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VIZINHOS-PROBLEMA O EXTREMISTA ALAGOAS O JOGO BRUTO DA BRASKEM

JAVIER MILEI TOMA POSSE NA ARGENTINA. CONTRA AS FAMÍLIAS DESAMPARADAS EM


NICOLÁS MADURO INVENTA UM CONFLITO MACEIÓ REACENDE A DISPUTA POLÍTICA
COM A GUIANA NA FRONTEIRA NORTE ENTRE RENAN CALHEIROS E ARTHUR LIRA
13 DE DEZEMBRO DE 2023
ANO XXIX N° 1289 R$ 31,90

O BRASIL E A OPEP
LULA É CRITICADO PELA APROXIMAÇÃO COM O CLUBE DO
PETRÓLEO, MAS A TRANSIÇÃO ENERGÉTICA LEVARÁ TEMPO
MINO CARTA: O FUTURO JÁ É A ENERGIA RENOVÁVEL
13 DE DEZEMBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1289

A imperícia da Braskem
transformou bairros
inteiros em vilarejos
fantasmas. Pág. 24

6 A SEMANA
Economia Nosso Mundo
32 I N D Ú S T R I A A U T O M O T I VA Javier Milei
40 A R G E N T I N A
Ensaio O mercado de carros rasga a fantasia,
Profeta é
10 M I N O C A R TA
elétricos cresce 50% a cada rende-se à “casta política”
quem enxerga o futuro, ano e atrai bilionários e porta-se como
ensina Raymundo Faoro
investimentos estrageiros um laranja de Macri
36 ANÁLISE Muitos relutam

Plural
42 N I C A R Á G U A Miss Universo
Seu País em aceitar os fatos, mas o é alçada à improvável

50
20 O R Ç A M E N T O O cabo de protecionismo sempre foi posição de antagonista
guerra entre o governo a regra na arena global de Daniel Ortega
Lula e o Congresso se 38 E N T R E V I S TA Presidente Os bastidores
44 G A Z A
estica novamente do Sindifisco avalia da tensa negociação que AS RAÍZES
24 M A C E I Ó O desastre os rumos da resultou em trégua PRETAS
provocado pela Braskem reforma tributária e na troca de reféns
P E I F O N / Z I M E L P R E S S / E S TA D Ã O C O N T E Ú D O

é maior do que aparenta


2 9 M A R I A R I TA K E H L TRÊS DOCUMENTÁRIOS REVISITAM
Nos EUA, perto
30 A R Q U I V O O INÍCIO DO MOVIMENTO BLACK
de mil documentos sobre E OS BAILES REALIZADOS NAS
a ditadura no Brasil
continuam secretos
PERIFERIAS NA DÉCADA DE 1970
CLUBE DO PETRÓLEO
53 A F O N S I N H O 54 C I N E M A O cineasta da
SOB CRÍTICAS, O BRASIL ANUNCIA tragédia burlesca 56 B I O G R A F I A O vaqueiro
Capa: Pilar Velloso. A ADESÃO À OPEP+. FAZ OU NÃO que virou editor de livros 57 S AÚ DE Por
Foto: Ricardo Stuckert/PR SENTIDO PARTICIPAR DO GRUPO? Arthur Chioro 58 C H A R G E Por Venes Caitano

C ENT R A L D E A T ENDI M ENT O F AL E CO NO SCO : HTTP : //A TE N D IM E N TO. CA RTA CA P ITA L . COM . BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) A indicação de Flávio Dino
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva para o STF é uma garantia de que
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis o órgão máximo da Justiça será fortale-
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich cido, pelo seu notório saber jurídico, vi-
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial)
REVISOR: Hassan Ayoub vência na magistratura e sensibilidade
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim,
no trato com as pessoas e a coisa
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella, pública. Está de parabéns o presidente
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos,
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata, Lula, que perde um grande auxiliar,
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., mas contribui para o bom desempenho
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins,
da Suprema Corte.
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo Sylvio Belém
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano

CARTA ONLINE
LEÃO REALOJADO
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira A meu modesto ver, o professor
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
O PAPA ESTADISTA Aldo Fornazieri tocou no principal
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana Existem certas personagens mun- motivo político para Lula indicar Flávio
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura diais cujas presenças na Terra não Dino ao STF: afastá-lo da corrida presi-
REDES SOCIAIS: Caio César serão em vão. O papa Francisco é uma dencial. A combatividade e o conheci-
SITE: www.cartacapital.com.br
dessas figuras, odiado por boa parte dos mento de Dino o cacifariam à sucessão,
capitalistas mundiais e amado por milhões mas isso parece contrariar os interesses
de desvalidos. As peças se encaixam. do PT e do ministro Fernando Hadad,
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. José Carlos Gama que é o atual delfim político de Lula.
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150
César Augusto Hulsendeger
PUBLISHER: Manuela Carta
A MÍDIA E SUAS LIBERDADES
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene Bancada por empresários em bus- OS PRESÍDIOS E O LUCRO
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos
ca dos próprios interesses, a mídia Lamentável a proposta de
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo impõe ao cidadão o dever de permane- privatização dos presídios
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos,
cer atento para não ser coagido a apoiar encampada por Alckmin. O senhor
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva ações que beneficiem essa casta privile- não percebe que, para a iniciativa priva-
giada. É desalentador ver pessoas de- da, não interessa a redução da
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RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, fenderem a privatização de setores es- criminalidade, e sim a obtenção de
enio@gestaodenegocios.com.br tratégicos para o Brasil, com a ilusão de mais clientes? O utilitarismo privatista
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Se o povo soubesse o que há por
www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 trás da privatização da água, ja-
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acordo com a Lei de Imprensa. Eduardo Gil vo à pesquisa ocorreu no (des)governo
passado, que era totalmente contrário à
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O XADREZ DE LULA ciência, à cultura e à arte.
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos Para o bem ou para o mal, a Giovanna Medeiros
realpolitik de Lula é muito bem pen-
sada. Ele é um dos políticos mais profis- Só no Brasil um doutorando
sionais que já vi na vida. Eu me darei por precisa trabalhar como coveiro
satisfeito se Paulo Gonet tocar para a ou motorista de Uber para conseguir
frente todos os processos engavetados pagar as contas. Nenhum demérito
por Augusto Aras contra Jair Bolsonaro e nas profissões citadas, mas isso sim-
a caterva da extrema-direita. plesmente não faz sentido.
Rodrigo Henrique Dandara Renault

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C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 5
A Semana
Privatização/ Pelo ralo
Candotti,
herói da ciência
Assembleia Legislativa de São Paulo aprova a venda da Sabesp
Se é possível pensar em
um alento, ao menos o físico
Ennio Candotti viveu para
A votação chegou a ser
assistir à derrota de Jair interrompida por uma
Bolsonaro. O ex-presidente confusão nas galerias
era a antítese do professor,
um militante da divulgação
científica. Nascido em Roma,
chegou em São Paulo ainda
menino, em 1951. Presidiu
a Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência em
duas ocasiões, de 1989
a 1993 e de 2003 a 2007,
e foi um dos fundadores
das revistas Ciência Hoje
e Ciência das Crianças, além
da versão argentina, Ciencia
Hoy. Em 1999 recebeu da
Unesco o prêmio Kalinga,
por sua contribuição
à divulgação científica.
Ocupava o cargo de
diretor-geral do Museu

E
da Amazônia. Candotti m uma sessão marcada por con- em duas frentes. Primeiro, a batalha nos tri-
morreu na quarta-feira 6, fronto entre manifestantes e a Po- bunais, questionando pontos específicos do
aos 81 anos.
lícia Militar, a Assembleia Legisla- projeto e os procedimentos do governo. De-
tiva de São Paulo aprovou, na quar- pois, na Câmara Municipal de São Paulo, onde
ta-feira 6, a proposta de Tarcísio de Freitas os vereadores se mostram mais resistentes à
para privatizar a Sabesp, a companhia esta- proposta. A Sabesp tem um contrato de pres-
dual de água e saneamento. O placar foi ar- tação de serviços com a capital paulista, res-
rasador. Ao todo, 62 de um total de 94 depu- ponsável por cerca de metade do faturamento
tados votaram a favor do projeto do governo. da empresa, a incluir uma “cláusula antipriva-
Houve um único voto contrário. Em protes- tização” – caso a iniciativa privada assuma o
to, a oposição retirou-se logo após a confu- controle da companhia de economia mista, o
são, alegando que o plenário estava contami- acordo é rescindido automaticamente.
nado com o gás das bombas de efeito moral. Com a rescisão do contrato, o município
O governador não teve dificuldades de an- pode encampar as instalações da Sabesp, co-
gariar um número de votos muito superior ao mo reservatórios e estações de tratamento de
necessário, mesmo após o vexame da Enel – água e esgoto, e abrir uma nova licitação para
empresa privada de distribuição de energia – empresas dispostas a prestar os serviços. In-
no apagão que deixou 2 milhões de paulista- teressado no apoio do governador para seu
nos sem luz por mais de 72 horas. Acredita- projeto de reeleição, o prefeito Ricardo Nunes,
va-se que o episódio poderia aumentar a re- do MDB, não pretende criar dificuldades. Mas
sistência às privatizações, mas os governistas vereadores da base, como o presidente da Câ-
não acreditam que serão punidos nas urnas mara, Milton Leite, do União Brasil, criticam
por terem liberado a venda da Sabesp. a privatização e acreditam que o tema pode
Agora, a oposição redireciona seus esforços contaminar o debate eleitoral em 2024.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
13.12.23

AlfaCon/ Escola de horrores


Punição exemplar

A juíza Danielle Galhano


Ex-PM viraliza em vídeo no qual zomba da violação de cadáveres de mulheres Pereira da Silva, da 18ª Vara
Criminal do Tribunal de
Justiça de São Paulo,

N
as redes sociais, viralizou um ví- condenou o ex-deputado
deo no qual o ex-policial mili- estadual Fernando Cury,
tar Evandro Guedes, fundador do União Brasil, a 1 ano e 2
da escola preparatória AlfaCon, meses de prisão pelo crime
de importunação sexual
especializada em concursos para profissio-
contra a então colega Isa
nais da segurança pública, minimiza a pena Penna, do PCdoB. A pena
prevista para quem viola corpos de mulhe- privativa de liberdade foi
res no necrotério. Ao exemplificar a prática, substituída por uma multa de
ele menciona as assistentes de palco do pro- 20 salários mínimos, a serem
doados para uma entidade
grama Pânico. “Meu irmão, com aquele ‘ra-
pública ou privada, e pela
bão’. E ela infartou de tanto tomar ‘bomba’ prestação de serviços à
na porta do necrotério. Duas da manhã, não comunidade. Em 16 de
tem ninguém, quentinha ainda. O que você dezembro de 2020, Cury
vai fazer? Vai deixar esfriar? Meu irmão, eu foi flagrado pelas câmeras
da Assembleia Legislativa se
assumo o fumo de responder pelo crime.” Guedes alega que foi apenas
“um exemplo” em sala de aula aproximando de Isa por trás
O ex-policial ainda ensina a usar seca- e apalpando a lateral de seu
dor de cabelo no corpo após ele esfriar. Gue- corpo, perto de um dos seios,
des reconhece que a prática é criminosa, mas Não é a primeira vez que a AlfaCon dá mau durante uma sessão plenária.
acrescenta: “A pena é desse tamanhozinho exemplo. Em 2016, Ronaldo Bandeira, agen-
(sic)”. Segundo o Código Penal, a punição te da Polícia Rodoviária Federal, descreveu o
prevista para vilipêndio de cadáver é de um a uso de spray de pimenta contra suspeitos de-
três anos de detenção e multa. Após a reper- tidos no camburão de viaturas. “A pessoa fi-
cussão, Guedes disse que o vídeo foi “editado ca mansinha”, disse, em meio a risadas, antes
de forma a parecer que o professor em ques- de negar a autoria do feito: “Sacanagem, eu
tão era praticante do crime, o que não é ver- não fiz isso, não”. À época em que o vídeo re-
dade”. No Instagram, Guedes disse ter dado percutiu na mídia, ele também disse que era
apenas “um exemplo”. uma “situação fictícia”.

Fake News/ À ESPERA DE GODOT


MORAES DÁ ULTIMATO PARA A META ENTREGAR VÍDEO POSTADO POR BOLSONARO
M A RCELO CA M A RGO/A BR , TIAGO QUEIROZ /
E S TA D Ã O C O N T E Ú D O E R E D E S S O C I A I S

Na terça-feira 5, o ministro horas após a publicação. Em para a Meta ser obrigada a


Alexandre de Moraes, do caso de descumprimento, a disponibilizar o vídeo compar-
Supremo Tribunal Federal, deu big tech terá de pagar multa de tilhado pelo ex-capitão,
prazo de 48 horas para a 100 mil reais por dia. no qual um procurador de
Meta, controladora do Bolsonaro é alvo de um in- Mato Grosso sustentava, sem
Facebook, entregar um vídeo quérito que investiga sua par- provas, que Lula teria vencido
difundido por Jair Bolsonaro ticipação nos ataques às se- a eleição em razão de fraude
em 10 de janeiro, dois dias des dos Três Poderes. Um dia no voto eletrônico. Há 11
após os atos golpistas que de- antes do despacho de Moraes, meses o Ministério Público
vastaram Brasília. O conteúdo a Procuradoria-Geral da Federal espera o envio do Inquérito investiga a participação
foi apagado pelo ex-presidente República reiterou seu pedido material pela empresa. do ex-presidente no 8 de Janeiro

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 7
A Semana

Venezuela/ Outra
George Santos cias diplomáticas e comerciais. Não faz mui-
vai à luta to tempo, Lula mediou a reaproximação de

dor de cabeça
Caracas e Washington. Em troca da garan-
O norte-americano filho de tia de eleições transparentes, sem persegui-
brasileiros George Santos ção à oposição, os Estados Unidos acenaram
entrou para a história da Maduro reaviva uma
com o fim do injustificável embargo impos-
política dos Estados Unidos. disputa com a Guiana
Eleito deputado pelo Partido to à Venezuela. A calmaria durou pouco. Em
Republicano, Santos não busca de uma causa para animar as bases,
resistiu ao terceiro processo Maduro decidiu reavivar uma antiga dispu-
de cassação. Perdeu o cargo o pensar no colega Nicolás ta territorial com a Guiana. O governo vene-

A
na sexta-feira 1°, por 311
Maduro, é provável que o pre- zuelano decidiu ignorar uma decisão do Tri-
votos a 114. O parlamentar
era acusado de variados sidente Lula se lembre de bunal de Haia anunciada na sexta-feira 1° e
crimes, incluído o uso indevido Gardelón, personagem de Jô manteve o plebiscito no domingo 3 a respei-
de fundos eleitorais, que Soares famoso pelo bordão “Muy amigo”. to da criação de um novo estado, Essequibo,
teriam sido usados, entre Maduro empenha-se em deitar por terra o em uma área correspondente a 70% da atual
outros, em tratamentos de
esforço de reinclusão de seu país nas instân- Guiana. Os dois países disputam esse peda-
beleza e assinatura de um site
pornô. Como descendente ço de terra desde o século XIX.
de brazucas, Santos é, porém, Do total de eleitores, 96% apro-
um guerreiro, não desiste varam a proposta. Não se sabe
nunca. O ex-deputado, ainda por quais vias Maduro
relata a rede britânica
pretende atender o “desejo po-
BBC, rapidamente arrumou
outro modo de sobrevivência. pular” confirmado na consulta
Agora vende vídeos na pública, se por meio da Justi-
plataforma Cameo. ça ou das armas, mas a simples
O autointitulado “ex-ícone retomada do assunto elevou as
do Congresso” cobra
tensões na fronteira Norte bra-
200 dólares, quase
mil reais, por gravação. sileira, em um momento de in-
certezas quanto ao futuro da
unidade sul-americana após a
eleição de Javier Milei na Ar-
gentina. O presidente venezue-
lano aproveitou o resultado
das urnas para enviar um reca-
MINISTÉRIO DE REL AÇÕES EXTERIORES DA VENEZUEL A
do a Joe Biden. “Estados Uni-
dos, eu aconselho, longe daqui.
Deixem que a Guiana e a Ve-
nezuela resolvam este assun-
to em paz.” Detalhe: a reivindi-
cação territorial ressurge após
a descoberta de novas reservas
de petróleo na região.

O presidente venezuelano cria um


novo foco de tensão na América do
Sul, como se faltassem problemas

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Lula III, Ano I
O
presidente Lula completa um ano do terceiro mandato. Não bastassem os desafios da
reconstrução do Estado, o governo enfrenta um cenário externo desafiador, em um
mundo assolado pela invasão da Ucrânia pela Rússia, o conflito entre Israel e o Hamas e
os realinhamentos geopolíticos decorrentes da nova “guerra fria” que coloca em lados opostos
os Estados Unidos e a China. Sem falar na cada vez mais urgente transição sustentável. Na edição
especial de fim de ano, CartaCapital reúne um grupo de renomados especialistas para avaliar os
12 meses de Lula 3, da tentativa de golpe em 8 de janeiro à política ambiental e à recuperação
do prestígio internacional do País. Acertos e erros, avanços e recuos, ameaças e esperanças,
vencedores e perdedores, o que o primeiro ano do governo nos diz a respeito do futuro do Brasil?

Aldo Fornazieri – Carlos Bocuhy – Carlos Drummond


Celso Amorim – Cláudio Couto – Danilo Cabral
Eduardo Saron – Eliara Santana – Esther Solano
Fabíola Mendonça – Francisco Teixeira
Jaques Wagner – João Pedro Stédile
José Gomes Temporão – Júlio Lancelotti
Luciana Santos - Luiz Gonzaga Belluzzo
Marjorie Marona – Mariana Serafini – Mino Carta
Otaviano Helene – Pedro Serrano – Rodrigo Martins
Samira Bueno – Samuel Vida – Sergio Lirio
Valéria Zacarias – Venes Caitano

Disponível nas bancas e em todas as


plataformas digitais a partir de 22/12.

Ou, se preferir, reserve seu exemplar


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edicao-especial-2023
ILUSTRAÇÃO LUCIANO ARAÚJO
Ensaio

O vaticínio
de MalaquiasProfeta é aquele que já enxerga
o futuro, ensina Raymundo Faoro
P O R M I N O C A R TA

O
papa, que não estava ta, mas faz sentido que neste espaço eter- Certo de pensar no futuro, o presiden-
bem, melhorou bas- no e infinito o homem acabe por destruir te Lula vai à Arábia Saudita para confir-
tante. Esta é uma boa a si mesmo. É forçoso, inquietante, que mar a sua crença, mas há razões de sobra
notícia. Está larga- as premissas do Apocalipse estejam pre- para desconfiar das intenções de quem
mente provado que sentes, bem como a inelutável tendência o recebe, um governo corrupto a primar
Francisco é uma pre- do ser humano de prejudicar a si mesmo. pelo total desrespeito aos direitos hu-
sença benéfica para todos, manos. A Arábia Saudita, nes-
crentes ou não. O que pode in- te momento, transcende as me-
quietar é a profecia de Mala- ras suspeitas: tornou-se o país
quias: Francisco seria o último mais perigoso em relação à vida
papa antes do Apocalipse. A de- do planeta. Não mede esforços
finição da profecia é, na verda- para atingir seu propósito e
de, muito convincente: Pastor apresenta sua candidatura pa-
et Nauta – Pastor e Timoneiro. ra ser a sede da próxima Expo-
As profecias, esclarecia-me o sição Universal.
fraterno amigo Raymundo Bancou a criação de um cam-
Faoro, são o resultado de uma peonato milionário de futebol,
visão profunda das coisas do com a contratação de astros
mundo, antecipadas por quem da bola das mais variadas pro-
E L I E B E K H A Z I / G I M S Q A T / A F P, L U I S A L B E R T O /

goza deste bem. Não significa, cedências a usufruir de com-


está claro, que Malaquias este- pensações nababescas. A tele-
AGÊNCIA O GLOBO E ISTOCKPHOTO

ve cem por cento certo. visão já se incumbe de trans-


Registremos, contudo, o seu mitir embates disputados em
vaticínio, já que o risco, inega- estádios suntuosos a cerca-
velmente, existe, a começar pe- rem gramados prontos a aco-
la crise ambiental e pelos efei- lher chuteiras de ouro. Isso tu-
tos da pandemia de Covid-19, do faz parte da encenação e to-
cujas consequências ainda per- do cuidado é pouco a lidar com
duram. Talvez Malaquias pu- estes senhores envoltos em pa-
desse dispensar o oftalmologis- nos imaculados. Quanto ao pe-

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
tróleo, trata-se, simplesmente, do fator O carro do futuro é o Lamborghini de mercado do País, e não há como levar a sé-
mais imponente da poluição atmosférica. luxo movido a energia elétrica, à espera rio este pretenso intento de marca nativa.
de uma produção popularizada
O interesse pelo petróleo é uma praga

O
futuro é o carro movido a que não poupa, por exemplo, nem a Ve-
energia elétrica. Na Itália, inicial de uma vasta operação para popu- nezuela de Nicolás Maduro, empenhado
tudo começou com o lança- larizar o produto como convém. A desfa- neste momento em se apossar das jazidas
mento de um carro de luxo, o çatez crônica de origem brasileira carac- de petróleo e outros minerais da Guia-
Lamborghini, com pleno êxito. É o ensaio teriza o lançamento de carros elétricos no na contra a vontade dos Estados Unidos,
voltados para o mesmo propósito. Como
vemos, o homem teima em confirmar a
busca obsessiva pela herança do passa-
do remoto. Uma indicação preciosa das
apostas erradas do mundo é a COP28, en-
contro sediado em Dubai, nos Emirados
Árabes, destinado oficialmente a discu-
tir os problemas do meio ambiente, en-
quanto, de fato, o assunto principal aca-
bou sendo o preço do bem-amado com-
bustível e seus derivados.
O Brasil fez questão de estar presen-
te com toda a pompa e representação re-
comendáveis, para acentuar o seu empe-
nho nesta seara. Vale acrescentar que a
tal conferência em Dubai contou até ago-
ra com a presença de mais de 2,4 mil lo-
bistas, representantes internacionais do
Faoro conhecia o caminho das pedras setor petrolífero. •

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 11
CA PA

CLUBE DO
PETROLEO
SOB CRÍTICAS, O BRASIL ANUNCIA
A ADESÃO À OPEP+. FAZ OU NÃO SENTIDO?

por CA R LOS DRU MMON D

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
I
ngressar no cartel dos grandes pro- Lula esteve na Arábia Saudita cuto e só falo depois de eles tomarem a de-
antes de participar da COP28, nos Emirados
dutores de petróleo, ainda que na cisão, não apito nada,” resumiu Lula.
Árabes. A Petrobras precisa recuperar
condição de observador, pode pe- o objetivo de se tornar uma empresa O rótulo irônico aplicado pela Climate
gar mal para qualquer nação em de energia, não só de petróleo Action Network é utilizado para apontar
meio à aceleração do aquecimento as contradições dos países no processo de
global. Pior se o novo integrante do descarbonização, mas, no caso do Brasil, o
clube for o Brasil, potência da ener- mesmas exigências não se estendem aos título parece, ao menos em parte, imere-
gia renovável, que em plena COP28 integrantes da Opep+, a versão estendida cido, pois o País foi um dos poucos, senão
confirmou sua adesão à Opep+, com po- do grupo que inclui outros dez países, en- o único, a tomarem medidas efetivas no
der de voz, mas não de voto. Após a rati- tre eles Azerbaijão, Bahrein, Malásia, Mé- combate às mudanças climáticas, a come-
A H M A D E L I TA N I /A R A M C O E R I C A R D O S T U C K E R T/ P R

ficação da decisão pelo presidente Lula, xico e Rússia. “Muita gente ficou assusta- çar pela redução expressiva do desmata-
o País recebeu da rede de ONGs Climate da com a ideia de que o Brasil vai partici- mento na Floresta Amazônica e o comba-
Action Network o simbólico Prêmio Fós- par da Opep. O Brasil não vai participar da te às organizações criminosas que ganha-
sil, supostamente “por confundir produ- Opep, vai participar da Opep+, do mesmo ram terreno na região durante o governo
ção de petróleo com liderança climática”. modo que participa do G-7, no G-7+. Eu es- de Jair Bolsonaro. Além da “premiação”,
Na Opep, formada pelos 13 maiores pro-
dutores mundiais de petróleo, os partici-
pantes têm obrigações a cumprir, como o NA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA, O PAÍS
aumento ou a redução da produção. O po- TERÁ DE OPTAR ENTRE AFIRMAR
der do cartel é conhecido de longa data, ao
menos desde o embargo orquestrado em
O PRÓPRIO DESENVOLVIMENTO OU FICAR
1973, que levou a um choque nos preços ATRELADO A OUTROS INTERESSES
do barril e à consequente crise global. As

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 13
CA PA

não houve outros dedos em riste dirigidos Confirmada a adesão à Opep+, o presi-
ao Brasil na COP28, talvez porque todos dente da Petrobras, Jean Paul Prates, dis-
os países estejam atrasados na redução se que a estatal deverá começar neste mês
das emissões de gases de efeito estufa e um estudo de viabilidade da abertura de
sabem que não será tão fácil o mundo se uma subsidiária da empresa no Oriente
livrar da dependência do petróleo. Médio, para fortalecer os laços comerciais
Lula contribuiu para embaralhar as da companhia na região do Golfo Pérsi-
interpretações daqueles que o viram co- co. Lula sinalizou ter sido pego de surpre-
mo traidor da causa ambiental ao colo- sa pela afirmação de Prates. O presiden-
car em primeiro plano, durante o evento, te da Petrobras fez então um leve recuo e
diante de uma plateia global aflita com disse que a Petrobras Arábia se dedicará
a emergência climática tornada diária, apenas à produção de fertilizantes. O exe-
a ministra do Meio Ambiente, Marina cutivo não explicou, contudo, como a sub-
Silva, a “voz da Floresta Amazônica”. Ao sidiária contribuirá para diminuir a de-
atribuir proeminência à ministra, con- pendência do País em relação às importa-
siderada pela revista Time, no mês pas- ções de adubos, muito menos de que mo-
sado, uma das cem lideranças climáticas do a ação da nova empresa se combina-
mais influentes do mundo, Lula ganhou rá com o esforço para produção, no Bra- debate sobre o futuro do hidrogênio verde
tempo para equacionar impasses inter- sil, de fertilizante verde, em substituição realizado na Federação das Indústrias do
nos como o de sancionar ou não a explo- àqueles de origem fóssil. O País adquire Estado de São Paulo. “Esse mercado po-
ração de petróleo na Margem Equatorial no exterior 90% dos fertilizantes de fon- de ser atendido por fertilizantes produzi-
da Amazônia, ambicionada pela Petro- te fóssil que consome e é o maior impor- dos aqui no Brasil, a partir de hidrogênio
bras, pelo Ministério de Minas e Energia tador do planeta. Só de amônia são 35 mi- verde ou renovável”, ressaltou.
e por uma extensa fila de políticos, ape- lhões de toneladas todos os anos, o equi-

E
sar da existência de áreas equivalentes valente, em 2022, a 25 bilhões de dólares m 2050, prosseguiu a executiva,
sem o mesmo risco ambiental, de acor- em importações, destacou Camila Ramos, o Brasil será o maior exportador
do com especialistas. CEO da Clean Energy Latin America, em de alimentos do mundo e a de-
manda de fertilizantes aumen-
tará, mas pode ser suprida inter-
namente, com hidrogênio verde.
As aplicações estendem-se a vários seto-
res. Na siderurgia, responsável por 7%
das emissões globais de gás carbônico, o
hidrogênio verde pode ser utilizado pa-
ra substituir o coque, no processo de re-
dução do minério de ferro, como fonte de
calor, e o uso dessa alternativa reduz as
emissões em até 95%. A União Europeia
começou a produzir aço verde e o consu-
mo, alavancado pelas metas de redução
de emissões, chegará a 25 bilhões de dó-
lares até 2030, e pode ser em boa medi-
da atendido pelo Brasil. “O mercado de
e-combustíveis e de combustíveis sinté-
ticos avança. Das principais companhias
aéreas, 38 estão comprometidas com me-
tas de emissão zero até 2050 e 30 delas es-
tabeleceram metas de uso, em um setor
responsável por 2% das emissões de car-
A Opep determina o preço há décadas bono”, destaca a especialista.

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
As polarizações acentuadas na COP28 Ambientalistas criticaram a exploração de energia renovável. Tem que ter ambição
na foz do Rio Amazonas. Prates,
em consequência do agravamento da presidente da Petrobras, se reuniu com
de produzir e exportar amônia verde, aço
ameaça climática limitaram o espaço à Al-Ghanis, secretário-geral da Opep verde, HBI (Hot Briquetted Iron), produ-
discussão de visões mais abrangentes so- to à base de minério de ferro com maior
bre a transição energética e os interesses valor agregado e que gera baixa emissão
envolvidos, tanto de empresas quanto de dos, o European Green Deal e programas de carbono na produção do aço, e energia
países. O negócio multibilionário dos com- semelhantes em implantação na Austrá- verde também, porque o mundo vai preci-
bustíveis renováveis no Brasil está, entre- lia, no Japão, na Coreia e na China, enume- sar, e essa é uma grande vantagem do País.
tanto, em uma encruzilhada, alertam eco- ra Luciana Costa, diretora-geral de Infra- Para o hidrogênio verde, teremos merca-
nomistas e empresários, com chance tan- estrutura, Transição Energética e Mudan- do local e internacional, mas não podemos
to de ser conduzido em função dos inte- ças Climáticas do BNDES. Todos os países ficar só na exportação de energia”, ressal-
resses do País na reindustrialização quan- lançaram ou estão em vias de lançar paco- ta. O BNDES, acrescenta, tem projetos que
to de enveredar rumo a uma nova repri- tes bilionários de incentivo à reindustria- estão “quase fechando a conta” com amô-
marização, conforme os objetivos de ou- lização verde. “O Brasil, dentro das nos- nia verde. “Quando a gente avança na ca-
tras nações e de várias grandes empresas, sas limitações, terá de encontrar uma for- deia, é mais fácil. Temos de pensar nes-
em especial de monopólios estrangeiros, ma de resolver essa equação.” Ter uma es- ses incentivos para a produção de produ-
que costumam ver o Brasil apenas como tratégia integrada é indispensável para o tos verdes com alto conteúdo de energia.”
supridor de insumos, energia inclusive. País ser bem-sucedido na transição, pros-

S
Os desafios no desenvolvimento de al- segue a economista. Caso contrário, diz, egundo o empresário Daniel
ternativas renováveis em função dos in- vai replicar o modelo primário-exporta- Ioschpe, vice-presidente da
teresses internos estão relacionados a dor. “Não é isso o que queremos. O País Fiesp, “o Brasil está novamen-
custos de capital e ao enfrentamento de conta com energia renovável supercom- te diante do costumeiro im-
O P E P, A C E R V O / O P E P E E N G A J A M U N D O . O R G

grandes programas multibilionários de petitiva e um portfólio de minerais críti- passe de decidir se faremos um
investimento e descarbonização, como o cos para a transição energética, mas pre- uso o mais benéfico possível
Inflation Reduction Act, nos Estados Uni- cisa exportar produtos com alto conteúdo das energias renováveis, em especial do
hidrogênio verde, para o desenvolvimen-
to econômico e social, ou se jogaremos fo-
TODAS AS NAÇÕES ESTÃO ATRASADAS ra essa oportunidade. O lado positivo é es-
NO COMBATE ÀS MUDANÇAS se, de que há um enorme potencial, inclu-
sive de aumentarmos o crescimento pos-
CLIMÁTICAS E SABEM QUE NÃO SERÁ sível do Brasil nos próximos anos. O lado
FÁCIL SUBSTITUIR O PETRÓLEO preocupante é o que vamos fazer com es-
sa potencialidade. Trata-se de uma gran-

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 15
CA PA

de oportunidade e uma das melhores al-


ternativas à frente para a geração de em-
pregos acoplada à ideia da neoindustria-
lização, defendida muito corretamente
neste momento pelo governo”. Atingir es-
se objetivo, afirmou Ioschpe, depende de
concatenar financiamento, regras inteli-
gentes para a aceleração desse desenvol-
vimento e, antes de tudo, um regramen-
to no País, que está em curso, para a ques-
tão do crédito de carbono, e ainda, o que O Brasil vai produzir o hidrogênio verde mais e 70% do custo do hidrogênio é eletricida-
barato do mundo, projetam os especialistas
é essencial, a comunicação dessas regras de”. Segundo a consultoria McKinsey, até
com o restante do mundo. 2040 está previsto 1 trilhão de reais de in-
rar é que um mundo neutro em carbo- vestimento no País, em infraestrutura, li-

O
risco de o Brasil tropeçar na no não é um mundo sem petróleo. O pe- nhas de transmissão, parques de energia,
transição energética, em re- tróleo é energia, e é insumo para a gera- portos, dutos, armazenagem para produ-
lação à defesa dos seus pró- ção de produtos. Conseguiremos fazer ção e transporte de hidrogênio verde, além
prios interesses estratégicos, a transição para fontes renováveis, mas de bens agregados, como fertilizantes.
parece considerável. O histó- é preciso entender que a indústria do A economia verde, ressalta Koloszuk,
rico recente de decisões do go- petróleo nasceu na segunda metade do é a oportunidade de reindustrializar o
verno e do Congresso, em situações de bo- século XIX e, desde então, se fez a infra- País por meio da produção e exportação
la dividida entre o interesse privado e o in- estrutura para essa indústria, que pos- de aço e cimento verdes, com valor agre-
teresse público, está longe de ser brilhan- sui muita tecnologia embarcada e tem de gado. Um estudo da Associação Brasilei-
te. Um exemplo gritante é o da aprovação, ser parte da equação. Essa indústria sabe ra do Hidrogênio Verde projeta um mer-
no governo de Michel Temer, da MP do produzir energia, armazenar e transpor- cado de 7 trilhões de reais até 2050. Até
Trilhão, convertida na Lei 13.586, de 2017, tar. É o que a gente vai ter de continuar a 2030, o produto será 18% mais barato que
que garante até 2040 benefícios fiscais a fazer, em novas bases”, ressaltou. o hidrogênio cinza, produzido a partir de
empresas petrolíferas que exploram os Durante os próximos 30 anos de con- fonte fóssil, atualmente utilizado nas in-
blocos das camadas pré-sal e pós-sal e es- vívio inevitável entre energias fósseis e dústrias. Uma condição importante, su-
tende as isenções à importação de máqui- energias renováveis, é importante consi- blinha o presidente da Absolar, é perder-
nas e equipamentos empregados nas ati- derar que a produção de hidrogênio tem mos a vergonha da palavra subsídio. “Fi-
vidades de exploração, em uma bolada to- potencial para permitir a alguns “petro- zemos isso no passado com o etanol e com
tal de 1 trilhão de reais. Outro é o Projeto -Estados”, como a Arábia Saudita, entre o agronegócio. Tem de cortar subsídio on-
de Lei das eólicas offshore aprovado na outros, a diversificação durante a tran- de não faz mais sentido subsidiar, petró-
Câmara, com excesso de benefícios ao sição energética, anota a newsletter espe- leo e carvão. É preciso aproveitar a jane-
setor elétrico e aumento de custos a con- cializada Energy Monitor de maio. Para o la de oportunidade para os investimentos
sumidores e empresas, de acordo com a presidente do conselho de administração não irem para outro destino. Sem subsí-
Fiesp. Os “jabutis” acrescentados ao PL da Associação Brasileira de Energia Solar dio com começo, meio e fim, para o em-
podem encarecer as contas de luz em 28 Fotovoltaica (Absolar), Ronaldo Koloszuk, purrão inicial, os investimentos irão pa-
bilhões de reais, segundo alguns cálculos. “o Brasil é a bola da vez” e vai produzir o ra outros cantos. Este é o momento de es-
Outra dificuldade na transição de- hidrogênio verde mais barato do mundo, timular esse mercado e ajudar o Brasil a
corre de se subestimar o enorme de- pois tem a energia mais barata do planeta ser um país desenvolvido.” •
safio de substituição da colossal infra-
COMPL E XO DO PECÉM/GOVCE

estrutura e da economia construídas


ao longo do predomínio do petróleo, VÁRIOS PAÍSES LANÇARAM PACOTES
alerta Luciana Costa, que considera a BILIONÁRIOS DE INCENTIVO
commodity parte da solução. O mundo,
cabe acrescentar, precisou de 50 anos
À REINDUSTRIALIZAÇÃO VERDE E O BRASIL
para concluir a transição do carvão para TERÁ DE RESOLVER ESSA EQUAÇÃO
o petróleo. “O primeiro ponto a conside-

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CA PA

Quase nada de novo


nos Emirados Árabes

MIRAGEM
NO DESERTO
SEDIADA EM DUBAI, A CONFERÊNCIA DO CLIMA DA ONU
OUTRA VEZ DESPERDIÇA AS OPORTUNIDADES

por M AU R ÍCIO THUSWOHL

S
obra fumaça, faltam ações. En- Em sua 28ª edição, sediada pelos Emi- do petróleo, justamente em um momento
quanto as emissões de gases rados Árabes Unidos, a conferência do no qual o planeta clama por uma redução
de efeito estufa não param de clima da ONU reforça a frustração acu- efetiva e urgente do uso de combustíveis
STUART WILSON/COP28

crescer (60 bilhões de tonela- mulada em uma sequência de negocia- fósseis. Presença aguardada na reunião,
das de CO2 foram lançadas na ções emperradas, metas não cumpridas o presidente Lula tornou-se alvo dos am-
atmosfera em 11 meses des- e promessas que nunca saem do papel. E bientalistas depois de anunciar a adesão
te ano), encolhem as esperanças de um como nada é tão ruim que não possa pio- do Brasil à Opep+, grupo expandido dos
acordo capaz de deter as consequências rar, a COP28 entrará para a história co- principais países produtores, a ponto de
mais drásticas do aquecimento global. mo aquela que promoveu a “reabilitação” uma ONG conceder ao País o prêmio de

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 17
CA PA

“Fóssil do Dia” (mais detalhes na repor- nião em Dubai é Sultan al-Jaber, princi-
tagem de Carlos Drummond à página 12). pal executivo da Adnoc, estatal de petró-
A melhor notícia da COP28 até o mo- “A LIDERANÇA leo dos Emirados Árabes. Em pouco mais
mento – a reunião termina na terça-fei- AMBIENTAL DO de uma semana de reunião, Al-Jaber rou-
ra 12 – é a regulamentação do fundo de BRASIL É CADA VEZ bou a cena ao menos em dois momentos.
perdas e danos. Inicialmente, os 550 mi- MAIS PALPÁVEL”, Primeiro, quando veio à tona a informa-
lhões de dólares, cerca de 2,7 bilhões de ção de que pretendia aproveitar a presen-
reais, serão destinados aos países em de- AFIRMA ANA TONI, ça de inúmeros chefes de Estado e inves-
senvolvimento mais afetados pelas mu- SECRETÁRIA DE tidores para realizar reuniões bilaterais
danças climáticas. Antes tarde. A criação MUDANÇA DO com potenciais interessados na explora-
do fundo é um projeto de 30 anos atrás e a CLIMA DO ção de petróleo e gás. Depois, quando va-
resolução aprovada em Dubai é um início zou um vídeo no qual põe em dúvida a
atrasado, mas nem chega perto dos 400 MINISTÉRIO DO previsão dos especialistas. “Não há ne-
bilhões de dólares anuais prometidos pe- MEIO AMBIENTE nhuma ciência que diga que a elimina-
las nações ricas a partir de 2030. Por sua ção gradual dos combustíveis fósseis é o
vez, o Fundo do Clima, aventado pela pri- que vai nos fazer alcançar a meta de 1,5
meira vez na COP21 e que prevê doações grau Celsius”, disparou.
de 100 bilhões de dólares por ano, conti- As empresas petrolíferas também
nua relegado à gaveta. marcaram presença na COP28, mas es-
caparam da discussão sobre o fim da ex-

O
utro avanço pode surgir nas ploração. Lideradas por Exxon e Saudi
discussões de balanço ge- Aramco, as duas maiores do mundo, 50
ral das emissões, o chamado multinacionais do setor anunciaram, en-
Global Stocktake. “Agora é tretanto, um vago acordo para reduzir a
ver qual reação os países te- “perto de zero” até 2030 as emissões de
rão e o que vão deliberar co- metano decorrentes da atividade. Coin-
mo ação conjunta em relação aos seus nú- cidência ou não, a promessa surgiu na es-
meros negativos. Que os países promete- teira da participação de Kamala Harris.
ram mal e mesmo suas promessas ruins A vice-presidente dos Estados Unidos
não foram entregues, todo mundo sabe. anunciou que Washington passará a exi-
O risco de catástrofe, se continuarem fa- gir das petroleiras o fim das emissões do
zendo o que está sendo feito, todo mun- gás. Ainda na esfera governamental, um
do também conhece. Então, o que tem grupo de 116 países selou o compromis-
de sair desse debate é um compromisso so de triplicar a capacidade de geração de
coletivo sobre os passos futuros”, avalia energia renovável até 2030. Medida tími-
Márcio Astrini, coordenador-executivo da em face da emergência climática e a di-
do Observatório do Clima, um dos parti- nâmica da economia internacional. “As
cipantes do evento em Dubai. Apesar do agências de financiamento nacionais ou
pessimismo quanto aos principais itens multilaterais continuam a investir mui-
da pauta da conferência, o ambientalista to em petróleo, gás e carvão e muito pou-
elenca possíveis ganhos pontuais decor- co na transição energética”, lamenta Ru-
rentes de acordos voluntários firmados bens Born, coordenador do Fórum Bra-
entre governos em temas como redução sileiro de ONGs de Meio Ambiente, pre-
de metano, energias renováveis, desma- sente em Dubai.
tamento e sistemas alimentares. Disposto, nas palavras de Lula, a “li-
Astrini critica, porém, a condução da- derar pelo exemplo” os debates sobre
da ao debate sobre combustíveis fósseis. transição energética e economia verde,
“Com essa presidência da COP, não have- o Brasil esteve ativo na primeira semana
rá nenhum esforço para que essa agenda A ministra Marina Silva apresentou de conferência, seja nas mesas de nego-
ande. Ao contrário.” O presidente da reu- um pacote de iniciativas brasileiras ciação dos principais temas, no anúncio

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
da redução do desmatamento da Amazô- Espera-se, ao menos, acordos entre “Falava-se por aqui que o Brasil seria o
países para a redução de metano
nia ou na apresentação de novidades co- ‘Guardião do 1,5ºC’. O governo veio com
e aumento da energia renovável
mo a emissão de “bônus verdes” do Te- todos os números de baixa do desmata-
souro Nacional. O trio formado por Ita- mento, anunciou a transição ecológica,
maraty, Meio Ambiente e Fazenda toca mais palpável. O País chegou com pro- lançou o Fundo de Florestas com a parti-
afinado em Dubai, mas o governo pode- postas de negociação muito claras e pro- cipação do próprio presidente da Repúbli-
ria ter passado sem o desgaste causado gressistas em direção à meta de 1,5 grau ca. O roteiro estava todo feito, mas nele,
pelo anúncio de adesão à Opep+ feito por Celsius”. Sobre os combustíveis fósseis, obviamente, não havia a entrada do Brasil
Alexandre Silveira, ministro de Minas e Toni pondera: não é um problema só do na Opep. Deu no que deu, e agora o gover-
Energia. Lula matou no peito a bola qua- Brasil. “Muitos países têm hoje a mesma no, em vez de explicar os avanços, é obri-
drada lançada por Silveira e a rolou suave dificuldade. Esse é um debate importante gado a falar sobre a adesão.” Born avalia
em um discurso posteriormente repeti- e parte da agenda global.” A secretária de que “o anúncio teve grande repercussão
do pelos subordinados. “Acho importan- Assuntos Internacionais do Ministério política e revelou as contradições do Bra-
te participar, porque a gente precisa con- da Fazenda, Tatiana Rosito, comemo- sil”. Mas, pondera, não afetou a atuação
vencer os países que produzem petróleo rou a participação do governo na reunião do governo nas negociações diplomáticas
de que eles têm de se preparar para re- da Coalizão de Ministros das Finanças em torno dos principais temas. O que re-
duzir os combustíveis fósseis”, declarou. para a Ação Climática. “Apresentamos almente importa até o fim da COP28, diz
ISTOCKPHOTO E STUART WILSON/COP28

avanços concretos na área de finanças o ambientalista, é fazer com que as dis-

E
ntre uma mesa de negociação e sustentáveis, no contexto do Plano de cussões no Global Stocktake desaguem
outra, a secretária de Mudança Transformação Ecológica.” Foi notável, em contribuições nacionais mais am-
do Clima do Ministério do Meio diz a secretária, o interesse a respeito da biciosas. “Segundo os cientistas, temos
Ambiente, Ana Toni, afirmou a agenda ambiental que o Brasil preten- pouco tempo para atingir as metas ne-
CartaCapital que o anúncio da de discutir durante o período de Lula na cessárias de corte nas emissões, especial-
adesão à Opep+ “não ofuscou de presidência do G20, grupo das 20 maio- mente nos países com maior presença de
maneira alguma a capacidade proativa” res economias do planeta. combustíveis fósseis em suas economias.
da delegação brasileira nos Emirados. “A Segundo Astrini, a adesão à Opep+ afe- A transição energética tem de ser acele-
liderança ambiental do Brasil é cada vez tou em certa medida a imagem do País. rada o quanto antes.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 19
Seu País

Mão na
cumbuca
CONGRESSO A aprovação do orçamento do
próximo ano escancara a queda-de-braço
entre o governo e os líderes partidários
POR ANDRÉ BARROCAL

A
s dificuldades do gover- manho do fundo público reservado às
no Lula no Congresso campanhas de prefeito e vereador em
durante o ano eviden- 2024. A outra diz respeito justamente às
ciaram que o Brasil vive emendas. Haverá um cronograma fixa-
um parlamentarismo do em lei que obrigue o governo a liberar
disfarçado. O reforço do Poder Legisla- o dinheiro dessas obras ao longo do ano?
tivo nos últimos tempos deu-se com a
captura de uma fatia crescente das ver- O primeiro pepino está nas mãos do
bas federais, por meio das chamadas relator da lei orçamentária, o deputa-
“emendas”, aquelas obras que deputa- do Luiz Carlos Motta, do PL paulista.
dos e senadores incluem no orçamen- O outro foi criado pelo relator do rascu-
to. Uma situação confortável, com bô- nho do orçamento, a LDO, o deputado
nus e sem ônus, para os congressistas. cearense Danilo Forte, do União Brasil.
Eles mandam no País, e se a população Curioso: Motta, de 64 anos, é do parti-
estiver fula da vida, quem paga o pato é do de Jair Bolsonaro, mas tem colabo-
o governo, na forma de baixa populari- rado com o governo. É sindicalista de
dade. “Emenda”, afirma um petista origem (do comércio), foi do PDT mui-
com mandato, “é uma palavra podero- to tempo. Forte é de uma sigla premia-
sa” atualmente. Dado que o quadro é es- da com três ministérios, mas faz jogo
te, chegou aquele momento de fortes duro com o Palácio do Planalto. Aos 65
emoções em Brasília: a votação do or-
çamento do próximo ano. “Vamos ter
de fazer malabarismo”, diz um articu-
lador político do Executivo. Uma ala poderosa
São duas as encrencas por trás de ne-
quer ao mesmo tempo
gociações que se arrastam há semanas
e devem ter um desfecho apenas às vés- um fundo eleitoral
peras das férias parlamentares, marca- generoso e dinheiro de
das para começar no dia 22. Uma é o ta- sobra para as emendas

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 24
NESTA Maceió. Atingidos pelo desastre
SEÇÃO da Braskem queixam-se das baixas
indenizações e da omissão estatal

Teste. O Parlamento atrasa a votação bilhões na campanha de 2022. Uma ala


do orçamento em busca de mais do Congresso defende para 2024 repe-
vantagens. Lira e Alcolumbre só pensam tir o valor do ano passado. É uma tur-
na sucessão na Câmara e no Senado
ma liderada pelos chefes partidários,

ZECA RIB EIRO/AG. CÂ M A R A E J EFF ERSO N RU DY/AG. CÂ M A R A


“donos” do dinheiro em seus respecti-
vos ninhos. Vários presidentes de siglas
anos, foi do PCdoB no passado, hoje é são parlamentares: os deputados Baleia
empresário (dono da empreiteira Pon- Rossi, do MDB, Luciano Bivar, do União
car) e afinadíssimo com o tal “merca- Brasil, Marcos Pereira, do Republica-
do” e o chamado “Centrão”. nos, e Renata Abreu, do Podemos, e o
Motta prefere um fundo público de senador Ciro Nogueira, do PP.
campanhas mais enxuto, assim como
o Palácio do Planalto. Desde a sua cria- Outra corrente no Congresso defen-
ção, em 2017, para valer na eleição a pre- de que o fundo tenha como referência a
sidente, governadores, deputados e se- quantia da eleição municipal anterior (2
nadores realizada no ano seguinte, o bilhões de reais), sobre a qual seria aplica-
fundo agigantou-se. Tinha 1,7 bilhão da a inflação acumulada, o que daria cerca
em 2018, pulou para 2 bilhões na dis- de 2,6 bilhões. Além de Motta e do gover-
puta municipal de 2020 e alcançou 4,9 no, o presidente do Senado, Rodrigo Pa-

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 21
Seu País

Por fora. O petista Guimarães foi


lembrado por Lira como uma alternativa
ao comando da Câmara dos Deputados

checo, do PSD, é desse time. Quanto mais


polpudo for o fundo, maior tende a ser o
desgaste político de Brasília. Por mais que
o financiamento empresarial de candida-
tos tenha se mostrado fonte de corrupção,
reservar 5 bilhões de reais a campanhas é
demais num País onde 31% dos brasilei-
ros estão na pobreza. No orçamento pro-
posto ao Legislativo em agosto, o governo
havia separado 900 milhões para o fundo.
Qualquer que seja a cifra final (4,9 bilhões
ou 2,6 bilhões), Motta terá de tirar recur-
sos de algum lugar. Está disposto a mor-
der das emendas. No esboço de seu rela-
tório, havia retirado 4 bilhões de reais da
margem dos parlamentares para destinar
ao fundo, se necessário. que, somadas, perfazem 35,8 bilhões. ta de recuperar o controle da execução
Nos três anos de vigência, o orça- das emendas não andou como o esperado,
As emendas agigantaram-se ainda mento secreto movimentou 45 bilhões diz uma fonte palaciana. E olha que nesse
mais do que o fundo eleitoral de uns de reais. Na época da transição de Bol- ano houve liberação recorde de recursos
anos para cá, sobretudo por causa de sonaro para Lula, a equipe do atual pre- para emendas individuais. Até 4 de de-
uma aberração da era Bolsonaro. “De- sidente tinha planejado tomar de volta zembro, 14,6 bilhões de reais, segundo o
pois do orçamento secreto e desse pro- do Congresso para o governo, ao longo Siga Brasil. A média anual com Bolsona-
tagonismo das emendas, a relação do go- de 2023, o controle das emendas. Obje- ro havia sido de 9 bilhões. “Toda vez que
verno com o Congresso é tensa”, diz um tivo facilitado pelo julgamento do Su- conseguimos acelerar ainda mais a exe-
ex-deputado do “Centrão”, agora cola- premo de dezembro de 2022. As emen- cução, cria-se um ambiente ainda mais
borador de um ministério. “Os minis- das são um instrumento do governo positivo dentro do Congresso Nacional
térios não têm força, é tudo com o Con- para, digamos, seduzir o Parlamento e para que a gente conclua as votações”,
gresso.” Em 2019, primeiro ano do capi- conseguir aprovar projetos. Se deputa- disse pública e abertamente o ministro
tão no poder, eram 8.912 emendas, total dos e senadores providenciam um ca- Alexandre Padilha na terça-feira 5.
de 17,3 bilhões de reais, conforme dados minhão de dinheiro para as emendas, Na queda de braço pelo controle das
do “Siga Brasil”, sistema mantido na web e se estas precisam ser pagas de qual- emendas entra em cena o deputado For-
pelo Senado. No ano seguinte, o da es- quer jeito pelo governo graças ao cará- te. A Lei de Diretrizes Orçamentárias
treia do orçamento secreto, havia 14.103 ter impositivo a partir de 2015, há me- contém parâmetros norteadores do or-
emendas e, em valores, mais do que o do- nos motivos para ajudar o presidente. çamento e precisa ser aprovada antes
bro (36,1 bilhões). Em 2023, orçamento As emendas bastam para ficarem bem deste. Tem de ser enviada pelo governo
aprovado no último mês de Bolsonaro e com as bases e se reelegerem. ao Legislativo em abril. Os parlamenta-
com a futura base lulista no centro das É comum ouvir de articuladores polí- res não podem sair de férias, em julho,
negociações, o secretismo acabou, por ticos lulistas que a área do Planalto en- sem votarem a LDO. Pois neste ano sa-
decisão do Supremo Tribunal Federal. carregada de lidar com congressistas, a íram. É raríssimo que essa lei siga pen-
Permaneceu, porém, a lógica de o Con- Secretaria de Relações Institucionais, dente em um mês de dezembro. Forte
gresso apropriar-se de um naco enor- ficava às moscas sob Bolsonaro. Era tu- tenta inserir um cronograma de libe-
me do caixa federal e direcioná-lo pa- do delegado aos comandantes da Câma- ração das verbas de emendas ao longo
ra onde quisesse. São 19.520 emendas ra e do Senado. Aquele plano governis- de 2024. Um calendário do tipo torna-

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ria automática, independentemente da “A votação do é natural”, diz Guimarães. Um deputa-
vontade do Executivo, a execução das do governista envolvido nas negociações
obras. E praticamente anularia os es-
orçamento terá fortes aposta que, na hora agá, o relator da LDO
forços do Planalto para retomar o con- emoções”, diz José vai desistir da ideia de um cronograma
trole do orçamento. “O Danilo é a voz do Guimarães, líder do para a execução de emendas. A tentativa
Arthur Lira neste jogo”, afirma aquele governo na Câmara de impor o calendário não é o único pro-
ex-deputado do Centrão citado no iní- blema criado por Forte. Este tem má von-
cio desta reportagem. tade com a intenção do Ministério da Fa-
zenda de colocar na LDO uma atenuan-
Lira é o presidente da Câmara desde te para a magnitude do corte orçamen-
2021, um dos mais poderosos da histó- do União Brasil, a sigla de Forte. Hou- tário projetado para o início de 2024. É
ria do cargo. Foi quem colocou a LDO ve, porém, uma situação curiosa há al- uma praxe, destinada a garantir que o
nas mãos de Forte. Perde poder quanto gumas semanas. Lira reuniu-se com lí- governo cumpra a meta fiscal. Lula não
maior for o controle do governo sobre o deres e, numa rodinha, comentou que o quer, no entanto, começar o próximo ano
orçamento. No fim das contas, eis o re- petista cearense José Guimarães, líder com uma tesourada parruda. Pretende
sumo da batalha: quem terá mais juris- do governo na Câmara, era um bom no- viajar pelo País para inaugurar obras e,
dição sobre as emendas e, portanto, in- me para concorrer. Seria Guimarães o com isso, dar um empurrãozinho na eco-
fluência sobre os congressistas. “A vo- plano B de Lira? Em 2025, haverá ainda nomia e, também, nos aliados que dispu-
tação do orçamento vai decidir o próxi- eleição para o comando do Senado. Um tarão as eleições municipais.
mo presidente da Câmara”, diz um de- concorrente de peso é, desde já, Davi Al- A propósito, Forte gostaria de voltar
putado petista. A sucessão de Lira se- columbre, que presidiu a Casa de 2019 a dar as cartas em uma estatal, a Fun-
rá em fevereiro de 2025. Seu candida- a 2020. Alcolumbre é do União Brasil. dação Nacional de Saúde, que Lula fe-
to é o baiano Elmar Nascimento, líder É improvável que as forças políticas em chou logo ao voltar ao Planalto. Em cli-
Brasília aceitem um mesmo partido à ma de “fortes emoções” de fim de ano,
frente da Câmara e do Senado. será que o deputado ganhará esse, diga-
É com eles. Motta e Forte, “A votação do orçamento terá fortes mos, presente de Natal? Criar dificul-
relatores do orçamento e da LDO, emoções, porque é uma coisa que diz res- dade para vender facilidade, eis um dos
jogam em times diferentes peito aos parlamentares, então a tensão lemas no Congresso. •
B RU N O S PA DA /AG . CÂ M A R A , G A B RIEL L EM ES / M DIC E LU L A M A RQ U ES /A B R

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 23
Seu País

Famílias sem chão


MACEIÓ Remoções forçadas, indenizações
irrisórias, omissão estatal... O desastre
provocado pela Braskem é muito mais
profundo do que se vê nas crateras
POR MARIANA SER AFINI

A
gente não tem mais cabeça dores foi removida pela prefeitura com
" para lidar com isso. Minha a promessa de um aluguel social, porque
esposa até adoeceu, agora ainda não havia comprovação da respon-
toma remédio controlado”, sabilidade da Braskem. De lá para cá, pro-
desabafa Antônio Domin- vou-se que o desastre não tem causas na-
go dos Santos, ex-funcionário da Braskem turais, mas boa parte dos moradores se-
e morador do Flexal, um dos bairros ame- gue sem garantia de uma moradia segura.
açados de sucumbir devido à imperícia da
empresa na extração de sal-gema do sub- Na outra ponta da vasta área atingida,
solo de Maceió. A família de seis pessoas no bairro de Pinheiro, o pastor Wellington
precisou abandonar a casa às pressas, em Santos denuncia que ao longo dos últimos
29 de novembro, após receber um alerta anos nem o Poder Público nem a Braskem
da Defesa Civil de Alagoas sobre o risco fizeram propostas razoáveis para prote-
iminente de desabamento. Resistiram até ger, realocar e indenizar as vítimas. “As
o último minuto, porque não queriam se primeiras pessoas que saíram, seja pe-
desfazer da residência onde a sogra de la via do aluguel social, seja por meio de
Santos vive há 70 anos sem a certeza de acordos com a empresa, logo depois se sen-
ter outro lugar digno para morar. tiram lesadas e quiseram voltar. Mas vol-
O antigo montador de andaimes preci- tar para onde? Só há escombros por aqui.”
sou abandonar a profissão após ser aco- No vilarejo fantasma, a Igreja Batista do
metido por uma hérnia de disco, que cau- Pinheiro, onde Wellington celebrava seus
sa dores insuportáveis na coluna ao me- cultos, também acabou interditada pela
nor esforço. Desempregado há quatro Defesa Civil. “Isso abalou muito a socie-
anos, sobrevive de bicos. Reconstruir a dade. Só aqui, neste bairro, 12 pessoas co-
vida em outro local não é tão simples pa- meteram suicídio. O mais recente foi em
ra o trabalhador. O drama de Santos so- março deste ano. Um homem foi à fren-
ma-se ao de outras 60 mil famílias atin- te da casa onde morava e deu um tiro na
gidas pelo desastre geológico desde 2018, cabeça. Claramente, foi ato de desespe-
quando a capital alagoana começou a sen- ro e protesto”, lamenta o líder religioso.
tir os primeiros tremores de terra. Racha- O risco de colapso é iminente. Na região
duras tomaram conta das paredes de ca- da Mina 18, o solo afundou quase 2 metros
sas e prédios. Crateras se abriram em desde o início das medições da Defesa Ci-
algumas ruas. À época, parte dos mora- vil, no fim de novembro. A arquiteta e ur-

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Desalojado. Ex-funcionário da Braskem, meçaram a ruir, concluiu o Serviço Geo- Os maiores acionistas da empresa são a
Antônio Domingos dos Santos teve lógico do Brasil, ligado ao Ministério das Novonor (antiga Odebrecht), detentora de
de abondonar a sua casa às pressas
Minas e Energia, em parecer de 2019. É 38,3% das cotas, e a Petrobras, com 36,1%.
D AV YS S O N M E N E S / P R E F E I T U R A D E M A C E I Ó E A C E R V O P E S S O A L

espantoso que uma companhia do por- Em novembro, a Adnoc, estatal petrolífe-


te da Braskem tenha cometido tamanha ra dos Emirados Árabes Unidos, fez uma
banista Isadora Padilha, autora do livro barbeiragem, a despeito dos alertas de es- oferta de 2,1 bilhões de dólares – o equiva-
Rasgando a Cortina de Silêncios (Ed. Ins- pecialistas que apontavam o risco de um lente a 10,3 bilhões de reais – para comprar
tituto Alagoas), explica que esta área pró- desastre ainda nos anos 1980. grande parte da participação da Novonor.
xima da costa concentra os bairros mais Maior petroquímica da América La- Da mesma forma, é assombrosa a ex-
antigos de Maceió. “Bebedouro, por sinal, tina, a empresa teve um faturamento ploração política da tragédia. Em julho, a
possui numerosos imóveis tombados pelo de 96,5 bilhões de reais no ano passado. Braskem celebrou um acordo com Maceió,
patrimônio histórico. É uma das primei- no qual se comprometeu a ressarcir o mu-
ras áreas povoadas da cidade, os registros nicípio em 1,7 bilhão de reais. Mediada pe-
remontam ao século XVIII.” lo Ministério Público Federal, a indeniza-
Por décadas, a Braskem explorou o sal- ção visa compensar “os prejuízos que a ci-
-gema de Maceió, usado na produção de
Na região da mina 18, dade sofreu, exclusivamente, com a perda
PVC e da soda cáustica, mas a mineração o solo afundou quase de receita tributária e de diversos bens pú-
inadequada em uma área de falha geológi- 2 metros desde blicos que estavam na região dos bairros
ca abriu grandes cavidades e as minas co- o fim de novembro atingidos pelos afundamentos entre 2019

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 25
Seu País

Fúria. Atingidos queixam-se dos baixos compor a comissão. “É surreal que, no mo- tá sendo criticada pelos atingidos, que se
valores oferecidos pela Braskem como mento em que o mundo discute os proble- queixam dos baixos valores de indeniza-
reparação pelas residências perdidas
mas ambientais em uma COP, Alagoas seja ção pagos a cada família que perdeu a casa.
vítima de uma ação criminosa de uma mi- Pouco a pouco, moradores dos bairros
neradora que continua impune”, lamen- Pinheiro, Farol, Bom Parto e Mutange fo-
e 2022”, esclarece a assessoria de impren- tou Calheiros nas redes sociais. O parla- ram sendo removidos das áreas de risco.
sa da prefeitura. O pacto foi elogiado por mentar cogita acionar o Supremo Tribu- Em 2019, a Braskem instituiu um Progra-
Arthur Lira, presidente da Câmara e aliado nal Federal para determinar o início dos ma de Compensação Financeira e Apoio
do prefeito bolsonarista João Henrique trabalhos em prazo razoável, a exemplo do à Realocação. Foi oferecido, a cada famí-
Caldas (PL), mas não incluiu nem o gover- ocorrido em 2021 com a CPI da Covid-19. lia, um total de 40 mil reais de indeniza-
no do estado nem as famílias desalojadas, ção por danos morais, mas o pagamento
que tiveram de negociar por conta própria No meio do chumbo trocado entre os da reparação estava condicionado à ven-
com a Braskem. Por causa disso, o governa- clãs Lira e Calheiros, antigos rivais da po- da do imóvel pelo preço estabelecido pe-
dor Paulo Dantas (MDB), aliado da família lítica alagoana, o Ministério Público Fe- la empresa, muito abaixo do valor de mer-
Calheiros, solicitou à Advocacia-Geral da deral esclarece que os acordos celebrados cado, segundo relataram numerosas víti-
União uma revisão do acordo, por ele clas- com a Braskem não inviabilizam a respon- mas à reportagem de CartaCapital.
sificado como “ilegal” e “inconstitucional”. sabilização criminal dos causadores do de- De acordo com a empresa, das mais de
Ex-governador e atual ministro dos sastre em Maceió. “Em 2019, após o laudo 19 mil propostas apresentadas aos remo-
Transportes, Renan Filho ecoou as críti- conclusivo do Serviço Geológico do Brasil vidos, 18,5 mil foram aceitas (97% do to-
cas de Dantas: “Não tem sentido fazer um descartar causas naturais para o fenôme- tal). As indenizações já entregues a 17,8
acordo pecuniário, enquanto todas as pes- no, foi requisitada a instauração de inqué- mil famílias somam 3,85 bilhões de reais,
soas da região não forem indenizadas”. Em rito à Polícia Federal”, informou, por meio incluídos os auxílios financeiros pagos
outubro, o senador Renan Calheiros cole- de nota, a Procuradoria da República em por certo período. O valor médio aproxi-
tou as assinaturas necessárias para a ins- Alagoas. “Essa investigação tramita sob si- ma-se de 216 mil reais. Em um acordo es-
talação de uma CPI da Braskem, mas até o gilo para garantir a efetividade da perse- pecífico para Flexais, foi acertado o pa-
momento os líderes partidários do Senado cução penal, que é do maior interesse pú- gamento de uma parcela única de 25 mil
não indicaram seus representantes para blico”. Mas a atuação do MPF também es- reais aos moradores e comerciantes que

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
permaneceram no bairro. Das 1.724 pro- Políticos dos clãs mo padrão. A Braskem quer nos obrigar a
postas apresentadas, 1.672 foram pagas aceitar qualquer coisa”, queixa-se. Alguns
até o momento, acrescenta a assessoria
Lira e Calheiros vizinhos, acrescenta, toparam pegar o di-
de comunicação da Braskem. trocam acusações nheiro para comprar um imóvel em outro
“As pessoas se sentiram coagidas a acei- em meio à tragédia bairro mais afastado ou mesmo fora da ci-
tar os termos desse acordo porque não vi- dade. “Para quem vive em Pinheiro, che-
ram outra forma de sair para uma área se- garam a oferecer hotel e pousada no mo-
gura naquele momento, mas claramente mento de desespero. Para nós, de bairros
foram lesadas”, avalia a advogada Marluce chou um acordo à parte com a Braskem. A mais pobres, ofertaram abrigo coletivo em
Margareth da Silva Sobral Furtado, coor- população ficou sozinha.” Melro antecipa escola. Jamais vou levar minha mãe de 75
denadora da Comissão para Acompanha- que vai acionar a Justiça para pedir a revi- anos, com câncer, para dormir no chão.”
mento do Caso Pinheiro na seção alago- são dos valores pagos e das condições im-
ana da OAB. O defensor público Ricardo postas às famílias afetadas pelo desastre. Furtado alerta, ainda, para outro dano
Melro, coordenador do Núcleo de Prote- Santos, o ex-funcionário da Braskem colateral do desastre: o boom imobiliário.
ção Coletiva, concorda com a avaliação. citado no início da reportagem, é um dos Com milhares de pessoas em busca de no-
“Inicialmente, a prefeitura dialogou com atingidos que rejeitaram propostas da em- vas moradias, o preço dos imóveis na cida-
as vítimas e gerou expectativas de que eles presa. “Vivo numa casa onde cabe toda a de disparou. Em julho, Maceió tinha o me-
seriam realocados em moradias popula- minha família, é um imóvel grande e con- tro quadrado mais caro do Nordeste: 7.815
res com segurança, mas depois o municí- fortável. Com os valores oferecidos, jamais reais, segundo índice FipeZap. A valoriza-
pio abandonou a mesa de negociação e fe- encontraríamos outra residência no mes- ção no intervalo de 12 meses foi de 17,51%,
a maior entre as capitais brasileiras. Fenô-
meno semelhante verifica-se em municí-
pios vizinhos. “É um caos generalizado”,
afirma a advogada, que não tira a razão do
governador Paulo Dantas em questionar o
acordo da Braskem com a prefeitura.
Segundo a assessoria de imprensa do
governo de Alagoas, a administração es-
tadual mantém diálogo com a Braskem,
mas sempre pontuou que só fecharia um
acordo que envolvesse as vítimas e ofere-
cesse uma indenização justa, não referen-
I TAW I A L B U Q U E R Q U E / P R E F E I T U R A D E M A C E I Ó, FÁ B I O R O D R I G U E S

te a cada casa, mas a cada pessoa atingida,


P OZ Z E B O M /A B R E G U I D O J R . / F O T O A R E N A / E S TA D Ã O C O N T E Ú D O

além de reparação para outros municípios


da Região Metropolitana, para onde mui-
tas famílias foram realocadas. Por isso, o
governador entende que essas cidades de-
vem ser indenizadas. O estado também te-
ria sofrido uma drástica perda de arreca-
dação. “Por todos esses motivos, conside-
ramos ser necessário fechar um acordo
mais amplo, sem excluir ninguém.”
Além do acordo bilionário com a

Disputa. Arthur Lira defende o acordo


bilionário firmado pelo prefeito Caldas
com a Braskem. Paulo Dantas e Renan
Calheiros cobram uma revisão completa

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 27
Seu País

Abalo emocional. Moradores relatam


o adoecimento de familiares e mencionam
diversos casos de suicídio na vizinhança

Braskem, o prefeito Caldas solicitou ao


governo federal um empréstimo de 40
milhões de dólares. Com o aval do vice-
-presidente Geraldo Alckmin, o Senado
aprovou, em regime de urgência, a libe-
ração dos recursos, provenientes do Fon-
plata, um fundo para o desenvolvimento
de países da América do Sul. De acordo
com o relator do projeto, senador Rodri-
go Cunha, do Podemos, os recursos serão
utilizados para a prevenção de desastres e
para a estabilização de encostas.

Na terça-feira 5, durante sua passa-


gem por Berlim, a ministra do Meio Am-
biente, Marina Silva, afirmou que os pro-
cessos de licenciamento ambiental de- “As famílias foram Apesar de pobres, éramos felizes, nos reu-
vem ser mais rigorosos para evitar novas claramente lesadas”, níamos para tomar uma cerveja no Bar do
“catástrofes” como a da Braskem. Dian- Alonso, comer um peixe frito. Agora, tudo
avalia a advogada
te de episódios como este, acrescentou a acabou. Ficou só na memória.”
ministra, é preciso tomar cuidado para
Marluce Furtado, Procurada por CartaCapital, a Braskem
não transferir responsabilidades do se- da OAB do Alagoas nega que as reparações estejam subava-
tor privado para o Poder Público. Curio- liadas: “Para definir as propostas de inde-
samente, neste mesmo dia, o governo fe- nização, são considerados o valor de imó-
deral anunciou que vai pagar um auxílio veis semelhantes (com as mesmas dimen-
financeiro de 2,6 mil reais para cada um to a viver com medo e sem saber o que po- sões e situados em bairros com as mes-
dos 6 mil pescadores e marisqueiras que de acontecer amanhã ou depois. Isso tem mas características) e benfeitorias re-
exerciam seu trabalho na Lagoa Mundaú, adoecido as pessoas, nossa saúde mental levantes para determinação do padrão
também atingida pelo colapso das minas. está muito abalada. A mineradora precisa construtivo, sem considerar deprecia-
A empresa vai ressarcir a União? levar em conta tudo isso na hora de fazer ção. Um acréscimo de 10% é feito sobre
Um dia depois, vítimas do desastre geo- uma proposta”, diz o servidor público, en- o valor atribuído”. A empresa não escla-
lógico ocuparam uma das principais ave- fatizando que o bairro abriga famílias hu- receu por que o governo estadual não foi
nidas da área atingida para criticar a polí- mildes, cujas casas eram as únicas posses. incluído no acordo com o município, mas
tica de reparação da Braskem e denunciar Sarmento morava na mesma residência ressalta que, desde o início, “tem buscado
a omissão do Poder Público. Na ocasião, há mais de 40 anos. No início de dezem- o diálogo com as autoridades e vem imple-
apresentaram um documento com deze- bro, viu-se forçado a mudar para uma ci- mentando ações para resolver o tema de
nas de assinaturas pedindo a revisão dos dade vizinha, Marechal Deodoro. Uma forma definitiva na cidade de Maceió”. Já
acordos firmados com a empresa e cobran- irmã do servidor abrigou toda a família. a prefeitura da capital disse não ter parti-
do uma proposta justa de indenização. “Fomos avisados em cima da hora. Logo cipado das tratativas da empresa com as
Morador do bairro Flexal de Cima, chegou a polícia para expulsar às pres- vítimas para estabelecer o valor das repa-
REDES SOCIAIS

Maurício Sarmento está entre os que re- sas quem ainda resistia. A desocupação rações e explicou que o montante recebi-
sistiram até o último minuto antes de foi truculenta”, denuncia. “Éramos uma do no acordo bilionário será aplicado na
arrumar as malas. “Quem se recusou a comunidade muito viva. Tínhamos nosso reconstrução da infraestrutura urbana
sair para não perder sua casa está sujei- time de futebol, nosso bloco de carnaval. danificada com o afundamento do solo. •

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
MARIA RITA KEHL
Psicanalista e escritora, foi integrante da Comissão Nacional da
Verdade. É autora, entre outros, de O Tempo e o Cão, vencedor
do Jabuti de 2010, e Tempo Esquisito (2023), ambos pela Boitempo

Cruel hipocrisia

primeiro lugar, porque esta não é uma es- bravos companheiros não caem fora, fu-
► Moralistas acrescentam, colha leviana. Implica conflito, culpa, so- gindo do teste de DNA para não ter de pa-
ao drama de quem não frimento. Em muitos casos, a mulher de- gar a pensão alimentícia para a criança?
seja a criança, mas decide interromper a
pode levar a termo uma
gravidez com tristeza por não ter condi- “Defesa da vida”
gravidez, uma carga de ções materiais ou físicas – caso de mães Por fim, ressalto que as Damares e suas
culpa que essas pessoas acometidas por doenças graves que pos- comadres evangélicas enchem a boca
sam contaminar o bebê no parto. para dizer que seu fanatismo contra o
não merecem carregar
Para enfrentar o voluntarismo da in- aborto é motivado pelo ideal de defender
trépida ex-ministra, recorro à escritora a vida. O argumento é estúpido ou cínico.
Simone Weil, francesa de origem judai- Na dúvida, fico com as duas opções. Sim, é
psicanalista Jacques Lacan cer- ca, que conseguiu aprovar na Assem- verdade que uma célula recém-fecunda-

O ta vez escreveu que a pior forma


de se praticar um mal é sob a ale-
gação de que ele é feito em nome do bem.
bleia Nacional da França, em 1974, uma
lei que tornava o aborto um procedimen-
to médico como tantos outros, dentro da
da sempre é uma vida. Mas, se esse argu-
mento for levado às últimas consequên-
cias, devemos considerar que as mulhe-
“Trata-se do bem de quem mesmo?”, in- legalidade. São as mulheres que arcam res, pelo simples fato de que menstruam
dagou o genial provocador. Lembrei-me com as consequências de uma gravidez mensalmente, são assassinas de em-
dessa passagem ao evocar a perseguição indesejada, observou a então ministra briões. E todas sabemos que não somos.
cruel que a tenebrosa ministra dos Direi- da Saúde. Naquele ano, cerca de 300 mil Se a sociedade considerasse todo em-
tos Humanos de Bolsonaro empreendeu mulheres francesas procuraram clínicas brião abortado, por causas naturais ou
ao tentar impedir o aborto legal em uma – com frequência, clandestinas – para in- artificiais, como uma vida humana, seria
criança de 10 anos de idade. A menina ha- terromper a gestação. Os riscos à saúde de se esperar que homenageassem esse
via engravidado em decorrência de um e de serem presas pela ilegalidade do ato microdespojo com os mesmos ritos com
estupro sofrido nas mãos de algum fami- também recaíam apenas sobre as mulhe- que enterram, ou cremam, todos os mor-
liar “cristão”. Evangélica, Damares Alves res, com raras exceções. tos que tenham um corpo similar ao nos-
achava-se imbuída da missão divina de Moralistas como a ex-ministra Dama- so. Só que isso não acontece. Mesmo as fa-
salvar uma vida humana. A do embrião, res Alves acrescentam, ao drama de mílias mais comprometidas com alguma
claro. Nem lhe passou pela cabeça defen- quem não pode levar a termo uma gra- religião que proíba o aborto sabem que,
der a mãe, que, por ser muito jovem, cor- videz, uma carga de culpa que essas pes- no caso da perda de um óvulo fecunda-
reria o risco de morrer no parto. soas não merecem carregar. Abortar já é, do, não serão encomendadas cerimônias
Já escrevi em defesa da descriminali- ao mesmo tempo, um ato necessário para equivalentes às que dedicamos às pessoas
zação do aborto no ensaio “Hipocrisia”, elas e um castigo. Observo que o drama levadas pela morte. Essas pessoas tanto
incluído no livro Tempo Esquisito, que da decisão a favor ou contra a prática de podem ser recém-nascidas quanto da ter-
reúne textos escritos durante a pandemia um aborto pouco afeta a maioria dos ho- ceira idade. Serão pranteadas e homena-
de Covid-19. Nesta coluna, espero avan- mens. Quantas mulheres decidem inter- geadas, enterradas ou cremadas com ho-
çar um pouco em meus argumentos, não romper a gravidez pressionadas por par- menagens e prantos.
a favor do aborto, e sim das gestantes que ceiros? Os machistas argumentam que o A mulher que viu interromper-se seu
sentem premência em interromper a gra- ônus de impedir a gravidez cabe exclusi- sonho de maternidade logo nos primei-
videz. Que mulher se sente feliz ou reali- vamente àquela que gesta o embrião, mas ros dias de uma gestação haverá de en-
zada ao interromper uma vida, por mais quantos desses imploram para não usar tristecer-se. Saudades só sentirá de suas
minúscula que seja? preservativos, a fim de não comprometer próprias fantasias e expectativas otimis-
Estou bem acompanhada na tentativa o ápice do prazer sexual? Quantos deles tas. Terá perdido um sonho, um projeto,
B A P T I S TÃ O

de evitar que essas mulheres (ou meninas) traem a parceira tirando o preservativo mas (ainda) não um filho. •
sejam criminalizadas por sua escolha. Em durante o ato sexual? E quantos desses redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 29
Seu País

Publique, Biden
No dia 5 de julho, enviamos uma carta
a Biden com um pedido de desclassifica-
ção desses documentos. O pedido foi feito
com base no “compromisso com a trans-
ANÁLISE Perto de mil arquivos do governo parência e a defesa da democracia”, que
ficou tão evidente nas declarações de res-
dos EUA sobre o golpe de 1964 e a paldo à democracia brasileira na última
ditadura brasileira continuam secretos eleição, vencida pelo presidente Luiz Iná-
cio Lula da Silva. O documento enviado
P O R J A M ES N . G R E E N * a Biden no meio do ano foi assinado por
um grupo de 16 organizações da socieda-
de civil brasileira e oito personalidades –

O
todo o grupo bastante envolvido nas pes-
governo dos Estados Uni- cado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. quisas sobre esse período histórico e na
dos ainda guarda cerca de Entendemos que a abertura desses ar- defesa da democracia.
mil arquivos secretos so- quivos seria um gesto de convergência en-
bre o golpe de 1964 e a di- tre os dois governos na direção da trans- O texto diz: “Ao desclassificar docu-
tadura que durou 21 anos parência e do apreço mútuo pela democra- mentos relacionados à ditadura brasileira,
no Brasil. Queremos que o presidente Joe cia. Os EUA não tiveram um papel positivo o senhor demonstraria seu compromisso
Biden retire o sigilo desses arquivos, pa- no golpe de 1964, é verdade. Mas a história inabalável com a verdade, a responsabi-
ra que possamos ter melhor compreen- não é estática. Se é verdade que um mal do lidade e o Estado de Direito. Além disso,
são sobre esse período histórico tão im- passado não pode ser revertido, tampou- isso enviaria um sinal poderoso ao povo
portante para os dois países. co é verdade que tenhamos de permanecer brasileiro de que os Estados Unidos estão
Por meio do projeto “Abrindo Arqui- paralisados por esse mal. Ao contrário, de- do lado dele (do povo brasileiro) em sua
vos”, conseguimos acesso a 60 mil papéis vemos empreender todos os esforços para, busca por justiça e defesa da democracia.
produzidos por diferentes órgãos do go- hoje, fazer pela democracia o que não foi A desclassificação também forneceria in-
verno norte-americano. Esses documen- feito antes. E a abertura desses arquivos formações valiosas sobre as violações de
tos foram fundamentais para que estu- seria um gesto importante nesse sentido. direitos humanos cometidas durante a di-
diosos do período pudessem montar gran- tadura brasileira e esclareceria o grau de
de parte do quebra-cabeça que conhece- envolvimento ou conhecimento dos Esta-
mos hoje. Mas faltam peças. Os cerca de dos Unidos sobre esses eventos. Esse ato
mil arquivos aos quais pedimos aces- de transparência fortaleceria também as
so agora podem ajudar a compreender bases de nossa relação bilateral, fomen-
melhor, por exemplo, a colaboração dos tando confiança e colaboração em ques-
EUA e o financiamento de setores da po- tões importantes como direitos huma-
lícia brasileira envolvidos na perseguição, nos, democracia e estabilidade regional”.
tortura e morte de dissidentes políticos. A decisão é de Biden, mas o Congres-
O momento é oportuno. Em 2024, va- so desempenha um papel muito impor-
mos relembrar os 60 anos do golpe de Es- tante na política externa nos EUA. Por is-
tado de 1964 e os 200 anos do reconheci- so, no dia 5 de dezembro, redobramos os
mento da Independência do Brasil pelos esforços em Washington, realizando um
Estados Unidos. Além disso, temos um briefing com deputados e senadores nor-
fato mais recente: o apoio importante te-americanos interessados na questão.
que o governo Biden deu à democracia Com apoio da deputada democrata Nydia
no Brasil, ao somar-se, em 2022, ao res- Velázquez, eu e duas colegas brasileiras, a
paldo internacional ao sistema eleitoral Apelo. O presidente dos EUA cientista política Maria Hermínia Tava-
brasileiro quando ele era duramente ata- tem uma oportunidade histórica res, do Centro Brasileiro de Análise e Pla-

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Quebra-cabeças. Os documentos em
sigilo podem esclarecer o financiamento
norte-americano à repressão

mento de Estado americano publicou o


briefing diário da Presidência dos EUA
dos dias 8 e 11 de setembro de 1973.
É sabido que os EUA desempenharam
papel preponderante nos golpes e nas di-
taduras cívico-militares que varreram a
América Latina e o Caribe nos anos da
Guerra Fria. Esse é um passado nefasto
e bem documentado, sobre o qual sabe-
mos muito, mas não o bastante.

Com o passar dos anos, fomos enten-


dendo melhor as teias de cooperação dos
governos militares, não apenas com os
EUA, mas também entre si. O Brasil, por
exemplo, onde o golpe foi dado em 1964,
desempenhou papel preponderante no
Chile, onde o golpe só ocorreria nove anos
depois. Sabe-se hoje das linhas de crédi-
to que foram abertas pelo governo brasi-
leiro para a junta militar chilena, além da
exportação de instrumentos de tortura e
do conhecimento usado para submeter os
prisioneiros do Estádio Nacional, em San-
tiago, aos suplícios que todos conhecemos.
Avançar no conhecimento sobre esses
fatos é uma maneira eficaz de compreen-
der cada vez melhor a história e de cons-
truir um futuro no qual os países das
Américas estejam ligados por ideais co-
ACERVO CORREIO DA M A NH Ã /A RQUIVO N ACION A L

muns de promoção, defesa e preservação


nejamento (Cebrap), e Gabrielle Abreu, do São peças da democracia e dos direitos humanos,
E A D A M S C H U LT Z / C A S A B R A N C A O F I C I A L

Instituto Vladimir Herzog, fizemos uma em contraste com os anos sombrios das
fundamentais
exposição sobre a importância de conhe- ditaduras, que nunca serão esquecidas,
cermos esses documentos secretos. à compreensão mas poderão, com transparência e coo-
Recentemente, o Chile fez pedido se- do suporte peração, ser mais bem estudadas e deba-
melhante a Washington, por ocasião dos norte-americano aos tidas pelas novas gerações. •
50 anos do golpe de Estado que derrubou militares do Brasil
o presidente socialista Salvador Allende
*Historiador, professor de História e Cultura
e deu início aos 17 anos de ditadura co- Brasileira na Universidade Brown, autor de 11
mandada pelo general Augusto Pinochet. livros sobre o Brasil e presidente do Conselho
Após um pedido do Chile, o Departa- Diretivo do Washington Brazil Office (WBO).

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 31
Economia

Alta voltagem
INDÚSTRIA AUTOMOTIVA O mercado de carros
elétricos cresce 50% anualmente e atrai
bilionários investimentos estrangeiros

A
o término do primeiro De acordo com a Associação Brasileira
ano de um governo que do Veículo Elétrico, conhecida pela sigla
tem como bandeira pro- ABVE, o número de veículos eletrifica-
mover a reindustrializa- dos leves emplacados e em circulação no
ção nacional em bases País chegou a 204.091 unidades no fim
ecológicas e sustentáveis, os produto- de novembro. Além disso, foi estabele-
res de veículos elétricos poderão come- cido no mês passado o maior número de
morar a marca de 200 mil unidades ro- registros mensais (10.605) desde 2012,
dando pelas ruas e estradas brasileiras. quando houve o primeiro emplacamen-
O resultado é avaliado pelos dirigentes to de um carro elétrico no País.
do setor como a confirmação de que a
eletromobilidade tem no País um am- Também foram registrados pela pri-
plo espaço para crescer, mas ainda há meira vez, em novembro, mais de 10 mil
grande expectativa quanto à efetivação emplacamentos em um único mês. “O sentou um salto de 4.460 para 8.458 no
de ações de inovação voltadas à indús- setor sustenta um crescimento acima número de emplacamentos de veículos
tria automotiva. de 50% a cada ano. Acreditamos que, elétricos no Brasil, na comparação com
O crescimento da frota elétrica no mesmo com algumas medidas não mui- o mesmo período no ano passado. Con-
Brasil suscita também discussões so- to positivas vindas do governo, como o tabilizados os números até o fim de no-
bre os riscos ambientais inerentes à ex- aumento do imposto de importação, é vembro, já foram emplacados este ano
tração de lítio e outros minerais utili- um mercado que deve continuar cres- 77.652 veículos, e a expectativa é de que
zados para a fabricação de baterias. No cendo”, avalia Ricardo Bastos, presi- as vendas mensais sejam ainda melho-
fim, essa exploração compensa o ganho dente da ABVE. res em dezembro, o que fará o recor-
em termos de redução de gases de efei- Último mês com os dados do merca- de se aproximar dos 90 mil emplaca-
to estufa trazidos pelos motores elétri- do consolidados, outubro de 2023 apre- mentos. É quase o dobro da venda to-
cos? Há dúvidas ainda sobre a duração tal em 2022 (49.245). Segundo a Fede-
dessa tecnologia: veio para ficar ou ser- ração Nacional da Distribuição de Veí-
virá somente para um período de tran- culos Automotores, Fenabrave, a par-
sição, uma vez que outras novidades, a Com fábricas ticipação dos carros elétricos no mer-
exemplo dos carros movidos a hidrogê- instaladas no País, cado nacional atingirá os 5% até o fim
nio, não param de surgir? do ano. “E os investimentos estão che-
as chinesas GWM
Enquanto cientistas e ambientalistas gando, como os anunciados pela GWM
travam esse debate, os fabricantes esfre- e BYD iniciam a e pela BYD. Além de outras montado-
gam as mãos, de olho no enorme poten- produção a partir ras que, com certeza, virão nos próxi-
cial de um mercado em franca ascensão. do próximo ano mos meses”, antecipa Bastos.

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 38
NESTA Entrevista. Presidente do
SEÇÃO Sindifisco defende a taxação das
offshores e fundos exclusivos

Pioneiras. A GWM comprou uma planta industrial da Mercedes-Benz no município paulista de Iracemápolis. Já a concorrente
BYD assumiu as instalações da Ford em Camaçari, na Bahia, e pretende produzir 150 mil unidades até o fim de 2014
GWM GLOBAL E BYD

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 33
Economia

O presidente da ABVE faz referência


às duas fabricantes chinesas que es-
tão investindo em unidades de produ-
ção no Brasil, passo importante para
consolidar um setor que ainda depen-
de em grande parte das importações.
A gigante Great Wall Motor anunciou
a ampliação e modernização de uma
fábrica adquirida da Mercedes-Benz
em Iracemápolis, no interior paulista,
com previsão de investimentos de 10 bi-
lhões de reais nos próximos dez anos:
“A meta é produzir totalmente no Bra-
sil 100 mil unidades de veículos elétri-
cos já em 2026”, diz Oswaldo Ramos,
diretor-comercial da GWM. O primei-
ro carro elétrico nacional será, porém,
produzido por outra gigante chinesa, a
BYD, que adquiriu uma antiga fábrica
da Ford em Camaçari, na Bahia, para
iniciar a produção de dois modelos elé-
tricos e um híbrido. A empresa anun-
ciou a meta de atingir 150 mil unidades
produzidas no País até o fim de 2024.

Em consonância com os anseios da


montadora chinesa, o governo da Bahia
apresentou um projeto que prevê a isen-
ção de IPVA para carros elétricos com
valor de até 300 mil reais emplacados
no estado. Os governos de São Paulo e
Pará também estudam medidas seme-
lhantes e deverão integrar um grupo Em novembro, o de lítio, o ex-ministro do Meio Ambiente
hoje formado por nove estados (Alagoas, de Lula pondera: “Sempre que se coloca
número de veículos
Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, um problema há meios de mitigá-lo. Já
Minas Gerais, Paraná, Pernambuco,
elétricos bateu a estão sendo encontradas outras formas
Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul), marca de 200 mil de bateria menos perigosas”.
além do Distrito Federal: “É impor- unidades no Brasil Celulares e computadores também
tante a concessão de redução ou mes- possuem metais pesados, como cádmio,
mo isenção do IPVA. Isso afeta a de- zinco e ferro, mas é possível encontrar
cisão de compra, atinge diretamente soluções sustentáveis, observa Minc.
o bolso do consumidor. É um benefí- “Defendemos que isso seja retornado
cio que ajuda as vendas e as decisões vel” aos incentivos para veículos elé- às indústrias para reaproveitamento
de investimento no Brasil”, diz Bastos. tricos. “Melhor ainda seria investir em ou disposição final adequada. Há que
Autor de diversas leis que diminuem transportes coletivos ou individuais so- se trabalhar da maneira mais segura e
impostos sobre novos equipamentos bre rodas, esses, sim, menos poluentes. consciente, combatendo o aquecimen-
e formas de produção sustentável, o Estamos falando de trens, metrô, barcas to global, a poluição e a contaminação
deputado estadual Carlos Minc, do PSB e também de ciclovias”, avalia. Sobre os do solo, do ar e do ambiente.”
do Rio, se diz “completamente favorá- riscos ambientais inerentes à extração O ex-ministro avalia que a solução

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
elétrica “veio para ficar pelo menos fa. Enquanto não surgirem tecnologias
por um bom tempo”. Novas tecnologias mais avançadas, claro. “A bateria de sal
sempre vão aparecer, mas a dos veículos pode ser a saída para veículos urbanos,
elétricos está amadurecida, pois foi tes- pois sua capacidade é um pouco menor.
tada em vários países. “Vários prédios Para transporte de carga, ainda não te-
novos já estão colocando tomadas pa- mos uma boa solução. Pode ser que o hi-
ra a recarga de baterias, postos de com- drogênio seja uma saída, mas ainda é
bustíveis também.” O badalado hidro- caro e a tecnologia da pilha a combus-
gênio verde, emenda Minc, é uma ideia tível precisa de mais desenvolvimento.
para o futuro: “No Brasil, temos apenas Em resumo, temos várias opções, mas
projetos piloto e isso ainda deve demo- todas elétricas.”
rar bastante para ganhar corpo.”
Professor da Coppe-UFRJ e mem- Coordenador da Frente por Uma
bro da Academia Brasileira de Ciências, Nova Política Energética para o Brasil,
Edson Watanabe prevê um futuro com Joílson Costa diz-se favorável ao desen-
“máxima eletrificação” dos transpor- volvimento do setor: “A instalação de
tes. Ele avalia que a indústria de veícu- uma indústria que impulsione o maior
los elétricos vai ajudar na neoindustria- uso dos veículos elétricos seria impor-
lização do País, mas pondera: “Devería- tante não apenas para a neoindustriali-
mos aproveitar melhor o nosso etanol, zação do País, mas também para nos po-
para fazer uma transição mais suave sicionar estrategicamente em um mer-
da gasolina para o 100% elétrico”. Em cado que tende a se expandir no mundo
todo caso, acrescenta, é inequívoca a todo”. Costa diz que o governo deve ex-
contribuição da eletromobilidade pa- perimentar da forma mais ampla possí-
ra a redução dos gases de efeito estu- vel as alternativas que ajudem o Brasil
a enfrentar a emergência climática: “No
caso dos veículos elétricos, algumas so-
luções seriam a adoção de melhores prá-
Alternativas. A eletrificação avança
com a expansão das estações de recarga
ticas de extração e processamento dos
pelo País. Já o tradicional etanol brasileiro minerais, maior e mais eficiente recicla-
neutraliza todas as emissões de carbono gem dos mesmos e até mesmo um amplo
incentivo ao transporte coletivo, em de-
trimento do individual”.
Segundo a ABVE, o setor espera an-
WENDERSON ARAÚJO/SISTEMA CNA /SENAR E ISTOCKPHOTO

siosamente pela aprovação e imple-


mentação do programa de Mobilida-
de Verde, agora rebatizado como Rota
2030. “Precisamos conhecer as novas
regras de pesquisa, desenvolvimento e
engenharia, os incentivos que estarão
ligados à eficiência energética. Este tal-
vez seja o capítulo mais importante pa-
ra vermos mais decisões de investimen-
to em veículos elétricos no Brasil acon-
tecendo e o nosso mercado continuar
nessa tendência de crescimento sus-
tentável que vem apresentando nos úl-
timos anos”, conclui Bastos. •
– por Maurício Thuswohl

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 35
Economia

Acordos e
tecionistas, de industrialização dos retar-
datários europeus e dos Estados Unidos.
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mes-

desacordos
ma coisa, ensinam as cartilhas da dialéti-
ca elementar para positivistas teimosos.
Depois da Segunda Guerra Mundial,
os americanos abriram seu mercado pa-
PROTECIONISMO Muito além do discurso, ra as exportações da Europa e do Japão
os Estados Nacionais se empenham em em reconstrução, ao mesmo tempo que
suas empresas migravam em massa pa-
proteger suas empresas na arena global ra as regiões de crescimento mais rápido.
A boa história econômica ensina que
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO
os Estados Unidos têm uma longa e per-
sistente tradição de práticas protecionis-
tas. Os primeiros passos da caminhada

O
protecionista estão recomendados no
Acordo União Europeia- No fim do século XIX, no apogeu da Relatório Sobre as Manufaturas, de Ale-
-Mercosul sofre críticas e ordem liberal burguesa, a expansão do xandre Hamilton, publicado em 1791.
restrições de gregos e comércio e das finanças internacionais Hamilton, então secretário do Tesouro
troianos. CartaCapital já estava fundada nas relações simbióticas dos Estados Unidos, fez a crítica das te-
usufruiu o privilégio de entre o liberalismo da Inglaterra hege- orias fisiocráticas que postulavam a su-
contar com uma certeira investida de mônica e as políticas protecionistas de perioridade da agricultura. Desenvolveu
Paulo Nogueira Batista Jr. industrialização dos retardatários euro- uma brilhante argumentação em defesa
Obedecendo às minhas idiossincra- peus e dos Estados Unidos. da manufatura como fonte da ampliação
sias, vou incomodar o leitor com consi- Pérfidas considerações sobre o cele- da divisão do trabalho, ganhos de produ-
derações peregrinas a respeito das proe- brado liberalismo da Inglaterra pedem tividade e de maior progresso da própria
zas do protecionismo capitalista de todos passagem. Na segunda metade do sécu- agricultura.
os tempos e em todos os tempos. lo XIX, depois de suspender, em 1841, a
Nos idos de 2017, as manchetes procla- proibição de exportar máquinas e arte- No livro Origens da Democracia e da
mavam a iminência de uma guerra co- sãos, revogar, nos idos de 1846, a proteção Ditadura, Barrington Moore Jr. analisa
mercial deflagrada pela decisão protecio- à sua agricultura amparada pela Corn a Guerra Civil americana a partir das re-
nista de Donald Trump. A imposição de Law, o liberal-mercantilismo da pérfida lações contraditórias, mas não opostas,
tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o Albion comandou a expansão do comér- entre o Sul escravagista livre-cambista e
alumínio suscitou reações da União Eu- cio e das finanças internacionais. o Norte em processo de industrialização,
ropeia, da China e até mesmo dos sub- Já dominado pelos interesses financei- turbinado com mão de obra assalariada
missos do planeta. ros da City, o liberal-mercantilismo da In- e fortes doses de protecionismo.
As palavras “protecionista” e “livre- glaterra hegemônica criou as condições Paul Bairoch, Douglas North, Charles
-cambista” são etiquetas ideológicas que para as políticas intencionais, diga-se pro- Kindleberger e Carlo Cippola registram
ocultam as razões de fundo das divergên- a persistência das práticas protecionis-
cias. O capitalismo realmente existente tas americanas ao longo do século XIX e
conta uma história mais ambígua do que da primeira metade do século XX, até o
aquela narrada pelos fundamentalistas – Os mais pragmáticos fim da Segunda Guerra Mundial. O au-
de um lado e de outro – a respeito do desen- mento brutal das tarifas promovido pe-
volvimento das relações econômicas in-
sabem que não lo Smoot and Hawley Act, em 1930, inau-
ternacionais. Protecionismo e livre-cam- é possível escapar gurou uma sombria temporada de com-
bismo convivem como cães e gatos. Bri- da “politização” petição protecionista.
gam o tempo todo, mas são inseparáveis. da economia No movimento de desviar o desempre-

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Smoot e Hawley, autores da lei que, em
1930, elevou as tarifas de importação nos
EUA e inaugurou uma sombria temporada
de competição protecionista

as nações e colocar seu desenvolvimento


a salvo de turbulências financeiras e de
crises de balanço de pagamentos.
A ideia-força dos reformadores de
Bretton Woods sublinhava a necessidade
de criação de regras destinadas a garantir
a expansão do comércio e o ajustamen-
to dos balanços de pagamentos, median-
te o adequado abastecimento de liquidez
para a cobertura de déficits, de forma a
evitar a propagação das forças deflacio-
nárias e as tentações do protecionismo.

É insensato imaginar que o


desempenho das empresas na arena
global possa prescindir do apoio deci-
sivo dos respectivos Estados Nacionais.
A quem for permitido ver além do mun-
do das sombras do consumismo ideoló-
gico de massa, será revelada uma ação
agressiva dos Estados Nacionais na de-
fesa da “competitividade” de suas empre-
sas. Esse objetivo tornou-se de tal modo
predominante que os governos não he-
sitam em distribuir favores e magnani-
midades, com o propósito de flexionar a
go para o território do outro, seguiram-se provocada pelas desvalorizações compe- musculatura das empresas nacionais e
as desvalorizações competitivas. Inicia- titivas e pelos aumentos de tarifas, deu torná-las capazes de dar combate den-
do com a saída da Inglaterra do padrão- origem a práticas de comércio bilateral e tro e fora do território nacional.
-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizi- à adoção de controles cambiais. Na Ale- O Estado está cada vez mais envolvi-
nho teve sequência na desvinculação do manha nazista, tais métodos de adminis- do na sustentação das condições reque-
ouro anunciada por Roosevelt em 1933. tração cambial incluíam a suspensão dos ridas para o bom desempenho das suas
Essas reações provocaram a contra- pagamentos das reparações e dos com- empresas na arena da concorrência ge-
ção brutal dos fluxos de comércio e sus- promissos em moeda estrangeira, nas- neralizada e universal.
BIBLIOTECA DO CONGRESSO/EUA

citaram tensões nos mercados financei- cidos do ciclo de endividamento que se Os mais pragmáticos sabem que não é
ros. Tais forças negativas propagavam-se seguiu à estabilização do marco em 1924. possível escapar da “politização” da eco-
livremente, sem qualquer capacidade de Na posteridade da Segunda Guerra nomia. As transformações ocorridas nas
coordenação por parte dos governos. As- Mundial, o projeto americano de cons- últimas décadas não se propõem a redu-
sim, a economia global mergulhou numa trução da ordem econômica internacio- zir o papel do Estado, nem “enxugá-lo”,
espiral deflacionária que atingiu indistin- nal foi concebido sob inspiração do ide- mas almejam aumentar sua eficiência
tamente os preços dos bens e dos ativos. ário rooseveltiano. Tinha o propósito de como agente da acumulação capitalista,
A contração do comércio mundial, promover a expansão do comércio entre em detrimento do seu papel “social”. •

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 37
Economia

“Fugir para onde?”


alguns setores aprovadas no Congresso,
mas o desequilíbrio é evidente.

Robin Hood às avessas


ENTREVISTA O Brasil já é um paraíso fiscal Em um sistema tributário justo, cada um
para os super-ricos, observa Isac Falcão, deve pagar de acordo com a sua capacidade
econômica. Quem não ganha o necessário
presidente do Sindifisco Nacional para a própria subsistência nem sequer de-
veria contribuir. Quem é remediado paga
A RODRIGO MARTINS
menos, quem é rico paga mais. Mas a tri-
butação sobre o consumo inverte essa ló-
gica. Os pobres gastam praticamente tu-
do que recebem em consumo, por isso uma

S
er rico não é pecado”, dis- Falcão acrescenta, porém, que o Brasil tem alíquota de referência do IVA elevada ten-
" se o empresário João Ca-
margo em um lacrimoso
muito a avançar na tributação sobre a renda
e o patrimônio, algo indispensável para ali-
de a prejudicá-los. Se o indivíduo ganha 2
mil reais e todo o seu salário é usado para
artigo publicado na Folha viar os impostos que incidem sobre o con- custear despesas com alimentação, saúde,
de S.Paulo em setembro, sumo e dilapidam a renda dos mais pobres. educação e demais contas da família, ele já
no qual praguejava contra a intenção do go- Confira, a seguir, os principais trechos da pagou quase 30% de sua renda em impos-
verno Lula de taxar os lucros de fundos ex- entrevista concedida a CartaCapital, tos. Já um empresário que ganha 1 milhão
clusivos e das empresas offshores, consti- dias antes da votação do PL no Senado. de reais consegue poupar a maior parte de
tuídas por brasileiros no exterior. seus rendimentos. Se, desse montante, ele
Chairman-executivo da CNN Brasil, sócio Mão pesada no IVA gastar uns 100 mil reais por mês, pagará
da 89 Investimentos e fundador do grupo Uma das vantagens da unificação dos tri- em tributos sobre o consumo o equivalen-
Esfera Brasil, think tank para congregar butos sobre o consumo é a transparência. te a 3% de sua renda, dez vezes menos. O
empresários, ele advertiu que a tentativa O brasileiro saberá exatamente o quan- Brasil não chegou ao topo dos rankings de
de taxar a riqueza dos endinheirados leva- to paga de impostos em cada produto, is- desigualdades sociais à toa.
ria a uma inevitável fuga de capitais: “Num so ficará exposto na nota fiscal. Precisa-
mundo globalizado, o rico tem uma mobi- mos, porém, avançar para a segunda fase Âncora do desenvolvimento
lidade financeira enorme, conseguindo da reforma, com uma taxação maior sobre É fundamental que toda renda seja taxa-
alocar seu dinheiro em lugares mais atra- a renda e o patrimônio. Nosso sistema é da. Por aqui, tributa-se muito mais a ren-
tivos de forma quase instantânea”. fortemente dependente da tributação so- da do trabalho do que a do capital. O Bra-
Não consta que Camargo esteja de ma- bre o consumo, e isso não foi alterado. As sil é um dos únicos países do mundo que
las prontas para deixar o Brasil mesmo primeiras simulações do IVA apontavam isentaram a cobrança sobre lucros e divi-
após os senadores aprovarem, no fim de para uma alíquota de referência próxima dendos. Das nações da OCDE, somente a
novembro, o Projeto de Lei 4.173/2023, de 29%, uma das maiores do mundo (en- Estônia fez o mesmo. Isso é um absurdo
que muda a forma de tributação dos fun- tre os países da OCDE, a média é de 19,2%). completo. Os sócios e acionistas de em-
dos exclusivos e das offshores. Talvez o Talvez esse porcentual se altere um pou- presas não pagam impostos sobre os ga-
empresário tenha descoberto que já vi- co, por conta das excepcionalidades para nhos de seus negócios, enquanto seus tra-
via num paraíso fiscal e não sabia – ou fin- balhadores têm Imposto de Renda retido
gia não saber. “Os super-ricos brasileiros na fonte. Por muitos anos, os super-ricos
não têm muitos lugares para onde ir, até brasileiros pagaram muito menos impos-
porque a tributação sobre o capital e o pa- tos do que seus pares em países desenvol-
“A taxação dos lucros
trimônio é ínfima por aqui”, observa Isac vidos, ou mesmo naqueles em desenvolvi-
Falcão, presidente do Sindifisco Nacional. de offshores e fundos mento. Para compensar, o País passou a
Na avaliação do dirigente, ambas as ini- exclusivos contribui taxar ainda mais o consumo. É uma ânco-
ciativas contribuem para a justiça fiscal. para a justiça fiscal” ra para o desenvolvimento nacional, pois

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Falcão representa
os auditores fiscais
da Receita Federal

isso afeta o poder de compra das famílias. tação é extremamente ardiloso. Qual é a ra daqui? Para onde? Imagine o dono de
Hoje, muitas indústrias se veem forçadas lógica? Vou taxar apenas quem não con- um shopping center. Vai vender o negócio?
a reduzir o ritmo de produção porque não segue fugir do País? Então devo cobrar do Neste caso, quem comprar vai pagar o 1%.
têm a quem vender seus produtos. assalariado, que tem o imposto desconta- Se ele se mudar para o exterior, mas não
do na folha, e abrir mão da contribuição de vender o shopping, vai continuar pagando
A desigualdade sabota o País quem ameaça arrumar as malas e ir para imposto sobre o patrimônio apurado no
Se os super-ricos pagassem um pouco Miami? É uma falácia, pois podemos me- Brasil. É a mesma lógica de quem tem um
mais, os mais pobres não precisariam lhorar a legislação e a máquina arrecada- apartamento em Belo Horizonte e resolve
deixar 30% de sua renda em impostos. tória para alcançar esses também. Os su- morar em Portugal. Enquanto for proprie-
É preciso haver um equilíbrio. A tribu- per-ricos brasileiros não têm muitos luga- tário do imóvel, vai pagar IPTU por aqui.
tação sobre o consumo significa retirar res para onde ir, até porque a tributação
dinheiro da economia. Sem essa carga, a sobre o capital e o patrimônio é ínfima por O papel do Estado
maioria dos brasileiros poderia consumir aqui. Não se está pleiteando um confisco No caso específico das offshores, é preciso
mais, o que seria ótimo para o setor pro- ou cobrança injusta, é um simples alinha- observar que os super-ricos já fugiram da
JOSÉ AMARILIO/SINDIFISCO NACIONAL

dutivo. Países de elevado desenvolvimen- mento da tributação do Brasil com a ex- tributação no Brasil. O que se pretende é
to, como os EUA, Japão e Alemanha, entre periência internacional, com as melhores trazer de volta parte desse capital reme-
tantos outros, tributaram os super-ricos. práticas adotadas no mundo para viabili- tido artificialmente para paraísos fiscais.
Eles não teriam tido tanto êxito econômi- zar o desenvolvimento econômico e social. Essas empresas costumam fazer investi-
co se tivessem um sistema tributário que mentos no Brasil, além de comprar imó-
gera tanta desigualdade como o do Brasil. Quem vai largar o osso? veis, carros e outros bens para usufruto de
Vamos imaginar que o Brasil crie um im- seus controladores por aqui. Não apenas
O risco da fuga de capitais posto sobre grandes fortunas e passe a ta- é possível, como o Estado tem o dever de
O argumento de que não se deve cobrar de xar 1% de quem ganha mais de 10 milhões cobrar dessas pessoas uma contribuição
quem tem condições de escapar da tribu- de reais. Será que todo mundo iria embo- proporcional às suas receitas. •

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 39
Nosso Mundo

Milei rasga a fantasia


ARGENTINA O dito libertário rende-se à “casta política” antes
mesmo de assumir e divide o poder com Mauricio Macri
P O R F E R N A N DA PA I X ÃO, D E B U E N O S A I R ES

B
astaram poucos dias após a circunstâncias, escolheu o ex-ministro da Sturzenegger, assessor econômico de
vitória nas urnas para o pre- Economia de Macri, Luis Caputo, ortodo- Milei e presidente do Banco Central nos
sidente eleito Javier Milei xo tradicional. A proposta de fechar a ins- tempos de Macri, dá o último retoque na
ver seu bordão de campanha tituição e dolarizar a economia argenti- chamada “lei ônibus”, pensada para pro-
ser desmoralizado. A frase “a na ficam, por ora, para um futuro incer- mover uma profunda reforma do Estado.
casta tem medo” deu lugar à chacota “a to. Existe uma razão prática: não há dóla- Algo similar foi feito por Luis Lacalle Pou
casta tem emprego”. É uma resposta irô- res suficientes em circulação para cum- no Uruguai, por meio da Lei de Urgente
nica dos adversários à veloz rendição de prir a promessa. O anúncio da equipe eco- Consideração, imposta não sem polêmi-
Milei, que vestiu na corrida presidencial nômica produziu baixas entre fieis apoia- cas, discussões e protestos.
a fantasia de outsider, às forças políticas dores de Milei. Ocampo desistiu de inte- A aproximação de Macri e Milei teve
tradicionais. O autointitulado “libertá- grar a administração e Carlos Rodríguez, início logo após os resultados das eleições
rio” toma posse no domingo 10, mas seu outro conselheiro econômico, tam- primárias em agosto. Naquele momento,
ministério reúne várias caras conhecidas bém rompeu relações com La Libertad os eleitores deram o primeiro recado. La
dos tempos do ex-presidente Mauricio Avanza, partido do presidente eleito. Libertad Avanza foi o partido mais vota-
Macri, expoente da velha direita. do, com 30%, quase o dobro do que apon-
Os principais cargos no futuro gover- As escolhas do novo governo ex- tavam as pesquisas de opinião. Diante
no, principalmente na área econômica, põem certo improviso e a necessidade dos resultados, Macri abandonou o bar-
serão ocupados por aliados de Macri, em de garantir a governabilidade. Com mi- co de Patricia Bullrich, candidata de sua
uma equipe integrada até por alas do pe- noria no Congresso e sem um único go- coalizão, o Juntos por el Cambio, e ini-
ronismo de oposição a Cristina Kirchner. vernador da própria legenda, Milei che- ciou o cortejo ao extremista. Não por ou-
Acossada por uma inflação de 142,7% ao ga enfraquecido à Casa Rosada. Será ca- tra, Bullrich, segunda colocada nas pri-
ano, escassez de dólares, aumento da po- paz de negociar ou tentará outros cami- márias, acabaria em terceiro e fora do se-
breza e falta de perspectiva, a maioria dos nhos? Escolhida como chanceler, Diana gundo turno da disputa em novembro.
argentinos decidiu apostar na “novida- Mondino deu a entender que, caso o Par- “Em termos ideológicos, as propos-
de” representada por Milei. O economis- lamento não colabore, governar por de- tas da direita macrista se parecem bas-
ta prometeu um brutal corte de gastos e creto será uma opção. O primeiro pacote tante àquelas de Milei”, afirma Micaela
um saldão das estatais, além da dolariza- de medidas está quase pronto. Federico Cuesta, doutora em Ciências Sociais e co-
ção da economia e o fim do Banco Central. ordenadora do Laboratório de Estudos
“Tudo que possa estar nas mãos do setor sobre Democracias e Autoritarismos da
privado, vai estar nas mãos do setor pri- Universidade Nacional de San Martín.
vado”, declarou no dia seguinte à vitória. São visões compartilhadas sobre o corte
Aliados de primeira
A ver. Durante a campanha, Milei prome- de gastos e a abertura da economia, entre
tia nomear o economista Emilio Ocampo hora do extremista outras. A aproximação prévia foi, no en-
à presidência do BC com a missão de ex- perderam espaço na tanto, uma novidade. “Em geral, as direi-
tinguir a instituição. No fim, por força das composição do governo tas globais costumam aliar-se ao partido

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 42
NESTA The Observer. A Miss
Universo é vista como um
SEÇÃO perigo por Daniel Ortega

Milei é um
personagem
ou acredita
no que fala?

de centro para evitar a vitória da extre- O loteamento dos cargos para a tra- a situação vai começar a melhorar. O pe-
ma-direita.” Segundo a acadêmica, quase dicional casta tão vilipendiada duran- dido de sacrifício é dirigido a quem já faz
todos os votos macristas migraram pa- te a campanha não se restringiu aos sacrifícios: pobres, trabalhadores, desem-
ra Milei, certos de que muitas das pro- macristas. Outros nomes estelares de pregados, beneficiários de programas so-
postas encampadas pelo então candidato La Libertad Avanza perderam espaço ciais. É altamente provável que esses seto-
não passavam de discurso. “Muitos elei- após a vitória nas urnas. Um deles é o de res vivam pior ainda”, diz Ibáñez. “Acon-
tores votaram pensando que ele não fa- Carolina Píparo, candidata derrotada ao teceu no governo Macri. Ele afirmava que
ria o que dizia pretender fazer.” governo da província de Buenos Aires. o primeiro semestre seria crítico, mas
Píparo havia sido apontada como dire- que no segundo a economia se recupe-
Haveria, portanto, uma disposição dos tora-executiva da Administração Nacio- raria, viria uma chuva de investimentos.
apoiadores mais fieis de Milei, cerca de nal da Seguridade Social e chegou a anun- Esse segundo semestre nunca chegou.”
30% do eleitorado, a aceitar um período ciar uma reunião de transição com a atu- A grande incógnita, sugere Gambina, é
de provação supostamente necessário. A al diretoria do órgão. Horas depois, Pípa- saber se Milei terá ou não capacidade de
aliança à direita tradicional, mesmo con- ro soube, constrangida, que o cargo aca- transformar o triunfo eleitoral em con-
traditória em relação ao discurso anticas- bara de ser oferecido a Osvaldo Giordano, senso político. A disputa não se limitará
ta da campanha, seria o menor dos pro- ligado a Juan Schiaretti, da direita do pe- aos corredores do Congresso. Com a par-
blemas para este grupo, ressalta Julio ronismo. Para o jornalista Pablo Ibáñez, ticularidade de ter sido eleito com pouca
Gambina, professor de Economia Políti- as negociações podem ser interpretadas aceitação às suas propostas pontuais, a
ca da Universidade Nacional de Rosário. como uma mudança pragmática do novo reação social aos cortes de auxílio social e
J U A N M A B R O M ATA /A F P

“De forma alguma o eleitorado de Milei presidente. O que estaria em jogo, mais do possível aumento de preços com o afrou-
está sendo enganado. O personagem está que a ideia de fraude eleitoral, seria uma xamento do controle gera um ambiente
mudando todos os dias. O eleitorado vo- fraude emocional. “É parte dessa ideia de de bomba-relógio. O que leva a uma nova
tou por uma mudança, sabendo de sua que primeiro deve vir o sofrimento para pergunta, a ser respondida nos próximos
proposta de cortes e que isso demanda- depois vir algo positivo. Milei diz que os meses: qual é o limite da paciência dos ar-
ria muitos movimentos”, ressalta. primeiros seis meses serão terríveis e logo gentinos por dias melhores? •

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 41
Nosso Mundo

A bela e a fera
ligiosas têm sido permitidas. Mas, quan-
do Sheynnis venceu, as pessoas saíram às
ruas com suas bandeiras nacionais, can-
tando o hino nacional.”
Sheynnis Palacios, Miss O regime parecia inseguro sobre como
Universo, é alçada à improvável posição lidar com Palacios e com o entusiasmo em
torno de sua vitória. Na preparação para
de antagonista de Daniel Ortega a competição, a mídia oficial a desprezou.
Uma apresentadora disse que ela era mais
POR THOMAS GRAHAM adequada para ser “Senhorita Buñuelos”.
Quando Palacios venceu, o governo

A
divulgou uma mensagem parabenizan-
recente eleição de Sheynnis pôr fim à brutal ditadura de Anastasio do-a, mas sem a habitual assinatura de
Palacios como Miss Uni- Somoza, que durou quatro décadas. Mas, Ortega ou de Rosario Murillo, sua mu-
verso foi uma grande notí- desde então, Ortega transformou a Ni- lher e vice-presidente do país. Murillo,
cia para a Nicarágua. Mul- carágua num Estado autoritário duran- entretanto, fez um pronunciamento so-
tidões alegres saíram às te seu último mandato como presiden- bre “conspiradores golpistas” que pla-
ruas de Manágua pela primeira vez des- te, a partir de 2007. Os protestos dura- nejavam “provocações fabricadas” sob o
de os protestos em massa de 2018, que fo- ram três meses antes de serem esmaga- pretexto de celebrar o Miss Universo. O
ram reprimidos com força letal. O regime dos, com mais de 320 mortos. regime deteve uma usuária do aplicativo
político do país, paranoico com qualquer Alguns nicaraguenses que assisti- TikTok que defendia Palacios contra as
sinal de dissidência, inicialmente felici- ram à cerimônia do Miss Universo vi- críticas oficiais e obrigou dois artistas a
tou Palacios, mas desde então reprimiu as ram o traje de Palacios, um vestido bran- apagar um mural que tinham começado
comemorações, até porque a própria miss co com capa azul, como uma referência à em homenagem a ela na cidade de Estelí.
participou das manifestações de 2018, e bandeira nacional, que foi proibida a par-
os opositores do regime a consideraram tir de 2018. A própria Palacios não disse Não está claro se Palacios terá permis-
um símbolo de esperança e desafio. nada abertamente político durante a são para voltar à Nicarágua, visto que o re-
Palacios, de 23 anos, tornou-se a pri- cerimônia. Citou a feminista britânica gime proibiu o retorno da diretora da fran-
meira Miss Universo da América Cen- do século XVIII, Mary Wollstonecraft, quia Miss Nicarágua, Karen Celebertti,
tral, na edição deste ano do concurso, rea- como inspiração antes de dedicar sua co- que também viajou para El Salvador. O
lizada em El Salvador em 18 de novembro. roa às “garotas do mundo, à garota den- marido e o filho de Celebertti também
“Foi uma surpresa, e provocou manifesta- tro de mim… e aos mais de 6 milhões de foram relatados como desaparecidos na
ções espontâneas de alegria no país”, dis- habitantes do meu país”. segunda-feira 27. “O governo se mostrou
se Elvira Cuadra, socióloga nicaraguense A vitória provocou uma rara manifes- nervoso”, disse Juan Pappier, vice-dire-
que vive exilada na Costa Rica. tação de alegria num país que nos últi- tor para as Américas da Human Rights
A miss vem de uma família de bai- mos anos tem visto poucos motivos para Watch. “Não por fraqueza, mas por para-
xa renda que vendeu bolinhos fri- comemorar. “Desde 2018, a Nicarágua vi- noia. Eles têm medo de qualquer coisa que
tos, ou buñuelos, para poder estudar na ve em um Estado policial”, disse Cuadra. não esteja totalmente alinhada com eles.”
JAIRO CA JIN A E M A RVIN RECINOS/A FP

universidade, e sua história pareceu se “Ultimamente, nem mesmo reuniões re- Desde a revolta esmagada de 2018, o
conectar a muitos nicaraguenses. O mesmo movimento da Nicarágua na direção do
aconteceu com sua participação nos autoritarismo se acelerou. “Vimos uma
protestos de 2018, que se tornou conhecida demolição total das liberdades civis”, disse
por todos depois que fotos suas na época Pappier. “Mais de 300 nicaraguenses per-
viralizaram antes do concurso de beleza.
As comemorações deram a nacionalidade. Metade das ONGs
Aqueles protestos visavam derrubar do título da modelo que existiam foi encerrada. E ainda há mais
o presidente Daniel Ortega, antigo herói foram reprimidas de 80 presos políticos atrás das grades.”
revolucionário de 78 anos que ajudou a com violência A Igreja Católica, que Ortega acusou de

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Paranoia. Ortega vê na comoção
popular pelo título de Palacios uma
ameaça ao seu poder ditatorial

promover um golpe de Estado em 2018,


também foi perseguida. A Universidade
Centro-Americana, instituição jesuíta
onde Palacios estudou e que é descrita pe-
lo governo como “um centro de terroris-
mo”, foi recentemente fechada. Rolando
Álvarez, o bispo de Matagalpa, que se
recusou a ser deportado para os Estados
Unidos juntamente com outros 222 pre-
sos políticos em fevereiro, foi condenado
a 26 anos de prisão. “Não creio que exis-
ta hoje algo que possamos chamar de vi-
da cívica ou pública na Nicarágua”, disse
Pappier. “A repressão é absoluta.”
Desde 2018, ao menos 600 mil nicara-
guenses deixaram o país, principalmen-
te para os Estados Unidos e a Costa Ri-
ca. No início deste mês, a Nicarágua con-
cluiu sua retirada da Organização dos Es-
tados Americanos, após refutar as críti-
cas por numerosas violações dos direi-
tos humanos. “Em termos de repressão
sistemática e isolamento da comunida-
de internacional, esta é a Coreia do Nor-
te do nosso continente”, disse Pappier. •

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 43
Nosso Mundo

Pelas vielas
diplomáticas
Os bastidores das
tensas negociações que possibilitaram
a breve trégua na Faixa de Gaza
P O R J U L I A N B O R G E R , D E WA S H I N GTO N ,
E R U T H M I C H A E L S O N , D E IS TA M B U L

A
s gravações de reféns cap- desenvolveu a determinação de libertar
turados e levados foram os milhares de palestinos detidos nas
tão angustiantes quanto prisões israelenses.
a visão dos cadáveres que Sinwar foi libertado em 2011, um dos
o Hamas deixou para trás. mil palestinos trocados por um único
O massacre de civis em 7 de outubro pre- soldado israelense, Gilad Shalit. A pro-
tendia lançar terror na psique israelen- porção desta vez foi menor, de três para
se e infligir uma ferida duradoura. A to- um, mas os libertados são, em sua maio-
mada de reféns foi feita por outras ra- ria, mulheres e adolescentes da Cisjordâ-
zões: como um obstáculo à retaliação is- nia apanhados na rede de detenção ad-
raelense e para trocá-los por prisionei- ministrativa, o que significa que muitos
ros palestinos em Israel. Sete semanas nunca foram acusados ou julgados. A li-
mais tarde, funcionou claramente me- bertação do primeiro grupo foi celebra-
lhor como moeda de troca do que como da com fogos de artifício e festas nas ruas
elemento de dissuasão. em toda a Cisjordânia, aumentando a es-
Os cerca de 240 reféns não impedi- tatura de Sinwar na região, em meio ao
ram o bombardeio intenso e implacá- crescente descontentamento com os ri-
vel de Gaza nem a ofensiva terrestre de vais do Hamas, Mahmoud Abbas e a Au-
27 de outubro. Quase um mês depois, foi toridade Palestina.
acordada uma pausa de quatro dias, pro-
vavelmente quando foi conveniente pa- Do lado israelense, Benjamin
ra as Forças de Defesa de Israel. A liber- Netanyahu tentou impedir que as vozes
tação de cerca de 150 palestinos, por ou- das famílias dos reféns dominassem o ro-
tro lado, é um ganho importante para o teiro da guerra, em grande parte por te-
mentor do ataque de 7 de outubro, Yahya mer que isso pudesse abrandar o ímpeto
Sinwar, que passou mais de 23 anos nu- da reação militar ao ataque de 7 de outu-
ma prisão israelense. Foi onde ele se tor- bro. Sobrevivente político por excelên-
nou fluente em hebraico e adquiriu um cia, Netanyahu percebeu que as famílias
conhecimento profundo da política e da eram potencial ameaça política. Assim co-
sociedade israelenses. Foi também onde mo grande parte de Israel, elas o conside-

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
pediriam ao presidente dos Estados
Unidos, Joe Biden, que representasse
seus interesses. Biden tinha conversa-
do longamente com as famílias dos dez
cidadãos norte-americanos então desa-
parecidos, dois dias antes da reunião de
Netanyahu. Os assessores presidenciais
no Salão Oval quando ele fez a ligação
pelo Zoom disseram que foi “uma das
coisas mais angustiantes” que experi-
mentaram. Biden estendeu a ligação até
que todas as famílias tivessem a oportu-
nidade de falar e expressar suas emoções.

Antes mesmo de Biden conhecer as


famílias, as engrenagens giravam em
Washington para encontrar uma ma-
neira de lidar com a questão. Poucos dias
após o 7 de outubro, a família governan-
te do Catar, que há muito acolhe repre-
sentantes do Hamas em Doha, contatou
Washington para estabelecer um grupo
de trabalho sobre os reféns. Isso exigiu a
contribuição dos egípcios, cujo chefe de
espionagem, Abbas Kamel, serviu duran-
te muito tempo como principal interlocu-
tor do Hamas e da Jihad Islâmica palesti-
na em Gaza. Kamel intermediou um ces-
sar-fogo há dois anos e transmitiu men-
A contragosto. Netanyahu temia que o campanha militar pelo sofrimento dos sagens críticas na fase final do acordo.
drama dos reféns aplastasse a promessa reféns e de seus entes queridos. A inter- O conselheiro de segurança nacio-
de aniquilação do Hamas. A pressão da
venção causou alvoroço na sala, pois as nal dos EUA, Jake Sullivan, delegou
Casa Branca forçou o premier a negociar
famílias alegaram que tinham sido em- seu coordenador para o Oriente Médio,
boscadas por um teatro “politicamente Brett McGurk, e o vice-conselheiro da
conveniente”, cuidadosamente encenado. Casa Branca, Josh Geltzer, como repre-
E XÉRCITO DE ISR A EL /A FP E A MOS BEN GERSHOM /

ram responsável pelo fracasso do país em Netanyahu abraçou os parentes dian- sentantes nesse grupo, cuja existência, a
GABINETE DO PRIMEIRO MINISTRO DE ISRAEL

proteger a população, e ele tem sido caute- te das câmeras, mas eles ficaram ainda pedido dos catarianos e israelenses, per-
loso em encontros diretos com eleitores. mais desconfiados e alertaram que, se maneceu em segredo do resto da admi-
Quando, finalmente, concordou em se fossem usados em novas artimanhas, nistração em Washington.
reunir com representantes selecionados Todas as manhãs, McGurk telefonava
de apenas cinco famílias, em 15 de outu- cedo para o primeiro-ministro do Catar,
bro, causou um escândalo. Iniciada a reu- xeque Mohammed bin Abdulrahman Al
nião, apareceram outros quatro supostos Thani, sobre os contatos com o Hamas.
parentes de reféns, até então desconheci-
Os contornos do McGurk então informava Sullivan, que
dos da organização das famílias. Um de- acordo de reféns informava Biden. O presidente participou
les teria instado Netanyahu a “agir com tomaram forma ocasionalmente de ligações com os cata-
frieza e decisão” e a não ser desviado da em 25 de outubro rianos. “Essa célula estabeleceu proces-

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 45
Nosso Mundo

Surpresa. Trabalhadores
filipinos acabaram libertados
na primeira leva, enquanto centenas
de palestinos presos em Israel
voltaram aos braços das famílias

sos que provaram atingir diretamente o


Hamas”, disse uma autoridade dos EUA.
O processo da “cela secreta” foi pos-
to à prova com a libertação de duas re-
féns norte-americanas, Judith Raanan
e sua filha adolescente, Natalie, em 20
de outubro. Enquanto eram conduzidas
numa viagem potencialmente arriscada
até o ponto de passagem de Rafah, seu
progresso foi monitorado ao vivo por
Sullivan e McGurk a partir da Casa Bran-
ca. Assim que foram recebidas por um di-
plomata norte-americano no lado egíp-
cio, Biden telefonou para o pai de Natalie
para confirmar que elas estavam livres.

Quatro dias depois, dois reféns israe-


lenses foram libertados e o trabalho num
intercâmbio muito mais ambicioso se
acelerou, agora com o diretor do Mossad,
David Barnea, como principal oficial do
lado israelense, em estreita colaboração
com seu homólogo norte-americano, o
chefe da CIA, William Burns.
Os contornos do acordo de reféns to-
maram forma em 25 de outubro, depois
que o Hamas se ofereceu para libertar
não só mulheres e crianças, mas idosos
e doentes, em troca de um cessar-fogo de
cinco dias e da libertação de um maior
número de palestinos.
Os israelenses não estavam convenci-
dos. O Hamas não apresentou nenhuma ocorrência do ataque, viu a oferta inicial infantaria, começaram em 27 de outubro.
lista de reféns, nem prova de vida. Disse- do Hamas como uma manobra para im- A ofensiva terrestre não interrompeu
ram aos negociadores que não poderiam pedir a iminente ofensiva terrestre israe- o fluxo das negociações de reféns, mas es-
fornecer um relato completo sem um ces- lense. Os norte-americanos concordaram, tas foram suspensas alguns dias depois,
sar-fogo, uma vez que vários grupos, in- mas argumentaram em contraponto que após dois ataques aéreos devastadores
cluindo civis, os mantinham em diferen- o ataque fosse realizado em fases, com a no campo de refugiados de Jabalia, nos
tes locais de Gaza – nem mesmo o Hamas ideia de que poderia ser interrompido após arredores da Cidade de Gaza, que mata-
conseguia localizar a todos. O governo de cada fase se surgisse uma oportunidade ram mais de cem palestinos. Os negocia-
Netanyahu, determinado a compensar genuína de troca de prisioneiros. As pri- dores do Hamas no Catar afastaram-se
as falhas de segurança que permitiram a meiras incursões, lideradas por tanques e brevemente da mesa, furiosos com a per-

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
da de vidas, disse uma fonte familiariza- e das forças de segurança israelenses,
Os contínuos ataques
da com as negociações. Em poucos dias, insistindo que um acordo de reféns
Sinwar voltou a contatar com a perspecti-
das forças israelenses não afetaria sua capacidade de destruir
va de uma oferta melhor, sugerindo que o provocaram atrasos o Hamas. Por meio de sua própria
Hamas estava disposto a aceitar um ces- nas negociações insensibilidade e inépcia, o partido mais
sar-fogo mais curto em troca de 50 mu- linha-dura da coligação, Otzma Yehudit,
lheres e crianças reféns. Os negociadores liderado pelo ministro da segurança na-
tentaram um meio-termo, sugerindo a li- cional, Itamar Ben Gvir, se isolou.
bertação de dez a 15 reféns em troca de O Parlamento votou pela aprovação do
um cessar-fogo mais curto, numa tenta- Catar, deixando claro que o acordo de re- acordo na manhã da quarta-feira 22, mas
tiva de gerar confiança entre as partes. féns ainda estava em aberto. não antes de Netanyahu ter causado uma
Barnea e Burns voaram para Doha em 9 Foi a vez de Netanyahu sofrer pres- surpresa final, declarando que o Comitê
de novembro para conversar sobre os de- são do Salão Oval. Nessa altura, o pri- Internacional da Cruz Vermelha (CICV)
talhes e a logística do acordo, mas o pon- meiro-ministro israelense estava mais poderia visitar os reféns restantes como
to crítico para os israelenses permaneceu inclinado a firmar um acordo. A organi- parte do acordo, declaração que foi uma
o mesmo: a falta de detalhes sobre quem zação das famílias reféns tinha reforça- surpresa para a organização e possivel-
seria libertado ou de provas de que ainda do sua campanha em nível interno, in- mente para os negociadores.
estavam vivos e sob o controle do Hamas. cluindo protestos diante da residência
Na versão da Casa Branca, foi Biden de Netanyahu, e o apoio público cres- Doha formou sua própria “sala de opera-
quem rompeu o impasse com um telefo- cia. Segundo o relato de uma autoridade ções”, de acordo com o porta-voz das Rela-
nema ao emir do Catar, xeque Tamim bin dos EUA, Netanyahu agarrou o braço de ções Exteriores do Catar, Majed Al-Ansari,
Hamad Al Thani, em 12 de novembro. Se- McGurk após uma reunião em Tel-Aviv criada para monitorar a situação minu-
gundo uma autoridade dos EUA, o presi- e lhe disse: “Precisamos desse acordo”. to a minuto através do contato com o CI-
dente disse “basta” ao monarca, e que sem Nos dias finais, a decisão esteve nas CV, o gabinete político do Hamas, autori-
detalhes sobre idade, sexo e nacionalidade mãos do gabinete de Netanyahu. O dades israelenses e diplomatas egípcios.
dos 50 reféns em questão “não havia base primeiro-ministro poderia reivindicar Na noite de sexta-feira 24, o canal sau-
para avançar”. Pouco depois, a lista exigi- o apoio de Biden, a quem deu crédito por dita Al Arabiya transmitiu as primeiras
da se materializou, e um acordo final pa- ter melhorado o acordo a favor de Israel, imagens de uma fila de veículos brancos
recia estar próximo. Mas os acontecimen- da Cruz Vermelha a sair de Gaza, ilumi-
tos em Gaza atrasaram novamente o pro- nados apenas por seus próprios faróis. A
gresso em Doha, e Sinwar ficou em silên- surpresa foi que um trabalhador migran-
cio. Tanques e tropas israelenses cerca- te filipino e dez tailandeses também es-
ram o hospital Al-Shifa, que, segundo eles, tavam entre a primeira remessa de re-
ficava no topo de um extenso bunker de féns. Eles foram capturados enquanto
M A H M U D H A M S / A F P, J A A F A R A S H T I Y E H / A F P E O R E N Z I V / A F P

comando do Hamas, afirmação há muito o Hamas atacou as aldeias e kibutzim do


negada pelo grupo. Em 15 de novembro, as sul de Israel em 7 de outubro, e o governo
forças israelenses invadiram o hospital. tailandês tinha levado a cabo sua própria
Sinwar exigiu que os soldados israe- campanha diplomática para libertá-los,
lenses deixassem o complexo. O outro la- envolvendo negociadores tailandeses
do recusou categoricamente, mas se ofe- que visitaram o Cairo, Doha e Teerã.
receu para adotar medidas que mante- O acordo sobre os reféns trouxe uma
riam o hospital aberto. Em Doha, os ne- rara explosão de alegria a alguns israe-
gociadores do Hamas ficaram visivel- lenses e palestinos, e alguns dias de des-
mente descontentes com a escalada em canso e recuperação a mais de 2 milhões
Gaza, mas permaneceram à mesa das de habitantes de Gaza sitiados, mas há
negociações. Após dois dias de silêncio, poucos sinais de que lhes tenha dado sal-
Sinwar retomou mais uma vez o contato vação ou paz. •
com Kamel, o chefe da espionagem egíp- Êxito. Mentor dos ataques de
cia, e com o braço político do Hamas no 7 de outubro, Sinwar está em alta Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 47
Plural

As raízes pretas
MÚSICA Três documentários revisitam o início do movimento
black e os bailes realizados nas periferias na década de 1970
POR SÉRGIO MARTINS

E
m meados da década de 1960, tem produção de Tim e é um dos marcos leira. A soul music, no Brasil, foi assimi-
Tim Maia procurou Eduardo do gênero no Brasil. lada, deglutida e integrada a ponto de
Araújo, ídolo da Jovem Guar- Se comparado aos sucessos dançantes existir não apenas um soul/funk brasi-
da, para mostrar algo que ele de Eduardo Araújo, como O Bom e Gol- leiro como o funk carioca, o rap e o trap
tinha conhecido nos Estados pe do Baú, o álbum vendeu pouco. Ele foi, – todas variações das sementes planta-
Unidos – uma tal de soul music. Do encon- porém, o ponto de partida para um movi- das nos anos 1970.
tro e das trocas dele decorrentes nasceu mento que ganha, neste momento, uma Histórias a respeito do gênero não fal-
o disco A Onda É Boogaloo (1969), que revisita histórica: a música preta brasi- tam. E algumas delas estão contadas em

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 56
NESTA Plínio Martins. A história
SEÇÃO do sertanejo tornado um dos
principais editores do País

As letras incorporaram, porém, as lu- de criar uma marca própria, fosse através
tas pelos direitos civis dos americanos e do figurino, com os sapatos plataforma e
passaram a exaltar a beleza afro-america- os penteados black power, fosse pela des-
na. James Brown, o pai do funk, trocou o treza nas pistas. “A gente passava um mês
I Feel Good (Eu Me Sinto Bem) pelo Say It pensando no que ia vestir para ir aos bailes
Loud, I’m Black and I’m Proud (Diga Bem da Chic Show”, diz o rapper Mano Brown.
Alto, Sou Negro e me Orgulho Disso). Os Em ambos havia ainda os momentos
bailes do Rio e de São Paulo assimilaram da dança lenta, quando, encostados à pa-
esses discursos e também o cabelo black rede, os jovens ficavam à espera de um
power, as coreografias e a roupa estilosa. convite para o bailado lento, agarradi-
Embora tenham, em sua essência, a nho. Havia até gente que levava duas ca-
música negra, o Black Rio e a Chic Show misas: uma para se esbaldar aos sons de
atuaram em áreas diferentes. O primei- James Brown & Cia, outra embebida com
ro foi gestado nos Bailes da Pesada, even- água de colônia para agradar às mulheres.
tos que os lendários DJs Big Boy e Ade-
mir Lemos promoviam na Zona Sul do Tudo isso não tardou, porém, a des-
Rio, onde combinavam canções de rock pertar a sanha dos órgãos da repressão da
Poder. Dom Filó é um dos personagens e soul music. Como o amálgama gerava ditadura, que não viam com bons olhos
de Black Rio!! Black Power!!, de Emílio confusão entre os fãs dos dois estilos, os a reunião de jovens negros. E é fato que
Domingos, retrato histórico dos bailes
apreciadores da black music criaram um Soul Grand Prix e Chic Show foram fun-
tornados célebres na zona sul do Rio
baile com seu gênero predileto, num clu- damentais para que os jovens afro-brasi-
be da periferia da cidade. leiros passassem a tomar consciência de
O Chic Show, por sua vez, nasceu como sua beleza e sonhar sonhos maiores que
três documentários lançados este ano: uma festa no centro paulistano que, de- os subempregos aos quais a maioria pa-
Black Rio!! Black Power!!, de Emílio Do- pois, migrou para o salão da Sociedade Es- recia destinada.
mingos, Chic Show, de Domingos e Feli- portiva Palmeiras, clube da Zona Oeste de Durante os bailes, os jovens, várias ve-
pe Giuntini, e Gerson King Combo – O Fil- São Paulo frequentado pela classe média. zes, foram ameaçados, fichados e até agre-
me, de David Obadia. No documentário, Luizão, criador da Chic didos. Dom Filó, criador da Soul Grand
Exceção feita a Black Rio!!, que ainda Show, não esconde a emoção de ter ocu- Prix, diz que era comum ver agentes da
percorre o circuito de festivais e deve dar pado um território restrito aos brancos. repressão infiltrados no meio do público.
um rasante nas salas de cinema em 2024, A unir os bailes da Soul Grand Prix – “Eles eram diferentes do resto das pes-
os filmes estão disponíveis no streaming. origem do Movimento Black Rio – e da soas que iam curtir a música”, comenta.
Chic Show está no catálogo do Globoplay Chic Show está o fato de ambos terem ali- Foram também os bailes da periferia
e Gerson King Combo – O Filme pode ser mentado uma cultura jovem marcada pe- do Rio de Janeiro que formaram o perso-
acessado na Music Box Play e na Itaú Cul- lo gosto musical, mas também pelo desejo nagem do terceiro documentário, Gerson
tural Play, gratuito. King Combo. Gerson Rodrigues Côrtes
Os três filmes são complementares (1943-2020) era irmão de Getúlio Côr-
e retratam a tomada de consciência ra- tes, autor de sucessos de Roberto Carlos
cial, política e social de jovens das peri- – entre eles, a clássica Negro Gato. Ger-
ferias do Rio de Janeiro e de São Paulo Os bailes geravam son chegou, inclusive, a dançar no pro-
A RQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO

por meio dos bailes black. Mas a músi- a ira dos agentes da grama Jovem Guarda, mas foram suas
ca em si é também, obviamente, um ele- repressão e o gênero coreografias dos Bailes da Pesada, de Big
mento central desses retratos. Até por- Boy e Ademir Lemos, que lhe renderam o
que, no Brasil, a matriz estadunidense
era criticado pelos epíteto de James Brown Brasileiro e cha-
ganhou, na virada dos anos 1960 para os sambistas apegados maram atenção da indústria fonográfica.
anos 1970, um andamento mais acelera- a uma certa ideia O cantor foi contratado pela Philips
do e frenético, que daria origem ao funk. de nacionalismo para suprir a ausência de Tim Maia, que

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 51
Plural

tinha migrado para outra companhia. Retratos. Chic Show, de Domingos


Mas ele fez muito mais que isso. Gerson e Felipe Giuntini, e Gerson King
Combo – O Filme, de David Obadia,
deu cara e personalidade ao movimen-
já estão disponíveis no streaming
to black, com vestimentas que se asse-
melhavam às de um soberano africano
e/ou um astro do funk americano, gírias do na viola/ Já tem mente alienada. va, mas muito por conta dos shows inter-
próprias da época e canções que exalta- Filó lembra, no entanto, que vários nacionais. A equipe trouxe para o Brasil
vam o estilo de som propagado nas festas. sambistas – Arlindo Cruz entre eles – não só James Brown, mas astros emer-
A canção Mandamentos Black, de seu eram frequentadores dos bailes cariocas. gentes do rap como Koe Moe Dee e o gru-
primeiro disco, traz uma mensagem que, Em São Paulo, onde a patrulha não foi tão po Whodini. Posteriormente, se torna-
ainda que direcionada aos agentes da re- intensiva, os jovens que iam às festas do ria um selo de discos. Gerson amargou o
pressão, até hoje soa forte: Brother!/ As- gênero foram os artífices do samba local, ostracismo e sua carreira se restringiu a
suma sua mente, brother!/ E chegue a uma que carrega em si uma expressão do soul. aparições em bailes e homenagens de no-
poderosa conclusão/ De que os blacks não A chegada da disco music, no fim dos mes emergentes do soul e do funk.
querem ofender a ninguém, brother!/ O anos 1970, é apontada por Filó como um Black Rio!! Black Power!!, Chic Show e
que nós queremos é dançar! marco importante do escasseamento Gerson King Combo – O Filme são mais
dos bailes. A partir daí o funk foi também que o retrato de um período importante
E os ataques aos bailes black não vi- passando por um banho de loja, sendo as- da música. São, como o disco de Eduardo
nham apenas do regime ditatorial. Ha- similado pela plateia branca e de maior Araújo produzido por Tim Maia, o ponto
via uma corrente cultural, ligada a um poder aquisitivo. de partida para projetos ainda maiores.
certo ideal nacionalista, que via naque- A Black Rio saiu de cena naquele pe- Os próximos projetos de Domingos
les artistas e no ritmo uma importação ríodo. A Chic Show manteve-se na ati- são documentários sobre a equipe de
de modismo americano. Black Rio!! recu- som Furacão 2000 e do soulman Hyldon,
D AV I D O B A D I A E J O R G E G A R C I A

pera uma reportagem do Fantástico, na que formou a Santíssima Trindade do


qual o sambista Candeia faz críticas aos soul com Tim Maia e Cassiano. No úl-
bailes e um artigo de jornal que apregoa No Brasil, a soul timo dia 30, data em que Gerson King
que os jovens dos bailes ignoravam bra- Combo completaria 80 anos, foi lança-
sileirices como feijoada e cachaça.
music ganhou um do, nas plataformas de streaming, o single
Martinho da Vila chegou a can- ritmo mais póstumo Tenho Fome, com participação
tar, em Oi compadre: Quilombe e qui- acelerado, que dos rappers BNegão e Gog. Como o pró-
lombo/ Meu compadre, / Mete o de- originou o funk prio Gerson diria, “eu te amo brother!” •

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

A desgraça do Glorioso
ça por aí, a meu ver, a compreensão do mesmo diapasão. E não demorou para que
► Em campo, víamos processo de decadência da campanha. Caçapa voltasse para seu posto no clube
jogadores perdidos, sem O treinador foi cobiçado pelos árabes e francês. Foi então substituído por outro
não recebeu, aqui, uma proposta de me- lusitano, Bruno Lage, que tentou trocar
capacidade de reação. lhora – que, ainda que fosse inferior à que os pneus com o carro andando e foi muito
Os adversários entravam lhe foi oferecida, demonstraria a inten- mal nos resultados. Acabou demitido – ao
andando na área ção, da parte da diretoria, de ver concluí- que se comenta, indisposto com o elenco.
do o trabalho que rendia a liderança do Foram, ao todo, cinco treinadores que, co-
botafoguense campeonato. mo se sabe, trazem suas comissões de con-
Luis Castro foi embora sob protestos fiança. Ficava, assim, evidente a ausência
fortes dos torcedores, que deixaram evi- de liderança dentro e fora do campo.
Campeonato Brasileiro, na prá- dente a diferença da relação que eles têm Em campo, víamos jogadores perdi-

O tica, terminou com o bicam-


peonato do Palmeiras, que re-
toma o favoritismo depois de, no cor-
com o time – de paixão absoluta – e aque-
la que demonstram ter os dirigentes – ra-
cional e fria.
dos, com evidente queda do estado físi-
co e sem capacidade de reação. Os adver-
sários entravam andando dentro da área
rer da disputa, ter sido ameaçado pela botafoguense. Em um dos jogos, viu-se
atropelada do Botafogo, que terminou Uma característica tradicional dos Marlon Freitas, ponto de equilíbrio da
em lamentável chabu. botafoguenses esteve muito bem repre- equipe, pedindo calma. Ele mesmo pare-
O time carioca derreteu. Depois de ter sentada nesse período por uma faixa exi- cia um mestre-sala desnorteado, sem sa-
sido o melhor no primeiro turno, encami- bida nas arquibancadas: “O time entra ber seu papel no conjunto que deixou de
nha-se para o fim do segundo turno co- em campo, todos jogamos juntos”. Isso existir. A equipe, que tinha até um mas-
mo um dos times com pior desempenho. explica o pequeno público presente no cote que vivia em afinada sintonia com a
A derrocada botafoguense fecha a tem- penúltimo jogo, quando, teoricamente, torcida, passou a cair em desgraça.
porada como um assunto mais intrigante havia chances numéricas de alcançar o No princípio, fiquei abismado como
e instigante que a própria conquista do tí- título. Mas já se sabia, a esta altura, ser ninguém – nem a mídia nem os torcedo-
tulo alviverde. Sobram argumentos e te- uma ilusão o empate em casa. res – cobrou do mandatário principal
ses dos mais diretos aos mais esotéricos. Após a saída de Castro, a direção trou- qualquer responsabilidade pelo insuces-
A transformação do time de um tur- xe o brasileiro Caçapa, auxiliar técnico do so. O futebol do Botafogo, afinal de con-
no para o outro foi tão grande que justi- Lyon, na França. Mas tudo continuou no tas, tem um “dono” que, ao menos inicial-
fica, de fato, todo tipo de especu- mente, tampouco se manifestou.
lação, desde análises elaboradas John Textor, dono da SAF do
até reações explosivas de torce- Botafogo, só voltou ao Brasil no
dores exasperados diante do dis- meio do incêndio e acusou o golpe.
parate que passaram a ver quan- Com sua experiência, deu-se conta
do já davam o título do Brasileirão do enrosco em que estava metido e
como favas contadas. atirou pesado contra a direção da
B A P T I S TÃ O E J U A N M A B R O M ATA /A F P

A formação do Botafogo vence- CBF. O dirigente disse também que


dor teve as digitais do português os jogadores são humanos e senti-
Luis Castro, contratado para par- ram o impacto do descontrole.
ticipar da construção de um proje- Resta agora ver que ações serão
to ambicioso, encarnando a coor- tomadas para que o projeto repu-
denação não só do time, mas da tado pelo dirigente inédito recu-
concepção do futebol do clube em pere o Glorioso de tanta história
toda a sua abrangência. E é inegá- e tradição. •
vel que foi primoroso nisso. Come- Crise. O Botafogo, no segundo turno do Brasileirão redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 53
Plural

O cineasta da
de Shakespeare e do menos conhecido
Henri Murger para criar os muito pes-

tragédia burlesca
soais Crime e Castigo, Hamlet Goes Busi-
ness (1987) e A Vida Boêmia (1992).
Em vez da subserviência comum às
adaptações de clássicos da literatura, o
CINEMA Na esteira da chegada de Folhas que esses filmes oferecem é, na verda-
de, um olhar para a extemporaneidade
de Outono ao circuito de salas, a MUBI das histórias. Não se trata de atualizar os
disponibiliza uma retrospectiva com mais contos morais de autores do passado, mas
de averiguar por que tais tramas conse-
de 20 títulos do finlandês Aki Kaurismaki guiram manter intacta sua profundidade.
Enquanto construía sua reputação,
P O R C Á S SI O S TA R L I N G C A R LO S Kaurismaki expunha, aos poucos, a tra-
gédia cotidiana, aquela que passa des-
percebida. Seus personagens, desde en-

A
tão, eram desajustados, desempregados
ssistir aos filmes de Aki Outro Lado da Esperança, premia- ou gente como a gente mergulhada em
Kaurismaki é, um pouco, do com o Urso de Prata de melhor di- existências miseráveis. A partir dos anos
como encontrar um vira- reção no Festival de Berlim de 2017. 2000, sua atenção se desloca para os efei-
-lata que caiu do cami- Por onde começar? Que caminho per- tos da globalização que então se acelerava.
nhão de mudança. Seus correr? Os obsessivos podem preferir a
personagens são frágeis sem deixar de ser ordem cronológica. Mas os dispersivos Seus filmes não se alimentam, porém,
duros; mostram suas feridas e ao mesmo que optarem pelo modo aleatório não da depressão alheia, artimanha recor-
tempo mordem; sentem desespero, mas perderão o fio da meada. Nem é preciso rente entre artistas com preocupação so-
não perderam a esperança. ver tudo para perceber tratar-se de uma cial. A tragédia abafada que Kaurismaki
Folhas de Outono, longa-metragem obra que claramente se diferencia da cultiva não existe sem a dimensão engra-
mais recente do cineasta finlandês, che- multidão de filmes cada vez mais iguais. çada, burlesca e absurda.
gou aos cinemas brasileiros, depois de ter Ao longo do percurso, identifica-se Charles Chaplin e, às vezes, Buster
conquistado o Prêmio do Júri do último claramente uma unidade temática e es- Keaton são referências evidentes. Ambos
Festival de Cannes e acumulado unani- tilística que, no entanto, evolui confor- foram gênios da fusão da comédia com a
midades no circuito internacional. me o contexto histórico. miséria e com a fragilidade. Foram tam-
Para quem o nome de Aki Kaurismaki Na primeira fase, que vai dos anos bém pioneiros da projeção, na tela gran-
não diz tanto quanto o de outros auto- 1980 ao início dos anos 1990, o diretor de, do indivíduo das multidões – aquele
res do cinema europeu, a MUBI prepa- surrupiou o prestígio de personalidades no qual todos nós, em alguma medida,
rou uma retrospectiva com um conjun- do cânone literário para construir um re- nos reconhecemos.
to de títulos que nenhum festival daqui pertório com nome próprio. Ele pegou O humor de Kaurismaki não é, no
conseguiu reunir antes. emprestadas as tramas de Dostoievski, entanto, do tipo “pastelão”. Ele retrata
A coleção A Arte de Ser Humano, em mais o ordinário que o extraordinário. A
exibição na plataforma, já disponibiliza comédia é um gênero popular, pois alcança
24 títulos da sua filmografia, entre lon- o que a maioria possui: a própria miséria.
gas e curtas-metragens, além de video- Do mesmo modo que fala de indivíduos
Seus personagens
clipes. Outros nove serão incorporados excluídos, onipresentes em qualquer na-
à coleção, incluindo Folhas de Outono.
são desajustados, cionalidade, o cinema de Kaurismaki faz
A seleção abrange desde Crime desempregados ou também a crônica da Finlândia, país que
e Castigo (1983), primeiro traba- gente mergulhada em integra a Comunidade Europeia e, si-
lho individual de Kaurismaki, até O existências miseráveis multaneamente, está à margem da ideia

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Identidades. Folhas de
Outono (à esq.) foi premiado
em Cannes. Crime e Castigo
(abaixo) ajudou a construir a
reputação do diretor. O Homem
Sem Passado é um de seus
trabalhos mais célebres.

e constituídos por uma cenografia mini-


malista – com nenhum ou poucos movi-
mentos de câmera – e pela recorrência de
atores e atrizes, os filmes do diretor são
feitos da mesma matéria de suas histórias.
Mais que efeito de assinatura, o mi-
nimalismo expressa a condição de seus
personagens, gente que vive em mora-
dias estreitas, equipadas com o básico,
de centro que marca o bloco econômico. tetralogia. O título de 2023 estende um rodando em veículos quase arcaicos. A
Tanto a Finlândia quanto os finlandeses recorte inicialmente composto de Som- estabilidade do estilo permite não mas-
sofreram transformações radicais na bras no Paraíso (1986), Ariel (1988) e A carar a involução da sociedade – algo que
transição do Estado de Bem-Estar So- Garota da Fábrica de Fósforos (1990). é, de fato, uma obsessão de Kaurismaki.
F I N N K I N O , I M A G E M F I L M E S E M U B I / 0 2 P L AY

cial para o chamado, de modo vago, “neo- Neles, a história de amor reúne ti- Em trabalhos como o formidável O Ho-
liberalismo”. Quando vistos de forma cro- pos sem muitos recursos – sejam eles mem Sem Passado (2002), Le Havre (2011) e
nológica, os filmes revelam, com clareza, de sedução física, sejam eles materiais. O Outro Lado da Esperança (2017), a ques-
os esforços fracassados de adaptação à Ao mesmo tempo que mapeia a degra- tão das identidades, dos racismos e da perda
nova ordem e a progressão – ou regres- dação do trabalho no correr dos anos, da hegemonia da branquitude é abordada
são – do proletariado para “precariado”. Kaurismaki trapaceia o niilismo. Reduzi- em chave distinta do denuncismo vigente.
dos ao mínimo, ao essencial para a sobre- Nem utópico nem distópico,
Folha de Outono carrega o mesmo vivência, seus personagens escapam da Kaurismaki acolhe seus personagens co-
destino de outras trilogias do cinema, desumanização quando encontram outro mo um bom médico, alguém que sabe que
como as de Michelangelo Antonioni e com quem voltam a acreditar no comum. o paciente não tem cura, mas insiste em re-
Ingmar Bergman: a de se converter em Marcados por um estilo sem floreios ceitar remédios para aliviar o sofrimento. •

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 55
Plural

Plinio começou
sua trajetória
na Perspectiva

PLINIO MARTINS FILHO,


EDITOR DO SEU TEMPO
Ulisses Capozzoli. WMF Martins Fontes
(352 págs., 119,90 reais)

Com cheiro de
ra Perspectiva, de Jacó Ginsburg, em São
Paulo. Não demora para que Plinio consi-
ga uma vaga no mesmo depósito.

sertão e de livros “Plinio Martins Filho chegou em São


Paulo em fevereiro de 1971, com 20 anos
e o primeiro ano colegial. Achou a cidade
BIOGRAFIA COMO O FILHO DE UM VAQUEIRO E UMA COSTUREIRA “muito feia” e teve dificuldade para se lo-
TRANSFORMOU-SE EM UM DOS PRINCIPAIS EDITORES BRASIL calizar”, descreve o autor. Plinio passou
POR ANA PAULA SOUSA fome, frio, dormiu pouco e mal e viveu
em cortiço. A narrativa, no entanto, não
dá mais ênfase a isso do que, por exem-
iografia ou história de vida?”, cia. Aqui, é como se o relato espelhasse o plo, aos encantos do ofício tipográfico, da
"
B pergunta-se, no início de Pli-
nio Martins Filho, Editor de Seu
Tempo, Ulisses Capozzoli. Jornalista e
sertão de onde veio o personagem.
Plinio nasceu em 1951, numa fazenda de
Goiás, em uma família de sete filhos. Viveu
composição a quente ou ao trabalho de
preparação de texto.
A trajetória do funcionário do depósi-
doutor em Ciência pela USP, Capozzoli, ao no campo até a mãe tomar coragem de mi- to que passou à revisão enquanto tenta-
mesmo tempo que carrega em si a ideia de grar para a cidade em busca do que, para va concluir o Ensino Médio – sofrendo
procedimento científico, viu-se, como bió- ela, era a herança a ser deixada: o estudo. debruçado sobre os enigmas de Derrida
grafo, diante de uma vida que se encaixa à e Bourdieu – e tornou-se gerente de pro-
perfeição no conceito de jornada do herói. O relato abriga a história da urbaniza- dução da Perspectiva, diretor da Edusp e
E foi assim, por essas duas trilhas, a do ção e da ocupação do Brasil Central, na fundador da Ateliê Editorial é espantosa.
rigor da pesquisa e a da emoção das traje- década de 1970, e da luta que era, para as Ela não sombreia, porém, a outra his-
CECÍLIA BASTOS/USP IMAGENS

tórias humanas, que se ergueu esta nar- famílias de origem rural, manter os filhos tória narrada nesse fascinante volume:
rativa sobre o universo editorial e sobre na escola. Nas primeiras cem páginas da aquela da produção dos livros. Esse uni-
Plinio Martins Filho, integrante do pan- biografia é difícil intuir como aquele jo- verso inclui outros editores, autores e de-
teão dos editores brasileiros. vem, filho de um vaqueiro e de uma cos- zenas de profissionais que buscam, jun-
O livro, na primeira parte, remete ao tureira, se tornará o famoso editor. A vira- tos, e não sem desacertos, tornar dispo-
estilo memorialístico de Pedro Nava, no da se dá quando seu irmão mais velho dei- nível para cada um de nós no mundo esse
qual cheiros, sabores ou uma mera cali- xa uma cidade-satélite do Distrito Fede- objeto que deve ser, nas palavras de Plinio,
grafia são descritos com vagar a paciên- ral para ir trabalhar no depósito da Edito- “bom e, simultaneamente, belo”. •

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ARTHUR CHIORO
Médico sanitarista e professor da Escola Paulista de
Medicina (Unifesp). Foi ministro da Saúde. É presidente
da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (MEC)

A saúde que queremos

cendo parâmetros do “bom viver”, valo- confunde com o direito à vida e que de-
► A ressignificação do rizando a responsabilidade individual na ve ser assegurado pelo Estado.
binômio saúde-doença manutenção da saúde e, de alguma for- Certas doenças dominaram períodos
ma, obscurecendo o peso que caracterís- específicos da história. Determinaram
tem implicações ticas mais gerais da sociedade têm sobre a sorte, o apogeu ou a derrocada de cer-
objetivas e práticas o nosso modo de adoecer e morrer. tas culturas. Influenciaram até mesmo
na vida das pessoas Dois modelos relativos à saúde passam a política, a cultura, a arte e a arquitetu-
a ser disputados. Um deles trata a saúde ra. Abreviaram carreiras de gênios e per-
e nas relações sociais como um bem de consumo, com valor de sonalidades que poderiam dar outros ru-
uso e de troca definidos. Saúde e doença mos ou sentidos à história da Humani-
constituem-se em mercadoria, cabendo dade. Tomem-se os exemplos da peste,
ende-se a definir saúde e doen- ao mercado prover as necessidades pe- no século XIV; da tuberculose, no sécu-

T ça por contraposição. Saúde é a


ausência de doença. Doença é
quando não se tem saúde. Trata-se, po-
la lei da oferta e da procura. Quem pode,
paga por atendimento. Quem não pode,
é tratado como indigente.
lo XIX; da gripe espanhola, no início do
século XX; da Aids, nas décadas de 1980
e 1990; e, mais recentemente, a Covid-19.
rém, de uma visão simplista, que não dá É inegável que as chances de adoecer e
conta da complexidade do tema. O outro modelo, adotado por países in- morrer são mensuráveis já no momento da
Existem modelos, como o biomédico, fluenciados pelos princípios da social-de- gestação – a depender do nível de escolari-
hegemônico no meio científico, que re- mocracia, do socialismo ou pela ideia de dade e renda das mães. Nações, classes so-
duzem a doença à incapacidade dos me- que é necessário garantir a reprodução ciais e grupos de indivíduos são atingidos
canismos de adaptação de um organis- da força de trabalho e atenuar as pressões pelas doenças de forma distinta e perversa.
mo para neutralizar os estímulos ou so- sociais mediante a concessão de “políti- Rever o significado do binômio saúde-
licitações a que está sujeito, resultando cas públicas”, lida com a saúde como um -doença tem implicações objetivas e prá-
em transtorno da função ou estrutura de direito social – com maior ou menor ticas na vida das pessoas. A partir de um
qualquer parte, órgão ou sistema. abrangência, a depender dos contextos. conceito mais amplo, a atenção à saúde
Em 1946, no contexto de reconstrução O Brasil, após intensa mobilização so- passa a ser entendida como um instru-
da Europa após a Segunda Guerra Mun- cial, estabeleceu na Constituição Federal mento capaz de possibilitar às pessoas o
dial e sob inspiração da social-demo- que a “saúde é um direito de todos e dever uso e gozo de seu potencial físico e mental.
cracia, a Organização Mundial da Saúde do Estado, garantido mediante políticas E se nenhum conceito é totalmente
(OMS) formulou um novo conceito, o mais sociais e econômicas que visem à redu- satisfatório para explicar a complexi-
vago e subjetivo possível: “Saúde é o esta- ção do risco de doença e de outros agra- dade do processo saúde-doença, talvez
do de completo bem-estar físico, mental e vos e ao acesso universal igualitário às seja necessário alargar a discussão. Daí
social, e não apenas a ausência de doença”. ações e serviços para sua promoção, pro- porque prefiro tratar a saúde e a doença
Essa definição, de difícil expressão teção e recuperação”. como um binômio, analisando-o, como
prática, teve efeitos positivos ao desta- Para que se tenha saúde nessa pers- dizia Giovanni Berlinguer, em múltiplas
car a dimensão mental e social dos seres pectiva ampliada são necessárias con- possibilidades: enquanto sofrimento, di-
humanos, aspecto até então negligen- dições dignas de trabalho, renda, mora- ferenças e anomalias, perigos, sinais ou
ciado. Por outro lado, a extrapolação do dia, saneamento, proteção ao meio am- oportunidades advindas dos estímulos
seu significado, confundindo mal-estar biente, alimentação e nutrição, educação, que a enfermidade pode desencadear.
mental e social com doença, tem levado liberdade, acesso e posse da terra, trans- Saúde e doença dizem respeito ao indi-
B A P T I S TÃ O

à medicalização da sociedade. porte, lazer e garantia de acesso às ações víduo, mas também às relações sociais
O que isso significa? Que a medicina e serviços de saúde. A saúde passa, assim, e à própria configuração da sociedade. •
passou a normatizar a vida, estabele- a ser um direito social universal que se redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 3 D E D E Z E M B R O D E 2 0 2 3 57
VENES CAITANO

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