ajuda.
xas confessionais: aí chega- ma, de música, e talvez dos joelhos Apercebemo-nos, então, de como vi-
vam bilhetes escrevinhados revelados por saias que subiam. Abri- via o resto do País: era uma sociedade
em Angola, Moçambique, ra em 1965, em Lisboa e no Porto, a classista e fechada, com cada um no
Guiné. Maridos, irmãos, loja Os Porfírios, que acompanhava seu lugar.» A viragem para a Europa
amigos, lá faziam a guerra colonial, as tendências rebeldes de Carnaby acentuou-se, defende ela, com a Pri-
alheados do grito que se ouvia em Pa- Street. Os seus clientes ouviam yé- mavera marcelista, mas «a democra-
ris: «L'imagination au pouvoir.» A yé, rock'n'roll, psicadelismo, trazidos tização social só acontece em 1974».
imaginação era precisa na «metrópo- pelo programa radiofónico Em Ór- «Pela calada, uma juventude repri-
le», e rumorejava em vários lugares. bita. Ou Beatles, Beach Boys e Jimi mida em casa começara a libertar-se
Em Abril de 1968 houve outros mo- Hendrix, ensaiados em versões na- cá fora», descreve, lembrando que as
vimentos grevistas que nada tinham cionais prudentes, como os Sheiks, o primeiras edições do Festival de Vi-
que ver com os estudantes: os pesca- Quarteto 1111, os Chinchilas — depois lar de Mouros, criado em 1968/69,
dores de Matosinhos e os trabalhado- engolidos pela voragem cançonetista, reuniam «pela primeira vez, jovens
res da indústria conserveira de várias só rompida no 25 de Abril. sozinhos». Falando de mentalidades,
cidades queriam melhores condições «Portugal em 1968 já não era o país em 1965 a pílula começara a ser dis-
— 5 mil a exigirem mais 50 centa- rural da década de 50, houvera uma ponibilizada em Portugal. Um privi-
vos por cabaz de peixe descarregado. industrialização e havia mudanças légio de poucas. «Sabíamos que havia
Em Junho, seriam os funcionários da subterrâneas na sociedade», lembra várias médicas, ligadas à Oposição,
Carris a envolverem-se em confrontos a historiadora, e Prémio Pessoa 2007, que passavam a receita», conta ainda
com as forças policiais, por causa da Irene Flunser Pimentel. Cita o exem- Flunser Pimentel. Mas a realidade
«greve da mala»: durante três dias, plo das inundações ocorridas no País feminina era outra, do ponto de vista
FOTOS: D.R.

recusaram receber o pagamento dos em 1967: «Eu estava então no Liceu do Código Civil. A mulher que se ca-
bilhetes. Nos cafés Vává e Luanda, Francês e soube que os estudantes do sasse não podia fazer comércio, pre-

38 v
cisava da autorização do marido para CONTESTAÇÃO AO REGIME Os ânimos estudantis
abrir uma conta bancária ou viajar agitavam-se já desde 1962
para o estrangeiro. E uma mulher ca-
sada que se separasse por maus tratos
corria o risco de o marido exigir que pardos) tem mais comentários. Tan-
ficasse em casa — chamava-se a isto tos quantos a análise de Adérito Se-
«depósito legal da mulher casada». das Nunes ao papel da universidade.
Pardacenta, Lisboa não estava, nes-
ARTESELETRAS tes anos de «culminância radical das
Quem não se satisfazia com o estado da contestação, um jovem chamado contestações estudantis», como lhes
das coisas ou se fartava de emboscar Mariano Gago liderava uma associa- cama o historiador Fernando Rosas,
os cineclubes em busca das pérolas ção composta por uma frente política ele próprio um destacado dirigente
que tinham escapado à Censura (e reveladora: maoístas, libertários, co- desses anos, em trânsito do comunis-
ao parco domínio do inglês dos cen- munistas pró-soviéticos. mo pró-soviético para o maoísmo.
sores), esses, os privilegiados, iam à Estes são os tempos em que João Essa radicalização atingira, no pas-
procura dos livros e filmes proibidos. Bernardo juntava uma alínea de sar- sado, etapas marcantes: 1956, com
em Paris e Londres. A escritora e tra- casmo a um currículo de revolucioná- a contestação à tentativa do regime
dutora Eduarda Dionísio recorda-se rio. É no Técnico que o opúsculo (À de limitar as actividades associativas;
de ter ido, em Agosto de 1968, ao esquerda de Cunhal todos os gatos são 1962, pela defesa da «autonomia y
Festival de Avignon — estava Praga
debaixo de fogo e o Maio estudantil
acalmado. «Era como se tivéssemos
chegado a outro mundo. Vimos cine-
TERESA MOTA DIZ PRÉVERT EM PARIS
ma de Straub, de Truffaut, em clima Testemunho à VISÃO História da
de grande liberdade e de contesta- actriz Teresa Mota, assistente de
ção a tudo.» Eduarda, aluna ainda, Língua Portuguesa e de Teatro
conhecia outra realidade. «As ques- Português na Universidade da
tões portuguesas eram diferentes... Sorbonne Nouvelle, em Paris, e
mãe de Emmanuel Demarcy-Mota,
Lembro-me que as raparigas não
director do Théâtre de la Ville,
podiam ir de calças para o liceu. Eu
em Paris, e irmã de João Mota,
andava sempre com um saco de plás- director da Comuna – Teatro de
tico pronto, com umas calças, para ir Pesquisa, em Lisboa:
depois para o teatro.» «Nesta fotografia, tirada em Maio
Mas a resistência dava frutos. de 1968, estava eu a dizer um
A dedicatória de José Cardoso Pires poema na belíssima escadaria das
na Cartilha do Marialva (1967) colo- Galeries Lafayee, em Paris. Depois da explosão libertária dos estudantes nas
cava a discussão no lugar em que os ruas e nas Faculdades, irromperam as greves gerais dos trabalhadores. Durante
estudantes, como Eduarda, preten- certas ocupações nas empresas e fábricas
diam: «Onde se fala do paternalis- na Ille de France, os artistas, num impulso de solidariedade, vieram dar uma
mo como expressão do autoritarismo réstia de distracção aos ocupantes que ali permaneciam dia e noite, exaustos mas
entusiasmados. Complexidade de uma utopia?
— saudações à contestação que lhe é
Nessa fotografia nos Armazéns Lafayee estou a dizer um poema de Prévert
feita pela verdadeira Universidade.»
[Pour Faire le Portrait d'un Oiseau / Para Fazer o Retrato dum Pássaro in Paroles
E a «verdadeira universidade» não / Palavras de Jacques Prévert – Paris 1951]. Lembro-me que li depois os poetas
deixou o autor do Dinossauro Exce- Eluard e Rimbaud. Eu fazia parte de um grupo de artistas vindos do Teatro de
lentíssimo ficar mal. O «gineceu» do Aubervilliers. Momento inesquecível. Não só porque estávamos perante um
Técnico (uma sala onde só as alunas movimento histórico, fundador, mas também porque vivíamos o instante singular
podiam entrar) foi invadido com gri- do prazer de dizer palavras vivas, partilhadas na celebração de um imaginário
tos contra a separação de sexos e pela reinventado num espaço redescoberto.
emancipação das mulheres. À frente A escadaria da Galerie já não está lá, mas o acto cultural perdura...»

v 39
1968 MAIO DE 68

y universitária»; 1965, contra a re- cado na altura alguns católicos pro-


pressão da PIDE que, de uma pena- gressistas, mas não foi seguido pelo
da, prendera cerca de 50 estudantes restante País. Aquilo que Manuel
comunistas. A partir de 1968 e, sobre- Alegre, então exilado, descreveu de-
tudo, 1969, «a revolução era o projec- UNIVERSITÁRIOS Os estudantes queriam um pois assim: «O espírito de Rimbaud
to de vida» de muitos estudantes. O novo projecto de vida: revolução desceu sobre a cidade. Porque foi
lema retirado do escritor francês Ro- Rimbaud que escreveu a palavra de
main Rolland era «pensamento que sores? João Bernardo, figura mítica ordem do Maio de 68. Changer la
não age ou é aborto, ou é traição». da geração de 60, manteve este di- vie [mudar a vida].»
E agiu-se. Em Económicas (ISCEF) álogo com o reitor da Universidade
criaram-se cursos livres, tentou-se de Lisboa, Paulo Cunha: «Você é fi- QUEVENHAOFUTURO
abrir a universidade aos operários, lho de um negreiro!», ao que o reitor O regime luso, esse, orgulhava-se de
publicaram-se «anti-sebentas» que respondeu «e você nem merda é!». outros feitos. Como a criação, em
davam a conhecer os autores pros- Rebeldia. Alguém imagina o agora Agosto desse ano, da Telescola. Ou
critos (Marx, claro). Faziam-se semi- cordato líder parlamentar socialista o início das transmissões da RTP2,
nários com o sugestivo título Econo- Alberto Martins a deixar abespinha- apenas para a capital portuguesa.
mistas para quê?. No fundo, como do o historiador José Hermano Sa- A vida real pregada por Salazar, tão
lembrou Ferro Rodrigues (dirigente raiva? Um era dirigente estudantil, longe das duas festas que marcaram
estudantil de 1969) numa entrevista o outro ministro da Educação da di- 1968. Uma, oferecida por Pierre e a
à jornalista Diana Andringa (tam- tadura. E assim começou uma crise portuguesa São Schlumberger, traz
bém ela activista desses tempos), «a que lançou nas picadas da Guerra mais de mil convidados estrangeiros
maior parte de nós não queria ser Colonial uma fornada de estudantes ao palácio da Quinta do Vinagre, em
aquilo que hoje é». de Coimbra. Colares. Três dias depois, os convi-
«O Estado não é outra coisa se- Para Dionísio, o «nosso» Maio de dados, onde figuravam alguns Ro-
não uma mákina de 68 tem essa imagem, thschild, Rockefeller, Furstenberg,
opressão de uma clas- de Coimbra, 1969: «A e ainda Gina Lollobrigida, princesa
se por outra.» A frase, importância do tomar Soraya, Valentino, Domínguin, dan-
assinada por Engels,
OMAIODE a palavra, no sítio dos çavam na quinta Patiño, em Alcoi-
perde-se no muro FOIUM outros.» Ou na emer- tão. Os ministros de Salazar não ti-
das lamentações em CATALISADOR gência da consciência veram autorização para comparecer.
que se transformou
PARAEVENTOS «de as pessoas serem Antes, tinham consentido num
aquela parede da As- donas de si mesmas, acontecimento que muitos ainda
sociação Académica POSTERIORES e não serem proprie- recordam. A 6 de Junho de 1968, o
de Direito da Univer- dade do Estado, do Coliseu de Lisboa enchera-se para
sidade de Lisboa em par tido…». Ou na receber Maurice Béjart e a sua core-
1969. Provavelmente, já lá estaria consciência política: «Entre os emi- ografia Romeu e Julieta. Depois das
antes da acusação, anónima, segun- grantes portugueses que procura- palmas, o francês fez um discurso
do a qual «os dirigentes são impo- vam melhores condições em França, antiditatorial e pediu um minuto de
tentes», logo corrigida para um não uns queriam salvar a pele, outros silêncio em homenagem a Robert
menos ofensivo «as dirigentes são aprenderam imenso. E perceberam Kennedy, detractor das políticas co-
frígidas». Marxismo e sexualidade que o Maio de 68 tinha a ver com lonialistas estatais, e assassinado na
são a receita do momento. O porme- uma luta pelo capitalismo. Hoje, são véspera. Foi o que bastou para, nessa
nor da mákina? A substituição do vencidos como eu — não fizemos mesma noite, a PIDE o ter ido bus-
QU pelo K, afinal, não é uma inven- nada, é uma memória do passado. car ao Hotel Borges e enxotá-lo, às 3
ção da geração sms. Olhe-se à volta: O Maio de 68 não da manhã, para um posto fronteiriço
Aliás, conflito de gerações à par- serviu para nada.» espanhol. Depois de Abril de 1974, o
te, havia muitas semelhanças entre Irene Flunser Pimentel defende coreógrafo regressou com o mesmo
FOTOS: D.R.

as rebeldias passadas e as actuais. que o Maio de 68 foi um catalisador bailado ao mesmo lugar. E ninguém
Alunos que desrespeitavam profes- para eventos posteriores e terá mar- o expulsou.

40 v
SÉRGIO GODINHO E JOSÉ MÁRIO BRANCO
Eram ambos do Porto, fugiam ambos a uma guerra em que não queriam
combater. Encontraram-se no Quartier Latin, Sérgio participava
em musicais (entrou numa versão da ópera-rock Hair) e Zé Mário
trabalhava numa fábrica de lapidação de diamantes e acabara de gravar
o seu primeiro disco, Seis Cantigas de Amigo. A camaradagem marcou
os dois primeiros êxitos de cada um deles: Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades (José Mário Branco) e Sobreviventes (Sérgio
Godinho), ambos gravados em França, em 1971.

MANUEL VILLAVERDE CABRAL


O sociólogo viveu em Paris a sua experiência de «comunismo prático».
Nada se pagava, viajava-se à boleia, erguiam-se barricadas contra a
polícia. O jovem intelectual pôs-se ao serviço da causa, servindo de elo
com os operários, ou seja, «explicando aos emigrantes portugueses o
que se estava a passar». Até que… «Até que acordámos.» Tudo acabou
no dia 29 de Maio, na manifestação da «maioria silenciosa» nos Campos
Elíseos, de apoio a De Gaulle. Apesar de algum sarcasmo, garante: «Não
quero sublimar, nem matar a experiência do Maio de 68.»

NUNO PORTAS
O arquitecto fazia já o livro A Cidade como Arquitectura (1969),
quando, de visita a universidades francesas, tropeçou nos motins.
«Tinha ar de um ataque ao sistema, no qual estavam sindicatos,
professores, arquitectos.» Pelo meio, via «gente dos bidonville». Para
si, o Maio de 68 foi antes: «Apanhei o movimento em Itália, em 1965.»
Discutia-se se os bairros sociais de inspiração europeia - fazer mais
e maior — eram, não solução, mas problema», conta. E falava-se sobre
a participação das pessoas na construção — espírito reencontrado
em 1968. Ficou-lhe um dos «melhores slogans: ‘o processo é mais
importante do que a forma’».

TERESA RITA LOPES


«Tinha-se a impressão de que era a ‘nossa’ revolução, antes de cairmos
em nós», diz a professora e poetisa, então exilada. Participante «na
retaguarda», recorda tanto os comícios espontâneos como a «selvajaria
de incendiar uma livraria», os «poéticos» slogans, e o ter visto Cohn-
-Bendit e «o seu séquito, rapazes que passariam por banda rock».
«Muito ficou do espírito de 68, que era uma recusa dos valores de certa
sociedade (que hoje regrediu pela submissão à lógica do lucro) e que
mudou as relações: os alunos tratavam os professores por tu, queria-se a
participação de todos. Hoje, há falta de perspectivas de futuro.»

JORGE MARTINS
Recém-casado, aos 21 anos, o pintor fugira em 61 para Paris para não
ir para Angola. Saía do cinema quando rebentou o Maio de 68. E
recorda-se de ver junto ao Musée de la Radio «um camião de polícias
sentadinhos, à espera de saírem para baterem com matracas nas
pessoas, e a cantarem Comme un garçon de Sylvie Vartan… «Foram
anos de discussão extraordinária» mas também de «controvérsias que
me cheiravam ser fogo de vista, a manter à distância», defende. «Hoje,
aquelas pessoas estão muito arrumadinhas no poder.»

v 41
1968 MAIO DE 68

os herdeiros da revolta
O que é ser filho de quem partilhou os ideais dos estudantes franceses? • por Gabriela Lourenço

osé Mário Silva não viveu

J o Maio de 68. Só haveria


de nascer, ali mesmo em
Paris, quatro anos depois.
Mas isso não o impede de
quase ter vivido essa épo-
ca. «São momentos que ainda hoje
revisito com uma certa nostalgia, ape-
sar de não ter estado lá», confessa. As
memórias foram construídas nestes
seus 36 anos de vida, com livros, ima-
gens, mas também com os relatos dos
pais, que, ainda em Lisboa na altura,
foram seguindo os acontecimentos
através de um irmão do pai que es-
tudava na Sorbonne. Era ele que, por
carta ou telefone, ia contando o que JOÃO FIADEIRO A dança como reflexão sobre a contemporaneidade
se passava. Assim como uma irmã da
mãe, também em Paris e ligada a gru-
pos de extrema-esquerda. juventude universitária, os intelectu- devemos venerar. É, acima de tudo,
Em Portugal, apesar da censura, ais e os sectores mais informados da estar atento à mudança que nos ro-
muitos seguiram o que se ia passan- oposição. Como nota Rui Bebiano, deia, acreditar que é possível com-
do na capital francesa, sobretudo a professor e investigador de História binar os interesses colectivos com a
Contemporânea na Faculdade de Le- liberdade individual, saber ir contra
tras de Coimbra e no Centro de Estu- a corrente e a força quando tal for
dos Sociais, «passado o Maio, muitos necessário, continuar a lutar por um
procuraram que os valores, os códigos mundo mais justo e melhor. 'Ser rea-
e as utopias que partilharam perma- lista e pedir o impossível', à maneira
necessem para além daquele tempo de 2008», considera Rui Bebiano.
breve, procurando pô-los em prática Para José Mário Silva, «não aceitar
nas suas vidas, desde logo educando as coisas tal como estão é manter o
os filhos ou tentando influenciar as espírito do Maio de 68». O jornalista
gerações que se seguiram à sua». olha para aquele mês de há 40 anos
Mas o que significa hoje, num con- como «um momento de pensamento
texto social e político tão distinto do crítico sobre a sociedade e em que se
da altura, ser filho desse Maio? «Não pôs tudo em questão». «Essa exigên-
é copiar as ideias, as palavras de or- cia de pensamento crítico é algo que
dem ou as utopias. Ou olhar para os meus pais mantiveram e que me
elas como algo de imaculado e que transmitiram, que tento preservar e
também passar aos meus filhos.»
FOTOS: LUÍS BARRA

A actriz e realizadora Inês de Me-


INÊS DE MEDEIROS «É inevitável deiros nasceu nesse mesmo ano, um
voltarmos a pensar em colectivo» mês antes, em Viena. Optimista,

42 v
acredita que o fundamental é o valor
simbólico que fica dos acontecimen-
tos. «O que ainda me comove é a von-
tade de criar um mundo novo, com
outras regras, o sopro de esperança e
de inventividade, essa coisa que nos
deixaram de que tudo é possível.»
Convicta de que a sociedade do «in-
dividualismo exacerbado» tem fim à
vista, vai buscar a solução ao Maio de
68. «Ali surgiu a consciência de que
a evolução e o progresso têm de pas-
sar por um bem comum. É inevitável
voltarmos a pensar em colectivo.»

PÔRQUESTÕES tas. É aí que associo a dan-


João Fiadeiro confessa sentir-se ça à reflexão sobre o corpo
«mais um herdeiro do Setembro de percepcionado, no espaço,
68 do que do Maio». Para o bailari- e à consciência cívica e po- PEDRO BRANCO Fazer
no e coreógrafo, a sua geração ficou lítica», conta. «Vou beber à da passagem pela vida
marcada pela síndrome da tomada geração de 60 que, nos Esta- uma construção
de posse de Marcello Caetano: «Essa dos Unidos, via contestação
abertura que é, afinal, um bluff, essa à Guerra do Vietname, punha essas nou num grupo de teatro no Liceu
ideia de fachada, como se fosse su- questões. O corpo do bailarino sai do Camões, onde também participou na
ficiente dizer que se quer fazer para seu pedestal, o palco deixa de ser sa- primeira Associação de Estudantes
se fazer.» O Maio de 68, que aconte- grado e o espectador passivo. São es- de esquerda, escreveu, cantou. «Ve-
ceu tinha ele 3 anos, logo depois de sas as ideias que estavam por detrás nho de uma família cultural e poli-
ter saído de Paris com a mãe, Maria do Maio de 68, que permitiu um novo ticamente muito activa: o meu pai,
Antónia Fiadeiro, para o Brasil, pas- tipo de problematização.» Ciente de a minha mãe, os meus avós.» Filho
sou-lhe ao lado durante a infância e que «a dança é uma plataforma de do cantor José Mário Branco e da ac-
adolescência, mas acabou por encon- reflexão sobre a contemporaneidade triz e programadora artística Isabel
trá-lo mais tarde, quando já dançava social, política e cívica», sente-se um Alves Costa, estava em Paris naquele
no Ballet Gulbenkian. «Começo a activista. «A minha dança está con- Maio e, aos 3 anos, andou com certe-
pôr questões e percebo que tenho de taminada de uma consciência de res- za ao colo dos pais nas manifestações.
encontrar as minhas próprias respos- ponsabilidade pelos próprios gestos Hoje, tem no valor da palavra a sua
e actos, o que implica maior herança. «Sou incapaz de es-
a consciência do que é crever ou de cantar o que não seja a
a liberdade e a demo- tentativa de dizer alguma coisa», diz o
cracia. E isso virá dos professor do ensino primário e cantor
meus pais e desse con- nos tempos livres. «Vejo os meus pais
texto de 1968.» como pessoas com uma coerência e
O activismo – sobre- uma participação cívica, que fazem
tudo o cultural – sem- da sua passagem pela vida uma cons-
pre foi característica trução. E sinto que estou a fazer o
de Pedro Branco, 43 mesmo.» Na escola ou no palco, é por
anos. Durante a ado- isso que se bate – sempre acreditando
lescência, o Teatro que todos devemos esforçar-nos por
da Comuna era a sua ser felizes. Não era essa, afinal, a ideia
JOSÉ MÁRIO SILVA Valorizar o pensamento crítico segunda casa, ence- dos soixante-huitards?

v 43
1968 P R I M AV E R A D E P R AGA

era uma vez a


Democrac
44 v
Em 1968, os checoslovacos
tiveram um sonho: a
liberdade. A festa do
socialismo de rosto humano
durou uns meses. Em plena
Guerra Fria, o mundo viu
como um país comunista
abolia a censura e permitia
a criação de novas forças
políticas. Até ser esmagado
pela violência das tropas
soviéticas
por Alexandra Correia

‘E
fotos Joseph Koudelka/Magnum

spalhem a notícia o mais rapi-

E
damente possível.» Estas são
as últimas palavras ansiosas do
locutor da Rádio Praga, no mo-
mento em que a emissão é cor-
tada, às 4 e 59 da madrugada do
dia 21 de Agosto de 1968. Ainda
tivera tempo para dizer que as
tropas de cinco países do Pacto
de Varsóvia tinham atravessado
a fronteira da Checoslováquia sem o conheci-
mento do governo. Que as autoridades apela-
vam à população para que não oferecesse re-
sistência aos invasores. E que andava um avião
estrangeiro, às voltas, por cima do edifício da
rádio. «Façam conhecer as informações por
todos os meios. Espalhem a notícia.» Calou-se.
Nessa mesma madrugada, a Rádio Moscovo
inicia a emissão com o boletim de agricultura.

cia
Segue-se a lição de ginástica, como todos os
RESISTÊNCIA Na mítica Praça dias. Nem uma palavra sobre Praga.
Venceslau, à espera dos Às 23 horas do dia 20 de Agosto, 250 mil sol-
tanques soviéticos
dados, 7 500 carros de combate e mais de mil
aviões entram na Checoslováquia para acabar
com a festa. Eram 29 divisões vindas da União
Soviética, Polónia, Alemanha de Leste, Hun-
gria e Bulgária. Quando chegam à capital en-
contram uma multidão por entre o nevoeiro y

v 45
1968 P R I M AV E R A D E P R AGA

y e o confronto dá-se na Praça Venceslau. Ar- Alexander Dubcek e outros quatro dirigentes
PALAVRAS-CHAVE
mam-se barricadas com camiões e buldozers e do Partido Comunista Checoslovaco (PCC) esta-
SOCIALISMO DE os jovens atiram cocktails Molotov aos tanques. vam presos e a caminho de Moscovo, algemados.
ROSTO HUMANO
Gritam-se vivas a Dubcek e injúrias aos russos. Era o fim do «socialismo de rosto humano», da
Foi o próprio
Alexander Dubcek Estes respondem à metralhada experiência do socialismo de-
que assim chamou (morreram mais de cem pesso- mocrático que abolira a censura
às suas reformas.
A Checoslováquia
as). As paredes do Museu Na- «LENINE e permitira a criação de outros
cional ficam crivadas de balas. partidos, contrariando o sufo-
assumia-se como
E alguém lança a inscrição: «A
LEVANTA- co do sistema de partido único.
um país do bloco
socialista, mas arte popular soviética surgiu nas -TEBREJNEV Experiência que durava apenas
com pormenores
que faziam toda
paredes do Museu Nacional.» ENDOIDECEU!» desde Janeiro.
Caem lágrimas, ensaiam-se
a diferença
conversas com os soldados, tam-
LIA-SENUMA OLONGOINVERNO
como o restaurar
das liberdade bém estes desorientados. A ilus- INSCRIÇÃO País fundado em 1918, logo após
individuais. O
fim da censura
tradora Manuela Bacelar (ver NASPAREDES a Primeira Guerra Mundial,
texto Os portugueses em Praga) das ruínas do Império Austro-
e a liberdade de
nunca mais se vai esquecer do
DEPRAGA Húngaro, a Checoslováquia foi
associação política
estavam entre soldado sentado em cima de uma república democrática até
as medidas mais uma pedra, com a cabeça entre à invasão nazi, em 1939. Os ale-
marcantes
as mãos, incrédulo, quando lhe disseram que mães criaram então o protectorado da Boémia
PACTO DE VARSÓVIA estava na Checoslováquia, que tinha invadido e Morávia (o que é hoje a República Checa), e
Aliança militar um país socialista, um irmão. «Ele julgava que os eslovacos aproveitam para declarar a inde-
formada em
Maio de 1955, ia para a Grécia», conta a portuguesa. pendência, mas com um governo simpático à
em Varsóvia, por O povo estava abismado. Velhos comunistas Alemanha de Hitler. Até que em Maio de 1945,
oposição à NATO. checos, que haviam combatido os nazis ao lado as tropas soviéticas entram em Praga.
Os países do Pacto do Exército Vermelho, choravam, incrédulos. Constitui-se a Frente Nacional (FN), onde
de Varsóvia eram
a União Soviética, Nas paredes de Praga aparece a inscrição «Le- estão representados os partidos comunista, so-
a Alemanha de nine, levanta-te, Brejnev endoideceu!». Or- cial-democrata e socialista nacional. Gottwald,
Leste, Albânia, ganiza-se uma resistência de pequenos actos. o líder comunista, torna-se primeiro-ministro,
Bulgária, Arrancam-se as placas com os nomes das ruas no âmbito da FN, com nove ministros comu-
Hungria, Polónia,
Checoslováquia e os números das portas, para confundir o inva- nistas e 17 de outros partidos. Mas isso estava
e Roménia. De sor. Colocam-se setas a dizer «Moscovo: 1 800 prestes a acabar.
fora ficou a km». Boca a boca espalhava-se o apelo «Aos Em Fevereiro de 1948, a Checoslováquia
Jugoslávia liderada russos, nem uma gota de água», uma «cruelda- começa a tornar-se um país verdadeiramente
pelo Marechal
Tito. O Pacto foi de» que os checos acabaram por corrigir para controlado pelos soviéticos. O golpe começou
dissolvido em «Aos russos água sim, mas mais nada». com o afastamento de oficiais não comunistas
Junho de 1991, em Mas logo no dia 21 de Agosto se ouvem as das forças policiais, controladas por um mi-
Praga
músicas populares russas nos altifalantes. E já nistro do PCC. Em protesto, os ministros dos

O HERÓI DAS GUERRAS


Nascido em 1895 na Morávia, Svoboda lutou na I Guerra Mundial
inserido na legião checoslovaca. Militar de carreira, voltou às
armas durante a II Guerra Mundial, liderando as unidades militares
checoslovacas na frente leste. Em 1945 chega a general e ostenta a
Estrela Vermelha de herói da URSS. Presidente da República em 1968,
LUDVIK
SVOBODA por indicação de Alexander Dubcek, apoiou as reformas da Primavera
de Praga, mas acabou por fazer o jogo dos soviéticos no período que se
1895-1979
seguiu à invasão de Agosto. Foi Presidente até 1975, morreu em 1979.

46 v
INCONFORMADOS A bandeira e o hino checoslovacos contra a música popular russa que ressoa nos altifalantes

outros partidos demitem-se, acreditando que nomes como Milan Kundera (o seu romance A PALAVRAS-CHAVE
o presidente socialista, Benes, não iria aceitar Insustentável Leveza do Ser tem como pano de
ESTALINIZAÇÃO
a demissão. Na mesma altura, o PCC organiza fundo a Primavera de Praga) e Vaclav Havel; O culto da
grandes manifestações de rua, convoca as mi- e a manifestação de estudantes, nesse mesmo personalidade e o
lícias populares (operários armados) e convoca ano, saindo para as ruas com velas, revoltados reinado de terror
uma greve geral. Benes receia uma invasão so- contra uma quebra de electricidade em véspe- de José Estaline
na União Soviética
viética e aceita a formação de um governo intei- ras de exames, e gritando ‘Queremos luz!’. foram imitados por
ramente comunista. «A partir deste momento, outros países do
a direcção do PC utiliza todos os meios no senti- CHEGOUAPRIMAVERA Pacto de Varsóvia.
do da liquidação dos partidos não comunistas», Apesar da visita de Leonid Brejnev em Dezem- A estalinização da
Checoslováquia
escreve Cândida Ventura (que foi representante bro de 1967, em apoio de Antonin Novotny, começou com o
do Partido Comunista Português na Checoslo- Presidente da República e secretário-geral do golpe comunista
váquia) no livro O ‘socialismo’ que eu vivi. Partido Comunista Checo, dentro do PCC era de 1948,
Gottwald deu início àquela que ficou conhe- já impossível reabilitar a sua reputação. A 5 de prolongando-
se até 1963.
cida como a era da estalinização (de José Esta- Janeiro de 1968, o partido elege o eslovaco Ale- Desse período
line). Começam as purgas. «No jornal Svobodni xander Dubcek (ver caixa), de 46 anos, como contabilizaram-
Slovo, de 24 de Maio de 1968, calculava-se em secretário-geral. Em Março, Novotny seria se milhares de
136 mil o número de vítimas, mortas, presas, ainda substituído na Presidência da República perseguições,
purgas, prisões e
internadas», continua Cândida Ventura. pelo general Ludvik Svoboda (ver caixa). Esta- assassinatos
A desestalinização da Checoslováquia come- va em marcha a tão ansiada democratização.
ça apenas em 1963, sete anos mais tarde do que Logo em Fevereiro, no 20.º aniversário do
acontecera na própria União Soviética, com golpe de 1948, o discurso de Dubcek inclui
Krutchev. Até à invasão soviética de 1968 have- uma palavra nova, democracia, prometendo
rá uma discussão alargada sobre o rumo do so- um «socialismo que corresponda às tradições
cialismo, com dois importantes marcos: o con- democráticas da Checoslováquia». Jornalistas,
gresso dos escritores checoslovacos, em 1967, estudantes e escritores começam a apelar livre-
exigindo o fim da censura, e onde participaram mente à revogação da lei da censura. y

v 47
1968 P R I M AV E R A D E P R AGA

LÍDER MOLE OU REVOLUCIONÁRIO?


Nascido na Eslováquia em 1921, foi criado na União Soviética depois de
a família se mudar para lá. Regressou à Checoslováquia com 17 anos e
juntou-se à resistência contra os nazis. Em 1968, este antigo operário
das fábricas Skoda, torna-se secretário-geral do Partido Comunista
Checoslovaco, liderando a Primavera de Praga. Depois da invasão
ALEXANDER
soviética, acaba a trabalhar como guarda florestal na Eslováquia. Até
DUBCEK
1921-1992
à Revolução de Veludo de 1989. Reabilitado, torna-se presidente do
Parlamento. Morreu em 1992, num acidente de viação.

PALAVRAS-CHAVE y A 5 de Abril, o PCC aprova um programa Valdemar Pinho era, em 1968, operário numa
de acção de fazer arrepiar Moscovo. Refere-se fábrica nos arredores de Praga. «Intelectuais,
DIKTAT Também
conhecido pelo
à «experiência única do comunismo democrá- escritores, cantores iam à fábrica e falavam
Protocolo de tico», prometendo a liberdade de expressão e aos milhares de operários. Numa das reuniões,
Moscovo, assinado de movimento (incluindo viajar a países oci- alguém perguntou: ‘Podemos ir trabalhar para
a 26 de Agosto de dentais), querendo reestruturar o conceito de o estrangeiro?’. O escritor que estava a falar,
1968, uma semana
após a invasão,
«centralismo democrático», dando maior li- olhou para a fábrica parada e respondeu: ‘Po-
é um documento berdade empresarial e propondo uma Checos- dem é começar a trabalhar aqui’. Realmente,
imposto pelos lováquia federal. Foi Dubcek que lhe chamou as pessoas não produziam o que ganhavam. A
soviéticos aos «Socialismo de rosto humano.» vida em Praga foi o único momento da minha
checoslovacos,
que os obrigada A obra de Kafka é finalmente traduzida do existência em que não tive problemas de di-
a aceitar alemão para o checo. Sartre e nheiro», conta.
a presença das Simone de Beauvoir dão confe-
tropas invasoras, rências em Praga. E chega um OPROGRAMA ORÁDIODEUMSÓBOTÃO
a renunciar
à liberdade inesquecível 1.º de Maio, pela DEACÇÃO Mas a festa já tinha sombras.
de imprensa primeira vez sem a organização DEDUBCEK Ainda em Maio, os líderes che-
e de associação do PCC. Uma multidão sai à rua cos visitam Moscovo e ficam a
política, com cartazes de apoio a Dubcek. ARREPIAVA saber que enervaram o Kremlin.
amarrando-os
a uma «amizade «Entre os vários movimentos MOSCOVO Em Junho a censura é oficial-
fraternal eterna» que convergem na hostilidade PROMETIAA mente abolida e alguns mem-
com os soviéticos ao poder instalado (uns ligados bros do comité central do PCC
ao Ocidente, conduzidos pela LIBERDADEDE assinam o «manifesto das 2 mil
CIA; outros mais de esquerda, EXPRESSÃO palavras», do escritor Ludvik
trotskistas; outros nacionalis- Vaculik, documento muito mais
tas), o mais poderoso situava-se liberal do que o programa de
dentro do próprio comunismo, contestando a acção do partido, apelando às armas na possi-
autoridade da URSS. No meio disto era um bilidade de uma intervenção militar. Embora o
pulverizar de rupturas, de liberdades, de festa. próprio Dubcek tenha recusado as suas ideias,
Paravam as fábricas para fazer, pela primei- o manifesto provoca estragos na relação de
ra vez na vida, assembleias gerais. Havia mo- Praga com Moscovo.
vimentos de contestação a todos os poderes, Primeiro em Varsóvia, depois em Cierna nad
contra a pirâmide hierarquizada do socialismo Tisou, na Eslováquia, nos encontros entre che-
soviético. Uma sociedade alegre, bem disposta, coslovacos e soviéticos já se lançam ameaças
criativa, era aquilo por que tínhamos sonha- de intervenção. Os cinco países que irão par-
do e lutado», descreve o antropólogo Cláudio ticipar na invasão fazem um ultimato: «Não
Torres que, a viver na Roménia, visitava Praga podemos resignar-nos a que forças hostis
para ir ver o pai, Flausino Torres (ver pré-pu- desviem a Checoslováquia da senda do socia-
blicação do Diário da Batalha de Praga). lismo», escrevem num documento. No início

48 v
DESESPERO Invadidos pelos seus irmãos, os checoslovacos choram. Nas paredes, uma inscrição pergunta: «Proc?» (Porquê?)

de Agosto, novo encontro em Bratislava. Aqui vence a equipa soviética nos Mundiais de Es- PALAVRAS-CHAVE
parece haver uma reconciliação dos países do tocolmo. E o povo delira. Foi o último grito da PRAÇA VENCESLAU
Pacto de Varsóvia com a Checoslováquia. Primavera. Chamada «os
Tremenda ilusão. Quando, a 20 de Agosto, Quando Manuela Bacelar foi renovar a ma- campos elísios
de Praga», foi
as tropas se lançam pelas fronteiras checas, o trícula encontrou a sua professora de História nesta praça que se
romeno Nicolai Ceausescu, põe-se a pau. Con- da Arte ajoelhada no átrio da Escola Superior deu o confronto
dena a invasão com palavras violentas e, ao de Artes Aplicadas, a lavar o chão com uma entre as tropas
mesmo tempo, coloca o seu exército em «esta- sarapilheira. Dos tempos em que viveu no re- soviéticas e o povo
checoslovaco.
do de mobilização geral». gime socialista, a ilustradora guarda a imagem Ali também se
Na reunião de emergência do Conselho de do aparelho de rádio que o Estado fornecia aos imolou pelo fogo
Segurança da ONU, o delegado russo repetia colégios, aos hotéis, às fábricas… tinha somen- o estudante Jan
a versão oficial de Moscovo, de que a inter- te um botão. Ligava, desligava, aumentava e Palach, em Janeiro
de 1969
venção fora feita a pedido dos líderes checos- baixava o volume. Para quê mais botões? Só se
lovacos. Em plena Guerra Fria, o Ocidente podia ouvir uma estação…
foi rápido a condenar a invasão, incluindo os
partidos comunistas da França, de Espanha e
de Itália. Não o português. Álvaro Cunhal foi
o primeiro a visitar a «nova ordem» da Che- PASSADOS 40 ANOS
coslováquia. É um país que já não existe. Dias depois da queda do Muro de Berlim,
A 26 de Agosto, os líderes checos assinam em Novembro de 1989, os estudantes de Bratislava e de Praga dão
um protocolo com Moscovo, o Diktat, renun- início à Revolução de Veludo, com grandes manifestações de rua,
ciando às reformas e aceitando a presença das que iriam afastar o poder comunista da Checoslováquia. No mês
tropas invasoras. Em Praga continua a ha- seguinte, o governo demite-se e Alexander Dubcek, o líder da
ver resistências. A 16 de Janeiro de 1969, o Primavera de Praga, é eleito presidente do Parlamento. Vaclav Havel
estudante Jan Palach imola-se pelo fogo na é o novo Presidente da República. Em 1992, os checos e os eslovacos
Praça Venceslau para «acordar» os checos. decidem separar-se, pacificamente. Entraram ambos na União
Em Abril, a equipa checa de hóquei no gelo Europeia, em 2004.

v 49
1968 P R I M AV E R A D E P R AGA

pelOs olhos dos portugueses


Intelectuais, estudantes e operários, os exilados na Checoslováquia defenderam
a Primavera contra a posição oficial do PCP. A invasão soviética fez sangue
– também no partido de Álvaro Cunhal • por Alexandra Correia

o Verão de 1961, sete jo- pelos, acostando de vez em quando a Cláudio Torres e a família vão para a

N vens portugueses, alguns


militantes do PCP, en-
tram num barco de cin-
co metros, ancorado no
rio Douro, rumo a uma
aventura cinematográfica. Nenhum
deles sabia de navegação mas, caídos
em desgraça com o regime, queriam
fugir a todo o custo à chamada da
alguns portos. A mulher de Cláudio
Torres vai grávida.
Lançam-se em mar alto. O mar está
picado, falta a gasolina. Ao fim de três
dias são salvos por um petroleiro gre-
go, que lhes enche o depósito. Voltam
a ficar sozinhos, levanta-se uma gran-
de tempestade. Mas conseguem fazer
parar um outro petroleiro, liberiano,
Roménia, trabalhar na secção inter-
nacional da Rádio Bucareste. Valde-
mar Pinho e José Valadas (já faleci-
do) chegam a Praga a 23 de Setembro
de 1962. «Primeiro dormíamos em
residências universitárias. Depois a
Cruz Vermelha levou-nos para uma
fábrica de papel, deram-nos um mês
de salário adiantado e dinheiro para
Guerra Colonial. Fingem que estão que os salva e os leva a Gibraltar. Daí, comprar roupa de Inverno. Vínha-
de férias e vão descendo a costa por- rumam a Tânger. Ficam em Marrocos mos de Marrocos, só com roupa de
tuguesa, numa jornada cheia de atro- e, passado um ano, o grupo separa-se. Verão», conta Valdemar, hoje radica-
do em França.
Flausino Torres, intelectual anti-
fascista, já falecido, chega a Praga em
1966, ficando a dar aulas na Universi-
dade Karlova. O filho Cláudio vai por
vezes visitá-lo. Valdemar também o
contacta. E a ilustradora Manuela Ba-
celar, casada com o comunista Álvaro
Bandarra, casal que vivia em Praga
desde 1964. A família Torres relacio-
na-se ainda com o casal de operários
Mercedes Ferreira e António Lopes,
também exilados, e com o cirurgião
António Barbosa e a sua mulher Du-
artina Morais Cabral. E todos conhe-
ceram Catarina Mendes.
Catarina era o nome que se chama-
va a Cândida Ventura, figura lendária
do PCP durante a ditadura. Passou 17
anos na clandestinidade e foi brutal-
mente torturada pela PIDE duran-
te os dois anos em que esteve presa.
Estabelece-se na Checoslováquia em
FOTO: ANABELA TRINDADE

1965 e a sua posição faz dela uma es-


MANUELA BACELAR A ilustradora hoje (à
pectadora privilegiada. Quando chega
esquerda) e em 1968, em Praga, com a
família. Em cima, um desenho feito nos a Portugal, depois do 25 de Abril de
tempos em que viveu na Checoslováquia 1974, abandona o PCP. Tivera de en-

50 v
golir o grande sapo do apoio ao parti- família burguesa do Porto, apanha- Valadas] à fábrica para nos dizer que
do à invasão soviética. Nos anos 80 es- do pela PIDE a pintar paredes com o PCP apoiava a invasão. E nós res-
creve o livro O ‘socialismo’ que eu vivi, estudantes comunistas, é hoje, aos pondemos: 'Se apoia, então não vale
publicado pelas edições de O Jornal. 67 anos, candidato independente às a pena continuar a discutir'. Nunca
eleições intercalares municipais fran- mais a vi», relata.
‘OSOCIALISMOACABOU’ cesas em Nieul sur l'Autize. Tem três O médico Octávio Cunha, director
No início de 1968, Fernanda Cardoso netos de uma filha checa e visita-os do Serviço de Cuidados Intensivos
de Figueiredo, mulher de Flausino com frequência. Em 1970 radicou-se Neonatais e do Hospital de Santo
Torres, escreve uma carta à irmã (in- em França. «Uns dias depois da in- António visitou Praga dois dias an-
cluída na biografia de Flausino Tor- vasão soviética, a Catarina [Cândida tes da invasão. «Encontrei-me com a
res, escrita pelo neto, Paulo Torres Ventura] veio ver-nos [a ele e a José Cândida Ventura, e ela diz-me que eu
Bento): «Quando eu digo que isto [o
bairro] é habitado por operários e
trabalhadores, não fiquem a pensar,
a imaginar os operários com o tipo
dos nossos. Não, os jovens parecem
os nossos estudantes, com aquele ar
civilizado que lhes dá a cultura (...)
As crianças andam todas tão bem ar-
ranjadas como os filhos da Aldina e
da Lena, e as mulheres nem se fala.

BIOGRAFIA FLAUSINO TORRES/EDIÇÕES AFRONTAMENTO


Mesmo no trabalho não qualificado,
que é o caso das vendedoras que têm
portanto o salário mínimo, andam
todas bem postas, cabelos e unhas
arranjadas como as nossas burguesi-
nhas mais endinheiradas...»
Para quem vinha do Estado Novo
português, os países do socialis-
mo real eram do outro mundo. EXILADOS PORTUGUESES Cláudio Torres (em baixo). Flausino
Para o bem e para o mal. «O Torres, em cima, atrás, entre José Valadas e Valdemar Pinho.
meu primeiro choque quan- À frente, a sua mulher Fernanda com Mercedes Ferreira
do cheguei a Praga foi ter ido
reclamar uma bolsa de estudo tenho de ir-me embora rapidamente,
à UIE [União Internacional que depois me mandaria um telegra-
de Estudantes] e só lá encontrar ma. Fiquei surpreendido, mas fui.
velhotes. Eram tudo menos estu- Depois da invasão recebi um telegra-
dantes», afirma Manuela Bacelar, na ma dela, que dizia isto: 'O socialismo
altura com 24 anos. Para Valdemar acabou'. E foi nessa altura que eu saí
Pinho, a imprensa era como em do PCP», conta o médico que, na al-
Portugal antes do 25 de Abril. tura, estava exilado na Suíça.
«O Partido Comunista con- O esmagamento da Primavera de
trolava tudo. E havia total Praga iria provocar uma sangria no
igualdade nos salários: PCP. O grupo da Checoslováquia,
os operários ganhavam sem conhecer a posição oficial do
o mesmo que os enge- partido, que tardou, escreveu de ime-
nheiros», diz. diato um documento que começava
FOTO: JOSÉ CARIA

Valdemar não era assim: «Democratas, socialistas,


do PCP. Filho de uma perseguidos pelo salazarismo, y

v 51
1968 P R I M AV E R A D E P R AGA

JOSÉ OLIVEIRA
y sector do imperialismo-fascismo
mundial, apelam para o Povo Sovié-
tico para que o actual conflito seja
imediatamente liquidado». Cândida
Ventura não o assinou. Mas como o
Avante! elogiara, nesse ano, as refor-
mas de Praga, ninguém esperava as
cenas do próximo capítulo.

SANGRIANOPCP
Em Novembro de 1968, Álvaro
Cunhal visita a Checoslováquia. Re-
úne-se com os comunistas portu- VALDEMAR PINHO «Se o PCP apoia a invasão, então não vale a pena
gueses e justifica o apoio do PCP à continuar a discutir», disse o operário a Cândida Ventura (à direita)
invasão soviética. Dá-se uma troca de
argumentos azeda com Álvaro Ban-
darra, que acaba expulso do partido. unir o socialismo à liberdade», diz gem a uma enorme confusão no par-
E é Flausino Torres quem responde Alegre, que saiu do partido cerca de tido. Em 1968 e 1970, o PCP perde
ao secretário-geral do PCP: «Jamais um ano mais tarde. muito terreno na juventude. Mais
voltarei a apertar-te a mão!». Em 1968, Fernando Rosas, a vi- tarde, a extrema-esquerda explode e
Mas também há cortes na Suíça, ver em Portugal, já não era militante o PCP deixa de ter o monopólio da
em Argel, em Portugal. «Logo no dia do PCP, mas continuava nessa área luta», descreve o historiador.
em que o exército soviético entra em política, sem ruptura. «O primeiro Os jornais portugueses acompa-
Praga, escrevi ao partido a dizer que choque foi com o Maio de 68, em que nharam exaustivamente os aconte-
saía. Foi o fim da ilusão. Já tinha vi- o PCP e os soviéticos atacaram feroz- cimentos. «Toda a imprensa fascista
sitado países socialistas, como a Po- mente os revolucionários do Maio. usou a Primavera de Praga para ata-
lónia, e já pensava que tudo aquilo Deixou-nos a todos doentes. Depois, car os comunistas. Para quem, como
em que acreditava eram balelas. Mas a Primavera de Praga. Isto deu ori- eu, simpatizava com o PCP, ouvir os
a experiência de Praga adequava-se fascistas a apoiar os checos fazia com
à minha visão do que era o comunis- que me colocasse do lado das forças
mo», afirma Eurico Figueiredo, na invasoras», explica o ex-comunista
altura exilado na Suíça, que revela João Semedo. «A percepção do socia-
ainda uma conversa com Cunhal, lismo real era diminuída. Para nós,
uns meses antes: «Cunhal tinha-me mau era o Salazar», reforça Rosas.
dito que achava a Checoslováquia a Ainda assim, a Primavera de Praga
experiência comunista mais consen- separou definitivamente as águas a
tânea com um país mais avançado. nível mundial. Os partidos comunis-
Afinal, com a invasão, percebi que o tas francês, italiano e espanhol con-
PCP estava vendido à União Soviéti- denam a invasão. «A URSS estava-se
ca. Vendido de facto, uma vez que o lixando para a ideologia, mas o que
seu aparelho era pago pela Rússia». acontecia em Praga podia ser alta-
Em Argel, Manuel Alegre emite mente contagioso», diz Rosas. Tão
um comunicado, na Rádio Voz da Li- contagioso que os portugueses na
berdade, a condenar a invasão sovié- Checoslováquia não aguentaram o
tica. A sua atitude teve consequências «mergulho no desespero e as ditadu-
ANABELA TRINDADE

na relação entre a Frente Patriótica e ras ranhosas» que se seguiram, como


o PCP. «Afinal, ficara demonstrado diz Cláudio Torres. Um a um, foram
que um país não podia tentar uma OCTÁVIO CUNHA O médico saiu do PCP deixando Praga trazendo na memó-
vida própria, sair do totalitarismo e na sequência da invasão soviética ria o inesquecível ano de 1968.

52 v
1968 P R I M AV E R A D E P R AGA

DIÁRIO DA INVASÃO
A VISÃO História pré-publica excertos do Diário da Batalha de Praga,
escrito por Flausino Torres. O livro, com prefácio de Fernando Rosas
e apresentação de Paulo Torres Bento, chegará às bancas em Maio

‘N
o dia 21, quarta-feira, pe-
las sete horas da manhã,
entram-nos pela porta
dentro três amigos – en-
tre eles M.[ Maria, isto é,
Mercedes Ferreira]: Re-
bentou a guerra! A Checoslováquia
foi invadida pelos sovietes! Às onze
horas da noite de ontem, 20, algumas
centenas de tanques atravessaram a
fronteira: a Polónia, a Hungria, a Re-
pública Democrática da Alemanha, a
Bulgária, a União Soviética – os seus
exércitos – entraram, cada uma por

JOSEFKOUDELKA/MAGNUM
seu lado!
Ficámos meio atordoados; todos
nós estávamos meio atordoados! Cada
um falava para seu lado. Cada um se
sentava, e levantava imediatamente. CONVERSAS IMPROVÁVEIS Jovens checoslovacos garantem aos soldados soviéticos
Seria possível? A União Soviética, a que não são contra-revolucionários
Pátria do Socialismo, como todos os
que a amamos tínhamos o costume de metralhadoras duplas e canhões nossos amigos? Não tínhamos che-
chamar-lhe – e como quase oito dias compridíssimos. Naquela manhã gado todos a acordo na Conferência
depois do início dos acontecimentos, de 21 em que atravessávamos a ci- de Bratislava?». A cara de Dubcek,
certas emissoras, facciosas, dirigidas dade de automóvel, não vimos uma a sua cara de testa alta, inteligen-
por inconscientes, continuavam a farda soviética: tanques, tanques e te, risonha – até aí sempre risonha!
chamar-lhe – a Pátria do Socialismo somente tanques; carros blindados e – estava profundamente contraída;
invadia um país amigo…! metralhadoras; canhões dum verde cavada por fundas rugas! Seus olhos
(...) Seguimos imedia- cinzento – tudo de um chispavam, por vezes com acessos rá-
tamente para o centro, verde cinzento. pidos de cólera; depois voltava à sua
em busca de informações. (...) Dubcek falou on- cara normal.»
Era no centro que a ba- tem, 26. O Presidente
talha rugia: centenas de da República, Svoboda, «(...) Os carros – tanques e outros
tanques rolavam baru- falou também. Ambos: – foram assaltados, no primeiro dia,
lhentamente, pesada- «Serenidade, serenidade. somente no primeiro dia, por uma
mente, mas com uma agi- Confiança no Partido; multidão de jovens: eu vi às nove ho-
lidade incrível pelas ruas confiança no Governo. ras da manhã de 21, vi com os meus
calcetadas de Praga. Não Que fizemos para que olhos que não queriam acreditar, ra-
se viam soldados, não se tal tenha acontecido? pazes e raparigas, empunhando as
viam homens – apenas Porquê esta atitude dos bandeiras da Pátria e do Partido, a

54 v
falarem com os pobres soldados, sol-
dados soviéticos – e eu imaginava-os
FLAUSINO TORRES
de outra forma – que muito se pare- O INTELECTUAL COMUNISTA
cem na atitude com os parolitos por- Professor, historiador e jornalista,
tugueses. A juventude explicava-lhes, Flausino Torres nasceu em Almeida
no seu russo de escola, que a Checos- em 1906, mas cedo se radicou em
lováquia é um país livre; é um país Tondela, na famosa Quinta do Fojo,
que está tentando uma nova experi- casa de apoio para os funcionários
ência de socialismo – uma experiên- clandestinos do PCP. Formado em
cia vasada em novos moldes: Socia- Histórico-Filosóficas em Coimbra,
lismo sem ditadura; Socialismo com segue a carreira do Ensino, ao
mesmo tempo que se distingue
Democracia; Socialismo com direito
no partido como conferencista
a minorias; Socialismo sem censura à
na Universidade Popular e nas
imprensa; Socialismo e Humanismo colectividades operárias. É preso no Aljube em 1962. Dirigente da Frente
combinados; sobretudo Socialismo Patriótica de Libertação Nacional, opta pelo exílio para escapar a nova
sem corrupção, sem mentira, sem fal- prisão. Depois de passar por Argel e pela Roménia, instala-se em Praga em
sas estatísticas, sem criminosos, sem 1967, tornando-se professor de Cultura e Língua Portuguesa na Universidade
espionagem interna… A juventude Karlova. Flausino Torres testemunhou a Primavera de Praga, condenou a
entusiasmada e emocionada explica- invasão soviética e acabaria por se afastar do PCP depois de uma tensa
va aquilo que tinha ajudado a cons- reunião com Álvaro Cunhal, em Praga. A mágoa do que assistiu, a tristeza do
truir desde Janeiro. Explicava tudo ostracismo a que foi votado pelo partido nunca o deixaram até ao final da sua
àquelas esfinges, silenciosas como a vida, em Dezembro de 1974, na sua Quinta do Fojo.
grande Esfinge de pedra.
Mas eles, os pobrezitos dos sol-
dados, respondiam (apenas respon-
diam): ia registando, é que começaram a cair Durante horas, algumas casas ar-
– Vocês estavam fazendo a contra- os checos! O que é verdade é que en- diam. Eu vi os destroços na altura em
-revolução! tre os que caíram havia um heroizito que ainda se não podia passar de um
– Mas onde vêem vocês a contra- de 15 anos, que foi esfacelado junto lado para o outro da rua, mas em que
-revolução? Onde estão os contra-re- da estátua que se encontra ao cimo – serenados os ânimos e batidos os
volucionários? A que chamam vocês da Praça Venceslau. Nos dias seguin- resistentes – os checos olhavam si-
contra-revolução? tes as calças ensanguentadas deste lenciosos para aquele recanto da sua
– Os nossos dirigentes disseram- pequeno mártir da Liberdade che- cidade. Eu vi, pela primeira vez na
nos que lavrava aqui a contra-revolu- ca estavam penduradas do pedestal. vida, a cruz suástica, a cruz hitleria-
ção. É porque é verdade! Os dirigen- E de então em diante, não acabou a na, desenhada no bidão de gasolina
tes não mentem! romagem da Juventude ao túmulo de de um carro soviético invasor – um
É espantoso tudo isto! É esmagado- flores – simbólico túmulo na base da tanque socialista! Um rapaz arrojado
ra esta resposta! Os que assim falam estátua! – que ali são sempre renova- a desenhara a giz em plena batalha!
tinham recebido uma educação racio- das. E quem passa vê uma pequena O símbolo nazi num tanque socialis-
nal, uma educação socialista, ou a edu- multidão – e dois guardas imobiliza- ta! E daí em diante várias vezes vi,
FOTO: BIOGRAFIA FLAUSINO TORRES/EDIÇÕES AFRONTAMENTO

cação cujo princípio básico é o perinde dos à maneira checa, de bandeira em com olhos que não queriam acreditar
ac cadaver do código jesuítico?» punho, e não de espingarda. Extra- no que viam, a foice e o martelo cru-
«(...) O povo – louco, enfurecido ordinário aquele pequeno herói que zados com a cruz suástica!
por horas – atacava agora os tanques: passará a ser um santo da liberdade! (...)Um velhote, apontando para
com que armas? Apenas uma ou ou- As lágrimas de homens e de mulhe- um tanque soviético que «defendia»
tra garrafa molotov! res caem sobre as flores. Quem tem um viaduto de caminho-de-fer-
Diz-se que alguns soldados sovié- coragem de não chorar perante este ro junto de Krc, dizia abanando a
ticos morreram queimados dentro espectáculo de 16 horas por dia?» cabeça: ‘Ai socialismo… ai socialis-
deles. Mas o que é verdade, o que se (...) mo!…’»

v 55
1968 VIETNAME

56 v
FOTO: PHILIP JONES GRIFFTHS/MAGNUM

v
odiada
57
guerra
1968 VIETNAME

A DOR INFINITA A expressão desta mulher vietnamita face à agressão estrangeira fala mais alto que um milhão de gritos

A Ofensiva do Tet, em Janeiro de 1968, mudou o curso da


Guerra do Vietname. Os EUA admitiram poder não vencer
um país do Terceiro Mundo. Este conflito emblemático
motivou o repúdio da juventude, incluindo a americana

N
• por Luís Almeida Martins

N
a madrugada de 31 de Janei- ouviam a rádio em roufenhos transístores de
ro de 1968, os GI's mobiliza- pilhas e afastavam os mosquitos com a mão.
dos no Vietname (um país Por volta das 3 horas ouviram-se disparos.
do Sueste Asiático cujo nome Os americanos que estavam de guarda depa-
entrara de chofre no quoti- raram com uma cortina de fogo crepitante, os
diano da América) dormiam que dormiam puseram-se de pé e pegaram nas
o sono pesado dos 20 anos armas, estremunhados. Foi assim por toda a
nas suas tendas de campa- parte, entre as costas do golfo do Tonquim e as
nha e em aquartelamentos do golfo do Sião, 600 quilómetros a sul: 80 mil
instalados em cidades com soldados do Vietname do Norte e da guerrilha
nomes exóticos. As vitórias anunciadas pelo vietcong atacaram de surpresa mais de cem
Pentágono nas últimas semanas tinham sido guarnições americanas, na maior ofensiva mi-
amplamente publicitadas no mundo, e a guer- litar da guerra até à data. Inicialmente frouxa,
ra parecia quase ganha. Imersas no calor hú- a resposta ao ataque acabaria por se saldar
mido do trópico, as sentinelas aliviavam-se do pela morte de muitos combatentes autócto-
peso dos capacetes, mascavam chewing gum, nes, ascendendo a 30 mil o número de baixas

58 v
O DERROTADO DO VIETNAME
Presidente (democrático) dos EUA entre 1963 e 1969, chegou ao cargo
após o assassínio de John Kennedy, de quem era vice. Mas seria eleito
em 1964, infligindo ao republicano Barry Goldwater uma esmagadora
derrota. Na sequência da Ofensiva do Tet anunciou que retirava a
LYNDON candidatura às presidenciais de 1968. Morreu de ataque cardíaco, em
B. JOHNSON 1973, no seu rancho do Texas.
1908-1973

nos combates subsequentes, até Setembro. Os energia da indignação: o mundo descobria que PALAVRAS-CHAVE
mortos americanos cifraram-se nesse período todos os povos têm direito à independência e
ESCALADA
em 4 mil, o equivalente às perdas nos cinco à liberdade. Símbolo do intervencionismo e Aumento
anos que leva a actual guerra do Iraque. do capitalismo, os EUA transformaram-se em progressivo do
Mas a vitória militar americana marcaria o alvo de acerbas críticas. envolvimento
militar americano
início do descalabro. Contestada a partir de
na guerra; tendo
então em todo o mundo e nos próprios EUA, a OSFRANCESESNAINDOCHINA começado por
política intervencionista de Washington moti- O envolvimento dos EUA no Vietname é indis- enviar alguns
varia inúmeras manifestações de repúdio. Pela sociável da chamada Guerra da Indochina, que conselheiros
militares para o
primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial, envolveu nos combates, entre 1945 e 1954, um Vietname do Sul,
a maioria da opinião pública deixava de ver quase esquecido corpo expedicionário francês. os EUA chegaram
o mundo dividido entre os «bons» democra- Fora no já distante ano de 1863 que a França a ter mais de 500
tas e os «maus» comunistas. Eram os jovens, transformara o Camboja num protectorado e mil homens no
terreno
e sobretudo os estudantes, os principais con- iniciara a sua expansão no Extremo-Oriente.
testatários, mas não se esgotava nessa faixa a No ano seguinte seria anexada a Cochinchina,y POMBAS Partidários
da paz; a pomba
branca é, como se
sabe, o símbolo
tradicional da não-
-beligerância
FOTOS: PHILIP JONES GRIFFTHS/MAGNUM

SEDE À CHUVA O Vietname foi um verdadeiro inferno para as tropas americanas envolvidas

v 59
1968 VIETNAME

PALAVRAS-CHAVE
A LUZ QUE ILUMINA
FALCÕES
Defensores da Em jovem foi cozinheiro num navio francês. Esteve na fundação do PCF,
guerra; os falcões, estudou Táctica em Moscovo e fundou o Vietminh. Durante a II Guerra,
que são aves de combateu os japoneses. Proclamou a independência do Vietname
rapina, alimentam- (do Norte) e derrotou os franceses em 1954. Fundou o Vietcong, para
-se da carne de
libertar o Sul. Morreu com 79 anos, quanto tudo se encaminhava já para
outros animais... HO CHI MINH
a derrota americana. O seu nome significa 'Aquele que Ilumina'.
NAPALM Dá-se 1890-1969
este nome a uma
sinistra mistura
de líquidos y o segundo dos cinco territórios que mais tar- quatro anos manteve-se este satatu quo sem
inflamáveis à de haveriam de constituir a Federação Indo- que nenhum dos parceiros conseguisse opor-
base de gasolina chinesa. Vinte anos depois, seria a vez do Ton- -se ao crescimento do movimento comunista.
gelificada
quim (Vietname do Norte), do Anão (longa Ho Chi Minh revelou-se o mais pragmático
desenvolvida
nos EUA a faixa litoral com capital em Hué) e do interior dos estruturadores do que viria no futuro a
partir de 1942 e e montanhoso reino do Laos. Durante cerca de transformar-se numa bem organizada guer-
impiedosamente 70 anos, a Indochina, foi o mais populoso ter- rilha de inspiração marxista. E o movimento
utilizada na guerra
ritório da chamada França Ultramarina. anticolonial ia engrossando de dia para dia,
para incendiar
casas, plantações Ao contrário do procedimento adoptado pe- tendo por alvos tanto os administradores fran-
e... pessoas; o seu los britânicos na Índia, os franceses adminis- ceses como os novos ocupantes nipónicos.
uso foi proibido travam os domínios indochineses sem inter- Em 9 de Março de 1945 todas as guarnições
pela ONU em
1980
ferência de funcionários locais. Ao agir assim, tricolores em território indochinês eram ata-
Paris impedia a formação de uma burguesia cadas pelos «parceiros» japoneses, e dois dias
local ocidentalizada capaz de apoiar as suas depois o imperador Bao Dai proclamava a in-
pretensões nas horas difíceis e de, inclusive, er- dependência do Vietname na órbita de Tóquio.
guer uma barreira aos movimentos marxistas. Mas em Setembro verificava-se a capitulação
Na época da Guerra do Pacífico, Tóquio, em japonesa em todas as frentes da Guerra do
vez de expulsar os franceses da sua colónia asi- Pacífico, na sequência dos bombardeamentos
ática, preferiu chegar a um acordo: o território atómicos de Hiroxima e Nagasáqui efectuados
continuaria a ser administrado pela França, pelos americanos.
mas sob ocupação militar nipónica. Durante Com o Japão fora de cena e a França restituí-

VIETNAMEAS DATAS Navios dos EUA


Com as conversações
de paz a decorrer
atacados por lanchas- em Paris, os EUA
-patrulha Vietcong no têm ainda no terreno
A França golfo do Tonquim; os 542 mil homens.
envolve-se americanos retaliam. Mas começa a É assinado um
numa guerra O presidente retirada americana. acordo de paz
A França do colonial para O Vietname Johnson aumenta Superbombardeiros Recrudescem entre os EUA e
Segundo Império manter a do Norte apoia o total das forças americanos B-52 na América as o Vietname do
inicia a conquista soberania na a guerrilha americanas na zona fustigam o Norte. É manifestações contra Norte e retiram os
da Indochina Indochina Vietcong, no Sul para 23 mil homens utilizado o napalm a guerra últimos americanos

              

Após a ocupação A França é derrotada À sombra da lógica da Ataques Vietcong Cerco dos marines Os Vietname do
e a derrota em Dien Bien Phu Guerra Fria (oposição a bases americanas em Khe Sanh. Norte lança a
japonesa, o e reconhece a Leste-Oeste), os no Vietname do Grande Ofensiva ofensiva final contra
Vietname do independência do EUA envolvem-se Sul. A Força Aérea do Tet. Washington o Sul, toma Saigão
Norte proclama Vietname, dividido directamente no dos EUA começa a anuncia o fim dos (que passa a chamar-
a independência em Vietname do conflito interno do bombardear o Norte. bombardeamentos do -se Cidade de Ho
e o do Sul torna- Norte (Comunista) Vietname Chegam os marines Norte. Começam as Chi Minh) e unifica
-se um estado e Vietname do Sul conversações de paz o país
«associado» da (capitalista)
França

60 v
OPERAÇÃO HELITRANSPORTADA O helicóptero foi o transporte por excelência das tropas americanas no Vietname

da à normalidade, parecia que a situação era NÚMEROS


propícia a um regresso ao estado de coisas an- O ENVOLVIMENTO AMERICANO
terior à Guerra Mundial. Pura ilusão. A guer-
rilha crescera de intensidade e Ho Chi Minh RAMO DAS FA’S MOBILIZADOS MORTOS FERIDOS DESAPARECIDOS
declarou o Vietname do Norte independente, Exército 4 368 000 38 218 96 802 617
enquanto Bao Dai continuava a chefiar, no Sul, Fuzileiros 794 000 14 840 51 392 242
um «estado associado» de Paris. Marinha 1 842 000 2 565 4 178 401
De Gaulle, chefe do Executivo francês de Força Aérea 1 740 000 2 587 1 021 649
1944 a 1946, ordenou a partida de tropas para TOTAL 8 744 000 58 210 153 393 1 909
a Indochina. Depauperada, a França servia-se
de navios emprestados pela Inglaterra. No Ca-
nal de Suez um dos barcos carregados de tro- de perdas nacionalistas avaliado em 500 mil.
pas cruza-se com um navio britânico que trans- A Guerra da Indochina não foi popular na me-
porta de regresso a casa militares que haviam trópole. A França, recém-libertada da ocupação
combatido na Birmânia. «Vocês enganaram-se nazi, desejava viver em paz. Como os políti-
no caminho!...», ironiza, pelo megafone, um cos se recusaram a enviar do contingente geral
oficial inglês. Pragmática, a Inglaterra decidira para o teatro de operações, todo o desgaste teve
conceder a independência ao seu Império das de ser suportado pelo quadro permanente, as
Índias, a qual se consumaria em 1947. forças especiais e voluntários. As despesas em
FOTO: PHILIP JONES GRIFFTHS/MAGNUM

Na Indochina francesa, as independências armamento e em logística suplantavam o valor


parcelares só viriam a ser realidades após um do capital investido nas instalações comerciais
longo e desgastante conflito armado e ao preço francesas da região. E era uma guerra de an-
de 77 mil mortos e 85 mil feridos do lado das temão perdida. Pela primeira vez, não se com-
forças coloniais (incluindo os legionários e as batia ao longo de frentes, mas numa amálga-
tropas autóctones) e de um número não oficial ma de emboscadas a acções de policiamento.y

v 61
1968 VIETNAME

O FALCÃO COERENTE
Comandante das forças americanas no Vietname no apogeu do conflito
(1964-1968), este general ficou conhecido como «vencedor de todas as
batalhas até perder a guerra». Falcão assumido, foi mandado para casa
quando se inauguraram as conversações de paz. Pouco antes de morrer,
aos 91 anos, continuava a sustentar que a guerra não foi um equívoco
WILLIAM
WESTMOREND dos EUA e que a História haveria de reconhecer a necessidade dos
1914-2005 milhões de mortos causados pela intervenção americana no Oriente.

UM MITO REAL
Este general vietnamita é, com toda a propriedade, uma lenda viva,
pois, à beira de completar 97 anos, continua entre nós. Fundador e
comandante do Exército do Povo Vietnamita, é considerado um dos
maiores estrategos do século XX. Não admira, pois, com as suas tropas
VO NGUYEN de um país do chamado Terceiro Mundo, derrotou os exércitos da
GIAP França e dos EUA. Depois da reunificação Vietnamita, foi ministro da
(N. 1911) Defesa e primeiro-ministro, mas retirou-se da política aos 80 anos.

PALAVRAS-CHAVE y A táctica do general norte-vietnamita Giap blindados contra guerrilheiros prova-o. Parti-
era já a mesma que viria a ser adoptada 20 anos dário do envolvimento americano no conflito,
AGENTE LARANJA depois contra os americanos, com resultados chegou a deslocar-se a Washington para pedir
Mistura de
dois herbicidas igualmente brilhantes. ajuda, mas sem obter resultados imediatos.
usada pelos No início de 1948, os franceses foram recon- Desprezando as técnicas da guerrilha, Navar-
americanos como quistando posições no delta do Rio Vermelho. re (sucessor de De Lattre após a morte deste)
desfolhante Em 1949, com a conquista do poder na China concentrou 27 batalhões no acampamento for-
na Guerra do
Vietname pelos comunistas de Mao Tsé-tung, a França tificado de Dien Bien Phu. A 13 de Março de
começou a recear um envolvimento directo do 1954, Giap lançou o bombardeamento das po-
GI Nome familiar
dado desde há
colosso no conflito, o que não viria a verificar-- sições francesas. Ao suicídio do comandante da
mais de um século se. O ano de 1950 principiou com o reconheci- artilharia francesa seguiu-se o descalabro. A 31
aos militares mento do Governo de Ho Chi Minh por Mos- de Março caía a última posição: o Forte Isabelle.
americanos, covo e Pequim e o de Bao Dai por Washington Só 3 mil homens, de um total de 16 500, sobre-
construído
a partir das iniciais
e Londres. Em Junho estalava a Guerra da viveram ao cerco e à detenção. As baixas de Giap
da expressão Coreia, e Paris enviou mais tropas para com- cifraram-se em 8 mil mortos e 15 mil feridos.
galvanized baterem nesse novo conflito ao lado dos ame- A batalha de Dien Bien Phu anunciava o fim
iron (ferro ricanos. Mas a sorte das armas na Indochina das pretensões de domínio ocidental no Orien-
galvanizado)
inscrita nas latas começava a ser madrasta para o tricolor. te. Ironicamente, abria caminho ao envolvi-
para o lixo usadas Após uma insurreição do Vietminh em Ha- mento americano naquela que é universalmen-
pela tropa nói, o general De Lattre de Tassigny, nomeado te conhecida por Guerra do Vietname.
‘MARINE’ Os comandante e alto-comissário, construiu uma
marines são os linha fortificada para proteger Hanói (entre- OSEUAENTRAMEMCENA
fuzileiros navais tanto «pacificada») e o delta do Rio Vermelho. Os acordos de cessar-fogo seriam assinados em
dos EUA, ou
seja, as tropas
Herói da II Guerra Mundial, De Lattre não Genebra em Julho desse ano de 1954. Em Ou-
de combate compreendeu que o teatro de operações in- tubro, os franceses evacuaram Hanói e o Presi-
embarcadas dochinês era diferente do europeu. O uso de dente americano Dwight Eisenhower escreveu

62 v
MASSACRES Aldeias inteiras foram riscadas do mapa; o comandante operacional da chacina de My Lai foi a tribunal, mas absolveram-no

ao sul-vietnamita Ngo Dinh Diem (que pas- para 15 mil o número de «conselheiros» mili- PALAVRAS-CHAVE
sara a chefiar o Governo, embora o Chefe do tares junto de Diem. A palavra «conselheiros»
VIETCONG Era
Estado continuasse a ser Bao Dai) prometen- era eufemística, pois logo no início de 1962 este o nome,
do-lhe apoio directo «na luta contra o agressor o general Harkins era nomeado comandante mais ou menos
comunista» do Norte. A influência da França militar americano no Vietname do Sul. pejorativo, dado
no Vietname passava à História, substituída Durante a década de 1960, a Guerra do Vie- pelos americanos
e sul-vietnamitas
pela dos EUA. tname polarizou a atenção do mundo. Em Por- aos guerrilheiros
A assinatura de um acordo de cooperação tugal, as repercussões foram muito superiores comunistas que
militar entre Washington e Saigão, em Fe- às do anterior confronto franco-vietnamita. actuavam no Sul;
é uma abreviatura
vereiro de 1955, estabelecia que os EUA se Apesar da censura, os jornais e a RTP podiam
de Viet Nam Cong
comprometiam a treinar o exército sul-viet- noticiar as operações bélicas no Sueste Asiá- San (Comunistas
namita. Dois meses depois, Saigão solicitava a tico, que camuflavam as da Guerra Colonial Vietnamitas)
intervenção americana contra as incursões dos em que as próprias FA's portuguesas se viam SAIGÃO A capital
guerrilheiros do Norte. envolvidas e que só podiam ser noticiadas sob do Vietname
Só em 1958, porém, a guerrilha comunis- a forma de comunicados oficiais. do Sul e maior
ta do Sul (conhecida por Vietcong) começava Os bombardeamentos de Hanói seriam a cidade vietnamita
era o verdadeiro
a actuar. Em meados de 1959, vários conse- faceta mais espectacular da actuação militar quartel-general
lheiros militares dos EUA seriam mortos num dos EUA. Os primeiros ataques lançados com das tropas
ataque contra a base de Bien Hoa. Finalmente, bombardeiros B-52 e caças-bombardeiros americanas
em Setembro de 1960, o PC do Vietname (do Phantom, pouco depois da nomeação do gene- deslocadas para
a zona; a sua
FOTO: PHILIP JONES GRIFFTHS/MAGNUM

Norte) lança um apelo à libertação do Sul, e a ral Westmoreland para comandante, no Verão tomada pelo
guerrilha alastra das cidades para os campos. de 1964, seguiram-se a incidentes no Golfo de Vietname do
Em Setembro de 1961, o general Maxwell Tonquim entre navios americanos e norte-viet- Norte marcou
o fim da guerra;
Taylor preconiza o envolvimento de tropas namitas. O alvejamento de posições a norte da
chama-se agora
americanas. O Presidente Kennedy é sensível fronteira entre os dois Vietnames com recurso Cidade de Ho Chi
a este tema e, em Dezembro, decide aumentar a napalm e a desfolhantes principiou em 6 dey Minh

v 63
1968 VIETNAME

O PRESIDENTE PARADOXAL
Será sempre lembrado por ter sido forçado a resignar ao cargo
de Presidente (republicano) dos EUA, devido ao caso Watergate,
relacionado com escutas ilegais da campanha adversária, em 1972. Mas
foi ele que iniciou as conversações de paz com o Vietname do Norte,
aproximou os EUA da China e abriu as negociações com a URSS para
RICHARD
NIXON a redução de armamento. Vice de Eisenhower, fora derrotado por
(1913-1994) escassa margem por John Kennedy nas presidenciais de 1960.

A 'BOMBA' DA PAZ
Célebre actriz de cinema americana, continua a ser para muitos a
Barbarella da BD transposta em 1968 para o celulóide pelo então seu
marido Roger Vadim. Mas, para muitos mais, ela é a maior contestatária
da Guerra do Vietname. Visitou Hanói, foi filmada numa bateria
antiaérea norte-vietnamita e participou em manifestações contra a
JANE FONDA
(N. 1937)
guerra. Face à hostilidade de muitos compatriotas, viria a retractar-se,
mas no imaginário colectivo continua a ser a imortal «Hanoi Jane».

PALAVRAS-CHAVE y Fevereiro de 1965. É a «escalada», termo uti- «pombas» e dos «falcões», Johnson decidiu-
lizado para designar o crescente envolvimento -se pela aproximação negocial com o inimigo.
HANÓI A capital
do Vietname do de Washington. Dois dias depois desembarca- A primeira entrevista decorreu a 13 de Maio,
Norte tornou-se vam em Danang os primeiros marines. Ascen- numa cidade de Paris submersa na torrente de
em 1975 a capital diam a 20 mil os soldados americanos na zona, acontecimentos do «Maio de 68».
do Vietname
cifra rapidamente dilatada para 125 mil. Eleito Presidente, Richard Nixon deu con-
unificado
Por essa altura, já Diem, assassinado em No- tinuidade ao diálogo e anunciou a «vietnami-
HUÉ A antiga vembro de 1963, fora substituído na chefia do zação» da guerra, iniciando-se em meados de
capital imperial
Vietnamita Vietname do Sul por generais da confiança dos 1969 o repatriamento de militares. Em 15 de
foi palco de EUA. Eram os tempos de Lyndon Johnson, o Novembro, 250 mil americanos marcharam
sangrentos Presidente americano que mais acarinhou o sobre Washington, exigindo o fim da interven-
combates no fim envolvimento na Ásia Oriental, e do secretário ção. Nada disto o impediu de, em Fevereiro de
de Janeiro de
1968, aquando da da Defesa Robert McMamara. A obstinação de 1970, autorizar o alastramento da guerra ao
Ofensiva do Tet ambos fez com que os efectivos atingissem o Laos. Em Abril foi a vez de o conflito se esten-
CHOLON O bairro
número redondo de 500 mil em finais de 1967 der ao Camboja, para «limpeza» dos «santuá-
das diversões e a cifra máxima de 544 mil no ano seguinte. rios» em território khmer.
de Saigão era o Mas foi o canto do cisne. Algo iria mudar. Foi, Em meados de 1971, o corpo expedicionário
paraíso dos GI’s com efeito, em 1968 que a América se aperce- americano estava reduzido a 220 mil efectivos,
beu da eventualidade de poder não vencer a sendo o grosso das operações terrestres asse-
guerra. Os bombardeamentos diários do Norte gurado por Saigão. No final do ano, eram já
não tinham outro resultado que não fosse o «só» 160 mil os GI's na zona, e na altura das
de reforçar a união e aguçar a tenacidade dos eleições de 1972 não havia ali mais de 40 mil.
camponeses que viam as suas casas destruídas
e que as reconstruiam da noite para o dia. AQUEDADESAIGÃO
A ofensiva do Tet fez, como já vimos, virar As conversações de paz decorriam em Paris
a sorte das armas. Na América, as cenas de com altos e baixos, mas é justo reconhecer
guerra transmitidas pela TV despertaram a o empenhamento de Nixon na resolução do
opinião pública, e a inutilidade da intervenção problema. O seu conselheiro (e depois secre-
ficou patente. Dividido entre as pressões das tário de Estado) Henry Kissinger encontrou

64 v
NA AMÉRICA As manifestações e sessões de protesto contra o envolvimento no Vietname tornaram-se uma prática quase diária

no delegado norte-vietnamita Le Duc Tho um da. A ponto de «Che» Guevara ter lançado o
parceiro à altura. Embora os interesses de am- slogan «Criar dois, três, muitos Vietnames é a
bos fossem diametralmente opostos, havia a palavra de ordem», pretendendo significar que
percepção comum de que a guerra seria ine- cada conflito deste tipo resultaria numa que-
vitavelmente ganha pelos autóctones. Em 27 bra de imagem e num desgaste dos EUA.
de Janeiro de 1973 foi, finalmente, firmado Mas muita coisa mudaria em poucos anos,
um acordo que escalonava por datas ao longo entre 1989 e 1991, e os ventos que agora so-
desse ano o repatriamento dos GI's. pram são bem diferentes.
Os sul-vietnamitas conseguiram manter a
guerra ainda por mais de um ano, até que, em
30 de Abril de 1975, Saigão caía e era rebapti-
zada de Cidade de Ho Chi Minh.
Não há na consciência americana trauma
PASSADOS 40 ANOS
Hoje, o Vietname é um país onde as marcas da guerra contra os EUA
maior do que o do Vietname. Ficou a convicção são já pouco visíveis e onde «o inimigo» veste sobretudo as roupagens
de que uma guerrilha é invencível, mas o ensi- da velha França colonizadora. Continua a ser uma república socialista
namento já poderia ter sido colhido em Dien de partido único, mas a partir de 1986 levou a cabo reformas
Bien Phu. Claro que a América não utilizou a económicas, conhecidas por Dói Mói (Renovação). A criação de
arma nuclear, mas se o tivesse feito incorreria empresas privadas foi não só permitida mas encorajada. Esta política,
na resposta de Moscovo. semelhante à Perestroika de Gorbachev na URSS, não foi, ao
O trauma americano prende-se também contrário desta, acompanhada de uma Glasnost, ou abertura política.
com a síndrome do Vietname. Muitos dos sol- A Renovação Vietnamita assemelha-se mais à abertura chinesa.
dados mobilizados regressaram transtornados Se o Vietname parece ter «herdado» algum pragmatismo dos
e, até, transformados em assassinos potenciais. inimigos de décadas, já não pode dizer-se que estes últimos tenham
A luta na retaguarda contra o envolvimento
FOTO: RAYMOND DEPARDON/MAGNUM

recebido ensinamentos práticos da intervenção no Sueste Asiático.


foi uma causa popular e o próprio ex-presiden- Com efeito, 28 anos depois da saída do Vietname, os EUA envolviam-
te Clinton participou nela quando estudante. -wse numa nova guerra de ocupação de um país distante: o Iraque.
A palavra Vietname transformou-se num Porém, a intervenção no Vietname inseria-se na lógica da guerra fria;
símbolo da «agressão imperialista no mundo», a mais recente baseou-se na distorção de dados para «justificar» um
para usar a expressão consagrada pela esquer- reforço de posições numa zona petrolífera estratégica.

v 65
1968 VIETNAME

GUERRA
É GUERRA
A 21 de Fevereiro,
estudantes portugueses
protestavam numa célebre
«manif» em frente da
embaixada americana em
Lisboa. O Vietname tornou-
-se um símbolo do conflito
travado em África
• por Sara Belo Luís

J
orge Silva Melo lembra-se
como se fosse hoje. À noi-
te, planeava assistir à es-
treia, no Cinema Éden, de
Jerry Oito e Três Quartos.
Tinha comprado o primei-

DOCUMENTO CEDIDO PELO ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO


ro número do jornal A Capital, que
nesse dia se estreava nas bancas, e
ao princípio da tarde havia conheci-
do a actriz Glicínia Quartin. Seguira
depois, com Maria Andresen, para o
Liceu Camões, na Praça José Fonta-
na. Daqui, segundo palavra passada
pelas associações das várias facul-
dades de Lisboa, os estudantes des-
ceriam a Avenida Duque de Loulé, ‘O SÉCULO’ Apesar da Censura, a manifestação dos
em direcção à embaixada americana. estudantes em Lisboa foi noticiada pela imprensa
O protesto era contra a Guerra do portuguesa
Vietname, mas também contra a
Guerra Colonial travada em África
pelo regime de Salazar. «Não era só finalista de Direito, «o melhor pretex- três semanas que passou na prisão de
Ho Chi Minh que estava em causa», to do mundo»: «As pessoas viam no Caxias. Foi libertado – continua ele
explica o encenador. Vietname um símbolo da Guerra Co- a recordar «cinematograficamente»
Estamos a 21 de Fevereiro de 1968, lonial.» Para a História, haveriam de – quando Jacques Tati veio a Lisboa
dia em que, pela primeira vez em Por- ficar uma repressão inédita por parte mostrar Playtime.
tugal, se organiza uma manifestação da PIDE e o embrião de movimen-
fora da lógica académica. O pretexto tos políticos que viriam a aparecer RADICAISECATÓLICOS
era, como nota Nuno Brederode San- pouco tempo depois. Para Jorge Silva Os tempos eram confusos. O País es-
tos, um dos organizadores e na altura Melo, aquele dia foi o primeiro das tava como que suspenso à espera da

66 v
morte de Salazar e, no meio acadé- portanto, contra a Guerra Colonial.» da embaixada, a polícia responde. Or-
mico, acrescenta Brederode Santos, Além de Nuno Brederode Santos e ganizadores e manifestantes são sur-
«vivia-se uma fase de grande confu- de Amadeu Lopes Sabino, do núcleo preendidos por cães. «Foi a primeira
são política». Por seu lado, o escritor central que organizou a «manif» vez que a PIDE largou cães numa ma-
Nuno Júdice, à época aluno em Le- também faziam parte Jorge Almei- nifestação. E nós não sabíamos lidar
tras, fala de «um clima efervescen- da Fernandes, Jaime Gama, Arnal- com aquilo. Um cão não vai com ar-
te». Um mês antes, a 17 de Janeiro, o do Matos, Fernando Rosas e Mateus gumentos...», diz Brederode Santos.
Porto já havia assistido a um protesto Vítor Mendes Branco, fazendo este E, a partir deste momento, as palavras
de cerca de cem estudantes contra a último a ligação com o Partido Co- de ordem passam também a referir-se
Guerra do Vietname, relatado pela munista. João Bénard aos conflitos travados
correspondente do New York Times da Costa, director de OS em África: «Abaixo a
em Lisboa, Marvine Howe, nestes O Tempo e o Modo, ar- Guerra Colonial!»
termos: «Portugal trava guerrilhas ranjou dinheiro para ESTUDANTES Com a imprensa in-
em Angola, em Moçambique e na pagar as tintas das DESCEMA ternacional a dar conta
Guiné e, desde o princípio, apoiou o impressoras, havendo AVENIDA do que se tinha passa-
esforço militar norte-americano no também quem tenha do em Lisboa, os ob-
Vietname. Notícias sobre protestos estabelecido contacto DUQUE jectivos estavam cum-
anti-Guerra do Vietname nos Esta- com os seminaristas DELOULÉ pridos. Contudo, era
dos Unidos e noutros locais são, habi- dos Olivais, um grupo «VITÓRIAPARA importante que, conta
tualmente, censuradas pelo Governo. em ruptura com a or- hoje Fernando Rosas,
(...) A polícia interveio rapidamente todoxia católica. «Não
AFRENTE «aquela organização
e dispersou a multidão, detendo dois eram muitos, mas a sua NACIONALDE se não dispersasse».
dos manifestantes». participação tinha um LIBERTAÇÃO A maior parte dos nú-
Amadeu Lopes Sabino, então re- significado muito for-
cém-licenciado e actual director do te», sublinha Almeida
DOVIETNAME!» cleos dos Comités Vie-
tname, dispersos pelas
serviço jurídico do Conselho da União Fernandes. várias faculdades en-
Europeia, foi um dos estudantes por volvidas, vieram a con-
detrás da manifestação que ocorreu a SURPREENDIDOSPORCÃES verter-se em núcleos da Esquerda De-
21 de Fevereiro, dia que depois passou Constituiu-se ainda um organismo, mocrática Estudantil (EDE) e, pouco
a ser comemorado como Dia Mundial designado Associação Solidariedade depois, Rosas viria a acompanhar Ar-
contra o Colonialismo e o Imperialis- Portugal-Vietname, em nome do qual naldo Matos na fundação do MRPP.
mo. Coordenava os Comités Vietname foram impressos os panfletos distribu- Hoje, Jaime Gama pensa que, de
e, nesta qualidade, participou em reu- ídos nas ruas. Jaime Gama lembra-se certo modo, o regime estava interes-
niões com outros estudantes em Du- de ter tido instalada em sua casa uma sado em compreender os movimen-
blim, Londres e Paris com o objectivo das máquinas onde se fotocopiaram tos envolvidos na organização da
de organizar um protesto internacio- alguns destes materiais. «manif» de 21 de Fevereiro de 1968.
nal (em Berlim, por exemplo, haveria Chegado o dia, os estudantes des- «Sempre tive a impressão de que o re-
de ficar célebre a prisão do encenador cem a Avenida Duque de Loulé. Lopes gime tomou medidas para controlar
Peter Stein). «Eram associações mais Sabino afirma que «eram em número e reprimir a manifestação, mas que
radicais, que não estavam ligadas aos suficiente para fazer barulho» e que, nunca tomou medidas para a impe-
Partidos Comunistas. Nós e os espa- por outro lado, «a PIDE controlava dir. Além do mais, tratava-se de um
nhóis tínhamos uma posição mais toda a zona». «À primeira palavra de protesto contra os Estados Unidos e
clandestina do que os outros, tínha- ordem, a polícia caiu toda em cima dos estes não tinham apoiado o Estado
mos de ser mais cautelosos», recorda manifestantes», acrescenta Fernan- português...», comenta o presidente
Lopes Sabino. Explica Luís Salgado do Rosas. Estava combinado que, por da Assembleia da República. Lá lon-
Matos, hoje investigador do Institu- uma questão de defesa, só se usariam ge, enquanto os americanos se ato-
to de Ciências Sociais, as razões da slogans sobre a Guerra do Vietname: lavam na selva vietnamita, os portu-
contestação: «Achávamos que o PC «Vitória para a Frente Nacional de gueses morriam emboscados no mato
não fazia nada contra o Vietname e, Libertação do Vietname!» Em frente africano.

v 67
1968 D I S C R I M I N AÇ ÃO R AC I A L

O homem
que tinha
um sonho A bala que pôs fim à vida de Martin Luther King Jr.,
em Abril de 1968, criou um mito que vai muito
para lá dos Estados Unidos da América

O
• por Emília Caetano

O
Lorraine, um motel ba- to até aí nunca se definira como socialista, por
ratucho no centro de essa altura começara a defender, pelo menos
Memphis, no Tennessee, entre os seus próximos, uma espécie de «socia-
é hoje uma espécie de lismo democrático» para os EUA. Mas o que
santuário. Ali funciona o tornava mais controverso nessa fase final da
o Museu Nacional dos vida foi o endurecimento das críticas à guerra
Direitos Cívicos, guar- do Vietname, até aí só sugeridas. Um ano antes
dião da memória da luta de ser assassinado fizera um discurso na Igreja
pela igualdade dos ne- de Riverside, em Nova Iorque, onde acusara
gros norte-americanos, Washington de querer transformar aquele país
mostrada através de um percurso que termina numa «colónia americana» e de ser então «a
no quarto 306, onde Martin Luther King foi principal fonte de violência no mundo».
morto em 4 de Abril de 1968, aos 39 anos, por Naquele ano de 1968, continuava a ser, so-
uma bala que lhe foi directa à cabeça. Estava bretudo internacionalmente, o rosto mais me-
ele na varanda a falar com os seus assessores diático da luta dos negros pelos seus direitos
ao final da tarde, quando alguém disparou de civis. Mas era um homem mais isolado e can-
um prédio do outro lado da rua. sado. Por alguma razão a autópsia revelou que
King chegara a Memphis no final de uma tinha o coração de uma pessoa de 60 anos.
campanha que iria terminar no dia 22 em Wa- Fora forçado a esquerdizar o discurso porque
HOMENAGEM shington, com a Marcha dos Pobres. Durante o a sua defesa da não-violência deixava indife-
O único americano último ano, tinha esquerdizado o discurso. An- rentes os jovens dos guetos negros de cidades
que tem um dara pelo país a organizar «um exército mul- como Nova Iorque ou Chicago. Nesses bairros,
feriado com o
tirracial de pobres», que exigiria ao Congresso dirigentes mais radicais, sobretudo Malcolm
seu nome além
de George uma Carta de Direitos. Ideologicamente conti- X, assassinado em 1965, eram bem mais popu-
FOTO: AP

Washington nuava a renegar o comunismo, só que enquan- lares. Na Marcha dos Pobres, que convocara y

68 v
v 69
1968 D I S C R I M I N AÇ ÃO R AC I A L

MEMPHIS A polícia
agride jovens
negros
na cidade onde
King seria
assassinado
uma semana
depois

y para Washington, não tinha consigo outros lhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e
PALAVRAS-CHAVE
líderes negros, receosos dos objectivos vagos os filhos dos antigos donos dos escravos se sen-
de uma manifestação em que as reivindicações tem juntos à mesa da fraternidade.» A revista
específicas dos negros ficariam diluídas. Time elegeu-o, logo em 1963, o homem do ano.
Nessa recta final o Governo já o acusava E em 1964 tornava-se o laureado mais jovem
de instigar os motins dos jovens, algo que ele de sempre com o Nobel da Paz. Mas, depois das
tentara, sem sucesso, travar. Por ironia, nos críticas à guerra, até os media estavam a deixá-
dias que se seguiram aos seu assassínio houve lo cair. A mesma Time chamou ao discurso na
confrontos violentos com a polícia em mais de igreja de Riverside «propaganda demagógica
BLACK POWER cem cidades, que resultaram em quase meia que parecia um guião para a Rádio Hanói». E
Movimento que
apelava ao orgulho
centena de mortos. Mas a esquerdização de The Washington Post acusava-o de se ter torna-
negro e à criação King, sobretudo as críticas ao Vietname, de- do, com essas críticas, «menos útil à sua causa,
de organizações sesperavam o Presidente Lyndon Johnson, que ao seu país e ao seu povo».
políticas e em 1964 assinara a lei, ainda apresentada por
culturais desta
raça Kennedy, que acabava com a segregação racial ACAMINHODOSCIVILRIGHTS
nos lugares públicos, e no ano seguinte apro- Um reverendo não é um religioso vulgar nos
SCLC
vava a lei que dava aos negros o direito de voto EUA. Já nos tempos da escravatura, quando os
A Southern
Christian sem restrições. Com o seu staff, Johnson terá negros não podiam reunir-se sem o seu dono,
Leadership desabafado: «Que mais quer esse diabo de pas- os pregadores da então chamada «igreja invisí-
Conference tor negro? Demos-lhe tudo!» vel» eram homens que arranjavam locais quase
(SCLC) era a
Se King nunca chegou a ver o resultado da clandestinos para dizerem missa e passarem
organização criada
por Martin Luther sua Marcha dos Pobres, fora outra Marcha so- mensagens de encorajamento.
King para dirigir a bre Washington que, cinco anos antes, o torna- Com o final da Guerra da Secessão, em 1865,
luta pelos direitos ra um símbolo. Junto ao memorial a Lincoln, o papel dos pastores negros só aumentou. Eram
cívicos
então com outros dirigentes negros a seu lado, eles que organizavam a resistência à segrega-
JIM CROW LAWS fez o discurso que ficou para a História: «Tenho ção, que representavam os negros junto das
As leis dos o sonho de que um dia, nas montanhas verme- autoridades, que dirigiam as escolas. Bom ora-
estados do Sul
que segregavam
os negros eram
conhecidas pelo
nome de uma
O LÍDER DOS GUETOS
personagem De seu nome Malcolm Lile, mudou de nome para lembrar
do espectáculo a cruz que muitos escravos tinham tatuada no braço. Preso
musical da década por crimes vários, de roubo a tráfico de droga, saiu aos
FOTO: BRUNO BARBEY/MAGNUM E AP

de 1830 28 anos, aderindo a um partido radical, a Nação do Islão.


Orador carismático, era muito popular no Harlem e outros
MALCOM X
guetos. Mais tarde criou a Organização de Unidade Afro-
(1925-1965)
Americana, já sem cariz religioso. Foi assassinado por
militantes da Nação do Islão, de que saíra.

70 v
O MOTEL LORRAINE King
com Jesse Jackson
(ao centro). Ambos
estariam naquela
mesma varanda no dia
seguinte, quando o
reverendo foi morto
(foto da direita)

dor, o pai de King era um reverendo influente, os grandes momentos de mobilização daquela
que dirigiu a sua comunidade de Atlanta, no luta. Bom orador como o pai, levava a comuni-
Mississípi, nos tempos da Grande Depressão e dade ao rubro: «Se nós não temos razão, então
durante as lutas pelo direito de voto. é Deus Todo-Poderoso que não tem. Se nós não
Foi numa família da burguesia negra de temos razão, então a justiça é uma mentira.»
Atlanta, que Martin Luther King nasceu, em O boicote durou 381 dias, durante os quais a
1929. Depois de uma passagem pelo seminário empresa quase faliu, mas os negros correram
de Crozer, na Pensilvânia, onde se interessou risco de vida. A casa do reverendo e até igrejas
pelas teorias de Gandhi, pensou seguir a vida foram atacadas à bomba, mas o final não po-
religiosa. A hipótese surgiu-lhe em 1954, numa dia ser mais compensador: ainda nesse ano o
igreja baptista de Montgomery, no Alabama. Supremo Tribunal autorizava os negros a sen-
Os tempos não podiam ir mais a favor de um tarem-se livremente nos transportes. A partir
jovem reverendo que quisesse ganhar protago- daí o movimento pelos Direitos Cívicos, os Civil
nismo junto da sua comunidade. Precisamente Rights, tinha um líder, Luther King, que fora
nesse ano, o Supremo Tribunal declarou in- preso duas semanas e se tornara uma perso-
constitucional a segregação racial nas escolas nalidade nacional. Ia tornar-se o pregador da
públicas, mas parecia que nada acontecera. Daí não-violência, organizando boicotes, sit-ins,
o impacto que teve a ousadia de Rosa Parks. manifestações. A sua arma seriam os media,
Naquele dia 1 de Dezembro de 1955, uma cos- sobretudo a ainda jovem televisão.
tureira negra de Montgomery recusou dar o
seu lugar no autocarro a um branco. Foi presa, ASULOANTIGOREGIME
depois de o condutor chamar a polícia. Os Estados do Sul tinham recuperado rapida-
Os negros decidiram boicotar os autocarros mente da vitória dos abolicionistas do Norte na
da empresa, enquanto o reverendo King, era es- Guerra da Secessão, que os obrigou a pôr fim
colhido para liderar uma associação de entrea- à escravatura. Os grandes proprietários alia-
juda, criada à pressa para arranjar transporte a ram-se à população branca mais desfavorecida
quem precisasse. Os seus sermões tornaram-se para manterem os negros à margem. Surgiu y

A PANTERA NEGRA
Popular entre os universitários, aderiu ao Partido dos
Panteras Negras, que tiveram confrontos com a polícia. Mais
tarde entrou no PC. Foi candidata a vice-Presidente dos
EUA, em 1980 e 1984, mas deixou o partido depois de este
apoiar o golpe de Estado de 1991 na URSS. Hoje é professora
ANGE DAVIS de História da Consciência na Universidade da Califórnia,
(N. 1944)
militante feminista e activista contra a pena de morte.

v 71
1968 D I S C R I M I N AÇ ÃO R AC I A L

LISBOA NA ROTA DO CRIME entanto, exportável para o Norte, onde muitos


negros se tinham refugiado. Aqui não existiam
Imediatamente após o assassínio de Martin
leis segregacionistas, mas eles acabaram em
Luther King, o homem que seria condenado a 99
guetos de cidades como Detroit, Nova Iorque
anos de prisão pelo crime, James Earl Ray (na
ou Chicago, muitas vezes sem emprego.
foto), fugiu para o Canadá e daí para Londres.
Seria, aliás, preso no aeroporto de Heathrow, Em 1966 King decidiu então estender o seu
dois meses depois. Mas, durante esse tempo, movimento aos Estados do Norte, começando
ainda veio brevemente a Lisboa, ao que consta por uma campanha de oito meses em Chica-
para contactar mercenários brancos em África. go, a cidade mais segregada do país. Foi uma
má ideia. O seu amigo Bayard Rustin bem o
avisara: «Vais ser feito em pedaços!». Seria
apedrejado logo na primeira manifestação que
y assim, um conjunto de leis que prolongava, na organizou. Mas, mais do que pelo racismo dos
PALAVRAS-CHAVE
maioria desses Estados, a segregação em todos brancos, Chicago foi uma má experiência por-
VOTING RIGTHS ACT os locais públicos, até nas cabinas telefónicas. que pela primeira vez King e os acompanhan-
O nome da lei de
1965 que deu aos Formalmente, os negros podiam votar, mas tes ouviram alguns negros mandá-los embora.
negros o direito de pouco lhes servia. A Carolina do Sul e a O credo da não-violência não encontrava eco
de voto sem Virgínia, por exemplo, obrigavam os eleitores entre os jovens de bairros negros, habituados
restrições
a um teste de alfabetização, quando a grande a medir forças com a polícia. Por essa altura
GEORGE WALLACE maioria dos negros não sabia ler. já eles costumavam erguer o punho em sinal
Governador do Por isso, não era de estranhar que a decisão do do Black Power, movimento que fazia apelo
Alabama, principal
opositor dos Supremo Tribunal de acabar com a segrega- à violência para dar aos negros o seu lugar na
direitos civis; ção nas escolas também fosse ignorada. Ain- sociedade. As ideias de King só provocam a
defendia «a da em 1957 o governador de Little Rock, no Malcolm X, o líder da Nação Muçulmana, um
segregação para Arkansas, preferiu fechar as escolas a aceitar sorriso de desdém: «Enquanto ele tem o seu
sempre!»
negros. sonho, nós, negros, vivemos um pesadelo.»
MARTIN LUTHER Em contrapartida, no início da década de Mas a popularidade de King fora dos meios
KING DAY
A terceira 1960 começaram as freedom rides, as viagens mais radicais tornava-o um homem sob sus-
segunda-feira de da liberdade. Jovens do Norte, muitos deles peita. John Kennedy, eleito Presidente em
Janeiro é feriado brancos, metiam-se em autocarros para irem 1960, e mais claramente ainda o irmão Ro-
nacional nos EUA, até ao Sul, denunciar os casos de segregação. bert, ministro da Justiça, afirmavam-se contra
instituído em 1986
Os primeiros, recebidos em Atlanta por King, a segregação, mas este, logo a partir de 1961,
só por milagre escaparam a uma multidão que mandara o FBI vigiar o reverendo. O então di-
tentou matá-los. Por medo, os médicos puse- rector, J. Edgar Hoover, fora um aliado pode-
ram na rua os que tinham sido hospitalizados. roso de McCarthy na época da caça às bruxas
e esforçou-se por provar ligações de King ao
NOSBAIRROSDOBLACKPOWER Partido Comunista. Daí que, em 1965, o reve-
«Durante anos ouvi a palavra ‘esperem’, mas é rendo dissesse, em entrevista à Playboy: «Há
uma palavra que significa ‘nunca’ (...) Nós esta- tantos comunistas neste movimento de liber-
mos à espera há mais de 340 anos», lembrava dade como esquimós na Florida», uma ironia
King na sua famosa Carta da Prisão de Birmin- que levou Hoover a chamar-lhe «o mais notá-
gham, em 1963. Ali fora preso, mais uma vez vel mentiroso do país». Então já ele descobrira
no lugar certo: aquela cidade ia continuar nos que um conselheiro de King era o advogado
jornais por más razões. O Ku Klux Klan mata- nova-iorquino Stanley Levison, ligado ao PC.
ria quatro raparigas, entre os 11 e os 14 anos, Hoover esforçou-se também por desacredi-
quando assistiam às aulas numa igreja. tar King através da sua vida pessoal, sobretudo
Nesse ano de 1963 King estava no auge da as conquistas femininas. Fazia chegar alegadas
fama, sobretudo depois do discurso do «so- provas aos jornais e até à família do reveren-
nho», durante a Marcha de Washington. A sua do– era casado com Coretta Scott, outra figura
popularidade nos Estados do Sul nunca fora, no destacada na luta pelos Civil Rights. Por isso,

72 v
ATLANTA
O vice-Presidente
Hubert Humphrey
e o então
candidato
presidencial
Robert Kennedy
estavam entre as
mais de 100 mil
pessoas
que assistiram
ao funeral,
a 9 de Abril

quando começaram a surgir teorias de conspi- -lhe que o apoiaria na tentativa de reabrir o
ração após a morte de Martim Luther King, o processo, o que nunca conseguiu. E os King
FBI era invarivelmente um dos suspeitos. ainda ganharam uma acção contra um ho-
mem, Loyd Jowers, que dizia ter sido pago
AFINALQUEMDISPAROU? para ajudar a organizar o crime. Nesse pro-
«Como toda a gente, gostaria de viver ainda cesso foi dado como provado o envolvimento
muito tempo. Mas isso agora é-me igual, pois de «agências oficiais», uma versão desmentida
vi a Terra Prometida. Talvez eu não a atinja. em 2000, por uma investigação do Ministério
Mas quero que saibam que nós, como povo, da Justiça. Em qual dos resultados acreditar?
chegaremos à Terra Prometida», dizia o reve- Para a História ficam as imagens do funeral
rendo em Memphis, na véspera de ser assas- de King, uma procissão até com dirigentes es-
sinado no Lorraine. Parecia premonição, mas trangeiros, uma vez que o reverendo ganhara
era apenas consciência da realidade. Afinal, enorme projecção internacional. O seu No-
já escapara várias vezes à morte. Uma pedra bel fora um encorajamento para todos os que
na manifestação de Chicago abrira-lhe o crâ- lutavam contra a discriminação racial e, nos
nio. E, logo em 1957, fora esfaqueado por uma seus discursos, sempre ligara a sorte dos ne-
negra perturbada, quando autografava livros gros da América aos do resto do mundo. Era,
nuns armazéns de Harlem. Para mais, vários aliás, uma referência que embaraçava os EUA.
dirigentes negros já tinham sido assassinados. Embora com hesitações, apoiaram as indepen-
A seguir ao crime ninguém foi preso. O prin- dências africanas, ao mesmo tempo que man-
cipal suspeito, James Earl Ray, um ladrão de tinham leis segregacionistas em casa. Daí que
automóveis sem passado de violência, que fu- o pai de Martin Luther King pudesse dizer, ao
gira da prisão do Missouri, só seria apanhado discursar no enterro: «Ele já não nos pertence.
dois meses depois, em Londres. Mas as inter- Pertence ao mundo.»
rogações multiplicaram-se. Como conseguira
Ray o passaporte canadiano que usou e o di-
nheiro para a viagem? E teria agido sozinho?
A verdade é que ele confessou o crime mas, dias PASSADOS 40 ANOS
depois, começou a negar, explicando que agira Pouco mais de 40 anos depois de os negros conseguirem o direito
a conselho do advogado, para escapar à pena de voto sem restrições (1965), há um com hipóteses de se tornar
capital. E manteve essa versão até à morte, em Presidente, Barack Obama, embora o primeiro a entrar na corrida tenha
1998, de uma hepatite. Tinha então 70 anos. sido o democrata Jesse Jackson, em 1984. Hoje os afro-americanos são
A família King sempre duvidou da versão cerca de 12% da população americana e, embora tenham uma classe
oficial. Um ano antes da morte de Ray, um dos média crescente, estão ainda longe do lugar dos brancos nas estatísticas.
FOTO: AP

filhos do reverendo, Dexter, foi à cadeia dizer- Por exemplo, a sua esperança de vida é, em média, cinco anos inferior.

v 73
1968 D I S C R I M I N AÇ ÃO R AC I A L

ILUSÃO Instantâneo da Luanda colonial, com rapazes a jogar à bola no seu gueto negro, como se não houvesse guerra no mato

IMPÉRIO A PRETO E BRANCO


A cidade de cimento para os brancos e as palhotas para os negros – assim se vivia
nas nossas colónias. No Portugal «metropolitano» havia poucos africanos na década
de 1960. Pinceladas do agonizante colonialismo português • por J. Plácido Júnior

E
ra o ano de que se fala – da República da Guiné-Bissau) Luís tava presos políticos, reorganizava e
1968. No Norte da Guiné- Cabral. «Com a sobriedade que lhe reforçava o dispositivo militar. Para
-Bissau, um soldado portu- restava, a primeira coisa que me disse nada. Em Março de 1973 entrava em
guês combatente na Guerra foi: ‘Estou farto da guerra!’» O mili- acção a nova arma do PAIGC – os
Colonial desertou da sua tar que antecipou a derrota seria en- mísseis antiaéreos Strella, de fabri-
unidade e embrenhou-se no caminhado para Argel, ao encontro co soviético. Os aviões e helicópteros
mato. Foi sendo acolhido em sucessi- da comunidade de exilados políticos militares portugueses eram abatidos
vas aldeias até chegar a um grupo de portugueses que ali se instalara. como tordos, com consequências de-
guerrilheiros do PAIGC (Partido Afri- Por sinal, foi também em 1968 que vastadoras: falta prolongada de apoio
cano para a Independência da Guiné chegou à Guiné António de Spínola, aéreo às forças em combate, incluin-
e Cabo Verde). O inimigo e o soldado o bem cotado general do monóculo do a evacuação de feridos, o que re-
festejaram o acontecimento – com o e do pingalim, nomeado por Salazar presentou para muitos deles a morte.
insinuante, mas poderoso, vinho de como governador geral e militar do Perante a degradação generalizada da
palma. «Quando me foi presente, es- território. Spínola tentou jogar em situação no território, Spínola já não
FOTOS: GESCO E D.R.

tava completamente embriagado», duas frentes: ao mesmo tempo que regressou de umas férias em Lisboa,
recorda, divertido, o então dirigente procurava melhorar as condições so- logo em Agosto de 1973, e apresentou
do PAIGC (e mais tarde Presidente ciais da população local e até liber- a sua demissão a Marcello Caetano,

74 v
que sucedera ao falecido Salazar à Sem os «óculos da inocência», Lídia
frente do regime – que cairia de podre Jorge escreveria o romance A Costa
em 25 de Abril do ano seguinte. dos Murmúrios (1988, Publicações
Dom Quixote), uma das suas obras
ÓCULOSDAINOCÊNCIA centrais, com a trama cingida à colo-
«Spínola fez o que pôde», comenta nial cidade da Beira. A páginas tantas,
Luís Cabral, «mas para muita gente a narradora, Eva Lopo, instalada no
a guerra já estava perdida na Guiné.» conforto do hotel Stella Maris, desan-
À época, na cidade moçambicana da ca o seu marido, o alferes Luís Alex,
Beira, a jovem professora liceal Lí- que trocara a investigação matemá-
dia Jorge sentiu o mesmo. Só que o tica pela carreira militar. Assim: «O
quotidiano da população branca de- problema é que em tempos me apai-
senrolava-se, na aparência, como se o xonei por um rapaz inquieto à procura
fim do Império não estivesse à vista. duma harmonia matemática, e hoje
Um casal de classe média-baixa con- estou esperando por um homem que
seguia ter em permanência dois cria- degola gente e a espeta num pau.»
dos negros – o mainato, que lavava e Moçambique foi aliás palco da que
passava a roupa, e o que fazia a lide LÍDIA JORGE A escritora nos tempos é tida como a maior investida militar
doméstica, mais as amas que fossem em que era professora liceal na cidade durante os 13 anos de Guerra Colonial
precisas para cuidar dos filhos. A so- moçambicana da Beira – a Operação Nó Górdio. Comanda-
mar ao parco salário que se imagina, da pelo general salazarista Kaúlza de
alguma da criadagem fugia aos gue- inocência, que não nos deixam ver a Arriaga, que se autocomparava, como
tos das palhotas e tinha o privilégio realidade completa», observa a hoje estratego, a Võ Nguyên Giáp, o cérebro
de habitar uns casinhotos, por vezes consagrada escritora. O que não quer militar norte-vietnamita que derrotou
sem janelas, nos topos dos edifícios dizer, muito pelo contrário, que lhe a França e os EUA, a Nó Górdio redun-
ou nas traseiras das vivendas. Numa tenha passado ao largo o clima de daria em mais um fracasso. Falhou o
reduzida faixa social «causa perdida», de objectivo de asfixiar a guerrilha da Fre-
intermédia situa- que se estava a «quei- limo (Frente de Libertação de Moçam-
vam-se os mulatos e «NÃO mar um último mo- bique). Para mais, Kaúlza de Arriaga
os chamados «negros FIZEMOSUMA mento». Em suma: ficaria associado ao massacre de Wi-
assimilados», com «Havia uma desor- riamu, com centenas de vítimas, come-
formação académi- COLONIZAÇÃO dem moral no terre- tido por uma companhia de Comandos
ca – sem deixarem CIVILIZACIONAL no, um cenário sem e considerado o maior crime de guerra
de ser olhados, uns QUEPERMITISSE leitura, contaminado perpetrado nas antigas colónias.
e outros, como cida- por uma situação que Antes da Beira, Lídia Jorge viveu
dãos de segunda. ESTANCAR tinha apodrecido.» um ano em Luanda. Fazendo com-
Já o Clube Náutico da AREVOLTA» Uma certeza, no en- parações, a escritora diz que achou o
Beira era poiso certo tanto, impunha-se clima na cidade angolana «mais tenso
dos endinheirados, – «A solução militar e agressivo». Havia um «tratamento
como a extensa família de Jorge Jar- não era possível; não fizemos uma co- rude para com os naturais, bastante
dim, cognominado «o 007 de Salazar». lonização civilizacional, que permitis- contrastivo com Moçambique».
A vida nocturna, essa, afunilava-se no se estancar a revolta.» Já na Metrópole, por esses anos, a
Moulin Rouge, sempre com streapers presença de negros era algo de qua-
e alternadeiras renovadas para animar EVAALEX&KAÚLZA se exótico – exceptuando futebolistas
colonos e militares. O espelho estava no próprio liceu em como Eusébio, Mário Coluna, Hilá-
Mas voltemos à recém-chegada que Lídia Jorge dava aulas: «Por tur- rio, Vicente ou Jacinto João. De resto,
professora de Português e Francês no ma, havia cinco ou seis negros para 25 viam-se poucos nas ruas das cidades.
liceu beirense, Lídia Jorge. «Quan- brancos. A escola era alguma coisa de Havia até uma crença antiga de que
do somos jovens, temos os óculos da artificial em relação à sociedade real.» tocar num deles dava sorte...

v 75
1968 E UA

NA SOMBRA DE JFK
Parecia a caminho de se tornar o segundo presidente
Kennedy. Mas a passagem pela Casa Branca da que
é a «família real» americana ficou por ali • por Emília Caetano

A
noite era de enorme te que o mantivera como ministro
festa. Robert Kennedy da Justiça depois da morte do irmão
acabara de anunciar na e que o ajudara a tornar-se senador.
sala de baile do Hotel Mas naquela altura já Johnson de-
Ambassador, em Los sistira da corrida.
Angeles, a sua vitória na Tão poucos anos tinham passado
Califórnia, até então o maior feito da desde a presidência de John e, no
sua campanha presidencial. E, afinal, entanto, Robert entrara na campa-
tudo acabaria logo ali, ia ele a atra- nha com uma agenda bem diferente.
vessar a zona da copa, no caminho O irmão chegara à Casa Branca em
para uma conferência de Imprensa 1960, no auge da guerra fria, com se vem lá tão de baixo há que lutar
a que não chegaria. Pouco passava Fidel recém-chegado ao poder em para sobreviver», ironizava Robert.
da meia-noite de 5 de Junho de 1968 Cuba, trazendo consigo o fantasma E no entanto estreou-se na política
quando caiu crivado de balas, dis- de os EUA passarem a ter o comu- em 1952, atrás de John, dirigindo
paradas por um jovem palestiniano, nismo quase dentro de casa. Mas a a sua campanha para o Senado. No
Sirhan Sirhan. Morreria às primeiras partir de 1964 os americanos ganha- ano seguinte, entrou ele próprio no
horas de dia 6. ram novas preocupações: começa- Senado como consultor jurídico do
A notícia foi recebida com incre- vam a perder o pé no Vietname, en- Subcomité de Investigações, levado
dulidade. Apenas dois meses antes quanto internamente a violência nos pelo presidente, o polémico republi-
tinha sido morto Martin Luther bairros negros se tornava explosiva. cano Joe McCarthy, também de ori-
King. E menos de cinco anos atrás, Daí que Robert prometesse ago- gem irlandesa, que John conhecera
o irmão de Robert, o presidente ra «acabar com o derramamento de como militar, na II Guerrra Mun-
John Kennedy, fora assassinado em sangue no Vietname e nas nossas ci- dial. Deixaria o subcomité ao fim de
Dallas. Novamente circularam ru- dades». Se para a guerra propunha seis meses, por discordar dos méto-
mores de conspiração. Não coleccio- uma solução negociada, que incluís- dos de McCarthy, quando este quis
nara ele inimigos poderosos como se os norte-coreanos, dentro do seu provar as infiltrações comunistas no
ministro da Justiça do irmão? E era país queria continuar a campanha exército, num processo que seria o
agora o político que mais se assumia pelos direitos cívicos dos negros, o seu fim. Manteve, no entanto, a sua
contra a Guerra do Vietname. que é considerado o maior legado da «estima» por McCarthy, que era pa-
Naquela noite no Ambassador, sua breve passagem pela política. drinho da filha mais velha.
Robert tinha mais do que um motivo Foi como consultor, mas já de ou-
para festejar. Estava agora mais per- AOLADODEMCCARTHY tro comité do Senado, que deu nas
to de ser nomeado o candidato dos Robert Francis Kennedy nascera a vistas ao investigar a corrupção nos
Democratas, na Convenção de Agos- 20 de Novembro de 1925, como séti- sindicatos, sobretudo o dirigente
to. E era um homem mais aliviado. mo dos nove filhos de Joe Kennedy, dos Teamsters (Transportes), Jimmy
Fora certamente com desconforto um americano de origem irlandesa Hoffa, que desapareceria um dia, em
que, menos de três meses atrás, se católica que casara com Rose, filha circunstâncias misteriosas. Como
lançara na campanha, concorrendo do mayor de Boston e fora embai- ministro da Justiça empenhou-se no
contra Lyndon Johnson, o presiden- xador na Grã-Bretanha. «Quando combate ao crime organizado – «as

76 v
CASA BRANCA Sentado no gabinete, nos
tempos em que foi ministro do irmão

da memória do irmão. Para os seus


biógrafos, foi, no entanto, um idealis-
ta injustamente na sombra de John.
Uma semana após a morte de
John, a viúva, Jackie, contava à Life
que o marido gostava de ouvir o tema
de Camelot, um musical então em
cartaz sobre a corte do rei Artur. Por
isso, e porque os Kennedy são a «fa-
mília real americana» – ricos, educa-
dos, altamente influentes na política
– Camelot ficou associado aos anos
de Kennedy na Casa Branca. E o que
restava desse tempo acabou ali, na-
quela noite, no Hotel Ambassador.
condenações aumentaram 800%», contra a segregação em muitas es- Para muitos americanos os EUA
reza a sua biografia. colas do Sul. A inscrição do primeiro ter-se-iam poupado a algumas hu-
Robert foi o principal apoio do ir- negro na Universidade do Mississí- milhações se Robert chegasse a
mão na crise dos mísseis em Cuba. pi, James Meredith, originou con- presidente. A Guerra do Vietname
Os historiadores sempre negaram frontos com dois mortos e centenas acabaria em 1969 e nunca existiria
que os Kennedy soubessem dos pla- de feridos. E fica para a História um o escândalo Watergate. Mas não foi
nos da CIA para assassinar Fidel, seu discurso na África do Sul, sobre assim. Por vontade dos Kennedy, Ro-
mas os chamados Family Jewels Do- os direitos dos negros. Foi numa bert está no cemitério de Arlington
cuments, desclassificados pela CIA universidade de Durban que per- ao lado do irmão, ele que queria ser
em 2007, mostram que Robert au- guntou: «E se formos para o Céu e, sepultado na sua terra, Massachu-
torizou a operação, antes da invasão nós que toda a vida tratámos os ne- setts. No túmulo escreveram-lhe um
da Baía dos Porcos, e que houve che- gros como inferiores, olharmos para excerto do discurso na África do Sul:
fes da máfia envolvidos nela. Deus e virmos que não é branco?» «Cada vez que um homem se ergue
Quando concorreu ao Senado e por um ideal, ou age para melhorar
ESEDEUSFOSSEPRETO? depois à Presidência, os adversários a sorte de outros, ou se bate contra a
Os EUA, que travaram o avanço so- acusavam-no de ser um carpetbag- injustiça, gera uma pequena onda de
viético na Europa durante a II Guerra ger, um oportunista a aproveitar-se esperança...»
Mundial, viam agora o comunismo
avançar em África e na Ásia, através
do apoio aos movimentos indepen-
dentistas. No primeiro discurso após PASSADOS 40 ANOS
a morte do imão, Robert ajustava- Dos três irmãos Kennedy que se destacaram na política americana
se aos tempos: «Nenhum problema no início da década de 1960, resta Edward (Ted) Kennedy, hoje com
pesa mais na consciência dos homens 76 anos e senador de Massachuses desde 1962. Se tinha algumas
livres do que o destino dos milhões aspirações a candidatar-se também à Casa Branca, perdê-las-ia logo
FOTO: JFK UBRARY/REUTERS

que estão numa prisão de ferro», alu- em 1969, por não ter ficado clara a sua actuação num acidente de
dindo à Cortina de Ferro. automóvel em que morreu a sua acompanhante, Mary Jo Kopechne.
Mas foi também ele que mandou Mesmo assim, é o segundo senador há mais tempo em funções, logo
tropas federais fazer cumprir a lei a seguir ao democrata da Virginia Robert Byrd, eleito em 1959.

v 77
1968 BRASIL

ZUENIR VENTURA No Brasil houve «dois 68», diz o colunista, escritor e jornalista: o da efervescência artística
e o dos anos de chumbo da ditadura

Quem éramos nós,


quem queríamos ser?
Vinte anos depois do best-seller 1968 – O Ano que Não Tal como acontece com os
Terminou, o cronista de gerações regressa com 1968 portugueses, os brasileiros têm uma
relação paradoxal com a data 1968,
– O Que Fizemos de Nós • por Ana Margarida de Carvalho sinónimo de festa da sublevação e ao

F
mesmo tempo de ditadura, prisão,
exílio, tortura… Como convivem com
estival da Canção da TV do jornal O Globo, «cronista de ge- essa ambivalência?
Globo, 1968. Vaias e asso- rações», explica, em entrevista à VI- O paradoxo se explica. Na verdade,
bios para o tema vencedor, SÃO, como se ficou esperando a hora houve dois 68. Aquele que, apesar da
Sabiá, de Chico Buarque e e não se viu acontecer. Ou viu? ditadura, ainda permitia uma relativa
Tom Jobim. As assistências Conhecido pelas suas investigações liberdade de expressão, inclusive com
da época andavam ávidas em torno de Chico Mendes, o serin- uma certa efervescência artística:
por uma música de conotações revo- gueiro assassinado, Zuenir continua filmes e peças teatrais importantes,
lucionárias mais óbvias: Caminhan- a perseguir temas polémicos. Depois festivais de música, manifestações
do, de Geraldo Vandré, mesmo nesse de há 20 anos ter escrito um clássi- de protesto. Aquele que põe por ter-
ano derrotada, tornou-se hino da ge- co sobre a geração soixante-huitarde ra tudo isso no dia 13 de Dezembro,
ração de 68. Canção de protesto e de (1968 – O Ano que Não Terminou), quando é decretado o famigerado
luta contra a ditadura militar, dizia Zuenir retorna à mais convulsiva das AI-5, o acto institucional que cancela
FOTO: BRUNO RASCÃO

assim: «Quem sabe faz a hora, não datas e lança agora, no Brasil, 1968 direitos democráticos como o habeas
espera acontecer.» Zuenir Ventura, – O Que Fizemos de Nós. Um livro in- corpus e instaura a censura nos meios
76 anos, escritor, jornalista, colunista tergeracional, sem barricadas. de comunicação. Naquele dia come-

78 v
çava o que chamamos de «anos de
chumbo».

Foi a geração de insubmissos que


fomentou a submissão nesta geração?
No Brasil, a geração de 68 pairou
como a sombra de uma figura paterna
sobre as que se seguiram. Os «filhos»
e «netos» de 68 se alimentaram de

AG/GLOBO BRAINPIX
uma espécie de nostalgia do não-vivi-
do. Só na virada do século XX para o

CORBIS
XXI é que uma nova turma, a «gera-
ção do milénio» ou «geração ecstasy», CHICO, VINÍCIUS E CAETANO Autores da banda sonora daqueles tempos
criou seus próprios padrões e valores.
Em lugar da militância política, por
exemplo, esses jovens preferem a abs- se mantêm fiéis aos antigos sonhos Ao lado da sida, que foi uma espécie
tenção; em vez dos livros, a Internet. e projectos, canalizando-os para ou- de contra-revolução sexual, e da In-
É a geração pós-68, pós-cocaína, pós- tros campos de actuação. No Rio, por ternet, que realizou em parte o sonho
-imprensa, pós-tudo. exemplo, muitos intelectuais rema- anárquico de 68, o que mais pesou na
nescentes daquela época passaram mudança dos tempos e dos valores
Que diferenças há entre a «geração a interessar-se pelas manifestações foi a lógica do mercado – o mercado
ecstasy» e a «geração LSD»? culturais da periferia. como medida de quase todas as coi-
O LSD é uma das «permanências» sas. Ele determina nossa maneira de
de 68, ao lado da maconha. Apesar O Zuenir também acreditou que ver, viver, usufruir e consumir – seja
da presença hegemónica do ecstasy era possível mudar o mundo. Ainda uma roupa, uma obra de arte, um es-
actualmente, o ácido lisérgico, por acredita? tilo ou até uma maneira de pensar.
ser sintético, continua Acreditava, como acre-
sendo muito consumi- dito, só que agora de Mas, às vezes, fica-se com a sensação
do, não só no Brasil. EMVEZDA maneira diferente. Sei de que a geração de 68 bateu em
MILITÂNCIA que o mundo não será retirada...
Depois da investigação POLÍTICA mudado de um dia No Brasil, a geração de 68 não bateu
que fez para ambos os para o outro com nossa em retirada. Ao contrário, resistiu até
livros, qual o legado de OSJOVENS vontade apenas, como onde pôde, com o custo da própria
68 que destacaria? DEHOJE achávamos. Volição e vida. Boa parte dessa geração, talvez
Acho que as principais PREFEREM revolução não passam a melhor, quando não morreu, pas-
conquistas situam-se de uma rima. Estamos sou os melhores anos de suas vidas na
no plano do comporta- AABSTENÇÃO muito longe dos tem- prisão e no exílio.
mento. Aqueles jovens pos em que Geraldo
que sonhavam com a Vandré cantava «quem O que permanece, para si,
revolução política acabaram mesmo sabe faz a hora, não espera aconte- incompreensível nos jovens de hoje?
foi fazendo uma revolução cultural, cer». Hoje a gente sabe que não faz Quase tudo do projecto de vida deles.
que mudou hábitos, valores, atitudes a hora. Mas nem por isso devemos desistir
e mentalidades. de entendê-los. É preciso, da nossa
O que pesou mais na mudança parte, um olhar mais compassivo e
Os insurrectos jovens de outrora são dos tempos e dos valores? generoso. É bom não esquecer que a
os acomodados cidadãos de agora? A sida, o consumismo, a Internet, geração anterior também considera-
Há de facto os que se acomodaram, a globalização, o politicamente va incompreensível a de 68. Cabe aos
se aburguesaram e traíram seus ve- correcto, o desapego ideológico, pais compreender os filhos, ou pelo
lhos ideais. Mas há também os que o individualismo? menos tentar.

v 79
1968 J O G OS O L Í M P I COS

PUNHOS DE
EXCLAMAÇÃO Nunca como na Cidade do México os Jogos Olímpicos foram o reflexo
tão perfeito de uma época: duas semanas de festa e revoluções.

N
E um protesto que se tornou um ícone • por Rui Tavares Guedes

N
a noite quente de 16 de Ou- com a ponta dos pés, a velocidade terminal que
tubro, o norte-americano lhe valeu a alcunha de «Jacto». E, nos 2 250
Tommie Smith saltou dos metros de altitude da Cidade do México, com o
blocos de partida e correu o vento no limite permitido, as condições foram
mais rápido que sabia. Du- perfeitas para que ele corresse como nunca nin-
rante 200 metros, o sétimo guém tinha corrido antes, estabelecendo um re-
de uma família humilde de corde mundial (19,83 s) que iria durar 11 anos.
12 irmãos usou tudo o que Ao cortar a meta, o seu nome ficou, de imediato,
aprendera nos treinos com inscrito na galeria mundial do desporto. Mas
Bud Winter, na Universidade de San José, nos com tudo o que sucedeu a seguir, Tommie Smi-
arredores de São Francisco: a concentração, a th iria ganhar um lugar… na História.
passada larga, a técnica de pisar o tartan apenas Antes dele, muitos outros atletas tinham já

80 v
incendiado o entusiasmo dos 80 mil espectado- pelos atletas negros. De uma forma esmaga- PODER NEGRO
res que, todos os dias, lotavam o Estádio Azte- dora: os norte-americanos ganharam (sempre Tommie Smith (em
ca. No atletismo, era unânime o sentimento com recordes mundiais) todas as provas dos cima) fechou os
punhos ao bater o
de que se estava a assistir aos melhores Jogos 100 aos 400 metros, incluindo estafetas; e os record do mundo
Olímpicos de sempre, com uma sucessão de africanos dominaram tudo entre os 1500 me- dos 200 metros,
proezas irrepetível: Jim Hines correra os 100 tros e a maratona (a única excepção branca perante o delírio
metros em menos de 10 segundos (9,95), Lee foram os 800 metros ganhos pelo australiano da multidão.
Evans tornou-se o primeiro a completar os 400 Ralph Doubell). Só que, pela primeira vez, as Depois, quando
fechou novamente
metros em menos de 44 segundos (43,86), Bob vitórias eram celebradas em conjunto, como o punho no pódio
Beamon tinha alcançado uns inimagináveis reparou Guy Lagorce, enviado especial do jor- foi assobiado
8,90 metros no salto em compri- nal francês L'Equipe: «Há uma e expulso dos
mento – o chamado «recorde do atitude nova por parte dos ne- Jogos. Um dos
século» – , e até um desconheci- «FOIO gros americanos que confrater- que se solidarizou
com ele foi Lee
do norte-americano, Dick Fos- ACTOMAIS nizam, de forma espectacular,
Evans, vencedor
bury, ganhava o salto em altura com os africanos.»
(2,24 m) com uma revolução CORAJOSO Mas não era só isso. De vez em
dos 400 metros,
que surgiu com
técnica que ainda hoje perdura JAMAIS quando, notavam-se também a boina do Black
Power (ao lado)
– o salto de costas. REALIZADONO alguns comportamentos pouco
Mas se estas eram as marcas usuais, embora nem sempre per-
visíveis, e gravadas nos registos DESPORTO» ceptíveis para o público e a maior
desportivos, outras havia que parte dos jornalistas. E quase to-
pareciam apenas revelar uma dos ocorriam junto ao pódio, nas
tendência, um certo ar dos tempos a impreg- cerimónias de entrega das medalhas: Jim Hines
FOTOS: RAYMOND DEPARDON/MAGNUM

nar a atmosfera da capital mexicana, onde, dez ignorou o cumprimento do presidente do Co-
dias antes da cerimónia de abertura dos Jogos, mité Olímpico Internacional, Avery Brundage
um protesto estudantil fora barbaramente re- (um conhecido e assumido racista), deixando-o
primido pelo exército, provocando centenas de de mão estendida; Bob Beamon saudou a mul-
mortos. Uma das marcas mais salientes é a de tidão com o punho erguido e ostensivamente y
que estas eram umas Olimpíadas dominadas y fechado, enquanto ao seu lado, Ralph Boston

v 81
1968 J O G OS O L Í M P I COS

PALAVRAS-CHAVE y fechado, enquanto ao seu lado, Ralph Boston

ALTITUDE Edificada
(bronze no salto em comprimento e ex-recor-
num planalto dista mundial) apresentava-se descalço; os três
a 2 250 metros medalhados dos 400 metros (Evans, James e
de altitude, Freeman) surgiram, orgulhosos, com boinas na
a Cidade
do México
cabeça, símbolo do movimento Black Power.
demonstrou Foi nesse contexto que Tommie Smith, após
ter condições vencer os 200 metros, começou a pensar no que
naturais ideais iria fazer no pódio, como poderia marcar, de for-
para a obtenção
de marcas ma singular, o seu momento de glória perante a
excepcionais multidão. Desportivamente, ele tinha atingido
nas corridas o máximo a que qualquer atleta pode aspirar.
de velocidade Mas o seu objectivo era muito mais vasto.
e nos saltos
diato, tal como outras estrelas negras da época,
MASSACRE A 12 de OEXEMPLODEALI como Bill Russell (jogador-treinador dos Bos-
Outubro, dez dias
antes do início dos
Durante toda a Primavera e Verão daquele ano ton Celtics), Jim Brown (futebol americano) e
Jogos, a Praça das de 68, enquanto os Estados Unidos assistiam, Kareem Abdul-Jabbar (o ídolo do basquetebol
Três Culturas foi o atónitos, ao recrudescer da guerra do Vietna- universitário, na altura ainda conhecido como
palco do massacre me, aos assassínios de Marthin Luther King Lew Alcindor, o seu nome cristão).
de Tlatelolco, em
que centenas de e de Robert Kennedy, e aos conflitos na con- A campanha pelo boicote foi a prova de fogo
estudantes (200 venção do Partido Democrático, em Chicago, dos atletas, então amadores e universitários,
ou 300, segundo Tommie Smith e a maior parte dos outros ve- que iriam dominar os Jogos do México. Porque
as diversas fontes) locistas norte-americanos passaram os dias a significava uma mudança radical de atitude.
foram mortos
pela polícia treinar-se na Universidade de San José, na Ca- Até ali, os atletas negros, mesmo quando ga-
e o exército lifórnia. Aí, o grupo de protegidos de Bud Win- nhavam medalhas, nunca ousavam elevar a
mexicanos. ter – um treinador branco muito respeitado e voz pelos seus direitos. Mesmo grandes cam-
Os Jogos acarinhado pelos atletas negros – começou a peões, como Jesse Owens ou Joe Louis, nunca
estiveram para
ser cancelados reunir-se também nas aulas de Harry Edwards, aproveitaram a idolatria à sua volta para exi-
por causa disso um antigo atleta transformado em professor girem tratamento igual ao dos brancos – pelo
DOPING Os Jogos
de Sociologia. E Edwards tornou-se numa es- contrário, resignavam-se e não protestavam
do México foram pécie de guru intelectual daqueles jovens, com por serem impedidos de frequentar restau-
os primeiros em capacidades atléticas fantásticas, quase todos rantes e outros locais públicos. Encaravam o
que os atletas oriundos de meios humildes e segregados. desporto como uma espécie de dádiva, e nunca
foram sujeitos
ao controlo anti- À sua volta começou a criar-se um grupo com como uma forma de afirmação. O exemplo de
-doping. Mas uma nova consciência social. Menos conforma- Muhammad Ali iria mudar tudo. E o Projecto
só um foi do, rebelde e com uma admiração sem limi- Olímpico para os Direitos Humanos, de Harry
desqualificado: tes por Muhammad Ali, o pugilista (campeão Edwards, conseguiu mesmo forçar o Comité
Hans-Gunnar
Liljenwall, atleta olímpico em Roma, 1960) que se viu privado do Olímpico Internacional a impedir a partici-
sueco do Pentatlo título mundial de pesos-pesados por ter recusa- pação da África do Sul nos Jogos do México
Moderno, mas do alistar-se no exército dos EUA e ir combater – veto que se manteve até Barcelona, 1992,
devido a excesso para o Vietname. O seu exemplo foi determi- quando o país, já sob a liderança de Nelson
de álcool
nante para Edwards que, num momento de Mandela, regressou ao convívio internacional.
inspiração, a poucos meses da cerimónia de
abertura, na Cidade do México, lançou a ideia UMPARDELUVASPRETAS
de um boicote aos Jogos, em protesto contra O tempo era de acção. E Tommie Smith sabia
a presença da África do Sul, o país onde vigo- que a sua hora tinha chegado quando foi cha-
rava o sistema de apartheid. Para isso, criou mado para a cerimónia protocolar de entrega
o autodenominado Projecto Olímpico para os das medalhas. Com ele, estava John Carlos (3º
Direitos Humanos, a que Ali aderiu de ime- classificado), seu companheiro da Universida-

82 v
ros aplausos e os primeiros PALAVRAS-CHAVE
assobios.» ALEMANHA Pela
Os assobios foram mais primeira vez,
fortes. Em especial os do os atletas das
Comité Olímpico Interna- Alemanhas de
Leste e Ocidental
cional. O seu presidente, participaram
Avery Brundage (o homem em equipas
que, em 1936, tinha evitado separadas nos
o boicote dos EUA aos Jogos Jogos Olímpicos.
Uma situação que
de Berlim), exigiu a expulsão se manteve até
imediata de Smith e Car- aos Jogos de Seul,
los da Aldeia Olímpica, sob em 1988, um ano
pena de a sanção se alargar a antes da queda do
Muro
HISTÓRICO Bob Beamon no salto de 8,90 metros, e a toda a delegação americana. Apesar dos protes-
primeira final negra dos 100 metros, em Olímpicos tos de outros atletas, a Imprensa dominante dos PORTUGAL
A participação
EUA fez coro com Brundage. E só a comunicação portuguesa nos
de de San José, e o australiano Peter Norman, social europeia deu eco ao manifesto de Tommie Jogos do México
surpreendente segundo classificado, que con- Smith após a cerimónia: «Nós protestamos con- foi pequena
tou todo o episódio, mais tarde, ao L'Equipe: tra a indignidade a que os negros são sujeitos e discreta: apenas
20 atletas e em
«A espera demorou mais do que estava pre- nos EUA e noutras partes do mundo. Os Estados seis desportos:
visto, porque a competição do lançamento do Unidos não merecem esse nome porque no país Atletismo (1),
dardo eternizava-se. Mas isso deu tempo para as pessoas não são todas tratadas da mesma ma- Esgrima (4),
que o Tommie e o John começassem a falar na neira. É por isso, que nós não representamos os Ginástica (2),
Halterofilismo (1),
atitude que deveriam adoptar no pódio. Natu- EUA, mas sim o povo negro dos EUA.» Luta (4) e Vela (8)
ralmente, juntei-me à conversa. E, como eles No regresso, Tommie Smith e John Carlos
só tinham um par de luvas pretas, sugeri que sentiram ainda mais que não eram tratados de
a partilhassem entre eles, um ficava com a di- forma igual aos outros compatriotas. Passaram
reita e o outro com a esquerda. Depois, quando anos condenados aos ostracismo, sofrendo em
eles colaram ao peito o emblema do Projecto silêncio a repressão social, recebendo ameaças.
Olímpico para os Direitos Humanos, eu pedi Até que os tempos mudaram. E na Universida-
ao Tommie para que me desse também um. Fo- de de San José, em 2005, inaugurou-se uma
mos, assim, os três unidos pela mesma causa.» estátua em homenagem a dois antigos atletas
No pódio, Tommie e John esperaram pelos que ajudaram a mudar os tempos. Nela, retra-
primeiros acordes do hino dos EUA e pelo içar tam-se Tommie Smith e John Carlos com os
das bandeiras. Então, em vez de olhar para punhos no ar. Dois punhos de exclamação, no
cima, baixaram a cabeça, fixaram o chão, e er- ano de 1968.
gueram o punho fechado, cada um com a sua
luva negra. De forma simbólica, ofereciam-se
em sacrifício, em nome dos direitos humanos.
«Foi o acto menos egoísta e mais corajoso ja- PASSADOS 40 ANOS
mais realizado numa arena desportiva», recor- Os protestos voltam, em 2008, a ameaçar as cerimónias protocolares
dou Peter Norman. «Quando estás no pódio, dos Jogos Olímpicos. O alvo é, desta vez, o regime de Pequim,
tens todos os direitos. O direito de transmitir acusado em diversos fóruns internacionais de violação dos direitos
FOTOS: RAYMOND DEPARDON/MAGNUM

à Humanidade o sentimento que te habita. Al- humanos, em particular no Tibete, região dos Himalaias anexada pela
guns choram, outros cantam, outros rezam… China na década de 1950 e onde no início deste ano estalaram várias
eles escolheram o sacrifício pela causa que revoltas, reprimidas pelas forças militares governamentais. No centro
consideravam mais nobre. Foi incrível. Quan- da gestão da crise está o belga Jacques Rogge, presidente do Comité
do o hino terminou, o estádio mergulhou num Olímpico Internacional, um antigo velejador que, em 1968, se estreou
silêncio pesado. Depois, ouviram-se os primei- como atleta olímpico, no México

v 83
1968 P O R T U GA L

A queda do ano
Em Agosto de 1968, Salazar cai de uma cadeira, no Estoril.
Ainda se levantou. Mas o regime já não • por Filipe Luís

T
ão desconjuntada como o de dois colegas neurocirurgiões, optou por dar
próprio Estado Novo, uma luz verde à operação, efectuada na Casa de
cadeira de lona ruía, a 5 de Saúde da Cruz Vermelha. Mas foi D. Maria
Agosto de 1968 (data nunca de Jesus Caetano Freire, governanta de uma
confirmada), na residência vida, quem explicou aos jornais como tudo se
de férias, no Forte de Santo passou. Falou da resistência do «senhor dou-
António, em S. João do Esto- tor» em se chamar o médico, até que as do-
ril, com o peso do presiden- res se acentuaram, a par com sinais de fadiga
te do Conselho, António de cerebral e perturbações motoras. «À revelia,
Oliveira Salazar. Que ainda telefonei ao sr. prof. Eduardo Coelho.»
se levantou. Mas o regime já não. Pelos dias seguintes, registam-se melhoras.
A Emissora Nacional foi a primeira a dar a O ditador dá uns primeiros passos e pede que
notícia, a 7 de Setembro, da intervenção ci- lhe tragam a sua poltrona favorita. Recebe
rúrgica ao hematoma intracraniano e subdu- visitas do Chefe do Estado, Américo Tomás,
SALAZAR VAI VOTAR,
EM 1969 A última ral, resultante da queda, um mês antes. Nesse do cardeal-patriarca, Gonçalves Cerejeira, e
FOTO: GESCO

aparição pública mesmo dia, uma edição especial de O Século votos de restabelecimento de algumas figuras
do ditador revelava que o médico assistente, a conselho internacionais, entre elas o primeiro-ministro

84 v
DIÁRIO DE NOTÍCIAS
A HORA DE
MARCELLO
«Os portugueses
habituaram-se
a ter um homem
excepcional na
chefia do governo.
Agora terão de
contentar-se com
homens comuns»,
disse o sucessor,
D.R.

À SAÍDA DA CLÍNICA Ele já não mandava na tomada de


posse. Em cima,
na clínica, de
visita a Salazar.
Ao lado, o forte

ANTÓNIO XAVIER
francês, Couve de Murville, e o Papa da queda
Paulo VI. A 16 de Setembro, Eduar-
do Coelho, seu médico, declara que o
entregará à Nação «definitivamente das as honras inerentes ao cargo.» Tantas que, PALAVRAS-CHAVE
curado». nos meses que se seguem, e depois de recuperar
DITADOR
Precisamente nesse dia, porém, Salazar so- algumas das suas faculdades mentais, Salazar Salazar terá
fre um acidente vascular no hemisfério ce- parece estar convencido de que ainda manda. dito, um dia, que
rebral direito. O Conselho de Estado é con- E há mesmo encenações de ministros que vão a gostaria de ter
sido primeiro-
vocado para as 4 da tarde. Dois dias depois, «despacho», numa verdadeira tragicomédia do
-ministro de um
chega a Lisboa Huston Merritt, neurologista absurdo. Cá fora, no mundo real, inicia-se uma rei absoluto. A sua
americano e sumidade mundial na sua espe- curta «primavera política» que alivia, momen- prática viria a dar
cialidade. Merritt afirma que Salazar ainda taneamente, a tensão e a repressão. ao mesmo
pode sobreviver. Mas, sem nada poder fazer, Salazar morre em 1970, com 81 anos. Qua- PRIMAVERA
regressa aos EUA. A 19 de Setembro, a Co- tro anos depois, o Estado Novo acaba. Ele dis- Marcello Caetano
missão Executiva da União Nacional (partido se que teria gostado de ter sido primeiro-mi- foi recebido com
expectativa. Uma
único, no poder) debate a situação. Salazar nistro de um rei absoluto. Morreu na cama – o das suas primeiras
permanece em coma. que, como um dia referiu Mário Soares, «para medidas foi a
A 26 de Setembro de 1968, por fim, o Presi- um ditador, não é pequena coisa». de autorizar os
dente Tomás dirige uma mensagem à Nação, A história não será verídica, mas define os 42 regressos de
Mário Soares e do
onde, depois de muitos considerandos, acaba anos de medo, sob o jugo de Salazar: Marcello bispo do Porto,
por quase pedir desculpa por ter de exonerar Caetano, chefe do Governo, reúne o Conselho D. António
Salazar: é que «os superiores interesses do País de Ministros, para anunciar que «faleceu o Ferreira Gomes,
dos respectivos
têm de prevalecer sobre quaisquer sentimentos sr. prof. Salazar». Faz-se um pesado silêncio
exílios. Mas a
(…), circunstância que obriga à decisão doloro- de consternação. Ao fim de alguns minutos, abertura política
sa» de o substituir. Marcello Caetano é o nome- finalmente, um ministro balbucia: «E agora? foi sol de pouca
ado. Mas o PR ressalva: «Salazar manterá to- Quem se atreverá a dar-lhe a notícia?» dura

v 85
1968 P O R T U GA L

OS NÚMEROS
QUE O REGIME ESCONDIA
Esboço de um retrato do País em 1968, que não poderia publicar-se
em…1968, porque a censura oficial não deixaria • por Daniel Ricardo

N
este ano bissexto, decla- César Oliveira, no livro Salazar e o o conjunto da população: depois de
rado pela ONU Ano In- seu Tempo, que, poucos meses antes nós, ninguém. Somos o penúltimo
ternacional dos Direitos do acidente que o obrigaria a aban- na capitação do consumo de carne:
do Homem, contavam- donar o Governo, «numa das últi- depois de nós, só a Turquia. Somos
-se por milhares os pre- mas entrevistas que concedeu a um o último na capitação do consumo
sos políticos nas cadeias jornalista argentino, em Dezembro de leite, o último na capitação di-
de Portugal e das suas colónias, quase de 1967, lhe fez notar o facto de que ária de proteínas, o penúltimo na
todos sujeitos a violentas torturas fí- camponeses levando pela mão uma capitação diária de gorduras (de-
sicas e psíquicas, e multiplicavam-se cabra e carregando à cabeça molhos pois de nós, só a Turquia).» Acres-
os julgamentos nos tribunais plená- de lenha pesadíssimos poderia ser centamos: e éramos o penúltimo na
rios. Pelo menos três cidadãos foram sinal de subdesenvol- capitação de capital
assassinados pela PIDE. E era raro vimento», o ditador fixo e na capitação do
o dia em que não morriam ou fica- «respondeu que o «DEPOISDE rendimento (423 dó-
vam estropiados militares portugue- sul-americano estava NÓSSÓA lares por habitante,
ses nas guerras coloniais, em Angola, enganado, ‘pois esse é contra a média euro-
Moçambique e Guiné. o ideal de vida de mui- TURQUIA–OU peia de 1 370 dólares
Na altura, estava em curso o III tos portugueses que NEMISSO» por habitante), bem
Plano de Fomento (1968-1973), que assim vivem felizes’.» como no número de
visava colocar o País no caminho Mas Portugal era, habitantes por médi-
da industrialização. Crescia de uma de facto, um país subdesenvolvido, co: depois de nós – adivinhe-
forma sustentada o Produto Inter- embora a propaganda oficial o tra- -se… – só a Turquia.
no Bruto e aumentava a procura da vestisse de «país em vias de desen-
educação. Ainda assim, os economis- volvimento». Conforme escreveu, OPREÇODAGUERRA
tas da época torciam o nariz. Com em 1968, o economista e sociólogo Em 1968, o salário rural médio dos
efeito, o desenvolvimento económico Adérito Sedas Nunes (Sociologia homens (as mulheres recebiam me-
resultante da aplicação dos planos e Ideologia do Desenvolvimento), nos) andava pelos 16 200$00 por
anteriores revelara-se insuficiente «entre 16 países da Europa, somos ano; na indústria transformadora,
para sequer nos aproximarmos das penúltimo, na capitação do consu- a remuneração anual média não ul-
médias europeias – o sector primário mo de energia: depois de nós, só a trapassava os 20 contos. (Compare-
(agricultura, pecuária, silvicultura Turquia. Somos o antepenúltimo, na -se: o ordenado de um director-geral
e pescas) continuava a ocupar uma capitação do consumo de aço: de- era de 140 contos por ano.) E, embo-
grande parte da população activa pois de nós, só a Grécia e a Turquia. ra a tendência fosse, neste campo,
(32,3%) e do êxodo dos trabalhado- Somos o penúltimo nas taxas de es- no sentido da subida, no entanto o
FOTO: DIÁRIO DE NOTÍCIAS

res rurais para as cidades, em bus- colarização e de abandono escolar: aumento da inflação (6,1%) e dos
ca de melhores condições de vida. depois de nós, só a Turquia. Somos impostos acabava por absorver os
O que, aliás, não parecia preocupar o último, na proporção do número ganhos salariais dos trabalhadores
o presidente do Conselho. Conta de alunos do ensino superior para mais pobres, a quem o dinheiro não

86 v
guês ia ao cinema três vezes por ano
(depois de nós, de novo, só a Tur-
quia…), e, igualmente por mil habi-
tantes, havia, no País, 65 telefones
(depois de nós, ainda, só a Turquia)
e 29 televisores (depois de nós, nin-
guém…).

OCENSURICÍDIO
Este esboço incompleto do retrato
de Portugal em 1968 não podia ser
publicado em 1968, porque, desde a
implantação da ditadura, os jornais,
zelosa e rigorosamente controlados
pela Censura (tal como os livros, o ci-
nema, o teatro…), viam-se obrigados
a apresentar uma imagem fictícia,
quase paradisíaca do País. Não por
afirmarem que tudo corria bem, mas
REGRESSO DE SOLDADOS A Guerra Colonial absorveu 44,3% das despesas do Estado por terem de omitir o que corria mal.
No seu livro Os Segredos da Censura,
o jornalista César Príncipe diz que se
chegava para satisfazerem as neces- direito a somente 11% das despesas hoje consultarmos a imprensa dos
sidades essenciais da família. Segun- públicas, impõe-se dizer também anos que antecederam o 25 de Abril,
do o Instituto Nacional de Estatísti- que, a nível geral do Continente, ficamos com a ideia de que não ha-
ca (INE), do Rendimento Nacional apenas 45% da população com ida- via «presos políticos. Nem suicídios.
cabia aos trabalhadores menos de des entre 5 e 19 anos se encontrava Nem barracas. Nem cólera. Nem
46% (mais de 70%, por exemplo, escolarizada. Simultaneamente, o aumentos de preços. Nem abortos.
nos EUA e no Reino Unido) e para défice das contas do Estado situava- Nem guerra. Nem hippies. Nem gre-
cima de 55% ao capital. O trabalho se em 9,6 por cento. ves. Nem gripes. Nem homossexuais.
infantil, nas fábricas e nos campos, E quanto à qualidade de vida? Nem crises. Nem massacres. Nem
era encarado sem escândalo. De acordo com uma publicação do nudismo. Nem inundações. Nem
Entretanto, acelarava-se o pro- INE, intitulada Condições de Ha- febre amarela. Nem imperialismo.
cesso de concentração de empresas, bitação dos Agregados Domésticos, Nem fome. Nem violações. Nem po-
numa economia já dominada pelos em 1964 (e, nos quatro anos seguin- luição. Nem descarrilamentos. Nem
grupos CUF, Espírito Santo, Cham- tes, a situa-ção pouco se alterou), tifo. Nem Partido Comunista. Nem
palimaud, Português do Atlântico, 58% dos alojamentos em prédio fraudes. Nem poisos extraconjugais.
Borges & Irmão, BNU e Fonsecas & não dispunham de electricidade e Nem racismo». E César Príncipe
Burnay. aproximadamente 80% das casas acrescenta, referindo-se a uma das
E, por outro lado, o preço elevado não tinham casa de banho; das ha- consequências daquilo a que chama
que o Portugal pagava pela Guerra bitações das zonas rurais não havia censuricídio: «Não espanta que só
Colonial em três frentes, e que, em mais do que 14% com água e 24% depois do 25 de Abril certas cama-
1968, atingiu 44,3% dos gastos do com esgotos. das populares e pequeno-burguesas
Estado, impedia a realização de in- Num país onde o analfabetismo teçam pessimismos em relação à
vestimentos em áreas estratégicas ainda afectava cerca de 38% da liberdade. Antes (…) não se rouba-
tão importantes para o desenvolvi- população, vendiam-se apenas 71 va, como agora, não se estupravam
mento do País como a educação e a exemplares de jornais diários por crianças, não se assistia a esta ‘pouca
investigação científica. No que res- mil habitantes (depois de nós, nes- vergonha’ de se conhecer o que su-
peita à educação, que neste ano teve te caso, só a Albânia), cada portu- cede»…

v 87
1968 C U LT U R A

2001
EM 1968
Revolução na Terra e no
espaço: uma galáctica
extraterrestre e elíptica
busca do sentido da vida
fez de 68 o mais cósmico
dos anos cinematográficos
• por Ana Margarida de Carvalho
2001 – ODISSEIA NO ESPAÇO de Stanley Kubrick

N
as salas aterrou o mais sem logo nos acudir aquela valsa or- evolução do Homem. Poético sim,
monolítico dos filmes da bital. Nem os primeiros acordes de mas perturbadoramente lúcido.
história do cinema. Tal um outro Strauss, o Richard, sem Estão lá todas as marcas kubri-
como dentro de 2001 nos evocar a mais longa elipse da ckianas: o rigor, o privilégio da ima-
– Odisseia no Espaço apa- história do cinema, e a mais arroja- gem, do som, da música, os ângulos,
recia um monólito, senti- da montagem, quando Kubrick su- a iluminação, os movimentos de câ-
nela tetraédrica que testemunhava prime milénios e milénios de histó- mara, os travellings atrás, os corre-
(e induzia) todos os saltos civiliza- ria, para de um osso, dores... E também os
cionais da evolução humana, tam- brandido por um ain- leitmotivs de sempre,
bém o filme do genial Stanley Kubri- da macaco, fazer cáp- SILÊNCIO a dualidade, o homem
ck, em parceria de argumento com sula espacial... e a sua luta interior, a
Arthur C. Clarke, ficou para sempre Tão empolgante,
ESPACIAL ambivalência...
com esta postura de marco referen- tão poderoso, tão su- VALSAE Na pré-história, o
cial. 2001 em 1968 foi tão marcante, focantemente impac- MONÓLITOS Homem domina a
que se poderia dividir a ficção cien- tante... O filme de Ku- técnica. E a técnica
tífica entre AO e DO, antes e depois brick deixou perplexa
DOS acaba por dominar o
da Odisseia. Um enclave de futuro a crítica da altura. MINUTOS Homem? Não nesta
nos anos 60, o filme mais OVNI do A recepção nos jor- APENAS pós-história kubri-
mundo, saído dos clássicos estúdios nais diários e sema-
MGM, responsáveis por produções nários foi bastante
TÊMDIÁLOGOS ckiana. Se os homíni-
deos esmagam os crâ-
históricas como E Tudo o Vento Le- mais fria do que a que nios dos adversários
vou ou O Feiticeiro de Oz. Nunca se revelou nas revistas para conquistarem o
mais se conseguiu pensar em tecno- mensais. 2001 – Odisseia no Espa- charco de água, também o tripulan-
logia dominadora, sem nos ocorrer ço exigia uma digestão prolongada. te espacial Bowman destrói o elec-
de imediato o supercomputador de Demorados tempos sem palavras trónico cérebro de Hall. É destino de
bordo, o tirânico Hall 9000, a can- (dos 160 minutos de filme, apenas homem proteger os seus territórios,
tar o hino americano antes de su- 40 têm diálogos), e com um final até à transcendental ou subcons-
FOTOS: D.R.

cumbir. Nunca mais se pôde escutar abstracto e metafísico, o filme foi ciente fase de Feto Astral. Assim na
o Danúbio Azul, de Johann Strauss, considerado poema visual sobre a Terra como no Céu.

88 v
ACONTECEU NO OESTE
de Sergio Leone
As pás do moinho; o ranger de portas
de um apeadeiro no deserto; o zumbir
de uma mosca; gotas; o tédio de três
pistoleiros, de guarda-pós encardidos,
condenados à inacção da espera. Os
primeiros dez minutos, feitos de ruídos
e silêncios, entraram para a antologia dos
melhores incipit de sempre. Seguidos da
explosão estridente das três notas de
Ennio Morricone, que se soltavam da harmónica de Charles Bronson. E o
seu olhar felino que ocupava toda a tela... E Cláudia Cardinale... E de volta
ao tema principal de Morricone que inunda o árido e fordiano Monument
Valley. Foi a primeira vez que Leone, legítimo herdeiro de John Ford,
filmou no real Oeste. Depois
de Por um Punhado de Dólares ou de O Bom, O Mau e o Vilão,
a obra-prima Aconteceu no Oeste foi o seu filme-despedida do género.
O western revisitado pela estética anos 60, pelo olhar mais latino e quase
teatralmente formalista de Leone, o italiano que profanou o terreno
sagrado do cinema americano e se apropriou das suas míticas retóricas.

A SEMENTE DO DIABO
de Roman Polanski
Dizia-se que não era aconselhável a grávidas. A adaptação de um best-
seller ocasional tornou-se num clássico, graças ao génio de Polanski,
ao registo naïf de Mia Farrow, à atmosfera inicialmente radiosa, que
vai enegrecendo, até se satanizar, e reconciliar na inelutável relação
mãe/filho. Entre o medonho e o engraçado (sem o vinco do anterior
Por favor Não Me Mordas o Pescoço), o filme passa-se num gótico
apartamento de Manhaan, e Polanski desenhou os personagens-tipo
secundários, adoradores do diabo. «O que fizeram aos olhos dele?»,
pergunta Rosemay. «Ele tem os olhos do pai», respondem-lhe.

A NOITE DOS MORTOS VIVOS


de George A. Romero
Esta Noite ficou para sempre no topo da pilha de filmes de terror que
se dedica a zombies e à sua incansável tarefa de distribuir dentadas
pelos mortais com quem se cruzam. Um admirável modo de conquistar
adesões ao clube zombie, estas dentadas contagiantes voltam agora 40
anos depois, pelo mesmo realizador, com O Diário dos Mortos.

EM PORTUGAL UMA ABELHA NA CHUVA


de Fernando Lopes
A data não corresponde à da estreia: um dos filmes mais considerados
pela crítica foi também um dos mais desastrados na pré-produção.
Pertencente à segunda vaga de Cinema Novo (inaugurado por Verdes
Anos, de Paulo Rocha), Uma Abelha... adaptava a obra homónima de
Carlos de Oliveira, num paradoxal registo neo-realista e vanguardista.

v 89
1968 C U LT U R A

OS BEATLES EM RISHIKESH O lugar onde nasceram muitas das canções do Álbum Branco

SONHOS E PESADELOS
O ano do Álbum Branco, quando os Beatles perderam, de vez, a inocência. A culpa foi
de Yoko Ono? De Charles Manson? Ou do guru indiano Maharishi? • por Pedro Dias de Almeida

A
`
beira do rio Ganges, no um filme psicadélico (Wonderwall, relevo discreto (e, nas primeiras
sopé dos Himalaias. Foi de Joe Massot). Foi em Rishikesh, edições, com um número de série
aí, em Rishikesh, que num ambiente descontraído, entre impresso) – criada pelo artista bri-
começou o atribulado refeições vegetarianas, macacos, tânico Richard Hamilton. Dear Pru-
ano de 1968 para a mais longas conversas e sessões de medi- dence, por exemplo, foi escrita por
importante banda da tação com o mestre Maharishi, que John Lennon para ajudar a irmã de
história da pop. John, Paul, George e nasceram muitas das canções que Mia Farrow, Prudence, que estava
Ringo estavam na ressaca do triunfo iriam ocupar o disco lançado pelo em Rishikesh ao mesmo tempo
de Sgt. Peppers Lonely Hearts Club grupo em Novembro desse ano: The que os Beatles e passava dias
Band, sem saberem muito bem como Beatles, celebrizado como White Al- fechada no seu quarto.
enfrentar o futuro próximo. Afinal, bum (Álbum Branco) devido à capa Quando abandonaram a Ín-
trilhavam um caminho que ainda minimalista – toda branca, apenas dia, esperava-os outra aventura,
ninguém tinha percorrido: o de um com as palavras «The Beatles» num em que ecoavam algumas das
grupo de música popular que triun-
fara de forma espectacular dos dois
lados do Atlântico e era visto como EM PORTUGAL ‘CANTARES DO ANDARILHO’
símbolo poderoso do espírito da épo- de José Afonso
ca e suas mudanças. Ser um Beatle
tinha-se tornado uma tarefa glorio- Lançado perto do Natal de 1968, este disco marca a primeira
colaboração com a Orfeu de Artur Trindade, que haveria de editar
sa mas pesada para aquele grupo de
os álbuns de José Afonso a uma cadência anual até 1973. Este é o
miúdos de Liverpool (Ringo Starr era
disco que o faz descolar do contexto coimbrão para um percurso
o mais velho, 28 anos em 1968). único na música portuguesa. Aqui, mistura-se a tradição popular
Por isso, pareceu a todos uma boa de Senhora do Almortão ou Saudadinha com a reinterpretação
ideia voar para a Índia, seguindo dos grandes poetas, como a inesquecível Endechas a Bárbara
os passos de George Harrison que Escrava, de Camões. Vejam Bem, Natal dos Simples ou Chamaram-
em Janeiro de 1968 esteve em Bom- -me Cigano, são canções marcantes na obra de José Afonso que
baim para fazer a banda sonora de surgem neste disco fundador.

90 v
JOHNNY CASH AT FOLSOM PRISON ney dedicada a Julian Lennon, então
com 5 anos, filho de John Lennon e
De Johnny Cash
de Cynthia, para o confortar durante
Este concerto gravado na prisão de Folsom, na
o divórcio dos pais.
Califórnia, resultou num dos discos (e momentos) mais
Um dos acontecimentos mais im-
marcantes na carreira deste cantor country que, com
portantes do ano de 1968 para a vida
a sua voz grave e roupas negras, rompeu as fronteiras do género e se
dos Beatles foi, precisamente, a entra-
afirmou como um artista singular, símbolo de uma certa América.
da de Yoko Ono, artista de vanguar-
da, na vida de John Lennon. A paixão
BEGGARS BANQUET entre os dois era tão intensa que John
De Rolling Stones e Yoko decidiram passar todos os mo-
A capa original, com uma parede de casa de banho cheia mentos juntos. Isso implicava, claro, a
de grafitis, foi recusada pela editora, mas o conteúdo presença constante da artista japone-
do disco nem era tão rebelde assim... Marcava, até, uma sa no estúdio onde se gravou o Álbum
reaproximação às raízes rythm’n’blues do grupo. Sympathy for the Devil, Branco. Esta sombra era uma novida-
No Expectations e Street Fighting Man apareceram aqui. de na vida dos Beatles e alterou um
equilíbrio, entre os quatro, que já não
estava na sua melhor fase. Apesar (ou
TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENCIS por causa?) da tensão em estúdio, o
De Rogério Duprat e vários disco duplo The Beatles é considerado
Gravado em pleno Maio de 1968, este registo é uma por muitos a obra-prima da banda de
boa imagem da pequena-grande revolução que o Liverpool.
Tropicalismo representou para a Música Popular Este é o único disco dos Beatles em
Brasileira. Em destaque neste disco as vozes de Caetano Veloso, que todos os músicos têm canções
Gilberto Gil, Os Mutantes e Gal Costa. Novos ares, novos sons. de sua autoria (Ringo Starr assina
Don’t Pass Me By e George Harrison
compôs, entre outras, While My Gui-
A SAUCERFUL OF SECRETS tar Gently Weeps, com Eric Clapton
De Pink Floyd como músico convidado). Vai do pop
O segundo disco dos Pink Floyd mantém a mistura de quase infantil de Ob-La-Di, Ob-La-
psicadelismo e rock progressivo que os celebrizou na -Da (de McCartney, homenageando
sua estreia, de 1967, com The Piper at the Gates of Dawn. o reggae) até ao experimentalismo
Aqui começa o apagamento de Syd Barre (que só assina um tema, total de Revolution 9 (de Lennon,
Jugband Blues) e a afirmação de Roger Waters muito inspirado por Yoko) passan-
do pelo rock ruidoso e destravado de
ELECTRIC LADYLAND Helter Skelter. Foi precisamente esse
tema uma das grandes inspirações
De Jimi Hendrix
de Charles Manson para a sua furio-
O terceiro e último álbum assinado pelo grupo The Jimi sa missão que o levou a cometer uma
Hendrix Experience é visto como o auge, em estúdio, série de crimes, incluindo, em Março
do talento e virtuosismo do guitarrista americano, de 1969, o assassínio da actriz Sharon
desaparecido em 1970. Este disco duplo, onde se inclui a célebre faixa Tate. Numa época de psicadelismo,
Vodoo Child, foi um dos grandes êxitos de vendas de 1968, e o único
paz e amor, esta apropriação violenta
álbum de Hendrix a chegar ao primeiro lugar do top americano.
de uma simples canção por um louco
na Califórnia obcecado pelos Beatles
utopias da década de 60: os Beatles Ching, toda a espécie de penduras a deixou a banda transtornada.
(na verdade, Paul e John) decidi- tentarem conseguir uns concertos ou Já sem John Lennon e George Har-
ram fundar a sua própria editora, a gravar um disco. E como estávamos rison entre os vivos, Manson anuncia,
Apple, pedindo a todos os talentos no período hippie, toda a gente era em 2008, a partir da prisão onde per-
escondidos que se fizessem ouvir, superamigável. Basicamente era o manecerá até ao fim dos seus dias, a
eles lá estariam para os financiar. caos», recordou George Harrison. O disponibilização gratuita na Internet
Resultado: «Eu entrava nos escri- primeiro single a sair com a marca das 16 canções do seu novo disco One
tórios da Apple e havia salas cheias da Apple foi, em Agosto, Hey Jude, Mind. Conclusão: é difícil adivinhar o
de lunáticos. Tipos a consultar o I uma canção composta por McCart- futuro. A imaginação ao poder?

v 91
1968 C U LT U R A

LIVRO
EXCELENTÍSSIMO
José Cardoso Pires ganhou
os leitores portugueses,
num ano literário que deixa
marcas e sinais até hoje
• por Sílvia Souto Cunha

B
astava um punhado de
escudos na mão e o vas-
culhamento de estantes
para, nesse ano, encon-
trar cometas literários
vários, escritos em por- O ESCRITOR NA COSTA DE CAPARICA José Cardoso Pires, inseparável do seu cigarro
tuguês. 1968 foi tempo do pequeno
grande livro dito infantil de Sophia,
A Floresta. E da devoção a O Instin- la, Requiem para Dom Quixote. Coi- quotidiano da sua época e resistente
to Supremo, de Ferreira de Castro. sas à film noir para esquecer polícias ao autoritarismo vigente. O livro que
E do afogamento em volumes poéti- de costumes. David Mourão-Ferreira publica em 1968 passou, como todos
cos que, em nós, reverberam até hoje: abordou afectos e costumes em Os os outros que assinou, por várias ver-
Os Afluentes do Silêncio, de Eugénio Amantes e Outros Contos e Augusto sões sofridas naquela sua letra despa-
de Andrade, Sete Septeto, de Rui Ci- Abelaira, esse, editava Bolor, sobre a chada. O esforço valeu o panteão para
natti, Sobre o Lado Esquerdo, o Lado desagregação de um casamento. O Delfim (as primeiras edições na Mo-
do Coração e Micropaisagem, ambos Mas o ano literário português per- raes Editora, restantes reencarnações
de Carlos de Oliveira. Lá longe, Jorge tenceu a José Augusto Neves Cardoso nas Publicações Dom Quixote).
de Sena ateava outros sinais de fogo, Pires, então compadre de 43 anos já Obra-prima, apontaram-lhe na
aulas de Literatura Portuguesa e com livros feitos e manias sobejamen- altura, pela prosa saborosa e pela
Brasileira nas universidades do Wis- te conhecidas: amigo dos amigos Luís radiografia humana às cercanias lu-
consin e da Califórnia. Cá dentro, à Sttau Monteiro e Alexandre O'Neill sitanas. Obra-prima, repetem mais
sombra de lápis azuis, Mário Ventura (que deixaram opus próprios para ou- tarde, sublinhando-lhe o vanguar-
dava à estampa O Despojo dos Insen- tros anos): escriba que escrevia e rees- dismo na mistura de géneros, nas
satos e Maria Isabel crevia exaustivamente os seus várias vozes e registos presentes, na
Barreno mostrava De papéis; domador de parágrafos fragmentação narrativa. Tudo o que
Noite as Árvores São cinematográficos e malabarista viria a tornar-se banal na literatura
Negras. Dinis Ma- difícil de arrumar em género posterior, rompida com o neo-realis-
chado, perdão, De- único; adepto da coloquiali- mo vigente – salazarices ficcionais,
nis McShade, lançou dade rente às expressões do se se quiser ter essas liberdades. Para
três policiais (antes quem prefere coisas chãs, como José
de Molero desfiar o Cardoso Pires, que, dizem os mais
seu relatório): Mão OBRA-PRIMA Livro dentro de livro,
próximos, emboscava os corações
Direita do Diabo, é um marco na literatura nacional alheios pela sua simplicidade, pode
FOTOS: D.R.

Mulher e Arma com que traz aquilo que seria o romance ler-se O Delfim como uma história à
Guitarra Espanho- contemporâneo maneira de um policial.

92 v
A OBRA AO NEGRO VS. OS EXÉRCITOS DA NOITE
ou Marguerite Yourcenar vs. Norman Mailer
Em 1968, John Steinbeck morre, e «mata-se» Soljenitsine, proibido de
publicar na URSS. Milan Kundera afiava o cinismo para O Livro dos
Amores Risíveis, Elie Wiesel recebe o Médicis com Le Mendiant de
Jerusalém e o japonês Yasunari Kawabata arrebata o Nobel. A ficção
científica ganha um clássico instantâneo: Do androids dream of electric
sheep? [Sonharão os andróides com carneiros eléctricos?], escrito por
Philip K. Dick. Publica-se Couples/Casais, de John Updike, e Myra
Breckinridge, de Gore Vidal – retratos de uma burguesia desorientada.
A literatura anglo-saxónica ganhava terreno às letras francesas no
imaginário popular. Veja-se este duelo de gigantes: A Obra ao Negro e
Os Exércitos da Noite, críticos ao seu tempo mas com métodos e estilos
opostos. O romance clássico de Yourcenar é um mosaico das mudanças
políticas e religiosas da Europa quinhentista, centrado no filósofo
e alquimista Zenão: alguém que pensa pela sua cabeça, crítico das
instituições – um contestatário do Maio de 68 avant la lere? O mesmo
inconformismo atravessa o livro de Mailer, relato autobiográfico da
marcha anti-Vietname feita junto ao Pentágono, em Outubro de 1967, que
aprofunda um género pioneiro de narrativa não-ficcional (que Capote
explorou em 1965 com a reportagem-livro In Cold Blood/A Sangue
Frio), onde romance e História se interligam. Mailer faz-se personagem:
um contestatário que vai para a rua reivindicar a mudança. Tal qual os
estudantes de Maio que talvez conhecessem melhor Marguerite...

VOO 714 PARA SYDNEY


de Hergé
Mik Ezdanitoff usa um aparelho que lhe permite subjugar as vontades
alheias e têm por trabalho manter os extraterrestres a par das
actividades humanas. E não hesita em chamar um OVNI para salvar de
apuros o repórter Tintim, o cão Milu, o Capitão Haddock e o Professor
Girassol. Hergé editou esta aventura, em 1968, influenciado por
histórias populares de astronautas. Um livro enigmático face aos guiões
escorreitos e realistas das outras aventuras. Começa com o sequestro do
avião de um milionário rabugento, desviado para uma ilha vulcânica das
Celebes, e termina com Milu, o único que não foi hipnotizado durante
o salvamento alienígena, a dizer «Ah! Se eu pudesse contar tudo o que
vi!...» Outra bizarria: aquando da publicação, Hergé apercebeu-se de que
Voo 714... tinha 64 páginas, duas a mais do que o habitual. Como solução,
cortou as cenas do salvamento dos heróis. Salve-se quem puder!

Um escritor regressa à aldeia da monografia de um tal Dom Agosti- realidade portuguesa que se vivia,
Gafeira, onde um crime chocalhou nho Saraiva, o escritor sente a histó- um Grande Delfim sentado numa
a antiquíssima organização social: ria espessar-se: pistas espalham-se cadeira traiçoeira.
a posse da lagoa e dos direitos de pelas páginas em forma de memó- Mais tarde, António Tabucchi
caça pelos fidalgos como o delfim, rias, aforismos, referências livres- mencionaria uma ementa com «en-
engenheiro Tomás Manuel Palma cas, publicitárias, filosóficas (com o guias da Gafeira à moda do Delfim»
Bravo. Este, desaparecido após a snob Tomás a confundir Sócrates e no livro Requiem. E Vasco Pulido
morte da mulher, Maria das Mercês, Xenofonte). José faz o gosto à mão Valente adaptaria O Delfim para a
retirada das águas numa «grinal- nesta parábola sobre a mudança câmara de filmar de Fernando Lo-
da de mãos». Acompanhado de um que abana um mundo cristalizado pes. Mas 1968 já estava ganho nas
caderno de apontamentos e de uma – e, quem quis, fez as continhas à nossas livrarias.

v 93
1968 C U LT U R A

Mundo pop
A pop art que Andy Warhol
pregava dominava os grandes
mercados, mas a pulverização de
géneros avançava – até em Portugal
• por Sílvia Souto Cunha

guais e diferentes. De vegetais

I ou de feijão preto, de galinha


ou tomate, com rótulos brancos
e vermelhos que se distinguiam
em qualquer prateleira de super-
mercado norte-americano. As
latas de sopa Campbell's, em toda a
sua americanidade vulgar e humilda-
de democrática, são, ainda hoje, das
obras mais reconhecíveis da Pop Art. ÍCONE VISUAL As latas de sopa Campbell’s
As suas representações foram con- foram reproduzidas em pinturas, desenhos,
templadas tanto em museus como em fotografias, serigrafias
posters ou em merchandising, essa
eternidade bastarda.
São latas, senhores, começou os primeiros tado, que ganharam estatuto icónico.
meras latas circulares,
CHAMARAM tempos profissionais O artista foi mais longe, como se
quietas, inanimadas, AWARHOL no design gráfico). O sabe: Elvis, Marilyn, Liz Taylor, Mick
à espera da guilhoti- O«MARX artista da peruca bran- Jagger ou Jackie Kennedy, carne de
na de um abre-latas
DAPOPART» ca usou as garras igual- estrelas se se quiser prolongar a me-
misericordioso que as mente em garrafas de táfora do supermercado, todos eles
decifre. Mas são uma Coca-Cola, em caixas povoam também o imaginário cul-
manifestação viva de detergente da marca tural das últimas décadas, graças à s
da revolução social e cultural trazi- Brillo, em frascos de ketchup Heinz. suas efígies repetidas em várias ver-
da pela arte em série – a repetição, o Mercadorias transformadas em ob- sões cromáticas. Um trabalho irónico
assassínio da assinatura, o desprezo jectos artísticos, imagens na parede que destacava a produção em massa
pelos materiais. O vulgar é obra ar- ou pirâmides casuais de cartão pin- e que não poupava vacas sagradas.
tística, denunciam elas, as latas, um
brilhozinho metálico desdenhoso a
sublinhar-lhes as formas redondas.
Campbell's Soup 1, obra datada de MAIO, MADURO MAIO
1968, retrata um dos muitos objectos A viver em Paris, Júlio Pomar viu o Maio de 68, “euforia que se
da sociedade de consumo que Andy extinguiu de um momento para o outro”, da janela do ateliê: Acabou a
Warhol trabalhou em serigrafias de olhar para os cassetetes e capacetes redondos dos polícias, achando-
cores intensas, semelhantes ao ar- lhes as linhas semelhantes às batalhas pintadas pelo florentino Ucello,
tificialismo vistoso da linguagem que estudava então. O resultado foi uma série de dez quadros – Maio
publicitária e à sua abundância pro- 68 CRS-SS – que, curiosamente, nunca foram expostos em conjunto
metida (com a displicência de quem durante estes últimos 40 anos.

94 v
Ou não tivesse Andy utilizado o mes-
mo processo de reprodução em série
para banalizar igualmente a Mona
Lisa, marcando-a com o título Trinta
são melhores do que uma.
Houve quem lhe chamasse «o
Marx da Pop Art», bom rótulo para
quem tinha um fascínio pela me-
galomania e tratou o rosto de Mao
como uma natureza-morta. E que,
tal como outros artistas da Pop Art, ‘MAIO 68 CRS SS’ Um dos quadros de Júlio Pomar, inspirado nos acontecimentos de Paris
desmistificou o seu lado comercial
– Tom Wesselman criava mulheres
louras e nuas associadas a produtos; CASOS NACIONAIS
Roy Lichtenstein ampliava quadra-
É preciso afastar canaviais à procura das nossas marcas. Muitos artistas
dinhos de banda desenhada; Claes
portugueses estavam, tinham estado ou continuariam a estar fora do País
Oldenburg fazia esculturas com o quando o calendário dobra 1968. António Areal, João Penalva, Menez, Paula
formato de hambúrgueres. A cultura Rego, Ângelo de Sousa, Eduardo Batarda, Cutileiro e Cesariny, trabalhavam em
popular fazia parte da arte e vice-ver- Londres. Em Paris, emigrados, abrigavam-se, por exemplo, Jorge Martins, Júlio
sa, engolindo a percepção de outros Pomar (que produz uma série de quadros inspirados nos movimentos estudantis)
movimentos artísticos que, em 1968, António Dacosta e o grupo KWY [Ka Wamos Yndo], constituído por Lourdes
assumiam desenvolvimentos interes- Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, João Vieira e Escada.
santes. Como a Op Art (que explo- Em Lisboa, ganhava-se balanço para acompanhar as correntes de artes
ra as ilusões ópticas), a Land Art (a plásticas que dominavam a Europa e a América, vivia-se uma primeira euforia
natureza é trabalhada para ser inte- económica que abrangia os artistas, e faziam-se experiências. Como a do
grada na obra), a Arte Minimal (as Grupo Quatro Vintes, no Porto, constituído por Ângelo de Sousa, Jorge
Pinheiro, José Rodrigues e Armando Alves, interessados em mostrar novos
obras são reduzidas ao essencial), ou
caminhos para a escultura. E como a de O Canavial: Memória/Metamorfose
a Arte Conceptual (as ideias são mais
de um corpo ausente – um projecto que Alberto Carneiro idealizou nesse ano,
importantes do que a execução). Mas trazendo literalmente a natureza para dentro de uma sala de exposições.
a sociedade de massas chegara à arte O escultor ganha, então, o Prémio Nacional de Escultura. Nascido em
para ficar. Todos (re)conhecem uma Coronado a 20 de Setembro de 1937, começara como santeiro, mas afirmava-
lata Campbell's. Ainda para mais, vis- -se agora como pioneiro da Land Art – ou arte ecológica. Árvores e galhos,
ta assim, como numa ementa, como madeiras e terra, tudo é matéria-prima. E, em 2008, Alberto Carneiro é, ainda
que à espera de ser escolhida. e sempre, um dos mais sólidos nomes do panorama português.

XEQUE-MATE
O ano da morte de Marcel Duchamp. Eis um bom epitáfio para 1968.
O pintor e escultor franco-americano, inventor do ready-made (uso de
objectos quotidianos, mostrados como objectos de arte), influenciou
várias «escolas»: dadaísmo e surrealismo primeiro, expressionismo
abstracto e arte conceptual depois. O urinol de porcelana invertido,
A Fonte, fizera já as suas provocações. Mas Duchamp só pensava no
xadrez. E participa, em 68, numa partida memorável durante o concerto
Reunion, em Toronto. O seu adversário era o compositor John Cage;
a música era produzida por células fotoeléctricas, colocadas debaixo
de cada quadrado do tabuleiro e activadas pelas jogadas de ambos.
Duchamp cerrará os olhos, a 2 de Outubro, não imaginando que a arte
será «duchampiana» – o primado da razão sobre a retina. ‘MAIO 68 CRS SS II’ Da pincelada para a mancha de tinta

v 95
1968 C U LT U R A

QUASE 70
Sessenta e oito não foi um ano de festas. Mas de festejos.
E as roupas moldaram-se à época com cores nunca antes
vistas • por Ana Pereira da Silva

E
squeçam lá as minissaias e ma, quando foi dirigida por Luchino
os vestidos curtos. Esque- Visconti em O Estrangeiro. Porque o
çam, portanto, a inglesa cinema também não é o centro des-
Mary Quant ou o francês te texto. Mas são importantes estes
André Courrèges e as suas nomes. Afinal, estas três actrizes re-
criações. Geniais, claro que presentavam, nos anos 60, um estilo
foram, na forma como transforma- de vida. Um estilo elegante, que foi
ram a maneira de vestir da juventude seguido por muitas mulheres nessa
de então. Geniais, outra vez, porque época.
ajudaram à libertação feminina, Esqueçam, mas só por momentos,
porque fizeram com que a palavra claro. Abstraiam-se das linhas rec-
«revolução» aparecesse associada, tas, dos cabelos curtos usados pela
também, à moda. E isso é importante modelo Twiggy; dos vestidos em for-
que se diga. Os anos 60 foram muito ma de tubo do costureiro Yves Saint
deles, dos nomes atrás referidos, mas Laurent, inspirados nas obras de
também de Yves Saint Laurent, «le pe- Matisse e Mondrian; e dos vestidos
tit prince de la couture» – o homem curtos e de metal do espanhol Paco
que, por esses tempos, transformou Rabanne; do espanto que causaram
a rive gauche do Sena numa marca. as roupas confeccionadas pelo visio-
Mas esqueçamo-los, por momentos. nário André Courrèges, um apaixo-
Não liguem às imagens que ficaram nado pela arquitectura e pelo design
da actriz Jean Seberg, – linhas direitas, cores
no filme O Acossado claras, o branco, facil-
(1960), de Jean-Luc AMODA mente adaptáveis à
Godard, subindo e des- SALTOUPARA fabricação em série,
cendo os Champs Ely- que começou a des-
sées, a vender o Herald ARUAETODA pontar nesses tempos.
Tribune. Cabelo curto, AREBELDIA Marcantes, natural-
calças afuniladas, en- DOSANOS mente, nos idos anos
fim, outro cliché que 60. Mas não é disso de vinil, de papel. Um nome muito
não é para aqui cha- CULMINOU que falamos. Nem de particular nos anos 60. Mas...
mado; não liguem à EM quando Francisco Ra-
imagem que retêm da baneda Cuevo (Paco HÁUMANTESEUMDEPOIS
actriz Anouk Aimée Rabanne) abriu a sua Mil novecentos e sessenta e oito: a
FOTOS: DENNIS STOCK/MAGNUM

em Um Homem e Uma primeira «casa de cos- moda fugiu ao controlo das boutiques
Mulher, realizado por Claude Lelou- tura», em 1966, começando a usar de alta-costura, das «casas» Dior e
ch em 1966, por mais que pensem materiais nada tradicionais até en- Chanel (entre 1966 e 1967, o núme-
que ela criou uma «tendência»; nem tão. Notáveis, as suas criações: ves- ro de maisons inscritas no sindicato
à de Anna Karina, em 1967, lindíssi- tidos sem costuras, feitos de metal, dos costureiros parisienses caiu de 39

96 v
para 17...). A moda saltou para rua.
Fez-se à vida, às várias vidas. E toda
a rebeldia dos anos 60 culminou em
1968. Explodiu, tal como as cores
que começaram a surgir. Tal como
os padrões multicolores: com flores,
com motivos psicadélicos, tão bem
conseguidos por Emilio Pucci, nas
túnicas de formas simples, onde as
influências da pop art e do psicadelis-
mo eram notórias. Tal como o estilo
«swinging London», que culminou
com a abertura da loja Biba, na capi-
tal inglesa, onde a decadência român-
tica se aliou ao fenómeno hippie. Foi
também em Londres, aliás, que, nessa
época, começaram a surgir (em Car-
D.R.
naby Street, King’s Road e no bairro
de Chelsea) as pequenas boutiques
independentes. Onde a moda étnica
estava presente nos vestidos afegãos,
nos fulares indianos, nas túnicas flo-
ridas e bordadas, e numa enorme
profusão de acessórios – tudo muito
kitsh, retro e pop. A tendência deixou
de ser estanque – não há uma moda,
mas muitas, um mosaico enorme de
propostas, indissociáveis, portanto,
do que se passava nas ruas.
E, em contrapartida, modesta-
mente instalados no País de Gales,
o casal Ashley, sensível ao romantis-
mo e à natureza selvagem, imaginou
D.R.

uma forma de as mulheres se vesti-


rem, muito longe dos tempos mo-
dernos: mesmo com roupas pudicas
e trajos camponeses, o «estilo Laura
Ashley» triunfou. Triunfava tudo: o
Flower Power, o estilo pop, a cultu-
ra hippie. Triunfaram, igualmente,
os cabelos compridos, e a pergunta
impunha-se: será uma rapariga ou
um rapaz? Será um rapaz de cabelos
compridos ou uma rapariga de cal-
ças? Na dúvida, o melhor era fixar
DIFERENTES ESTILOS o olhar no rosto de quem passava.
Não havia uma moda, mas muitas, E, mesmo assim, em 1968 os rapazes
um mosaico enorme de propostas,
indissociáveis do que se passava também gostaram de usar eyeliner.
nas ruas A revolução começara.

v 97
1968 E N SA I O
MANUEL VILLAVERDE CABRAL*

MAIO DE 1968, UMA REVOLUÇÃO CULTURAL

C
omo uma grande revolução cultural, o Maio francês de 1968 foi e o premonitório Guy Debord, com
também político, mas só no sentido em que, para os participantes o seu desvendamento da «socieda-
do movimento, a política fazia parte da vida. Não visavam, po- de do espectáculo». Quarenta anos
rém, o Poder. É impossível saber se conseguiriam conquistá-lo; depois, tanto o consumo como os
talvez não; mas nunca fizeram menção disso e, quando lhes foi media e a tecnologia se sofistica-
acenada uma alternativa partidária, no célebre comício de 27 de ram ao infinito, alimentando agora
Maio no Estádio da Cidade Universitária, com a presença de políticos profis- o arco imenso das indústrias criati-
sionais como Mendès-France e Mitterrand, recusaram-na taxativamente pela vas, mas os dispositivos autoritários
voz de Daniel Cohn-Bendit. cederam o lugar ao pluralismo cul-
Foi essa a radical inocência de Maio de 1968 como movimento irrepetível. tural e à tolerância de costumes.
Foi esse o seu êxito e o seu limite, simultâneos, como momento mais alto de
uma vaga de assalto internacional que não queria o Poder, mas que nem por COMOSTEMASDOMOVIMENTO
isso – ou talvez por isso – deixou de mudar o mundo. E não o queria porque a sucedeu o mesmo. A retórica espon-
natureza do movimento era, antes de mais, antiautoritária. taneísta do «contra» deixou marcas
Essa vaga teve por suporte o prolongado crescimento económico do pós- profundas e a actual paisagem hu-
-guerra e iniciou-se, porventura, nos Estados Unidos, o país mana e social seria
mais avançado do mundo, mas cujas estruturas culturais ti- bem diferente sem
nham ficado aquém da evolução social. Neste sentido, o mo-
vimento é «absolutamente moderno», para usar a frase de
FOIOLEGADO ela: contra o Estado
e os seus mecanismos
Rimbaud, e representa uma actualização dos quadros mentais DEMAIODE de enquadramento;
das sociedades mais desenvolvidas de então, uma autopresen- QUEPERMITIU contra a família con-
tificação da sociedade.
ASARKOZY vencional e o recalca-
mento sexual; contra
ÉACONTESTAÇÃOaos poderes autoritários, todos eles, que CASARE o racismo e a subor-
une o movimento negro pelos direitos cívicos e os estudantes DESCASAREM dinação das mulheres
dos campus norte-americanos em luta contra a Guerra no Viet- DIRECTONA e crianças; contra a
name aos estudantes de Paris e aos jovens trabalhadores que, ao escola disciplinado-
começarem a ocupar espontaneamente as fábricas, forçaram o TELEVISÃO ra e reprodutora das
Partido Comunista e a sua central sindical a paralisar a França desigualdades; con-
durante três semanas, criando assim uma «estrutura de oportu- tra o trabalho penoso
nidade» para o alastramento da vaga antiautoritária ao resto da Europa. e o consumo alienante, etc. Tudo
Desde logo à Alemanha e à Itália, mas também a Portugal mais tarde, e sin- isto é irreversível, tendo sido ab-
tomaticamente aos «satélites soviéticos», como a Checoslováquia e a Polónia. sorvido e massificado até ao limite
Embora nos antípodas da modernidade de Maio, até a chamada «revolução do relativismo ante a falência das
cultural chinesa» e os «movimentos de libertação» do Terceiro-Mundo con- crenças autoritárias. E a prova está
vergiram para aprofundar as fissuras no seio das elites dominantes, a oeste feita. Quando Sarkozy mobilizava
como a leste, de modo a consolidar essa «estrutura de oportunidade» an- recentemente os conservadores com
tiautoritária, que acabou por abalar de forma ainda mais decisiva os regimes o ódio ao legado de Maio, estava a
ditatoriais do que os liberais. esquecer-se de que era esse legado
que lhe permitia casar e descasar em
OS PENSADORES DESTA VAGA DE CONTESTAÇÃO encontravam-se na directo na televisão…
margem da Filosofia e das Ciências Sociais da época: Herbert Marcuse e
Jean Baudrillard, com as suas devastadoras denúncias da «sociedade de * Sociólogo, investigador do Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa,
consumo»; o antigo grupo de Socialisme ou Barbarie (Castoriadis, Lefort, era exilado político e trabalhador-estudante
Lyotard), com a sua crítica radical às burocracias e ao «socialismo real»; em Paris, em 1968

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