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As três ignorâncias contra a democracia

Numa fase dramática da crise civilizatória, enfrentamos simultaneamente a arrogância do colonialismo, a


indolência das transformações inconclusas e a perversão das fake news. Será possível mudar o mundo,
ainda assim?

OUTRASPALAVRAS

CRISE CIVILIZATÓRIA

por Boaventura de Sousa Santos

Publicado 15/03/2019 às 18:41 - Atualizado 15/03/2019 às 18:47

Escrevi há muito que qualquer sistema de conhecimentos é igualmente um sistema de desconhecimentos.


Para onde quer que se orientem os objetivos, os instrumentos e as metodologias para conhecer uma dada
realidade, nunca se conhece tudo a respeito dela e fica igualmente por conhecer qualquer outra realidade
distinta da que tivemos por objetivo conhecer. Por isso, e como bem viu Nicolau de Cusa, quanto mais
sabemos mais sabemos que não sabemos. Mas mesmo o conhecimento que temos da realidade que
julgamos conhecer não é o único existente e pode rivalizar com muitos outros, eventualmente mais
correntes ou difundidos. Dois exemplos ajudam. Numa escola diversa em termos étnico-culturais, o
professor ensina que a terra urbana ou rural é um bem imóvel que pertence ao seu proprietário e que
este, em geral, pode dispor dela como quiser.

Uma jovem indígena levanta o braço, perplexa, e exclama: “professor, na minha comunidade a terra não
nos pertence, nós é que pertencemos à terra”. Para esta jovem, a terra é Mãe Terra, fonte de vida, origem
de tudo o que somos. É, por isso, indisponível. Durante um processo eleitoral numa dada circunscrição de
uma cidade europeia, onde é majoritária a população roma (vulgo, cigana), as seções de voto identificam
individualmente os eleitores recenseados. No dia das eleições, a comunidade roma apresenta-se em bloco
nos lugares de votação reivindicando que o seu voto é coletivo porque coletiva foi a deliberação de votar
num certo sentido ou candidato. Para os roma não existem vontades políticas individuais autônomas em
relação às do clã ou família. Estes dois exemplos mostram que estamos em presença de duas concepções
de natureza (e propriedade), num caso, e de duas concepções de democracia, no outro.

O primeiro modo de produção de ignorância (chamemos-lhe Modo 1) reside precisamente em atribuir


exclusivamente a um modo de conhecimento o monopólio do conhecimento verdadeiro e rigoroso e
desprezar todos os outros como variantes de ignorância, quer se trate de opiniões subjetivas, superstições
ou atavismos. Este modo de produção de ignorância continua a ser o mais importante, sobretudo desde
que a cultura eurocêntrica (um certo entendimento dela) tomou contato aprofundado com culturas extra-
europeias, especialmente a partir da expansão colonial moderna. A partir do século XVII, a ciência
moderna consolidou-se como tendo o monopólio do conhecimento rigoroso. Tudo o que está para além
ou fora dele é ignorância. Não é este o lugar para voltar a um tema que tanto me tem ocupado. Direi
apenas que o Modo 1 produz um tipo de ignorância: a ignorância arrogante, a ignorância de quem não
sabe que há outros modos de conhecimento com outros critérios de rigor e tem poder para impor a sua
ignorância como a única verdade.

O segundo modo de produção de ignorância (Modo 2) consiste na produção coletiva de amnésia, de


esquecimento. Este modo de produção tem sido frequentemente ativado nos últimos cinquenta anos,
sobretudo em países que passaram por longos períodos de conflito social violento. Esses conflitos tiveram
causas profundas: gravíssima desigualdade socioeconômica; apartheid baseado em discriminação étnico-
racial, cultural, religiosa; concentração de terra e consequente luta pela reforma agrária; reivindicação do
direito à autodeterminação de territórios ancestrais ou com forte identidade social e cultural, etc. Estes
conflitos, que muitas vezes se traduziriam em guerras prolongadas, civis ou outras, produziram milhões
de vítimas – entre mortos, desaparecidos, exilados e internamente deslocados. Para além das partes em
conflito, houve sempre outros atores internacionais presentes e interessados no desenrolar do conflito;
a sua intervenção tanto conduziu ao agravamento do conflito como (menos frequentemente) ao seu
término. Em alguns poucos casos houve um vencedor e um vencido inequívocos. Foi esse o caso do
conflito entre o nazismo e os países democráticos. Na maioria dos casos, porém, tende a ser questionável
se houve ou não vencedores e vencidos, sobretudo quando a parte supostamente vencida impôs
condições mais ou menos drásticas para aceitar o fim do conflito (veja-se o caso da ditadura brasileira que
dominou o país entre 1964 e 1985).

Em ambos os casos, terminado o conflito, inicia-se o pós-conflito, um período que visa reconstruir o país
e consolidar a paz. Nesse processo participam com destaque as comissões de verdade, justiça e
reconciliação, muitas vezes como componentes de um sistema mais amplo que inclui a justiça transicional
e a identificação e apoio às vítimas. São disso exemplo a Coreia do Sul, Argentina, Guatemala, África do
Sul, ex-Iugoslávia, Timor-Leste, Peru, Ruanda, Serra Leoa, Colômbia, Chile, Guatemala, Brasil. Na maioria
dos processos pós-conflito, forças diferentes militaram por razões diferentes para que a verdade não fosse
plenamente conhecida. Quer porque a verdade era demasiado dolorosa, quer porque obrigaria a uma
profunda mudança do sistema econômico ou político (desde a redistribuição de terra ao reconhecimento
da autonomia territorial e a um novo sistema jurídico-administrativo e político). Por qualquer destas
razões, preferiu-se a paz (podre?) à justiça, a amnésia e o esquecimento à memória, à história e à
dignidade. Assim se produziu uma ignorância indolente.

O Modo 3 de produção de ignorância consiste na produção ativa e consciente de ignorância por via da
produção massiva de conhecimentos de cuja falsidade os produtores estão plenamente conscientes. O
Modo 3 produz conhecimento falso para bloquear a emergência do conhecimento verdadeiro a partir do
qual seria possível superar a ignorância. É este o domínio das fake news. Ao contrário dos Modos 1 e 2, a
ignorância não é aqui um subproduto da produção. É o produto principal e a sua razão de ser. Os
exemplos, infelizmente, não faltam: a negação do aquecimento global; os imigrantes e refugiados como
agentes de crime organizado e ameaça à segurança da Europa ou dos EUA; a distribuição de armas à
população civil como o melhor meio de combater a criminalidade; as políticas de proteção social das
classes mais vulneráveis como forma de comunismo; a conspiração gay para destruir os bons costumes;
a Venezuela ou Cuba como ameaças à segurança dos EUA; etc., etc.

Os três modos de produção produzem três tipos diferentes de ignorância, estão articulados e acarretam
consequências distintas para a democracias. O Modo 1 produz uma ignorância arrogante, abissal, que é
simultaneamente radical e invisível na medida em que o monopólio do conhecimento dominante é
generalizadamente aceito. As verdades que não cabem na verdade monopolista não existem e tão-pouco
existem as populações que as subscrevem. Abre-se assim um campo imenso para a sociologia das
ausências. Foi por isso que o genocídio dos povos indígenas e o epistemicídio dos seus conhecimentos
(passe o pleonasmo) andaram de mãos dadas. O Modo 2 produz a ignorância indolente que se satisfaz
superficialmente e que, por isso, permanece como ferida que arde sem se ver. É a ignorância-frustração
que sucede à verdade-expectativa. Uma ignorância que bloqueia uma possibilidade e uma oportunidade
emancipadoras que estiveram próximas, que eram realistas e, que, além disso, eram merecidas, pelo
menos na opinião de vastos setores da população. Esta ignorância sugere uma sociologia das
emergências, da emergência de uma sociedade que se afirma reconciliada consigo mesma, com base em
justiça social, histórica, étnico-cultural, sexual. O Modo 3 cria uma ignorância malévola, corrosiva e, tal
como um cancro, dificilmente controlável, na medida em que as redes sociais têm um papel crucial na sua
proliferação. Esta ignorância está para além da ausência e da emergência. Esta ignorância é a prefiguração
da estase, a imobilidade que estrutura a vertigem do tempo imediato.

Os três modos de produção e as respectivas ignorâncias que produzem não existem na sociedade de modo
isolado. Articulam-se e potenciam-se por via das articulações que os tornam mais eficazes. Assim, a
ignorância arrogante produzida pelo Modo 1 (monopólio da verdade) facilita paradoxalmente a
proliferação da arrogância malévola produzida pelo Modo 3 (falsidade como verdade alternativa). É que
uma sociedade saturada pela fé no monopólio da verdade científica torna-se mais vulnerável a qualquer
falsidade que se apresente como verdade alternativa usando os mesmos mecanismos da fé. Por sua vez,
a ignorância indolente produzida pelo Modo 2 (amnésia, esquecimento) desarma vastos setores da
população para combater a ignorância produzida quer pelo Modo 1, quer pelo Modo 3. A ignorância
arrogante é uma das principais causas da ignorância indolente, ou seja, da facilidade com que se esquece,
normaliza e banaliza um passado de morte de inocentes, de sofrimento injusto, de pilhagens convertidas
em exercícios de propriedade, de corpos de mulheres e de crianças violentados como objetos de guerra.
Quando a ignorância arrogante se complementa com a ignorância malévola, a ignorância indolente torna-
se tão invisível que é praticamente impossível de erradicar.

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O impacto destes três tipos principais de ignorância nas democracias do nosso tempo é convergente,
embora diferenciado. Todas estas ignorâncias contribuem para produzir democracia de baixa intensidade.
A ignorância arrogante torna impossível a democracia intercultural e plurinacional, na medida em que
outros saberes e modos de vida e de deliberação são impedidos de contribuir para o aprofundamento
democrático; e faz com que vastos setores da população não se sintam representados pelos seus
representantes e nem sequer participem nos processos eleitorais de raiz liberal. A ignorância indolente
retira da deliberação democrática decisões sobre justiça social histórica, sexual, e descolonizadora, sem
as quais a prática democrática é vista por vastas camadas da população como um jogo de elites, uma
disputa interna entre os vencedores dos conflitos históricos. Mas a ignorância malévola é a mais
antidemocrática de todas. Sabemos que as deliberações democráticas são tomadas com base em fatos,
percepções e opiniões. Ora a ignorância malévola priva a democracia dos fatos e, ao fazê-lo, converte a
boa fé dos que dela são vítimas em figurantes ou jogadores ingênuos num jogo perverso onde sempre
perdem e, mais do que isso, se auto-infligem a derrota.

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