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Seminário: Pós-Globalização e Democracia

Considerações finais: Em nova era de nacionalismos e populismos, ainda

podemos falar em Globalização?1

Marco Aurélio Mello2

Devo dizer da alegria de participar, mais uma vez, deste prestigioso

evento, ocorrido anualmente na Universidade de Coimbra, uma das maiores

universidades de Portugal e da Europa, das mais antigas do mundo e declarada

Patrimônio Mundial pela UNESCO. Afirmo a honra multiplicada em razão de o

Seminário ser realizado em homenagem ao Ministro Teori Zavascki, falecido

recentemente, que nos deixou um legado de seriedade e compromisso ético no

exercício da função judicante.

O evento é sempre atual, voltado aos problemas contemporâneos no

mundo. Neste ano, o tema não poderia ser mais urgente: a Pós-Globalização

“cara a cara” com a Democracia. Ou poderíamos falar na “desconstrução da

Globalização”? A organização do Seminário está de parabéns pela estrutura

temática: falar das relações e tensões entre o movimento rotulado de Pós-

Globalização e Democracia envolve o exame de fenômenos, a saber:

nacionalismo, protecionismo, populismo e crise de representação política.

Farei a avaliação final desses campos, considerada a inter-relação entre os

acontecimentos, todos rumando por caminhos perigosos em detrimento da paz

mundial. A apresentação não possui a pretensão de revisar o que foi dito até aqui

1
Palestra proferida no Seminário de Verão, na Universidade de Coimbra, em 5 de julho de 2017.
2
Ministro do Supremo Tribunal Federal. Presidente do Supremo Tribunal Federal (maio de 2001
a maio de 2003) e do Tribunal Superior Eleitoral (junho de 1996 a junho de 1997, maio de 2006
a maio de 2008 e novembro de 2013 a maio de 2014). Presidente do Supremo Tribunal Federal,
no exercício do cargo da Presidência da República do Brasil, de maio a setembro de 2002, em
quatro períodos intercalados.
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– de forma brilhante e inspiradora pelos expositores. O objetivo é trazer reflexões,

como espectador preocupado com as transformações.

Sabe-se que o conceito de globalização surgiu na década de 70 do século

passado, nos Estados Unidos, como instrumento a orientar estratégias de

comércio internacional para empresas nacionais. A ideia surgiu como “comércio

global”, proposta de ordem econômica mundial sem fronteiras. Ganhou fôlego

quando Gorbachev liderou a abertura do regime soviético – a perestroika, no

campo econômico, e a glasnost, no campo político. Autores passaram a falar em

“mundialização do capital”.

A globalização não se encerrou em um viés econômico. A integração

mostrou-se social, cultural e política. O mundo sem fronteiras não é apenas o do

comércio e das transações mobiliárias, mas também o da cultura, o das decisões

políticas, o do convívio social. Globalização pressupõe tolerância, solidariedade,

convivência pacífica de povos cultural, religiosa e linguisticamente diferentes.

Esse foi o cenário no qual surgiram movimentos de integração como a União

Europeia e o Mercosul. Mas a ordem mundial está sob severa ameaça.

Pós-Globalização é uma nova fase do fenômeno da globalização ou, muito

ao contrário, um processo de desconstituição da globalização mundial? Acredito,

a mais não poder, que estamos diante de eventos tendentes à desconstrução da

globalização. Assistimos ao ressurgimento de fortes sentimentos de

nacionalismo, à crescente tomada de medidas de protecionismo econômico, à

ascensão de populismos de matrizes de direita e de esquerda, tudo isso em

quadra de crise permanente de representação política, de descrédito da

instituição representativa por excelência: o Parlamento. Longe de ser um “novo

rótulo”, há, de fato, forte tendência de enfraquecimento ou mesmo de superação

dos elementos que compuseram os processos de globalização.

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As graves e recentes crises econômicas e a ameaça do terrorismo

representam os principais fatores dessas transformações significantes. Alguns

insucessos e os desafios concorrenciais de uma economia globalizada têm feito

parecer que neoprotecionismos possam ser o melhor remédio. O fator China

explica bem o contexto. Quanto ao terrorismo, revela-se com novo perfil: a

Europa, multiétnica e multiconfessional, passa a sofrer com um terror “caseiro”

ou “interno”, ou seja, praticado por nacionais de origens familiares diversas,

normalmente jovens seduzidos pela propaganda radical dos grupos extremistas.

Trata-se de desafio a conduzir à vigília máxima, não apenas das fronteiras.

Esses aspectos têm contribuído para a revelação de um “mundo pós-

globalização”. Um mundo de maior tutela das identidades nacionais, de regresso

a fortes nacionalismos, tendo, como consequência, a crescente intolerância com

os imigrantes; um mundo de protecionismo econômico, com o fechamento das

fronteiras comerciais. Um mundo de populismos políticos, de maior distância

entre os povos e culturas. Observem esses elementos separadamente.

Nacionalismo, fenômeno típico do século XIX e de graves repercussões no

século XX, é a ascensão do sentimento de pertencimento a uma cultura, a uma

região, a uma língua e a um povo específicos. Forjou-se como ideologia política

na França de Napoleão Bonaparte e na jovem nação dos Estados Unidos da

América. Elemento do nacionalismo foi a formação de exércitos nacionais

compostos por membros indistintos da sociedade, o “povo”, que, mobilizados e

estimulados em torno de sentimento comum de identificação cultural, passaram

a lutar em defesa das fronteiras, da cultura, da identidade própria, mas também

da expansão de territórios. A ideologia nacionalista alcançou a unificação das

nações italiana e alemã, mas se exacerbou, culminando na Primeira Guerra

Mundial e na ascensão de regimes totalitários – nazismo e fascismo, responsáveis

pela eclosão da Segunda Grande Guerra. Produziu as maiores tragédias do

século passado, sempre revestindo o monopólio do patriotismo.

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Ao que assistimos agora? À volta de experiências históricas,

comportamentos e ideários dirigidos à construção de identidade única e coletiva

no interior dos Estados? Identidade essa que deve ter como contrapartida

comportamento hostil em relação àqueles que não pertencem à mesma nação,

que não compartilham as mesmas características culturais? O encurtamento da

distância entre os povos, produzido pela integração própria do movimento de

globalização, está sendo substituído pela rivalidade, hostilidade e intolerância?

Estamos voltando àqueles momentos dos séculos XIX e XX?

Fenômenos políticos recentes, aliados à descrença de parte dos cidadãos

nos valores democráticos, apontam para respostas nada animadoras; na

realidade, muito preocupantes.

A vitória de Trump e os primeiros movimentos da política econômica

desse governo indicam o fechamento das fronteiras físicas e do comércio

internacional, o descompromisso com pactos realizados em prol do mundo

global. As políticas neoprotecionistas, defendidas também por emergentes

partidos de extrema direita da Europa, representam, considerada a relevância

dos Estados Unidos, tendência de desconstituição do processo de globalização.

Em vez da abertura das fronteiras, a preocupação maior volta a ser a defesa de

interesses exclusivamente nacionais, materializada em práticas protecionistas.

Alfim, o protecionismo, como medida nacionalista, ameaça a marcha da

globalização.

Historicamente, movimentos nacionalistas colocaram-se contra os

migratórios e – o que é pior – contra a convivência, no mesmo espaço, entre povos

de identidades diversas. O exemplo mais dramático – para dizer o mínimo – foi

a perseguição nazista aos judeus. A prática de Hitler nos ensina como discursos

inflamados de sentimento nacionalista, de resgate do orgulho de uma nação,

podem ser dirigidos à obtenção de apoio popular para a tomada de medidas de

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intolerância. A fala nacionalista conclama os cidadãos a sentirem-se parte de uma

comunidade que deve se unir contra um inimigo comum. É com esse sentido que

nacionalismo e populismo se conectam.

Populismo pauta-se no discurso “nós contra eles”. É uma ideologia ou

mesmo estratégia eleitoral marcada pela afirmação de existirem sempre dois

grupos antagônicos, possuidores de interesses inconciliáveis. O populista

apresenta-se como aquele que conduzirá um dos grupos a superar o outro,

enfatizando a soberania nacional como manifestação popular.

Como instrumento de poder, de persuasão popular, o populismo pode ser

de esquerda ou de direita. Veiculando discurso de ataque à elite política corrupta,

Donald Trump é exemplo de populismo de direita que chegou ao poder. A Frente

Nacional na França, o partido Lei e Justiça na Polônia e o movimento “Brexit”

também são manifestações ou resultados de populismos de direita. A América

Latina é pródiga em movimentos populistas de esquerda: Chaves/Maduro na

Venezuela; Fidel em Cuba; Perón na Argentina; Vargas no Brasil. O discurso “nós

contra eles” é elemento comum entre os populismos de diferentes matrizes

ideológicas e pautou boa parte da “popularidade“ do ex-presidente Lula.

Os populismos de direita e de esquerda atuam de forma diversa, com

propósitos e fundamentos diferentes, mas têm contribuído igualmente para a

desintegração dos processos de globalização: o de direita defende o

protecionismo econômico e o fechamento das fronteiras aos imigrantes e

refugiados em favor de mais segurança e postos de trabalho aos nacionais; o de

esquerda ataca a democracia liberal ao desacreditar instituições importantes,

especialmente a independência judicial, e busca a estatização da economia e os

monopólios estatais. Surge, atualmente, entre os populistas, um movimento

antessistema, que tem como nota a oposição aos elementos da democracia.

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A Europa tem assistido à ascensão de populistas da direita radical, com

discursos autoritários e nacionalistas. Exacerbam a polarização com a

diferenciação entre “nós” e “eles” e o ataque ao que seria uma elite política

corrupta, que favorece países estrangeiros e imigrantes, traindo o próprio povo.

Aliás, temo muito pelo Brasil, uma vez que reações à corrupção têm pavimentado

o caminho ao levante de populistas de extrema direita. Cogita-se do deputado

federal Jair Bolsonaro como forte candidato à Presidência da República, graças

aos discursos contra minorias e contra a corrupção na política.

Sob o ângulo democrático, o populismo tem apenas aparência de

democracia. Pode estar na percepção de um líder carismático, sedutor, a defender

ideários nacionalistas, atraindo corações e mentes da maior parte da população.

Contudo não pode ser apontado como ideologia política que favoreça a

democracia liberal, na medida em que pressupõe o abandono da crença no

Parlamento como o espaço democrático e pluralista por excelência. É o déficit de

representatividade dos agentes legislativos, revelado na perda de confiança do

povo nos Parlamentos, um dos fatores que favorece a ascensão de atores

populistas. Ao se opor à visão pluralista, o populismo também ataca as barreiras

institucionais e a liberdade de imprensa. O passo ao autoritarismo pode ser curto,

rápido e desastroso.

Em boa síntese: nacionalismo, protecionismo, populismo e crise de

representação política estão mesclados. Influenciam-se reciprocamente e dão

cores fortes ao movimento de Pós-Globalização e ao crescente descrédito da

Democracia como regime político plural. Economia e mercados integrados,

tolerância e solidariedade, pluralismo representativo e democracia liberal têm

dado espaço a neoprotecionismos, ao fechamento de fronteiras em desfavor da

ajuda a imigrantes e refugiados, a populismos e à emergência de líderes tão

carismáticos quanto autoritários.

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Encerro dizendo que esse movimento, ruim em si mesmo, representa

ameaça a um direito fundamental de envergadura maior; direito fundamental

que é condição de todos os outros direitos fundamentais, senão a síntese de todos

esses direitos: o direito à paz. É a paz mundial que está ameaçada. A Resolução

nº 39, da ONU, proclama que “os povos de nosso planeta têm o direito sagrado

à paz” e que proteger esse direito “e fomentar a sua realização é obrigação

fundamental de todo Estado”. Como nos ensina o Mestre Paulo Bonavides, o

direito à paz pressupõe o fim das ideologias e está assentado sobre princípios. É

a paz kantiana, a “paz perpétua”, cosmopolita, de caráter universal, de feição

agregativa, de solidariedade, que se dá no plano harmonizador de todas as

etnias, culturas e crenças; a paz ditada pela dignidade de homens livres e iguais.

É preciso amor, esperança e fé na humanidade, presente a memória das

atrocidades que nacionalismos e populismos já produziram. É preciso acreditar

na paz dos povos como objetivo maior a ser perseguido pelos dirigentes, pelos

espíritos esclarecidos, pelas almas elevadas. Muito obrigado.

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