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ANO 3 / NÚMERO 25 / AGOSTO 2009 R$ 8,90

14 30 34
NOVOS PARADIGMAS HOMOSSEXUALISMO CONFERÊNCIA NACIONAL
CRESCER MENOS ESCOLAS SEM DEMOCRATIZAÇÃO
VIVER MAIS PRECONCEITO DA COMUNICAÇÃO
POR ERIC DUPIN POR RUY C. DO ESPÍRITO SANTO POR INTERVOZES

LE MONDE
BRASIL
diplomatique UM NOVO OLHAR SOBRE O MUNDO. UM NOVO OLHAR SOBRE O BRASIL.

ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA

MAIS PODER COM


NOVAS ARMAS POR GERALDO LESBAT CAVAGNARI FILHO E SILVIO CACCIA BAVA

HONDURAS
O QUE ESTÁ POR TRÁS DO GOLPE
POR MAURICE LEMOINE E JUAN ALMENDARES

11 UIGURES
VIOLÊNCIA NA CHINA
POR MARTINE BULARD 18 FLÓRIDA
CRISE IMOBILIÁRIA
POR OLIVIER CYRAN 38 ENTREVISTA
GRÉGOIRE BOUILLIER
POR MAÍRA KUBÍK MANO
2 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

LE MONDE SUMÁRIO CARTAS


BRASIL
diplomatique Ano 3 – Número 25 – Agosto 2009

Democracia para quem?


Editor
Não sou a favor da violência, porém inocentes integrantes de elites
Silvio Caccia Bava
insatisfeitas com as eleições no Irã têm sido vitimadas pela irres-
Mobilização de Recursos e Relacionamentos
Daniela Greeb
ponsabilidade do líder de oposição derrotado, Mousavi, que insu-
fla essas pessoas a ir às ruas em protesto, mesmo após o aviso do
Editora Assistente
Maíra Kubík Mano aiatolah Khamenei. Contra o que essas pessoas protestam? Nin-
guém sabe! Primeiro foi a suspeita de fraude, de que poderiam
Editores de Arte
Adriana Fernandes e Daniel Kondo não ter sido computados 3 milhões de votos a favor da oposição.
editorial Ora, a diferença a favor de Ahmadinejad foi de 11 milhões de vo-
Revisão
Laura Rocha e Renata Tavares 3 O funil da informação tos. Isso não faria diferença. Depois, protestaram contra a falta de
Controles Financeiros POR SILVIO CACCIA BAVA liberdade de expressar a insatisfação. A democracia serve a quem?
Camila Pozzi de Aguiar Não se pode deixar desestabilizar um país cujo povo escolheu seu
capa / estratégia nacional de defesa líder e legitimou seu regime, em favor de uma minoria insatisfeita.
Assinaturas
Tereza Heloina S. Santos Teixeira 4 Garantir a soberania e os recursos naturais Então, eu respondo a pergunta que fiz: a democracia serve para
Secretaria POR GERALDO LESBAT CAVAGNARI FILHO legitimar a ditadura das minorias (influência dos ideais iluminis-
Silvana Lamanna Cupaiolo O PAC das Forças Armadas tas, Revolução Francesa e Revolução Industrial). Se no regime de-
POR SILVIO CACCIA BAVA mocrático o povo é soberano e mandatário do poder, ao eleger
Estagiária
Gabriela Logiodice Moncau seus representantes está tudo legitimado. E às minorias insatisfei-
crise política em honduras tas restam as vias legais para expressar suas opiniões ou protes-
Tradutores desta edição
Carol M. de Paula, Celina Olga de Souza, 8 Por trás do golpe tos, mas não provocar baderna e colocar a opinião pública inter-
Danilo C. Leite, Hector Echaniz, Henrique POR JUAN ALMENDARES nacional contra a soberania iraniana.
Silva, Jean-Yves de Neufville, Lívia Chede
Almendary, Marcelo Barbão, Mario Miguel Posições ambíguas na reação internacional Que saia de lá toda a imprensa ocidental comprometida com a
Fernandez Escaleira e Marly N. Peres POR MAURICE LEMOINE difusão ideológica e não em relatar apenas os fatos ou fazer aná-
Assessoria Jurídica lises inteligentes, pactuando com os já sabidos interesses oci-
Rubens Naves, Santos Jr., Hesketh violência na china dentais em tirar a resistência do atual governo iraniano do ca-
Escritórios Associados de Advocacia 11 Uigures, entre a modernidade e a repressão minho do petróleo farto. Mesmo insatisfeito, eu não sairia às
Conselho Editorial POR MARTINE BULARD ruas para correr riscos.
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Ana Cláudia
A democracia é uma forma de legitimar o poder das minorias que
Teixeira, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo
modelo de desenvolvimento fazem parte da elite econômica, portanto dominantes, e quando
Ramos, Aziz Ab’Saber, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Danilo Miranda, Fernando Gabeira, 14 A felicidade como uma questão política um representante popular emerge ao poder é obrigado a fazer
Ferréz, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan
Giannini, Jacques Pena, Jaime Pinsky, Jorge
POR ERIC DUPIN alianças e concessões para atender a essas mesmas elites, fazen-
Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José do-o abandonar seus princípios políticos e ideológicos. E isso não
Eduardo Martins Cardozo, José Luis Goldfarb, especulação financeira está acontecendo no Irã. Por não fazer concessões às elites domi-
Ladislau Dowbor, Leonardo Boff, Marcio
Pochmann, Nabil Bonduki, Nilton Bonder,
16 Madoff, o maior trapaceiro de todos os tempos nantes e dar seguimento ao processo de revolução pelo qual pas-
Plinio de Arruda Sampaio, Raquel Rolnik, POR IBRAHIM WARDE sa o Irã é que o atual governo encontra resistência nas classes mé-
Ricardo Abramovay, Ricardo Azevedo, Roberto dias e elites econômicas. Fidel Castro fez muito mais pelo seu
de Andrade Martins, Rubens Naves, Ruy Cezar
saídas para a crise
do Espírito Santo, Sebastião Salgado, Silvia
Dias Alcântara Machado, Soninha, Tânia
18 Na Flórida, muitas maneiras de recomeçar
povo do que a soma da sucessão de presidentes que o Brasil já te-
ve por vias democráticas. Só não fez mais porque foi boicotado
Bacelar de Araújo, Vera da Silva Telles POR OLIVIER CYRAN pelas potências mundiais (exceto URSS antes da Perestroika) e
teve dificuldades de abastecimento de alimentos e outros insu-
trabalho
20 Quem bate à porta? É o desemprego!
mos básicos. Existe um livro de Lênin chamado Democracia, pa-
ra quem? que denuncia essa situação que enfrenta o Irã frente à
POR CLEMENTE GANZ LÚCIO comunidade internacional. Faz parte da estratégia de marketing
capitalista neoliberal mostrar as minorias que perderam as elei-
disputa regional
22 Democracia no mundo árabe
ções em situação de martírio. Isso é para dizer ao mundo: “Olha
como os socialistas são maus”. Eu não caio nessa.
POR HICHAM BEN ABDALLAH EL ALAOUI Mahmud Hasam _ professor de história, RJ
Le Monde Diplomatique Brasil
conflito israel-palestina
é uma publicação mensal do Instituto Pólis
24 Um olhar sul-africano sobre a segregação Vergonhas revolucionárias
Rua Araújo 124 2º andar – Vila Buarque POR ALAIN GRESH Brilhante o artigo de Serge Halimi, “Elogio às revoluções”, edi-
São Paulo/SP – 01220-020 – Tel.: 11. 2174-2005 ção de maio/2009. E reconfortante, também, pois achei que esti-
diplomatique@diplomatique.org.br nas encostas do himalaia
Assinaturas 26 Everest, um negócio lucrativo
vesse sozinho...
Realmente, tornou-se “politicamente incorreto”, e sobretudo
assinaturas@diplomatique.org.br POR FRANÇOIS CARREL
Tel.: 11. 2174-2000 antimidiático, relembrar a violência – a da esquerda, claro –
Impressão
que mudou o mundo. A impressão que tive – indo à Praça da
comportamento
Posigraf Gráfica e Editora S/A
Av. Senador Accioly Filho, 500
28 Os adolescentes se despem na internet
Bastilha e à Praça da Concórdia – é que os franceses têm vergo-
nha do que fizeram.
CEP 81310-000 – Curitiba/ PR POR ALEJANDRO MARGULIS
Tel.: 41. 3212-5451 Luiz Augusto Michelazzo_jornalista, Altinópolis, SP
Distribuição nacional educação
Fernando Chinaglia Distribuidora S.A.
Av. Eng. Roberto Zuccolo, 74 – Vila Leopoldina
30 Homossexualismo nas escolas elementares
Movimento estudantil
São Paulo/SP – 05307-190 Tel.: 11. 2195-3200 POR RUY CEZAR DO ESPÍRITO SANTO
Também fui diretor do CEUPES (Centro Acadêmico de Ciências
Socias da USP) e fiquei extremamente feliz pelo resgate da tradi-
direitos humanos
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)

Fundador
31 A luta armada e a violência das ditaduras
ção de lutas do movimento estudantil, feito pelo Silvio Caccia
Bava no editorial da edição 24, e pela defesa das companheiras
Hubert Beuve-Méry POR LÚCIO KOWARICK
e companheiros que levaram adiante a jornada de lutas contra
Presidente do Diretório, Diretor da a presença da Polícia Militar no campus da USP e por democra-
Publicação e Diretor de Redação comunicação / américa latina
Serge Halimi 32 Telesur e as mentiras da imprensa privada
cia na universidade.
Sei que a campanha por democracia vai continuar no próximo
Redator-Chefe POR ELSON FAXINA
Maurice Lemoine semestre e o CEUPES vem tendo papel destacado nessa luta. Lan-
çaram uma campanha “use amarelo pela democracia na univer-
conferência nacional de comunicação
1-3, rue Stephen-Pichon 75013 Paris
Tel 33-1-53 94 96 01 | Fax 33-1-53 94 96 26 34 O controle da mídia em debate
sidade”, resgatando a cor histórica do movimento pelas “Diretas
secretariat@monde-diplomatique.fr
POR INTERVOZES Já!”. Deixo a sugestão de que o jornal continue abordando a ques-
tão da luta por democracia na USP.
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus
artes plásticas Felipe U. Moreira_São Paulo, SP
autores. E não, necessariamente, a opinião da coorde-
nação do periódico. 36 Excesso de imagens
POR GUY SCARPETTA
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil:
entrevista / grégoire bouillier
38 Palavras memoráveis
envie suas críticas e sugestões para
diplomatique@diplomatique.org.br
POR MAÍRA KUBÍK MANO As cartas são publicadas por ordem de recebimento e,
se necessário, resumidas para a publicação.
livros
39 Resenhas
Foto da capa: Purestock / Getty Images
ISSN: 1981-7525
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

© Claudius
O funil da informação
POR SILVIO CACCIA BAVA

uem decide o que você pode ver e da informação no seu território de domínio. e geram os conteúdos, interpretações e eles comprovam que este meio de comuni-

Q ouvir? Como você forma sua opi-


nião sobre os acontecimentos re-
centes? Quais são os argumentos
pró e contra que você conhece refe-
rentes a temas tão importantes como a
transposição do rio São Francisco, Angra 3,
o fato de o Brasil ter feito empréstimo ao
Como ignorar que a família Marinho
(Globo) detém a concessão de 32 canais de
televisão e 20 estações de rádio por todo o
Brasil? Que a família Saad (Bandeirantes)
tem outros 12 canais de televisão e mais 21
estações de rádio no país? Ou que Sílvio San-
tos (SBT) também tem 10 canais de TV espa-
análises dos fatos. Esses jornais e suas
agências de notícias municiam jornais re-
gionais e municipais, rádios e, principal-
mente, os noticiários de TV.
Às TVs cabe popularizar a notícia, afi-
nal, mais de 90% das famílias brasileiras
tem um aparelho de TV em casa e, em sua
cação pode ter outros conteúdos.
A internet também é uma nova platafor-
ma de comunicação para gerar e socializar
informações e análises, mas, mesmo com
seu crescimento, chega a pouco mais de 10%
de nossa população.
Um novo marco regulatório é indispen-
Fundo Monetário Internacional, ou ainda lhados pelo território nacional?1 Como igno- grande maioria, é a partir dos seus telejor- sável para garantir o sentido republicano e
sobre o direito à união estável entre pessoas rar que eles se orientam por interesses nais que vão “informar-se” sobre o que acon- democrático da atuação dos meios de co-
do mesmo sexo? privados, muitas vezes em conflito com o in- tece no país e no mundo. municação; novos mecanismos de gestão
A I Conferência Nacional de Comunica- teresse público? Em alguns países, fortalecer a TV públi- democrática e participativa desses meios,
ção, que deve ocorrer em dezembro próxi- As concessões de rádio e TV vêm sen- ca foi o caminho para a democratização da mecanismos efetivos de controle social,
mo, vai tratar dessas e de outras questões. do, há muito, utilizadas como moeda de mídia. Em outros, uma fiscalização mais rí- além de uma maior presença de canais pú-
Ela está sendo preparada por debates em to- troca nas negociações que estabelecem gida das normas que disciplinam as conces- blicos e educativos e a liberação das rádios
do o país e é o primeiro grande momento de alianças políticas. É isso que explica o con- sões, que são renovadas de tempos em tem- comunitárias, entre outras medidas.
colocar em questão o controle da mídia pe- trole dos Magalhães, na Bahia; dos Collor pos, ajudou a garantir uma perspectiva “A mídia deveria ser o alicerce da so-
las elites, um processo que se reforça no de Mello, em Alagoas; dos Barbalho, no republicana e democrática. ciedade democrática, que desafia a autori-
mundo inteiro nos anos 1990. É uma opor- Pará; dos Sarney, no Maranhão; dos Pi- A mídia cumpre um papel fundamental dade e oferece ao povo a oportunidade
tunidade única de a cidadania organizada mentel, no Paraná.2 Pesquisas recentes in- na formação cultural de um povo, nos pa- igual de aprender e participar.”3 A Confe-
impulsionar a democratização da democra- dicam que um terço dos senadores e mais drões de sociabilidade que estabelecem co- rência Nacional de Comunicação abre es-
cia e questionar as atuais estruturas de po- de 10% dos deputados federais eleitos para mo se relacionar com os demais e na afirma- paço para a democratização da comunica-
der que controlam a produção da informa- o mandado 2007-2010 controlam conces- ção de valores que sustentam regimes ção; depende de nós.
ção e a análise dos fatos. sões de radiodifusão. políticos. A diferença de programação entre
Uma sociedade que se quer democrática Este controle da informação e da for- os canais abertos e os canais fechados de TV
não pode ter os canais de TV e os jornais na- mação da opinião pública é um processo demonstra o que nossas elites destinam pa- 1 Fernando Antonio Azevedo, “Mídia e democracia no Brasil:
relações entre o sistema de mídia e o sistema político”. Opin.
cionais controlados por 15 grupos familia- que se desenvolve em várias etapas. Ele ra o grande público, e o que a televisão pode
Pública, vol. 12, nº 1, Campinas, abril/maio de 2006.
res; não pode ter oligarquias regionais que parte da formulação dos principais jornais fazer no sentido de elevar o padrão cultural 2 Maíra Kubík Mano, “Mídia: gênero e poder”, paper, 2009.
exercem um “coronelismo eletrônico” que brasileiros – O Globo, O Estado de S. Paulo, de uma sociedade; ainda que sejam poucos 3 “Mídia e poder”; entrevista com Noam Chomsky, por Re-
assegura às elites e a seus políticos o controle Folha de S.Paulo – que selecionam os temas os canais fechados com boa programação, gina Zappa, s/d.
4 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA

Garantir a soberania
e os recursos naturais
A nova Estratégia de Nacional de Defesa foi elaborada com a intenção de deter o processo de desmonte das
Forças Armadas. A ideia é que o país disponha de capacidade militar para dissuadir um possível ataque, o que
sem dúvida tem um custo com o qual o Estado deve arcar mesmo em situações de paz
POR GERALDO LESBAT CAVAGNARI FILHO*

© Jamil Bittar / Reuters

O Exército deverá reposicionar suas reservas estratégicas no centro do país, de modo que possam ser deslocadas em qualquer direção

N
ão há dúvida de que com o Ministé- meados profissionais despreparados. Ao litar obrigatório. É a primeira vez que ocorre ambas decorrem hipóteses de emprego das
rio da Defesa foi possível estabele- contrário, foram escolhidos profissionais tal abrangência no âmbito do planejamento Forças Armadas. São suposições formula-
cer controle político sobre as For- bem-sucedidos. Se o comandante-chefe não da Defesa. É claro que essa abrangência jus- das para superar a dificuldade de obter al-
ças Armadas, assim como será sabia o que fazer no campo da Defesa, o mi- tifica-se como parte da grande estratégia gum conhecimento antecipado de possíveis
possível alcançar unidade doutri- nistro não sabia o que fazer com as Forças nacional. Nessa perspectiva ampla, esses ameaças militares ao país. E para “garantir a
nária, estratégica e operacional na execução Armadas. E, assim, avançou o processo de vetores deverão ser mobilizáveis desde o soberania, a integridade territorial e o patri-
da política de defesa do país. Mas, se o con- desmonte até meados do segundo mandato tempo de paz. É uma garantia de que o país mônio nacional, e contribuir para elevar o
trole político se efetivou e a normalidade po- do atual governo. Credita-se ao atual minis- disporá de elevado nível de prontidão e de nível de segurança do país”1, duas vertentes
lítica se consolidou, no campo da Defesa, na- tro da Defesa, seguramente, a intenção de uma capacidade de pronta resposta oportu- são consideradas.
da de excepcional ou singular ocorreu até à deter tal processo, junto com o então secre- na e eficaz. Sem dúvida, dispor dessa capa- A vertente preventiva reside na “valori-
divulgação da Estratégia Nacional de Defesa. tário de Assuntos Estratégicos. Como resul- cidade e desse nível de prontidão tem um zação da ação diplomática como instru-
Ao contrário, logo após a criação do Ministé- tado dessa intenção, foi recentemente anun- custo, com o qual o país deverá arcar mes- mento primeiro de solução de conflitos e em
rio da Defesa, nos idos de 1995, teve início o ciada a Estratégia Nacional de Defesa. mo em situação de paz. postura estratégica baseada na existência
processo de desmonte das Forças Armadas. Na Estratégia Nacional de Defesa estão de capacidade militar com credibilidade,
Infelizmente, dos cinco primeiros mi- destacados os principais vetores da Defesa 1 apta a gerar efeito dissuasório”2. A vertente
nistros da Defesa, sem exceção, nada de sig- Nacional: a força militar, a mobilização na- reativa, por sua vez, impor-se-á, no caso de
nificativo aconteceu em suas respectivas cional, a pesquisa no campo da defesa, a in- A Estratégia Nacional de Defesa contem- ocorrer agressão ao Brasil, como exercício
administrações. Para o cargo não foram no- dústria de material de defesa e o serviço mi- pla circunstâncias de paz e de guerra. De de legítima defesa – previsto na Carta das
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 5

Nações Unidas.3 Além disso, o Brasil poderá marítimo do Brasil. Não há dúvida de que a desencorajar qualquer agressão militar uma categoria efetiva no planejamento
envolver-se em conflito de maior extensão – Estratégia Nacional de Defesa deverá ser um ao Brasil. Esperava-se, com isso, dissua- estratégico-militar.
no âmbito da defesa coletiva –, assim como avanço se resgatar a capacidade ofensiva do dir o inimigo de buscar a decisão pela via
em conflitos assimétricos. país. Aliás, já é um avanço a admissão tácita militar num conflito de interesses. Ou 3
Em todas as situações de conflito arma- da possibilidade de conflito armado na defe- convencê-lo da inutilidade de sua oposi-
do, os meios empregados deverão pertencer sa do interesse nacional – na defesa de um ção, caso se impusesse a ação militar pa- Em termos teóricos, pretende-se com a
a mais de uma força singular, sob comando interesse vital para o país. ra garantir os interesses brasileiros. De dissuasão nuclear o aniquilamento da in-
único. Situações que pressupõem, antes de Uma decisão significativa, proposta na certo modo, visava-se evitar o confronto: tenção ofensiva do adversário. Nesse nível,
tudo, a “existência de uma doutrina comum, Estratégia Nacional de Defesa, diz respeito ou pela exibição do dispositivo militar ar- como há o risco de destruição imediata, im-
no nível estratégico e tático”4. ao reposicionamento das Forças Armadas. ticulado no território nacional, ou pela põe-se tal opção – desde que se tenha a ca-
A citada estratégia nacional pressupõe Significativa porque tanto pode garantir capacidade de pronta resposta percebida pacidade de segundo golpe. A dissuasão
o emprego das Forças Armadas “de dife- uma ofensiva ou uma contraofensiva quan- pelo inimigo. convencional (ou clássica) foi introduzida
rentes formas, de acordo com os interesses to pode proporcionar algum efeito dissua- pelos Estados Unidos na década de 1960,
nacionais”5. Elas deverão estar “ajustadas sório à estratégia da Presença. Justifica-se com uma ameaça implícita de ascensão ao
à estatura político-estratégica do país”6 – essa decisão porque as preocupações mais extremo – de ascensão ao nível nuclear.12
ou seja, à sua condição de grande potência agudas de defesa não estão mais no Sul e no
Pela nova concepção No caso do Brasil, a única opção dispo-
regional. Embora não esteja explícito esse Sudeste; estão no Norte, no Oeste e no Atlân- duas áreas marítimas nível é a dissuasão convencional, que impli-
perfil, essa dimensão de potência é ine- tico Sul. deverão merecer atenção ca o temor de ser vencido. No entanto, dian-
quívoca, sustentada pela superioridade Pela nova concepção estratégica, duas te de inimigo muito fraco, é possível
econômica, tecnológica e militar do Brasil áreas marítimas deverão merecer atenção especial da Força Naval: aniquilar sua intenção ofensiva. Convém es-
na América do Sul – e, sobretudo, pelo seu especial da Força Naval: a faixa que vai de a faixa que vai de Santos a clarecer que as forças convencionais têm
perfil geopolítico. Santos a Vitória e a área em torno da foz do Vitória e a área em torno “alcance apenas para dissuadir um conflito
É verdade que ameaças militares aos rio Amazonas. limitado”.13
interesses nacionais, concretas e defini- O Exército, por sua vez, deverá reposi- da foz do rio Amazonas Dissuasão e ação são dois conceitos
das, não são percebidas na área de interes- cionar suas reservas estratégicas no centro opostos que estão intimamente ligados e
se do Brasil. Nem mesmo ameaças de ou- do país e, nas respectivas áreas, suas reser- são complementares. A dissuasão substitui
tra natureza que poderiam implicar vas regionais – de modo que possam ser O conceito de dissuasão convencional a ação num momento de expectativa, mas
retaliação militar. Por enquanto – e por deslocadas em qualquer direção. Ou seja: o ou clássica foi introduzido na doutrina mili- não exclui nem afasta a possibilidade da
muito tempo – a América do Sul continua- Exército manterá suas reservas estratégi- tar brasileira na segunda metade da década ação. A permanência da dissuasão deve im-
rá como área de estabilidade político-es- cas e regionais articuladas em dispositivos de 1970 para ser utilizado como categoria plicar, necessariamente, a possibilidade da
tratégica. Quanto ao Atlântico Sul, a IV de expectativa. do planejamento estratégico-militar.11 Pre- ação militar – da violência explícita. A ação
Frota dos EUA deverá ser mais eficaz que a É por isso que, além de atribuir mis- tendia-se com sua adoção, à época, manter militar impõe-se, quando necessária, antes
Resolução 44/11 da ONU na manutenção sões de vigilância e de superioridade aérea uma força militar ofensiva, apta a emprego que o inimigo nos prive da liberdade de ação.
dessa estabilidade.7 local à Força Aérea, dever-se-á dar a ela os imediato e capaz de desencorajar qualquer Sem essa liberdade de ação, nossa capacida-
Quanto às vulnerabilidades da atual meios para proporcionar mobilidade es- agressão militar ao país. de ofensiva fica comprometida. Assim, ante-
estrutura de defesa do país, são significati- tratégica às operações terrestres. Sem essa A dissuasão deveria funcionar pela ca- cipar-se à agressão do inimigo é tanto a ga-
vas aquelas que dizem respeito à intermi- mobilidade, a Força Terrestre dificilmente pacidade de pronta resposta, que não se li- rantia dessa liberdade quanto da eficácia da
tência na alocação de recursos orçamen- terá condições de evoluir, em tempo opor- mitaria a deter o golpe do adversário, mas ação ofensiva.
tários, ao defasado nível tecnológico do tuno, de um dispositivo defensivo para teria impulso suficiente para obter a deci- Não há dúvida de que a estratégia da
material de defesa, ao elevado grau de de- um dispositivo ofensivo. Não se terá a são no teatro de operações, se necessário. Dissuasão ocupa uma posição central na
pendência de produtos de defesa importa- oportunidade de empregar uma estratégia No entanto, não era considerada a possibi- atual estratégia militar brasileira. Ela é con-
dos, às deficiências nos programas de fi- operacional convencional centrada na lidade de atingir o centro de gravidade, ou siderada a chave da defesa nacional porque
nanciamento para empresas fornecedoras manobra em linhas interiores – na mano- um interesse vital do adversário – com é um dos dois pressupostos fundamentais
de produtos de defesa e aos bloqueios tec- bra em posição central.10 uma resposta capaz de aniquilar sua von- citados na Estratégia Nacional de Defesa.14
nológicos impostos por países desenvolvi- tade de lutar ou levar ao colapso seu siste- Em tese, a dissuasão convencional visa ape-
dos, entre outras.8 É claro que os efeitos de 2 ma de defesa. nas demover o provável inimigo da ação
tais vulnerabilidades refletem-se tanto no Ao adotar a dissuasão convencional co- ofensiva – sem descartar, se necessário, a re-
nível de prontidão quanto na capacidade Nas décadas de 1960-1990, no nível da mo categoria estratégica, as Forças Armadas taliação. Apesar de a dissuasão ocupar uma
de pronta resposta das Forças Armadas, grande estratégia a atitude prevista era a pretendiam, apenas, em face de possibilida- posição central na atual estratégia militar
comprometendo até mesmo a eficácia das defensiva; no nível da estratégia militar ela de de agressão por um ou mais países sul- brasileira, ela não se sustenta sem a possibi-
estratégias operacionais nos respectivos sempre foi ofensiva. Se houvesse a possibi- americanos, manter a estabilidade estraté- lidade real da ação ofensiva.
teatros de operação. lidade de conflito armado, o Brasil deveria gico-militar na frente continental. Face a Portanto, a capacidade ofensiva deve ser
O fulcro da Estratégia Nacional de De- ter a iniciativa de antecipar as operações tais adversários, o Atlântico Sul era conside- o fundamento da Defesa Nacional, assim co-
fesa são as estratégias militares, identifi- militares, para que estas fossem realizadas rado uma frente secundária. Embora sua ca- mo a estratégia da Ofensiva deve ser o recur-
cadas como estratégias da Dissuasão, da e mantidas fora do território nacional. Ou pacidade militar fosse precária e em ne- so último para alcançar a decisão militar no
Presença, da Resistência e da Ofensiva. seja: buscar-se-ia a configuração da zona nhum momento lograssem alcançar teatro de operações. Na perspectiva da ação,
Com a primeira busca-se dissuadir “a con- de combate no território do inimigo, man- capacidade ofensiva para sustentar a dissu- essa estratégia é determinante na escolha
centração de forças hostis nas fronteiras tendo a zona de administração do teatro de asão, as Forças Armadas eram suficientes dos meios e na definição do nível de pronti-
terrestres, nos limites das águas jurisdi- operações no território nacional – até o para estabelecer uma defesa relativamente dão e da capacidade de pronta resposta.
cionais brasileiras, e impedir-lhes o uso do aprofundamento da ofensiva. A ofensiva satisfatória do território nacional. Aliás, com
espaço aéreo nacional”9. Sem dúvida, a es- impunha-se para garantir resultados deci- os meios que o país possuía, a dissuasão era *Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, fundador e membro
tratégia da Dissuasão poderá ser eficaz em sivos na fase inicial da guerra, para assegu- praticamente impensável. Na realidade, fa- do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp.
face de qualquer país sul-americano. Com rar condições favoráveis a posteriores ne- ce à carência de recursos, o planejamento
a estratégia da Presença – ou melhor, com gociações. Em caso contrário, o cessar-fogo estratégico-militar buscou alcançar capaci-
um dispositivo militar articulado e desdo- só deveria ser aceito depois de restabeleci- dade de pronta resposta contra uma agres-
brado em regiões decisivas e sensíveis do da a integridade territorial. A estratégia da são concreta – e não capacidade de aniquila-
território nacional – busca-se, também, al- Ofensiva era nada mais que uma resposta mento da vontade de lutar.
gum efeito dissuasório face aos países sul- que se impunha caso a dissuasão não pro- No período de 1960-1990, embora já se 1 a 6 Ver Estratégia Nacional de Defesa.
7 A Resolução 44/11, aprovada pela XLI Assembleia Geral
americanos mais fracos. duzisse o efeito desejado – isto é, o aniqui- tivesse uma concepção geral de emprego
da ONU em 27 de outubro de 1986, declarou o Atlântico
Em face de alguma grande potência, nu- lamento da vontade de lutar. avançada, as Forças Armadas apresenta- Sul como zona de paz e cooperação. A delimitação dessa
clear ou não, alguma eficácia operacional Na mesma época, nas décadas de 1960- vam uma realidade deprimente, que foi zona inclui os países atlânticos da América do Sul e da
poderá ser alcançada com a estratégia da 1990, a estratégia da Presença recomenda- agravada com o processo de desmonte a África Subsaariana, não se estendendo ao Sul além do
Resistência – mas sem garantia efetiva de vi- va, da forma mais ampla possível, a pre- que foram submetidas desde 1995. Eis a paralelo 60, a partir do qual inicia a área de aplicação do
Tratado da Antártida.
tória militar. É claro que é a estratégia ade- sença das Forças Armadas em todo o realidade em tais décadas: capacidade
8 e 9 Ver Estratégia Nacional de Defesa.
quada para o teatro de operações amazôni- território nacional, para assegurar a esta- ofensiva insuficiente para pronta respos- 10 Em linhas gerais, a manobra em posição central consiste
co, sem dúvida o ambiente apropriado para bilidade da ordem interna, a integridade ta; baixo nível de operacionalidade; con- em adotar comportamento defensivo em todas as partes,
a guerra assimétrica. Dadas suas caracterís- territorial e a integração nacional. Desse dições insuficientes para participar de menos em uma, onde se vai tomar uma atitude ofensiva;
ticas, a resistência pressupõe a expectativa modo, a adequada distribuição dos meios uma guerra convencional de média in- depois de bater uma das forças do adversário, atua-se
contra as demais, antes que elas se concentrem.
de um conflito prolongado e fôlego para sus- militares pelo território compensaria a de- tensidade; baixa mobilidade estratégica e 11 Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, “Estratégia e defesa
tentá-lo e vencê-lo. Por último, tem-se a es- ficiência de mobilidade estratégica, por deficiente apoio logístico. Perante essa (1960-1990)”, em José Augusto Guilhon Albuquerque
tratégia da Ofensiva, que pressupõe ser ado- estar a força militar próxima das regiões realidade, se a estratégia da Presença não (org.), Sessenta anos de política externa brasileira (1930-
tada se a dissuasão falhar – ou como evolução onde se fizesse necessária. apresentava a possibilidade de evoluir de 1990), v.4, São Paulo, Annablume/Nupri – USP, 2000.
A estratégia da Dissuasão, por sua vez, um dispositivo de expectativa para um 12 Raymond Aron. Pensar a guerra, Clausewitz, v.2, Brasília,
da estratégia da Presença. Mas poderá ser
Editora Universidade de Brasília, 1976, p.149.
adotada, também, em situações de crise ou deveria apoiar-se na manutenção de for- dispositivo ofensivo em tempo oportuno, 13 André Beaufre, Disuasión y estrategia, Buenos Aires, Edi-
de conflito armado, direcionada tanto para ças suficientemente poderosas e aptas ao a estratégia da Dissuasão, por sua vez, foi torial Pleamar, 1964, p.59.
o entorno terrestre quanto para o entorno emprego ofensivo imediato, capazes de mais um recurso de retórica militar que 14 Ver Estratégia Nacional de Defesa.
6 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA

O PAC das Forças Armadas


Depois de um período em que as Forças Armadas passaram a pão e água, nos anos 1990, o governo brasileiro
lança a Estratégia Nacional de Defesa, que tem como um dos seus pilares dinamizar a indústria bélica para
atender as necessidades nacionais e exportar armas e equipamentos principalmente para a América do Sul
POR SILVIO CACCIA BAVA*

O
Brasil abriga riquezas cada vez mais
escassas e cobiçadas pelo mundo:
água, energia, alimentos e mine-
rais. Com a descoberta das gigan-
tescas reservas de gás e petróleo do
pré-sal, essa cobiça se tornou ainda maior.
Por esse motivo, o país precisa defender a
floresta amazônica e suas reservas de água
potável e de energia, enfrentando a compe-
tição global pelo petróleo e a disputa regio-
nal pelos aquíferos.
É com essa visão que o governo brasilei-
ro elabora a Estratégia Nacional de Defesa
(END), sancionada por decreto presidencial
em 18 de dezembro de 2008. Seus principais
objetivos são a reorganização das Forças Ar-
madas, a reestruturação da indústria brasi-
leira de material de defesa e uma nova políti-
ca de composição dos efetivos militares.
O Brasil tem 16.886 quilômetros de fron-
teiras territoriais e 7.367 quilômetros de
fronteiras marítimas. Reforçar o controle e
fiscalização dessas áreas e defender, no
Atlântico Sul, as águas territoriais brasilei-
ras, assim como proteger a Amazônia brasi-
leira, são objetivos que requerem novas es-
tratégias e recursos.
A END prevê que nos próximos 20 anos
haverá uma alocação contínua e substanti-
va de recursos para compra, mas principal-
mente para a produção nacional de equi-
pamentos, fortalecendo assim a Base
Industrial de Defesa (BID), debilitada nos
anos 1990 pela ausência de políticas que a
sustentasse e pela falta de investimentos
nas Forças Armadas.
Segundo a Abimde (Associação Brasilei-
ra das Indústrias de Materiais de Defesa e
Segurança) – que tem 82 empresas associa-
das, se consideradas também as indireta-
mente envolvidas com a produção de equi-
© Bruno Domingos / Reuters

pamentos militares –, a BID poderá contar


desde já com cerca de 300 empresas.1
O desafio, entretanto, é que a BID não se
sustenta apenas com as demandas do mer-
cado interno, como já se viu no passado. É
preciso ganhar escala e exportar armas e
equipamentos militares.
Nos anos 1980 a indústria bélica brasi-
leira estava entre as 10 mais importantes do Os caças Skyhawk irão formar a esquadrilha do porta-aviões São Paulo
mundo. A Engesa vendia caminhões e blin-
dados Cascavel e Urutu para as Américas, a
Ásia e a África. À época, o seu tanque Osório
era tido como um dos melhores. A Avibrás mente debilitada em razão da paralisação Sua revitalização depende de um esfor- CAÇAS DE ÚLTIMA GERAÇÃO
comercializava foguetes Astros II para o da década passada. Para reativar essa in- ço de modernização, tornando-a tecnolo- As notícias que dão conta do acordo mi-
Oriente Médio. O Tucano, avião de treina- dústria, o governo Lula aprovou, em julho de gicamente atualizada, competitiva, inova- litar entre a França e o Brasil anunciam a
mento da Embraer, foi adotado pela França e 2005, a Política Nacional da Indústria de De- dora e diversificada. É com esses objetivos compra, pelo Brasil, de 36 aviões de ataque
pela Inglaterra. fesa, envolvendo isenções tributárias, forta- que o Brasil, nos últimos anos, tem procu- franceses, de alta tecnologia, o Rafale F3. O
O Brasil chegou a exportar armas para lecimento do setor privado, incorporação de rado parcerias com a França, Alemanha, primeiro Rafale foi incorporado à Força Aé-
32 países. A Engesa forneceu blindados so- novas tecnologias e fomento à exportação. Inglaterra e Estados Unidos. Suas tentati- rea francesa em 2001, que conta atualmente
bre rodas para 22 países, entre eles Líbia, Os resultados já se fazem sentir. Suas ex- vas vinham esbarrando na negativa desses com 70 caças desse tipo e projeta ter 294 uni-
Arábia Saudita e Iraque. Sua falência, nos portações em 2005 foram de US$ 300 mi- países em transferir tecnologia. Recente- dades em operação no médio prazo.
anos 1990, se deveu a um calote de US$ 110 lhões, e em 2008 somaram US$ 750 milhões, mente, entendimentos com o governo fran- Na fase final da concorrência – um negó-
milhões dado por Saddam Hussein e a frus- a maior parte, no entanto, composta por cês abriram novas perspectivas, consolida- cio de mais de US$ 2 bilhões em que foram
tração de um contrato de venda de 300 tan- equipamentos militares leves, como revól- das em um acordo de cooperação, firmado pré-selecionados também suecos (Saab) e
ques Osório para a Arábia Saudita. veres, metralhadoras pequenas e carabinas no final de 2008, que compreende várias americanos (Boeing) – um elemento decisi-
O fato é que a BID encontra-se extrema- produzidas pela CBC, Taurus e Imbel. frentes e iniciativas. vo para a escolha dos franceses foi a disposi-
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 7

ção de transferência de tecnologia. As pro- alemã, foram fabricados quatro IKL-209. O D’Ávila, foi incorporado à Marinha brasilei-

ilustração andres sandoval


postas foram evoluindo durante as último, o Tikuna, foi incorporado em de- ra em maio de 2008. Estas embarcações são
negociações e chegaram ao ponto da Das- zembro de 2005. destinadas a operações anfíbias, ribeirinhas
sault, a fabricante do Rafale, se dispor a pro- Com um comprimento de 62 metros e e de apoio logístico móvel.
duzir no Brasil esse caça de última geração, diâmetro do casco de 6,20 metros, o subma-
criando uma linha de montagem para tanto rino Tikuna desloca 1.550 toneladas sub- PORTA-AVIÕES
e estabelecendo parcerias com mais de 50 merso e atinge velocidades superiores a 20 Neste cenário de reaparelhamento das
empresas nacionais, com destaque para a nós, além de operar em profundidades Forças Armadas, não se pode ignorar a res-
Embraer. A depender do armamento que os maiores que 200 metros. Com uma tripula- tauração do porta-aviões São Paulo, com
caças vão transportar, o negócio pode até ção de 7 oficiais e 29 praças, o submarino novos sistemas e equipamentos, que volta à
dobrar de valor. possui 8 tubos de torpedo e é movido por ativa em 2010 com esquadrões de helicópte-
Esse acordo de cooperação é também propulsão diesel-elétrica. Além dos torpe- ros e caças Skyhawk. O São Paulo tem capa-
um investimento em longo prazo, pois a in- dos, o Tikuna também poderá usar minas cidade para transportar 17 helicópteros e 22
tenção da Força Aérea Brasileira é substituir navais acústico-magnéticas MCF-01/100 fa- caças. É a maior embarcação da Marinha
toda sua frota de ataque pelo Rafale, o que bricadas pelo Instituto de Pesquisas da Ma- brasileira e coloca o Brasil entre os nove paí-
significa algo entre 120 e 150 aviões a ser rinha. O Tikuna é capaz de navegar 11 mil ses no mundo que possuem porta-aviões.
produzidos até 2025. Em uma iniciativa pa- milhas na velocidade econômica de 8 nós.
ralela, o Brasil, em cooperação com a África Submerso, o navio pode cobrir 400 milhas a CARROS DE COMBATE
do Sul, está desenvolvendo um míssil de mé- 4 nós, sem precisar subir à superfície.4 A disposição de reaparelhar as Forças
dio alcance, o A-Darter, como opção de ar- A vantagem na escolha do Scorpène é a Armadas levou o Exército brasileiro, em de-
mamento para esses novos caças.2 sua facilidade de transição para o submari- zembro de 2006, a comprar da Alemanha
no nuclear, a grande ambição brasileira. 250 carros de combate Leopard 1 A5, cujo
HELICÓPTEROS Seu casco hidrodinâmico, projetado para primeiro lote de 60 unidades está sendo en-
O acordo França-Brasil prevê também a alto desempenho em velocidade e mano- tregue este ano. No horizonte, se coloca a
compra de 51 helicópteros EC 725 Cougar. bra, é derivado do submarino nuclear Rubis/ possibilidade de sua produção no Brasil.
Um helicóptero com duas turbinas, da clas- Amethyste, mas mais compacto. O Scorpè- A versão 1 A5 é a mais moderna da famí-
se de 11 toneladas, rápido, com grande volu- ne utiliza tecnologias dos submarinos nu- lia Leopard 1, com avançados sistemas de
me para carga e acomodações, permitindo o cleares franceses, como o sistema de com- controle de tiro, visão noturna ampliada pa-
transporte de até 29 combatentes, além dos bate Subtics. ra atirador e comandante do carro, blinda-
2 pilotos. É um veículo tático de transporte Como o acordo França-Brasil prevê, é da gem reforçada na torre e suspensão reforça-
de tropas, para ataque ou evacuação de responsabilidade da Marinha brasileira o da. O A5 é capaz de disparar munições mais
combatentes. Foi incorporado à Força Aérea desenvolvimento do reator nuclear, que de- potentes que a versão A1 (da qual o Brasil
Francesa em fevereiro de 2005. ve entrar em operação em 2013. Um acordo conta com 128 unidades), utilizando muni-
A Helibrás, em Itajubá, Minas Gerais, entre a Argentina e o Brasil, firmado em fe- ção capaz de penetrar todos os tipos de blin-
irá construir esses helicópteros. Para isso, vereiro de 2008, pode acelerar esse processo. dagem atualmente em uso.
a Eurocopter investirá US$ 400 milhões na Os dois países pretendem criar uma empre-
montagem de uma linha de produção bra- sa binacional de enriquecimento de urânio, A INTEGRAÇÃO MILITAR DA AMÉRICA DO SUL
sileira, numa transferência completa de construir um modelo de reator nuclear e es- O Conselho de Defesa Sul-Americano,
tecnologia. A Eurocopter é uma empresa tabelecer um ciclo de combustível nuclear órgão da Unasul criado em março deste
do grupo franco-alemão EADS. Os primei- em conjunto. Nesse acordo também está ano, pode cumprir um papel estratégico na
ros helicópteros serão entregues em 2010. previsto o lançamento de um satélite para afirmação da BID brasileira. Entre seus ob-
Exército, Marinha e Aeronáutica recebe- monitorar a costa e o oceano.5 jetivos está “fomentar a cooperação militar
rão 17 unidades cada. regional e as bases industriais de defesa”.
Nas palavras do diretor do Departamen- FRAGATAS Para tanto, será feito um inventário das ca-
to de Defesa da Fiesp, Jairo Cândido, as em- Ainda dentro do acordo França-Brasil pacidades militares e se buscará uma pa-
presas brasileiras fornecerão todas as peças: serão construídas 6 fragatas, da classe dronização de equipamentos que permi-
“A ideia é conseguirmos um índice de nacio- Fremm, nos estaleiros do Arsenal da Mari- tam o consumo de materiais e serviços em
nalização próximo de 100%. Isto é um proje- nha, no Rio de Janeiro, que para tanto so- grande escala. Ao buscar a BID regional, o
to superior a US$ 1 bilhão3”. frerá um processo de modernização. O Brasil tenta convencer seus sócios, acenan-
custo previsto desta iniciativa supera os do com a possibilidade de exportação para
SUBMARINOS US$ 2 bilhões. outros continentes.
Segundo alguns analistas, a parte mais A fragata Fremm é um navio de 137 me- Segundo dados do Balanço Militar da
importante do acordo França-Brasil é a tros de comprimento com uma tripulação América do Sul em 2008, de 2003 a 2008 os
construção de quatro submarinos conven- de 108 pessoas. Movida por uma turbina a investimentos em tecnologia militar na re-
cionais da classe Scorpène, além de um cas- gás General Electric/Avio, permite uma ve- gião passaram de US$ 24,7 bilhões para US$
co maior – desse mesmo modelo – para aco- locidade máxima de 27 nós (50 km/h), ou 47,2 bilhões. O fato é que os gastos com defe-
modar o reator nuclear desenvolvido pela ainda, em operação silenciosa, a velocidade sa na América do Sul têm crescido substan-
Marinha brasileira. Estes submarinos serão de 15 nós (28 km/h). A autonomia é de 11 mil cialmente na última década, e analistas di-
produzidos no Brasil e, para tanto, será pre- quilômetros. zem que esta tendência vai continuar, apesar
ciso construir um novo estaleiro e uma nova Essas novas fragatas multimissão são as da crise mundial. Em 2008, os 12 países sul-
base naval. O custo total previsto para esse mais modernas, foram concebidas a partir americanos gastaram US$ 50 bilhões em de-
projeto é da ordem de US$ 9 bilhões.
O submarino nuclear brasileiro per-
de um consórcio franco-italiano assinado
em novembro de 2005. Os navios apresen-
fesa, sendo que deste total, US$ 15 bilhões
foram para novos investimentos e manu- PARTICIPACAO
CIDADA
mitirá uma nova estratégia: a da mobili- tam duas versões distintas, para atacar sub- tenção de bens e serviços.6
dade, a de estar presente em qualquer marinos e para atacar alvos em terra. Com Com a implantação da Base Industrial
área de interesse da Marinha. Sua grande armamento pesado, a fragata terá capacida- de Defesa da América do Sul, o Brasil e a Ar-
velocidade, que pode ser utilizada por de de combate antiaéreo, com lançador ver- gentina tendem a se beneficiar com suas li-
tempo ilimitado, sua possibilidade de es-
tar submerso por meses e seu combustí-
tical para 32 mísseis Áster 15 e, em outra ver-
são, para lançar mísseis a mil quilômetros
nhas de produtos com maior variedade e
modernidade, como os que serão desenvol- VOCÊ TEM
vel que demora de 6 a 10 anos para ser
consumido, criam novas condições de
defesa dos interesses nacionais.
de distância.
O acordo franco-brasileiro é o mais
abrangente, mas outras iniciativas anterio-
vidos pelo Brasil no acordo de cooperação
com a França. MUITO A VER
A Marinha brasileira já identificou no li-
toral sul do Rio de Janeiro, na baía de Sepeti-
res já indicavam a disposição do governo
brasileiro de modernizar e melhor apare-
*Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique
Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.
COM ISSO
ba, o local para a construção deste novo lhar as Forças Armadas.
complexo naval. O índice de nacionalização
na produção dos Scorpène será bastante ele- NAVIOS DE DESEMBARQUE 1 Roberto Godoy, “Governo vai incentivar indústria militar”,
vado, com milhares de itens produzidos por Este ano foi incorporado à Marinha bra- Defesanet.com.br
2 Roberto Godoy, “Decisão sobre caça sai em agosto”, O
mais de 30 empresas brasileiras. O interesse sileira o Almirante Sabóia, um navio de de- Estado de São Paulo, 23 julho 2009.
nacional é de que empresas francesas trans- sembarque pesado, de origem britânica, que 3 Defesa Brasil.com, “Indústira bélica de volta”, 06 setem-
firam a empresas brasileiras a capacidade tem uma porta de proa que permite o enca- bro 2008.
de fabricação dos equipamentos necessá- lhe na praia e a colocação direta em terra de 4 Defesa Brasil.com
5 Observatório Cone Sul de Defesa e Forças Armadas, In-
rios aos Scorpène. até 16 tanques pesados, 34 veículos de vários
forme Brasil nº 281, 23-29 setembro 2008.
Vale lembrar que o Brasil já constrói sub- tipos, entre eles os de transporte e blindados 6 Cláudio Dantas Sequeira, “Brasil busca alinhamento
marinos no Arsenal da Marinha do Rio de leves, além de levar até 534 militares. Outro militar na América do Sul”. Folha de S.Paulo, 22 mar-
www.POlIS.ORg.bR
Janeiro. Com transferência de tecnologia navio da mesma classe, o NDCC Garcia ço 2009.
8 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

CRISE POLÍTICA EM HONDURAS

Por trás do golpe


No final do século XX, os países hegemônicos impuseram à América Central e Honduras um novo futuro: seriam
“democracias” e assinariam tratados comerciais desiguais. Porém, quando Manuel Zelaya Rosales assumiu a
presidência ele não se ateve a esse plano e colocou o país no rumo da Alba, contrariando interesses poderosos
POR JUAN ALMENDARES*

© Bruno Barbosa

Durante todo o més de julho apoiadores de Manuel Zelaya, chamado apenas de “Mel”, exigiram a volta do presidente deposto

H
onduras é um pequeno colibri cer- prisões, os assassinatos de jovens, o comér- PASSADO RECENTE Novamente nosso território e governo se
cado por falcões e vigiado pelo cio de órgãos e o tráfico sexual de meninas A história de colonização de Honduras transformaram em servos da política ameri-
maior caçador do planeta. Desde o ou os escândalos de corrupção. No entanto, compete com a da Nicarágua1 em número cana, com uma das bases militares mais im-
século XIX, as entranhas da Terra agora a palavra “Honduras” ecoa em todos de invasões dos marines americanos e em- portantes da América Latina, constituindo-
Mãe hondurenha foram torturadas os cantos do globo porque, em pleno século busteiros modernos. Em novembro de se em uma plataforma de agressão contra a
pelas companhias mineiras, bananeiras e XXI, sofreu um golpe militar condenado por 1981, depois de 18 anos de golpes militares Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Não
multinacionais. Com duro sarcasmo chama- quase 100% dos países do mundo, pela Or- financiados e promovidos pelos Estados era novidade: em 1954, 25 anos antes, o co-
ram o país de “república bananeira” e pátria ganização dos Estados Americanos (OEA) e Unidos, foram organizadas eleições e Ro- ronel Carlos Castillo Armas tinha usado o
alugada – slogans com os quais se ocultou a pelas Nações Unidas. berto Suazo Córdova, do Partido Liberal, território hondurenho como área de treina-
verdade do sofrimento histórico e das lutas Qual é a verdade da história do golpe conquistou a presidência. Era um governo mento e retaguarda para a derrubada do
de um dos povos mais pobres do mundo. militar? Quem o realizou? Quem o está com cara civil, mas coração militar, que ti- presidente guatemalteco Jacobo Arbenz.
No final do século XX, os países hege- apoiando? Por que os golpistas se mantêm nha como chefe das Forças Armadas o ge- Ainda em 1981, um emissário da polí-
mônicos impuseram à América Central e firmes desafiando a comunidade interna- neral Gustavo Álvarez, treinado com os tica de Ronald Reagan, John Dimitri Ne-
Honduras um novo futuro: serão “democra- cional? É um golpe inesperado ou é um pro- agentes da ditadura argentina e partidário groponte, ex-assessor de Inteligência na
cias” e assinarão tratados comerciais desi- cesso devidamente planejado? É o início de da doutrina de Segurança Nacional. Na- Guerra do Vietnã, foi nomeado embaixa-
guais. Somos uma nação ignorada, invisível novos golpes militares na América Latina? quela época, o Congresso dos EUA apro- dor dos EUA em Honduras. Durante sua
para a comunidade internacional. Nosso Qual é a resposta do povo hondurenho vou a instalação em Honduras da base mi- gestão foram ativados os esquadrões da
nome é escutado somente quando existem frente a todo esse desrespeito? Foram viola- litar de Palmerola, que posteriormente foi morte, e vários dirigentes populares aca-
desastres naturais – como os furacões Fifí e dos os direitos humanos? Enfim, qual é o aprovada pelo Congresso Nacional da Re- baram assassinados ou desaparecidos
Mitch – e político-sociais – os massacres nas futuro de Honduras? pública de Honduras. pelas mãos dos militares hondurenhos,
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 9

treinados na Escola das Américas, pelo radores para criar terror no povo hondure- militar americana na costa hondurenha, já excluída do poder, tanto em nível eleitoral
exército chileno de Augusto Pinochet e nho e inventaram as mentiras mais irracio- que Palmerola se transformaria em aero- como na vida prática destes organismos.
pelos militares argentinos. nais, alimentando a ideia de que viriam os porto civil. Isso explica o medo que “os poderes demo-
Foram definidos então dois inimigos: o “comunistas” comer as crianças e tirar as Outra questão que não quer calar é se o cráticos” sentem frente à consulta popular
interno, que era preciso eliminar, e o exter- casas dos cidadãos. Satanizaram a figura embaixador Hugo Llorens tem algo a ver que propunha o presidente Zelaya.
no, que deveria ser invadido – neste caso os dos presidentes Hugo Chávez e Daniel Orte- com o golpe de Estado. A pergunta acaba Esses absurdos não conseguiram ocul-
já citados Nicarágua, El Salvador e Guate- ga como prováveis invasores do país e cria- sendo ingênua porque ele é o representante tar que sujeitos militares armados até os
mala. Segundo esta doutrina, os únicos ram a imagem de um inimigo externo em local da política exterior dos Estados Uni- dentes sequestraram um presidente da Re-
amigos eram o exército hondurenho e o guerra contra nosso povo. dos, tanto no governo de Bush quanto no de pública e aterrorizaram sua família, violan-
americano. A base militar em Palmerola Essas empresas midiáticas estabelece- Barack Obama. O jornal golpista La Prensa, do as leis constitucionais desde o momento
transformou-se na sede da Força-Tarefa ram contatos diretos, antes do golpe mili- referiu-se a ele em sua edição de 22 de junho em que Zelaya não teve direito a nenhuma
Conjunta “Bravo” (JTF-B) dos Estados Uni- tar, com o cubano-americano Otto Reich, de 2009: publicou notícia sobre uma reu- defesa. Tampouco apagaram o fato de ter se
dos, que coordenava as operações da con- ex-secretário de Estado adjunto de George nião, no dia anterior, entre os principais lí- somado a isso o estado de sítio e a suspensão
trarrevolução nicaraguense a partir da zona Bush para o hemisfério ocidental, e o vene- deres políticos do país, militares e o embai- de todas as garantias constitucionais; a per-
de Trojes, próxima à fronteira. zuelano Robert Carmona Borjas, da Fun- xador dos Estados Unidos para “buscar uma seguição de funcionários e dirigentes popu-
O general Gustavo Álvarez, Negropon- dação Arcádia, que tinham interesse em se saída à crise da consulta” [popular, sobre a lares – mais de 200 detidos, feridos, golpea-
te, Oliver North e a CIA trabalharam em es- apoderar da Empresa Hondurenha de Te- possibilidade de mudar a Constituição, que dos brutalmente pelas forças armadas; a
treita relação. A primeira de muitas tarefas lecomunicações. Borjas, aliás, foi advoga- seria realizada em 28 de junho]. militarização e o fechamento de empresas
foi desarticular os movimentos sociais, vio- do do golpista venezuelano Pedro Carmo- Segundo o jornal, a reunião se realizou de rádio e televisão e outros meios de comu-
lar a autonomia universitária e reprimir os na, em 2002. na sede diplomática americana. Participa- nicação, e a perseguição de jornalistas opo-
dirigentes populares. Os “Contra” nicara- ram o presidente Manuel Zelaya, Roberto sitores ao regime.
guenses, os esquadrões da morte, os agentes Micheletti, os candidatos presidenciáveis – o
de Pinochet e da ditadura Argentina, os sol- No início de junho, o ex- liberal Elvin Santos e o nacionalista Porfirio RESISTÊNCIA POPULAR
dados treinados na Escola das Américas e o Lobo Sosa – e o chefe do Estado-Maior, Ro- Apesar da condenação mundial ao golpe
exército americano foram responsáveis por diretor do Departamento meo Vásquez Velásquez. Durante a conver- militar, das resoluções da OEA e da Assem-
assassinar e violentar não somente hondu- de Inteligência Nacional sa, foi dito a Zelaya que a melhor saída era bleia Geral das Nações Unidas, em vez de re-
renhos, mas também parte dos revolucio- que “anulasse a consulta”, amordaçando as- correr a um organismo internacional para
nários centro-americanos. Os manuais de
do governo Bush e atual sim a liberdade de expressão do povo hon- mediar a solução do conflito, a negociação
tortura da CIA foram experimentados co- assessor de Hillary Clinton durenho. O poder religioso, por seu lado, pa- foi desviada pelo governo americano para
nosco muito antes de serem aplicados na chegou em Honduras. rece ter se inspirado em uma versão bastante seu amigo incondicional e partidário dos
guerra do Iraque. sui generis de um refrão popular: “A Deus pe- tratados de livre comércio (TLCs), o presi-
O que será que ele fazia lá? dindo e com a culatra batendo”. dente da Costa Rica, Óscar Arias, Prêmio
NOVOS TEMPOS Fica a dúvida: para a hierarquia religiosa, Nobel da Paz. Citamos seu pensamento a
Em 27 de janeiro de 2006, assumiu o po- evangélica e católica, aconteceu ou não um respeito dos TLCs: “Os que andam de bici-
der o presidente Manuel Zelaya Rosales, do Também mantinham relações com as golpe militar em Honduras? Qual é a verdade cleta, com o livre comércio, andarão de mo-
mesmo Partido Liberal do ex-governante Su- fundações da CIA – a National Endowment da Igreja frente ao poder golpista? Ou a Igreja tocicleta BMW, e os que andam de Hyundai,
azo Córdova. Durante a sua gestão, Zelaya Foundation (NED) e a União de Organiza- promove e justifica o golpe em nome da lei e andarão de Mercedez Benz. E pergunto, se o
cometeu vários pecados: desafiou as oligar- ções Democráticas da América Latina, fi- da ordem? Qual é a posição real da Igreja pe- tratado não for aprovado: onde vão traba-
quias e a burguesia nacional, donas dos nanciada pela NED, formada por ex-mili- rante este regime e seus propulsores? Por que lhar os filhos de todos vocês e de todos os
meios de comunicação; desnudou a pseudo- tares –, além das igrejas ultraconservadoras a Igreja se reúne com John Dimitri Negro- costa-riquenhos?”.
democracia; aumentou o salário mínimo dos EUA. Durante os primeiros dias de ju- ponte e com os alunos de Pinochet e da Esco- Nas negociações com Arias, os golpis-
dos funcionários públicos e promoveu a nho de 2009, pouco antes do golpe militar do la das Américas, que participaram do assas- tas se mostraram intransigentes por esta-
mesma alta no setor privado; melhorou as dia 25, desembarcou ainda em Honduras o sinato e tortura dos celebradores da palavra, rem convencidos de ter o apoio dos Estados
condições sociais das trabalhadoras domés- famoso John Dimitri Negroponte, também do padre Guadalupe Carney, dos jesuítas de Unidos. Ganharam tempo, dia após dia,
ticas; reduziu o preço dos combustíveis ao se ex-diretor do Departamento de Inteligência El Salvador e outros religiosos, freiras e pas- para consolidar suas posições, sabendo
integrar à Petrocaribe, desprezando a Texa- Nacional (DNI) de George W. Bush (por pura tores na América Central? que o Departamento de Estado ainda esta-
co e a Esso Standard Oil; pretendia utilizar a coincidência, DNI era a sigla da polícia mili- O silêncio é cumplicidade com o crime, va considerando se o golpe militar foi legal
Base Militar de Palmerola como Aeroporto tar hondurenha que torturava os dirigentes com as violações aos direitos humanos e as- ou ilegal e porque os falcões militares e mi-
Internacional; e se opôs a uma nova lei mi- populares na década de 1980) e agora asses- sassinatos por parte do regime golpista, co- diáticos tinham lançado uma campanha
neira que lesava os interesses do país, pois sor da política externa da secretária de Esta- mo o de Isis Obed Murillo, filho do pastor internacional baseada na mentira de que se
outorgaria novas licenças e concessões a em- do, Hillary Clinton. evangélico assassinado David Murillo, o estavam preparando contingentes invaso-
presas de exploração, tais como a Gold Corp., qual, sem poder vivenciar a dor de perder o res apoiados pelos governos da Venezuela,
American Pacific e outras. ARTICULAÇÕES SECRETAS pai, foi colocado na prisão. Nicarágua e Cuba.
Com o objetivo de terminar seus quatro O que faria em Honduras, um país invi- As igrejas não condenaram o aconteci- A resistência popular ao golpe, por outro
anos de governo, cometeu o erro de acreditar sível, o ex-enviado especial de George W. mento violento. Certamente algumas se ma- lado, sustentou suas posições: retorno ime-
que o Exército e os policiais seriam fiéis à Bush ao Iraque depois da queda de Saddam nifestaram em público, participaram nas diato do presidente Manuel Zelaya, respeito
Constituição da República. Assim, remilitari- Hussein e personagem suspeito de viola- marchas embranquecidas e perfumadas, fa- aos direitos constitucionais e humanos,
zou a polícia e reforçou os quadros militares. ções aos direitos humanos em várias partes laram de paz e de diálogo junto às armas. Fe- convocatória de uma Assembleia Consti-
O ataque e o cerco midiático da bur- do planeta? Sua missão era clara e estratégi- charam seus olhos e corações à dor dos que tuinte e reformas constitucionais. Contou
guesia contra seus ideais de justiça o apro- ca. Reuniu-se de forma privada, na base de foram brutalmente golpeados e perseguidos. com o apoio massivo do povo, mesmo re-
ximaram dos setores populares. Estabele- Palmerola e em outros lugares, com pessoas Mas o discurso teológico se assemelha ao primido. O povo perdeu o medo do Exérci-
ceu-se a política do Poder Cidadão. A que desempenhariam um papel-chave no discurso golpista. A Constituição é Deus. to. As mobilizações foram enormes. Mais
pobreza, a injustiça, a guerra dos ricos golpe militar. Em particular, o general Ro- Ambos convidam ao “diálogo e à paz”. de um milhão de pessoas esperam nas ruas
contra os pobres e o novo cenário político meo Vásquez, chefe do Estado-Maior, for- Por que não se denuncia a responsabili- e estradas exigindo o retorno imediato de
da América Latina o aproximaram do pro- mado na Escola das Américas e no Instituto dade do regime golpista nas violações dos Zelaya, da ordem constitucional e a convo-
jeto Alba (Alternativa Bolivariana para as para a Cooperação em Segurança do He- direitos humanos contra o povo? Por que os catória para a Assembleia Constituinte.
Américas) e ele se identificou com a luta misfério Ocidental de Fort Benning, na Ge- golpistas e a maioria das igrejas hondure- Nem os think tanks, nem os tanques milita-
pela dignidade e o respeito à soberania órgia, Estados Unidos; e Billy Joya Améndo- nhas se omitem à já explícita condenação res, nem os batalhões podem detê-los.
dos povos. Zelaya foi uma surpresa para la, que nos anos 1980 foi um dos principais mundial das organizações de direitos hu- Como dizem os advogados: “As coisas se
todos nós, os que estávamos em oposição dirigentes do Batalhão de Inteligência 3-36, manos e também de múltiplas igrejas católi- desfazem no lugar onde são feitas.” Quer di-
às políticas entreguistas do Partido Libe- fundador dos esquadrões da morte “Lince” cas, cristãs e não cristãs, e organizações de zer que o problema – o vínculo dos golpistas
ral. Sua audácia e coragem o converteram e “Cobra” e encarregado do sequestro e de- paz e justiça, da OEA e das Nações Unidas? com os Estados Unidos – terá de ser resolvi-
em um dos líderes mais importantes da saparição de opositores políticos. Atual- Para “articular” e tratar de legitimar o do em Honduras e em Washington. A solida-
história de Honduras. mente, ele é assessor pessoal do presidente golpe foi necessário – mas não suficiente – riedade internacional cresce a cada dia. Os
Mas, afinal, quem realizou o golpe mili- de facto, mas não de direito, Roberto Miche- recorrer também às aberrações jurídicas colibris voam mais rápido que os falcões.
tar em Honduras? Bem, é um produto da letti. Negroponte também conversou com a dos guardiões hondurenhos da “democra-
articulação de quatro poderes nacionais e hierarquia da Igreja Católica, e com Osval- cia blindada”. Inventou-se uma renúncia *Juan Almendares é membro da resistência contra o gol-
internacionais inseparáveis do domínio do Canales da Confraternidade das Igrejas do presidente Zelaya que não era crível e pe militar em Honduras. Ex-reitor da Universidade Nacio-
econômico, político e ideológico: o midiáti- Evangélicas, assim como com outros reli- que depois, de forma dissimulada, foi “reti- nal Autônoma de Honduras, defensor dos direitos huma-
co, o militar, o religioso e o jurídico. giosos, empresários e donos de meios de co- rada”. Inventou-se a ficção de que todos os nos e presidente do Movimento Madre Tierra.
Antes do golpe, os magnatas da impren- municação, junto com Ramón Custodio, da poderes do Estado, o Congresso da Repú-
sa escrita, televisiva e do rádio de Honduras Comissão Nacional dos Direitos Humanos, blica, a Corte Suprema de Justiça e o Minis-
tério Público, tinham respeitado as leis e 1 Ver “Na Nicarágua, a sobrevida do sandinismo”, Hernando
desenvolveram uma campanha sistemática e Roberto Micheletti.
Calvo Ospina, Le Monde Diplomatique Brasil, ed. 24.
para desprestigiar o governo de Manuel Ze- Em 2006, o general Vásquez se contra- que destituir o presidente era uma decisão
laya. Aceitaram os quadros oxidados, entre pôs ao presidente Zelaya, defendendo a ideia unânime destes organismos. Quando, na Artigo cedido pela edição mexicana de Le Monde Diplo-
intelectuais e militares, e as vozes dos tortu- do Pentágono de construir uma nova base verdade, sabemos que a sociedade civil está matique.
10 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

CRISE POLÍTICA EM HONDURAS

Posições ambíguas
na reação internacional
Manifestando-se a favor “do retorno imediato do presidente Zelaya ao posto e às funções que a soberania
popular lhe outorgou”, o presidente da Assembleia Geral da ONU afirmou que “nenhuma outra opção será
aceitável para a comunidade internacional”. Porém, em Washington, fortes pressões vão em outro sentido
POR MAURICE LEMOINE*

A Constituição atual apresenta a parti- de Manta, no Equador, que foi fechada a pe-
© Oswaldo Rivas / Reuters

cularidade de comportar diversos artigos – dido do presidente Rafael Correa. Nomeado


artículos pétreos, um dos quais estipula a por Bush em setembro de 2008, o embaixa-
não reeleição do presidente (art. 4) – dos dor americano Hugo Llorens era, em 2002 e
quais ela “proíbe” terminantemente toda e 2003, o diretor para os Assuntos Andinos – e
qualquer revisão. Trata-se de uma estranha portanto, estava ligado à Venezuela no mo-
camisa-de-força imposta ao povo, a quem, mento daquele golpe de Estado – no Conse-
em princípio, pertence “a soberania da qual lho Nacional de Segurança (NSC). Nos dias
emanam todos os poderes do Estado4”. As- que antecederam o golpe de 28 de junho em
sim, foi por ter “planejado”, segundo afir- Honduras, ele participou de numerosas reu-
mam, uma reformulação da Carta Magna – niões com os “responsáveis militares e líde-
muito além da questão da reeleição! –, que res da oposição5”.
Manuel Zelaya foi derrubado. A principal proposta apresentada por
Na realidade, ele cometeu três pecados Óscar Arias – instaurar um governo de re-
capitais: oriundo do Partido Liberal, de cen- conciliação nacional (ou seja, o retorno de
tro-direita, ele rompeu com as elites políti- Manuel Zelaya à presidência, mas sem po-
co-econômicas que sempre reinaram no der real) – foi recusada por este último. Ela
país; aumentou o salário mínimo em 60%; e também foi rechaçada por Roberto Miche-
ainda aderiu à Alba (Aliança Bolivariana pa- letti, o que suscitou a cólera de Hillary Clin-
ra as Américas), passando com isso a inte- ton, que estava lhe oferecendo, de mão bei-
grar o campo que preconiza a ruptura com o jada, uma solução para a crise por meio da
neoliberalismo, ao qual pertencem Bolívia, qual ele sairia parcialmente vitorioso.
Cuba, Equador, Venezuela etc. É o “elo frá- Haveria um jogo duplo por parte de Wa-
gil” desta organização que a direita conti- shington? Divergências entre a Casa Branca
nental acaba de atacar. e o binômio formado pelo Departamento de
Em sua primeira tentativa de retorno, Zelaya não passou da fronteira entre Honduras e Nicarágua Em abril de 2002, o ex-presidente Geor- Estado e o Pentágono? Se o Estado de Direito
ge W. Bush havia apoiado a tentativa de gol- não for restaurado, e/ou se Honduras afun-

D
pe contra o mandatário venezuelano Hugo dar na violência, o crédito de Barack Obama
a Organização dos Estados Ameri- Contudo, não faltaram aqueles que ex- Chávez. Já Barack Obama tem sido voz ativa acabará sendo seriamente comprometido
canos (OEA) à Organização das pressaram suas dúvidas em relação à legiti- na condenação generalizada do putschista aos olhos de uma América Latina que, até
Nações Unidas (ONU), passando midade “do ex-presidente” que, segundo Roberto Micheletti. Contudo, no mesmo então, acompanhava sua gestão com espe-
pela União Europeia e pelo presi- eles, havia “violado a Constituição” ao pre- momento em que ele declarava que “o único rança e simpatia.
dente dos Estados Unidos, Barack tender modificá-la, “para poder pleitear um presidente de Honduras é Manuel Zelaya”, a
Obama, a reação foi unânime: a condena- novo mandato” (uma vez que ela proíbe tal secretária de Estado, Hillary Clinton, ofere- *Maurice Lemoine é redator-chefe de Le Monde Diploma-
ção definitiva do golpe de Estado que, em possibilidade) por ocasião da eleição presi- ceu aos “golpistas” uma folga que lhes per- tique (França).
28 de junho, derrubou o presidente de Hon- dencial de 29 de novembro deste ano.2 Esta mitiu respirar. Ela propôs uma mediação do
duras, Manuel Zelaya e expulsou-o para o alegação é um erro ou, pior, uma mentira. conflito pelo presidente costa-riquenho Ós-
1 BBC Mundo, 29 de junho de 2009.
exílio na Nicarágua. Manifestando-se a fa- Contando com o apoio dos 400 mil signatá- car Arias, o que jogou de fato para escanteio 2 Tese evocada por Le Monde (29 de junho), e apoiada
vor “do retorno imediato do presidente Ze- rios de um abaixo-assinado, o chefe de Esta- a OEA, com posições majoritariamente sem ressalvas, entre outros, por El País (Madri, 29 de ju-
laya ao posto e às funções que a soberania do havia simplesmente previsto organizar mais progressistas. nho), Libération (30 de junho) e The Economist (Londres,
popular lhe outorgou”, o presidente da As- uma “consulta” de caráter facultativo. Esta Em Washington, fortes pressões vêm 2 de julho).
3 Consulta essa que corresponde claramente a uma orien-
sembleia Geral da ONU, Miguel d’Escoto, visava perguntar aos hondurenhos se eles sendo exercidas contra Manuel Zelaya. O
tação preconizada pelo artigo 5 da Lei de Participação
acrescentou em seguida: “Nenhuma outra desejavam ou não a convocação de uma As- Pentágono possui em Honduras, em Palme- Cidadã de 2006.
opção será aceitável para a comunidade sembleia Nacional Constituinte3, dentro de rola, uma base militar considerada estraté- 4 Artigo 2 da Constituição.
internacional1”. um prazo a ser definido. gica. Ora, ele já perdeu recentemente a base 5 The New York Times, 30 de junho.
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 11

VIOLÊNCIA NA CHINA

Uigures, entre a
modernidade e a repressão
Ninguém poderia ter imaginado que um enfrentamento interétnico tão violento estava prestes a ser deflagrado.
Contudo, já era possível perceber a cólera que tomava a comunidade uigur, sempre humilhada e alvo constante
de assédio. Minoria muçulmana, seus membros enfrentam condições desiguais de sobrevivência na China han
POR MARTINE BULARD*, ENVIADA ESPECIAL

E
sta viagem até os rincões da China policiais disfarçados, muito pouco discre-
© Nir Elias / Reuters

começou na estação Château de tos. Aquele que prega, o imame, é nomeado


Vincennes do metrô, perto de Pa- após aprovação das autoridades da prefeitu-
ris, no salão dos fundos de uma ra. Com uma ingenuidade que beira o cinis-
cervejaria comum. Com o olhar mo, o site oficial do governo do Xinjiang pu-
apavorado e as mãos trêmulas, um uigur blica uma “História do Islã na China”. Esta
escoltado por um oficial francês à paisana versão conta que as autoridades religiosas
fita a pessoa que está diante dele, vinda pa- (escolhidas a dedo) e os membros da direto-
ra entrevistá-lo. Ele suspeita que eu perten- ria do PCC elaboraram uma série de prega-
ça à polícia política chinesa e atue disfarça- ções, limitadas a 30 minutos – duração que
da de jornalista. O homem, um integrante não pode ser desrespeitada –. que podem ser
do Congresso Mundial Uigur, que reúne os selecionadas “à vontade” pelo imame.
dissidentes da província no exterior1, acaba As coisas nem sempre foram assim. A li-
de saber que a França lhe concedeu o esta- berdade religiosa está inscrita na Constitui-
tuto de refugiado político. Sua história é ba- ção chinesa de 1954. Até meados dos anos
nal: organizou protestos contra uma injus- 1960, os muçulmanos podiam praticar seu
tiça em seu local de trabalho, em Xinjiang, culto sem muitos entraves. Ahmed, um guia
foi interpelado, preso e fugiu. É tudo o que de Kashgar, recorda-se perfeitamente de sua
se sabe sobre ele. O seu medo, neste lugar avó trajando o véu quando ele era criança.
tão tranquilo, parece quase engraçado. Durante os anos sombrios da Revolução Cul-
Mas é, na verdade, um reflexo claro da pres- tural e dos seus desdobramentos, as mesqui-
são moral e física de que vêm sendo alvo os tas foram ora fechadas, ora destruídas. Mes-
opositores muçulmanos de língua turca na mo na intimidade do lar, era impossível exibir
China. Estamos em maio de 2009. qualquer sinal religioso. A repressão foi en-
Alguns dias mais tarde, em Urumqi, ca- cerrada com o movimento de abertura eco-
pital da região autônoma uigur de Xinjiang, nômica deslanchado por Deng Xiaoping em
situada a cerca de 4 mil quilômetros de Pe- 1978. O princípio da liberdade religiosa reto-
quim, nada permite suspeitar da existência maria seu lugar na Constituição em 1982.
de qualquer tensão. Nem mesmo no bairro Nos dias que se seguiram à Revolução
uigur. Aqui coabitam uzbeques, cazaques e Cultural, apenas 392 locais de culto esta-
quirguizes – minorias muçulmanas –, e fa- vam em funcionamento na região de Kash-
mílias hans – etnia majoritária na China e gar, um dos centros religiosos mais impor-
também em Urumqi, mas minoritária na tantes. No final de 1981, o seu número havia
província. A pequena mesquita do setor está passado para 4.700 e chegaria a 9.600 em
aberta aos visitantes. Nas vielas ruidosas api- 1995. Na virada dos anos 2000, conforme
nhadas de lojinhas, perto do grande bazar explica um dos grandes especialistas fran-
reformado recentemente, os comerciantes ceses em movimentos uigures, Rémi Cas-
vendem objetos de valor duvidoso. Neste e tets3, “Xinjiang tinha 24 mil mesquitas”.
em outros bairros vizinhos, principalmente Madrassas foram abertas e obras de sábios
nos arredores da Universidade do Xinjiang, muçulmanos, resgatadas. A religião se de-
uma violência sem igual iria irromper entre senvolvia enquanto a cultura e a identidade
os dias 5 e 8 de julho de 2009. Durante várias uigures se revitalizavam.
horas, manifestantes uigures armados com Porém, a situação já não era mais tão
cassetetes e facas incendiaram ônibus, táxis, simples. Desde o início dos anos 1990 o Islã
carros da polícia, saquearam lojas, surraram se politizava ali. Os meshrep, espécie de co-
e lincharam hans. Estes, por sua vez, no dia mitês de bairros religiosos que, não raro,
seguinte empunharam a tocha da vingança, Perseguidos nas ruas e sempre vigiados pelo PCC, os uigures se recolhem em suas casas disseminam reivindicações, começaram a
matando e ferindo uigures. O balanço oficial se multiplicar. Ao mesmo tempo, organiza-
dava conta de 194 mortos e 1.684 feridos. ções como o movimento islâmico do Tur-
Ninguém poderia ter imaginado que um pessoa que recebe um estrangeiro pode ser rige uma pequena empresa com cinco assa- quistão Oriental, suspeito de ter conexões
enfrentamento interétnico tão violento es- imediatamente suspeita de “atividades na- lariados, todos pertencentes a etnias da re- com a Al-Qaeda, foram fundadas. A inde-
tava prestes a ser deflagrado. Contudo, já era cionalistas”, o que eventualmente resulta na gião. Entretanto, ao relatar as discriminações pendência das ex-repúblicas soviéticas da
possível perceber a cólera que tomava a co- perda do trabalho e até mesmo em prisão. das quais são vítimas os membros da sua co- Ásia Central, do outro lado da fronteira,
munidade uigur, sempre humilhada e alvo Para Abderrahmane2, um uigur, enge- munidade, ele fala em voz baixa. Para fazer também suscitou uma esperança de liber-
constante de assédio. Marcar um simples nheiro da construção civil, “a suspeição e a uma denúncia mais contundente sem cor- dade até então ignorada. Alguns falaram
encontro com eles, sejam ou não militantes, repressão são a regra para os uigures, mas os rer o risco de ser ouvido, ele prefere escrever num “Uiguristão”.
não é nada fácil: precisei ligar várias vezes e hans também podem ser alvo de persegui- na sua mão: “É lavagem cerebral”. Saniya, professora de literatura antiga
combinar em locais públicos. Em certos ca- ções, caso pratiquem atividades políticas”. A vigilância é generalizada, principal- em Urumqi, recorda-se até hoje de um reen-
sos, como o que ocorreu comigo, eles apre- Ele optou por nos convidar para ir a um dos mente nas proximidades das mesquitas. A contro familiar marcante no início de 1992,
sentam o “corpo estranho” que os acompa- restaurantes uigures mais reputados da ca- de Kashgar (Kashi, segundo o nome oficial), quando a irmã da sua mãe, que havia fugido
nha ao secretário do Partido Comunista pital, frequentado por chineses han, por fa- no sul da província, não é exceção. A oração para o Uzbequistão na época da Revolução
Chinês (PCC) na cidade, para mostrar que mílias muçulmanas e turistas estrangeiros. das sextas-feiras, que pode reunir até 20 mil Cultural, foi autorizada a retornar a Urumqi.
não têm nada a esconder. Isso, porque toda Abderrahmane pouco tem a temer, pois di- pessoas, é cuidadosamente controlada por “Mais tarde, chegou a nossa vez de viajar até
12 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

Tachkent. Foi um choque. Descobrimos que morte de Mao Tsé-tung, em 1976, com exce- resultado disso é que o dinheiro público é à escola bilíngue e aquelas que ficam”. O ca-
os uzbeques desfrutavam de melhores con- ção daquelas que estavam implantadas no desperdiçado. “Estão construindo autoes- ráter arbitrário desse processo de seleção
dições de vida do que nós e que eles haviam Xinjiang, mais ativas que nunca. tradas, aeroportos, hotéis, mas a formação amplia mais ainda o rancor das famílias.
conservado mais a tradição turco-muçul- O museu de Shihezi, que já existia quan- dos profissionais não acompanha o movi- Nazim, uigur que dirige um departa-
mana, sem qualquer complicação para a do as bingtuans foram implantadas, registra mento.” Na obra que ele conduz, os empre- mento da Universidade de Urumqi, discor-
prática religiosa”, lembra. A partir daquela a epopeia dessa organização, no estilo do re- gos qualificados são atribuídos aos hans e os da. Ele enxerga nesse sistema uma chance
data, “a questão da independência tornou- alismo socialista: dezenas de fotos amarela- demais ficam com os uigures. “Obviamente, para a sua comunidade: “Isso faz com que as
se muito importante. Não existe nenhuma das de pobres militares camponeses ou de existem engenheiros uigures, mas eles não pessoas possam se apropriar da sua língua
barreira cultural, religiosa ou linguística en- crianças em escolas improvisadas, das quais podem viajar para formar-se no exterior, materna – é preciso saber escrevê-la para
tre o Xinjiang e o Uzbequistão. Em Tachkent, emana um espírito pioneiro próprio da épo- embora, daqui para a frente, as tecnologias preservar sua própria cultura – e aprender o
as pessoas nos diziam com frequência: mas, ca. Há também um imenso mapa espalhado sejam importadas da Alemanha ou do Ja- mandarim para o conhecimento, os inter-
o que vocês estão esperando? Vejam o que numa sala inteira mostrando a potência atu- pão. Eles não são autorizados a receber um câmbios e o trabalho”. Assim como um
nós conseguimos. E vocês? O orgulho uigur al das bingtuans – muito superior àquela do passaporte para o exterior”, revelou-nos um grande número de cidadãos de famílias da
estava sendo questionado. Havia uma espé- governo da província. Até hoje sob o contro- motorista de táxi uigur. De fato, na China, classe média, Nazim teme um abandono
cie de escalada nos argumentos, era quase le do Exército Popular de Liberação, essas este não é um direito. A sua liberação depen- progressivo da aprendizagem da sua língua
uma provocação”. “brigadas militares” reúnem 1,9 milhão de dente da boa vontade dos dirigentes do dis- nas camadas mais abastadas, que optam
Sem dúvida, esse sentimento acabou habitantes. Cobram impostos nos distritos trito. Quer para um engenheiro, quer para pelas escolas chinesas para garantir um fu-
contribuindo para que surgissem movimen- que dirigem e possuem 1.500 empresas, das um pesquisador ou um simples cidadão in- turo melhor para os seus rebentos. Os pais
tos uigures independentistas, às vezes apoia- quais várias são cotadas na Bolsa, além de tegrante de uma etnia minoritária, a tarefa falam cada vez menos em uigur, enquanto
dos a distância por paquistaneses e turcos. duas universidades. Detêm o controle de de obter um documento tão precioso exige um número decrescente de pessoas sabe es-
Embora não tivessem grande repercussão um terço das superfícies cultivadas do Xin- travar uma verdadeira guerra. Principal- crever nessa língua. “É assim que uma lín-
entre a maioria da população, manifestações jiang, um quarto da produção industrial e mente porque depois de emitido o docu- gua acaba morrendo”, lamenta.
e incidentes ocorreram regularmente na re- quase dois terços das exportações. Princi- mento, é preciso viajar de avião até Pequim
gião no decorrer dos anos 1990 e 2000. Pe- pais produtoras de ketchup do mundo, as para obter o visto no consulado do país para FAVORECIMENTO DA MAIORIA
quim então reagiu, utilizando algumas táti- bingtuans compraram até mesmo uma onde se pretende ir, o que é inacessível para Os jovens, por sua vez, mostram-se mui-
cas precisas: 1) a diplomacia, para lutar companhia francesa, Les Conserves de Pro- a imensa maioria dos uigures. to mais virulentos. Assiane, que desde
“contra as três forças” (o extremismo, o sepa- vence, em 2004, por intermédio da sua filial, Outra razão alegada para explicar os en- criança estudou mandarim, prefere esperar
ratismo e o terrorismo), cortando todo e qual- Xinjiang Chalkis Co. Diante desse quadro, traves na hora da contratação é o problema até que o seu colega mais velho se retire pa-
quer vínculo entre os países vizinhos e os mi- em 1996 a Central Política do PCC convidou da língua. Uma maioria de uigures não fala ra, então, expressar sua opinião: “Eles co-
litantes uigures; 2) o desenvolvimento e a os comunistas a “incentivar os jovens da ou fala muito mal o mandarim, língua utili- meçaram reduzindo o alcance do ensino do
modernização, lançando mão de programas China Interior a vir se instalar no âmbito dos zada em empresas majoritariamente hans. uigur, num processo em que nossa língua
de financiamento público, apoiando-se no CPCX7”, visando a manutenção da estabili- Na verdade, corrige Wang Jian-min, profes- vai acabar desaparecendo”. Assiane perce-
Corpo de Produção e de Construção do Xin- dade no Xinjiang. sor do Departamento de Antropologia da be nesta evolução um processo inexorável
jiang (CPCX, que depende do Exército), o que Universidade Central das Nacionalidades rumo à perda de identidade, tanto mais que
estimulou a migração de hans para a provín- em Pequim, “com frequência, as pessoas fa- “o ensino vem reduzindo nossa cultura a
cia; e 3) a estreita vigilância e a repressão. Desde 2003, o ensino em zem confusão entre língua e etnia. Pode-se costumes”. Trata-se de uma realidade in-
“O objetivo do governo central”, explica compreender que uma empresa peça que se contestável que muito poucos hans querem
Castets, “não é atacar o Islã em si. Trata-se,
mandarim é obrigatório fale corretamente mandarim, mas não é admitir. Um bom número dentre eles mos-
sobretudo, de evitar que um discurso sepa- a partir do primário. Com normal que ela exija de uma pessoa que ela tra-se irritado com essas reclamações in-
ratista ou antigovernamental seja legitima- isso, a língua uigur perdeu seja han”. Não é normal, mas “é mais fácil”, cessantes, a exemplo do fotógrafo Zhang
do. O PCC tem em mente os inúmeros exem- explica um jovem dirigente de uma compa- Wi: “Os membros das minorias são favore-
plos de casos similares mundo afora.” A sua importância. Esta nhia na periferia de Shihezi. “Com os traba- cidos pelos exames de entrada na universi-
relação com os huis, a mais importante co- imposição é um dos lhadores das minorias, é preciso prever uma dade, graças a um sistema de bônus. Eles
munidade muçulmana chinesa, com 10 mi- cantina halal [utilizada pela maioria dos têm vagas reservadas para eles nas direto-
lhões de pessoas, é hoje pacífica.4 O governo
pontos cruciais da crise muçulmanos] ou, em todo caso, uma ali- rias de organismos públicos. Os seus escri-
busca um pacto parecido com os uigures. mentação específica, uma vez que os costu- tores publicam mais facilmente suas obras
Ele avalia os investimentos no Xinjiang mes não são idênticos.” E, em geral, “quando que os escritores hans”. Então, ele cita o
em 870 bilhões de iuans [mais de R$ 254 bi- Esse não foi o único canal de imigração surge um problema, os uigures costumam exemplo de um uigur incompetente que foi
lhões] desde 2000. O dinamismo é visível que contribuiu para o atual desequilíbrio de- ser menos conciliadores” que os mingong, escolhido no lugar de um han que reunia
por todo lado: exploração das prolíferas jazi- mográfico, um processo no qual a etnia hans que podem ser enviados de volta para a sua muito mais condições que ele.
das de matérias-primas de carvão, petróleo passou de 6% da população (em 1949) para província a qualquer momento. Com isso, A lei obriga, desde 2003, as administra-
e gás; promoção dos novos recursos energé- 40,6% (em 2006). Desde que a liberdade de mesmo com muitos diplomas, os jovens ui- ções locais a desenvolver uma diretoria mais
ticos, como os campos eólicos a perder de circular tornou-se total, muitos hans vêm se gures têm dificuldade para encontrar em- ampla, reunindo membros hans e outros da
vista5; desenvolvimento de novas e gigan- instalando na região, em busca de fortuna prego, o que alimenta as frustrações. etnia minoritária. Mas, com frequência, o
tescas cidades tais como Korla, uma sequên- naquilo que eles consideram como uma “no- Ainda assim, o obstáculo linguístico não comando permanece nas mãos dos hans.
cia sem fim de centros comerciais a céu va fronteira”. Eles são imitados por campo- deixa de ser uma realidade patente. Antiga- Este é o caso nas mais altas esferas dessa
aberto, onde as companhias petroleiras ins- neses pobres (mingong) oriundos do Sichuan, mente, a maior parte das famílias inscrevia província. Nur Bekri, um uigur, é o presiden-
talaram suas sedes; construção de aeropor- do Shaanxi ou do Gansu, onde a renda per seus filhos nas escolas reservadas às mino- te, mas quem detém realmente o poder é
tos, de autoestradas… Os canteiros de obras capita é ainda mais reduzida que em Xin- rias, onde o mandarim era apenas uma ma- Wang Lequan, o secretário do Partido. É ele
vêm brotando em todo lugar, até mesmo on- jiang. Quando os autores de artigos publica- téria em meio às outras. Aliás, nas regiões quem vem segurando a região com mão de
de não deveriam, como em Kashgar, antigo dos na imprensa ocidental qualificam esses rurais, não havia muita escolha. Daí a atual ferro desde 1994: “Ele não é inteligente o
bairro uigur prestes a ser destruído. homens e essas mulheres, que vivem de bi- desvantagem e a impossibilidade dos jovens bastante para compreender a situação, nem
cos e mal conseguem sobreviver, de “coloni- saírem da província, o único lugar onde a sequer tem coração. Ele não entra na alma
ESTRUTURA MILITAR zadores”, estão cometendo uma simplifica- sua língua é falada. Para a elite urbana ui- das pessoas”, explica Yi Fang, um velho co-
Baseadas nas matérias-primas, no setor ção incongruente, para dizer o mínimo. gur, por sua vez, isso não chegava a ser um munista de Pequim para quem os enfrenta-
agroalimentício e, em proporção menor, no Entre os recém-chegados encontram-se problema, uma vez que os pais dispunham mentos de julho “são uma vergonha para a
turismo, as alavancas econômicas são, em também executivos de empresas públicas de um amplo leque de opções de escolas China”. Segundo ele, Wang combina “o libe-
grande parte, responsabilidade dos famosos cujos salários são bons, mas que muitas ve- chinesas com vagas para minorias. ralismo com a repressão”, sem considerar os
CPCX, as bingtuans (brigadas militares), co- zes não desfrutam de condições de vida à al- Desde 2003, o ensino em mandarim é homens e sua cultura. Para Yi, essa atitude
mo são chamados. Ou seja, trata-se de um tura. Liu Wang, engenheiro que trabalha na obrigatório logo no primeiro ano do primá- tem pouco a ver com o colonialismo e muito
Estado dentro do Estado, o qual é essencial nova linha ferroviária que conduzirá de rio, exceto para literatura. Com isso, o uigur mais com o autoritarismo. Xinjiang é parte
conhecer para compreender, ao menos um Urumqi a Hotan, a última etapa antes do de- passou a ter status de língua secundária. Es- integrante da China, cujas fronteiras, lem-
pouco, como funciona esta província chine- serto do Taklamakan, é um deles. Originário sa imposição constitui um nó crucial no an- bra, são reconhecidas pelas Nações Unidas.
sa. Fundadas em 1954, essas bingtuans reú- do Shaanxi, ele consegue voltar para casa tagonismo que separa as duas principais et- Como sempre, muitos fatos históricos
nem forças aptas para garantir a segurança para ver a mulher e os filhos apenas uma vez nias. Muitos são aqueles que assimilam essa são amplamente distorcidos, para não dizer
das fronteiras e desbravar terras. São inte- por ano, por ocasião das festas do Ano Novo medida a um “genocídio cultural”, ou a uma falsificados. No museu poeirento de Kash-
gradas por militares desmobilizados depois chinês. Hans, uigures ou cazaques, ele não “lavagem de cérebros”, para retomar a ex- gar, visitado por pouca gente, um letreiro
da guerra civil, comunistas convencidos da vê diferença alguma entre as etnias. Em sua pressão de Abderrahmane. No campo, po- informa logo na entrada: “Em 60 antes de
importância de levar a civilização para o opinião, é o Xinjiang inteiro que precisaria dem ocorrer situações totalmente absurdas, Jesus Cristo um governo local foi estabeleci-
campo. À época, hans (comunistas ou não) de uma boa chacoalhada: “Aqui “ainda vive- como conta Nadira, uma jovem professora do sob a dinastia Han. Desde então, Xin-
foram enviados para reeducação nos cam- mos no socialismo”, assegura Liu – o que, de curso primário formada na Escola Supe- jiang faz parte do Estado chinês”. Por muito
pos de trabalho ou mesmo para o degredo, vindo dele, não é nenhum elogio. Um em- rior de Educação de Urumqi, que encontra- tempo esta permaneceu a versão oficial,
como o célebre escritor Wang Meng, um co- preendedor nato, Liu Wang lamenta a lenti- mos numa aldeia distante de Kashgar. Única mas hoje ela foi abandonada. Assim como a
munista condenado por “desvio direitista”.6 dão administrativa. “É sempre necessário a ensinar o mandarim, ela não consegue dar ideia segundo a qual os chineses teriam si-
Doze bingtuans foram implantadas então referir-se a um superior hierárquico para co- aulas para todas as crianças. Então, “são os do os primeiros habitantes da região. As
na China. Todas desapareceriam depois da locar algo em prática”, critica o executivo. O dirigentes políticos que escolhem as que vão magníficas múmias indo-europeias encon-
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 13

RÚSSIA

Para Lago
Semei Zaizan

CAZAQUISTÃO
Altai
MONGÓLIA
Lago
Balkhach Dzungaria

Para
Chimkent e
Tachkent

QUIRGUISTÃO
UZBEQUISTÃO
Para
Lanzhou

TADJIQUISTÃO
D e s e r t o d e Ta k l a m a k a n Roquiang
Para
Xining
AFEGANISTÃO CHINA
C

Linha de
a

controle
x

(desde 1949)
e
m
i
r
a

Geleira de
PAQUISTÃO ÍNDIA Siachen

tradas no deserto do Taklamakan8 contra- Reino Unido e a Rússia. Uma efêmera Repú-
riam essa tese. Região de passagem da Rota blica Turca Islâmica do Turquestão Oriental
da Seda, em meio à qual se encontram inú- viu a luz do dia entre novembro de 1933 e fe-
meros oásis, Xinjiang foi o palco do desen- vereiro de 1934. Por fim, uma República do
1 Desde 2004, o Congresso Mundial Uigur vem ten-
volvimento de inúmeras culturas e etnias Turquistão Oriental, vago satélite da URSS, tando reunir as diferentes organizações de oposi-
comandadas por chefes de guerra. Portan- estendeu-se pelos três distritos do norte, de ção no exterior. A sua sede fica em Munique, e a sua
to, tentar reduzir sua evolução a uma única 1944 a 1949. Conforme sublinha Rémi Cas- presidente, Rebiya Kadeer, reeleita em 15 de maio
influência é absurdo. tets, o “sentimento de serem os herdeiros de de 2009, vive em Washington.
2 Todos os nomes e sobrenomes das pessoas
um império ou de reinos poderosos, por ve-
encontradas foram modificados por razões de
NOS BRAÇOS DO ISLÃ zes rivais da China” assombra a mente de segurança, exceto quando se trata de persona-
Da mesma forma, a concepção que re- muitos uigures. gens oficiais.
monta “a colonização da província” à chega- De fato, a maioria dos uigures não exige 3 Ler Remi Castets, “Les mutations de l’islam chez
da dos comunistas em 1949, de maneira al- a independência, mas sim o respeito pela les Uyghur du Xinjiang”, Etudes orientales, Paris,
n° 25, 1º semestre de 2008.
guma corresponde à realidade, conforme sua identidade e mais justiça. “Nós vivemos
4 Eles estão espalhados por todo o território, mes-
defende o Congresso Mundial Uigur lidera- melhor que há dez anos”, assegura Abder- mo se uma grande parte dentre eles mora na pro-
do por Rebyia Kadeer. A primeira instalação rahmane, “mas fomos deixados para trás.” víncia de Ninqxia. Ler o Atlas du monde diplomati-
política dos chineses em Xinjiang data da di- O produto interno bruto por habitante é de que, 2009.
nastia Manchu dos anos 1750. Para reagir 15.016 iuans em Shihezi (onde 90% da popu- 5 A energia eólica representa 8% da energia pro-
duzida, uma proporção que deverá alcançar
contra rebeliões, Daoguang, o oitavo impe- lação são hans); 6.771 iuans em Aksu (30%
15% em 2020, da qual a metade será produzida
rador, criou aqueles que foram os primeiros de hans); 3.497 em Kashgar (8,5%); e 2.445 no Xinjiang.
“escritórios de reconstrução” no quadro de iuans10 em Hotan (3,2%). 6 Wang Meng, exilado de dezembro de 1963 até ju-
uma “política de assimilação”. Para imple- Essas desigualdades escancaradas, ba- nho de 1979, foi reabilitado e tornou-se ministro da
mentá-la, o poder se mostrou hesitante em seadas nas diferenças étnicas, empurram os Cultura, de 1986 a 1989. A respeito desse exílio e
dos uigures, ler Les yeux gris, e Contes de l’Ouest
recorrer aos altos funcionários locais, que, uigures para os braços do Islã, o único canal
lointain – Nouvelles du Xijiang, ambos publicados
“por serem corruptos, são nefastos para a de oposição e de afirmação identitária de pela editora Bleu de Chine, Paris, 2002.
política do Estado central9”. Em 1884, a pro- que dispõem. Desde já, deixou de ser um fato 7 Citado por Rémi Castets, “Les mutations de
víncia passou a integrar o território chinês. raro cruzar com mulheres trajando burca. Se l’islam…”, op.cit.
A título de comparação, o Novo México foi por enquanto os movimentos extremistas tritura suas especificidades. Mais que reli- 8 Ler Corinne Debaine-Francfort, Abduressul Idriss,
Kerya, mémoire d’un fleuve, archéologie et civili-
incorporado aos Estados Unidos pouco tem- que preconizam a jihad (guerra santa) per- giosa, a ruptura é de natureza social e cul- sation des oasis du Taklamankan, Findakly, Sully-
po antes (1846), o que também foi o caso da manecem marginais, a recusa de todo diálo- tural. Xinjiang não teria chegado a esse la-Tour, 2001; e ver o filme documentário de Olivier
Califórnia (1850). go poderá acabar revertendo a situação. ponto se Pequim tivesse viabilizado o esta- Horn, Les momies du Taklamakan, Gédéon Pro-
E como a história não é linear, Xinjiang As minorias, entre elas os uigures, estão tuto de autonomia, que nunca passou de grammes, 2003.
9 Ler C. Patterson Giersh, “Le deuil du Tibet”, Pers-
conheceu várias aventuras independantis- sendo duramente esmagadas, pressiona- uma vaga promessa.
pectives Chinoises, n° 104, Hong-Kong, 2008.
tas. O emirado da Kashgária sobreviveu de das por uma modernização que arrasa sua 10 Em reais, respectivamente R$ 4.238; R$
1864 a 1877, graças ao reconhecimento que cultura, por discriminações que as afastam *Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde 1.911; R$ 986,66; e R$ 690,05 [Nota da edi-
lhe foi concedido pelo império otomano, o do crescimento e por um autoritarismo que Diplomatique (França). ção brasileira].
14 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

MODELO DE DESENVOLVIMENTO

A felicidade como uma


questão política
As múltiplas crises geradas pela dinâmica do modelo de desenvolvimento vigente abrem uma nova
discussão: reduzir o crescimento, ou até mesmo diminuir a produção, e conseguir atender a todos. Para os
defensores do decrescimento, o desafio é viver melhor com menos
POR ERIC DUPIN*

m 14 de outubro de 2008, o primeiro- a população”. Para ele, “uma crise de gran- blicos uma dezena de seus quadros, por a “revista teórica e política do decrescimen-

E ministro François Fillon não conse-


guiu disfarçar sua perplexidade: ele
assistiu ao deputado dos Verdes,
Yves Cochet, defender a tese do “de-
crescimento” em plena Assembleia Nacio-
nal da França.
Diagnosticando uma “crise civilizacio-
des dimensões seria a pior das situações”.
Jean-Luc Pasquinet, militante do Movi-
mento dos Opositores do Crescimento
(MOC), observa que “a crise é uma oportu-
nidade para nos lembrar que o crescimento
não é mais possível”. Mas pondera: “Ao mes-
mo tempo, em períodos como este, as pes-
meio de uma rede muito descentralizada.
Reunindo militantes mais experientes, co-
mo Jean-Luc Pasquinet, antigo porta-voz do
PPLD, e Christian Stunt, ex-integrante dos
Amigos da Terra e do Partido Ecologista, o
MOC comemora a presença em suas fileiras
de “muitas mulheres e muitos jovens”.
to”, vem explorando os inúmeros problemas
levantados por essa perspectiva teórica.3 Es-
sa vertente, coordenada por Jean-Claude
Besson-Girard, cultiva laços mais ou menos
informais com uma série de organizações:
as redes antinucleares ou anti-OGMs (orga-
nismos geneticamente modificados), os mo-
nal”, Cochet afirmou, sob protestos da direi- soas tendem a se voltar para os seus interes- vimentos internacionais “Slow Food”4 e
ta, que “agora a busca pelo crescimento pas- ses particulares”. Paul Ariès também aponta CAPITALISMO VERDE? “Slow Cities”, e muitas associações antipu-
saria a ser antieconômica, antissocial e a ambivalência da crise: “De um lado, ela Recentemente, MOC e PPLD deram iní- blicitárias. “A vontade de mudar as coisas
antiecológica”. Naquele momento, seu apelo posterga o sentimento de urgência ecológi- cio a um processo de aproximação, criando passa pela apresentação de alternativas”, su-
por uma “sociedade mais sóbria” tinha pou- ca, pois a prioridade do momento seria lutar em parceria a Associação dos Opositores ao blinha Guillaume Gamblin, um dos colabo-
cas chances de obter qualquer respaldo. Mas em defesa do poder aquisitivo e dos empre- Crescimento (Adoc). Sob a etiqueta “Europe radores da revista Silence.
com o agravamento da recessão econômica, gos. De outro, mostra que durante décadas Décroissance” – Europa Decrescimento – As ideias relativas ao decrescimento não
esse assunto parece ter entrado de vez na vivemos em cima de mentiras”2. Assim, na eles fizeram campanha conjunta na última são nenhuma novidade. De fato, elas eram
pauta dos franceses. avaliação daqueles que duvidam que a re- eleição para o Parlamento europeu. Por não muito mais disseminadas durante os anos
Assim, os questionamentos em torno do cessão possa pavimentar o caminho do de- disporem de muitas condições materiais e 1970 do que hoje. Contudo, 30 anos atrás a
modelo de desenvolvimento surgem, sobre- crescimento, a inquietude disputa espaço terem grandes divergências, eles nem se- contestação do produtivismo estava cir-
tudo, como consequência óbvia da crise com a esperança. quer imprimiram cédulas para a votação, cunscrita a um espaço ideológico fechado e
que abala o planeta. De repente, os pensa- pedindo aos seus eleitores que o fizessem não influenciava a esquerda, ainda domina-
dores do decrescimento passaram a ser ou- eles mesmos, acessando o site da associa- da pelo Partido Comunista (PC) e por um
vidos com mais atenção. “Andaram procu- A ideia do decrescimento ção. O resultado era previsível: Jean-Luc marxismo ingenuamente “progressista”.
rando por mim”, comemora Serge Latouche. Pasquinet, que encabeçava a lista em Île-de- Agora, com a crise ambiental e os questiona-
“Nossos debates estão cada vez mais cheios não é nenhuma novidade France (região parisiense), obteve somente mentos que pesam sobre o trabalho como
de gente”, confirma Paul Ariès, outro inte- e foi muito mais 0,04% dos votos válidos. valor, a união entre anticapitalismo e anti-
lectual que se tornou referência nessa cor- Mas as ideias do decrescimento têm produtivismo está progredindo.
rente de pensamento.
disseminada nos anos uma repercussão que de maneira alguma se “O decrescimento vem reafirmar, por
“Nesta conjuntura, em que muitos dos 1970. Naquela época, compara a esses números. A popularidade meio de um vocabulário novo, antigas ques-
nossos argumentos são comprovados pela porém, não conseguia do jornal mensal La Décroissance, fundado tões às quais o movimento operário tentava
realidade, devemos começar a indagar se ha- em 2004, revela o razoável impacto dessa responder”, garante Paul Ariès, que foi co-
verá uma alternativa entre o decrescimento influenciar a esquerda corrente: a sua tiragem é de 20 mil exempla- munista durante a juventude. “O que me
sofrido, imposto pela recessão atual, e aque- res, dos quais 13 mil são vendidos em ban- atraiu nessa nova vertente foram suas afini-
le conduzido”, afirmava Nicolas Hulot du- cas. A sua linha editorial se caracteriza pelo dades com a crítica da alienação, ‘o direito à
rante a corrida eleitoral para o Parlamento O caráter inovador e o impacto desse te- tom polêmico, cujos alvos prediletos são os preguiça’… Ao contrário do que muitos pen-
europeu.1 Para alguns de seus partidários, o ma contrastam com a influência muito re- expoentes de um “capitalismo verde” e de sam, a esquerda nem sempre optou pelo ca-
colapso atual constitui uma formidável duzida das forças políticas que o incorpora- um “desenvolvimento sustentável”. minho do produtivismo!”
oportunidade para essa causa. “Tomara que ram em suas pautas. O Partido em Prol do Já a revista ecologista Silence (Silêncio), A evolução das posições de Jean-Luc Mé-
a crise piore!”, exclama Latouche, utilizando Decrescimento (PPLD) foi fundado em 2006 cuja tiragem é de 6 mil exemplares, publi- lenchon é um sintoma da influência exercida
uma “pedagogia das catástrofes”. Sem ser por Vincent Cheynet, para quem “a con- cou em 1993, sem sucesso, aquele que foi o pelo decrescimento no âmbito da esquerda.
tão extremista, Yves Cochet avalia, por sua quista do aparelho institucional assumiu primeiríssimo dossiê a respeito do decresci- Oriundo de uma estrita tradição marxista,
vez, que somente esbarrando nos limites da caráter emergencial”. Entretanto, querelas mento, recheado de trechos do livro funda- tendo sido inicialmente militante trotskista
biosfera a humanidade será obrigada a ser internas nunca permitiram que essa orga- dor do conceito criado por Nicholas Geor- lambertista e depois socialista, o fundador
mais ponderada. “Não haverá mais cresci- nização saísse do papel. “Constituir um gescu-Roegen. Na segunda tentativa, em do Partido de Esquerda (PG) elogia hoje “o
mento em decorrência de razões objetivas. partido político é muito difícil em meios 2002, a situação foi bem diferente, demons- poder de interrogação” que emana dos adep-
Por força das circunstâncias o decrescimen- que tendem a ser anarquistas”, lamenta trando o poder de disseminação dessas tos do decrescimento. “É preciso refletir de
to é o nosso destino”, avalia o deputado eco- Cheynet. Recentemente, alguns militantes ideias: um colóquio realizado na sede da maneira diferente a respeito do nosso modo
logista. Só nos restaria torcer, então, para que tentaram relançar o PPLD. Embora a agre- Organização das Nações Unidas para a de vida e nos perguntarmos, por exemplo, se
a crise acelere a conscientização da socieda- miação atraia muitos jovens, o seu porta- Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) devemos avançar sempre com rapidez”, afir-
de em prol do decrescimento, “para fazer voz, Vincent Liégey, reconhece que o pro- pela associação Ligne d’Horizon e do qual ma. Ele também critica “o produtivismo que
com que ele seja democrático e equitativo”. cesso para retomá-la ainda está um pouco participaram 700 pessoas, entre elas José insinuou a ideia segundo a qual tudo o que é
Esse ponto de vista, porém, está longe de “hesitante”. Curiosamente, o PPLD recusa- Bové, Ivan Illitch e Serge Latouche, colocou desejável deve se tornar necessário”.
ser compartilhado por todos. “De maneira se a divulgar seu número de filiados. “Não o termo em evidência. A Silence alcançou O Novo Partido Anticapitalista (NPA) é
alguma essa ‘pedagogia das catástrofes’ queremos nos tornar um partido de mas- grande sucesso e, posteriormente, dedicou outro interessado em se relacionar com os
descreve a realidade que estamos vivendo”, sas, não estamos à procura de novos mem- várias edições à exploração dos mais diver- expoentes do decrescimento. Tanto que, no
rebate Vincent Cheynet. O redator-chefe do bros nem de eleitores”, diz Rémy Cardinal, sos aspectos desse projeto. “O decrescimen- decorrer de algumas negociações, foi elen-
jornal La Décroissance (O Decrescimento) outro porta-voz desse micropartido. to talvez seja o grande tema do século XXI”, cada a possibilidade de convidar um mili-
avalia que “se a crise oferece uma oportuni- Em outra iniciativa, parte dos opositores pondera Michel Bernard, um dos colabora- tante do decrescimento para encabeçar
dade para questionar o mundo à nossa volta do crescimento lançou, em 2007, o MOC. O dores da revista. uma lista apoiada pelo NPA e o PG nas elei-
e a nós mesmos, ela apresenta também o ris- movimento já teria atraído cerca de 200 se- Desde 2008, outra publicação intelectual ções parlamentares europeias. A proposta,
co de engendrar tensões e gerar medo entre guidores e conseguiu eleger para cargos pú- de qualidade, a Entropia, que se define como contudo, acabou fracassando.
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 15

com uma sociedade de pequenas cidades fe-


deradas, ele argumenta em favor da arbitra-
gem política dos conflitos entre os partidá-
rios do decrescimento. Mas há quem evite
questões delicadas, refugiando-se em abor-
dagens individuais que preconizam a “so-
briedade voluntária”. Outros creem nas vir-
tudes exemplares de iniciativas locais, como
a do movimento “Cidades em transição”, que
reúne cerca de 130 comunas – majoritaria-
mente na Grã-Bretanha – comprometidas
com metas de decrescimento energético e de
retorno a uma produção local.8
Contudo, o decrescimento ainda carece
de uma definição política positiva, que te-
nha capacidade de mobilizar da mesma for-
ma que o socialismo o fez nos séculos XIX e
XX. “Nós enfrentamos dificuldade quando
se trata de inventar uma nova narrativa para
o imaginário coletivo”, deplora Yves Cochet.
“Qual seria a utopia impulsionadora para
responder à pergunta: como viver melhor
com menos?”
A fórmula que reza que “quando há me-
nos bens, maiores são os laços” talvez não
seja satisfatória. É preciso “ampliar a gratui-
dade dos bens dos quais se faz bom uso e
proibir aqueles que são assimilados ao mau
uso”, preconiza Ariès, acrescentando que a
definição dessa utilização será produto de
deliberação política. Ele arremata: “O obje-
tivo é reduzir as desigualdades sociais”. De
fato, o decrescimento prejudicaria, em pri-
meiro lugar, os mais ricos.
Em última instância, é mesmo a questão
filosófica da “boa vida” que transparece co-
mo pano de fundo nesses debates. Trata-se
de substituir a concepção de um desenvolvi-
mento econômico ditado pela dinâmica
própria do progresso técnico por uma lógica
de arbitragem democrática.
O filósofo Patrick Viveret, interessado
nos questionamentos que fundamentam o
decrescimento, não aprova, contudo, as so-
luções propostas em seu nome. Ele recusa “a
proibição de considerar a felicidade como
uma questão política” sob o pretexto de que
os totalitarismos se arriscaram a adotar essa
abordagem. “Se nos recusamos a colocar
© Benett

democraticamente a questão do viver me-


lhor, em nome do que, então, iremos funda-
mentar um pensamento crítico do modo de
desenvolvimento atual?”
Liberais ou socialistas, os progressistas
têm em comum a meta de procurar aumen-
tar as riquezas materiais, reduzindo a ques-
tão da felicidade a um assunto de ordem
privada. Se as sociedades humanas, con-
Já os Verdes, paradoxalmente, parecem assumido. “A minha perspectiva é claramen- Poucos são os partidários do decresci- frontadas aos limites físicos da natureza,
não se preocupar muito com os conceitos re- te republicana, democrática e humanista”, mento que arriscam descrever algumas ca- não questionarem esse pressuposto, abre-
lativos ao decrescimento, apesar dos esfor- declara Cheynet, que na juventude chegou a racterísticas da sociedade que eles almejam. se a porta para um vertiginoso espaço de
ços de Yves Cochet. O anseio do partido por ser militante centrista. “O Estado-nação é, ao Em 2002, Cheynet foi um dos raros que acei- indeterminação política.
respeitabilidade e o peso de seus parlamen- mesmo tempo, ultrapassado e não desejá- taram se submeter a esse exercício.6 Numa
tares os afastou de tudo e de todos que possa vel”, rebate Latouche. Já Paul Ariès se posicio- “economia saudável, o transporte aéreo e os *Eric Dupin é jornalista.
atrapalhar sua expansão entre o eleitorado, e na no campo da República, ainda que siga veículos dotados de motor a explosão seriam
isso inclui o questionamento dos padrões colaborando com os católicos de esquerda condenados a desaparecer, e as embarca-
produtivos. Em dezembro de 2008, a moção da revista Golias. Pierre Rabhi, figura desta- ções à vela, a bicicleta, o trem e a tração ani- 1 Nicolas Hulot, “L’enjeu crucial des élections européen-
apresentada pelo partido no final do seu cada do decrescimento que tentou ser candi- mal os substituiriam”. A sociedade também nes”, Le Monde, 15 de maio de 2009.
2 Laure Nouhalat, “Rendre la décroissance désirable”, en-
congresso fez referência, pela primeira vez, dato à eleição presidencial de 2002, represen- evoluiria rumo “ao fim dos grandes centros
trevista com Paul Ariès, Libération, 2 de maio de 2009.
ao “decrescimento”, mas limitou este último ta, por sua vez, uma corrente espiritualista. comerciais, em proveito das lojas de bairro e 3 Para uma crítica radical desta corrente de pensamento,
às questões relativas à “pegada ecológica”.5 As concepções divergentes da democra- das feiras, e em direção à supressão dos ca- ver, entre outros, os Cahiers marxistes, Bruxelas, n° 235,
cia também atiçam as divisões. Há aqueles ros produtos manufaturados, em proveito maio-junho de 2007, ou ainda, “La décroissance, un point
FALTA DE PROJETO que querem investir nas instituições e apre- dos objetos produzidos localmente”. En- de vue parfaitement réactionnaire”, Lutte de classe, Paris,
n° 121, julho de 2009.
Paul Ariès se refere ao decrescimento sentar-se nas eleições, como Cheynet. Ou- quanto a reabilitação da produção local é
4 Ler “Militants de la gastronomie”, por Carlo Petrini, Le
como sendo uma “palavra-obus”, uma peça tros privilegiam a democracia direta ou o compartilhada por todas as correntes do de- Monde Diplomatique, agosto de 2006.
de artilharia destinada a abalar o produti- mandato imperativo. “A desconfiança em crescimento, a ideia de instituir moedas re- 5 A pegada ecológica visa traduzir de maneira compreensí-
vismo. Já Vincent Cheynet elogia a capaci- relação à democracia representativa é mui- gionais, defendida por alguns, é vista, em ge- vel o impacto de determinadas atividades humanas sobre
dade que esse vocábulo tem de “questionar e to forte nesses meios”, observa o pesquisa- ral, como uma medida demasiado extrema. os ecossistemas e o planeta. Ela é medida geralmente em
superfície (hectares por indivíduo, ou hectares consumi-
incomodar” a sociedade. Porém, a grande dor Fabrice Flipo. “Nós precisamos de uma É difícil acreditar que um programa des- dos por uma cidade ou um país para satisfazer suas ne-
fraqueza dessa corrente é não projetar um consolidação da democracia direta, mas sa natureza possa seduzir uma maioria de cessidades, por exemplo). É um indicador de sustentabili-
futuro possível para a humanidade. também da representativa”, pondera Paul eleitores. Por isso, Serge Latouche prefere in- dade ambiental.
Suas vertentes estão, acima de tudo, às Ariès. Já Serge Latouche tem uma maneira sistir no método de elaboração de uma “so- 6 Bruno Clémentin e Vincent Cheynet, “La décroissance
soutenable”, Silence, Lyon, fevereiro de 2002.
voltas com profundas divergências filosófi- diferente de expressar essa ambiguidade: ciedade autônoma”, com os seus oito “R”:
7 Serge Latouche, “Pour une société autonome”, Entropia
cas. Cheynet não arreda pé de suas posições “Eu me considero profundamente demo- “Reavaliar, Reconceituar, Reestruturar, Re- n°5, Malaucène, outono de 2008.
republicanas e universalistas, enquanto o crata, mas não sei o que é ao certo a demo- distribuir, Redimensionar (localmente), Re- 8 Ler Agnès Sinai, “Mirages verts et sobriété californienne”,
africanista Latouche é “relativista cultural” cracia”, afirma. duzir, Reutilizar, Reciclar”7. Enquanto sonha Le Monde Diplomatique, julho de 2009.
16 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

ESPECULAÇÃO FINANCEIRA

Madoff, o maior trapaceiro


de todos os tempos
O caso explodiu em dezembro de 2008, quando o financista nova-iorquino confessou jamais ter investido
um centavo dos aportes confiados à sua sociedade. Sem dúvida, a “guerra contra o terrorismo” e a ideologia
da autorregulação do mercado contribuíram para deixar os crimes de colarinho branco em segundo plano
POR IBRAHIM WARDE*

E
m meio ao furacão da crise econô- contato com o advogado, que recomendou de todas as associações e organismos pro- retorno de investimentos que não procura-
mica que desnudou todos os cam- que o FBI fosse avisado. No dia seguinte, a fissionais, como, por exemplo, a Securities vam alcançar o topo de alguns fundos espe-
pos das finanças, eis que aparece a SEC (Comissão de Valores Mobiliários e de Industry Association, o lobby de interesses culativos ou de aplicações muito arriscadas.
forma mais primitiva de fraude: os Câmbio dos Estados Unidos) registrou quei- da Bolsa, trabalhando duro pela democrati- Dizia preferir a estabilidade dos resultados.
esquemas de pirâmide. Não é que os xa e Madoff foi interpelado. O financista fi- zação e modernização do mercado. O “filão” que explica a boa performance
promotores dessas operações realizem caria em liberdade vigiada, em seu luxuoso Homem acima de qualquer suspeita, dos investimentos constitui o elemento-
maus investimentos; eles colocam sim, em apartamento em Manhattan, por uma ga- mostrava-se como o campeão das preocu- chave de toda a fraude de pirâmide. A arma
giro, as aplicações de seus clientes. Mas o fa- rantia de US$ 10 milhões. pações éticas, da proteção dos pequenos ne- secreta de Madoff era a técnica que ficou co-
zem pilhando o capital dos últimos deposi- gócios e da necessidade de baixar os custos nhecida como “split-strike conversion8”. Mes-
tantes para remunerar os investidores mais dos investimentos de capital. Fora dos círcu- mo em períodos de baixa, como o crash da
antigos, e embolsam a diferença. Antes da queda, ele los financeiros, Madoff era conhecido, so- Bolsa, os fundos Madoff continuavam exi-
Pensava-se conhecer todas as variantes bretudo, como um filantropo que sabia de- bindo dividendos insolentes. Quando ques-
desses esquemas, que pareciam confinados parecia a encarnação do monstrar generosidade com grandes causas tionado mais precisamente sobre suas ope-
aos sistemas financeiros mais rudimentares sonho americano: era um humanitárias e que ocupava, de maneira rações, esquivava-se alegando os segredos
ou às comunidades que ainda não haviam natural, cadeiras nos conselhos administra- de seus negócios. Harry Markopolos, con-
descoberto as práticas bancárias moder-
jovem do Queens, tivos de organizações prestigiadas de cari- corrente da firma de Madoff, tentou obter
nas.1 Em geral, seus arquitetos eram vigaris- instrutor de natação, que dade e cultura.5 resultados similares a partir da mesma téc-
tas que, com promessas fabulosas, furtavam começara seu negócio aos Em suma, Bernard Madoff inspirava nica. Em vão. Convencido de que o financis-
os clientes crédulos em suas operações fi- confiança. Crédito, credibilidade, palavras ta-gênio era um impostor, empreendeu uma
nanceiras. Essas pirâmides, no entanto, se
22 anos com US$ 5 mil que possuem origem comum no latim: cre- cruzada solitária para advertir a SEC de suas
esgotavam rapidamente, pois quanto mais dere, crer. E, no entanto, os organismos de suspeitas. Entre 1999 e 2005, enviou três re-
cresce a estrutura do esquema, maiores so- caridade também foram alvo de Madoff.6 latórios (o último intitulado “O maior hedge
mas de dinheiro devem ser aportadas e os No dia 12 de março de 2009, Madoff foi Elie Wiesel, que perdeu US$ 22 milhões de fund do mundo é uma trapaça”) detalhando
inocentes acabam por dar falta de alguma julgado culpado por fraude, perjúrio, lava- sua fortuna pessoal e US$ 15 milhões per- os “sinais de alarme” que teriam deixado in-
coisa, desmascarando a fraude. gem de dinheiro e roubo. Em 29 de junho, tencentes à Fundação Elie Wiesel pela Hu- vestidores e agências de regulamentação
Porém, o caso de Bernard Madoff, com aos 71 anos de idade, foi condenado à pena manidade, lamenta: “Demos tudo a ele, com a “pulga atrás da orelha”.
frequência qualificado como “o maior tra- máxima prevista pela lei: 150 anos de prisão. pensávamos que ele era Deus7”. Numerosos
paceiro de todos os tempos”, coloca em Nas palavras do procurador Lev Dassin, “a filantropos (entre os quais Steven Spielberg ESQUEMA HÁBIL
questão tudo o que se imaginava saber sobre consciência, duração e natureza dos crimes e os bilionários Mortimer Zuckerman e Carl Na realidade, Madoff controlava duas
os esquemas de pirâmide. É em pleno cora- cometidos por Madoff fazem com que ele Shapiro), sem nenhuma desconfiança, jul- sociedades: uma, legítima, de agenciamen-
ção da capital mundial das finanças que mereça, excepcionalmente, o castigo máxi- gavam o método Madoff, com suas rendas to; e outra fraudulenta, de gestão de títulos.
uma figura respeitada consegue, por mais mo autorizado pela lei”. O juiz Denny Chin, elevadas e estáveis, perfeitamente adequa- A primeira, um negócio respeitável, servia
de 20 anos, enrolar um número incalculável por sua vez, evoca “o crime incrivelmente do ao campo da caridade. de cobertura à segunda. Essa mistura de gê-
de vítimas, incluindo a nata financeira glo- diabólico de Bernard Madoff, com suas con- neros explica também a diligência de alguns
bal. Grandes bancos internacionais (UBS, sequências humanas assustadoras” e “a em investir com Madoff. O rumor entre os
Banco Santander, HSBC, BNP-Paribas, fraude de mais de 20 anos objetivamente Mesmo em períodos de profissionais de finanças era que os verda-
Union Bancaire Privée, Royal Bank of Sco- desconcertante”, realizada por alguém “par- deiros segredos de sua infalibilidade e de
tland, Nomura etc.) se deixaram ludibriar, ticularmente perverso”.4 baixa os fundos de Madoff seu timing impecável residiam no seu domí-
assim como investidores institucionais e de Antes da queda, o financista aparecia continuavam exibindo nio do front running, prática ilegal pela qual
prestigiosos fundos especulativos (hedge como a encarnação do sonho americano: ele se mantinha informado, antes de todos,
funds), além de bilionários conhecidos.2 um jovem do Queens, instrutor de natação,
dividendos insolentes. de ordens de compra e venda suscetíveis de
O caso explodiu em 11 de dezembro de que começara seu negócio aos 22 anos com Quando questionado provocar flutuações no mercado. Ele inves-
2008, quando o financista nova-iorquino US$ 5 mil de investimento inicial. Marido sobre suas operações, ele tiria de acordo com essas informações.
confessou jamais ter investido um centavo fiel, inseparável de sua mulher Ruth, que Os esquemas de Ponzi requerem habili-
dos aportes confiados à sua sociedade, a conheceu ainda na escola. Dono de um ne-
alegava ter um “segredo” dade. Eles florescem, em geral, no seio de
Bernard L. Madoff Investment Securities gócio familiar que, além da esposa, empre- certas comunidades étnicas, religiosas ou
(BMIS). De acordo com os documentos do gava o irmão, seus dois filhos e sua sobri- geográficas, chamadas de “grupos de afini-
tribunal, ele teria, na véspera, confessado à nha. Depois de cerca de meio século de De fato, o empresário construiu uma re- dade”. Foi o caso logo no início, quando Ma-
mulher, ao irmão e aos dois filhos – todos as- esforço, havia construído um pequeno im- putação de gênio das finanças, capaz de ge- doff focava seus negócios na comunidade
salariados da empresa – que sua companhia pério e conquistado respeitabilidade finan- rar taxas de lucro de 10% a 15% em média, e judaica de Nova York. O esquema se esten-
de investimento era apenas um esquema de ceira. Madoff, que também presidiu, de até mais, no caso de alguns privilegiados deu em seguida aos judeus de Palm Beach,
Ponzi.3 “Estou falido, perdi US$ 50 bilhões. 1990 a 1993, a Bolsa de Valores de Tecnolo- que solicitavam índices maiores em troca de na Flórida, e de Boston, antes de englobar to-
Tudo não passava de uma enorme fraude”, gias (Nasdaq, National Association of Secu- investimentos mais frequentes. Madoff do tipo de comunidade, primeiro nos Estado
teria dito à família. Seus filhos entraram em rities Dealers Automated Quotations), fez sempre exibia modéstia: afirmava preferir o Unidos, depois no resto do mundo. Ao con-
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 17

trário da intensa publicidade de esquemas mentos. Madoff fez então um último esfor- retiraram mais dinheiro do que investiram,
de pirâmides, Madoff confiava no boca a bo- ço para salvar sua empresa: ele, que até o que os torna objetivamente cúmplices in-
ca e num marketing mais sutil, pois era então se mostrava discreto e inacessível, vi- voluntários da pilhagem – , nem aos investi-
consciente da atração exercida pelos princí- sitou pessoalmente os bancos e os investi- dores privilegiados que teriam direito, por
pios da restrição e da exclusividade. dores institucionais para solicitar aumento meio de um acordo especial com Madoff, a
Os agentes encarregados de vender os nos fundos suplementares. Sem sucesso, taxas de lucros mais elevadas que os outros.
serviços de Madoff, cujos terrenos de caça lançou novos produtos mais lucrativos e Desde o caso Madoff, assistiu-se a uma
eram justamente os country clubes e os pressionou os feeder funds a limitar suas re- verdadeira epidemia dos esquemas de Pon-
campos de golfe frequentados pelos mais tiradas. No início de dezembro, teria que zi12 e de fraudes do mesmo gênero. O caso
ricos, faziam questão, primeiro, de frisar honrar pedidos de retirada que somavam mais conhecido é o do bilionário texano Al-
que os fundos do célebre Madoff estavam US$ 7 bilhões, enquanto dispunha de me- len Stanford, que pilhou cerca de US$ 9 bi-
fechados e não admitiam novos investido- nos de US$ 1 bilhão no banco. lhões dos clientes de seu banco, Stanford In-
res. Alguns dias depois, esses mesmos A estratégia de confessar-se culpado e ternational Bank, localizado em Antígua.
agentes davam a entender uma vaga possi- evitar um processo permitiu-lhe não abrir o Quando a fronteira entre o virtual e o real é
bilidade de admissão e até de um encontro jogo. Como notou o juiz Denny Chin ao anun- fluida, é relativamente simples tornar real o
com Madoff, sempre reiterando que nada ciar seu veredicto, o estelionatário não reve- lucro fictício, principalmente num contexto
era garantido. No passo seguinte, o finan- lou quase nada de seus esquemas. Não se sa- político, ideológico e regulamentário de
cista se fazia de difícil antes de consentir be ainda quando e por que montou essa desregulação financeira, que criou novas re-
algum espaço ao novo investidor. Feliz de gigantesca operação. “No início dos anos lações de força entre o setor público e o
pertencer a um clube tão seleto, o novo 1990”, respondeu Madoff de forma enigmáti- privado.
membro baixava a guarda, não fazia per- ca, enquanto os promotores suspeitam que Nada mais simples que burlar a vigilân-
guntas e aceitava as condições sine qua a fraude tenha começado pelo menos dez cia dos poderes públicos. Constatou-se a in-
non: não proferia uma palavra para não ser anos antes. Não se sabe também sobre suas competência e ineficácia da SEC, que em-
excluído. “Se investir comigo, não comente motivações: buscava encobrir perdas súbi- preendeu três investigações sobre as
com outros. O que se passa aqui não é da tas em seus negócios legítimos ou em espe- atividades de Madoff sem descobrir nada. A
conta de ninguém9”, dizia Madoff. culações fracassadas, ou desde o início “guerra contra o terrorismo” e a ideologia da
construiu conscientemente essa trapaça autorregulação do mercado sem dúvida
PROMESSAS LUCRATIVAS monumental? Quem são seus cúmplices? O contribuíram para deixar a luta contra os
Como vimos, os esquemas de Ponzi ten- financista afirma ter agido sozinho, o que é crimes de colarinho branco em segundo
dem a um desmonte rápido. A longevidade difícil de crer. Até hoje, só uma pessoa con- plano.13 O discurso débil sobre o “paraíso”
do sistema de Madoff se explica pela tensão fessou ter participado do esquema: David da mundialização financeira e a perfeição
geográfica progressiva e, sobretudo, pelo re- Friehling, auditor de longa data da BMIS. E quase platônica do regime regulamentário
curso sistemático de construir uma rede quanto ao papel de sua mulher, da qual era cuidou de anestesiar e reassegurar a lógica
planetária de feeder funds (alimentadores de inseparável e que, na véspera de sua prisão, financeira.14 Não por acaso, em outubro de
fundos) e de grandes bancos que prometiam havia retirado US$ 15 milhões da conta da 2007, Madoff afirmava: “No quadro regula-
investimentos fortemente lucrativos – em empresa? E o restante da família? mentário atual, é praticamente impossível
geral, sem fazer referências a Madoff. Era as- Rastrear fluxos financeiros constitui contornar as regras ou infringir a lei”15.
sim, com essa grande discrição, que o finan- um verdadeiro pesadelo contábil e jurídi-
cista podia captar poupanças do mundo co. Assim, a ausência de respostas claras *Ibrahim Warde é professor associado da Universidade
inteiro e gerar o fluxo de capital necessário alimenta rumores e fantasmas. Em pri- Tufts (Medford, Massachusetts, Estados Unidos).
à perduração do esquema. Com efeito, a meiro lugar, qual o valor total da fraude?
maioria dos investidores não depositava O cálculo, que mistura parcelas reais e
diretamente suas economias com o finan- lucros fictícios, é árduo. O tribunal fala
cista, mas sim por meio de fundos como o em US$ 50 bilhões, mas os promotores
Fairfield Greenwich Advisors (US$ 7,5 bi- penam para chegar a essa soma. As ví-
lhões), Tremont Group Holdings (US$ timas querem saber o que lhes resta. 1 Ler “De la Russie à l’Albanie, le vertige de l’argent facile”,
3,3 bilhões), Ascot Partners (US$ 1,8 bi- Até agora, os investigadores não en- Manière de voir n°102, venda on-line pelo site www.mon-
lhão) ou Access International Advisors contraram mais que US$ 1,2 bilhão. de-diplomatique.fr
2 Mais informações em: www.businessinsider.com/2008/12/
(US$ 1,5 bilhão). Cerca de 15.400 ações foram im-
bernie-madoff-hosed-client-list
Da mesma forma, inúmeros ban- petradas na justiça contra Madoff.11 3 O esquema em pirâmide – em que o dinheiro dos novos
cos comercializavam as aplicações Um número incalculável de reclama- investidores paga os investidores mais antigos como se
investidas com Madoff: Santander ções está direcionado a diversos fun- fosse lucro da empresa, sem qualquer receita real gerada
(US$ 2,87 bilhões), Bank Médici (US$ dos e instituições, diretamente ou – ficou conhecido também por esquema Ponzi em referên-
cia a Carlo Ponzi (ou Charles Ponzi), italiano que emigrou
2,1 bilhões), Fortis (US$ 1,35 milhão), indiretamente implicados no caso.
para os Estados Unidos. Em 1920, ele foi autor de uma
HSBC (US$ 1 bilhão), UBP (US$ 700 Sem dúvida, o nível de responsa- fraude financeira do tipo pirâmide que envolveu cerca de
milhões), Natixis (US$ 554 milhões) bilidade varia e vai da cumplici- U$ 20 milhões à época. Após passar um período na pri-
ou Royal Bank of Scotland (US$ dade ativa à culpa inocente. De são, Ponzi morreu na miséria, em 1949, no Brasil.
493 milhões).10 todos os modos, os intermedi- 4 Tom McElroy, “Madoff Ordered to Forfeit over $170
billion”, The Boston Globe, 26 de junho de 2009, e Diana
Como explicar o forte interesse ários faltaram com suas obriga-
B. Henriques, “Madoff is Sentenced to 150 Years for Pon-
de grandes instituições financeiras em “ad- ções fiduciárias: as remunerações eram ex- zi Scheme”, The New York Times, 29 de junho de 2009.
quirir Madoff”, muitas vezes sem o conhe- cessivas e injustificadas; eles falharam com 5 Julie Creswell e Landon Thomas, Jr., “The Talented Mr. Ma-
cimento de seus clientes? Simples: pelos seu dever de controlar e verificar os inúme- doff”, The New York Times, 24 de janeiro de 2009.
bons resultados alcançados e por um siste- ros sinais de alarme. 6 Ross Kerber e Hinda Mandell, “Trust was undoing for
many charities: A wide swath of philanthropies entrusted
ma de comissões e descontos vantajosos.
significant portions of their portfolios to Bernard Madoff”,
Ezra Merkin, antigo diretor da GMAC – fi- RESTITUIÇÃO DAS VÍTIMAS The Boston Globe, 21 de dezembro de 2008.
lial financeira da General Motors – e grande Os problemas da restituição e dos cál- 7 Mais informações em: www.portfolio.com/executi-
especialista em organizações sem fins lu- culos de indenização constituem outro ves/2009/02/26/Elie-Wiesel-and-Bernard-Madoff
crativos, está hoje na berlinda: ele havia ga- quebra-cabeça, já que as vítimas do viga- 8 A técnica consiste em comprar, simultaneamente, ações de
grandes empresas, as do índice S&P 100, uma opção de
nhado, por meio de seu fundo especulativo rista não estão todas na mesma situação:
venda (“put”) para essas ações e vender uma opção de ven-
Ascot Partners, US$ 470 milhões por um to- há bilionários e pequenos investidores, da (“call”), com o objetivo de limitar a volatilidade dos títulos.
tal de US$ 2,4 bilhões confiados a Madoff ao fundos de investimentos pouco atingidos e 9 Erin E. Arvedlund, “Don’t ask, don’t tell: Bernie Madoff is
longo dos anos. famílias que perderam tudo, sem mencio- so secretive, he even asks investors to keep mum”,
A crise financeira de 2008 abalou os ne- nar as organizações de caridade. Já foi esta- Barron’s, Nova York, 7 de maio de 2001.
10 Mais informações: http://s.wsj.net/public/resources/do-
gócios de Madoff. Aparentemente, os investi- belecida uma distinção entre os investido-
cuments/st_madoff_victims_20081215.html
mentos da sociedade Bernard L. Madoff In- res diretos de Madoff, que poderão ser 11 Larry Neumeister, “Madoff won’t appeal 150-year senten-
vestments Securities, mais lucrativos que indenizados em até US$ 500 mil pela Secu- ce”, The Boston Globe, 10 de julho de 2009.
nunca, resistiam como uma rocha à tempes- rities Investor Protection Corporation – 12 Ver Jeremy Grant, “Ponzi schemes seek mercy after Mado-
tade na Bolsa. Quanto Corporação de Proteção do Investidor em ff case prompts confessions”, Financial Times, Londres,
19 de janeiro de 2009, e Joanna Chung, “Tough times
mais o mercado afun- Títulos, organismo sem fins lucrativos en- bring ‘Ponzimonium’”, Financial Times, 29 de junho de
dava, mais sua ren- carregado da proteção de investimentos e 2009.
© Daniel Kondo

tabilidade fictícia de investidores – e os investidores indire- 13 Ibrahim Warde, The orice of fear: the truth behind the fi-
parecia excepcio- tos, que não têm direito a ressarcimento. nancial war on terror, University of California Press, Berke-
nal. Porém, mui- ley, 2007; e Ibrahim Warde, Propagande impériale et guer-
Irving Picard, administrador do dossiê,
re financière contre le terrorisme, Agone, Marseille, 2007.
tos investidores ainda não definiu posição com relação aos 14 Eric Briys et François de Varenne, La mondialisation finan-
solicitaram a reti- investidores ganhadores – aqueles que, em cière: Enfer ou paradis, Economica, Paris, 1999.
rada de seus investi- vez de deixar a aplicação render aos poucos, 15 Assista: www.youtube.com/watch?v=ab1NTIlO-FM
18 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

SAÍDAS PARA A CRISE

Na Flórida, muitas
maneiras de recomeçar
Sem emprego e despejada de suas casas por não pagar a hipoteca, parte da população dos Estados Unidos
busca meios para sobreviver à crise econômica. De plantação de maconha à fundação de um movimento de
ocupação de prédios inspirado nos sem-terra do Brasil, tudo aparece como alternativa para superar as dificuldades
POR OLIVIER CYRAN*

É
um casarão de cartão postal: tem quiseram ganhar dinheiro demais, e a dos A reconversão dos foreclosures em estu- potes de manteiga de amendoim – “um pro-
garagem, gramado para churrasco e especuladores, sejam eles do Brooklyn, da fas clandestinas tem dado trabalho às auto- duto muito nutritivo”, diz ela, com um ar jo-
mastro para hastear a bandeira dos Alemanha ou da Venezuela, que compraram ridades. Em 2008, a polícia de Lehigh Acres vial. Entre outubro de 2008 e abril de 2009,
Estados Unidos. Uma residência co- casas na planta sem se preocupar com os lo- apreendeu mais de 3 mil plantas de canna- sua equipe distribuiu essas conservas a
mo milhares de outras em Lehigh catários que viveriam dentro delas. Hoje, bis. Mas, segundo os policiais, é impossível 1.245 famílias. “Algumas não têm mais água
Acres. “À venda”, anuncia a placa na entrada. eles deixam as construções apodrecer em revistar cada uma das cerca de 1.500 casas nem eletricidade”, destaca. “Os que perde-
“Invendável”, corrige Tom1, um risonho co- pé. Cerca de 20% das 10 mil casas construí- vagas, dispersas em um território quatro ve- ram a casa dormem no carro, refugiam-se
legial de 17 anos. O gramado está coberto de das na época nunca foram habitadas. Agora zes maior que Manhattan. “As pessoas estão na casa de pessoas próximas ou vão não se
lixo, e a porta da garagem foi substituída por os bancos ficaram mais prudentes, mas es- cada vez mais pobres, o que aumenta muito sabe para onde, pois não há albergue para
um tapume improvisado. Quanto ao mas- tão obstinados em desalojar os proprietários o tráfico de drogas e a delinquência juvenil”, aqueles sem domicílio fixo em Lehigh Acres.
tro, ele não ouve mais o estalar das cores ver- endividados. Isso é absurdo, porque os des- reconhece o tenente da polícia, Richard O. Nós ajudamos como podemos, mas não há
melha e azul desde que o banco despejou pejos acabam desvalorizando todas as casas Dobson. “A isso se acrescenta o fato de que orçamento para isso; nós só trabalhamos
seus proprietários, em 2007. De lanterna na ainda habitadas da vizinhança. Os bancos as casas perderam 70% de seu valor. Latinos graças às doações e ao voluntariado.”
mão, Tom dá a volta na casa e para diante de colocam as pessoas na rua para recuperar de Miami aproveitam então para comprá- Na pequena sala de espera do Lehigh
uma janela bloqueada com duas tábuas em aquilo que eles sabem que não vão conse- las e cultivar sua marijuana. Não há uma se- Community Services, um quinquagenário
forma de cruz. “Vem, é por aqui.” Assovian- guir revender.” mana sem prisões e já muramos mais de atarracado, com o rosto queimado de sol,
do, ele levanta uma das ripas e desliza pra Agora, uma casa que saía por US$ 300 uma centena de casas. Mas não podemos aguarda examinando os prospectos. Jimmy
dentro da cozinha. mil em 2004, sofre para encontrar compra- controlar tudo.” Quando lhe contamos as trabalhou durante 27 anos como bombeiro,
Um forte odor de mofo recebe os visi- dor por menos de US$ 100 mil. Otimista, declarações do tenente Dobson, Tom dá de antes de ser despedido, há uma semana. É a
tantes: é vestígio da inundação que aconte- Edward Weiner nota, entretanto, que o nú- ombros. “A polícia coloca tudo nas costa dos primeira vez que solicita ajuda alimentar.
ceu quando a pia foi arrancada, no dia do mero de despejos operados em março (2.100) cubanos. Eu conheço um bocado de gente “Minha casa foi construída com minhas
despejo. “Meu tio e a mulher dele quebra- foi ligeiramente inferior ao de fevereiro da região que pratica o mesmo business.” próprias mãos, ninguém vai tomá-la de
ram tudo quando foram embora”, explica (2.300). “A retomada é para daqui a 18 me- Impotente para lutar contra a prolifera- mim”, diz ele. “Mas, mesmo assim, estou en-
nosso guia. “Todo mundo faz isso, é nor- ses, no máximo”, afirma. ção das plantações, a polícia chamou os ha- dividado até o pescoço, por causa dos em-
mal. É a única maneira de se vingar um bitantes para ajudar, por meio de um pro- préstimos que tive de fazer para cobrir dívi-
pouco desses salafrários dos banqueiros.” grama batizado com o bucólico nome de das mais antigas. A crise veio como uma
Descoberta pelo feixe luminoso de sua lan- Weed and seed (erva e semente). “O Weed é martelada: de um dia para o outro, tudo ti-
terna, uma página de calendário represen-
“Meus pais já sabem que para os bad guys [os caras maus]”, rosna o nha acabado.”
tando um pôr-do-sol em uma praia da Fló- não poderão pagar meus policial. “Seed, em compensação, remete à E o programa de retomada da economia
rida repousa entre os escombros. Atrás da estudos. Então, para ideia de implicar a comunidade, primeiro do presidente Barack Obama? Ele não obriga
cozinha, uma escada conduz a um peque- distribuindo alimentos e roupas para ela, os bancos a renegociar seus empréstimos
no porão, onde Tom revela seu pequeno
garantir meu futuro, eu depois a convidando a nos chamar quando para as famílias superendividadas? “Isso
empreendimento: dez plantas de cannabis tinha de escolher entre a vê alguma coisa suspeita.” Tom faz uma ca- funciona para quem tem renda, não para
regadas por um gotejador e iluminadas por erva e o exército. Escolhi reta de quem não está convencido: “Eles quem não tem nada”, retruca Jimmy. Kaye
lâmpadas fluorescentes. acham que vão controlar o problema distri- concorda: “No caso das pessoas que vêm
“É uma época formidável para fazer ne- a erva”, afirma Tom buindo manteiga de amendoim e encora- aqui, nenhum banco aceitou renegociar
gócios. Nunca passei por um período tão ex- jando as denúncias. Mas não se pode impe- seus empréstimos. E há quem ainda fique
citante!”, regozijava-se o bilionário Donald dir pessoas que não têm mais nada de querer espantado de que as famílias expulsas de
Trump, no dia 15 de abril, na rede de televi- Enquanto isso, os serviços continuam sair dessa situação. Meus pais talvez consi- casa expressem sua cólera destruindo o
são CNN. O fato de que a crise oferece opor- desaparecendo aos milhares. A taxa de de- gam manter a casa, porque minha mãe ain- imóvel. Foi o que nossos vizinhos fizeram, e
tunidades a quem sabe aproveitar também semprego quase quadruplicou em dois anos, da tem emprego. Mas eles já sabem que não eu não os culpo”.
não escapou a Tom, que reivindica ser um passando de 3,5%, em março de 2007, para poderão pagar meus estudos. Então, para Uma mãe cubana entreabre a porta, vi-
“jovem empreendedor independente”. Seu 12%, em março de 2009. A combinação das garantir meu futuro, eu tinha de escolher sivelmente constrangida, à procura de co-
pai, técnico de construção civil, perdeu o perdas de trabalho e dos foreclosures (em- entre a erva e o exército. Escolhi a erva”. mida. Do lado de fora, seu marido e as duas
emprego depois que Lehigh Acres, o inter- bargos de bens imobiliários hipotecados), Os dois filhos de uma vizinha fizeram crianças esperam no carro, com um cartaz
minável subúrbio de Fort Myers, na costa aliada ao urbanismo típico da classe média uma opção diferente: um se engajou nos fu- “à venda” colado no vidro traseiro. “Coita-
oeste da Flórida, se transformou em uma zo- americana – uma fileira de casas plantadas a zileiros navais e o outro na Marinha. Suas dos”, suspira Kaye. “Quando se perde a casa,
na em declínio. Sua descida ao inferno dos boa distância uma da outra, em dezenas de fotos emolduradas reinam sobre o escritório ainda se pode dormir no carro. Mas quem
embargos imobiliários chegou a receber até quilômetros de asfalto sem pedestres, entre- da mãe, Pamela Kaye, diretora adjunta do perde também o carro está arruinado. So-
as honras da imprensa nacional. “Seja bem- cortadas aqui ou ali apenas por uma igreja, Lehigh Community Services, instituição de bretudo aqui, onde as distâncias são tão
vindo ao sonho americano, mas em marcha um centro comercial ou um terreno de golfe serviço social da cidade. “Eu me orgulho dos grandes e os ônibus tão raros.” Bastará, no
a ré”, ironizou o New York Times.2 desativado –, favoreceu as vocações de... meus meninos”, diz ela. “De qualquer modo, entanto, uma visita ao Plattner’s, revende-
Todavia, durante o boom especulativo plantação. “As casas vazias se prestam a is- eles tinham que partir. Depois que nossos dora de carros usados, para constatar que
do início dos anos 2000, as casas ali eram so”, destaca Tom. “Na do meu tio, além de vizinhos mais próximos foram expulsos, esse não é um caso isolado. “Há mais pesso-
disputadíssimas. “Não era um subúrbio, tudo, eles não cortaram a eletricidade. O não nos sentimos mais em segurança. Meu as querendo vender que comprar”, lamenta
mas uma cidade cogumelo, que passou de banco não consegue revendê-la, então por marido quer comprar um fuzil, mas eu não um funcionário, que cita o “mercado
30 mil para 80 mil habitantes em três anos”, que não torná-la útil para alguma coisa? Eu gosto de armas de fogo.” saturado”.
recorda Edward Weiner, arquiteto, membro passo de tempos em tempos para verificar Kaye coordena o projeto de ajuda ali- Contudo, o estudante, o policial, o ar-
da câmara de comércio local. “Mas nós su- se está tudo bem. Se os tiras aparecerem, mentar integrado ao programa Weed and quiteto, o trabalhador desempregado e a as-
bestimamos a ambição dos bancos, que não vão saber que sou eu.” seed: pacotes de leite, doces, massas, arroz, sistente social compartilham a convicção de
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 19

que a crise não pode se agravar ainda mais e É verdade que ela ganha “um pouco me- são. Nossa equipe efetua pequenos traba- convencer os habitantes que se mostravam
que, amanhã, tudo será melhor. Jimmy foi nos de dinheiro hoje que no momento do lhos, religa a eletricidade ou instala eletro- céticos”, conta Rameau. “Depois, criamos
convencido: “A Flórida é um estado dinâmi- boom”, como admite no terraço de um café domésticos recuperados, mas não temos um grupo mais restrito encarregado de ir de
co, a economia irá necessariamente reagir”. de South Beach, o bairro atraente de Miami. como fazer grandes obras. Depois, é preciso porta em porta. Quando passamos à ação,
“Eu sou otimista, a construção vai se reer- Mas não se queixa. Sua clientela, 100% fran- contar com a polícia de Miami, uma das as pessoas ficaram tão espantadas de ver
guer”, garante também o tenente Dobson. cesa, não se limita mais apenas aos donos de mais detestáveis dos Estados Unidos. Nossa que não estávamos blefando, que nos apoia-
“Daqui a alguns meses, eu vou achar empre- pequenas e médias empresas (PME) e aos sorte é que a crise é tão grave que os policiais ram maciçamente. É isso que explica que a
go, e só cultivarei erva para meu consumo quadros superiores. O botim dos bons negó- não têm tempo nem vontade de piorar as prefeitura não tenha nos desalojado.”
pessoal”, conclui Tom, às gargalhadas. cios se democratizou: “Todo dia recebo coisas. Eles sabem que o bairro está por trás Inspirando-se no movimento dos sem-
Embora desconcertante, será que esse mensagens de pessoas que dispõem de um de nós, e provocar uma rebelião não é a prio- terra brasileiros e das aldeias ashanti, na
otimismo é totalmente infundado? Certa- orçamento inferior a US$ 150 mil, aposenta- ridade do dia.” África do Sul, o coletivo implantou um lo-
mente não, a julgar pela profusão de sítios na dos, comerciantes... Nunca tive tantos clien- Nascido de pais haitianos, leitor de Franz cal de convivência autogerido, onde ape-
internet propondo que uma clientela fran- tes pobres!”, solta Bénichay em uma explo- Fanon e dos Panteras Negras, Rameau qua- nas o álcool, as drogas e o assédio sexual
cesa venha “comprar e investir na Flórida”. são de riso. “Ah, a Flórida, ela sempre nos faz se se alegra com a irrupção da crise, que, pe- eram proibidos. A “aldeia”, chamada de
Com 549.414 embargos imobiliários em sonhar.” lo menos em seu bairro, freou provisoria- Umoja (“unidade”, em suaíli), prosperou
2008, que a colocam em segundo lugar entre mente a voracidade imobiliária. Isso porque, por seis meses, até que um incêndio a des-
os estados americanos mais afetados pela “RETOMAR A TERRA” a despeito dos vendedores de crack e das cal- truiu, em uma noite de abril de 2007. “No
crise, só ficando atrás da Califórnia, a Flóri- Assim como seus colegas gestores de çadas esburacadas, Liberty City não foi pou- dia seguinte, as escavadeiras haviam des-
da apresenta de fato “imensas possibilida- fortunas, a dona da Rich Homes of Florida pado pelo boom do início dos anos 2000. truído tudo o que ainda estava de pé. Nun-
des para os investidores”, além de “oportu- pode encarar o futuro com confiança: “Es- Uma prova disso é o terreno vago fechado ca houve inquérito.”4
nidade de diversificação de investimentos a tamos com 1,7 milhão de embargos imobili- com tapumes na esquina da 17ª avenida. O procedimento de retomar dos bancos
preços claramente inferiores aos praticados ários no conjunto dos Estados Unidos, e es- “Em 2006, a prefeitura quis oferecer esse o que eles tomaram espanta uma grande
na Europa”, como anuncia o sítio mona- tima-se que isso continue até 2012”. Ela diz quinhão a promotores para a construção de quantidade de americanos, e não apenas os
ppartamiami.com. “Uma casa com piscina se sentir “muito à vontade com a mentalida- apartamentos de luxo. Esse projeto inseria- agentes imobiliários, como mostram os co-
na Flórida? Um sonho enfim acessível, com de americana, que não tem uma relação se no processo de gentrificação3 que come- mentários indignados lançados toda sema-
20 mil euros de entrada”, alegra-se o capflo- sentimental com as coisas”. Quando alguém çou a roer Liberty City a partir dos anos 1990. na no blog de Rameau. “Tomar casas que
ride.com, cuja página inicial exibe um ban- é despejado de sua casa, outro acha normal A maioria dos bairros negros, nos Estados não pertencem a vocês, vocês têm peito”,
ner com este desinibido conselho: “Tire pro- aproveitar a situação. Como se diz por aqui: Unidos, sofreu a mesma evolução: os pro- grita um internauta. “E por que não ir a um
veito da crise norte-americana”. “Eu pago minhas contas, é o que vale”. motores chegam, compram a baixos preços, hotel e exigir que lhes ofereça um quarto
Brigitte Bénichay soube antecipar o con- Há alguns meses, no entanto, um ponto esvaziam os lugares, depois os revendem gratuitamente?”
vite. Instalada em Miami há 20 anos, ela é de vista menos conciliador se manifesta em muito caro. Evidentemente, eles não enfren- “Eles se aferram ao tabu da propriedade,
diretora da Rich Homes of Florida, apresen- Miami. No bairro negro de Liberty City, um tam o coração do bairro, mas suas beiradas. o que não é coisa pouca neste país”, suspira o
tada como “a primeira agência imobiliária dos mais pobres da cidade – e um dos menos Pouco a pouco, o bairro encurta, devorado porta-voz da Take Back the Land. “É bastante
norte-americana dirigida por francófonos”. interessantes aos olhos de Bénichay –, um em suas margens por uma nova população, curioso: a maioria das pessoas acha normal
A seu ver, a crise apresenta, em primeiro lu- coletivo batizado de Take Back the Land geralmente branca ou negra aburguesada. É que tomem sua casa quando o banco recha-
gar, o imenso mérito de ter eliminado alguns (“Retomar a Terra”) recupera à força casas para lutar contra essa situação que criamos ça você, mas tem muito mais dificuldade pa-
de seus concorrentes. “Em 2004, vendíamos expropriadas pelos bancos para alojar famí- a Take Back the Land”, aponta Rameau. ra aceitar que essa casa seja colocada nova-
qualquer coisa, a qualquer um: as pessoas lias desabrigadas. Até o dia de hoje, apenas No dia 23 de outubro de 2006, os mili- mente em uso para alojar famílias.”
faziam fila às 5 h da manhã para comprar dez habitações foram objeto de uma reaqui- tantes da Take Back the Land tomaram o E, no entanto, ele também se declara oti-
um apartamento. Os preços enlouquece- sição durável. É verdade que os obstáculos terreno prometido aos promotores para mista, ainda que não seja pelas mesmas ra-
ram! Na época, todos os franceses de Miami são numerosos. “Em primeiro lugar, é preci- construir cabanas de madeira destinadas zões de Donald Trump: “Nossas ações co-
queriam se tornar agentes imobiliários. É so encontrar casas não muito danificadas”, aos desalojados da vizinhança. “Inicialmen- meçam a ter concorrentes, em Portland,
preciso dizer que é muito fácil abrir uma indica Max Rameau, um dos fundadores do te, organizamos reuniões públicas para Denver e na Califórnia. Somos minoritários
agência nos Estados Unidos: basta conse- coletivo. “Mas a maior parte delas foi depre- por enquanto, mas as pessoas não têm outra
guir uma licença que se resume a um teste dada por seus ocupantes escolha além de dar as mãos. É uma questão
de múltipla escolha. Mas houve abusos e no momento da expul- de sobrevivência. Talvez leve dez anos,
fraudes. Eu conheci um colega que foi em- mas estou convencido de que esta-
bora deixando uma dívida de US$ 40 mos às vésperas de mudanças
milhões. A crise permitiu sociais fundamentais”.
purgar o sistema,
fazer a separação *Olivier Cyran é jornalista.
entre os bons e
os maus.”

1 O nome foi trocado.


2 “In Florida, despair and foreclosures”, The New York Ti-
mes, 8 de fevereiro de 2009.
3 Aburguesamento de um bairro pobre por injeção de famí-
lias de classe média em um prédio novo ou reabilitado.
4 Max Rameau detalha essa experiência em uma obra muito
© Orlando

útil para a compreensão dos mecanismos imobiliários nos


bairros populares: Take back the land: land, gentrification
and the Umoja village shantytown, Nia Press, Miami,
2008.
20 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

TRABALHO

Quem bate à porta? É o


desemprego!
A crise atingiu a todos, mas de forma mais intensa os assalariados sem carteira de trabalho assinada, que
estão, em grande medida, empregados em micro e pequenas empresas, nos serviços domésticos e pessoais.
Contudo, há sinais de que a economia real voltou a criar postos de trabalho, melhorando o cenário para 2010
POR CLEMENTE GANZ LÚCIO*

u não deixo você entrar... A taxa anual indica o movimento na medida, empregados em micro e pequenas vel de ocupação, o desemprego pode crescer

E Há anos, uma loja de departa-


mentos veiculou uma propaganda
na qual o frio batia à porta de uma
residência e recebia a seguinte res-
posta, cantarolada por uma bela mulher:
“Eu não deixo você entrar...”.
Que bom seria se pudéssemos cantar
ocupação sem os efeitos sazonais – por
exemplo, as demissões típicas dos meses de
janeiro e fevereiro – e, portanto, informa as
tendências de curto prazo do mercado de
trabalho e da relação delas com a produção.
Por outro lado, a variação mensal indica a
sazonalidade na criação de novas ocupa-
empresas, nos serviços domésticos e pesso-
ais, e que, uma vez na situação de desempre-
go, não contam com parte da proteção que o
sistema público de emprego oferece por in-
termédio do seguro-desemprego.
As ocupações na indústria são as mais
atingidas pela crise. Em maio de 2009, houve
em termos relativos.
Analistas trabalham com a expectativa
de que o país possa voltar a crescer entre 3%
e 4% em 2010. Isso significa que no segundo
semestre já pode haver sinais dessa mudan-
ça de patamar de crescimento, o que depen-
de da continuidade de uma série de iniciati-
resposta semelhante quando o desemprego ções e novas vagas. Esse indicador está re- redução de 7,5% no nível de ocupação em vas públicas e privadas.
batesse à nossa porta. A réplica poderia vir presentado pelas colunas azuis do gráfico 1. comparação com o mesmo mês do ano pas-
em coro: “Nós não deixamos você entrar, o O aumento de 0,8% ao mês no nível de sado (gráfico 2). O BRASIL EM RELAÇÃO AO MUNDO
nosso sistema público de emprego é capaz ocupação, registrado em setembro e outubro Já a ocupação na construção civil, im- A crise atingiu o Brasil que todos já vi-
de nos proteger”. de 2008, passou para relativa estabilidade pulsionada pelo crescimento do crédito venciavam os dramas da queda da atividade
Com cara de espanto, o desemprego es- em dezembro (0,2%), diminuiu para -1,3% imobiliário e dos investimentos do PAC – econômica e do aumento do desemprego.
cutaria a segunda parte da resposta: “O Es- em janeiro e fevereiro, e em março, a queda Programa de Aceleração do Crescimento, Nos Estados Unidos, em junho, foram
tado vai atuar. Vamos investir, crédito libe- registrada foi de -0,8%. Mesmo levando em cresceu entre junho e dezembro de 2008, di- fechados 467 mil postos de trabalho (em
rar, juros baixar e todos poderão trabalhar”. conta a sazonalidade do início do ano, a in- minuiu nos dois primeiros meses de 2009 e maio haviam sido 322 mil), elevando para
O desemprego bateu à porta do mundo, versão no comportamento da variação anual voltou a crescer em março. Em maio de 2009, quase 14,7 milhões o número de desempre-
inclusive à nossa, e vamos ver de que manei- do nível ocupacional foi intensa, tendo em o aumento registrado foi de 13,4% em rela- gados. Desde o início da crise, o país já eli-
ra o país ousou articular respostas que trou- vista o curto espaço de tempo analisado. ção ao mesmo mês do ano anterior. minou 6,5 milhões de vagas.
xeram resultados importantes. Na zona do euro, hoje com 27 países, a
SINAIS DE MUDANÇA NOS ÚLTIMOS MESES? taxa de desemprego continua a mais alta
COMO O DESEMPREGO BATEU À NOSSA PORTA?
Sazonalmente, nos Parece haver sinais de mudança na di- dos últimos 10 anos e atingiu 9,5% em maio.
Em setembro de 2008, a crise financeira nâmica ocupacional, indicando que está Na Espanha, por exemplo, a taxa de desem-
internacional deslocou-se rapidamente pa- primeiros meses do ano, para ocorrer uma alteração positiva na eco- prego atingiu 18,7% nesse mesmo mês.
ra a economia real. O pânico se espalhou, o observa-se a redução do nomia real. A partir de março deste ano, a O desemprego gera queda na massa de
sistema financeiro mundial travou o crédito queda da variação do nível anual de ocupa- rendimentos, diminui a renda real média,
e as transações comerciais ficaram sem ins-
ingresso de pessoas no ção foi interrompida (gráfico 1). Por sua vez, com sérios impactos para o mercado inter-
trumentos financeiros operativos. O desco- mercado. Em 2009, a crise a variação mensal do nível de ocupação vol- no de cada país, o que agrava ainda mais a
lamento entre os ativos financeiros e os reais e seus efeitos tendem a tou a ser positiva em 0,3% e 0,5%, em abril e recessão. Trata-se de uma espiral para bai-
gerou uma crise mundial de confiança, que maio de 2009. xo, que cria inseguranças, desincentivos e
rapidamente começou a reduzir o nível da adiar esse crescimento Há sinais de que a economia real voltou a atitudes protecionistas de toda a espécie.
atividade produtiva, jogando as economias criar postos de trabalho e pode indicar a rea- No Brasil, entre dezembro e janeiro fo-
em recessão. ção esperada e decorrente das medidas toma- ram eliminados cerca de 756 mil postos de
No Brasil, apesar de o nosso sistema fi- O indicador do nível de atividade econô- das para gerar um movimento anticíclico. trabalho formal em todo o país. De fevereiro
nanceiro ser relativamente regulado, de mica do quarto trimestre de 2008 revelou a maio os resultados passaram a ser positi-
haver equilíbrio nas contas públicas e da uma dramática queda do produto interno E COMO FICARÁ O DESEMPREGO EM 2009? vos: foram criados em torno de 281 mil novos
atuação segura do Estado, além de um sig- bruto. Em comparação com o quarto tri- A queda na atividade econômica reduziu postos de trabalho. Será que além de entrar-
nificativo crescimento econômico nos últi- mestre de 2007, o PIB aumentou apenas o ritmo da criação de postos de trabalho. O mos depois, iremos sair antes da crise? Se is-
mos anos, os bancos conseguiram frear o 1,3%. No primeiro trimestre de 2009, verifi- desemprego cresceu acima do esperado para so ocorrer, será um feito inédito. Bom para o
sistema financeiro nacional, internalizan- cou-se a redução de 1,8% em relação ao mes- o início do ano. A taxa chegou a 15,3%, supe- país, melhor ainda para os brasileiros.
do rapidamente a crise para a economia re- mo período do ano anterior. rior aos 14,8% registrados em maio de 2008. Em abril, a renda média dos ocupados
al. A liquidez desapareceu, o crédito se es- Esse resultado demonstra que o desem- Se a crise não tivesse ocorrido, era de esperar apresentou variação positiva mensal de
vaiu e as empresas iniciaram um processo prego chegou ao Brasil e transformou nova- uma taxa de desemprego menor neste ano. 0,3% e um incremento de 1,1% em relação ao
de ajuste no nível de atividade, com conse- mente em pesadelo o sonho da geração con- Sazonalmente, nos primeiros meses do mesmo mês em 2008. Já a massa de rendi-
quente impacto sobre o emprego. tinuada de novos postos de trabalho e ano, observa-se redução do ingresso de pes- mentos teve queda até março deste ano, po-
Desde setembro de 2008 (gráfico 1), a redução gradativa do desemprego de longa soas no mercado de trabalho. Em 2009, a cri- rém voltou a crescer em abril, permanecen-
curva descendente da variação do nível de duração, presente em nossa sociedade. se e seus efeitos tendem a adiar o movimento do ainda em patamares superiores aos
ocupação total demonstra que, durante seis A partir de novembro, verificou-se dis- de crescimento da população economica- verificados no mesmo período do ano pas-
meses, o mercado de trabalho perdeu gra- creta redução do nível de ocupação dos as- mente ativa. sado. O mercado interno agradece, a produ-
dativamente vitalidade na geração de pos- salariados com carteira assinada – menos A retração na procura de trabalho não ção envia saudações, o emprego vibra.
tos de trabalho. intensa que a dos trabalhadores assalaria- agrava os resultados do desemprego, mas
As taxas anuais de variação do nível de dos sem carteira. Já para os autônomos, o quando os postos de trabalho voltarem a O BRASIL QUE ATUA DIANTE DA CRISE
ocupação diminuíram de 5,6% ao ano, em comportamento foi diferente, com quedas e aparecer ou a necessidade se fizer presente, É crucial manter – e mesmo ampliar – a
setembro de 2008 – quando o PIB do tercei- aumentos no nível de ocupação no período. as pessoas reingressarão no mercado de tra- massa de rendimentos como mecanismo
ro trimestre cresceu 6,8% em relação ao A crise atingiu a todos, mas de forma balho em busca de um novo posto, elevarão de animação do mercado interno e, por-
mesmo período de 2007 – para 1,1% em mais intensa os assalariados sem carteira de o contingente da população economica- tanto, de vigor na própria dinâmica do mer-
maio de 2009. trabalho assinada, que estão, em grande mente ativa e, mesmo com ampliação do ní- cado de trabalho.
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 21

É importante destacar que houve inicia- ais injetados na economia real, por meio do
tiva e rapidez do governo ao colocar o Estado bolso do trabalhador, que transforma cada GRÁFICO 1
para atuar no enfrentamento da crise, ao real em consumo de produtos gerados, em Variação do Nível de Ocupação Total / Regiões Metropolitanas e Distrito Federal (1)
construir ou revigorar as políticas com in- grande parte, internamente. Maio de 2008 – Maio de 2009
tencionalidade anticíclica. A política de transferência de renda por
As medidas iniciais visaram liberar liqui- meio do programa Bolsa Família coloca
dez, por meio da diminuição do compulsório mais R$ 12 bilhões na economia, gerando a
dos bancos, das garantias alocadas pelo Ban- possibilidade de um “novo” micro-orça-
co Central, pelos aportes do BNDES, seguidas mento, aquele dos totalmente excluídos que
por ações de desoneração tributária, como a passam a ter a oportunidade de ingressar no
política de redução do IPI para automóveis, mercado de consumo. Não é por menos que
depois caminhões, linha branca etc. a taxa de crescimento do comércio no Nor-
Também foi significativo o aumento em deste é mais que o dobro da verificada no Sul
mais de R$ 140 bilhões nos investimentos do ou Sudeste. O financiamento à pequena
PAC, bem como o programa de habitação produção rural por meio do Pronaf – Progra-
para mobilizar a construção de 1 milhão de ma Nacional de Apoio à Agricultura Fami-
novas moradias para os mais pobres, entre liar coloca outros bilhões na produção de
outras medidas. alimentos, garantindo oferta e preços bai-
Governos estaduais também realiza- xos na mesa do trabalhador.
ram ações com importantes impactos. As- A inflação em queda é outro elemento
sim como as empresas públicas, com des- fundamental nesse momento. Além de im-
taque para a Petrobras, o Banco do Brasil e pedir a queda dos rendimentos reais e do
a Caixa Econômica Federal, foram instru- poder de compra, essa situação ajuda o mo-
mentos de que o Estado brasileiro dispôs vimento sindical a buscar nas mesas de ne- 

Fonte: Dieese, Seade, MTE/FAT e convênios regionais. PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego.
para formular e operar políticas dessa mag- gociação a manutenção ou ampliação dos
(1) Corresponde ao total das regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo
nitude. Essas medidas atuam também no direitos presentes nas relações de trabalho. e ao Distrito Federal.
sentido de formar as expectativas dos agen- Pesquisa do Dieese indica que em 100 acor-
tes econômicos. dos ou convenções coletivas de trabalho, ce-
Recentemente foram anunciadas ações lebrados de janeiro a maio de 2009, os resul-
de fortalecimento da presença do Estado no tados são idênticos aos observados no ano
GRÁFICO 2
apoio ao investimento privado, fundamen- passado ou até melhores, uma vez que 96%
Índices do Nível de Ocupação, por Posição na Ocupação – Regiões Metropolitanas
tais para a perspectiva de médio e longo pra- das negociações asseguraram pelo menos a e Distrito Federal (1) – Maio de 2008 – Maio de 2009
zo. O investimento é o garantidor estrutural recomposição das perdas ocorridas durante
da taxa de crescimento e da geração de pos- a data-base.
tos de trabalho.
Com Carteira Sem Carteira Autônomo
Não se pode deixar de indicar o atraso na SE FOSSE POSSÍVEL UMA CONCLUSÃO
redução da taxa básica de juros, ao longo do Crises não são novidade na vida deste 110,
Base: maio de
segundo semestre, prática que só agravou os país, e a nação acostumou-se a enfrentá-las.
péssimos resultados do PIB no período. O movimento sindical, por exemplo, deu
Neste ano, o Banco Central começou mais uma vez demonstração de que soube 104, 104,
um movimento de redução da taxa de ju- atuar para preservar o emprego. Negociou
ros, o que significa alívio fiscal e forte indi- diretamente com as empresas e empresá-
cação de atividade econômica. Ainda exis- rios acordos que preservaram empregos.
te espaço para avançar na redução dessa Soube atuar nas macronegociações, pro- 98, 97,
taxa, colocando o país no rol das nações pondo medidas de redução de impostos pa-
que praticam taxas de juros compatíveis ra a produção, e depois exigindo as contra- 94,
com o nível de rentabilidade da economia partidas sociais e trabalhistas ausentes nas 92,
real. Não se pode e nem se deve perder essa primeiras reduções tributárias promovidas Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Jan Fev Mar Abr Mai
oportunidade, como contribuição até mes- pelo governo federal. Demandou a amplia- 08
0 09
0
mo para posicionar a taxa de câmbio em ção do seguro desemprego, apoiou a am-
patamares mais confortáveis para as rela- pliação dos recursos para a formação profis- Fonte: Dieese, Seade, MTE/FAT e convênios regionais. PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego.
ções comerciais brasileiras. sional, propôs medidas anticíclicas, como a (1) Corresponde ao total das regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo e ao
Distrito Federal.
construção de casas e saneamento. Fortale-
QUANDO O SOCIAL SEGURA A ECONOMIA ceu a ação pela redução da jornada de traba-
Redescobriu-se o valor e o potencial do lho e defendeu medidas contra a dispensa
mercado interno brasileiro. Trata-se de um arbitrária, entre outras.
mercado de trabalho de mais de 90 milhões É preciso garantir, na medida em que a GRÁFICO 3
de ocupados.1 Basta ver a importância que o situação se normalizar, que os avanços con- Índices do Nível de Ocupação, por Setor de Atividade – Regiões Metropolitanas e Distrito
investimento e o consumo das famílias tive- seguidos neste momento sejam preserva- Federal (1) – Maio de 2008 – Maio de 2009
ram no crescimento econômico ao longo dos, como, por exemplo, o princípio das con-
dos últimos quatro anos. Sobretudo no pri- trapartidas sociais e trabalhistas diante dos
meiro trimestre de 2009, o crescimento do investimentos feitos com recursos públicos.
Base: maio de 2008 = 100
consumo das famílias, de 1,3% em relação O mundo levará alguns anos para voltar
ao mesmo período do ano anterior, foi res- a ter um crescimento adequado. Porém, ao
ponsável por amortecer a queda do PIB. desejar o crescimento, não se pode perder a
As desigualdades sociais e econômi- oportunidade de afirmar que o modelo ob-
cas, as crises que derrubaram várias vezes servado até então não interessa mais.
o país, o baixo crescimento dos anos 90, a O crescimento deve levar o mundo, e o
estratégia de crescimento assentada forte- nosso país em particular, a alterar estrutu-
mente no mercado externo, entre outros ralmente as situações de desigualdade de
motivos, deixaram inerte o mercado inter- diferentes matizes, que geram tantos dese-
no. Há uma mudança relevante que preci- quilíbrios, conflitos e injustiças.
sa ser preservada. Mas o desenvolvimento sustentável, es-
A retomada do crescimento econômico se desejo de viver bem a relação com os ou-
continuado, que o país passou a experimen- tros e com o meio ambiente, só será factível
tar desde 2004, fez saltar o número de traba- se o crescimento estiver contido em um no-
lhadores com carteira assinada: passou de vo projeto de desenvolvimento.
25 milhões para mais de 40 milhões ao final
de 2008. Cresceu o número de ocupados, au- *Clemente Ganz Lúcio é diretor técnico do Dieese (De-
mentou a massa de rendimentos, o mercado partamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioe-
interno foi fortalecido. Mas não é só isso. Há conômicos) e membro do Conselho de Desenvolvimento
uma política negociada de valorização do Econômico e Social – CDES. Fonte: Dieese, Seade, MTE/FAT e convênios regionais. PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego.
(1) Corresponde ao total das regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo e ao
salário mínimo que eleva o rendimento dos Distrito Federal.
mais pobres em quase 50% em termos reais 1 Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de (2) Inclui reformas e reparações de edificações.
nos últimos anos, bem como os benefícios, Domicílios 2007, realizada pelo Instituto Brasileiro de Ge- (3) Inclui serviços domésticos e outros setores de atividade não mencionados.
aposentadorias e pensões. São bilhões de re- ografia e Estatística – IBGE.
22 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

DISPUTA REGIONAL

Democracia no
mundo árabe
Além do tradicional nacionalismo pós-colonial, fossilizado nos regimes autoritários, e das formas de resistência
que se exprimem nas organizações islamitas, existe também outro movimento entre os árabes: o secular.
Atualmente, estas três vertentes disputam a região, cujo futuro pós-crise econômica permanece indefinido
POR HICHAM BEN ABDALLAH EL ALAOUI*

o mundo árabe, o abalo econômi-

N co mundial se mescla a uma crise


de legitimidade latente há déca-
das. Quer seja avaliada pelo pris-
ma do neocolonialismo, de uma
democratização insuficiente ou de um con-
flito cultural e religioso, essa crise resistiu a
todas as tentativas de solução, seja pelas
mãos de atores bem-intencionados ou de
dirigentes brutais. Essa ausência de legiti-
midade se traduziu em um conjunto de dis-
paridades que provocaram verdadeiros
abismos entre governantes e governados,
entre laicos e fundamentalistas religiosos,
entre a população pobre e a elite. Dentro de
uma atmosfera de marasmo econômico,
ela pode facilmente levar a uma série de ex-
plosões imprevisíveis e perigosas.
Na tentativa de evitá-las, é preciso rea-
prender algumas lições da história. Já assis-
timos a vários episódios de heroísmo, de
união e de sucesso sob a bandeira do “nacio-
nalismo árabe”, expressão que definiu – e
também estimulou – inúmeros movimentos

© Abid Katib/Getty Images


de agentes que transformaram a região. Pôr
fim ao colonialismo não era uma tarefa das
mais fáceis, e foi o nacionalismo árabe quem
ganhou essa batalha.
Esse movimento não tinha nada de per-
feito: a exemplo de outras correntes reforma-
doras, ele se desviou de sua trajetória e sofreu
múltiplas alterações. Mas também propor-
cionou aos povos que lutavam pela autode- Vitorioso nas eleições, o Hamas conta com o apoio da população não por ser sunita, mas por enfrentar o Estado de Israel
terminação uma perspectiva unitária e um
futuro promissor, que ia além dos interesses
individuais, confessionais e nacionais, um
projeto que os mobilizou em uma ação cole-
tiva. Hoje em dia, seus componentes ainda do a grande nação árabe no imaginário po- cuo, depois da Guerra dos Seis Dias, em ju- fervoroso defensor da independência nacio-
impregnam nosso imaginário, como atesta a lítico e ainda que não possamos ignorar nho de 1967. Em 1973 conheceu um novo nal. Historicamente, o nacionalismo árabe e
permanência das manifestações de apoio à que o islamismo tomou das mãos do nacio- impulso, com a guerra israelo-árabe de ou- os movimentos islamitas compartilharam
causa palestina. Apesar dos repetidos esfor- nalismo árabe a bandeira da resistência, tubro, e o embargo do petróleo. certo número de princípios: a busca de uma
ços dos governantes ocidentais – e de suas não devemos nos surpreender: além dos sé- Resumindo, os diversos movimentos de consciência coletiva unificada, o desejo de
pressões sobre os países “amigos” da região rios reveses sofridos por este último, ao lon- libertação voltaram-se para um projeto pu- ressurgimento da língua e da cultura árabes
– para atiçar a cisão no interior das popula- go da história a fé muçulmana permaneceu ramente nacional. Eles se fossilizaram em e, depois da Segunda Guerra Mundial, o an-
ções, as diversas comunidades religiosas e impregnada naquela região. Estados dirigidos por um partido único, ou ti-imperialismo.
laicas, sunitas e xiitas, árabes e persas, do No seu apogeu, o nacionalismo árabe ti- por um “líder vitalício”. Contudo, apesar das Desde a década de 1940, o sírio Michel
Magreb ao Golfo, refazem constantemente nha a aspiração de ser um supranacionalis- lutas ferozes entre governos árabes no senti- Aflaq, militante nacionalista laico e funda-
sua unidade ao demonstrar um apoio inde- mo. A luta para se libertar do colonialismo do de garantir uma hegemonia regional, no dor do partido Baath, compreendeu que “a
fectível aos palestinos. (wataniya) deveria amadurecer e levar a nível popular persistia a aspiração de uma ligação entre o islamismo e o arabismo não é
Paradoxalmente, essa aspiração unitá- uma solidariedade transnacional entre po- comunidade árabe transnacional, marcada semelhante à de outra religião com outro
ria também se manifesta na adesão a diver- vos árabes (qawmiya), que permitiria en- por um patrimônio islâmico comum. nacionalismo”. Essa prédica iria mais longe:
sas formas de fundamentalismo, de cor- frentar problemas como o da Palestina, ou o “Ainda virá o dia em que os nacionalistas se-
rentes quietistas e pietistas do Islã ao da subordinação econômica ao Ocidente. O ISLAMISMO E ARABISMO rão os únicos defensores do islamismo e se-
salafismo radical. Esse tipo de orientação, nacionalismo árabe teve uma trajetória er- E o islamismo político em expansão foi rão obrigados a lhe atribuir um significado
que assusta tanto o Ocidente quanto os rática. Em 1956, quando o Egito, apoiado pe- obrigado a aceitar e assimilar as posições e particular, se quiserem que a nação árabe
árabes seculares, encarna a busca de senti- los EUA e pela URSS, rechaçou a tentativa lições de seu primo-irmão nacionalista lai- tenha um motivo para sobreviver1”.
do e o desejo de ver renascer uma socieda- anglo-franco-israelense de retomada do Ca- co. Se o Hezbollah foi bem-sucedido no Lí- O dia profetizado por Aflaq chegou, mas
de unificada. Mesmo que a devota umma nal de Suez, esse nacionalismo chegou a seu bano, entre outras coisas é porque transcen- “ao inverso”: os islamitas é que se tornaram
(comunidade dos crentes) tenha substituí- ponto máximo, antes de sofrer um nítido re- de afiliações confessionais e aparece como o os únicos defensores do nacionalismo. Pas-
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 23

sou a ser banal observar como o islamismo naram de um forte espírito de resistência e operárias na região do delta do Nilo, no se- dades de alianças reais, que são ao mesmo
fez a integração desses temas, para se apre- de energia coletiva, e que foram eficazes ao gundo semestre de 2008.5 Ações idênticas – tempo benéficas para as duas correntes e
sentar como a corrente de oposição à domi- traduzir esse sentimento popular. revoltas contra a fome, manifestações por positivas para os povos da região. No plano
nação ocidental e de afirmação de indepen- salários em Gafsa (Tunísia) e em Sidi Ifni local, serão organizadas greves e manifes-
dência cultural e nacional. OUTROS CAMINHOS (Marrocos) – foram promovidas por forças tações para denunciar o desemprego, a fal-
É irônico que, por décadas, o Ocidente e Além do nacionalismo pós-colonial tra- de esquerda, sem a liderança de islamitas. ta de víveres e de meios, e ainda a alta dos
os governantes árabes reacionários tenham dicional, fossilizado nos velhos regimes au- Estes últimos parecem menos inclina- preços. A população exigirá transparência,
amplificado e explorado as divergências en- toritários, e das formas de resistência prati- dos a se lançar nesse tipo de movimento, até pedirá prestação de contas aos dirigentes e
tre nacionalismo e islamismo, ao cortejar e camente nacionalistas que se exprimem nos porque não sabem como dirigi-lo, e não en- se engajará numa luta contra a corrupção.
promover as correntes islamitas conserva- movimentos islamitas, existe outro tipo de tendem esse discurso e os temas de mobili- Nos planos regional e internacional conti-
doras. Dessa forma, a história das relações nacionalismo transnacional árabe: o secu- zação. Mas essas ações são cada vez mais nuarão a acontecer movimentos de apoio à
entre o islamismo e a “dominação ociden- lar, que também reivindica a identidade ára- necessárias, e abrem às forças progressistas Palestina, contra a intervenção de forças
tal” está longe de ser “pura” e linear. Quer se be e islâmica e tem orgulho da fusão com as possibilidades inéditas de promover o avan- estrangeiras, por uma ordem econômica
trate dos Irmãos Muçulmanos, no Egito, uti- culturas e línguas do mundo. Essa forma de ço de suas ideias de justiça e direitos sociais.6 equitável, por uma aplicação do direito in-
lizados pelo serviço secreto britânico contra consciência, que marca o imaginário de Mas é preciso evitar um otimismo engana- ternacional etc.
Gamal Abdel Nasser, quer se trate de seu su- uma grande parcela da juventude árabe, se dor, pois essas mobilizações continuam
cessor na Palestina, o Hamas, no passado reflete nos novos meios de comunicação in- sendo raras, localizadas e isoladas. Um dos RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS
apoiado por Israel como contrapeso à Orga- ternacionais (Al-Jazeera, internet etc.) e nas motivos é que os regimes utilizam todos os Os princípios que possibilitarão uma
nização para a Libertação da Palestina diversas expressões culturais e linguísticas. meios possíveis para impedir que esses mo- ação unificada e eficaz se aproximarão dos
(OLP), ou ainda dos “Árabes Afegãos”, que O próprio discurso mudou; já não se faz vimentos se aliem aos islamitas. Além de princípios que mobilizaram os movimentos
lutaram pelos Estados Unidos contra o “co- mais, simplesmente, referência aos direitos uma repressão rigorosa, eles retomam de- nacionalistas históricos: a paixão pela inde-
munismo ateu”, muitas vezes os islamitas dos palestinos ou dos árabes, mas aos prin- terminados temas religiosos, como a apolo- pendência nacional e regional; comprome-
aceitaram se aliar e ser subvencionados por cípios dos direitos internacionais e, portan- gia da identidade cultural e nacional, conde- timento de cooperação entre Estados; plena
poderes estrangeiros que tentavam impor to, a um certo universalismo, como pôde ser nando o discurso sobre os direitos humanos participação nos negócios internacionais; a
sua hegemonia na região. constatado quando das manifestações de e sociais, apresentados como intrusões do visão de regimes que defendam a liberdade
Eis o testemunho de um ex-agente da solidariedade a Gaza. Ocidente. O exemplo da mulher é o mais re- política e um Estado de direito para todos;
CIA sobre um “segredinho sujo” de Wa- Esse “terceiro nacionalismo” nascente velador. Mesmo que o princípio do trabalho uma plataforma que vise a melhora da vida
shington durante a Guerra Fria: “Os Irmãos não mantém nenhum laço com governos e feminino seja uma conquista, nem por isso econômica e social das populações; e um es-
Muçulmanos eram um aliado silencioso, regimes nem possui nenhum programa deixam de existir resistências sobre tudo o forço para atender às aspirações de todos os
uma arma secreta contra o comunismo. Nós político: condena o autoritarismo local e a que diz respeito ao corpo da mulher e a seu grupos étnicos e confessionais. Para tanto,
pensávamos: ‘Se Alá aceita lutar ao nosso la- corrupção, e aspira ao estabelecimento da papel na família. Ao defender os direitos da os progressistas precisam vencer a batalha
do, tudo bem2’”. A recíproca parecia ser ver- democracia e de um Estado de direito, rejei- mulher, os progressistas ficaram encurrala- da liderança e da influência, mostrar que a
dadeira para os islamitas: “Se a América tando ao mesmo tempo toda e qualquer in- dos entre um discurso islamita moralista e construção da democracia e do respeito aos
aceita lutar ao nosso lado, tudo bem”. tervenção militar estrangeira. Defende outro nacionalista sobre a honra. São sem- direitos humanos são ferramentas necessá-
Na verdade, o “segredinho sujo” dos is- com orgulho a identidade árabe e islâmica, pre obrigados a se defender das acusações rias e eficazes para pôr em prática todos es-
lamitas e dos nacionalistas laicos, é que em e prega um modernismo intelectual e a di- de capitulação cultural, ao passo que a ma- ses princípios.
política ninguém é “puro”, nem imune à isca versidade cultural. Solidário com a luta pe- nutenção das estruturas autoritárias – sejam Durante a invasão israelense em Gaza,
oportunista de cumplicidade com os pode- la independência e justiça no mundo mu- elas estatais ou religiosas – é apresentada co- pudemos avaliar como essas ferramentas
res estrangeiros. Essa dança macabra con- çulmano, em especial com a resistência mo resistência cultural à ocidentalização. contribuíram para fortalecer a causa pales-
seguiu corromper e solapar grandes movi- palestina, ele tem consciência dos sucessos Essa política identitária essencialista é um tina. O Hamas é credível porque combate a
mentos nacionalistas na Argélia e no Egito, e dos fracassos dos movimentos políticos assunto recorrente em nossa região e, ao corrupção e resiste de modo constante à
transformar o islamismo na doutrina da di- árabes e ocidentais. mesmo tempo, uma autêntica tragédia. agressão israelense, mas também porque foi
visão e aumentar o fosso entre laicos e islâ- Será que existe um nacionalismo tradi- legitimado pelo sufrágio universal. Em con-
micos, além de alimentar um discurso e cional e uma fórmula mais moderna? É mui- trapartida, no terreno dos direitos huma-
uma prática do fanatismo armado, que se to cedo para afirmar, pois essa perspectiva A estratégia de adotar a nos, das normas jurídicas, políticas e éticas
voltaram – como a criatura de Frankenstein recém-chegada ainda não tem eficácia polí- reconhecidas pelas nações, Israel está na
– contra o Ocidente. tica. Ela procura para si mesma uma coerên- noção de “conflito de defensiva.
O último avatar dessa estratégia consis- cia nas formas de organização e tem dificul- classes” permitiu aos Paradoxalmente, os maiores desafios
te em transformar as velhas querelas teoló- dade de se fazer ouvir em meio à algazarra enfrentados pelos nacionalistas – como as
gicas e sociais entre sunitas e xiitas em uma do enfrentamento, que tem de um lado o fa-
talibãs “assegurar na intervenções estrangeiras no Iraque e no Lí-
fratura geopolítica entre o mundo árabe e o latório do Estado, e de outro as prédicas islâ- justiça islâmica um bano – criaram um espaço de mobilização,
Irã. Essa manobra promovida por Israel e pe- micas. Em nossas sociedades, esse impasse governo eficaz e a de união, de pluralismo e de democracia
los neoconservadores americanos não deixa leva ao um divórcio “à italiana” das três par- que é preciso explorar. Essa utopia tem pre-
de ser cínica, quando se sabe que no passado tes: o Estado, as forças laicas e progressistas,
distribuição de renda” cedente. Foi preciso uma sequência aparen-
os dois países apoiaram Teerã contra o na- e as correntes islâmicas: ninguém se fala, temente interminável de conflitos sangren-
cionalismo árabe. Nos anos 1960 e 1970, o Irã mas todos coabitam sob o mesmo teto. tos, religiosos e nacionais, para que a Europa
era a única potência regional a gozar de seus Todavia, a crise econômica atual intro- No Paquistão, os talibãs adotaram com promovesse um processo de unificação,
favores, mas a revolução islâmica de 1979 o duz um novo elemento, mais desestabiliza- entusiasmo a noção de conflito de classes. sem renunciar à independência nacional e
transformou em “animal selvagem”. Em dor e portador de desenvolvimentos inédi- No vale de Swat, passaram a exigir a reforma às diferenças culturais entre seus povos.
2003, sua posição voltou a ser reforçada na tos. Frente a uma grave deterioração das agrária e alguns ricos proprietários da elite
região justamente com a invasão americana realidades sociais, além da aplicação da cha- semifeudal paquistanesa perderam suma- *Hicham Ben Abdallah El Alaoui é pesquisador asso-
do Iraque, que destruiu o bastião mais pode- ria, a lei islâmica, os islamitas não têm ne- riamente suas terras, sendo forçados a deixar ciado à Freeman Spogli Institute for International Studies,
roso do nacionalismo árabe. nhum programa econômico eficaz a propor, o país. Essa estratégia permitiu aos talibãs, Universidade Stanford (Califórnia).
Agora, ainda que tenham muitas in- que consiga contribuir para reduzir o crime como explica o representante oficial paquis-
quietudes em relação ao Irã, os Estados e a corrupção e para impor a ordem e a segu- tanês, “assegurar na justiça islâmica um go-
árabes insistem no ponto de que o proble- rança em um ambiente conturbado. Isso, verno eficaz e uma distribuição de renda7”. A
ma nuclear do país seja resolvido no con- porque a noção islamita de justiça social diz mensagem dirigida aos progressistas laicos e
texto regional e que as armas atômicas is- respeito à obra de caridade, e não à política. aos regimes “moderados” é clara: se vocês
raelenses entrem na roda de negociações. Os próprios movimentos islâmicos são uma não se ativerem imediatamente aos recor-
1 “In memory of the Arab Prophet”, conferência dada em
Este último, aliás, é um ponto central para causa caritativa para os ricos conservado- rentes problemas de corrupção, pobreza e Damasco em 1° de abril de 1943.
as populações árabes, que há vários anos res, que preferem denunciar a impiedade desigualdade, perderão terreno para os isla- 2 Mais informações em: www.globalresearch.ca/index.
têm manifestado seu apoio ao Hezbollah e dos países árabes laicos, em vez de chamar a mitas, que se atêm a tudo isso. php?context=va&aid&3109.
ao Hamas, não por serem xiitas ou sunitas, atenção para o desafio das injustiças ineren- Ninguém pode ignorar as divergências 3 Em árabe, sinônimo de revolta, sedição.
4 Ver Beshir Sakr e Phanjof Tarcir, “La lutte toujours recom-
mas porque ambos resistem aos ataques tes às próprias estruturas da propriedade entre progressistas e islamitas. Ambos dese- mencée des paysans égyptiens”, Le Monde Diplomatique,
israelenses. Assim, xiitas apoiam Ismail privada. Eles tendem a perceber as oposi- jam o estabelecimento da “democracia”, outubro de 2007.
Haniyeh, o dirigente do Hamas, e sunitas ções sociais como uma fitna3, fonte de dis- mas a partir de determinado ponto prova- 5 Ver Joel Beinin, “L’Egypte des ventres vides”, Le Monde
exibem fotos de Hassan Nasrallah, o se- córdia e de caos entre os muçulmanos. velmente terão visões muito diferentes so- Diplomatique, maio de 2008.
cretário-geral do Hezbollah. Assim, enquanto dezenas de milhares bre o modo de criação e manutenção de um 6 Ver Arabic Network for Human Rights Information,
“Egypt: Woman Detained for Promoting General Strike
É em momentos como esse que pode- de camponeses egípcios se mobilizaram Estado de direito democrático. Os progres- On Facebook”, Cairo, 24 de abril de 2008. Mais informa-
mos medir a força da aspiração a uma uni- contra o desmonte da reforma agrária lança- sistas querem instaurar a soberania da von- ções em: http://allafrica.com/stories/200804241139.
dade pan-árabe e pan-islâmica capaz de ga- da por Nasser, e a devolução de suas terras tade popular. Os islamitas almejam a sobe- html; Laura Kasinof, “Egyptians use facebook to deter
rantirdignidade,justiçaerealindependência. aos grandes proprietários, os Irmãos Muçul- rania absoluta de uma ideologia religiosa censorship”, Middle East Times. Mais informações em:
Mesmo que recusemos a ideia de que os mo- www.metimes.com, 29 abril 2008.
manos se alinharam a uma política de priva- particular, que se baseia em uma interpreta-
7 Jane Perlez e Pir Zubair Shah, “Taliban Exploit Class Rifts
vimentos islâmicos concorreriam para a tização do Estado.4 Da mesma forma, foram ção específica dos textos sagrados. in Pakistan”, The New York Times, 17 de abril de 2009.
consumação dessa promessa nacionalista, os militantes progressistas independentes Todavia, em particular no contexto da Mais informações em: www.nytimes.com/2009/04/17/
somos obrigados a aceitar que eles a impreg- que promoveram as greves e manifestações crise econômica global, existem possibili- world/asia/17pstan.html?sq=afghanistan
24 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

CONFLITO ISRAEL-PALESTINA

Um olhar sul-africano
sobre a segregação
Durante o período do apartheid, a África do Sul estreitou seus laços políticos, econômicos e militares com Israel.
Com o fim do regime de segregação, os sul-africanos se solidarizaram com a causa palestina, identificando
semelhanças entre a opressão praticada pelos israelense e aquela sofrida pelos negros até os anos 1990
POR ALAIN GRESH*, ENVIADO ESPECIAL

Nessas condições, o apoio oferecido pe-


© Yonathan Weitzman / Reuters

los líderes da comunidade judaica na África


do Sul à política de Israel, incluindo os inte-
lectuais que haviam se mobilizado contra o
apartheid4, sofreu reprovações e críticas. “O
defensor mais obstinado pró-Israel durante
os ataques a Gaza, não foi o embaixador is-
raelense, mas o rabino Warren Goldstein,
que aprovou sem a menor reserva os bom-
bardeios em Gaza, algo que ninguém pode
entender”, lamenta Habib.
A direção das organizações judaicas, em
um comunicado, proclamou seu “firme
apoio à decisão do governo de Israel de lan-
çar uma operação militar contra o Hamas
em Gaza”. Alguns dias depois, a entidade se
mostrou indignada que seu próprio amálga-
ma entre judeus e Israel tenha provocado
protestos antissemitas na internet, que ape-
lavam por boicote contra as lojas de judeus.
Esses protestos, claro, foram firmemente
condenados pelo governo, pelo ANC, por in-
telectuais muçulmanos e pelas organiza-
ções de apoio ao povo palestino.
A veemência das polêmicas em torno de
um conflito situado a milhares de quilôme-
tros não surpreende. Ela mantém os laços,
alguns visíveis, outros não, que ligam as tra-
jetórias da África do Sul e Israel. Por um aca-
so histórico, algumas semanas apenas sepa-
ram a criação do Estado de Israel, em maio
de 1948, da vitória do Partido Nacional nas
O muro construído por Israel na Cisjordânia lembra também os guetos judeus na Segunda Guerra Mundial eleições legislativas da África do Sul. Este úl-
timo levou ao auge a segregação racial já em
vigor, realizando a política de apartheid ou
le me lembra um esboço do famoso anos, da clandestinidade ao exílio. Chefe do neiro de 2009, atingiu rapidamente a África “desenvolvimento separado”. Os dirigentes

E caricaturista sul-africano Zapiro,


de novembro de 2001: na imagem,
alguns judeus foragidos, entre os
quais se pode reconhecer Nadine
Gordimer, Prêmio Nobel de Literatura, e o
próprio Zapiro, se esquivam de uma fortale-
za onde há uma faixa escrita: “Apoio incon-
setor de Informação do exército ligado ao
ANC, aceitou com serenidade a qualificação
de “terrorista” que lhe foi imputada. “Arma-
do e perigoso”1, assim as autoridades o des-
creveram na televisão nos anos 1970. Com o
fim do apartheid, ele retornou ao país em
1990 e ocupou vários postos ministeriais,
do Sul, suscitando uma vasta mobilização e
várias manifestações. O poderoso Congress
of South African Trade Unions (Cosatu) –
sindicato que já havia impedido o embarque
de carga repleta de armas com destino ao
governo do Zimbábue em abril de 2008 –, pe-
diu o boicote aos navios israelenses.
do Partido Nacional, aprisionados durante a
Segunda Guerra Mundial por simpatizarem
com o nazismo e marcados pelo antissemi-
tismo, estabeleceram uma relação cada vez
mais estreita com o Estado de Israel.
O universitário israelita Benjamin Beit-
Hallahmi explica esse paradoxo: “Pode-se
dicional a Israel”. antes de abandonar suas responsabilidades “Espontaneamente, no seio da popula- detestar os judeus e amar os israelitas por-
Durante toda a vida, o sr. Ronnie Kasrils governamentais no final do ano passado. ção existe uma simpatia pelos palestinos, já que, de alguma forma, os israelitas não são
se dedicou a mover montanhas. Filho de Como militante antiapartheid, comu- que aqui todos compreendem o paralelo en- judeus. Os israelitas são colonos e comba-
imigrantes judeus provenientes do Báltico, nista e judeu, ele se sensibiliza de pronto tre Palestina e África do Sul, entre Gaza e a tentes, como os afrikaners. Eles são duros e
ele nasceu em 1938 na África do Sul e des- com o drama palestino. Em fevereiro de situação que existia nos bantustans de resistentes. Sabem como dominar”. Contra-
cobriu rapidamente a face do racismo. Em 2004, ainda como ministro do Departa- Transkei e Ciskei”, explica o Adam Habib, riamente, prossegue ele, há uma visão de ju-
particular, com os eventos ocorridos em mento de Águas e Florestas, fez uma visita a vice-reitor da Universidade de Johannes- deus vinculada a certo imaginário (e a antis-
Sharpeville em 21 de março de 1960: na Yasser Arafat, então cercado pelo exército burg, encarregado de pesquisa e inovação. semitas) – “a recusa de se afirmar pela força
ocasião, a polícia atirou em manifestantes israelense dentro de seu quartel-general de O governo sul-africano condenou “den- física, uma passividade, um lado intelectual.
negros desarmados, matando dezenas de Mouqataa, em Ramallah. “Pela janela, Ara- tro dos termos mais vigorosos a escalada de Assim, pode-se detestar os judeus, mas ter
pessoas. O massacre, prelúdio de uma re- fat me mostrou a paisagem e disse: ‘Este lo- violência exercida por Israel com a ofensiva muita admiração pelos israelitas”.5
sistência que culminaria numa ditadura cal é igualzinho a um bantustan2’. Ao que eu por terra na faixa de Gaza” e convidou o go- Estabeleceu-se então uma colaboração
aberta, produziu ampla repercussão inter- repliquei: ‘Não, nenhum bantustan jamais verno israelense a cessar o “massacre” e a entre os dois Estados, que aparentemente
nacional em um momento em que a maio- foi bombardeado por aviões, pulverizado retirar suas tropas “imediatamente e sem eram bem distintos. Moshe Sharett, minis-
ria dos países africanos já havia conquista- por gases... Ao contrário, o governo de Pre- impor condições”. Durante um encontro tro israelita de Relações Exteriores, realizou
do sua independência. tória injetou somas consideráveis, cons- com o embaixador de Israel, os parlamenta- sua primeira visita à África do Sul em 1950.
Como poderia Kasrils fechar os olhos truindo prédios administrativos impres- res sul-africanos afirmaram que a atitude Em novembro de 1984, quando as Nações
diante de uma opressão que lhe fazia lem- sionantes e até mesmo autorizando que de seu exército fazia o apartheid lembrar Unidas haviam decidido pelas sanções con-
brar tão bem as narrativas de seus pais sobre linhas aéreas saissem dos bantustans, fa- um “piquenique dominical”, e o presidente tra o regime de apartheid, o chefe da diplo-
os pogroms no Leste Europeu? Ele se filiou zendo-os ser reconhecidos pela comunida- da Comissão de Política Internacional, Job macia sul-africana, Roelof Frederik “Pik”
então ao Partido Comunista e ao Congresso de internacional’”. Sithole, comparou o tratamento dado aos Botha, foi recebido em Israel. Itzhak Rabin
Nacional Africano (ANC) e, posteriormente, A onda de revolta com os mais recentes palestinos nos checkpoints ao tratamento era o primeiro-ministro. Para analisar a
realizou uma longa caminhada, de quase 30 conflitos em Gaza, de dezembro de 2008 a ja- dado ao gado.3 questão, um correspondente do Le Monde
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 25

evocou as “relações estreitas entre os dois África do Sul. O general de brigada “Rois exemplo de Percy Yutar, procurador-geral de apoio à Palestina, como revela um docu-
países” e afirmou que Israel era então o úni- Rus” Swanepoel, principal “interrogador” no processo contra Nelson Mandela e que mento intitulado, nada mais nada menos,
co Estado do mundo a sustentar relações no caso Rivonia, de 1964 – processo no qual pediu a pena de morte para o acusado: ele foi que “A cumplicidade da África do Sul demo-
com os bantustans “independentes”, alguns Nelson Mandela se livrou da prisão perpé- eleito líder da mais importante sinagoga or- crática com a ocupação israelense, com o
dos quais considerados “gêmeos” das colô- tua –, fundador das brigadas de contrain- todoxa de Johannesburg e elogiado pelos di- colonialismo e com o apartheid”10. Na’eem
nias israelitas na Cisjordânia.6 surreição na Namíbia e conhecido pela al- rigentes das instituições judaicas como “um Jeenah, diretor executivo do Centro África –
As ligações entre Israel e África do Sul cunha de “açougueiro de Soweto” por ter grande trunfo para a comunidade”. Oriente Médio11 em Johannesburg, avalia
eram sólidas no âmbito econômico e esta- esmagado a revolta dessa township em 1976, A colaboração entre Israel e o regime de que o ex-presidente Thabo Mbeki era “a fa-
vam sob o comando do Histadrout (sindica- contabilizando centenas de mortes, era re- apartheid se arrastou após a eleição de Nel- vor de uma forma de normatização com Is-
to dos trabalhadores “socialistas”), que con- cebido regularmente em Israel nos anos son Mandela à presidência em 1994, culmi- rael. O comércio entre os dois países cresceu
trolava, nos anos 1970-1980, parte importante 1970. Além disso, Uri Dan, jornalista e con- nando em nítida degradação das relações de 15% a 20% este ano, especialmente nos
da economia israelense. Por meio da socie- selheiro do Ariel Sharon, costumava afirmar entre os dois países. O novo governo suspen- setores de segurança pessoal e de bens. Fo-
dade Hevrat Haovdim, ele administrava um sua admiração pelo exército sul-africano.8 deu a colaboração militar – honrando os ram feitas até mesmo tentativas para reani-
quase monopólio de comércio com a África Para o sr. Kasrils, para além das diferen- contratos assinados que expiraram em 1998 mar as relações militares”.
do Sul. E os kibutzim não eram exceção: o ças entre os dois sistemas – Israel, por exem- – e se engajou fortemente à causa palestina e
Lohamei Hagetaot (“Combatentes do Gue- plo, não tem necessidade de mão-de-obra de Yasser Arafat. Essas relações permanece- *Alain Gresh é jornalista e integra a redação de Le Mon-
to”), fundado por judeus oriundos de países autóctone e concedeu direito ao voto a sua ram após a explosão da segunda Intifada, de Diplomatique França.
do Leste europeu que haviam lutado contra minoria árabe – as convergências ideológi- em setembro de 2000, a despeito das pres-
o nazismo, gerenciava a usina de Kama, den- cas são gritantes: “Os primeiros colonos ho- sões internacionais exercidas por países co-
tro do bantustan de Kwazulu. landeses, os chamados afrikaners, utiliza- mo Estados Unidos e Israel, que haviam sido
Mas foi no âmbito do domínio militar e ram a Bíblia e o fuzil. Como os israelitas da cúmplices do regime de apartheid. 1 Título de sua autobiografia, Armed and dangerous, Jona-
da segurança que a aliança entre os dois pa- Bíblia, eles pretendiam ser o ‘povo escolhi- Após o falecimento do líder da OLP, em than Ball Publishers, Johannesburg, 1998 (1ª ed. 1993).
2 Território com alguma autonomia destinado a diferentes
íses revelou sua dimensão estratégica. Israel do’ com uma missão civilizatória”. novembro de 2004, Nelson Mandela disse
etnias negras na África do Sul, durante o apartheid.
ajudou a África do Sul a obter a bomba atô- Essa cumplicidade não suscitou críticas que este havia sido “um dos mais excepcio- 3 “Legisladores do ANC arrasam com Israel”, Jewish Tele-
mica e sistemas de mísseis.7 O adido militar dentro da comunidade judaica que, ao con- nais combatentes pela liberdade de sua ge- graphic Agency, 19 de janeiro de 2009.
israelita em Pretória era membro do Estado- trário, colocou no ostracismo seus membros ração”. Ainda assim, como reconhece de 4 Ler o apelo de alguns intelectuais judeus, “estamos tristes
Maior sul-africano – o outro único adido de engajados no ANC e no Partido Comunista. bom grado Aziz Pahad, antigo vice-ministro ao ver como se portam os judeus sul-africanos com rela-
ção à destruição de Gaza”, Cape Times, 12 de janeiro de
similar estatura ficava a postos em Washing- Andrew Feinstein, antigo deputado do ANC, sul-africano das Relações Exteriores encar- 2009.
ton. As armas israelenses eram fabricadas que teve parte da família morta em campos regado pelo Oriente Médio, não se pode ne- 5 Benjamin Beit-Hallahmi, The Israel conncetion. Who Isra-
sob licença na África do Sul. de extermínio nazistas, conseguiu que o gar o peso da realpolitik e da “contradição el arms and why, Pantheon, New York, 1987, p. 161.
Os serviços de inteligência dos dois paí- parlamento da nova África do Sul abrisse es- entre a realidade da política estrangeira ofi- 6 Jean-Pierre Langlier, “La visite du chef de la diplomatie sud
africaine ilustre les relations étroites entre les deux pays”,
ses colaboravam intensamente em nome da paço para uma sessão, em maio de 2000, de- cial e as posições de princípio adotadas pelo
Le Monde, 6 de novembro de 1984.
luta contra o comunismo e, já na época, “o dicada ao Holocausto. Ele explica que a mas- ANC [apoio à Palestina, à independência do 7 Ler Al J. Venter, How South Africa built atom bombs,
terrorismo” – onde colocavam a ANC, a OLP sa da população branca, cuja maioria girava Saara ocidental etc.]”. A nova África do Sul, Ashanti Publications, Cape Town, 2008.
(Organização para a Libertação da Palesti- em torno de 100 mil judeus sul-africanos, fi- que precisa do apoio dos países ocidentais, 8 Benjamin Beit-Hallahmi, op.cit, p.127-128.
na), movimentos de libertação das colônias cou muda durante o apartheid. Mesmo as- não pode romper suas conexões com Tel 9 Ler After the party, Jonathan Ball Publishers, Johannes-
burg & Cape Town, 2007, especialmente o cap. 9.
portuguesas (Angola e Moçambique) e a sim, “há paralelos evidentes entre a política Aviv. A densa rede de relações econômicas
10 A cumplicidade da África do Sul democrática com a ocu-
South West África People’s Organization imposta aos judeus pelos nazistas entre 1933 com Israel, conduzida pelo setor privado, pação de Israel, o colonialismo e o apartheid: http://stop-
(Swapo), que organizou o combate pela in- e 1939 e aquela imposta à maioria de sul- continua importante para o país. thewall.org/activistresources/1976.shtml
dependência da Namíbia, ocupada pela africanos durante o apartheid”9. Ele cita o Essa realpolitk ofende os movimentos 11 http://amec.org.za/

Novas Possibilidades
43º Festival de Música Nova.
Homenagem a
Karlheinz Stockhausen e
Willy Corrêa de Oliveira.
Em setembro.

www.sesctv.org.br
26 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

NAS ENCOSTAS DO HIMALAIA

Everest, um negócio
lucrativo
No início da década de 1990, a frequência de turistas escalando as encostas do Himalia aumentou radicalmente.
A grande maioria dos candidados à subida, em geral alpinistas inexperientes e até mesmo novatos, almeja o topo
do mundo por motivações puramente individuais e paga caro para realizar seu desejo
POR FRANÇOIS CARREL*

ontanha mais alta do mundo, o

M Everest se ergue a 8.848 metros


de altura, na fronteira entre o
Nepal e a China, na cadeia do
Himalaia. Em 2007, o guia Lu-
dovic Challeat o escalou pela vertente tibe-
tana. “O Everest não é mais considerado co-
mo uma espécie de conquista, consequência
de uma longa experiência em grande altura,
mas sim como um produto que é consumi-
do. Centenas de sherpas1 continuamente
atravessam a montanha, carregando barra-
cas, garrafas de oxigênio, fogareiros, gás, ali-
mentos, edredons...”, afirma. Durante a pri-
mavera de 2007, 630 pessoas atingiram seu
cume. O número é igual a todas as escaladas
realizadas entre 1953 – quando a primeira
expedição chegou ao topo – e 1993.
Do Paquistão à Índia, passando pelo Ti-
bete chinês e, é claro, o Nepal, as montanhas
do Himalaia nunca atraíram tantas pessoas.
Mas, até o final dos anos 1960, os 14 picos
com mais de 8 mil metros excitavam apenas
a cobiça de uma elite de alpinistas.
Depois do início da década de 1990, a
frequência de viagens ao topo da Terra ex-
plodiu. As motivações são obviamente indi-
viduais para a grande maioria dos candida-
tos à subida, que parecem ser cada vez
menos experientes, quando não novatos. Os
problemas geopolíticos do “arco de crise do
Himalaia” – guerra civil no Nepal, rebelião
tibetana, conflito entre Índia e Paquistão
etc. – não afetam a tendência: os himalaistas
sempre souberam contornar as zonas instá-
veis ou proibidas.
De meados do século XIX até a Primeira
Guerra Mundial, “influenciados por uma
filosofia de exploração e conquista, num
período expansionista e colonialista 2”, um
punhado de alpinistas, principalmente bri-
tânicos, como Albert Mummery, mas tam-
bém italianos, como o duque dos Abruzos,
percorreram, na companhia de cientistas,
esses territórios pouco conhecidos. Os gran-
des picos foram então batizados ou renome-
ados com nomes ingleses. Aos fins desporti-
vos (tentativas de escalar o Everest, o K2 ou o
Nanga Parbat) e científicos se juntaram in-
teresses estratégicos e comerciais, princi-
palmente do Império Britânico.
Em seguida veio “a grande epopeia” do
período entre guerras, em que picos de 7 mil
metros foram conquistados. O assalto aos 8
mil metros foi levado adiante arduamente,
ao preço, às vezes, de tragédias. Os britâni-
cos concentraram seus esforços no Everest,
organizando expedições lideradas por mili-
© Santiago

tares em 1921, 1922, 1924 e, depois, em 1933,


1935, 1936 e 1938. O império tentava, nesse
cume simbólico, reafirmar a sua suprema-
cia militar e econômica, prejudicada pelo
conflito anterior.
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 27

De fato, naquele período, austríacos, Em 1978, Messner abriu, em estilo alpi- Os franceses Christian Trommsdorff, Quando a “Cordame TGW” deixou, no
alemães e italianos rivalizavam pela con- no e numa escalada solo, uma nova subida Yannick Graziani e Patrick Wagnon são guias fim de julho do ano passado, o acampamen-
quista dos Alpes, terreno por excelência dos para o Nanga Parbat (8.125 metros), logo de- e formam uma equipe de ponta do himalais- to base, eletrizada pela perspectiva de atin-
ingleses, no século XIX. Eles inventaram no- pois de realizar, com Peter Habeler, a toni- mo, conhecida como “Cordame TGW”. Ten- gir o pico, Trommsdorff analisa: “O K2 é
vas técnicas num ambiente cada vez mais truante primeira subida do Everest sem gar- do conseguido vários “7 mil metros”, no uma montanha dura, a qual apenas os afi-
nacionalista, amplificado com o advento rafa de oxigênio. Entre 1970 e 1986, Messner mais puro estilo alpino, eles são exemplo do cionados totalmente autônomos e experien-
dos regimes nazista e fascista. “O Duce e o tornou-se o primeiro a escalar os “8 mil” afluxo da elite sobre as rotas normais dos “8 tes deveriam ter como objetivo; 80% dos es-
Führer distribuíram medalhas e prêmios nessas mesmas condições. mil”: agora, é nos cumes técnicos de 6 mil a 7 caladores que encontramos pelo caminho
para os alpinistas, descritos como represen- Esse novo tipo de himalaismo explodiu mil metros de altura, com a indiferença da não têm nada a fazer aqui: sem a logística
tantes das qualidades da nação e do seu po- a partir de 1990, com a criação de várias mídia, que se pratica a escalada no mais alto coletiva, carregadores e cordas fixas, eles
vo”, recorda o sociólogo Michel Raspaud. As- agências com guias, principalmente anglo- nível. Os “8 mil” já não são cortejados pelos mal podem ficar de pé!”.
sim, a competição patriótica se deslocou saxônicos, especializados na subida do Eve- grandes alpinistas, a não ser na abertura de Não se trata de elitismo: os três france-
para os 8 mil metros. Os alemães tentaram o rest e do Cho Oyu, mas também da bela ci- novas rotas ou no inverno, como foi o caso ses se dizem preocupados. O futuro, infeliz-
Kangchenjunga, em 1929 e 1931, antes de se meira nepalesa de Ama Dablam (6.856 do francês Jean-Christophe Lafaille, que mente, lhes deu razão. Entre 1º e 2 de agosto,
voltarem para o Nanga Parbat, no Paquis- metros). A cada ano, a área recebe entre mil perdeu a vida no outono de 2005. sete dos “oitomilistas” e quatro de seus aju-
tão, em 1932 e, novamente, em 1934 e 1937, e 3 mil himalaistas. Além do efeito midiático dantes paquistaneses e nepaleses morre-
com apoio total do Reich. Os britânicos se do cinquentenário das primeiras ascensões ram, uns após os outros, perto do cume:
inquietavam: “A escalada do Everest interes- a esses picos, vemos também as consequên- quedas, exaustão, colapso de blocos de gelo.
sa à nação e ao império. A situação atual é cias da concorrência turística a que se entre-
O Graal ainda é a escalada O clima estava perfeito, mas eles se movi-
clara: estamos começando a cair no ridícu- gam autoridades chinesas, nepalesas e pa- dos 14 picos com 8 mil mentaram de forma muito lenta, talvez em
lo. Os alemães e americanos já têm atacado quistanesas, com a redução do custo das metros, um objetivo já consequência de estarem em grupo. Eles
o Everest”, afirmou o Morning Post de 17 de licenças para a subida e desenvolvimento de não respeitaram o timing, sempre imperati-
outubro de 1936, dois meses depois dos Jo- infraestruturas poderosas – hoje chegamos alcançado por 16 homens, vo, e tiveram que descer à noite, com o oxigê-
gos Olímpicos de Berlim. por estrada ao acampamento de base chinês dos quais 8 sem oxigênio, nio se esgotando e, principalmente, sem
Após a Segunda Guerra Mundial, come- do monte Everest, e seu equivalente nepalês cordas fixas, o que os deixou demasiada-
çou “a idade de ouro”, em que os 14 picos é servido por helicóptero.
mas que continua distante mente vulneráveis – no final da tarde, uma
com mais de 8 mil metros finalmente foram Os novos himalaistas são divididos em para a maioria avalanche de gelo havia carregado parte das
conquistados, entre 1950 e 1964. Todas as dois grupos: clientes das expedições comer- cordas que tinham fixado.
expedições tinham caráter fortemente pa- ciais, acompanhados por guias e suas equi- Como muitos adeptos ocidentais, pa-
triótico, mas poucas com organização e dis- pes de sherpas, cada um pagando entre 30 Com o mesmo espírito, a “TGW” que- quistaneses ou nepaleses do himalaismo,
ciplina militares. Em busca de glória, os mil e 40 mil euros pelo Everest, e a categoria ria, durante o verão de 2008, encontrar ou- Patrick Wagnon alerta: “A prática do ‘oitomi-
franceses deram o primeiro passo em 1950, dos “sem guias”, aficionados mais ou menos tro caminho para o K2. Demoraram certo lismo’ parece ganhar, a cada dia, mais e mais
no Annapurna, seguidos, em 1953, pelos bri- esclarecidos. Estes últimos se organizam tempo para se aclimatar a partir do acam- seguidores. As questões econômicas favore-
tânicos e alemães, aliados aos austríacos, entre eles para compartilhar o custo das li- pamento base e, nesse período, observa- cem esse desenvolvimento, a despeito das
cada um atrás de sua respectiva obsessão – o cenças e a logística do acampamento base, ram na montanha cerca de 60 candidatos à considerações ambientais e de segurança.
Everest e o Nanga Parbat. Cada sucesso pro- subcontratando agências locais e, às vezes, escalada, utilizando o método normal. Ne- Quase todas as expedições nos ‘8 mil’ são,
vocava lampejos de orgulho nacional, como empregando alguns carregadores. No Eve- nhuma era expedição comercial liderada em sua maioria, patrocinadas e acompanha-
na Grã-Bretanha, em 1953, e na Itália, em rest, por exemplo, entre 2000 e 2006, dois hi- por guias, mas havia muitos aventureiros das pela mídia. Uma boa parte dos ‘oitomi-
1954, após a “vitória” sobre o K2. malaistas em cada três pertenciam a esta profissionais, com patrocínios e divulga- listas’ é formada por profissionais da aventu-
Os custos para tanto sucesso eram altos: categoria: um total de 1.800 alpinistas veio ção nos meios de comunicação, vindos da ra, alegando valores do montanhismo, em
além das equipes de escaladores, havia os por meio de expedições “privadas”, empre- Holanda, Estados Unidos, Coreia do Sul e grande parte esquecidos por eles mesmos. É
tanques de oxigênio, quilômetros de cordas gando 1.160 sherpas, contra 938 clientes das Sérvia. Aqui, como em todo o sopé dos “8 verdade que o cume é sempre a meta, como
fixas, uma pletora de carregadores de altura, expedições comerciais, acompanhados por mil”, as pessoas são apresentadas e defini- no montanhismo, mas se perdeu a própria
sem esquecer o recurso de anfetaminas. Ca- seus 996 sherpas e guias.4 das exclusivamente pelo número de mon- essência dessa atividade: como percorrer o
da país queria “seu” primeiro “8 mil”. Quase Em 2008, 170 himalaistas desafiaram o tanhas desse tipo que tentaram escalar ou caminho que leva ao cume6”.
todos eram bem-sucedidos, numa região Gasherbrum II (G2), divididos em 17 expedi- conquistaram. O Graal ainda é a escalada Paul Keller, pastor e guia pioneiro do hi-
cuja geopolítica estava profundamente alte- ções comerciais e privadas. Entre eles, Paulo dos catorze “8 mil”, um objetivo já alcança- malaismo de grande altura, recorda: “O al-
rada desde 1949: a Índia e o Paquistão foram Roxo e Daniela Teixeira, alpinistas portu- do por 16 homens, dos quais 8 sem oxigê- pinista é aquele que pode combinar técnica
criados, o Nepal se abriu a estrangeiros, en- gueses com pouca experiência no Himalaia. nio, mas que continua distante para a competente com consciência do risco e
quanto o Tibete foi invadido pela China, que Voltaram muito amargurados do seu sonho maioria. Existem 70 pessoas que possuem amor pela montanha, feito de familiaridade
fechou suas fronteiras. de atingir os 8 mil metros: “As cordas fixas de 7 a 13 “8 mil” e cada nova subida de al- e respeito”. Ele denuncia os himalaistas que
Índia, Japão e China entraram, por sua são supostamente para garantir a segurança guns deles desperta nos demais o espírito fizeram dos cumes “um valor de sua paixão
vez, na corrida para os “8 mil”. Os japoneses nas seções mais verticais, mas muitas vezes competitivo. As mulheres também desper- por si mesmos”, esquecendo completamen-
se encarregaram do Manaslu. Os chineses, elas asseguram que pessoas sem capacidade tam interesse e são monitoradas de perto: te a natureza7 Nada que traumatize, visivel-
que haviam proibido qualquer acesso à ver- técnica cheguem ao cume”. Os portugueses até hoje, cinco delas conseguiram conquis- mente, os atores e promotores do “oitomilis-
tente norte do Everest, lugar das tentativas alfinetam esses himalaistas pouco qualifi- tar entre 9 e 12 dos “8 mil”. mo”. Durante a semana de 18 a 23 de maio de
britânicas no período entre guerras, anun- cados: “Constatamos erros graves e estraté- Após a experiência no K2, a “TGW” con- 2009, centenas de pessoas confluíram para
ciaram a primeira subida em 1960, graças a gias que poderiam muito facilmente ter con- clui: “Trata-se de um novo esporte: o ‘oito- o pico do Everest, pelas suas duas vertentes.
uma expedição com centenas de alpinistas. duzido a acidentes fatais. Tudo isso é fruto milismo’”. Trommsdorff resume: “Com uma O site mounteverest.net, agitado centro da
da inexperiência. Algumas pessoas escalam boa condição física e algumas noções de blogosfera “oitomilista”, anunciava: “A agi-
ACESSO NEGADO apenas para confortar seus egos, em busca grampeagem, um pouco de oxigênio e um tação em torno do Everest parece preocupar
Outras experiências semelhantes foram de glória, e não pelo verdadeiro espírito do jumar (autotrava que permite o deslizamen- apenas aos veteranos do Himalaia e os am-
organizadas, principalmente pelos indianos montanhismo”. to em cordas fixas), praticamente qualquer bientalistas. Todos os outros querem estar
e americanos, cada uma com mais de 70 al- Vindo aos milhares do mundo inteiro, um pode subir um dos ‘8 mil’! Isso não tem lá. ‘Quando é a próxima escalada ao Eve-
pinistas. Esse período terminou com a pri- principalmente dos países desenvolvidos, nada a ver com alpinismo: você não escala, rest?’, pedem os leitores por e-mail. ‘Diga-
meira expedição ao Shisha Pangma, pelos esses homens e mulheres enfrentam a gran- mas se puxa pelas cordas. Não se tem ne- me logo, estou começando a treinar!’ Nós
chineses, em 1964. Até o final da década, de altitude, com um custo alto, tanto finan- nhuma autonomia: não se busca o próprio não podemos parar o futuro”.
com o aumento das tensões entre China, ceiro como físico, num punhado de picos – itinerário, não se determina mais o próprio
Nepal, Paquistão e Índia, o acesso de estran- sempre os mesmos – a começar com o trabalho de progresso. Sem respeito pela *François Carrel é jornalista.
geiros aos picos foi negado. Everest. A expedição ao Himalaia oferece a montanha, este himalaismo parece um es- 1 Carregadores e guias do Himalaia, oriundos de uma
Entre 1970 e 1980 teve início um novo possibilidade de entrar num espaço mítico, tupro coletivo”. etnia nepalesa de origem tibetana.
período, descrito como “transitório” pela aquele das histórias dos pioneiros e dos he- Já Wagnon observa que “os ‘oitomilistas’ 2 De acordo com a expressão do sociólogo Michel
jornalista americana Elizabeth Hawley.3 A róis: “O aumento acelerado, desde a década chegam ao pico isoladamente ou em grupos, Raspaud, em A aventura himalaia. As questões das
expedições sobre as mais altas montanhas do mun-
partir de então, cerca de 300 a 600 hima- de 1980, do culto do desempenho e de um armados com seu jumar e os mais sofistica-
do, Prensa universitária de Grenoble, 2003.
laistas começaram a se dirigir para a re- individualismo exacerbado nos submete a dos meios de comunicação. O apoio externo 3 Elizabeth e Richard Hawley Salisbury, “O Himalaia
gião todos os anos, especialmente graças um tipo de imposição social, uma pressão à que utilizam vai de cordas fixas – colocadas em números, uma análise estatística do montanhis-
ao italiano Reinhold Messner. Em 1975, ele autorrealização. As pessoas buscam se tor- por eles ou por outras expedições pagas para mo no Himalaia nepalês”, setembro de 2007, baixado
abriu, com o austríaco Peter Habeler, uma nar heróis ordinários nas expedições. O hi- tal ‘serviço’ – a todos os meios de doping, em de www.himalayandatabase.com
4 “Estatísticas das expedições ao Everest 2000-
nova rota para o Gasherbrum I, numa ten- malaismo oferece os meios para superar primeiro lugar com oxigênio”. Para ele, “um
2006”, www.adventurestats.com
tativa de quatro dias, sem oxigênio engar- seus limites e responder ao espírito de aven- produto que permite o progresso a 8 mil me- 5 Eric Boutroy, Outros locais e a altitude. Etnologia do
rafado, nem cordas fixas, sem sherpas e tura”, analisa Eric Boutroy, autor de uma te- tros como se faria a 7 mil ou 6 mil metros é alpinismo no Himalaia, Idemec / Universidade de
com uma só barraca. O estilo conhecido se de antropologia sobre o himalaismo.5 um dopante, o único reconhecido pelos ‘oi- Aix-Marseille 1, 2004.
tomilistas’”. Sabemos também que em algu- 6 Patrick Wagnon, “Reflexões sobre o acidente no
como “alpino” se tornava o novo padrão Após seu retorno do Himalaia, o “eleito” tem
K2”, Montagnes Magazine, nº 337, Grenoble, janeiro
de desempenho no Himalaia: uma monta- grandes chances de capitalizar sua epopeia, mas barracas as farmácias estão bem abas- de 2009.
nha e uma corda autônoma, leve e rápida, seja simbolicamente ou financeiramente tecidas: corticoides e Diamox, são apenas os 7 Paul Keller, A montanha esquecida, edições Guerin,
como nos Alpes. com conferências, livros, entrevistas etc. mais comuns. Chamonix, 2005.
28 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

COMPORTAMENTO

Os adolescentes se
despem na internet
Para alguns, a realidade de uma juventude que se expõe ao mundo em fotos sensuais e vídeos de sexo explícito
representa a perda “do pudor”. Para outros, o temor maior é que o novo costume atraia os pedófilos. Quem adota
essa prática, porém, está apenas preocupado em obter uma audiência cada vez maior para a sua vida privada
POR ALEJANDRO MARGULIS*

tendência se expressa por meio de

A centenas, milhares de blogs e foto-


logs, páginas pessoais, chats e tele-
fones celulares. Desde que come-
çou, há vários anos, inundou os
grandes meios de comunicação com notas e
artigos alarmistas, que aventavam um tipo
de relação perturbadora e sórdida. Vulgari-
zado como “sexting” (neologismo do jorna-
lismo americano que une o vocábulo “sex”
com “texting”, “enviar mensagens”), o cos-
tume dos adolescentes de se mostrar em po-
ses sensuais no mundo digital é considerado
uma provocação e um perigo. Para alguns, a
possibilidade de fazer isso “à vista de todos”
é prejudicial, porque a juventude teria perdi-
do “o sentido do pudor”. Para outros, o temor
maior é que o novo costume gere um víncu-
lo nocivo, abusivo e equivocado entre as
crianças e um conjunto de seres obscuros –
sempre à espreita –, que a crônica jornalísti-
ca se ocupa de colocar em foco, confirman-
do a existência de um dos mais aberrantes e
difundidos pesadelos atuais: a pedofilia.
Os adolescentes que já utilizaram o su-
porte digital como plataforma para divulgar
retratos insinuantes ou praticar jogos sexu-
ais – particularmente orais – são hoje alvo de
incontáveis críticas nos meios de comunica-
ção. As garotas que aparecem com ares pro-
vocantes – na maior parte das vezes fotogra-
fadas por elas mesmas, à distância focal do
próprio braço estendido – são duramente
censuradas: de forma direta ou indireta, sua
conduta é levianamente associada à prosti-
tuição. Há também aquelas meninas – ge- digitais enquanto praticam relações sexu- nha ocorrido em um posto de gasolina, e ção de meninas e adolescentes menores de
ralmente alunas de colégios privados – que ais. Em seguida, os enviam por bluetooth pa- não no ambiente escolar, os adolescentes 18 anos de idade como objetos sexuais, di-
posam nas redes sociais, como o Facebook, ra outros telefones e os carregam no YouTu- vestiam o uniforme do colégio e a direção vulgando a possibilidade de ter acesso a elas
adotando uma postura felina, como a de be, Facebook, Fotolog e MySpace. Com isso, decidiu puni-los com dezenas de advertên- e conhecer seus segredos íntimos de manei-
modelos em propaganda. Geralmente, as fo- o “o ato íntimo” passa a ser supostamente cias, deixando-os à beira da expulsão. “O re- ra fácil”. A reclamação foi levada em conside-
tos são feitas por seus parceiros. visto por milhões de pessoas, conhecidas e gulamento estabelece que os alunos devem ração, e esse tipo de aviso desapareceu dos
Pior ainda é o que ocorre com os garo- desconhecidas. usar o uniforme de forma digna, e não faltar comerciais e da propaganda de massa.
tos: ao que tudo indica, eles socializam Por toda parte, colégios privados que com o respeito à instituição”, fundamenta- Entretanto, os adolescentes que utilizam
compulsivamente suas façanhas de inicia- “pegaram em flagrante” seus alunos decidi- ram os dirigentes. Já em um colégio religioso a lógica das telas para ser vistos estão cons-
ção sexual com uma namorada ou amiga, ram aplicar sanções disciplinares severas. que passou pela mesma experiência, além truindo um novo código de conduta. Similar
quase sempre tão disposta quanto eles a No Chile, uma menina de 14 anos chamada de sofrer sanção semelhante, os estudantes talvez, guardadas as proporções, ao boom da
compartilhar a imagem de sua ginástica Naty ficou famosa por praticar sexo oral em foram obrigados a participar de um curso de minissaia nos anos 1960, que remou contra a
amorosa com seus conhecidos ou com as um colega de uma escola católica de Santia- educação sexual e de respeito à mulher. corrente dos critérios puritanos de sua épo-
centenas de milhares de eventuais expec- go, enquanto seus amigos filmavam e a in- Em outubro de 2008, o Observatório de ca. Antes lúdicos que pornográficos, muni-
tadores anônimos da rede. Uma quantida- centivavam, aos gritos de “Boa, Naty, dá- Meios de Comunicação da Argentina – inte- dos de forte cultura tecnológica e nascidos
de surpreendente de pesquisadores do lhe!”. Quando o Ministério da Educação grado pelo Instituto Nacional contra a Dis- sob o hábito de ser fotografados, inclusive
comportamento social contemporâneo criticou a medida adotada, os donos do colé- criminação, a Xenofobia e o Racismo (Inadi), quando estavam no útero de suas mães
considera esses jovens um “fenômeno pro- gio disseram que a menina não havia sido o Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer) (quando as primeiras ecografias fizeram fu-
blemático” que deve ser discutido e encara- expulsa, mas sim separada da sua turma, e o Conselho Nacional da Mulher – se opôs ror, em meados dos anos 1990), estes adoles-
do de maneira equivalente aos estuprado- “para sua própria proteção”. publicamente à promoção de mensagens de centes “vivem” o fato de aparecer na inter-
res ou molestadores em série. Algo similar ocorreu em Paraná, provín- texto (SMS) que “convidam a conhecer se- net com toda a naturalidade. Indiferentes ao
cia de Entre Ríos, Argentina, em diversas gredos íntimos das colegiais”. Segundo eles, preconceito adulto, seja de que ordem for,
VANGUARDA E CARISMA oportunidades. Dois garotos gravaram suas isso constitui uma tendenciosa incitação “ao sua ilusão consiste em receber a maior quan-
Um relatório recente da United Press In- namoradas praticando relações sexuais consumo do corpo de meninas e adolescen- tidade de comentários de seus pares, com o
ternational informou, com preocupação, com eles e as imagens circularam via telefo- tes”, que contraria as políticas de Estado con- mesmo prazer que pode sentir um caçador
como os adolescentes se fotografam ou gra- ne, poucas horas depois de serem disponibi- tra a exploração e o tráfico de pessoas. Para o ou caçadora de autógrafos quando comple-
vam vídeos com seus celulares e câmeras lizadas na internet. Muito embora o ato te- Inadi, os anúncios sugeriam “a representa- ta uma coleção com seus artistas preferidos.
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 29

Não os preocupa o voyeurismo ansioso da- O adolescente internético busca construir mos mostrar sequer um decote. Evidente- lumbre de gosto expresso e confesso quan-
queles que gostam de consumir imagens de seu carisma de maneira rápida e, no contex- mente, se o fazem, é porque gostam. Essas do este se dirige para menores de 18 anos. Na
corpos jovens, e muito menos que alguém, to imediato, o sexo e seu corpo em atitudes garotas saem assim, com tops e minissaias, internet, a presença de adolescentes mos-
sempre à espreita e aparentemente pronto a sensuais – sozinhos ou acompanhados – porque são ousadas.” trando seu corpo está na moda, mas não o
localizá-los e causar-lhes algum mal, se ex- converteu-se em um dos paradigmas que “Antes, o pudor tinha relação com o es- fazem como o exibicionista do manual de
cite observando-os. Na realidade, nem se- assegura maior quantidade de visualizações paço da intimidade. Hoje, essas barreiras psiquiatria: seu interesse em se mostrar é di-
quer parecem dar-se conta dos excessos à maior velocidade possível. se dissolveram completamente”, opina Ser- ferente. E a razão tem, claro, forte compo-
verbais, dos fanatismos, aplausos escritos e gio Balardini, psicólogo e membro do Pro- nente econômico: carentes, devido à idade,
até da paixão que podem despertar em seus MILITANTES DO EXIBICIONISMO grama de Estudos da Juventude da Facul- de outro valor de troca para capitalizar no
fotologs, blogs ou páginas pessoais. Na tela, aparecem duas adolescentes dade Latino-Americana de Ciências Sociais mundo consumista de hoje, sabem que seu
Organizações não-governamentais de- beijando-se ternamente. Uma delas tem lin- (Flacso). Daniela Gutiérrez, especialista corpo é a melhor das mercadorias para in-
dicadas à proteção da infância, como a Mis- dos olhos verdes; os da segunda são redon- em educação e diretora do seminário So- tercambiar, e aí o expõem na vitrine on-line,
sing Children, concordam com as autorida- dos e escuros, como botões negros. O casal é ciologia da Imagem na mesma instituição, dispostos a ver quanto vale na bolsa da cir-
des policiais das grandes cidades em famoso: trata-se de Cumbio, a blogueira concorda: “A foto divulgada na internet culação virtual.
equiparar essa tendência com o delito de adolescente mais popular da Argentina, e de funciona como a carta, com uma lógica Ou, no dizer do irmão de Cumbio, Ru-
pornografia infantil. Na Argentina, seu ar- sua namorada de 14 anos. As imagens desse epistolar. É para o outro, mesmo que não se bén Vívero, gerente de conteúdos e produtor
gumento é reforçado pela recente reforma beijo suave se reproduzem repetidamente saiba quem é. Entretanto, diferentemente de televisão: “Esses adolescentes estão fler-
do artigo 128 da Lei de Delitos Informáticos ao longo das páginas eletrônicas, como uma do exibicionista, o que prevalece nessas fo- tando com a prostituição, mas sem ter a ne-
(26.388) do Código Penal, que pune com até bela e rara mostra de castidade na represen- tografias é a ilusão. Porque aqui, a modelo e cessidade de exercê-la. Eles sabem que seu
seis anos de prisão quem “publicar, divulgar tação do amor sáfico. Que necessidade elas quem a observa nunca estão juntos. Essa é corpo tem um valor de troca. Sabem que
ou distribuir imagem sobre atos sexuais ou têm de multiplicar sua imagem amorosa até uma chave tecnológica. Há um desloca- compensa mostrar-se. Estão muito cons-
mostrando os genitais de um menor de 18 a saturação? São como atrizes de cinema mento que funciona como metáfora, uma cientes de que o sexo tem um valor e o apro-
anos”. Para aqueles que defendem o direito à que mostram o reverso da filmagem, mas, retórica da imagem. Por isso, é assombroso veitam. O virtual e o real formam parte de
expressão juvenil, estes alarmes fazem par- ao contrário da sétima arte, na qual o diretor que gente estudiosa interprete essas ima- um mesmo mundo. Como o que acontece
te de um relato que desconfia, a priori, dos escolhe a melhor tomada, aqui a repetição gens como se as garotas estivessem na fren- no mundo virtual é o que lhes acontece no
processos de transformação que vêm ocor- se torna a essência da mensagem: são mili- te delas, ao mesmo tempo em que as veem real, quando muitos os observam, esses jo-
rendo na cultura digital. tantes de uma escolha sexual. na internet. Aí, o que olha se encontra com vens saem ganhando”.
Vanguardistas em última instância, seu Entrevistadas pelo autor deste artigo, seu próprio desejo. Por isso, basicamente, o Na Argentina, as relações sexuais juve-
estilo está se multiplicando a uma velocida- em nenhum momento elas consideraram que é preciso controlar é o prazer de quem nis são um terreno escorregadio que coloca
de exponencial. Com efeito, qualquer pes- que alguém pudesse sentir-se excitado ven- olha, e não o corpo exibido”. em apuros tanto os psicólogos como educa-
dores e juristas, imersos num dilema que os
impede de aplicar sequer a lei nacional vi-
gente (25.673). Sancionada em 2003, insti-
tuiu o Programa Nacional de Saúde Sexual e
Procriação Responsável, estabelecendo o
ensino obrigatório da educação sexual em
todos os estabelecimentos educacionais, es-
tatais ou privados, desde o nível inicial ao
superior. Até meados de 2009, sua imple-
mentação concreta não era clara. Muito me-
nos como ela geraria nas escolas o clima
mental propício para poder falar do tema.
“Sem vontade política nas altas esferas, nem
a Lei de Saúde Sexual nem o programa po-
dem garantir uma política séria”, declarou a
deputada kirchnerista Ana Suppa.
Nesse estado de coisas, a falta de uma
linha de pensamento franca e madura ten-
de a gerar uma ânsia de controle da vida
privada dos jovens que oscila entre o lais-
sez-faire e a mania persecutória. Para al-
guns, a capacidade de dar e receber cari-
nho de forma responsável seria a atitude
que melhor articularia os intercâmbios
pessoais. Mas, quando é perpassado pelo
medo, o imaginário coletivo sempre se dis-
solve, cai em infantilismo ou paranoia, e a
sociedade tende a buscar autoritariamente
a probidade, aquilo que venha a colocar or-
dem na caótica intimidade dos vínculos. A
cor do amor, esse tom tênue, não tem muita
afinidade com o horizonte que a tela da in-
ternet oferece atualmente. Dessa forma, a
capacidade de gerar amor responsável e
afeto parece muito distante. Nada conde-
nável, nos tempos de Aids, de insegurança
coletiva e de individualismo desmedido. E,
soa que “posta” uma imagem ou texto seu na do suas fotos na internet. O tema nem sequer Porém, Gutiérrez também assinala outro entretanto, o fato de os adolescentes quere-
internet deseja que tal material receba rapi- veio à tona na conversa, mas foi considerado aspecto importante: “Todos os dispositivos rem divulgar sua vida na internet continua
damente muitos comentários. Para um nú- pelo cronista depois, quando visitou seus fo- tecnológicos novos tiveram em seu início sendo um ato de celebração. Ritual sem
mero cada vez maior de pessoas, a internet tologs. Na realidade, o motivo da entrevista um momento de forte investimento libidino- graça, sexo frio, paliativo, ante a indiferen-
está se convertendo no espaço de reconhe- era conhecer sua opinião acerca das garotas so”. “Tanto a escrita, como a voz e a imagem, ça que sentem por parte da sociedade ou o
cimento universal, onde elas podem ser vis- “atrevidas”, que exibem seu corpo na inter- viveram seu momento quente. O dispositivo mero gesto de uma peculiar e solitária li-
tas e comentadas, mesmo que apenas de net. Segundo Cumbio, fazê-lo “é um modo se sexualiza, é demoníaco, perigoso. Este é berdade de expressão, mostrar-se hoje em
passagem. As imagens, disponibilizadas de buscar fama ou contenção. Existem ou- um momento cultural novo, mas muito dis- dia desse modo lhes parece ser a única cha-
sem qualquer edição, geram comentários tras maneiras de buscar amizade ou expres- tante de ser uma vanguarda no aspecto se- ve para serem aceitos. Talvez o que sua ati-
fugazes ou profundos, a depender do im- sar amor, mas exibir-se demais é feio. Duro. xual, porque a concretização da sexualidade tude descontraída acaba finalmente pondo
pacto que causarem. Porém, os mais jovens Típico de alguém que não mede as consequ- está longe das imagens. Eles, os adolescen- à prova – e daí, o incômodo que provoca – é
não buscam originalidade, algo que consi- ências”, disse. Uma curiosa visão ambígua tes, são protagonistas-chave desta época de o estado em que se encontra o reconheci-
deram muito “anos 1970”, mas sim a multi- parece reger também o modo de ver o mun- reacomodação cultural e tecnológica.” mento do erotismo em cada um daqueles
plicação: quanto maior o número de pesso- do da líder dos blogueiros argentinos, capaz que os observam.
© Andrés Sandoval

as que veja ou copie sua imagem, mais de impor parâmetros de normalidade, co- O ESTADO DAS COISAS
próximo estarão de atingir seu ideal priva- mo o fazem as grandes hegemonias morais Enquanto a representação do corpo fe- *Alejandro Margulis é jornalista.
do, tipo de recompensa que satisfaz o narci- da época: “As garotas que se mostram ne- minino encontra uma liberdade quase sem
sismo e a necessidade de se mostrar, típica cessitam chamar a atenção”, estigmatizou. limites quando se destina ao uso publicitá-
da idade, e que não os assusta em absoluto. “Nós temos muitas visitas e não necessita- rio, há uma tendência a proibir qualquer vis- Artigo cedido pela ed. argentina de Le Monde Diplomatique.
30 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

EDUCAÇÃO

A homossexualidade
nas escolas elementares
Recentemente, a Inglaterra adotou no ensino primário uma postura de aceitação do homossexualismo,
apresentada por meio de histórias infantis com o objetivo de evitar futuras discriminações. O assunto, que
exige uma reflexão mais profunda, é sinal de um novo momento histórico
POR RUY CEZAR DO ESPÍRITO SANTO*

N
oticiou-se recentemente que a bomba atômica, em 1945, houve o “início”
Inglaterra adotou nas escolas de uma nova fase chamada de “consciencia-
primárias uma postura de acei- lização” por Teilhard de Chardin e “cons-
tação da homossexualidade, cientização” pelo nosso Paulo Freire.
apresentada por meio de histó- Sim, estamos num momento de toma-
rias infantis, no sentido de evitar futuras da de consciência de “si mesmo” – o auto-
discriminações. conhecimento – e de nosso “mundo vida”
O assunto exige uma reflexão mais como dizia Freire. A questão da homosse-
profunda que simplesmente concordar ou xualidade não pode ser “excluída” da visão
discordar da medida. A humanidade sem- de totalidade advinda do avanço da ciência
pre conviveu com a homossexualidade, e da própria religiosidade, tal como aponta-

© Daniel Kondo
bastando para tanto lembrar da Grécia do por Teilhard. Aliás, Teilhard diz em sua
Clássica onde era notório o relacionamento obra O fenômeno humano que “após per-
de parceiros masculinos. Assim, não se trata correr longamente o caminho da análise, o
de um assunto novo no que diz respeito à ser humano chega à luminosa síntese”. Co-
sua ocorrência através dos tempos. mo diria Jung, estamos num momento de
O desafio maior é a questão da sexuali- encontro dos chamados “opostos”: bem e
dade em si mesma. Lembremo-nos que so- mal, certo e errado, masculino e femini-
mente no início do século passado, com no, e assim por diante.
Freud, tivemos o diagnóstico das repres- Esse “encontro dos opostos”,
sões sofridas pelo ser humano no campo anunciado por Jung, nos conduzirá
sexual, o que deu origem aos tratamen- a uma superação do universo frag-
tos psicanalíticos. Freud acentuava que mentado em que tantas vezes
a infelicidade do ser humano tinha ori- ainda vivemos. Sim, são “exclu-
gem nessas repressões, que permane- sões” de ordem racial, sexual, eco-
ciam no inconsciente. Na sequência, o nômica, religiosa, ideológica e assim
principal discípulo de Freud, Carl G. Jung, vai. Tanto é verdade, que um movimento
trata a temática de forma mais profunda, da maior relevância hoje presente na Edu-
com o que foi denominado por ele de pro- cação é o da “inclusão”. O importante em tal
cesso de individuação, que seria a integra- movimento é que não se tratará simples-
ção do ego com o “self”. escola primária, histórias infantis e mitos mos a afirmativa que o ser humano foi mente de “incluir” o “diferente”, mas sim
Estas colocações iniciais são importan- que não só abram espaço para as relações criado à Imagem e Semelhança do Cria- cada aluno, que será sempre “singular” e
tes porque, efetivamente, o que mais atingiu homossexuais, mas mais que isso, eliminem dor. Ora, nesse sentido, nossa essência, precisará ser incluído... Insisto nessa ques-
a humanidade em termos de sexualidade fo- toda a “sujeira” e maldade atribuída à sexua- metaforicamente falando, do ponto de tão porque um dos problemas do homosse-
ram as repressões, sendo certo que a discri- lidade. Veja-se que o encontro do ego com o vista cristão é o Amor. xual é, exatamente, sua “exclusão” de um
minação do homossexual é ainda consequ- “self”, referido por Jung –, em nenhum mo- grupo ou de uma classe.
ência de tal postura. mento “exclui” a sexualidade... O sexo é par- CONEXÕES HUMANAS A iniciativa anunciada na Inglaterra é
E qual a origem de tais repressões? Sem te integrante do ser humano, como o é o cé- Estou situando tal questão porque a se- um dos sinais desse novo momento da his-
dúvida, elas têm raízes numa interpretação rebro, os olhos ou o coração. A integração de xualidade, como o olhar, por exemplo, deve tória, assim como da importância que ad-
de cunho religioso que situa a sexualidade um ser humano não pode excluir qualquer ser uma oportunidade de vivência de tal quirem as organizações não-governamen-
como sendo o “foco” de todo o mal e a ori- um de seus aspectos formativos. Amor. Não importa se por razões genéticas tais e outras iniciativas visando conexões
gem do assim chamado “pecado”. O grande drama é a “ignorância” de si ou emocionais tal sexualidade caminha pa- amplas no universo conhecido, como, por
mesmo. Ignorância que não se confunde ra uma “homossexualidade”. O fundamen- exemplo, a consciência ecológica, ou seja, a
DIMENSÃO PECAMINOSA com analfabetismo, mas aquilo que Sócra- tal é que a criança cresça percebendo que conexão com o meio ambiente.
Claro que tal interpretação não atingiu tes denominava de “conhece-te a ti mesmo”, todo seu corpo físico apresenta formas de
todas as culturas religiosas, como por exem- como princípio de toda a sabedoria. acolhimento do Outro, portanto, formas de *Ruy César do Espírito Santo é professor de filosofia da
plo a vigente na Índia, onde a sexualidade O ser humano que culturalmente sofre expandir sua essência: o Amor. educação na Pontifícia Universidade Católica de São
tem claramente uma dimensão sagrada. Po- repressões de várias ordens, especialmente Curiosamente, naquilo que foi chamado Paulo (PUC-SP).
rém no Ocidente, de forma acentuada, pre- de ordem sexual, como já mencionado, per- de Encontro da Ciência com a Fé, temos o
valeceu a afirmativa de que o sexo somente manece em níveis de ignorância de si mes- que a física quântica chamou de “vazio” pre- Bibliografia
não é “pecado” no casamento... Em outras mo que o conduzem a uma profunda infeli- sente no interior de um átomo, onde se torna
palavras, a sexualidade humana existe para cidade e falta de sentido existencial. Do um mistério a existência de matéria sólida 1 Espírito Santo, Ruy Cezar. O autoconhecimento na forma-
a geração de filhos. Ora, se assim prevalece a ponto de vista religioso – apenas para uma em qualquer nível. O que existe, segundo ção do educador. Editora Ágora/Grupo Summus, 2007.
2 Espírito Santo, Ruy Cezar. Renascimento do sagrado na
relação homem-mulher numa cultura reli- pequena referência, dada a complexidade Fritjof Capra, dentre outros, são “possibili- educação. Editora Vozes, 2008.
giosa, o que dizer da relação homossexual? de uma discussão nesse nível – temos tanto dades de conexões” no “coração da matéria”. 3 Capra, Fritjof. O ponto de mutação. Editora Cultrix, 1988.
Impossível imaginar geração de filhos, salvo no Budismo, como no Cristianismo ou no Veja-se o paralelo com as conexões huma- 4 Chardin, Teilhard de. O fenômeno humano. Editora Cultrix,
com a adoção. Islamismo, o Amor como temática básica. nas, ou seja, o Amor... 1989.
5 Hoffman, Edward. A sabedoria de Jung. Editora Palas
Assim, o homossexualismo foi ganhan- No cristianismo, que nos é mais próxi- Trouxe essa reflexão porque estamos vi-
Athena, 2005.
do uma dimensão pecaminosa com a con- mo, temos a afirmativa bíblica que “Deus é vendo um momento da história da humani- 6 Huxley, Aldous. A filosofia perene. Editora Cultrix, 1991.
sequente discriminação. Nesse sentido é ur- Amor”, por sinal o título de uma encíclica dade em que, após o adolescente humano 7 Lutyens, Mary. Vida e morte de Krishnamurti. Editora Teo-
gente trazer para a sala de aula, desde a do papa atual. Ainda na mesma Bíblia te- perceber que podia destruir o planeta com a sófica, 1989.
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 31

DIREITOS HUMANOS

A luta armada e a
violência das ditaduras
Não há déficit de democracia no Brasil se considerarmos a competição partidária, voto secreto e universal,
a renovação periódica dos governantes e presença de oposições. Contudo, no âmbito deste amadurecimento
democrático é lastimável a forma como José Sarney alude aos movimentos que participaram da luta armada
POR LÚCIO KOWARICK*

sistema político eleitoral brasileiro mente comprovados pela Comissão Nacio- cujo aparato de repressão atuava em estreita Se estas afirmações têm fundamento ju-

O apresenta inúmeros problemas: a


corrupção endêmica, a medida
provisória, herança dos tempos da
ditadura, o financiamento das
eleições e as trocas oportunistas de partido,
o que torna imperativo uma ampla reforma
política. Feitas estas ressalvas, não há défi-
nal de Direitos Humanos, além de outros
casos em que as investigações ainda não fo-
ram concluídas.
Uma pesquisa realizada no final dos
anos 19702 mostrou que, entre l965 e l978,
mais de 5 mil pessoas foram condenadas
pelas auditorias militares, 4.877 tiveram
ligação – “sem freios ou fronteiras” – e sob
inspiração de Washington. Segundo o Agru-
pamento de Familiares Desaparecidos, essa
colaboração intergovernamental foi respon-
sável pelo sequestro e morte de 1.200 cida-
dãos de várias nacionalidades.
Professores de universidades, nos idos
rídico, os documentos do major Curió, só
agora publicados, são seminais.3 Eles mos-
tram que “a maioria dos 41 guerrilheiros
mortos se entregaram ou foram rendidos
em situações em que não ocorreram dispa-
ros (...) foram presos, amarrados e executa-
dos quando não ofereciam resistência (...): a
cit de democracia no Brasil se por isto se en- seu mandato político cassado e 10 mil fo- de 1970, conviviam com a prisão, tortura e ordem de cima – continua o major subser-
tender competição partidária, voto secreto ram exiladas. exílio de colegas; com a rotineira presença viente de Médici-Geisel – é que só sairíamos
e universal, renovação periódica dos gover- Além disso, houve intervenção em 536 da polícia nas salas de aula; com o assassi- quando pegássemos o último”.
nantes, presença de oposições partidárias: sindicatos, proibição de 600 peças teatrais, nato de alunos nas prisões do governo Médi- Exemplo típico da assim chamada “obe-
esta tem sido a regra de nossa história polí- de mil músicas e 270 assuntos censurados ci, cujo trágico exemplo pode ser personifi- diência devida”, o algoz enfatiza: ”O inimi-
tica recente. pelos órgãos competentes. Esse trabalho de cado em Alexandre Vannuchi, da USP, go, por ser inimigo, tem de ser respeitado”.
Contudo, no âmbito deste amadureci- censura era feito por profissionais ou volun- homenageado por seus colegas e cujo nome Só que esse respeito segue as trilhas cujo
mento democrático é lastimável a forma co- tários ligados aos 16 órgãos de informação. honra o Diretório Central dos Estudantes. princípio é a matança, desrespeitando a es-
mo o ex-presidente da República e atual pre- Os mortos, torturados ou exilados não se sência do Estado de Direito. Os Curiós e seus
sidente do Senado, José Sarney, alude aos MILHARES DE MORTOS contabilizam, pois isso significaria dizer superiores existiram em todas as ditaduras
movimentos de oposição política que adota- Qualquer pessoa que fosse ao Chile du- que, num determinado país, foram relativa- latino-americanas que, felizmente, não
ram a via da luta armada, entre outros os Tu- rante o período Pinochet poderia ouvir rela- mente poucos, e em outros foram muitos. Es- mais predominam no cenário político dos
pamaros e Montoneros. Sua Excelência po- tos de ex-prisioneiros detidos no Estádio Na- sa sinistra contagem, frequentemente apre- últimos 20 anos.
deria expandir-se para a América Central. A cional, que descreviam as torturas da goada por quem a praticou, esconde uma Uma palavra final: o pensamento do
Guatemala é exemplar nesse sentido.1 ditadura, cuja ferocidade produziu entre3 questão mais profunda que, nas palavras de ex-presidente da República e atual presi-
Sigo as trilhas do livro de Ralph Lee mil e 7 mil mortos e desaparecidos. Hanna Arendt, é o direito de ter direitos, cujo dente do Senado presta-se como exemplo,
Woodwar Jr, PhD e professor de várias uni- É aterrador saber que na véspera de núcleo fundamental reside na própria vida. pois algumas lideranças militares e civis
versidades, inclusive da Academia Militar de chegar a Santiago, nos meados da década Essa questão coloca outro ponto funda- que com ele ainda se identificam, manifes-
West Point. Após mostrar a estreita ligação de 1980 – portanto, muitos anos depois do mental: no confronto da luta armada, a tam posicionamentos que aproximam esse
de John Foster Dulles, secretário de Estado golpe de 11 de setembro de 1973 –, três opo- guerrilha sequestrou, aprisionou, mu- rol de indivíduos do lado violento do perío-
do governo Eisenhower, com a United Fruit nentes ao regime foram degolados e os cor- tilou e matou militares e civis em nome do ditatorial.
Company, na operação denominada “El pos largados nas vias públicas. No Uru- da liberdade, da igualdade, da emanci-
Diablo”, ele aponta a CIA como envolvida na guai, entre mortos e desaparecidos, foram pação dos povos, do socialismo, do *Lúcio Kowarick é professor titular do Departamento de
intervenção que derrubou o presidente elei- mais de 200 pessoas. Na Argentina, esses que quer que seja, mas o fez como es- Ciência Política da FFLCH/USP.
to da Guatemala, Jacobo Arbenz, em 1954. terríveis acontecimentos também são am- colha individual: o que caracteriza es-
Vale a longa citação: “Uma onda de pri- plamente conhecidos, tendo sido assassi- ses fatos é que, do ponto de vista jurídi- 1 Na sua coluna semanal de 29 de maio, na Folha de
S.Paulo, intitulada “Tragédia Inacabada”.
sões, assassinatos e exílios seguiu-se (...) às nadas 30 mil pessoas. co, eles foram praticados na qualidade
2 Lúcio Kowarick. A espoliação urbana. Ed. Paz e Terra, 1979.
brutais políticas dos sucessivos governos É exemplar o caso das “Madres de Maio” de pessoa física. 3 O Estado de S. Paulo, 21/06/2009.
militares pelos 30 anos seguintes; de acordo na luta contra a ditadura militar. Com seu Por outro lado, aqueles que os per-
com as organizações de direitos humanos, passo lento e sua persistência caminhavam petraram a mando de um go-
mais de 200 mil civis morreram nas mãos com as fotografias dos parentes desapareci- verno, portanto, porta-
dos paramilitares a soldo dos grandes pro- dos: no início eram denominadas de “lou- dores de um mandato
prietários. Eram os assim chamados “Mano cas”, pois o medo impedia que as pessoas decorrente do Poder
Blanca”, que depois passaram a se denomi- nelas acreditassem. A mudança dessa deno- Público, agiram em
nar “Olho por Olho”. minação – de “loucas” para “madres” – tra- nome do Estado, que
Segundo pesquisadores franceses, na duzia uma metamorfose de percepção que tem o dever de pre-
América Central houve confrontos armados passou a ter amplo significado social e polí- servar a vida de to-
entre guerrilhas e governos, estas enfrentan- tico, o movimento foi de magna importân- das as pessoas, in-
do, no mais das vezes, ferrenhas ditaduras, cia na derrocada da ditadura. dependentemente
como a de Somoza. Centenas de milhares de Em todos os países os documentos de sua coloração
pessoas, na maioria civis, foram assassina- mencionam estupro, tortura de mulheres político-ideológica.
das por organizações paramilitares. grávidas e presença de crianças para inti- O crime de mag-
Também não é mencionado o Paraguai midar e forçar os pais a confessar atos que na grandeza ocorre
© D. Bugre

de Stroessner, nem o Brasil, onde a “linha muitas vezes não haviam cometido. Nor- quando, em nome de
dura” preponderou sobre os militares que se malmente, esses opositores políticos eram preservar a demo-
opunham ao sequestro e à tortura, dicoto- jovens universitários, profissionais liberais, cracia ou a revolução,
mia que em tempos recentes, numa meta- variando a presença de operários e campo- o Estado faz uso da
morfose semântica, passou a ser denomina- neses de acordo com a história política de violência de forma arbi-
da de “ditabranda”. cada sociedade. trária, posto que qualquer
Basta ler livros como Brasil: nunca mais Inúmeros relatos também foram regis- concepção de Direito e de Justiça, por-
ou Direito à memória e à verdade para ter trados acerca da Operação Condor, estraté- tanto, do império da Lei, não pode se bali-
uma visão do que foram os “anos de chum- gia de aniquilamento levada adiante por seis zar no sequestro e na tortura, sob pena de
bo”: 474 mortos e desaparecidos, devida- países sul-americanos, incluindo o Brasil, e tornar-se um Estado assassino.
32 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

COMUNICAÇÃO / AMÉRICA LATINA

Telesur e as mentiras
da imprensa privada
Fundada há cinco anos pelos governos de Venezuela, Argentina, Cuba e Uruguai, a rede de televisão Telesur
nasceu com objetivo de se colocar na contracorrente da mídia comercial. Convidado a participar, o Brasil continua
resistente, ainda que canais locais do Rio de Janeiro e do Paraná já retransmitam o sinal da emissora
POR ELSON FAXINA*

A
primeira libertação de reféns pe- mento de Simón Bolívar –, a emissora veio e Equador. Novos países devem se integrar Talvez aqui se encontre o maior serviço
las Farc (Forças Armadas Revolu- para fazer o papel contra-hegemônico, em em breve, como é o caso do Paraguai. que a Telesur presta ao jornalismo latino-
cionárias da Colômbia), no início oposição à mídia comercial. “Nosso objeti- O Brasil, contudo, resiste a entrar na ar- americano. A programação comprometida
de 2008, já havia introduzido a Te- vo é romper o bloqueio midiático que as re- ticulação. Segundo o cientista político, pro- com certas linhas de pensamento e políticas
lesur, então com pouco mais de des de televisão privadas, a serviço das oli- fessor e pesquisador Rafael Duarte Villa, da de Estado e práticas econômicas e sociocul-
dois anos de atividades, no sistema infor- garquias nacionais e do imperialismo Universidade de São Paulo (USP), isso está turais voltadas aos mais necessitados vem
mativo mundial. As imagens da emissora americano, exerceram e exercem sobre relacionado, “primeiro, com a falta de visão exatamente expor as mentiras transvertidas
multiestatal, cujo lema é “Nosso Norte é o nossos povos”, afirmou seu diretor-geral no estratégica do governo brasileiro sobre a im- de verdade com que o jornalismo de merca-
Sul”, cruzaram o mundo com tom próprio Fórum Social Mundial realizado em Belém portância de um canal de TV estatal para fir- do se consolidou nas últimas décadas. Ao as-
e postura diversa da que se costumava ver (PA), em janeiro deste ano. Esse domínio mar a ideia da integração, como a Europa sistir a Telesur e compará-la à televisão pri-
até então em um grande veículo de comu- informativo, disse ele, faz com que infor- Ocidental entendeu há muito tempo. Sem vada, é impossível não se lembrar de A roupa
nicação. A Telesur, proposta pelo presi- mações sejam ocultadas e que problemas comunicação não há processo possível de nova do imperador, de Hans Christian An-
dente venezuelano Hugo Chávez e surgida fundamentais que nossa sociedade enfren- integração política, econômica e social”. Um dersen, e gritar, em vez do rei, que “a rainha
da parceria entre Venezuela, Argentina, ta hoje sejam manipulados. Esse é o mode- segundo aspecto que pode explicar a posi- está nua”. São explícitas as três grandes men-
Cuba e Uruguai, postou-se de cara na ou- lo seguido à risca pela grande mídia comer- ção do Brasil é que a Telesur tem uma ima- tiras que revestem a entronada mídia priva-
tra margem do fluxo de informações, colo- cial no continente. gem muito vinculada ao governo da Vene- da: imparcialidade, isenção ideológica e si-
cando-se na contracorrente da grande mí- zuela, e, a partir daí, “outros fatores, como a nonímia de mídia privada e mídia livre.
dia comercial. suposta disputa pela liderança sul-america- Aliás, nada mais ideológico do que a ne-
Um ano e meio após sua criação, a co- A programação da rede é na, entram em cena”, diz Villa. gação peremptória da ideologia. “Todo dis-
bertura que a Telesur fez do golpe de estado Mas, decidida a irradiar seu projeto para curso tem ideologia, inclusive o científico”,
em Honduras – ¬antes, durante e depois –,
comprometida com certas todo o continente, a Telesur assinou convê- reitera o pesquisador Efendy Maldonado.
deflagrado em 28 de junho deste ano, não linhas de pensamento, nios no Brasil com a emissora público-esta- Toda comunicação, não importa qual, ex-
deixou dúvidas de que a emissora já galgou políticas de Estado e tal do governo do Paraná, a TV Paraná Edu- pressa um conjunto de ideias, resta saber a
seu lugar na história da informação na Amé- cativa, e com a TV Cidade Livre, do canal que cosmovisão ela atende.
rica Latina. “O profissionalismo, o patriotis- práticas econômicas comunitário de Brasília. Esta transmite com
mo, o sentido do dever e a responsabilidade e socioculturais voltadas frequência o sinal direto de Caracas, como A MALHA DA TELESUR
com nossos telespectadores desabrocharam foi o caso da cobertura do golpe em Hondu- Apesar da tenra idade, a Telesur é hoje
em Tegucigalpa pelo trabalho das equipes
aos mais necessitados ras. Já a Paraná Educativa – presente nacio- uma rede que tem correspondentes em qua-
da Telesur”, confidenciou-me o cubano Oví- nalmente pelo canal 115 da Sky e captada se todos os países da América Latina, além
dio Cabrera, diretor-geral da emissora. De por antena parabólica em toda a América dos Estados Unidos. Firmou parceria com
fato, se a Telesur não estivesse em Honduras É com o propósito de se contrapor a esse Latina – retransmite de segunda a sexta-fei- dezenas de emissoras de várias partes do
naquele momento, o mundo poderia não se modelo que a Telesur define sua programa- ra, das 19h45 às 20h15, o Telesur Notícias, um mundo, entre elas a TV Al-Jazeera, do Qatar.
inteirar do latrocínio ocorrido ali. ção e prioriza as transmissões especiais. “As telejornal dublado em português. Trata-se Seu sinal está na Venezuela e em diversos
Foi uma cobertura singular, de uma TV coberturas sobre o conflito colombiano e o de um olhar diferenciado, com notícias pou- canais na Argentina, Bolívia, Cuba, Uruguai
que assume a postura de não se esconder no caso de Honduras têm sido especialmente co vistas nas emissoras comerciais. “Só ago- e Madri, na Espanha, e começa a chegar ao
hipócrita e lúgubre escudo da imparcialida- marcantes porque são uma oportunidade de ra eu comecei a me dar conta de como a gen- Equador e Nicarágua, além do Brasil. Pode
de. Havia uma equipe da Telesur no avião do mostrar distinção em relação à mídia comer- te é ignorante sobre o que acontece na ainda ser acessada na internet, pelo endere-
presidente deposto, Manuel Zelaya, que não cial”, afirma Efendy Maldonado, jornalista América Latina”, diz Deoclécio de Lima, de ço http://www.telesurtv.net. Contudo, a di-
pôde pousar devido à violência dos golpis- equatoriano radicado no Brasil e professor Betim, Minas Gerais. “Primeiro eu assisto a ficuldade de atingir seu público preferencial
tas, afirma Beto Almeida, diretor da Telesur de pós-graduação da Universidade do Vale Telesur, e em seguida (às 20h15 começam os ainda é um desafio que tira o sono da dire-
no Brasil. “E essa é uma das páginas da his- do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande telejornais de duas grandes emissoras na- ção da emissora.
tória da América Latina que a Telesur está do Sul. Para ele, são decisivas também as re- cionais) vejo o que os outros canais dizem de Na realidade, esse não é um problema
ajudando a escrever, com o risco que seus portagens sobre os processos políticos de mentira ou escondem de nós”, ironiza. Sem exclusivo da Telesur, mas, há muito tempo,
profissionais correm. Onde estava a CNN? mobilização e o apoio popular às mudanças saber, ele confirma o que disse o jornalista de todas as TVs público-estatais. No Brasil,
Na casa de Roberto Micheletti? Onde esta- estruturais, tanto em termos constitucionais argentino Carlos Aznárez, ao referir-se à Te- por exemplo, a ironia é enorme. Foi com re-
vam a Globo e até mesmo a TV Brasil? Dizen- quanto na implementação de projetos con- lesur durante o Encuentro Latinoamericano cursos públicos que a principal TV privada
do que Zelaya não foi vítima de golpe, que cretos, como o método “Yo si puedo”, que le- vs Terrorismo Mediático: “Os que têm a sorte pôde montar uma malha de distribuição de
ele é que queria eternizar-se no poder”, res- vou a Unesco (Organização das Nações Uni- de acessar esse canal podem inteirar-se, por sinal que a possibilita estar há tempos nos
salta o jornalista brasileiro. das para a Educação, a Ciência e a Cultura) a simples dedução e comparação de textos e mais longínquos grotões do país. Esta sem-
Destacados de outras tantas coberturas, decretar Venezuela e Bolívia territórios livres imagens, sobre quanto e como nos mente pre foi a lógica brasileira: expandir as redes
fundamentalmente nos países que sofrem do analfabetismo. Trata-se de “desmontar as diariamente a cadeia do terrorismo midiáti- privadas com dinheiro público. Não à toa,
com a postura inconfessa, porém tenden- coberturas distorcidas das mídias comer- co”1. Para ele, a Telesur veio para trazer ares passa de R$ 1,5 bilhão o investimento anual
ciosa, da mídia comercial, esses dois fatos – a ciais”, destaca Maldonado. novos dentro de tanta atmosfera contami- do governo federal, envolvendo a adminis-
cobertura das Farc e de Honduras – possibi- nada, e “nesse curto tempo de existência [na tração direta e indireta, na mídia comercial.
litaram à Telesur entrar na sua maioridade, O BRASIL RESISTE época com apenas dois anos e oito meses] já Os argumentos objetivos são muitos, entre
antes mesmo de completar seu quarto ani- Com sede em Caracas, Venezuela, a Tele- deu boas mostras de que ouvir as outras vo- eles anunciar seus feitos e produtos. Já os
versário. Nada mais coerente com sua pro- sur se consolida como uma rede latino-ame- zes e difundir a informação que os meios subjetivos... Fato é que o governo federal ti-
posta inicial. Fundada em 24 de julho de ricana de comunicação que conta hoje tam- convencionais ocultam serve para erodir, tubeia até hoje em estabelecer uma malha
2005 – não por acaso aniversário de nasci- bém com a participação de Bolívia, Nicarágua aos poucos, o muro do discurso único”. de transmissão de sinal que permita a sua
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 33

© Henry Romero / Reuters


Jose Laguna, embaixador da Venezuela em Tegucigalpa, acusa o exército de Honduras de perseguir os jornalistas da Telesur que cobriam o golpe militar

televisão público-estatal atingir os quatro editorial das emissoras, e que “carece de rica Latina. O lúdico também está presente, cias podem ser feitas sem o apoio, a partici-
cantos do país. Aliás, nem sequer compro- qualidade na medida em que é feita – na numa programação diária salpicada de es- pação direta, a sustentação e a relação com o
mete as TVs a cabo a veicular a TV Brasil. maior parte dos casos – na base de um jor- portes e manifestações culturais, ao que se Estado, e que sejam de natureza democrati-
Contudo, na Telesur a percepção clara é nalismo que pesquisa pouco e de achismos somam filmes e documentários de produto- zadora? Onde é que o mercado está possibi-
a de que uma integração latino-americana absurdos”, o que leva à combinação nociva res independentes. litando democratização da cultura e da in-
não se dará unicamente pelos acordos ofi- de comunicação enviesada e formação de formação?”, questiona Beto Almeida.
ciais que se firmam a cada nova reunião. De- opinião pública espúria e imprecisa. A Telesur vai bem, mas os desafios ainda
pende também do desejo de integração des- são muitos: aprimorar a qualidade dos con-
ses povos, que só é possível a partir da NOSOTROS, SI, PODEMOS!
Nessa empreitada latino- teúdos e imagens; expressar, na programa-
construção de outra cultura que vislumbre Essa negação do continente por meio da americana a Telesur apóia ção, as culturas, valores, interesses e sonhos
esse horizonte. Numa sociedade cada vez sonegação de informações importantes e novas experiências de de emancipação dos povos latino-america-
mais midiatizada, a ação dos veículos de co- deturpações de fatos sobre a América Latina nos, visando à construção de um futuro pro-
municação é crucial na construção de uma é a tônica da mídia comercial. O povo latino-
televisões locais. São missor e livre de toda forma de império. Ra-
nova autoimagem no próprio continente. E a americano não só desconhece o programa iniciativas que se fael Villa acredita também que a Telesur
cobertura da mídia comercial, na opinião de de alfabetização “Yo, sí, puedo”, como tam- consolidam num sistema precisa se firmar para além de conjunturas
Efendy Maldonado, é muito prejudicial à bém ignora que a Bolívia já recuperou gran- de governo, e Efendy Maldonado destaca a
América Latina: “As pesquisas sistemáticas de parte da soberania sobre sua própria ri- público de comunicação necessidade de a emissora apreender os pro-
que temos feito durante duas décadas mos- queza; que o Equador fez o mesmo e ainda cessos históricos e os conhecimentos de co-
tram o caráter destruidor, preconceituoso, realizou uma auditoria de sua dívida exter- municação para tornar-se componente vital
racista, redutor e xenófobo de boa parte da na – economizando mais de US$ 2 bilhões O fato é que uma TV público-estatal, ou do cotidiano latino-americano, “penetran-
produção comercial latino-americana. A cobrados irregularmente –, além de ter de- multiestatal, como é a Telesur, é condição do nas mentes e corações de modo respeito-
negação da alteridade e de um projeto co- terminado a retirada da base americana de para se construir uma democracia real. Para so e solidário”.
mum para nossa América, promovendo a Manta, reassumindo sua condição de país Efendy Maldonado, a Telesur é uma garantia Mas para uma emissora com apenas
subserviência ao poder dos Estados Unidos, soberano. De fato, se dependermos da mídia de informação mais democrática. “A exclusi- quatro anos de existência, pode-se dizer que
tem sido o modelo da produção midiática privada, não saberemos nada sobre essas e vidade da informação e o controle hegemô- a Telesur já foi bem longe, dando mostras de
sobre a região”. Para ele, os discursos dessa outras infinitas conquistas e verdades sobre nico têm um contraponto, um espaço e uma que veio para ficar, e incomodar.
mídia apresentam as nações vizinhas como nossa América. Antes, ficaremos achando produção que oferece alternativas de verda-
inimigas. “Para os brasileiros, os bolivianos, que Chávez, eleito democraticamente, é um de, de humanidade, em face de uma cultura *Elson Faxina é jornalista, editor e documentarista da TV
paraguaios e argentinos são vistos como ditador, e que Felipe Calderón, cuja eleição da violência exorbitante nos meios comer- Paraná Educativa, professor de comunicação da UFPR
contrabandistas, traficantes, aproveitado- foi fruto de fraude eleitoral 2, é presidente in- ciais”, diz. Ovídio lembra, no entanto, que (Universidade Federal do Paraná), mestre em Televisão,
res econômicos; para os colombianos, os conteste do México. “tudo o que fazemos não é a partir de um Rádio e Cinema pela ECA/USP e doutorando em Comu-
equatorianos e venezuelanos são represen- É para dar respostas a essas demandas olhar alternativo. É uma visão própria, de nicação pela Unisinos/RS.
tados como cúmplices do ‘terrorismo’. Em por uma comunicação com cara e sotaque justiça social, que interpreta não os grandes
toda a América Latina o modelo é similar e latino-americanos que a Telesur se muniu interesses, mas sim os interesses dos povos”. 1 Carlos Aznárez. Encuentro Latinoamericano vs Terroris-
segue a lógica da separação, da negação, da de equipamentos de última geração e mon- Nessa empreitada latino-americana a mo Mediático. 2008, p. 128. O livro traz as exposições dos
destruição simbólica do outro. Isso é gravís- tou uma grade de programação variada, Telesur tem apoiado novas experiências de participantes do encontro de jornalistas e pesquisadores
da América Latina, em Caracas, Venezuela, nos dias 27 a
simo e a Telesur é imprescindível para mu- tendo como ponto forte noticiários e docu- televisões. Bolívia, Equador, Nicarágua e Pa-
30 de março de 2008, quando se realizava, também ali,
dar essa realidade midiática”, conclui. mentários de todo o continente. De hora em raguai são alguns exemplos. São iniciativas uma reunião da Sociedade Interamericana de Imprensa
Rafael Duarte Villa destaca que essa co- hora há boletins atualizados com informa- que estão se consolidando num sistema pú- –SIP. Tradução livre.
bertura é perpassada pela visão político- ções internacionais e foco principal na Amé- blico de televisão estatal. “Quais experiên- 2 Ver filme Fraude, de Luis Mandoki, México, 2006.
34 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

CONFERÊNCIA NACIONAL DE COMUNICAÇÃO

O controle da mídia
em debate
Previsto para o final desse ano, o encontro permitirá a realização de um debate público representativo sobre
os rumos da comunicação de dimensão inédita no país. Estarão em pauta alguns temas fundamentais, como
as concessões de rádio e TV e o novo marco regulatório para a convergência tecnológica
POR INTERVOZES*

A
gendada para dezembro de 2009, a I blicado seu panfleto Areopagitica, em que a bandeira da defesa da liberdade de expres- mento da democracia, esse direito precisa
Conferência Nacional de Comuni- clamava pela liberdade de imprimir inde- são foi apropriada nas últimas décadas jus- vir acompanhado do direito à informação,
cação permitirá a realização de um pendentemente de licença. Textos com o tamente por aqueles que, por um lado, mais que implica na garantia de que informações
debate público representativo sobre mesmo espírito marcam documentos mais se beneficiam dela e, por outro, mais dificul- não sejam omitidas e que todas as diferentes
os rumos da comunicação de di- recentes, como a Declaração Universal dos tam sua fruição pelos demais. Conformou- perspectivas e visões sejam postas em cena.
mensão inédita no país. O encontro abrirá Direitos Humanos da ONU, pactos, conven- se, assim, uma estratégia ludibriosa, que Sem isso, os objetivos intrínsecos à defesa da
espaço para que Estado e sociedade civil, in- ções e constituições em todo o mundo, in- transformou os detentores dos meios de co- liberdade de expressão ficam prejudicados.
cluindo os setores empresariais, as entida- clusive no Brasil. A proposição de caráter li- municação em arautos da liberdade e dei-
des de trabalhadores e diversas outras orga- beral nunca impediu, contudo, que Estados xou aqueles que questionam o excessivo po- DIREITO À COMUNICAÇÃO E PAPEL DO ESTADO
nizações discutam diretrizes para políticas Unidos, França e Reino Unido – só para to- der desses meios a empunhar a bandeira da Esses aspectos evidenciam como tomar
públicas do setor e tragam à luz diferentes mar os exemplos citados – estabelecessem regulação e do controle. a liberdade de expressão como garantia con-
visões sobre temas como concessões de rá- leis para regular o exercício das liberdades tra o poder do Estado é enxergar apenas
dio e televisão, violação de direitos huma- de expressão e de imprensa, justamente no O PULO DO GATO uma pequena parte da questão. Em primei-
nos na mídia, proteção a crianças e adoles- sentido de garanti-las. Essas normas se fun- A transferência do direito à liberdade de ro lugar, é necessário atrelar a liberdade de
centes e direitos civis na internet. damentam na noção de que a garantia da expressão de seres humanos para empresas expressão ao direito à informação. Além dis-
A conferência acontece depois de anos fruição desse direito por todos os seres hu- esbarra em problemas fundamentais. O so, é preciso garantir que cidadãos e cidadãs
de pressão do movimento social e de organi- manos depende justamente da ação do Es- principal deles é o fato de o debate público se tenham não apenas a proteção contra arbí-
zações que atuam pela democratização da tado para se efetivar. dar hoje principalmente nos meios de co- trios do Estado ou de entes privados, mas
comunicação. Embora haja, por parte de vá- municação de massa. Se estes estão na mão condições de produzir e distribuir comuni-
rias delas, ceticismo em relação aos resulta- de poucas empresas, são elas que determi- cação no espaço público midiático. Portan-
dos do encontro em Brasília, há o reconheci- nam quem tem e quem não tem voz no espa- to, não se trata apenas de uma liberdade ne-
mento de que é extremamente significativo
A transferência do direito ço público. Se determinadas vozes têm di- gativa, mas da necessidade da garantia do
abrir uma discussão que sempre se restrin- à liberdade de expressão reito a circular mais que outras, então essa direito à comunicação, que inclui a liberda-
giu aos gabinetes. de seres humanos para liberdade se dá em terrenos desiguais. de de expressão nos meios de comunicação
Estarão em pauta alguns temas basila- A visão mais liberal diz que a demanda e o direito à informação.
res, em especial a liberdade de expressão.
empresas esbarra no fato do público guiaria a oferta de conteúdos, A afirmação da comunicação como di-
Se esta é aceita, de maneira geral, como di- de o debate público se dar determinando seu sucesso ou seu fracasso, reito cria necessariamente obrigações para
reito fundamental, a compreensão sobre principalmente nos meios o que seria um “contrapoder” aos possíveis o Estado, que deve garanti-lo a todos. Os
seu significado prático está longe de ser efeitos distorcivos da liberdade de expres- meios de comunicação são os principais es-
unívoca. Nesse cenário, a conferência será de comunicação são das empresas (liberdade que, por con- paços públicos de circulação de ideias, valo-
oportuna para confrontar as diferentes vi- veniência destas, tem sido chamado de li- res e opiniões. Manter uma acessibilidade
sões existentes: estarão em jogo o papel do berdade de imprensa). Assim, o “controle democrática a esse espaço – sem depen-
Estado na garantia de direitos humanos e Os marcos regulatórios se tornaram ain- remoto” e a opção por determinados jor- dência e diferenciação de acordo com o po-
os limites dos atores privados no exercício da mais importantes quando meios eletrô- nais e revistas determinaria a prevalência e der econômico ou político – é condição in-
deles. Tal debate acontece nas sociedades nicos como rádio e televisão se transforma- a sobrevivência daqueles veículos que mais dispensável para a democracia se efetivar.
ocidentais, sob diferentes perspectivas, há ram no principal espaço público de refletem os interesses da população. Essa Desse ponto de vista, pluralidade e diversi-
pelo menos 220 anos. circulação de ideias e valores na sociedade. visão de crença cega no mercado é fruto ou dade de meios de comunicação, por um la-
As barreiras técnicas, econômicas e, conse- de inocência ou de uma perspectiva merca- do, e pluralidade e diversidade de conteú-
AO LONGO DA HISTÓRIA quentemente, políticas para se fazer ouvir dológica que se mostra antidemocrática. dos veiculados, por outro, são alguns dos
Em 25 de setembro de 1789, os Estados nessa ágora ampliada consagraram um Ao confiar ao mercado da comunicação de principais indicadores de efetivação do di-
Unidos ratificaram seu Bill of Rights como enorme poder aos poucos que obtinham es- massa o papel de circulador das ideias e va- reito à comunicação.
emenda à Constituição, estabelecendo que se privilégio de transmissão. Sem tais meca- lores da sociedade, cria-se um condicio- Há quatro tipos de ações que o Estado
«o congresso não deve fazer leis (...) dimi- nismos legais de regulação, o poder político nante político e econômico à liberdade de pode promover para garantir esse direito: 1)
nuindo a liberdade de expressão ou da im- e econômico de particulares passava a ga- expressão. Isso se dá por três motivos: 1) Provimento: em diferentes modalidades,
prensa”. Sete dias depois, a Assembleia Na- rantir a liberdade de expressão de poucos e a meios de comunicação não são neutros, desde infraestrutura de acesso às telecomu-
cional Constituinte francesa aprovou a asfixiar a maioria. portanto não têm interesse em circular to- nicações até meios públicos de radiodifu-
Declaração Universal dos Direitos do Ho- Essa constatação criou um aparente pa- das as diferentes visões e pontos de vista; 2) são; 2) Regramento: aqui vale especial-
mem e do Cidadão, que em seu 11º artigo es- radoxo: o Estado passava a ser entendido ao como todo mercado, o acesso direto aos mente o papel de legislador que define as
tabeleceu que “a livre comunicação das mesmo tempo como o principal algoz e o meios de produção e distribuição é viabili- regras de funcionamento do sistema; 3) Po-
ideias e das opiniões é um dos mais precio- principal garantidor do direito humano à li- zado apenas aos detentores de capital; 3) na líticas públicas: medidas de fomento à pro-
sos direitos do homem; todo cidadão pode, berdade de expressão. comunicação, há barreiras de entrada e de dução (difundidas na área da cultura e do
portanto, falar, escrever, imprimir livremen- Sem heróis e vilões pré-determinados, a permanência especialmente problemáti- audiovisual, mas ainda ausentes nos outros
te, respondendo, todavia, pelos abusos desta disputa passou a se dar a partir de diferentes cas, por conta de especificidades da econo- campos), distribuição e acesso (visando à
liberdade nos termos previstos na lei”. Nos interpretações sobre o significado de liber- mia da informação e das limitações técni- universalização dos serviços públicos es-
dois casos, o recado mirava um claro algoz: dade de expressão e na posição favorável ou cas dos meios eletrônicos (o espectro, no senciais); 4) Regulação e fiscalização: me-
o Estado não deveria impor limites à liber- contrária a textos legais e mecanismos insti- caso de rádio e TV). canismos de incidência sobre as atividades
dade de expressão. tucionais que fortalecem a participação e a Além disso, se tomadas as principais ló- privadas e públicas visando à garantia da
A reivindicação não era nova. Um século incidência do Estado nas questões de comu- gicas que sustentam a liberdade de expres- liberdade de expressão e do direito à comu-
e meio antes, o inglês John Milton havia pu- nicação. Como consequência desse embate, são, como a busca da verdade e o fortaleci- nicação dos cidadãos.
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 35

A regulação da atividade de comunica- abriu participação para o capital estrangei- que exclui muitos municípios e faz com que presarial. Entre estas estão o Intervozes, o
ção deve abranger dois aspectos: o primei- ro nas comunicações, para tomar apenas as tarifas brasileiras estejam entre as mais Fórum Nacional pela Democratização da
ro, mais óbvio, tem a ver com os efeitos di- um exemplo. caras do mundo. É preciso transformar a Comunicação (FNDC), a Associação Brasi-
retosdodiscursodosmeiosdecomunicação, Para os setores que defendem o fortale- banda larga em serviço prestado em regime leira de Radiodifusão Comunitária (Abraço)
entendendo-os como sujeitos a limitações cimento do conteúdo nacional plural e di- público, com o uso da FUST para viabilizar e a Central Única dos Trabalhadores (CUT).
aplicáveis a qualquer cidadão (calúnia, in- verso, com forte produção regional e inde- sua universalização e a implementação de Para ampliar a mobilização, a sociedade ci-
júria e difamação, por exemplo). O segun- pendente, como é o caso das entidades da uma política vigorosa de inclusão digital. vil não empresarial tem se organizado em 24
do e mais importante leva em conta o seu sociedade civil que estão à frente do proces- comissões estaduais e na Comissão Nacio-
poder e lugar de fala privilegiados e os efei- so, é preciso cuidado para não se encantar •฀Novo฀marco฀regulatório฀para฀a฀ nal Pró-Conferência, que somadas já reú-
tos sociais de seu discurso. Esse deve ter co- com o canto da sereia. Para as emissoras, o convergência nem cerca de 500 entidades.
mo objetivo justamente garantir o direito interesse comercial próprio segue sendo o O Brasil não resolveu as questões de demo-
humano à liberdade de expressão. Aqui en- principal mote. “É de sua natureza”, diria o cratização do século XX e se vê frente aos de- *Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.
tra uma série de ações para promover a alo- escorpião ao picar o jacaré após atravessar o safios trazidos pela convergência tecnológi-
cação democrática das concessões e esta- rio em suas costas. ca e empresarial do século XXI. Para garantir
Mais informações: www.proconferencia.org.br
belecer mecanismos de monitoramento e direitos nesse cenário, é necessário um novo
punição de violações a direitos humanos PROPOSTAS PARA MUDAR O QUADRO marco regulatório (conjunto de leis, decre-
cometidas pelos meios de comunicação, A transformação do quadro da comuni- tos, normas etc.) com ênfase no interesse pú-
apenas para citar dois exemplos relevantes. cação no Brasil depende de uma guinada blico e na garantia de direitos civis, além de
Deve haver também ações para promover o nos rumos das políticas que vêm sendo apli- um órgão regulador que tenha incidência so-
acesso da sociedade aos meios de comuni- cadas. Entre os pontos que devem ser enten- bre o conjunto das questões, inclusive os as-
cação que são objeto de concessão, com didos como bandeiras nessa Conferência pectos de conteúdo.
mecanismos como cotas de produção in- estão:
dependente (realizada por outro produtor Oficialmente, a Conferência está
que não a própria emissora) e o direito de •฀Mudanças฀nos฀processos฀de฀concessões฀ sendo organizada por uma comissão
antena, que garante tempo para veiculação de฀rádio฀e฀TV que reúne 26 representantes do go-
de material produzido por organizações da Hoje os critérios para novas concessões pri- verno federal, dos empresários do
sociedade civil. No rádio e na TV, também vilegiam os aspectos econômicos, e o pro- setor e da sociedade civil não em-
deve se buscar mecanismos para evitar no cesso de renovação de concessões é pratica-
conjunto da programação o predomínio mente automático. É preciso definir critérios
avassalador de produções estrangeiras ou transparentes e democráticos para conces-
feitas em apenas uma região do país, ou sões e renovações, com o objetivo de garantir
qualquer tipo de hegemonia que asfixie a diversidade e pluralidade de conteúdo. Tam-
diversidade e a pluralidade. bém é necessário estabelecer mecanismos
de participação da sociedade no processo.
O MOMENTO DA CONFERÊNCIA
No Brasil, a ação do Estado é fraca nas ฀•฀Regulamentação฀dos฀artigos฀220,฀221฀e฀
quatro atribuições. Não bastasse a ausência 223฀da฀Constituição฀Federal฀
de políticas de promoção da liberdade de ex- A Constituição Federal prevê meca-
pressão e do direito à comunicação por par- nismos de defesa contra progra-
te do Executivo, o Supremo Tribunal Federal mação que atente ao estabelecido
tem apresentado perspectivas que ignoram no próprio texto constitucional,
a complexidade do debate. No julgamento proíbe monopólios e oligopólios
da Arguição de Descumprimento de Precei- nos meios de comunicação, ga-
to Fundamental (ADPF) que derrubou a Lei rante espaço para a produção re-
de Imprensa, por exemplo, o relator Carlos gional e independente e estabele-
Ayres Brito insistiu na visão da intervenção ce a complementaridade dos
do Estado apenas como ameaça à liberdade sistemas público, privado e estatal.
de expressão, reproduzindo uma visão coe- Contudo, esses artigos estão há mais de 20
rente com o século XVIII, mas incompatível anos sem sair do papel. A Conferência deve
com a realidade atual. definir as bases para essa regulamentação.
Foi justamente para buscar enfrentar
esse cenário que movimentos sociais, or- •฀Fortalecimento฀do฀sistema฀público฀de฀
ganizações de representação dos traba- comunicação฀e฀fomento฀a฀rádios฀e฀TVs฀
lhadores e organizações da sociedade ci- comunitárias
vil que trabalham na luta pelo direito à O sistema público de comunicação é uma re-
comunicação se organizaram para rei- alidade ainda incipiente; da mesma forma,
vindicar a convocação da I Conferência rádios e TVs comunitárias são mantidas co-
Nacional de Comunicação. Houve um mo marginais no sistema de comunicação
longo processo de mobilização antes de o no Brasil. É preciso estabelecer uma política
Governo Federal decidir pela convocação de fomento aos meios públicos e comunitá-
da Conferência. Aparentemente, o receio rios, com espaço para essas emissoras no es-
em relação às consequências da abertura pectro analógico e digital, instrumentos de
do debate sobre o tema foi suplantado pe- gestão democrática e mecanismos que via-
la opção estratégica de usar o espaço para bilizem sua sustentabilidade.
mediação entre interesses conflitantes
do setor empresarial. •฀Estabelecimento฀de฀mecanismos฀de฀
Do ponto de vista da sociedade civil or- controle฀social฀da฀comunicação
ganizada, não há dúvidas de que a convoca- Hoje o cidadão não tem como se defender
ção da Conferência é, em si, um marco. O de- de violações a direitos humanos praticadas
safio é fazer com que ela de fato tenha o papel nos conteúdos veiculados por meios de co-
de afirmar objetivos gerais para um sistema municação, nem tem direito a participar na
de comunicações no Brasil – em especial de definição de políticas de comunicação. De-
defesa do direito à comunicação – e de apon- pois da revogação da Lei de Imprensa, per-
tar diretrizes para regulação e políticas pú- deu-se até a regulamentação do direito de
blicas para o setor, estabelecendo referências resposta, garantido pela Constituição Fede-
para a construção de um novo modelo insti- ral. É preciso construir instrumentos que
tucional para as comunicações no país. permitam a todos os cidadãos a incidência
A apresentação de propostas vai colocar sobre essas questões.
em confronto perspectivas diferentes sobre
outros princípios além da liberdade de ex- •฀Universalização฀da฀banda฀larga฀e฀inclu-
pressão. Os empresários de radiodifusão, são฀digital
por exemplo, postam-se como defensores O acesso à internet é hoje fundamental para
do conteúdo nacional. Na prática, suas ações ampliar o direito à informação e à comuni-
© Maringoni

mostram que sua adesão a esse princípio cação dos cidadãos. Embora o número de
não é assim tão rígida: em 2002, foram eles usuários seja crescente, o acesso residencial
que apoiaram a emenda constitucional que ainda é dependente da lógica de mercado, o
36 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

ARTES PLÁSTICAS

Excesso de imagens
Erro não é um artista maldito: inúmeras exposições e retrospectivas de sua obra já rodaram o mundo.
Contudo, ele ainda é desconhecido para o grande público e poucos notam a amplitude, a diversidade e a
profusão desmedidas de sua criação, em que a subversão se dá pela desordem e pela exasperação
POR GUY SCARPETTA*

trastada entre a violência coletiva e aquela

© EFE / Walter Bieri


íntima ou orgânica.
Em algumas ocasiões, Erro foi enqua-
drado em grupos ou “escolas” artísticas,
mas sempre em detrimento daquilo que lhe
confere irredutível singularidade. O que ele
tem em comum com os artistas franceses da
“figuração narrativa”? Estes parecem pla-
nos, estreitos, se comparados à fantasia,
energia e abundância de Erro. Quanto à Pop
arte americana, ele compartilha da premis-
sa de que é necessário responder à cultura
de massa. No entanto, o que na maior parte
dos artistas americanos pode ser uma acei-
tação dócil dessa condição social, em Erro
suscitará um furor profanador: é como se to-
masse emprestadas as armas da subcultura
americanizada para voltá-las contra essa
própria cultura.
É preciso evocar, também, seus quadros
cumulativos (a série Scapes), nos quais for-
mas comprimidas terminam por se “desrea-
lizar”, fugindo de seu destino figurativo. Ou
ainda seus afrescos políticos, que respon-
dem a um acontecimento preciso e formam
imagens referentes entre si: por exemplo, A
renascença do nazismo (1977), Irlanda do
Norte (1977), Allende (1977), O petróleo
(1980), Os maloinos (1982) ou, mais recente-
mente, em 2003, God bless Irak (réplica que
joga com a expressão “Deus abençoe a Amé-
Exposição “Europop”, uma retrospectiva de Erro no museu de Zurique, na Suíça rica”, utilizada por George W. Bush ao iniciar
sua desastrosa operação militar no Oriente

E
Médio. Erro não descarta o recurso da cari-
is uma imagem de Erro: um “inte- an-Jacques Lebel, que se tornaria seu me- so e Jackson Pollok); toda uma hibridização catura e da foto, flerta com a “pintura da His-
rior”, como aparece em centenas de lhor amigo para o resto da vida. Suas primei- de colagens, paródias da iconografia com a tória”, mas ao mesmo tempo o faz sem que
revistas de decoração, representati- ras exposições e participações em atividades qual somos bombardeados. É a contraposi- sua arte seja reduzida a uma “mensagem”. E
vo do american way of life dos anos coletivas (os “antiprocessos”) reuniam jo- ção exata da sociedade do espetáculo. se há mensagem, ela transborda numa pro-
1960. Porém, pela janela, irrompe vens que, no contexto das guerras coloniais Erro, em suma, destaca o seguinte: vive- fusão visual, numa magistral dinâmica que
um grupo de guerrilheiros do Terceiro Mun- do início dos anos 1960, desafiavam os po- mos atualmente num mundo saturado de ordena a reunião de imagens projetando as
do, desenhados no estilo de cartazes chine- deres estabelecidos, inclusive o cultural, ao imagens no qual estamos completamente piores inconveniências. Erro compreendeu
ses da época (American interior no1, 1968). reivindicar a insubordinação “absoluta” da submersos e onde constantemente a “reali- que toda guerra, hoje, se duplica em uma
Seria um arrombamento – no conforto plá- arte e demonstrar solidariedade com os mo- dade” é suplantada. Não há alternativa, para guerra de imagens, transformada em um dos
cido dessa sociedade de consumo da qual se vimentos de emancipação que subvertiam a ele, senão tratar o fenômeno não pela falta, elementos ativos do conflito em si. É aí que a
alimentava, então, a Pop arte – por parte de ordem estabelecida.1 Em seguida, Erro se mas pelo excesso: isso significa transbordá- subversão se faz necessária, por exaspera-
um “recalcado” político? Tratamento irôni- instalou em Paris, onde vive e trabalha des- lo, levá-lo ao paradoxismo, introduzir muta- ção e desordem.
co do “espectro” que assombra a boa consci- de então, em estadias entrecortadas por via- ções genéticas no programa visual imposto, A propósito da reprodutibilidade técnica
ência do imperialismo dominante? Monta- gens por todo mundo, onde busca abundan- fazer com que prolifere, delire, desregule. das obras de arte, Walter Benjamin diagnos-
gem dialética de elementos heterogêneos tes referências de imagens. No início, sua Um exemplo é a série Chinesa (de 1972 a ticou que não só a difusão de imagens seria
que remetem a Lautréamont ou às colagens pintura condensava influências antigas (Je- 1976), na qual as imagens da propaganda afetada, mas também seu status e compre-
surrealistas (Max Ernst) que suscitam antes rônimo Bosch) e modernas (Roberto Matta): comunista (a figura de Mao, por vezes rode- ensão. As obras de Erro fazem dessa “repro-
um poderoso efeito de incongruência? Ou afrescos, multidões oníricas ou fantásticas, ado de representações estereotipadas de dutibilidade” seu próprio material. Assim,
ainda criação, para além do sentido imedia- copulação de formas animais e mecânicas. trabalhadores, camponeses, pioneiros) são ele acredita que muitos de seus quadros po-
to da imagem, de jogos de conotativos sutis? Em 1964, uma viagem a Nova York deter- difundidas em decorações urbanas clichês dem engendrar obras derivadas, estampas
Tudo isso ao mesmo tempo. minou uma virada decisiva em sua carreira: ocidentais, como o Arco do Triunfo de Paris ou gravuras impressas em múltiplos exem-
Este quadro é um dos mais conhecidos a descoberta de um fluxo de imagens sem e os arranha-céus de Nova York. É ao mesmo plares e financeiramente acessíveis a um
de Erro. Pouca gente, no entanto, imagina a precedentes impulsionadas pela cultura de tempo provocação política, ironia de um maior número de pessoas. Se Erro é um cria-
amplitude da obra à qual está relacionado – massa – quadrinhos, filmes de animação e fantasma reacionário e deslocamento poéti- dor eminentemente político, não é apenas
sua prodigiosa diversidade, luxúria, abun- publicidade. Elas se tornariam o material co, invocando certo “estranhamento in- pela temática explícita de sua obra, mas por-
dância e desmedida. Pois Erro é também, quase exclusivo de sua arte. A partir daí, mi- quietante” do universo onírico. que ao favorecer a democratização de sua
sem dúvida, o artista mais prolífico que exis- lhares de obras nasceram do confronto e da O mesmo ocorreu mais recentemente arte, desafia e desestabiliza o que é, para a
tiu depois de Picasso... reunião de imagens de todas as proveniên- com as Amazonas ou Femmes fatales, desen- maioria dos artistas, o preceito mais impla-
Erro, evidentemente, é um pseudônimo. cias, numa orgia visual ilimitada: o choque volvidas a partir de 1995. Trata-se de guerrei- cável: a lei do mercado.
Gudmundur Gudmundsson nasceu em de registros (como a Pop arte americana e os ras de quadrinhos ou de desenhos animados
1932, num vilarejo da Islândia. Desenvolveu cartazes de propaganda soviética e chinesa, que contrastam com citações de Fernand *Guy Scarpetta é escritor.
um gosto precoce pelo desenho e estudou ou a arte dos museus e dos quadrinhos); a Léger, confrontando a Pop arte de hoje e o
na Academia de Belas Artes de Oslo, antes de invenção de imensos “retratos” em torno de imaginário “popular” dos anos 1930.
1 Ver, por exemplo, a história do “Grande quadro coletivo
transitar pela Espanha. Mas foi em Florença uma figura central (como o poeta Vladimir Ou ainda cenas obscenas inspiradas na antifascista”, do qual Erro participou e cujas inverossímeis
que ele encontrou um “herdeiro dissidente” Maiakovski, os compositores Igor Stravinsky grande arte erótica do Oriente, intrincadas a peripécias se tornaram objeto de um livro lançado, em
do surrealismo, o poeta e artista plástico Je- e Arnold Schönberg, os pintores Pablo Picas- imagens de guerra: é a aproximação con- 2000, pelas Edições Dagorno (Paris).
38 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2009

ENTREVISTA

Palavras memoráveis
Descrever a vida com extremo realismo pode ser perigoso. O francês Grégoire Bouillier que o diga: sua
primeira obra, um relato pessoal de 40 anos de vida, quase lhe rendeu um processo dos próprios pais. O escritor,
que esteve no Brasil para lançar seu segundo livro, O convidado surpresa, concedeu-nos uma entrevista exclusiva
POR MAÍRA KUBÍK MANO*

DIPLOMATIQUE – Você começou a escre- não me identificava com nenhum dos gêne- posso compreender sua atitude. É possível
ver suas memórias depois dos 40 anos. Quais ros literários tradicionais. Acima de tudo, sentir-se vítima de uma crueldade terrível
etapas significativas de sua vida você se sen- não tinha vontade alguma de escrever ro- ao ver-se envolvido na narrativa de um autor
tiu impelido a contar? mances. Não é por não gostar de romances. sem poder replicar. E creio que um escritor
De fato, por muito tempo, fiz o que todo responsável tem o dever de procurar enten-
GRÉGOIRE BOUILLIER – De fato, o meu mundo costuma fazer: li conforme nos é en- der as mágoas que possa vir a causar. Essa
primeiro livro, Rapport sur moi1, conta to- sinado em todo lugar a ler, isto é, conside- liberdade do artista não é um direito, mas
das as experiências que vivenciei até aos 40 rando a literatura como uma esfera total- sim uma liberdade que ele toma e que está
anos. Eu bem sei que isso é quase uma ba- mente separada da realidade da existência. fadado a assumir depois – sem dispor de
nalidade para um primeiro livro; contudo, a Como um divertimento deliberadamente qualquer outra alternativa –, expondo seu
minha intenção não era apenas contar mi- circunscrito e, por causa disso, inofensivo. nome e seu corpo. A esse respeito, gostaria
nha vidinha, que vale tanto quanto a de Até ao momento em que me dei conta de que de acrescentar o seguinte: algumas pessoas,
qualquer pessoa. O que me motivou foi o se- algo estava errado. Ou seja, que a vida que eu entre as quais os meus pais, quiseram me
guinte questionamento: todo mundo viven- estava lendo nos livros de maneira alguma processar depois do lançamento de Rapport
cia certas coisas… mas, o que essas coisas se parecia com a vida que eu estava vivendo sur moi. Pois bem, todas elas desistiram, me
têm para nos contar? Por que vivenciamos ou que eu estava vendo se desenrolar em dando a seguinte justificativa: “Você está
tal coisa e não outra? Afinal, em que se ba- volta de mim. Ela não passava de um “espe- com sorte por ter escrito a verdade”.
seia o desenrolar da nossa existência e até táculo”, no sentido que Guy Debord conferiu
© Edu Girão

que ponto o que ocorre com a gente nos diz a esse conceito. Enquanto os livros afirma- DIPLOMATIQUE – Sophie Calle expôs o fim
respeito? Foi para tentar responder essas vam falar da vida, eles na verdade falavam do relacionamento de vocês de uma manei-
perguntas que escrevi Rapport sur moi. Por apenas de literatura. Por quê? Seria essa ra artística3. Existe algum paralelo entre o
exemplo, vou explicar por que escrevi esse uma fatalidade? Então, quando escrevi meu trabalho dela, que questiona a separação
primeiro livro aos 40 anos. Isso não aconte- primeiro livro, senti necessidade de inven- entre o público e o privado, e a sua aborda-
ceu por acaso: com efeito, sempre tive a Não escrevo sobre mim, tar para mim um espaço narrativo dentro gem literária? A intenção não seria a mesma,
convicção de que escreveria um livro aos 40 do qual me sentisse mais à vontade. Queria diferindo apenas na via escolhida?
e não antes, porque após ser acometido de
mas através de mim. ditar minhas próprias leis para reger minha
uma grave doença infecciosa com a idade Como se eu fosse uma escrita, em vez de obedecer a leis romanes- GB – Em momento algum eu tive a intenção
de 5 anos, fui mantido por longo período em espécie de experiência cas já estipuladas. E tudo começou a fluir de criar dificuldades para Sophie Calle,
quarentena num hospital. Ora, o fato de me quando encontrei a palavra “relatório”, ter- mesmo se o seu projeto, ao menos a ideia
encontrar dentro de uma “bolha de isola- humana que o escritor mo que significa “ação de contar algo que se dele, me desagradava. Porque ela também é
mento” deve ter causado um trauma tão desnuda para decifrá-la viu; algo que se ouviu”. Imediatamente capaz de perceber o mal que pode causar ao
forte ao moleque que eu era que a palavra ocorreu-me que se tratava, no caso, de um expor alguém contra a sua vontade, e ava-
“quarentena” ficou gravada em mim. A tal gênero literário completo, equivalente a liar se isso é compensado pelo valor artísti-
ponto, que acabei me convencendo incons- qualquer outro, que eu podia inventar para co do seu projeto. Conforme ela mesma diz:
cientemente de que não poderia fazer nada la. Nessas condições, é fácil compreender meu uso próprio, e pouco importava que eu tudo depende de se a finalidade procurada
que prestasse enquanto não tivesse com- por que acho a realidade muito mais exci- fosse seu único expoente. Assim, todos os justificou ou não, pela qualidade do resulta-
pletado 40 anos. Se colocassem os doentes tante que a ficção. Porque todos nós viven- meus livros são relatórios. Não são roman- do, os meios empregados para alcançá-la.
em “trintena”, eu talvez tivesse escrito a ciamos eventos que nos deixam totalmente ces, nem memórias, nem autoficções ou sei Neste ponto estou plenamente de acordo
partir dos 30, quem sabe? Tudo isso para lhe incrédulos, diante dos quais não sabemos o lá mais o quê. Mas sim, “relatórios”. com ela, e, quando vejo o que foi feito com a
dizer que não se trata de falar de mim, das que fazer, e que, por serem assim, nos colo- minha carta de rompimento, eu mesmo
minhas doenças, da minha família ou dos cam diante do desafio de contá-los. Tornou- DIPLOMATIQUE – O fato de expor sua vida posso afirmar que a finalidade justificou
meus amores, mas sim de descobrir, a partir se um hábito dizer que a realidade supera a pessoal certamente deve ter criado situa- efetivamente os meios empregados. É isso o
de tudo isso, o que anima e embasa nossa ficção; pois então, não somente não me ções difíceis ou constrangedoras, quem sa- que mais importa.
existência. Todas as coisas que acontecem canso de verificar o quanto isso é verdadei- be até mesmo no plano sentimental. Em sua
com a gente, nós também acontecemos jun- ro, como, mais que isso, os meus livros fa- opinião, quando o ato de relatar envolve a *Maíra Kubík Mano, jornalista, é editora-assistente de Le
to com elas. É isso que eu conto no meu pri- zem a aposta de dar conta desse fenômeno. sua intimidade, existe algum limite que de- Monde Diplomatique Brasil.
meiro livro. Ele expressa minha opinião de De encarar o desafio que representa a tarefa ve ser respeitado?
que cada um de nós pode fazer o uso que de tornar “compreensíveis para si e para os
bem entender de sua existência para apro- outros” essas coisas que acontecem com a GB – Ocorre algo estranho e propriamente
priar-se dela. Isso porque, afinal, trata-se da gente, citando aqui uma frase do [etnólogo milagroso quando se escreve: o tempo da
nossa vida, e ninguém morre em nosso lu- e escritor francês] Michel Leiris. Todas as escrita não é o mesmo que o tempo social.
gar. Em O convidado surpresa2, eu cito a be- nossas ideias prontas desmoronam diante De repente, as leis que regem a sociedade O convidado surpresa, Grégoire Bouillier. Ed. Cosac Naify,
líssima frase de Virginia Woolf: “Devolver de todo e qualquer evento vivenciado. As- param de existir. Permanecem apenas aque- 2009, 120 págs., R$ 39,00.

lentamente as coisas para a luz”. Pois bem, é sim, me parece que é a partir desse desmo- las do livro que está sendo escrito. É por essa
1 Seu primeiro livro, de 2002, cujo título pode ser livremente
exatamente o que tento fazer com os even- ronamento que o ato de escrever deixa de razão que não enxergo limites para aquilo traduzido por “Relatório sobre mim”, lhe rendeu o presti-
tos que compõem minha vida. ser um simples ajuntamento mais ou me- que um livro pode conter. Contudo, estou gioso Prix de Flore. A obra é inédita no Brasil.
nos bem-sucedido de consoantes e vogais. perfeitamente ciente de que um livro – como 2 O convidado surpresa narra uma única noite em que Bou-
DIPLOMATIQUE – Escrever a respeito de si No fim das contas, eu não encontrei desafio os meus, por exemplo – pode ofender ou illier conhece a artista plástica francesa Sophie Calle na
festa de aniversário dela.
mesmo quer dizer que a realidade seria mais melhor, no que diz respeito à literatura, que constranger certas pessoas. Mas é impor-
3 A relação entre os dois terminou com um e-mail enviado
interessante que a ficção ou que essa é uma esse de tentar colocar no papel aquilo que tante saber que de modo algum se trata de por Bouillier, que dizia na última linha: “prenez soin de
maneira mais fácil de se expressar? nos deixa sem voz. falar de alguém. Os meus livros jamais to- vous” (“cuide de você”). A frase deu origem à famosa ex-
mam alguém como alvo. Ainda assim, uma posição de Calle exibida na Bienal de Veneza em 2007,
vez que almejo “revirar lentamente as coisas com depoimentos, análises e até respostas de 107 mulhe-
GB – Não escrevo verdadeiramente sobre DIPLOMATIQUE – Como você define esse
res sobre a carta de rompimento. Atualmente, “Cuide de
mim, mas sim através de mim. Como se eu gênero literário? na direção da luz”, não posso proceder de você” está em cartaz em São Paulo, por ocasião do Ano da
fosse uma espécie de experiência humana outra forma, a não ser envolver pessoas re- França no Brasil. (SESC Pompéia, de 11/07 a 07/09. En-
que o escritor desnuda para tentar decifrá- GB – Quando escrevi meu primeiro livro, eu ais. Se elas se sentirem ofendidas com isso, trada franca)
AGOSTO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil 39

livros
A CONTRIBUIÇÃO DAS MULHRES NA FORMAÇÃO DA HUMANIDADE
SEXO INVISÍVEL
J. M. Adovasio, Olga Soffer e Jake Page, Editora Record
RIA
LEITURA OBRIGATÓ Sexo invisível tem como tese central de- sa análise é a demonstração de que a mulher indiscutíveis: somente pela cooperação entre
monstrar que o papel da mulher no período teve um papel muito mais importante do que os dois sexos, a humanidade assegurou a so-
Paleolítico foi muito mais ativo do que supunha se pensava e que, possivelmente, foi a grande brevivência da espécie. Essa comunhão parece
a antropologia e a arqueologia. Estudos têm impulsionadora da sociabilidade humana. É im- ter sofrido uma ruptura quando o surgimento da
comprovado que, tanto as mulheres elaboravam portante salientar que os autores, assim como agricultura assentou as bases da civilização.
instrumentos de caça quanto caçavam, e que os mais recentes estudos da paleontologia, De toda forma, cabe resgatar a figura dessas
os homens também se dedicavam a trabalhos indicam que possivelmente o desenvolvimento mulheres anônimas que deixaram sua marca na
manuais, como costurar peles e redes. Os auto- da linguagem e dos modos de comportamento pré-história da humanidade, talvez inventando a
res analisam que os estudos arqueológicos tra- social esteve, na maior parte das vezes, a car- linguagem e, com mais certeza, a agricultura,
dicionais sobre o desenvolvimento da espécie go das mulheres. Os autores sustentam que a ao lado dos homens na obtenção dos alimentos
humana excluíram a participação ativa da mu- probabilidade de terem sido elas as primeiras e inventando, com seus tecidos, uma das fer-
lher na construção da cultura. Para criticar essa agricultoras, ou ao menos as iniciadoras de ramentas mais úteis de toda a história: a corda.
posição, eles borram as tradicionais fronteiras tal atividade, são enormes. Pode-se dizer que
da pré-história e elaboram uma análise em que a partir de estudos como este, e à luz desse Carla Cristina Garcia
o gênero do indivíduo não é decisivo para o tipo novo olhar da antropologia e da arqueologia, Doutora em ciências sociais e professora do
de trabalho que desempenha. O resultado des- é possível levantar algumas conclusões quase Departamento de Sociologia da PUC-SP

ROMPENDO OS MUROS DA SENZALA AS GRANDES CIDADES DE EISNER A CIA DO VATICANO

FALA, CRIOULO: O QUE É SER NEGRO NO BRASIL NOVA YORK: A VIDA NA CIDADE GRANDE A SANTA ALIANÇA: CINCO SÉCULOS
DE ESPIONAGEM NO VATICANO

Org. Haroldo Costa, Editora Record Will Eisner, Cia. das Letras Eric Frattini, Boitempo Editorial

O racismo no Brasil se expressa pela definição de lugares Uma incrível percepção das sutilezas do mundo cosmopo- O segredo está no núcleo do poder. Elias Canetti, em Mas-
para brancos e negros, como nos tempos da casa grande lita está representada nos desenhos de Will Eisner. Nessa sa e poder, afirma que uma das características do poder é
e da senzala. O direito à fala para os negros é concedido declaração de amor às avessas, o autor, considerado pai a distribuição desigual do “calar das intenções”. O mote
única e exclusivamente em lugares pré-determinados, e dos quadrinistas, se vale de muitos desenhos e algum di- vale para o poder acumulado pelo Estado do Vaticano, cuja
estes, via de regra, passam longe dos espaços de poder. álogo para emergir os típicos personagens do cotidiano política é uma das obsessões do escritor e jornalista espa-
Este livro tem o mérito de retratar aqueles que ousaram le- das grandes cidades. Nova York reúne quatro livros impor- nhol de raízes peruanas Eric Frattini.
vantar a voz para além das senzalas ressemantizadas pelo tantes do autor: Nova York: a grande cidade e Caderno de No livro, o autor não escreve sobre as origens misteriosas
sistema racista brasileiro. tipos urbanos são breves histórias em forma de vinhetas, do cristianismo ou o catolicismo em geral, mas especifica-
A epígrafe, de Edison Carneiro, define como “crioulo, o ne- cuja marca é a apreensão rápida e aguda da pobreza, da mente sobre as atividades clandestinas do poderoso ser-
gro nascido no Brasil”. A opção por este termo fica nítida: desigualdade, da multidão e da vida das pessoas em um viço de espionagem do Estado do Vaticano, leia-se Santa
tratar da população afrodescendente brasileira, vitimada contexto pouco acolhedor. Nova York é o cenário, mas Aliança, instituído em 1566 por ordem do papa inquisidor,
historicamente por um sistema social capitalista erigido poderia ser qualquer grande cidade do mundo: meninos Pio V, e o complementar serviço de contraespionagem, So-
sobre as bases da escravidão. de rua brigam por moedas, degraus de um edifício são lidatium Pianum, criado pelo conservador Pio X, em 1913.
Falam, nesta obra, personalidades negras que romperam testemunhas da vida no cortiço, um hidrante abastece as Frattini lança um indispensável olhar profanatório sobre
os muros do apartheid brasileiro, mas cujo sucesso não necessidades cotidianas de uma família. a aura de sacralização que sempre envolveu a instituição
foi imune e nem imunizador do racismo demonstrado, por Pessoas invisíveis e O edifício são o que há de mais mo- do papado. Sem meias palavras, deixa claro ao leitor que,
exemplo, no depoimento da ex-miss Brasil, Vera Lúcia Cou- derno na linguagem cinematográfica das graphic novels. por ordem do papa, sacerdotes-agentes “mataram, rou-
to dos Santos: “Sai daí, crioula! Teu lugar é na cozinha! A primeira história traz para o centro da trama os tipos im- baram, conspiraram e atraiçoaram em nome de Deus e
Não se manca não?” A violência passa pela desconstru- perceptíveis da vida cosmopolita. Esses, da mesma forma da fé católica”.
ção de qualquer possibilidade de um sujeito apagar seu que ganham protagonismo, padecem da sua própria sina: Trata-se de uma comprovação textual dessas iniquidades,
passado, como afirma o artista plástico Emanoel Araújo: a invisibilidade. Em O edifício, um homem não é capaz de ligadas aos principais fatos históricos dos últimos cinco
“Uma comunidade que nem sabe direito do seu passado”. salvar as crianças, uma mulher não se casa com o poe- séculos. Depois da consolidação da Santa Aliança, já no
Permanece, gerando obstáculos quase intransponíveis no ta, um violinista morre junto com o prédio e o empreitei- século XX, a ambição do papa Pio XII de evangelizar o les-
presente, percebido no dizer da atriz Iléa Ferraz: “Viver com ro fica obcecado pelo edifício em que seu pai começou te da Europa e silenciar diante do extermínio de 6 milhões
dignidade como artista negra é muito difícil”. E enfrentar o a empresa. Quatro histórias são sepultadas na demolição de judeus; a ajuda da Santa Aliança na fuga de criminosos
problema por meio de políticas de ação afirmativa não é a de um edifício. “Para mim era especialmente inquietante a nazistas; os vínculos entre o Banco do Vaticano e a loja
criação de um “racismo às avessas”, como detratores de insensível remoção de edifícios”, diz Eisner. “Não é pos- maçônica P2, a máfia de armas; as relações entre CIA e
plantão sugerem. As experiências de protagonismo negro sível que, tendo feito parte da vida, eles não absorvam de Santa Aliança no financiamento do sindicato polonês So-
existentes no Brasil não demonstram esta prática, confor- alguma forma a radiação proveniente da interação huma- lidariedade; o apoio a ditadores latino-americanos como
me demonstra o professor Muniz Sodré, quando diz que “o na. E imagino o que resta quando um edifício é demolido.” Somoza e Jorge Videla. Inclua-se também a estranha morte
único lugar no Brasil onde nunca vi e não vejo possibilida- Qualquer identificação com o que acontece na sua cidade do papa João Paulo I e os atentados a João Paulo II – há
de de preconceito racial (...) é no Axé Opô Afonjá e outras não é mera coincidência, toda a leitura faz refletir sobre os uma foto importante que registra o momento em que Ali
casas de candomblé, pois lá ninguém está preocupado se processos de demolição e (re)construção pautados pela Agca dispara contra o papa, em 13 de maio de 1981.
você é mais claro ou mais escuro”. cidade capitalista. Enquanto preparava um de seus livros, Frattini foi adverti-
Fala, crioulo é uma leitura importante não só para conhe- Para os leitores de quadrinhos ou de romances, ou para do por um advogado de direito canônico que a Igreja tem
cer a trajetória de afrodescendentes brasileiros importan- moradores das grandes (ou pequenas) cidades, Nova York mais de 2000 anos de secretismo, e que, para o Vaticano,
tes, mas também para saber o quanto se perde ao negar é uma obra imperdível, que revolve o que há de mais inquie- cuja cidade-Estado completou 80 anos, “tudo o que não é
oportunidades para a ousadia de mais e mais “crioulos”. tante na vida cosmopolita. sagrado é secreto”.

Dennis de Oliveira Paula Freire Santoro Silvio Mieli


Professor da ECA-USP, coordenador do Celacc (Centro de Arquiteta urbanista e pesquisadora do Núcleo de Urbanismo Jornalista e professor titular do Departamento de Jornalismo
Estudos Latino-Americanos de Cultura e Comunicação) do Instituto Pólis e do Instituto Socioambiental – ISA da PUC-SP
Famílias e comunidades
lutam todos os dias
para sobreviver.

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os seus direitos.

A atriz Julia Lemmertz


é doadora desde 2007
e é embaixadora da
ActionAid desde 2010.

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