Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
OUTRASPALAVRAS
CRISE CIVILIZATÓRIA
Uma jovem indígena levanta o braço, perplexa, e exclama: “professor, na minha comunidade a terra não
nos pertence, nós é que pertencemos à terra”. Para esta jovem, a terra é Mãe Terra, fonte de vida, origem
de tudo o que somos. É, por isso, indisponível. Durante um processo eleitoral numa dada circunscrição de
uma cidade europeia, onde é majoritária a população roma (vulgo, cigana), as seções de voto identificam
individualmente os eleitores recenseados. No dia das eleições, a comunidade roma apresenta-se em bloco
nos lugares de votação reivindicando que o seu voto é coletivo porque coletiva foi a deliberação de votar
num certo sentido ou candidato. Para os roma não existem vontades políticas individuais autônomas em
relação às do clã ou família. Estes dois exemplos mostram que estamos em presença de duas concepções
de natureza (e propriedade), num caso, e de duas concepções de democracia, no outro.
Em ambos os casos, terminado o conflito, inicia-se o pós-conflito, um período que visa reconstruir o país
e consolidar a paz. Nesse processo participam com destaque as comissões de verdade, justiça e
reconciliação, muitas vezes como componentes de um sistema mais amplo que inclui a justiça transicional
e a identificação e apoio às vítimas. São disso exemplo a Coreia do Sul, Argentina, Guatemala, África do
Sul, ex-Iugoslávia, Timor-Leste, Peru, Ruanda, Serra Leoa, Colômbia, Chile, Guatemala, Brasil. Na maioria
dos processos pós-conflito, forças diferentes militaram por razões diferentes para que a verdade não fosse
plenamente conhecida. Quer porque a verdade era demasiado dolorosa, quer porque obrigaria a uma
profunda mudança do sistema econômico ou político (desde a redistribuição de terra ao reconhecimento
da autonomia territorial e a um novo sistema jurídico-administrativo e político). Por qualquer destas
razões, preferiu-se a paz (podre?) à justiça, a amnésia e o esquecimento à memória, à história e à
dignidade. Assim se produziu uma ignorância indolente.
O Modo 3 de produção de ignorância consiste na produção ativa e consciente de ignorância por via da
produção massiva de conhecimentos de cuja falsidade os produtores estão plenamente conscientes. O
Modo 3 produz conhecimento falso para bloquear a emergência do conhecimento verdadeiro a partir do
qual seria possível superar a ignorância. É este o domínio das fake news. Ao contrário dos Modos 1 e 2, a
ignorância não é aqui um subproduto da produção. É o produto principal e a sua razão de ser. Os
exemplos, infelizmente, não faltam: a negação do aquecimento global; os imigrantes e refugiados como
agentes de crime organizado e ameaça à segurança da Europa ou dos EUA; a distribuição de armas à
população civil como o melhor meio de combater a criminalidade; as políticas de proteção social das
classes mais vulneráveis como forma de comunismo; a conspiração gay para destruir os bons costumes;
a Venezuela ou Cuba como ameaças à segurança dos EUA; etc., etc.
Os três modos de produção produzem três tipos diferentes de ignorância, estão articulados e acarretam
consequências distintas para a democracias. O Modo 1 produz uma ignorância arrogante, abissal, que é
simultaneamente radical e invisível na medida em que o monopólio do conhecimento dominante é
generalizadamente aceito. As verdades que não cabem na verdade monopolista não existem e tão-pouco
existem as populações que as subscrevem. Abre-se assim um campo imenso para a sociologia das
ausências. Foi por isso que o genocídio dos povos indígenas e o epistemicídio dos seus conhecimentos
(passe o pleonasmo) andaram de mãos dadas. O Modo 2 produz a ignorância indolente que se satisfaz
superficialmente e que, por isso, permanece como ferida que arde sem se ver. É a ignorância-frustração
que sucede à verdade-expectativa. Uma ignorância que bloqueia uma possibilidade e uma oportunidade
emancipadoras que estiveram próximas, que eram realistas e, que, além disso, eram merecidas, pelo
menos na opinião de vastos setores da população. Esta ignorância sugere uma sociologia das
emergências, da emergência de uma sociedade que se afirma reconciliada consigo mesma, com base em
justiça social, histórica, étnico-cultural, sexual. O Modo 3 cria uma ignorância malévola, corrosiva e, tal
como um cancro, dificilmente controlável, na medida em que as redes sociais têm um papel crucial na sua
proliferação. Esta ignorância está para além da ausência e da emergência. Esta ignorância é a prefiguração
da estase, a imobilidade que estrutura a vertigem do tempo imediato.
Os três modos de produção e as respectivas ignorâncias que produzem não existem na sociedade de modo
isolado. Articulam-se e potenciam-se por via das articulações que os tornam mais eficazes. Assim, a
ignorância arrogante produzida pelo Modo 1 (monopólio da verdade) facilita paradoxalmente a
proliferação da arrogância malévola produzida pelo Modo 3 (falsidade como verdade alternativa). É que
uma sociedade saturada pela fé no monopólio da verdade científica torna-se mais vulnerável a qualquer
falsidade que se apresente como verdade alternativa usando os mesmos mecanismos da fé. Por sua vez,
a ignorância indolente produzida pelo Modo 2 (amnésia, esquecimento) desarma vastos setores da
população para combater a ignorância produzida quer pelo Modo 1, quer pelo Modo 3. A ignorância
arrogante é uma das principais causas da ignorância indolente, ou seja, da facilidade com que se esquece,
normaliza e banaliza um passado de morte de inocentes, de sofrimento injusto, de pilhagens convertidas
em exercícios de propriedade, de corpos de mulheres e de crianças violentados como objetos de guerra.
Quando a ignorância arrogante se complementa com a ignorância malévola, a ignorância indolente torna-
se tão invisível que é praticamente impossível de erradicar.
+ As pessoas que ajudam a sustentar Outras Palavras recebem 25% de desconto em qualquer livro da
Editora Elefante
O impacto destes três tipos principais de ignorância nas democracias do nosso tempo é convergente,
embora diferenciado. Todas estas ignorâncias contribuem para produzir democracia de baixa intensidade.
A ignorância arrogante torna impossível a democracia intercultural e plurinacional, na medida em que
outros saberes e modos de vida e de deliberação são impedidos de contribuir para o aprofundamento
democrático; e faz com que vastos setores da população não se sintam representados pelos seus
representantes e nem sequer participem nos processos eleitorais de raiz liberal. A ignorância indolente
retira da deliberação democrática decisões sobre justiça social histórica, sexual, e descolonizadora, sem
as quais a prática democrática é vista por vastas camadas da população como um jogo de elites, uma
disputa interna entre os vencedores dos conflitos históricos. Mas a ignorância malévola é a mais
antidemocrática de todas. Sabemos que as deliberações democráticas são tomadas com base em fatos,
percepções e opiniões. Ora a ignorância malévola priva a democracia dos fatos e, ao fazê-lo, converte a
boa fé dos que dela são vítimas em figurantes ou jogadores ingênuos num jogo perverso onde sempre
perdem e, mais do que isso, se auto-infligem a derrota.