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ANO 14 / Nº 161 R$ 18,00

05 17 26
ELEIÇÕES NOS EUA UM CONTINENTE NEGLIGENCIADO ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADES

A AMARGA VITÓRIA EMERGENTE INDÚSTRIA A INDESTRONÁVEL


DEMOCRATA FARMACÊUTICA AFRICANA MONARQUIA BRITÂNICA
POR SERGE HALIMI E OUTROS POR SEVERINE CHARON E LAURENCE SOUSTRAS POR LUCIE ELVEN

LE MONDE

diplomatique
BRASIL

PROJETOS
DE CIDADE
.

EM DISPUTA
2 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

EDITORIAL

A implosão do
sistema político
POR SILVIO CACCIA BAVA

É
voz corrente que o desencanto e lítico de dominação das maiorias. E
a frustração marcam o momen- o Chile caminha para isso, com a
to histórico que vivemos. O sis- aprovação de um processo consti-
tema político do país é mal ava- tuinte independente do Congresso
liado pelos brasileiros e brasileiras, que tem hoje.
mas essas posturas podem estar mu- É importante acompanhar o que
dando se olharmos para os resultados acontece na Bolívia, processo muito
das eleições municipais deste ano. pouco conhecido no Brasil, na ver-
Os últimos dados das pesquisas dade censurado por nossa grande
do Latinobarómetro, de 2018, dizem imprensa.
que o apoio à democracia por parte Desde 2005, o partido Movimien-
dos brasileiros e brasileiras é de 34%. to Al Socialismo (MAS) governa a Bo-
Os indiferentes somam 41%. E os que lívia com amplo respaldo popular.
preferem o autoritarismo são 15%. Fundado em 1997, ele chegou ao po-
Caem os que apoiam a democracia, der em 2005, elegendo Evo Morales
sobe o número dos indiferentes. Os com 54% dos votos. Em 2009, reele-
que preferem o autoritarismo perma- geu Evo com 64% dos votos. Em 2014,
necem estáveis. A aprovação do go- com 61% dos votos. Em 2019, Evo ga-
verno em 2018 é de 6%. A do Congres- nhou novamente as eleições, mas viu
so Nacional é de 12%. A aprovação contestada sua legitimidade e sofreu
dos partidos políticos é de 6%.1 Bol- um golpe de Estado, sendo afastado
.

sonaro é expressão deste momento. do poder, que foi assumido pela opo-
De que vale votar se o controle da sição, liderada pelas oligarquias lo-
política permanece com os podero- cais e apoiada internacionalmente © Claudius
sos? Depois das eleições de 2018, por vários Estados e mesmo pela
aprofundou-se a espoliação das OEA. Mais um golpe na América Lati-
maiorias e, com isso, a descrença na na tentando destruir governos popu- do MAS em 2020 não pode ser vista presentes nos legislativos municipais.
política e no sistema político. A Plata- lares e democráticos. apenas como uma vitória eleitoral; é Serão muitas Marielles convocando a
forma dos Movimentos Sociais pela Com seus erros e acertos, o MAS uma vitória política e social que vai cidadania a defender seus direitos e
Reforma do Sistema Político2 – uma trouxe uma efetiva melhora nas con- além desse partido. Ela expressa uma não se subjugar a instituições que até
coalizão de movimentos sociais e dições de vida das maiorias e abriu nova vontade política, que se opõe ao hoje ignoram suas demandas.
ONGs que há anos se engaja na luta espaço para a elaboração de uma no- modelo neoliberal. É uma vitória de Outro indicativo dessas mudan-
pela reforma de nosso sistema políti- va Constituição pluricultural e pluri- classe, de gênero, de geração, de terri- ças é que nessas eleições a luta contra
co – abandonou a ideia de uma refor- nacional, reconhecendo e valorizan- tório, de cultura, como afirmam ana- o racismo conquistou um espaço
ma, não acredita mais nessa possibi- do as formas de organização dos listas do processo eleitoral3. mais expressivo nas instituições polí-
lidade, e passou a defender a implosão pueblos originários, e criando um Na Câmara dos Deputados, o ticas. Considerando todas as capitais,
do atual sistema político, de fora para novo modelo de democracia, que MAS conta com 75 de 130 deputados; 48% das vereadoras eleitas são ne-
dentro. O que quer dizer isso? combina a representação com a de- 87 são mulheres. A maioria dos depu- gras e 44% dos vereadores eleitos são
Trata-se de um embate contra mocracia participativa. tados eleitos são jovens de 22 a 27 negros. Mais de quinhentos quilom-
uma política gerada e gerida pelas O golpe foi sentido pela maioria anos – uma verdadeira renovação da bolas se candidataram e levaram pa-
elites, que sustenta e se apoia num da população, que amadureceu for- classe política. No Senado, elegeu 21 ra o espaço público sua agenda, a de-
sistema político burocrático, sem ne- mas de resistência e, pela via da pres- dos 36 senadores. Dos eleitos, 55,5% fesa de seus direitos. Um se elegeu
nhuma participação popular e que são, exigiu a realização de eleições. A são mulheres. Trata-se de uma ver- prefeito de Cavalcante, em Goiás; ou-
aprofunda as desigualdades imple- pressão foi contínua e, depois de dois dadeira implosão do sistema político tro, vice-prefeito; e 54 se elegeram ve-
mentando políticas públicas de ex- adiamentos, finalmente a eleição foi até então existente. E o caminho readores em várias cidades do país.
clusão social, espoliação das maio- marcada para 18 de outubro. O cená- apontado pelos analistas é a passa- Os povos indígenas também elege-
rias e concentração das riquezas rio era ou de eleições democráticas, gem da democracia representativa ram representantes. Por exemplo, os
produzidas nas mãos de muito pou- ou de convulsão social. para a democracia participativa, na Kaingang elegeram onze vereadores
cos. Não há reforma possível quando Em 28 de julho, a Central Obrera perspectiva de construir a democra- nos estados do Rio Grande do Sul, Pa-
Executivo, Legislativo e Judiciário se Boliviana, a Federação dos Mineiros cia comunitária. raná e Santa Catarina. Em Mato
alinham com esses objetivos, mesmo e as organizações de camponeses de- No Brasil, a implosão do sistema Grosso do Sul, os Terena e Guarani
contrariando nossa Constituição. cretaram uma greve geral com prazo político, que necessariamente ocorre elegeram dez vereadores. Ainda não é
Acontece que o desencanto não é indefinido e decidiram também pelo de fora para dentro, ainda não acon- a implosão de nosso sistema político,
pela política ou pela democracia. É bloqueio das estradas. Mais de du- teceu. Mas sinais de que as coisas vão mas novas vozes trazem uma nova
por essa política e por essa democra- zentos bloqueios se realizaram. A mudando e podem mudar mais estão agenda a ele. 
cia. O próprio desencanto é fruto de exigência era de eleições limpas e nos resultados dessa última eleição.
uma política cujo resultado esperado democráticas. Coletivos e representantes das lutas 1   C orporación Latinobarómetro, Informe 2018.
é a desmobilização da cidadania. Com 55,2% dos votos, o candidato antirracistas, feministas, contra a ho- 2   https://reformapolitica.org.br.
3   Ver debate promovido por Brasil de Fato, no
O povo da Bolívia acaba de pro- do MAS, Luis Arce, se elegeu. Seu opo- mofobia, pelo direito à moradia, pelo dia 11 de novembro de 2020, na TV 247. Dis-
mover a implosão de seu sistema po- nente teve 28,9% dos votos. A vitória direito à cidade passaram a estar mais ponível em: https://youtu.be/Wd89rxwDDoA.
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3

ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS

A amarga vitória
bem se seguir. Com mais de 200 mil
mortes por Covid-19, uma economia
paralisada, desemprego crescente,

democrata
uma taxa de popularidade presiden-
cial que, ao contrário de todos os seus
antecessores, nunca em quatro anos
ultrapassou 50% e uma lista de men-
tiras e insultos públicos capaz de en-
cher vários grossos volumes, a derro-
As primeiras escolhas de Joe Biden para postos-chave de sua administração (Relações ta do presidente que deixa o cargo
Exteriores, Finanças, Meio Ambiente) ameaçam decepcionar quem espera mudanças parecia assegurada. Especialmente
porque a todos esses fatores se junta-
profundas na Casa Branca. Entretanto, mesmo uma política pouco ambiciosa enfrentará vam a cortina de fogo de quase todos
muita resistência de um Partido Republicano que não sofreu a derrota que se esperava os meios de comunicação, financia-
mentos eleitorais inferiores ao do
concorrente democrata (algo bizarro
POR SERGE HALIMI* tendo em vista que o republicano ofe-
receu generosos presentes fiscais a
bilionários), sem mencionar o apoio

A
© Gayatri Malhotra/Unsplash
maioria dos ativistas democra- compacto de quase todas as elites do
tas ficou muito decepcionada país – artistas, generais, acadêmicos
em 3 de novembro, noite em de esquerda e inclusive o dono da
que seu candidato venceu a Amazon – a Biden.
eleição presidencial norte-america- Em 3 de novembro, os democra-
na. Para eles, quase nada saiu como tas não estavam apenas esperando
planejado. É certo que Donald Trump uma vitória, mas uma punição. Eles
perdeu, mas por pouco, já que algu- achavam que, como em 1980, a der-
mas dezenas de milhares de votos rota do presidente seria homologada
adicionais em um punhado de esta- antes mesmo que os californianos
dos (Geórgia, Wisconsin, Arizona, terminassem de votar e, para que a
Pensilvânia) teriam bastado para que humilhação da sagrada América
o atual ocupante da Casa Branca per- progressista fosse realmente pur-
manecesse lá por mais quatro anos. gada, o desastre prometido aos repu-
.

Esse resultado apertado o encoraja a blicanos seria seguido – como ouvi-


reclamar de fraude, enquanto seus mos ser exigido – pelo encarcera-
apoiadores mais exaltados atacam mento da família Trump, se possível
máquinas de votação cujo software, retratada em uniforme laranja. Esse
projetado na Venezuela para Hugo cenário permanecerá imaginário. É
Chávez, permitiria distorcer à vonta- até provável que o jogador de golfe
de os resultados. O espetáculo do ex- de Mar-a-Lago não fique politica-
-prefeito de Nova York Rudolph Giu- mente inativo por muito tempo.
liani, advogado pessoal do presidente Forte por ter obtido 10 milhões de
dos Estados Unidos, enxugando a votos a mais que há quatro anos,
testa enquanto essas acusações bi- apesar de todas as afrontas de que
zarras eram feitas com seu aval, dá a foi alvo, incluindo uma tentativa de
medida daquilo em que se transfor- impeachment, ele sem dúvida con-
mou a política norte-americana. seguirá convencer seus partidários
Mais preocupante e mais sério de que foi um presidente corajoso,
para Joe Biden: 77% dos republicanos que cumpriu suas promessas e
consideram que sua eleição não é le- ampliou a base social de seu partido,
gítima.1 No dia 20 de janeiro, o presi- mas cujo balanço lisonjeiro foi obs-
dente eleito precisará enfrentar essa curecido por uma pandemia.
desconfiança quando seu partido O fervor de alguns é fortalecido
não terá maioria no Senado e terá pela rejeição de outros. A “verdade al-
perdido dez cadeiras na Câmara dos ternativa” dos republicanos mais
Deputados e estagnado nas assem- exaltados é ainda menos duvidosa
bleias dos estados. Isso equivale a di- quando se pensa que o universo pa-
zer que esse mandato democrata não Mulher comemora a vitória de Biden nas eleições, em frente à Casa Branca ralelo dos democratas apresenta cer-
terá nenhuma lua de mel e que come- tas falhas semelhantes. Pois como
ça muito pior que aquele de Barack parece mais promissor. Os adversá- jovem e multiétnica. Esse futuro não pode um apoiador de Trump se reco-
Obama, iniciado há doze anos, do rios de Trump imaginavam que sua está mais escrito. Reconfortado em nhecer no retrato que a maior parte
qual, entretanto, não resta grande eleição há quatro anos era o resulta- suas bases, conquistando suas mar- dos meios de comunicação, além da-
coisa, exceto magníficos discursos e do de um incrível acaso eleitoral, gens, o republicanismo ao estilo de queles que ele frequenta, oferece de
Memórias em dois volumes. A eleição que expressava o último suspiro (ou Trump não está prestes a sair de ce- seu campeão? Muitos dos eleitores de
de Obama não foi contestada, ele fa- o último soluço) do homem branco e na. O presidente que vai deixar o Biden, especialmente os graduados,
zia o mundo todo sonhar e tinha am- que sua coalizão, em que se justapu- cargo transformou o partido do qual os urbanos, aqueles que definem o
pla maioria em ambas as câmaras. nham segmentos em declínio do se apossou; ele é doravante o seu, ou tom, o ritmo e a linha, de fato se con-
Ele também se mostrava muito mais eleitorado – religioso, rural, idoso –, de seu clã, ou dos herdeiros que ele venceram de que o presidente que es-
vigoroso e trinta anos mais jovem estava condenada. Por outro lado, o terá designado. tá saindo é um palhaço, um fascista,
que o “Joe Adormecido” hoje. mapa demográfico tornava irresistí- Para os democratas, a decepção é “o poodle de Putin”, até mesmo o su-
Paradoxalmente, é, portanto, no vel uma vingança democrata apoia- imensa. Uma forma de prostração e cessor de Adolf Hitler. Em 23 de se-
campo dos perdedores que o futuro da por uma maioria “diversificada”, de desmobilização poderia muito tembro, sem ser contestado pelo fa-
4 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

moso apresentador da MSNBC, o mas em satisfazer apoiadores endu- tes está aumentando e a de brancos consideração de identidade que se
publicitário Donny Deutsch compa- recidos suficientemente numerosos diminuindo. Os democratas podiam, atribui a eles. No caso em questão, os
rou os apoiadores de Trump a multi- para fazê-los viver ou morrer.3 Entre portanto, apostar que o tempo estava do Rio Grande temeram que a hostili-
dões fanáticas que compareciam aos aqueles que se informam lendo o New do seu lado. Somando-se a isso a qua- dade de Biden à indústria do petróleo
comícios nazistas: “Quero dizer aos York Times, 91% se declaram demo- se totalidade dos votos negros, uma lhes negasse acesso a empregos bem
meus amigos judeus que vão votar cratas e, entre aqueles que preferem a grande maioria de eleitores hispâni- remunerados, mas que não exigem
em Donald Trump: como se atrevem Fox News, 93% se proclamam repu- cos, uma pequena vantagem entre as diploma universitário. A mudança
a fazer isso? Não há nenhuma dife- blicanos.4 O bom business model pas- mulheres e progressos constantes climática, portanto, pareceu menos
rença entre o que ele prega e o que sa então a empanturrar o animal, isto entre os que têm curso superior, a vi- temível para eles que a degradação
Adolf Hitler pregava”. Dois dias de- é, o assinante, com a comida que ele tória não poderia escapar deles. social. Outros moradores da região,
pois, um comentarista do Washing- espera, mesmo que seja tendenciosa, A eleição de 2020 teve pelo menos que ganham a vida decentemente co-
ton Post estimou que devemos deixar ultrajante e falsificada. E os jornalis- o mérito de questionar esse catecis- mo policiais ou guardas de fronteira,
de temer a analogia entre o início da tas, inclusive quando proclamam seu mo de identidade, essa atribuição de acreditaram que os democratas para-
ditadura nazista e as tentações totali- amor pela diversidade, têm o cuidado toda uma população a quadros de- riam de financiar sua profissão. Por
tárias do presidente dos Estados Uni- de caçar hereges. mográficos, distintos, étnicos e polí- fim, o fato de uma pessoa ser hispâni-
dos: “América, estamos à beira do O resultado é convincente: trans- ticos ao mesmo tempo. Uma compa- ca não impede que ela seja hostil ao
nosso incêndio do Reichstag. Pode- formado em um anexo ideológico do ração dos resultados indica que foi aborto ou a tumultos urbanos.
mos evitá-lo. Não deixemos nossa de- Partido Democrata e capaz de publi- principalmente junto ao eleitorado Em suma, você pode falar espa-
mocracia ser incinerada”.2 car meia dúzia de editoriais ou co- branco que Biden progrediu em rela- nhol e ser conservador, da mesma
mentários que a cada dia reafirmam ção à pontuação de Hillary Clinton forma que pode ser afro-americano e
PARANOIA ALIMENTADA PELA MÍDIA seu desprezo e seu ódio pelo presi- há quatro anos e que a maior parte não querer receber mais imigrantes
Por fim, na CNN, enquanto a eleição dente que deixa o cargo, o New York dos que acabaram por votar em mexicanos, ou vir de um país asiático
de Biden não tinha sido confirmada, Times tem 7 milhões de assinantes. Trump foi composta de votos adicio- preocupando-se com os programas
a famosa jornalista Christiane De sua parte, a Fox nunca ganhou nados de mulheres e minorias. Em que procuram promover o acesso de
Amanpour, em vez de saborear sua tanto dinheiro. proporção, estamos longe do terre- minorias à universidade. Enquanto
vitória e se permitir uma pequena A existência de dois países que se moto de uma eleição para a outra: al- os democratas inventam questões
pausa ativista, aproveitou a data de ignoram ou se enfrentam não é novi- guns pontos aqui, alguns pontos ali. progressistas artificiais, os republi-
12 de novembro para sinalizar que dade nos Estados Unidos. E, na época Os republicanos sempre triunfam canos ganham o mel em divisões
aquela era a semana do aniversário da Guerra Civil, a fratura já ignorava as entre os homens brancos, sobretudo bem reais, correndo o risco, tanto
da Noite dos Cristais, durante a qual, categorias econômicas e sociais. Mais quando eles não têm diploma, en- uns quanto outros, de não ver o outro
em 1938, as vitrines das lojas perten- recentemente, em 1969, um conselhei- quanto os democratas triunfam en- lado da realidade: se os jovens hispâ-
centes a judeus foram saqueadas e ro do presidente Richard Nixon, Kevin tre negros e hispânicos. nicos votam mais nos democratas
muitos de seus proprietários foram Phillips, recomendou ao Partido Re- que seus pais, isso não significa ne-
.

assassinados ou enviados para cam- publicano, com mapas e gráficos para cessariamente que tenham mais
pos de concentração. O prelúdio, se- apoiá-lo, que aproveitasse a “revolta A existência de dois paí- consciência que eles de sua “identi-
gundo ela, de um assalto contra “a populista das massas norte-america- ses que se ignoram ou se dade”. Acima de tudo, eles são mais
realidade, o conhecimento, a história nas que, tendo alcançado a prosperi- graduados que a geração que os pre-
e a verdade”, o que imediatamente a dade das classes médias, se tornaram
enfrentam não é novida- cedeu. Também nesse campo da di-
traz de volta às transgressões do pre- mais conservadoras. Elas se levantam de nos Estados Unidos versidade, as certezas oscilam.
sidente norte-americano. Nos Esta- contra a casta, as políticas e a tributa- A crise de confiança dos Estados
dos Unidos e na Europa, a imprensa ção dos mandarins de esquerda do es- Unidos em seu sistema político po-
progressista optou por não destacar tablishment”.5 A essa análise, que as- O VOTO DOS HISPÂNICOS derá talvez ter a vantagem de dissua-
tais excessos, mas os apoiadores de sociava a hostilidade aos impostos No entanto, a evolução ocorreu onde di-los de impô-lo à força ao mundo
Trump não vão esquecê-los a cada daqueles cujo pecúlio estava crescen- não era esperada. O fato de Trump ter inteiro. Quanto à esquerda norte-a-
vez que rirmos de sua paranoia. Eles do e sua animosidade contra uma en- melhorado sua pontuação com os mericana, que não sai fortalecida
já notaram que a eleição presidencial genharia social cujo erro eles atri- afro-americanos depois de ter mos- dessa eleição – ainda que seu resulta-
havia ocorrido sem que se manifes- buíam a intelectuais progressistas, trado sua indiferença à brutalidade do a tranquilize –, só resta alertar o
tasse essa vasta conspiração russa da que desrespeitavam na opinião deles policial e sua hostilidade ao movi- novo presidente contra uma política
qual foram continuamente informa- os preceitos religiosos, Phillips acres- mento Black Lives Matter [Vidas Ne- excessivamente cautelosa, seme-
dos por quatro anos. centou o toque do ressentimento ra- gras Importam] e de ter feito um lhante à dos democratas que permi-
A eleição de Obama desencadeara cial. Em suma, os “pequenos brancos” grande avanço no eleitorado hispâni- tiram a eleição de Trump. 
um mecanismo de ódio e falsifica- do sul, tradicionalmente democratas, co depois de ter promovido (e em par-
ção. Apesar de seu centrismo quase estavam fartos da emancipação dos te construído) um muro na fronteira *Serge Halimi é diretor do Le Monde
conservador, sua austeridade fiscal, negros. E havia nisso, segundo ele, mexicana e ter tratado migrantes co- Diplomatique.
sua leniência com os bancos, seus as- uma alavanca que os republicanos po- mo estupradores e assassinos parece
sassinatos por drones, suas expul- deriam acionar para conquistar um ir além da compreensão. Tanto que
sões em massa de imigrantes, seus eleitorado popular. Ele era hostil a alguns republicanos imaginam que 1   P esquisa do Monmouth University Polling Ins-
protestos impotentes diante de abu- priori às políticas econômicas de di- seu partido pode se tornar conserva- titute, 18 nov. 2020.
2   Dana Milbank, “This is not a drill. The Reichs-
sos policiais, os republicanos o acu- reita, mas “animosidades étnicas e dor, popular e multiétnico. Por sua tag is burning” [Isto não é um teste. O Reichs-
saram de ser um radical ferrenho, um culturais têm precedência sobre qual- vez, os democratas estão preocupa- tag está pegando fogo], The Washington
revolucionário mascarado, um falso quer outra consideração quando se dos em ver escapar deles uma parte Post, 25 set. 2020.
3   M att Taibbi, Hate Inc.: Why Today’s Media
norte-americano. Biden pode ficar trata de explicar a escolha do partido”. da clientela que consideravam con- Make Us Despise One Another [Ódio S.A.:
tão distante da esquerda quanto seu Em larga medida, a estratégia política quistada, para não dizer cativa. por que a mídia atual nos faz desprezar uns
predecessor democrata – “Eu sou o de Phillips explica as reeleições de Ri- É no entorno do Rio Grande, no aos outros], OR Books, Nova York, 2019.
4   Estudo do Pew Research Center, out.-nov.
cara que fez campanha contra os so- chard Nixon, Ronald Reagan e George Texas, que o enigma é parcialmente 2019. As proporções para a NPR (a televisão
cialistas. Eu sou o moderado”, ele de- W. Bush. Ela também lançou luz sobre desvendado.6 Ali, mais de 90% da po- pública), a CNN e a MSNBC também são de-
fendia em Miami uma semana antes a presidência de Trump. pulação é hispânica. Quatro anos sequilibradas a favor dos democratas; para a
ABC, a CBS e a NBC o são menos.
da votação –, mas seu mandato ocor- No entanto, um discurso que tem atrás, Clinton obteve 65% dos votos 5   Kevin Phillips, The Emerging Republican Majo-
rerá em um clima igualmente agita- por alvo os especialistas, a merito- no condado de Zapata. Dessa vez, foi rity [A maioria republicana emergente], Arling-
do, porque, como analisou o jornalis- cracia, os migrantes e as minorias se Trump quem venceu. Que aconteceu? ton House, Nova York, 1969.
6   Elizabeth Findell, “Latinos on border shifted to
ta Matt Taibbi, a grande mídia não torna eleitoralmente perigoso em um Os hispânicos, como outros, simples- GOP” [Latinos na fronteira passam para o
está mais preocupada em informar, país em que a proporção de estudan- mente não são movidos apenas pela Partido Republicano], Wall Street Journal, 9.
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5

PAIXÕES E EMOÇÕES DOMINAM A CENA POLÍTICA NORTE-AMERICANA

O grande desfile de lágrimas


Chorar é o suficiente para dizer a verdade? Essa questão poderia explicar por que, em um período em que a mentira
domina a vida política e as redes sociais norte-americanas, as lágrimas tenham inundado a cena

POR THOMAS FRANK*

C
hegou a hora das lágrimas nos te que encerra o mandato. Existe até uma charge que retratava Donald a estrela de TV Padma Lakshmi disse
Estados Unidos. Os juízes estão uma marca de produtos para armas Trump como um bebê grande, fazen- ter experimentado um misterioso ca-
chorando. Os comentaristas de de fogo chamada Liberal Tears, em do birra em relação à sua derrota para lor interno que havia “explodido na
televisão estão chorando. Os referência à frase “I lube my rifles Joe Biden. O jornal contradizia sua forma de lágrimas incontroláveis” ao
partidários do perdedor da eleição with liberal tears” (“Lubrifico meus própria colunista. Desse modo, zom- saber que Kamala Harris havia sido
presidencial estão chorando. Os par- fuzis com lágrimas liberais”). bar dos infortúnios do outro lado é eleita vice-presidente, antes de con-
tidários do vencedor da eleição presi- Como de costume, os democratas um hobby perfeitamente bipartidá- tar como tinha “chorado de novo” as-
dencial estão chorando. Eles escre- responderam a essa onda de sarcas- rio. Em 2012, apareceu brevemente sistindo a seu (insignificante) discur-
vem colunas sobre os orgasmos mo teorizando-a e decretando que na web um site intitulado “Brancos so de vitória. Ela explica essa
lacrimais que lhes foram proporcio- ela revelava falta de personalidade chorando por [Mitt] Romney”: os in- profunda emoção pelo fato de Kama-
nados por este ou aquele líder. É uma entre os conservadores. “A expressão ternautas eram convidados a rir la Harris “proporcionar a muitas mu-
questão de orgulho moral. ‘Faça-os chorar’ torna-se precisa- diante de imagens de republicanos lheres negras e mestiças um senti-
Ao mesmo tempo, é uma questão mente um discurso de poder”, ensi- abatidos após a derrota de seu candi- mento de pertencimento”.
de vergonha. Pessoas que choram são nava a colunista Monica Hesse no dato para Barack Obama. Para fazer correr lágrimas de vir-
fracas, assim pensam os norte-ame- Washington Post de 5 de novembro. Na verdade, cada lado gosta de tude, um método muito popular con-
ricanos, e essa brava nação de pionei- “Trata-se de pessoas fortes que hu- zombar do perdedor e considera as siste em encenar a inocência da in-
ros e empreendedores recua desgos- milham aquelas que consideram fra- próprias lágrimas nobres e justas, co- fância diante de um ambiente
tosa diante de tamanho infantilismo. cas, porque isso as diverte e porque mo a manifestação de sentimentos político pervertido. Nesse joguinho,
Os vídeos de democratas derraman- têm meios para tal.” Eis aí uma curio- políticos genuínos, uma prova de vir- as palmas vão para o juiz conserva-
do lágrimas quentes na noite da elei- sa alegação se pensarmos que pro- tude filosófica. Durante seus comí- dor Brett Kavanaugh, cuja nomeação
ção de 2016, após a derrota de Hillary vém de um jornal de Jeff Bezos, o ho- cios, por exemplo, Trump às vezes para a Suprema Corte em 2018 foi
.

Clinton, se multiplicaram no YouTu- mem mais rico do mundo, e defende contava uma história sobre trabalha- perturbada por acusações de agres-
be nos meses seguintes, para prazer um partido político que, longe de ser dores (ora da indústria de mineração, são sexual. Ele respondeu contando,
dos republicanos, que se deleitavam “fraco”, passa seu tempo a ofender ora da indústria siderúrgica) que te- entre outras coisas, como sua filha, “a
com a visão desses idealistas bem-e- seus adversários e recolhe somas riam derramado lágrimas em sua pequena Liza, do alto de seus 10
ducados e graduados brutalmente imensas de dinheiro em campanhas presença, atestando sua incrível aura anos”, tivera a ideia de orar pela acu-
forçados a engolir suas ambições. As eleitorais – muito mais que os repu- de presidente. sadora de seu pai – uma cena que ele
“lágrimas progressistas” logicamen- blicanos cruéis. O enternecimento republicano, obviamente relatou fungando profu-
te se tornaram um dos grandes me- porém, não é nada comparado às tor- samente. E como esquecer o espetá-
mes dos anos Trump. “Fazer os libe- UM HOBBY BIPARTIDÁRIO rentes de lágrimas de alegria que a culo do pobre Van Jones, o ex-revolu-
rais chorar de novo”, podia-se ler em Melhor ainda, dez dias após a publi- imprensa nacional conscienciosa- cionário que virou comentarista da
2020 em muitos banners e cartazes cação dessa coluna, o Washington mente documentou após a queda de CNN, tentando engolir as lágrimas
agitados por partidários do presiden- Post publicou na primeira página Trump. No New York Times (13 nov.), por quase dois minutos, durante uma
transmissão ao vivo, após o anúncio
da vitória de Biden? Sua emoção era
© Jan Canty/Unsplah

compreensível (“É mais fácil ser pai


esta manhã, é mais fácil dizer aos
seus filhos que a moralidade é impor-
tante”), mas a estranheza da cena se
deve à maneira como a câmera per-
maneceu focada nele enquanto ele
falava, oferecendo aos telespectado-
res um longo e deliberado episódio
de desconforto.
Nesse tipo de situação, em que o
próprio corpo é o penhor da verdade,
as lágrimas são associadas à sinceri-
dade. Ninguém ousaria duvidar da
autenticidade das emoções de uma
pessoa em prantos, sobretudo se um
close mostra o rímel escorrendo. Essa
também é a razão pela qual, de vez
em quando, os norte-americanos
precisam ser lembrados de quanto
foram enganados por essa ostentação
lacrimal. Nas décadas de 1980 e 1990,
os televangelistas e suas lamentações
teatrais eram a vergonha do país. As
lágrimas faziam parte do arsenal de
As lágrimas estão no cerne da política norte-americana e fornecem argumentos poderosos fogos de artifício que eles usavam pa-
6 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

ra nos enganar. Da mesma forma, 2015). E “ele choraminga e chora- não em propostas ambiciosas, mas esse nome, ele descreve a posse do
Bill Clinton, o mais sentimental dos minga” também quando perde. Seus na repulsa que lhe inspira um odiado presidente George W. Bush em 2001:
presidentes recentes, parecia capaz lamentos são muitas vezes incom- Donald Trump. Enquanto isso, os re- um grande momento de exibição
de abrir e fechar a torneira à vonta- preensíveis, intermináveis e dignos publicanos não medem esforços, sentimental durante o qual os parti-
de. A tática do choro era apenas uma de pena. Até tarde da noite, ele tuíta com suas fúteis guerras culturais e cipantes derramaram torrentes de lá-
entre outras ferramentas em sua cai- sobre a implacabilidade da mídia em seus apelos nostálgicos, para “tornar grimas, antes de vestirem suas rou-
xa de truques. relação a ele, sobre os bandidos que a América grande novamente”. Ne- pas de gala e calçarem suas botas de
Em suma, os líderes políticos de roubam sua reeleição, sobre sua pró- nhum dos dois principais partidos caubói para participar de um ban-
todos os matizes estão soluçando pria administração, que não reco- pretende regulamentar Wall Street e quete suntuoso.
porque isso funciona. As lágrimas le- nhece a legitimidade de suas queixas o Vale do Silício nem reindustrializar Visto de fora, deve ser estranho
vam à adesão. Elas definem uma po- etc. Como um empresário que abriu a Pensilvânia e o Michigan. No geral, observar o país mais rico e mais po-
sição de vítima, injustamente perse- caminho com a força de muitas a retórica política se transformou em deroso do mundo escolher seu rumo
guida pelos poderosos. Elas provam a queixas, ele encarna perfeitamente o uma corrida de acusações morais, em baseado numa lenga-lenga e em pos-
sinceridade, sugerem uma nobreza movimento conservador, que encon- que homens carregando rifles de as- turas moralizantes, tudo enterrado
interior. Hillary Clinton, conhecida trou uma maneira de vender a dou- salto afirmam ser as vítimas e em que sob milhões de litros de lágrimas
por seu temperamento de aço, rara- trina da sobrevivência do mais apto investigadores autoproclamados pa- com alta octanagem. Como deve ser
mente cede na frente das câmeras de – transformada em sua marca regis- trulham a internet em busca de pis- irritante saber que as escolhas dos
televisão. No entanto, esse foi o caso trada – ao reclamar contra esses hor- tas de privilégios e de adjetivos des- Estados Unidos terão graves conse-
em 2008, quando uma mulher per- ríveis democratas que tentam estra- respeitosos. Nossa vida política está quências em seu país e em sua vida,
guntou a ela, após um longo dia de gar o Natal e contra a televisão que cada vez mais reduzida à vergonha e mas que suas lágrimas não terão ne-
campanha: “Como você faz? Como zomba dos valores dos humildes e às queixas pessoais. Choramos por- nhum efeito em nossas majestosas
faz para se manter tão positiva e tão piedosos cidadãos. que somos os mais nobres, choramos deliberações. 
maravilhosa?”. Seus ex-apoiadores porque somos os mais vis, choramos
consideram esse um de seus momen- UMA CORRIDA porque somos excluídos, choramos *Thomas Frank é jornalista. Último livro
tos mais bonitos.1 DE ACUSAÇÕES MORAIS porque somos perseguidos, chora- publicado: The People, No: A Brief History
Embora o autoritário Trump difi- Assim, as lágrimas estão no cerne da mos porque saímos vitoriosos, chora- of Anti-Populism [O povo, não: uma breve
cilmente seja do tipo que chora em política norte-americana e fornecem mos porque nunca conseguimos ob- história do antipopulismo], Metropolitan
público, ele fica de mau humor e re- os argumentos mais poderosos de ter o que queremos. Books, Nova York, 2020.
clama profusamente. Ele se apresen- nosso vocabulário político. São o su- O poeta polonês Tadeusz Róże-
ta como o “resmungão mais fabulo- ficiente para ganhar a primeira pági- wicz, que sobreviveu a muitas catás-
so” do país: “Eu choramingo e na de um grande jornal. Biden, um trofes na Europa, um dia qualificou a 1   C
 f. Michael Kruse, “The woman who made Hil-
lary cry” [A mulher que fez Hillary chorar], Po-
choramingo sem parar até ganhar”, grande sentimental, acaba de vencer América de “superpotência soluçan- litico, 20 abr. 2015. Disponível em: www.poli-
confessou uma vez à CNN (11 ago. a eleição presidencial, apoiando-se te”. Em um poema sardônico que leva
.

tico.com.

Um trumpismo sem
14,7% em abril, nível nunca alcança- de muitas organizações conservado-
do desde os anos 1930 –, Trump teria ras, como o Club for Growth (Clube
boas condições de ser reeleito. Ex- para o Crescimento, hostil à tributa-

Donald Trump
posto por quatro anos às inúmeras ção e à redistribuição) e o Family Re-
mentiras do presidente, a suas trapa- search Council (Conselho de Pesqui-
lhadas durante a crise sanitária, a sa da Família, um grupo de cristãos
suas múltiplas provocações, o povo evangélicos que se opõe ao aborto, ao
respondeu dando-lhe pelo menos divórcio, aos direitos dos homosse-
73,7 milhões de votos,2 mais que xuais...), e de vários meios de comu-
Joe Biden promete promover uma restauração em qualquer candidato republicano na nicação, como Fox News ou Breitbart
Washington, no que seria uma espécie de terceiro história, e até 10 milhões a mais que News. Além disso, os ingredientes
sua própria pontuação em 2016. que tornaram Trump bem-sucedido
mandato de Barack Obama. Porém, mesmo esse objetivo Em fevereiro de 2020, a economia em 2016 ainda estão lá: hostilidade
pouco ambicioso parece distante. Os apoiadores de Trump estava indo bem. A taxa de desempre- aos imigrantes, em um país que está
contestam apaixonadamente o resultado das eleições e go atingiu seu nível mais baixo passando por sua transformação de-
(3,5%), a inflação não ultrapassava os mográfica mais profunda em um sé-
contam com um Partido Republicano cujo poder 2,3% e, no último trimestre de 2019, o culo, animosidade racial, condescen-
permanece intacto crescimento tinha progredido a um dência da elite educada em relação às
ritmo vigoroso de 2,4%. Esse dina- classes populares e o sentimento hoje
mismo, associado à ausência de guer- difundido de que a globalização tem
POR JEROME KARABEL* ras de grande envergadura – em um servido aos interesses das multina-
momento em que o isolacionismo do- cionais e das classes altas em detri-
mina a opinião pública – e à vanta- mento da maioria.

A
pós vários dias de suspense, Joe lho a setembro),1 eles não consegui- gem que tem todo candidato que está O trumpismo é parte de uma re-
Biden finalmente venceu Do- ram reconquistar o Senado, perde- exercendo o cargo, levou muitos cien- volta “populista” global contra as eli-
nald Trump nas eleições presi- ram cadeiras na Câmara dos tistas políticos e economistas a pre- tes políticas, econômicas e culturais,
denciais norte-americanas, Representantes e não foram capazes ver uma vitória de Trump.3 E, se a de- sobretudo entre aqueles cuja vida foi
mas a vitória tímida não representa o de ganhar a maioria das legislaturas terioração da situação sanitária e virada de cabeça para baixo pela glo-
repúdio definitivo que os democratas estaduais, que detêm um poder con- econômica finalmente comprometeu balização e pela desindustrialização.
tinham ardentemente desejado. Na siderável no sistema federal suas chances, o cenário político nor- Como observa John Judis, o “populis-
verdade, as eleições se revelaram até norte-americano. te-americano ainda assim não está mo de direita” tende a prosperar
desastrosas para eles. Apesar do pé A verdade perturbadora é que, livre do trumpismo. quando os partidos majoritários igno-
de meia impressionante coletado pa- sem a pandemia de Covid-19 e a ca- O personagem retém o apoio de ram ou minimizam os problemas
ra financiar sua campanha (US$ 1,5 tástrofe econômica que se seguiu – a dezenas de milhões de partidários reais.4 Os democratas, portanto, car-
bilhão em apenas três meses, de ju- taxa de desemprego atingiu o pico de fervorosos e devotados, mas também regam uma responsabilidade esma-
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7

© Darren Halstead/Unsplash
gadora pelo nascimento do trumpis- bre os lucros excessivos, visando
mo e por sua consolidação. O apoio de sobretudo àqueles que enriqueceram
Bill Clinton ao Acordo de Livre Co- durante a pandemia – na linha do sis-
mércio da América do Norte (Nafta), tema tributário introduzido logo
que entrou em vigor em 1º de janeiro após a Segunda Guerra Mundial. O
de 1994, e a pressão exercida pelo ex- pacote de estímulo que o governo Bi-
-presidente para facilitar a adesão da den certamente tentará aprovar po-
China à Organização Mundial do Co- deria ser direcionado não às grandes
mércio (OMC) representaram um du- corporações (como a de Obama em
ro golpe no mercado de trabalho local. 2009), mas àqueles mais diretamente
Segundo uma estimativa do Instituto afetados pela crise: os trabalhadores
de Política Econômica, a entrada de de baixa renda, desempregados e do-
Pequim na OMC teria custado à in- nos de pequenos negócios. Biden
dústria manufatureira dos Estados também poderia oferecer um dispo-
Unidos 2,4 milhões de empregos.5 sitivo verdadeiramente protetor para
Barack Obama pouco fez para os milhões de inquilinos e pequenos
mostrar que o Partido Democrata es- proprietários ameaçados de despejo
tava preocupado com o destino das em plena pandemia.
classes populares: ele indicou como Obviamente, um Senado com
secretário do Tesouro alguém próxi- maioria republicana não aprovará
mo a Wall Street (Timothy Geithner), tais medidas. Mas, ao defendê-las
não quis processar os banqueiros Homem usando máscara de Donald Trump em frente à Casa Branca com tenacidade, os democratas ex-
responsáveis pela crise de 2008 e não pressariam alto e bom som seu com-
soube como proteger os milhões de Não nos enganemos: o Partido Re- bem pagos. Empregados e autônomos promisso renovado com as classes
norte-americanos que perderam publicano se tornou um partido de com diploma universitário tinham populares, no espírito do New Deal
suas casas e aposentadorias. Quatro extrema direita, em muitos aspectos proporcionalmente quatro vezes de Franklin Delano Roosevelt. Isso
anos atrás, os democratas pagaram tão virulento quanto os partidos au- mais chances de exercer sua ativida- permitiria que eles se colocassem,
um preço alto por seu frenesi de li- tocráticos que atualmente governam de em casa que os trabalhadores sem durante as eleições de meio de man-
vre-comércio. De acordo com um es- a Hungria ou a Turquia. Tendo os ad- diploma de ensino superior.8 Enquan- dato de 2022, como alternativa diante
tudo de David Autor,6 economista do versários sido colocados de escanteio to isso, os mais ricos encheram seus da inação dos republicanos. Essa se-
Massachusetts Institute of Technolo- – o senador do Arizona Jeff Flake bolsos ainda mais. Entre 18 de março, ria a melhor forma de evitar o retorno
gy (MIT), as perdas de empregos liga- (2013-2019), o representante da Caro- data de início dos confinamentos, e de um novo tipo de trumpismo, ain-
das ao desenvolvimento do comércio lina do Sul Mark Sanford (2013-2019)... 20 de outubro, a fortuna dos 643 bilio- da mais tóxico que o original. 
.

chinês podem ter fornecido a Trump –, ele está agora nas mãos dos trum- nários do país aumentou em US$ 931
os poucos pontos que garantiram seu pistas e provavelmente ficará assim bilhões, quase um terço da riqueza *Jerome Karabel  é professor de Sociolo-
sucesso nos estados industriais do em um futuro próximo. O perigo co- total deles. Biden tem uma dívida es- gia da Universidade da Califórnia em
Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, locado pelo “populismo de direita” é pecial com os ultrarricos que, com Berkeley.
decisivos em sua vitória em 2016. ainda maior nos Estados Unidos que doações de US$ 100 mil ou mais, le-
Historicamente visto como o em muitos países europeus, onde o vantaram US$ 200 milhões para sua 1   R ebecca R. Ruiz e Rachel Shorey, “Demo-
“partido dos trabalhadores”, o Parti- sistema de representação proporcio- campanha em seis meses. Os princi- crats see a cash surge, with a $1.5 billion Ac-
tBlue haul” [Os democratas veem um aumen-
do Democrata há muito experimenta nal muitas vezes relega – embora haja pais centros de poder financeiro dos to de caixa, com um aporte de 1,5 bilhão de
uma erosão do apoio das classes po- exceções – os partidos de extrema di- Estados Unidos – Wall Street, Vale do dólares da ActBlue], The New York Times, 16
pulares, sobretudo entre aqueles que reita às margens do jogo político, co- Silício, Hollywood, fundos de investi- out. 2020.
2   Cifra de 20 de novembro de 2020.
se declaram “brancos”. Essa tendên- mo na Holanda (onde o Partido para a mento – reconhecem nele um presi- 3   C f., por exemplo, Jeff Cox, “Trump is on his
cia foi confirmada em 2020. De acor- Liberdade obteve apenas 13% dos vo- dente que não corre o risco de amea- way to an easy win in 2020, according to Moo-
do com as primeiras pesquisas de bo- tos nas eleições parlamentares de çar seus interesses. dy’s accurate election model” [Trump está a
caminho de uma vitória fácil em 2020, de
ca de urna,7 Trump teria obtido os 2017) e na Espanha (onde o Vox atin- Com um Senado que provavel- acordo com o modelo eleitoral preciso da
votos de 64% dos eleitores brancos giu o pico de 15% nas eleições gerais mente permanecerá presidido pelo Moody], CNBC, 15 out. 2019.
não graduados (contra 34% de Bi- de 2019). Os partidários do presidente implacável senador do Kentucky Mit- 4   John B. Judis, The Populist Explosion: How
the Great Recession Transformed American
den). Ele também seria considerado norte-americano controlam um dos ch McConnell, Biden encontrará and European Politics [A explosão populista:
muito popular entre os cristãos evan- dois principais partidos e, por sua grandes dificuldades para concreti- como a grande recessão transformou as polí-
gélicos (81% dos votos) e os habitan- vez, o sistema uninominal majoritá- zar qualquer medida de seu progra- ticas norte-americana e europeia], Columbia
Global Reports, Nova York, 2016.
tes de áreas rurais (65%). As circuns- rio continua sendo um obstáculo for- ma. Empurrado pela direita no Sena- 5   Robert E. Scott, “US-China trade deficits cost
crições mais pobres do país, onde os midável ao surgimento de outras le- do, ele também estará sob pressão da millions of jobs, with losses in every state and
conservadores começaram a criar gendas. O sistema está, portanto, ala esquerda de seu partido, com Ber- in all but one congressional district” [Os défi-
cits comerciais EUA-China custam milhões de
raízes em 2000, são agora as mais instalado para o surgimento de um nie Sanders e Elizabeth Warren na li- empregos, com perdas em todos os estados e
propensas a votar no Partido Repu- demagogo ainda mais perigoso que derança. Tal situação traria proble- em todos os distritos eleitorais, com exceção
blicano, enquanto 44 das 50 circuns- Trump. Imagine o carisma de um Ro- mas até mesmo para os líderes mais de um], Economic Policy Institute, Washing-
ton, DC, 18 dez. 2014.
crições mais ricas – e todas as dez nald Reagan aliado à inteligência e à determinados. Imaginem então para 6   David Autor et al., “Importing political polariza-
mais ricas – se mostram agora mais disciplina de um Barack Obama... “Joe adormecido”...9 Sem falar que o tion? The electoral consequences of rising
favoráveis aos democratas. Essa in- Biden chega ao poder em um país novo presidente também terá de se trade exposure” [Importando polarização polí-
tica? As consequências eleitorais da crescen-
versão da relação entre classe social e polarizado, onde a Covid-19 exacer- distinguir das políticas de Obama, às te exposição do comércio], American Econo-
preferências políticas oferece um ter- bou as disparidades sociais. De acor- quais lealmente serviu como vice- mic Review, v.110, n.10, Nashville, out. 2020.
reno fértil para um ressurgimento do do com o Ministério do Trabalho, os -presidente e que levaram ao surgi- 7   “ National exit polls: How different groups vo-
ted” [Pesquisas de boca de urna nacionais:
trumpismo sem Trump. Na ausência Estados Unidos atravessam atual- mento de Trump e de seu movimen- como os diferentes grupos votaram], The New
de uma mudança radical de curso mente a crise econômica mais desi- to. Para isso, precisaria abandonar o York Times, nov. 2020. Disponível em: www.
dos democratas, os mais pobres po- gual de sua história, com o desenvol- centrismo cauteloso que marcou to- nytimes.com.
8   Heather Long et al., “The covid-19 recession is
deriam continuar a se voltar para os vimento do home office claramente da a sua carreira, operando, como the most unequal in modern US History” [A
republicanos, que têm uma lista de favorecendo os mais qualificados. No seu partido, uma virada radical. recessão provocada pela Covid-19 é a mais
bodes expiatórios para explicar seus auge da crise, a taxa de destruição de Que forma essa virada poderia as- desigual da história moderna dos Estados
Unidos], The Washington Post, 30 set. 2020.
problemas: imigrantes, negros, es- empregos de baixa remuneração era sumir? Uma estratégia popular con- 9   “Joe adormecido”, um dos apelidos que Trump
trangeiros, as “elites”... oito vezes maior que a de empregos sistiria em defender um imposto so- deu a seu oponente democrata.
8 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

PENSAR A CIDADE QUE QUEREMOS É PENSAR A SOCIEDADE QUE QUEREMOS

Periferias de São Paulo:


conjuntura e pós-pandemia
O Brasil entrará em 2021 com aproximadamente 180 mil mortes ocasionadas pela Covid-19, a maioria nas periferias.
Até novembro de 2020, entre 15 mil e 20 mil pessoas haviam morrido por causa da doença nas periferias paulistanas.
Há um evidente entrelaçamento entre cidade, sociedade e pandemia. Pensar a cidade que queremos levando em conta
o caos em que estamos é o desafio imediato que se coloca para os setores progressistas da sociedade e para
moradoras e moradores das periferias

POR TIARAJU PABLO D’ANDREA*

AS CONDIÇÕES DE namente. Entrelaçadas com esses vida, vide o número de abstenções, A letalidade da Covid-19 foi um
PRODUÇÃO DE UMA TRAGÉDIA1 processos estão as reformas traba- brancos e nulos nas últimas eleições. dos pontos de encontro das decisões
Para compreender a aterradora lhista e da Previdência, aprovadas em Antes da chegada do coronavírus, conjunturais tomadas pelos gover-
quantidade de vítimas do novo coro- um contexto pré-pandemia. Essas re- uma crise social já se apresentava. nos recentes com os problemas his-
navírus é necessário dar um passo formas fragilizaram ainda mais os Esta foi resultado de uma série de de- tóricos e estruturais de nossa socie-
atrás no tempo. No momento ime- direitos sociais, incidindo direta- cisões políticas, tais como o desmon- dade. Nesse âmbito, cabe destacar
diatamente anterior à chegada do ví- mente na capacidade da população te do SUS; o desmonte da assistência que a dimensão da tragédia expressa
rus ao Brasil, pelo menos quatro cri- de se proteger durante a pandemia. social; a instituição da PEC 95, que também as dificuldades organizati-
ses estavam postas: econômica, A crise política se verifica desde o limita os gastos em saúde e educa- vas da classe trabalhadora atual-
política, social e sanitária. Essas cri- começo da Operação Lava Jato, pas- ção; a dispensa de 11 mil médicos mente, ainda na ressaca de diversas
ses foram desencadeadas por uma sando pelo golpe contra Dilma Rous- cubanos, entre outras. Todas essas derrotas. Se estivesse mais bem or-
série de decisões políticas e tiveram seff e chegando aos dias atuais. A es- medidas agravaram a situação dos 14 ganizada, teria maior capacidade de
por desdobramento a explosão do calada autoritária capitaneada pelo milhões de pessoas que vivem na ex- pressão sobre os governos.
.

número de mortes. atual presidente ataca de maneira trema pobreza. Se analisada a dimensão territo-
Sobre a crise econômica, cabe res- aberta o mínimo de democracia e Por fim, uma crise sanitária já es- rial do espraiamento do coronavírus
saltar que já há alguns anos se verifi- institucionalidade construído por tava em curso, expressa nos mais de na cidade de São Paulo, conclui-se fa-
ca no país um processo de desindus- gerações de lutadoras e lutadores. 30 milhões de pessoas que sobrevi- cilmente que foi nas periferias onde
trialização e desmonte da sociedade Dentro dos paradoxos da democracia vem sem água encanada e nos mi- ocorreu o maior número de mortes.
salarial. O número de trabalhadores burguesa brasileira, está o fato de a lhões que vivem em favelas; nas defi- Se havia ainda algum véu que dificul-
informais e de desempregados sobe a população já não acreditar na possi- ciências alimentares e de saúde da tava a compreensão das desigualda-
cada ano e os salários caem paulati- bilidade de as eleições mudarem sua população. des sociais no urbano, a pandemia
serviu quase como um artifício me-
© Allan Cunha

todológico para o entendimento do


funcionamento das estruturas.

MAS, ENTÃO, O QUE É PERIFERIA?


Afinal, quando falamos de periferia,
do que estamos falando? 2 Na propo-
sição aqui defendida, periferia é um
vasto território composto pelos dis-
tritos localizados mais próximos dos
limites do município de São Paulo, a
norte, a sul, a leste e a oeste. Esse vas-
to território possui aproximadamen-
te 6,5 milhões de habitantes, com
uma forte presença negra e nordesti-
na, mas também composta por bran-
cos pobres, indígenas e imigrantes. A
diversidade de heranças culturais é
uma de suas marcas distintivas. No
entanto, no âmbito econômico, para
além de alguma diversidade de ren-
da, a imensa maioria da população
moradora das periferias vende sua
força de trabalho, sendo o local de
moradia da classe trabalhadora bra-
sileira. Estamos falando de garis, pe-
dreiros, porteiros, babás, emprega-
das domésticas, funcionários
públicos, estagiários, vendedores de
lojas, profissionais do telemarketing,
Periferias foram as áreas das cidades que mais sofreram com a Covid-19. Comunidade Souza Ramos, São Paulo motoristas de aplicativos, entrega-
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9

dores, motoboys, operários, peque- seus defensores nas fileiras liberais e, Outra questão premente na vida fundamentalmente a população ne-
nos comerciantes, ambulantes, fei- em um país como o Brasil, onde a de moradoras e moradores das peri- gra, está submetida a diversos geno-
rantes e ainda um sem-fim de maior parte da população vive na po- ferias é a ausência de árvores, par- cídios: o genocídio da bala, o genocí-
ocupações precarizadas. Há tam- breza, ainda não é possível prescindir ques e áreas verdes, fato que incide dio da fome e o genocídio da Covid-19.
bém uma grande parcela desempre- desse agente. diretamente na qualidade de vida. Não por acaso, uma série de candida-
gada ou aposentada. Um dos paradoxos desse dilema, Dada a necessidade de moradias e turas coletivas negras e de periferias
Historicamente, periferias e fa- que nos ajuda a imaginar o futuro, equipamentos públicos, os espaços disputou cargos à vereança nas últi-
velas são os territórios onde se apre- ocorreu no combate à pandemia: tra- periféricos foram sendo disputados e mas eleições. Se a presença no Estado
sentam de maneira mais violenta as ta-se da formação de muitas redes de ocupados palmo a palmo. A praça e a não resolverá tudo, abandonar essa
distintas opressões que embasam a solidariedade nas periferias e favelas. área verde foram deixadas para se- arena de disputa é conceder mais um
estrutura social brasileira: patriar- Essas redes foram protagonizadas gundo plano. O bem viver passa pela espaço para os setores reacionários
cal, na qual as mulheres pobres e por times de futebol de várzea, gru- possibilidade de ter um parque equi- da sociedade.
negras são os maiores alvos; escra- pos de samba, movimento hip-hop, pado perto de casa para levar as
vocrata, expressa no racismo estru- igrejas católicas, igrejas evangélicas, crianças para correr e onde jovens e UMA NOVA CIDADE,
tural e nas relações de trabalho e centros de umbanda, centros espíri- idosos possam se socializar. UMA NOVA SOCIEDADE
acumulação que fundamentam o al- tas, torcidas organizadas, associa- A sociedade que queremos só existirá
to grau de exploração do capitalis- ções de moradores, estudantes, esco- por meio de mudanças estruturais.
mo brasileiro; e latifundiária, uma las, creches, movimentos de moradia, Quebradas unidas Nela não existirá capitalismo, pa-
vez que periferia também se cir- movimentos de saúde, movimento podem se transformar triarcado, racismo, e cada ser huma-
cunscreve no debate de propriedade sem-terra, coletivos culturais, co- no poderá desenvolver livremente
ou não da terra. Como já exposto, a merciantes e mais um sem-fim de or-
em uma força capaz de suas potencialidades. A organização
esses elementos estruturais agre- ganizações. Por meio delas foi possí- incidir no atual cenário da população nos territórios faz parte
gam-se alguns elementos conjuntu- vel distribuir máscaras, insumos, político brasileiro desse processo de mudanças. Candi-
rais: a pandemia, o desmonte da so- cestas básicas e informações. Se não daturas coletivas e redes de solidarie-
ciedade salarial e a destruição das fossem essas redes, o impacto da Co- dade são algumas das experiências
políticas públicas. Agindo a partir vid-19 teria sido muito maior. No en- Fazem-se necessárias também políticas que ora ocorrem nas perife-
das periferias, como seria possível tanto, não se pode prescindir da luta políticas públicas de emprego e ren- rias paulistanas e vislumbram futu-
reverter esse cenário? por um posto de saúde que tenha mé- da. O desemprego e os baixos salá- ros. Ambas têm em seu cerne o forta-
dicos e remédios, de um hospital que rios, somados à crise econômica pro- lecimento dos laços de solidariedade
AS PERIFERIAS DE SÃO PAULO atenda rápido e de uma escola educa- funda que se acelerou no contexto e de afeto e as relações de vizinhan-
ENQUANTO EXPRESSÃO DIALÉTICA dora e criativa. Nessa relação dialéti- pandêmico, devem ser combatidos ça. Essas sujeitas e sujeitos periféricos
DO CAOS E DA POTÊNCIA ca, as redes de solidariedade como com intervenção estatal. Nesse caso, nos apresentam pistas de caminhos a
Entre diversidades e semelhanças, o representantes da população organi- a mão invisível do mercado só preju- serem trilhados: comunas, quilom-
.

partilhar do território pode ser o pon- zada não têm condições nem recur- dica quem já tem menos possibilida- bos, quebradas, noção do público,
to de unidade de uma população de sos para substituir o Estado. Contu- des. Não se pode esquecer que a fome produção do comum em comum.
determinada quebrada. Quebradas do, como já apontado, o Estado deve voltou e que o custo dos alimentos Pensar a cidade que queremos é pen-
unidas, respeitando suas particulari- servir aos anseios e às necessidades tem subido de maneira absurda. sar a sociedade que queremos. Mais
dades e enfatizando suas dores e delí- da população. Outro debate urgente a ser avan- do que pensar, temos de nos dar o di-
cias em comum, podem se transfor- Nesse âmbito, cabe destacar que a çado no município se refere ao racis- reito de imaginar e de sonhar o mun-
mar em uma força capaz de incidir lógica operada pelos gestores do mu- mo estrutural. Há uma evidente ho- do que gostaríamos de habitar. No
no atual cenário político brasileiro. nicípio de São Paulo nos últimos anos mologia entre raça, classe e território entanto, para a realização de nossos
No entanto, como pensar essa or- tem sido a da dilapidação do patri- no urbano. Quanto mais distante se sonhos, serão necessárias muitas lu-
ganização a partir do território? Em mônio público e a de um acentuado localiza o distrito em relação ao qua- tas e mobilizações. 
princípio, um bom exercício de ima- processo de privatização.4 Esse pro- drante sudoeste, mais aumentam os
ginação nos conduziria a pensar para cesso desmontou os sistemas de saú- índices de pobreza e a presença da *Tiaraju Pablo D’Andrea  é músico, mora-
além de algumas dicotomias, ou pos- de e assistência social no município, população negra. Por mais que algu- dor da Zona Leste de São Paulo, professor
sibilitar sínteses entre elas. A primei- potencializando os danos causados mas dinâmicas se produzam e se re- da Universidade Federal de São Paulo
ra dicotomia é aquela que opõe a tra- pela pandemia. Nesse âmbito, uma produzam por meio de estruturas (Unifesp) e coordenador do Centro de Es-
dição leninista e sua ênfase na das pautas é a necessária reversão históricas e econômicas profundas, o tudos Periféricos (CEP).
tomada do poder do Estado e a tradi- das políticas neoliberais. município pode, por meio de políti-
ção autonomista, baseada funda- Outro tema que historicamente cas públicas, contribuir para a cons- 1   P ara uma análise mais aprofundada das peri-
mentalmente na auto-organização define as desigualdades territoriais é trução de uma cidade antirracista. ferias no contexto da pandemia, sugiro a leitu-
ra do livro 40 ideias de periferia , disponível
no território. Estantes de bibliogra- o relacionado à segregação socioes- Uma das primeiras medidas seria em: www.dandaraeditora.com.br.
fias se debruçaram sobre esses dile- pacial. A distância obriga milhões de o fortalecimento e a consolidação da 2   Para uma melhor compreensão da proposta
mas e não temos aqui condições de moradores das periferias a desloca- Secretaria da Igualdade Racial na de definição territorial de periferia defendida e
utilizada neste texto, sugere-se a leitura deste
reproduzi-los no todo. Há alguns mentos diários em transportes públi- Prefeitura de São Paulo, sucateada artigo de Tiaraju D’Andrea: “Contribuições
anos, esse debate voltou a ganhar cos precários. Essa diáspora cotidia- nas últimas gestões municipais. Ou- para a definição dos conceitos periferia e su-
centralidade nos movimentos sociais na humilha e incide diretamente nos tra ação fundamental é a garantia da jeitas e sujeitos periféricos”, Revista Novos
Estudos Cebrap, ed.116, v.39, jan.-abr. 2020.
por meio da antinomia projeto popu- anos de vida da população. Não foi presença de negras e negros em car- 3   A pesquisa “Agenda Propositiva das Periferias”
lar × poder popular. Em pesquisa re- por acaso que um dos principais ve- gos públicos. Uma educação antirra- foi composta por uma equipe de 31 pessoas,
cente realizada pelo Centro de Estu- tores de disseminação do vírus foi o cista nas escolas também é uma pau- entre pesquisadores, professores e estudan-
tes, todes moradores das periferias. Para a
dos Periféricos3 e pela Fundação Rosa transporte público. As duas princi- ta fundamental, ensinando história pesquisa foram entrevistados ao redor de tre-
Luxemburgo, as propostas elencadas pais formas de reversão dessa ques- africana e cultura afro-brasileira, zentos moradores das periferias, resultando
buscaram dar conta das possibilida- tão seriam altos investimentos em promovendo os direitos humanos e a em uma agenda com mais de cinquenta pro-
postas para dez eixos temáticos distintos. Os
des existentes nos dois polos aparen- corredores de ônibus e linhas de me- diversidade. resultados parciais da pesquisa estão no site
temente opostos: uma sociedade civil trô, aumentando quantitativa e qua- Cabe lembrar ainda que os apara- do Le Monde Diplomatique Brasil :diplomati-
forte e organizada não requer neces- litativamente as opções de desloca- tos repressores do Estado seguem que.org.br/agenda-propositiva-das-periferias/.
4   Sobre a política de privatizações operada por
sariamente um Estado fraco, e vice- mento, e a criação de múltiplas operando sob a lógica da intervenção João Doria e Bruno Covas à frente da prefeitu-
-versa. O que se pretende é um Estado centralidades com postos de traba- e da ocupação das periferias. No qua- ra, ver o artigo de Patrícia Laczynski e Gusta-
que funcione com base nos anseios lho nas periferias, evitando os deslo- drante sudoeste, a lógica é a da guar- vo Prieto, “São Paulo à venda: ultraneolibera-
lismo urbano, privatização e acumulação de
da população, e não que a oprima. O camentos para o centro expandido da do patrimônio e das pessoas. A po- capital (2017-2020)”, GEOUSP Espaço e
discurso do Estado mínimo já tem ou para o quadrante sudoeste. pulação moradora das periferias, Tempo (Online), v.24, n.2, p.243-261, 2020.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

GOVERNOS LOCAIS NÃO ESTÃO PREPARADOS

Emergência climática bre Mudanças Climáticas (IPCC, na


sigla em inglês) indicam que as ativi-
dades humanas já causaram um au-

e o futuro das cidades


mento médio da temperatura global
de cerca de 1 °C, comparando-se com
os níveis pré-industriais.1 Os impac-
tos são perceptíveis, com a alteração
de ecossistemas oceânicos e terres-
tres, maior frequência de eventos cli-
Tempestades, ciclones e outros eventos meteorológicos extremos têm causado enormes máticos e meteorológicos extremos e
prejuízos às vidas e à economia urbana. São muitas as consequências, e não se pode elevação do nível do mar.
O quadro atual, que tende a se
mais dizer, como anos atrás, que as mudanças climáticas são uma ameaça silenciosa. agravar, é de que a humanidade con-
São, ao contrário, uma ruidosa realidade do tempo presente viverá com uma estranha combina-
ção de estiagens e chuvas intensas,
motivada por regimes hídricos irre-
POR HENRIQUE BOTELHO FROTA* gulares. Fenômenos como El Niño e
La Niña serão ainda mais frequentes.
Processos de desertificação afetarão

“P
ensar globalmente e agir tuições locais, das empresas e dos vos, de políticas de proteção ambiental mais regiões e abalarão a produção de
localmente.” Essa frase, grupos da sociedade civil. de grande escala, de mudanças nos alimentos. A elevação do nível do mar
que circula livremente en- Já não se pode dizer que a ideia é marcos regulatórios na legislação na- levará a migrações forçadas e ao apa-
tre grupos de acadêmicos, nova. São no mínimo trinta anos cional, entre outras medidas que são recimento de refugiados do clima. Tu-
ativistas, servidores públicos e tam- desde que começou a ser veiculada. de competência dos poderes nacio- do isso e mais um pouco acarretando
bém entre a iniciativa privada, tem Chegou a ser anunciada como a gran- nais. No entanto, é uma ilusão pensar consequências concretas nos territó-
influenciado diferentes áreas há de máxima das questões socioam- que a resposta virá unicamente desse rios, causando danos às pessoas e
anos, de teorias sociológicas a agên- bientais para o século XXI por vários lugar, ou que virá de um só lugar. mais acentuadamente aos segmentos
cias de publicidade e propaganda. especialistas. Entretanto, sua reali- Uma crise de tão grandes propor- vulneráveis de nossa população.
Seu berço vem dos movimentos so- zação prática e aplicação no âmbito ções exige uma metamorfose na geo- E, se ultrapassamos a marca de
cioambientais e da sociologia da glo- das políticas públicas está bem dis- política global para reconhecer que mais da metade da população mun-
balização. A ideia por trás dela é de tante do ideal. existem outros atores que necessitam dial vivendo em cidades – mais de
que as escalas global e local não se Quando se fala em mudanças cli- de espaço na mesa. A resposta estará 85% no caso brasileiro –, é aí que
excluem mutuamente, estando, pelo máticas, um fenômeno multifaceta- no esforço articulado de todos os se- muitos dos efeitos das mudanças do
.

contrário, imbricadas. O local é um do de proporções mundiais e conse- tores da sociedade e dos poderes pú- clima serão sentidos e precisam ser
aspecto do global, com ele interagin- quências tão profundas, ainda blicos. As cidades e os grupos organi- encarados de forma responsável.
do de forma dinâmica. prepondera uma visão de que cabe zados da sociedade civil não podem As cidades têm enfrentado maio-
A Agenda 21, conhecido documen- aos Estados nacionais e aos organis- mais ficar nos espaços marginais de res problemas de abastecimento hí-
to entre os resultantes da Conferência mos multilaterais a responsabilidade decisão, bradando para serem escu- drico gerados pela redução dos níveis
das Nações Unidas sobre Meio Am- pela mitigação de impactos e pelas tados. Até mesmo porque são eles dos reservatórios e sofrem com ainda
biente e Desenvolvimento – RIO 92, é ações de redução da emissão de gases que, em seus territórios, encontram- mais inundações e alagamentos de-
um dos corolários desse pensamento. de efeito estufa. O debate não rara- -se face a face com as consequências correntes de chuvas intensas combi-
Mais do que uma tentativa de integrar mente é internacionalizado e travado da crise, tendo de lidar com eventos nadas com altos níveis de impermea-
diferentes temas, a Agenda 21 repre- em arenas nas quais os governos dos climáticos extremos cada vez mais bilização do solo urbano. A qualidade
sentou um chamado público para a países são os protagonistas, com frequentes. do ar também vem sendo afetada,
ação coordenada entre as distintas es- pouca ou nenhuma voz para gover- Há tempos que as mudanças do causando aumento de doenças respi-
calas geográficas e organizacionais. nos locais ou sociedade civil. clima não são mais assunto do futu- ratórias na população. Cidades lito-
Reconhece que a mudança necessária É bem verdade que muitas das ini- ro. Elas estão presentes e intensifi- râneas já sofrem com a elevação dos
não pode simplesmente depender das ciativas necessárias para enfrentar a cam-se, com consequências diretas níveis do mar e a erosão costeira, sen-
políticas dos Estados nacionais, mas crise socioambiental e climática de- nas cidades. do relativamente alta a probabilidade
da articulação destas com iniciativas pendem de medidas macroeconômi- Estudos científicos referendados de perderem parte de seus territórios
dos poderes subnacionais, das insti- cas, de regulação de setores produti- pelo Painel Intergovernamental so- com o avanço das águas. Tempesta-
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11

ticas. Essa participação deve dar


© Gilberto Olimpio/Unsplash

atenção especial às propostas que


partem das necessidades das mulhe-
res, indígenas, pessoas negras, mi-
grantes, pessoas com deficiência,
crianças, jovens e pobres. A constru-
ção de sociedades resilientes ao cli-
ma começa com a compreensão dos
desafios enfrentados pelas comuni-
dades vulneráveis.
Por outro lado, mais do que lidar
com os efeitos em seus territórios, as
cidades precisam reconhecer sua
responsabilidade como causadoras
da crise. De acordo com especialistas
do World Resources Institute (WRI),
elas consomem 65% da energia pro-
duzida globalmente e com tendên-
cias de aumento, sendo responsáveis
por 70% das emissões de gases de
efeito estufa na atmosfera relaciona-
dos à energia.
Criança de bicicleta aproveita a avenida Paulista aberta para pessoas e fechada para carros aos domingos As cidades também geram resí-
duos em excesso e, no caso brasileiro,
des, ciclones e outros eventos meteo- neira no enfrentamento das mudan- as comunidades afetadas pelas con- os destinam de forma inadequada. A
rológicos extremos também têm cau- ças do clima. No entanto, o modelo de sequências das mudanças climáti- insuficiência ou total ausência de
sado enormes prejuízos às vidas e à urbanização tem caminhado no sen- cas, como secas, inundações, desli- uma política de separação de reciclá-
economia urbana. São muitas as con- tido contrário, com crescimento hori- zamentos de terra e aumento do nível veis e orgânicos e a consequente des-
sequências, e não se pode mais dizer, zontal do tecido urbano sem infraes- do mar, seguindo os padrões de direi- tinação incorreta fazem que um volu-
como anos atrás, que as mudanças trutura adequada e avançando sobre tos humanos de moradia, serviços me gigantesco de resíduos seja levado
climáticas são uma ameaça silencio- territórios que deveriam ser conser- básicos, direitos dos trabalhadores, e a aterros, onde sua decomposição
sa. São, ao contrário, uma ruidosa vados. Sobretudo, trata-se de uma ló- assim por diante. produzirá mais gases de efeito estufa.
realidade do tempo presente. gica desigual, excludente e injusta, Paralelamente, as cidades devem Outro fator relevante que contribui
.

No entanto, apesar dos evidentes que não possibilita alternativas ade- reconhecer que a crise do clima deri- para o agravamento das mudanças do
impactos, os governos locais estão quadas a grande parte da população. va de um modelo de produção e con- clima é o modelo de transporte basea-
atrasados em assumir sua responsa- Outro componente que deve ne- sumo que acirra as desigualdades so- do preponderantemente em combus-
bilidade para a mitigação e a adapta- cessariamente ser considerado pelos ciais e espaciais. É preciso romper tíveis fósseis e no automóvel indivi-
ção. No Brasil, na esteira do Plano governos locais é a efetivação da com esse ciclo e evitar que as respos- dual. Parte significativa da poluição
Nacional de Adaptação à Mudança função socioambiental da terra, da tas públicas excluam ainda mais a gerada nas cidades advém do sistema
do Clima, instituído pela Portaria n. propriedade e da cidade, elemento população de baixa renda, crimina- de mobilidade, ainda pouco afeito a
150, de 10 de maio de 2016, caberia essencial para garantir uma distri- lizando-a ou promovendo uma gen- tecnologias de carbono zero, ao trans-
aos municípios elaborar e colocar em buição mais equitativa dos benefí- trificação por motivação ambiental porte coletivo e à mobilidade ativa.
prática planos locais de adaptação. cios de qualquer sistema econômico, nos territórios. É preciso admitir que as cidades
Se as políticas do governo federal assim como uma abordagem mais As chamadas “políticas verdes” são culpadas tanto quanto vítimas e,
nessa área sofreram fortes retroces- equilibrada e sustentável do desen- não podem ser um produto de luxo nesse sentido, investir fortemente em
sos nos anos recentes, em muitos volvimento. Envolve também garan- destinado apenas às camadas mais mudanças de paradigmas com rela-
municípios elas nem sequer existem. tir segurança de posse, direito ao abastadas dos centros urbanos. Jar- ção a energias limpas, economias de
Igualmente, salvo raras exceções, território e à moradia adequada, ser- dins verticais em fachadas de pré- zero carbono e investimentos verdes,
os governos locais não estão suficien- viços básicos e infraestrutura em to- dios, comumente vistos em áreas va- mas sem perder de vista que essas
temente preparados para responder a dos os tipos de assentamentos, tanto lorizadas, contribuem muito menos transformações não podem se desco-
eventos danosos. O ordenamento ter- formais quanto informais. Isso não para a captura de carbono do que a lar de uma perspectiva de justiça e
ritorial tem sido mais fator de exclu- significa convalidar situações de ampliação de áreas verdes nas peri- equidade social, racial e de gênero,
são e injustiças socioambientais do vulnerabilidade socioambiental de ferias ou do que processos de urba- comprometida com a democracia e o
que de prevenção de desastres. assentamentos precários, e sim dar- nização e melhorias do ambiente em direito à cidade de todas as pessoas.
O futuro das cidades diante da -lhes tratamento justo e condizente assentamentos populares, essas, O futuro das cidades diante da
emergência climática requer a efeti- com os parâmetros de direitos hu- sim, medidas relevantes de enfrenta- emergência climática precisa ser um
vação de uma agenda imediata de mi- manos em processos de regulariza- mento à crise. futuro de direitos, de equidade e ci-
tigação e adaptação que se sustente ção urbanística e fundiária, com Por seu turno, os mecanismos de dadania inclusiva e de gestão coletiva
em soluções baseadas na natureza. melhorias da qualidade ambiental. exclusão não operam apenas com ba- dos bens comuns. 
De acordo com a Plataforma de Políti- A restauração ambiental em be- se em capacidades econômicas. Mar-
cas de Soluções Baseadas na Nature- nefício da sociedade em geral, priori- cadores de gênero, raça, etnia e ori- *Henrique Botelho Frota  é assessor da Pla-
za, da Universidade de Oxford, elas zando aqueles com maior necessida- gem, entre outros, fazem parte da taforma Global pelo Direito à Cidade e coorde-
podem ser entendidas como “ações de, é uma obrigação dos governos equação que impõe a parte da popu- nador executivo do Instituto Pólis, organização
que envolvem trabalhar e melhorar locais e uma oportunidade para as lação impactos desproporcionais da integrante do Observatório do Clima.
os hábitats naturais para o bem da so- comunidades criarem alternativas de crise climática. As políticas locais não
ciedade, por exemplo, por meio de trabalho sustentáveis e zelarem pelo podem se olvidar de uma perspectiva 1   No Relatório Especial Global Warming of
restauração, manejo e proteção”.2 meio ambiente em que vivem. que trate todas essas questões estru- 1.5°C (2018), o IPCC reconhece o aumento
de temperatura global em 1 °C e estabelece
Significa dizer que a natureza é parte Uma abordagem participativa sob turais de forma interseccional. cenários de impactos para um aumento de
importante da solução, o que soa ób- a liderança das comunidades tam- É fundamental a participação dos 1,5 °C e para um aumento de 2 °C.
vio, embora não seja uma prática nas bém deve ser adotada para abordar habitantes em todos os processos de 2   Nature-Based Solutions Policy Platform [Pla-
taforma política de soluções baseadas na na-
políticas públicas. Preservar ou res- perdas e danos, evitar despejos força- planejamento, inclusive os de mitiga- tureza], University of Oxford. Disponível em:
taurar ecossistemas auxilia sobrema- dos e realojar, como último recurso, ção dos efeitos das mudanças climá- https://www.nbspolicyplatform.org.
12 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

CONFINAMENTO ESVAZIA AS METRÓPOLES DE SEUS ATRATIVOS

A vingança do campo
Uma casa com jardim, protegida do estresse das grandes cidades... A ideia seduziu muitos habitantes urbanos
castigados pela crise sanitária. Entretanto, a qual “vingança do campo” assistimos atualmente?

POR BENOÎT BRÉVILLE*

I
mpossível não percebê-los no me-

© Angelo Brathot/CC
trô parisiense. “Alès, a capital onde
não falta ar”, “Sologne, ar”, “Seine-
-et-Marne, a verdadeira grande
aposta”...: desde maio, esses anún-
cios estão expostos nos corredores e
nas plataformas para incentivar os
usuários a mudar de vida, com parti-
cular insistência na linha 1, aquela
que leva ao bairro empresarial de La
Défense. Não faz mais de um ano, Pa-
ris enfrentava Londres, Nova York ou
Cingapura na competição global pa-
ra atrair sedes de empresas, grandes
eventos e trabalhadores de colarinho
branco com alto nível de escolarida-
de. Agora, as pequenas cidades rou-
bam seus executivos seniores nos
subterrâneos do metrô.
A Covid-19 passou por ali. Os con-
finamentos e as “medidas de conten-
.

ção” reduziram a nada tudo o que fa-


zia a atração das metrópoles:
restaurantes, cafés, concertos, mu-
seus, pequenos comércios, grandes
festivais, a intensidade das relações
sociais, a possibilidade de viajar fa-
cilmente saltando de um aeroporto
para uma estação... Em vez disso,
desde a pandemia, a vida tem se re-
duzido ali cada vez mais ao eterno
casa-trabalho-casa, e ninguém sabe
realmente quando isso vai acabar.
Por isso, algumas pessoas se pergun- Margens de lagoa em Sologne, região centro-norte da França, a 310km de Paris
tam: por que se amontoar em aparta-
mentos apertados e caros quando os mo fenômeno afetou a maioria das la peste negra (1347-1348), a corte Brice Couturier profetizou “uma es-
prazeres da vida urbana são proibi- metrópoles mundiais. Em Nova York, pontifícia fez as malas para fugir da pécie de êxodo rural às avessas”, que
dos? Elas não se sentiriam melhor em alguns bairros ricos de Manhattan doença. O mesmo foi feito em Paris “vai contribuir para o reequilíbrio
uma pequena cidade, ou no campo, perderam mais de 40% de sua popu- no século XIX para escapar da cólera. geográfico de nossas regiões, que ho-
confortavelmente instaladas em uma lação.2 Em Londres, o Financial Ti- Mas, com o coronavírus, os citadinos je sofrem com a desertificação do
grande habitação com jardim? O ho- mes evocou uma “cidade deserta”, que pegaram a chave do campo não campo”. O Le Figaro (10 abr.) garantiu
me office parece abrir essa possibili- onde todo dia parecia domingo: “Os queriam apenas se colocar ao abrigo: que “o desejo provinciano, muito
dade a muitos assalariados ou tercei- banqueiros desapareceram”, obser- também buscavam uma situação presente entre os habitantes das ci-
rizados qualificados, enquanto o vou o diário da cidade, “e novas tri- mais agradável para viver o dades, será reforçado e favorecerá o
comércio on-line, que coloca todos os bos, usando outros uniformes, apa- confinamento. home office”. Já o economista Olivier
produtos à mão, permite que as pes- receram: operários da construção Babeau previu uma “ruptura dos
soas vivam como um citadino, mas com suas calças pretas reforçadas “REFÚGIO DE PAZ principais equilíbrios do mercado
próximas da natureza. nos joelhos e suas botas empoeira- SITUADO NA FLORESTA” imobiliário”, em benefício das áreas
Muitos franceses tentaram isso das; guardas de segurança com cole- A mídia ficou cheia desses felizes exi- rurais, que vão tirar proveito de suas
durante o confinamento da primave- tes fluorescentes andando em frente lados, que exibiam um gosto reen- “muitas vantagens exclusivas: o pre-
ra. Assim que a medida foi anuncia- a saguões de entrada desertos; jovens contrado pela calma, pelo ar puro, ço, o ar, a tranquilidade e sobretudo o
da, em Paris, Lyon ou Lille, as estra- vestidos de lycra correndo ou peda- pela natureza, pelos cafés da manhã espaço, que se tornou tão precioso”.4
das e estações foram tomadas por lando em ruas desertas”.3 em família e para os quais o período Desde o fim do confinamento, são
moradores que desejavam retornar à “Fuja cedo, para longe, e demore tinha um sabor de férias. Não preci- incontáveis as reportagens sobre Ali-
sua segunda residência ou à casa de para voltar.” No século V antes da sou muito para que ela acabasse por ce e Ferdinand, ambos atores, que
sua família. Nada menos que 451 mil nossa era, Hipócrates já professava falar de uma “vingança do campo”, trocaram seu apartamento em Paris
parisienses teriam deixado a capital esse remédio contra as epidemias e, senão das “cidades médias” e da por uma casa na Normandia (France
em março-abril, ou seja, um quarto em consequência, aqueles que po- “França periférica”, após anos de do- 3, 9 nov.); Céline, especialista em
da população da cidade e quatro ve- diam poucas vezes se faziam de roga- minação esmagadora das metrópo- “animação de inteligência coletiva”,
zes mais que no ano anterior.1 O mes- dos. Quando Avignon foi atingida pe- les. Na France Culture, em 1º de abril, que também deixou a capital e agora
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13

trabalha de seu “refúgio de paz situa- ça periférica”, mas a um certo campo sas por residências próximas às governos têm definido a luta contra a
do na floresta” em Sologne ou em um próspero e atraente: o das segundas grandes cidades nunca foram tão expansão urbana como um objetivo
espaço de coworking em Vierzon, residências e das férias, no sul e no numerosas. E são unânimes: os mo- prioritário – na Lei de Solidariedade e
economizando dessa forma tempo oeste do país, ou na órbita das gran- radores das metrópoles sonham com Renovação Urbana (SRU), de dezem-
para “praticar a cerâmica e a fotogra- des cidades. Na verdade, todas as jardins e pequenas cidades. Mas, bro de 2000, na lei sobre o compro-
fia” (Le Monde, 24 jul.); Claire, profes- áreas rurais, todas as pequenas cida- quando se trata de moradia, geral- misso nacional com o meio ambien-
sora de ioga, que encontrou a felici- des não precisavam se vingar das me- mente há um longo caminho a per- te, conhecida como Grenelle 2, de
dade em sua segunda casa em trópoles. Algumas já iam muito bem correr. Todos precisam conciliar julho de 2010, naquela que se refere
Charente durante o confinamento e antes do coronavírus, com uma de- seus anseios com o mercado de tra- ao acesso à habitação e a um urbanis-
não quer mais ir embora (Marie Clai- mografia dinâmica e um mercado balho, a disponibilidade de serviços, mo renovado (Alur), de março de
re, 11 nov.); Charles e Magali, que não imobiliário florescente: Perche, Bre- a proximidade com a família e os 2014... A necessidade de “adensar” a
suportaram o retorno à cidade e se tanha, Dordonha, Landes, Vaucluse, amigos, a reputação das escolas, os área periurbana, e em particular os
estabeleceram definitivamente no Vexin, Gâtinais... Frequentemente preços dos imóveis etc. Portanto, os subúrbios das grandes cidades, está
Loiret (Le Figaro Magazine, 23 out.). E apresentada como homogênea, a desejos nem sempre se realizam. no cardápio de qualquer simpósio de
também há aqueles que, como Yann, “França periférica” é atravessada por Aliás, os moradores das cidades planejamento urbano que se preze.
optam pela “corresidencialidade” – grandes fraturas que um êxodo de não esperaram o coronavírus para Portanto, é surpreendente ouvir o
uma casa em Nièvre, para a natureza, moradores de cidades qualificados sonhar com o verde. Já em 1945, a atual ministro da Habitação, Julien
e um espaço em Paris, para os filhos apenas acentuaria. primeira vez em que o Instituto Na- Denormandie, alegrar-se com o de-
estudantes e reuniões profissionais cional de Estudos Demográficos sejo de um êxodo dos moradores das
(Le Parisien, 23 out.). A imprensa nor- (Ined) perguntou à população sobre cidades. “O período que acabamos
te-americana e a britânica produzem Todos precisam conci- seus desejos em matéria de moradia, de viver nos faz questionar o ordena-
exatamente os mesmos artigos, exce- liar seus anseios com o 56% dos parisienses (e 72% dos fran- mento do território, e o que constata-
to por seus protagonistas, chamados ceses) responderam que gostariam mos é um apetite muito forte por ter-
Kathlyn e Andrew, e que, em vez dis-
mercado de trabalho, a de viver em uma casa com jardim. “A ritórios que, em termos imobiliários,
so, planejam migrar para o Vale do disponibilidade de servi- maioria dos franceses gostaria de ter não seriam tão atraentes sem a cri-
Hudson ou Kent. ços, a proximidade com um terreno, cultivar seu jardim e ver se”, declarou em 14 de maio.9 “O ho-
Em poucos meses, as representa- a família e amigos sua casa despontar em meio a can- me office tem muito a ver com isso.
ções da geografia social francesa fo- teiros de flores e leguminosas, longe Hoje percebemos que novos modelos
ram invertidas. Quando, antes da da cidade, e só deles”, constataram sociais são possíveis.” O “modelo so-
pandemia, os jornalistas se interes- Além disso, a chegada de mora- os autores do estudo. cial”, que veria os trabalhadores de
savam pelo destino do “interior” ou dores ricos da cidade ao campo nem Desde então, toda pesquisa veio colarinho branco deixando as me-
do “campo”, era geralmente enfo- sempre é uma bênção. Claro, isso confirmar isso: a pequena proprieda- trópoles em grande escala para tra-
cando os aspectos mais miseráveis significa mais habitantes e, portan- de individual representa um ideal pa- balhar em suas casas em Perche ou
.

da sociedade, para evocar os “cole- to, mais clientes para comércios e ar- ra sete a oito franceses em cada dez. Vexin, produziria, no entanto, uma
tes amarelos”, o voto no partido Rea- tesãos, mais impostos locais, poten- Ao contrário das autoridades públi- expansão urbana considerável, que,
grupamento Nacional (Rassemble- ciais criações de empregos... Mas cas norte-americanas, que encoraja- ainda por cima, teria como resultado
ment Nacional, ex-Frente Nacional), ainda é necessário que os recém- ram o desenvolvimento de extensos uma maior dependência de carros e
a escassez de empregos, o fecha- -chegados consumam nas lojas da conjuntos nos subúrbios, os tomado- gigantes da internet, do Zoom à
mento de pequenos comércios, o de- região (e não on-line), que traba- res de decisão franceses por muito Amazon. Seria mesmo um “retorno à
saparecimento das estações, o preço lhem ali (e não para uma empresa tempo resistiram a essa tentação. No natureza”? 
do combustível, a monotonia das sediada em Paris), enfim, que se final da Segunda Guerra Mundial,
áreas residenciais, a ausência de ser- misturem com o tecido local e desis- não obstante as conclusões do Ined, *Benoît Bréville  é jornalista do Le Monde
viços públicos, a escassez de trans- tam de importar seus hábitos urba- eles privilegiaram a habitação coleti- Diplomatique.
portes coletivos... Esses problemas nos para o campo, de conceber o ru- va e os grandes conjuntos habitacio- 1   “ População presente no território antes e de-
desapareceram da mídia: tudo que ral como uma extensão, uma nais. “Devemos construir com rapi- pois do início do confinamento: resultados
sai das grandes cidades agora parece decoração de seu modo de vida cita- dez e muito para recompor o país e consolidados”, Instituto Nacional de Estatísti-
ca e Estudos Econômicos (Insee), 18 maio
se resumir a uma bucólica casa com dino. No entanto, como a geógrafa absorver o crescimento populacio- 2020. Disponível em: www.insee.fr.
jardim. Por outro lado, as metrópo- Greta Tommasi mostrou por meio do nal”; 8 o desejo de se destacar do regi- 2   Kevin Quealy, “The richest neighborhoods
les, que há um ano eram só criativi- caso da Dordonha, nem sempre é es- me de Vichy, fervoroso defensor da emptied out most as coronavirus hit New York
City” [Bairros ricos foram esvaziados enquan-
dade, inovação e inteligência, apare- se o caso: 6 antigos e novos habitantes ideologia de pavilhões, estava vivo e to coronavírus atingia Nova York], The New
cem essencialmente como algo muitas vezes têm dificuldade de se todos se lembravam do fiasco dos York Times, 15 maio 2020.
pouco atraente. misturar, não frequentam os mes- “conjuntos habitacionais defeituo- 3   Ben Hall e Daniel Thomas, “Everyday is like
Sunday in a desert City of London” [Todo dia
Essa reversão atesta uma incapa- mos lugares, não têm os mesmos cír- sos” do período entreguerras, aque- é como domingo na deserta Londres], Finan-
cidade de ver o país de outra forma culos de sociabilidade. A chegada de les casebres erguidos por incorpora- cial Times, Londres, 27 mar. 2020.
que não pelo prisma das classes do- uma população abastada também doras corruptas no meio dos campos 4   Olivier Babeau, “Le coronavirus prépare-t-il la
revanche des campagnes?” [O coronavírus
minantes. Se Charles e Magali fica- gera um fenômeno de “gentrificação e da lama e sem manutenção. Para prepara a vingança do campo?], FigaroVox,
ram felizes, o confinamento não foi rural”, que indexa os preços dos imó- centenas de milhares de “mal aloja- 24 mar. 2020. Disponível em: www.lefigaro.fr.
um prazer para todos nas pequenas veis com base nos salários das gran- dos”, o sonho de uma pequena pro- 5   C f. Salomé Berlioux, Nos campagnes suspen-
dues. La France périphérique face à la crise
cidades e no campo. Muitos residen- des cidades, impedindo que alguns priedade se transformara em um pe- [Nosso campo suspenso. A França periférica
tes continuaram a ter de ir até o tra- autóctones, em particular jovens, sadelo e foi preciso quase vinte anos diante da crise], Éditions de l’Observatoire,
balho; os agricultores ficaram sem consigam moradia. para reparar os danos. Paris, 2020.
6   Greta Tommasi, “La gentrification rurale, un
braços para colher seus produtos; os O êxodo tão anunciado não está Portanto, as autoridades há muito regard critique sur les évolutions des campag-
idosos ficaram ainda mais isolados; escrito, no entanto. É certo que os tempo enfatizam a habitação coleti- nes françaises” [A gentrificação rural, um
numerosas pequenas lojas já frágeis preços dos imóveis parisienses para- va. Elas só reabriram as comportas olhar crítico sobre os desenvolvimentos do
campo francês], GéoConfluences, 27 abr.
receberam o golpe de misericórdia, ram de subir desde março – depois do desenvolvimento de casas nos su- 2018. Disponível em: http://geoconfluences.
para não mencionar a dificuldade de de terem se multiplicado por quatro búrbios a partir da década de 1970, ens-lyon.fr.
hospitais mal equipados (ao contrá- em 25 anos7 –, enquanto disparam causando um desgaste progressivo 7   De 2.500 euros a 10.500 euros por metro
quadrado entre 1995 e 2020.
rio dos de Paris)...5 Em tais circuns- na região periférica da capital co- no espaço rural. Durante cinco déca- 8   A população francesa cresceu duas vezes
tâncias, possuir um jardim oferece nhecida como grande coroa, onde as das, os estudantes franceses apren- mais rápido entre 1946 e 1961 do que entre
pouco consolo. menores casas de condomínio de su- dem que o equivalente a um departa- 1870 e 1946.
9   “Julien Denormandie: ‘Eu quero revitalizar as
Além disso, os citadinos no exílio búrbio são vendidas em poucos dias. mento é concretado a cada sete a dez cidades médias!”, “L’Immo en clair”, SeLoger
não se juntam ao “campo” ou à “Fran- Em sites de classificados, as pesqui- anos. Por vinte anos, no entanto, os – Radio Immo – Le Parisien, 14 maio 2020.
14 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

TODAS IGUAIS, MAS UMAS MAIS IGUAIS QUE AS OUTRAS

As redes “feministas” das Esse modelo econômico inspirou


outras organizações, que tecem a teia
de um feminismo empresarial cada

maiores empresas cotadas


vez mais estruturado. A Journée de la
Femme Digitale (JFD, Jornada Femi-
nina Digital), que participa regular-
mente das conferências organizadas

na Bolsa de Paris
pelo WF, promove start-ups digitais.
São “novas heroínas”, nas palavras de
sua cofundadora Delphine Remy-
-Boutang, que conta com o apoio fi-
nanceiro de várias empresas do CAC
40, como a Total, a Orange e a L’Oréal,
Tão discreta quanto eficaz, a atuação de redes patronais permitiu a adoção em 2011 de além de empresas norte-americanas,
uma lei que impõe a quase paridade entre os gêneros nos conselhos de administração como a Google e a Microsoft. “Não
somos uma associação, mas um ne-
das grandes corporações francesas. No entanto, a influência das mulheres de negócios gócio lucrativo”, preocupa-se tam-
sobre o governo afasta as associações feministas, enquanto seu ativismo permite a bém ela em esclarecer.
multinacionais pouco preocupadas com os direitos trabalhistas dourar sua imagem Na defesa do acesso das mulheres
a cargos de liderança, o argumento
central é o de que a igualdade garan-
POR MAÏLYS KHIDER E TIMOTHÉE DE RAUGLAUDRE* tiria às empresas benefícios econômi-
cos, contribuindo de forma mais geral
para o crescimento. Segundo Boris

N
o dia 2 de dezembro de 2016, no va com apenas cerca de uma centena desse tipo. Assim, o país apresenta a Janicek, ex-executivo da L’Oréal e co-
Centro Internacional de Deau- dessas redes que defendem o acesso maior taxa de feminização nos con- presidente do Club XXIe Siècle, que
ville, Emmanuel Macron apre- das mulheres aos cargos mais eleva- selhos de administração das grandes promove a diversidade no mundo
sentava em inglês seu progra- dos,2 ao passo que hoje há mais de empresas, que passou de 8,5% em corporativo, esta tem um “valor eco-
ma para a igualdade entre mulheres e quinhentas delas no país, de acordo 2007 para 43,6% em 2019.5 nômico real”. Ele elogia, por exemplo,
homens. “Permitir que as mulheres com o Cercle InterElles.3 Esse clube, O feminismo conduzido pelas eli- a decisão do banco Goldman Sachs
tenham acesso à liderança nos negó- fundado em 2001 por executivas das tes não é novo: das sufragistas, que de, a partir de julho de 2020, não
cios ou na política é absolutamente companhias France Telecom, IBM em 1903 já lutavam pelo direito ao vo- acompanhar mais na Bolsa empresas
essencial.” Na plateia, uma maioria France, Schlumberger e GE Health- to feminino, à ex-ministra Simone que não tenham em seu conselho de
.

composta por mulheres de negócios e care, “possibilitou um intercâmbio Veil, passando pela jornalista e escri- administração pelo menos uma mu-
da vida política. Em onze anos de de boas práticas: ele oferece um es- tora Hubertine Auclert, ele fez parte lher e/ou uma pessoa “da diversida-
existência, era a primeira vez que o paço de compartilhamento para que de avanços importantes em termos de”. “Não se trata de altruísmo ou de
Women’s Forum for the Economy and as mulheres possam acessar posições de igualdade. “Na história do feminis- responsabilidade social corporativa”,
Society (WF, Fórum de Mulheres pa- de liderança, ao mesmo tempo que mo, sempre houve mulheres de classe garante. “A questão das mulheres está
ra a Economia e a Sociedade) tinha dão visibilidade às multinacionais”, alta”, observa Françoise Picq. Desde intimamente ligada à questão dos va-
como convidado um candidato à pre- explica Pochic. sempre, correntes diversas se opuse- lores produtivos. Em empresas cujas
sidência da França. Menos de três se- ram, e até se enfrentaram. “Já no sé- dirigentes são mulheres ou pessoas
manas depois, duas de suas dirigen- MONITORING, NETWORKING culo XIX, mulheres foram criticadas de origens diversas, houve uma valo-
tes assinaram o manifesto “Elles E MENTORING por serem burguesas interessadas em rização de 44% em quatro anos, con-
Marchent” [Mulheres em marcha], O primeiro feito desse discreto lobby usufruir dos privilégios de sua classe. tra 13% nas demais.”
apoiando a candidatura do ex-minis- foi a aprovação, em 2011, da Lei Co- Algumas desejavam ser independen- Grandes empresas de consulto-
tro da Economia. pé-Zimmermann. A nova legislação tes do movimento social. Não que- rias, como a EY e a McKinsey, abra-
Apelidado pela imprensa de “Da- francesa obriga as empresas priva- riam se aliar às franjas feministas dos çam essa tese, defendendo a ideia de
vos das Mulheres”, o WF conquistou das e públicas que tenham mais de sindicatos, que defendiam uma alian- que “a igualdade seria boa para o
influência considerável desde sua quinhentos funcionários permanen- ça com o socialismo. Mas, nessa épo- mercado e que o mercado seria bom
primeira edição, em 2005. Todo ano, tes e um volume de negócios de pelo ca, tratava-se de intelectuais, mulhe- para a igualdade”, explica Sophie Po-
o evento reúne uma miríade de orga- menos 50 milhões de euros a ter, en- res à margem, que escreviam ou se chic. A McKinsey tenta demonstrar is-
nizações e redes dedicadas à questão tre seus altos executivos, um míni- posicionavam contra a escravidão.” so anualmente, com seu estudo “Wo-
do acesso das mulheres a cargos de mo de 40% de homens (em conselhos Para evitar qualquer confusão men Matter” [As mulheres importam],
liderança na economia, seja no âmbi- majoritariamente femininos) ou de com organizações feministas ou publicado em parceria com o WF. São
to empresarial ou no poder público. mulheres (em conselhos majorita- sindicais “radicais”, Aude de Thuin recomendados métodos padroniza-
Esse “feminismo de mercado”, para riamente masculinos). Essa obriga- define o WF, da qual é fundadora, dos em escala global, tanto em ins-
usar a expressão da socióloga Sophie ção não abrange comitês executivos como um “empreendimento econô- tâncias privadas como públicas: mo-
Pochic,1 apareceu na França no início e de diretoria: essas instâncias, que mico, assim como Davos” (ler boxe). nitoring (acompanhamento de
dos anos 2000. Surgido do outro lado são as que detêm o real poder de de- Se em seus primórdios o encontro indicadores quantificados), networ-
do Atlântico na década de 1980, ele cisão, contavam em 2019 com apenas anual recorreu ao patrocínio de king (constituição de redes de mulhe-
foi importado para o país europeu 17,9% de mulheres.4 Aliás, a Engie é multinacionais (Engie, McKinsey, res em posições executivas), mento-
pelas filiais francesas de multinacio- atualmente a única empresa do CAC Sodexo e Renault, cujo ex-presidente ring (acompanhamento individual)
nais norte-americanas. “Nos Estados 40, o índice que reúne as quarenta Carlos Ghosn foi um dos primeiros etc. “Essa retórica promove medidas
Unidos, essa aliança é natural”, expli- maiores empresas cotadas na Bolsa apoiadores do fórum), em 2019 a individualizadas e seletivas para uma
ca Françoise Picq, historiadora, so- de Paris, chefiada por uma mulher: empresa organizadora do WF, a We- minoria de funcionárias ou de em-
cióloga do feminismo e ex-militante Catherine MacGregor, que assumirá fcos, registrou um volume de negó- presárias ‘com potencial’, ‘de talento’
do Movimento de Libertação das Mu- suas funções no início de 2021, suce- cios de 6,6 milhões de euros. Cabe ou ‘de excelência’, que são tratadas se-
lheres (MLF). “O sistema é capitalis- dendo a Isabelle Kocher. Mas a Fran- lembrar que o preço do ingresso é paradamente da massa de trabalha-
ta, busca-se dinheiro onde há. As ça continua sendo um dos poucos particularmente elevado: 3 mil a 4 doras comuns”, relata Sophie Pochic.
ações são realizadas por meio de ar- territórios – junto com a Noruega mil euros por dois ou três dias de Com a Lei Copé-Zimmermann, a
recadação de fundos ou por grandes desde 2003, a Itália desde 2011 e a Ca- conferências, multiplicados por mil atenção dada pelo poder público aos
fundações.” Em 2007, a França conta- lifórnia desde 2018 – a adotar cotas a 2 mil participantes. círculos de mulheres líderes só au-
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15

mentou. Mas essas redes triunfaram cia dessa ferramenta, apresentada Para se fazerem conhecer, as re- Oddo BHF Banque Privée, Engie,
realmente sob a presidência de Ma- pelo governo como “decisiva”, deve des de mulheres líderes contam com Google e EY, sem falar do banco pú-
cron. Vários membros de seu governo ser relativizada: “O índice mostra o poderosos contatos na mídia, que blico Bpifrance, representado por Pa-
foram convidados para o WF, como a número de mulheres entre os dez compartilham de sua sensibilidade trice Bégay. Em troca de seu financia-
ex-ministra do Trabalho Muriel Péni- maiores salários corporativos, a ob- política. Em troca, as grandes empre- mento ou envolvimento, essas
caud e a atual ministra delegada da tenção ou não de aumento salarial sas que as apoiam, parceiras e às ve- empresas conseguem que falem bem
Indústria, Agnès Pannier-Runacher, após o retorno da licença-maternida- zes anunciantes desses meios de co- delas, o que pode ser útil para desviar
além da cofundadora do partido Em de, a disparidade de remuneração em municação, compram uma vitrine a atenção de assuntos incômodos.
Marcha!, Astrid Panosyan. Em outu- grupos profissionais equivalentes feminista. Assim, o “Davos das Mu- Em 2019, em pleno caso Carlos
bro de 2019, Marlène Schiappa e Cé- etc. Na verdade, é uma síntese de in- lheres” utilizou as redes de mídia da Ghosn,7 um representante da Renault
dric O., então secretários de Estado, dicadores legais que já existiam”. comunicadora Anne Méaux (ler boxe) usou um café da manhã da premia-
respectivamente para a Igualdade Além disso, sindicatos e pesquisado- e as da agência Publicis.6 Todo ano, ção para declarar o apoio inabalável
entre Mulheres e Homens e para As- res criticaram o método de cálculo ele conta com uma elogiosa cobertu- da montadora e de seu presidente à
suntos Digitais, confiaram uma mis- das disparidades de remuneração. É ra de veículos como Le Figaro, Elle, causa das mulheres.
são à diretora-geral do WF, Chiara o caso da Confederação Geral do Tra- Challenges, Les Échos e La Tribune, Por sua vez, a revista Elle lançou o
Corazza. O relatório apresentado por balho (CGT), que em março de 2019 que são seus parceiros. Essa proximi- fórum Elle Active, que trata do lugar
ela em fevereiro de 2020, intitulado destacou, em um comunicado à im- dade pode dar origem a uma censura da mulher no mundo do trabalho.
“Les femmes au cœur de l’économie: prensa: “Alguns dos fatores estrutu- mais ou menos sutil. Um jornalista Durante a edição de 2019, convida-
la France pionnière du leadership au rais das disparidades de remunera- que trabalhou em um desses veículos dos como a presidente do Banco
féminin dans un monde en pleine ção não se enquadram no escopo do conta sobre uma conversa telefônica Central Europeu, Christine Lagarde,
transformation” [As mulheres no índice: as disparidades de tempo de entre um freelancer e um editor da e Jacques de Peretti, CEO da Axa
centro da economia: França, pioneira trabalho, as disparidades cumulati- redação: “Publicar um perfil de Anne France, puderam apresentar ao pú-
da liderança feminina em um mundo vas de carreira e a desvalorização de Méaux seria arriscado”, dizia este. blico sua visão do feminismo, ao la-
em transformação], baseia-se larga- empregos predominantemente femi- “Ela é muito poderosa. Conhece to- do de redes como Force Femmes, La-
mente no trabalho dos membros do ninos foram, no geral, eliminados”. dos os nossos anunciantes. Eu seria boratoire de l’Égalité, Financi’Elles e
comitê estratégico do WF: o círculo despedido se a criticasse.” InterElles. Perto dali, um estande da
“Mulheres e clima” é dirigido pelo L’Oréal Paris maquiava as partici-
BNP Paribas; “Mulheres e acesso à
Em 2018, 78% dos em- VITRINE PARA AS pantes para destacar a importância
saúde”, pela Axa; “Mulheres e inteli- pregados de meio perío- GRANDES EMPRESAS da aparência nas seleções de empre-
gência artificial”, pela Microsoft. “É do eram mulheres, e Nessa mesma redação, uma jovem go. Presente como observadora na
uma questão de justiça e equidade, quase uma em cada três jornalista escreveu um artigo sobre a edição 2019, Sophie Pochic destaca
mas também de desempenho econô- política social da L’Oréal, após uma que “esse tipo de evento, graças ao
mico: se mulheres e homens forem
mulheres tinha um em- funcionária fazer uma queixa por dis- patrocínio da marca, permite que
.

representados de maneira igual, 240 prego de meio período criminação em razão de sua gravidez. um jornal em dificuldades continue
milhões de empregos [no mundo] Representantes da marca, segunda existindo. Esse aspecto financeiro às
podem ser criados até 2025, e US$ 28 A equipe do governo Macron cer- maior anunciante do veículo, imedia- vezes é mais importante do que o
trilhões adicionados ao PIB”, afirma cou-se da expertise de líderes em- tamente se reuniram com as mais ele- conteúdo das discussões. Como o
o documento, que deveria subsidiar presariais e de altos executivos do vadas instâncias da redação para mo- evento é gratuito, ele ajuda a popula-
um projeto de lei sobre emancipação setor privado para redigir suas leis, dificar o artigo, que já estava on-line, rizar a causa dos empresários”.
econômica das mulheres, que está ignorando associações feministas além de publicar seu direito de res-
em suspenso. A maioria das 27 medi- tradicionais. “Não tivemos nenhum posta. Depois, a mídia só voltou a falar
das defendidas diz respeito ao acesso contato com Marlène Schiappa por da empresa de forma elogiosa. O gru- As preferências
à tecnologia e à ciência, ao estabele- um ano e meio”, lembra Caroline De po de cosméticos, financiador do WF, ideológicas dessas
cimento de cotas, ao acesso a patro- Haas, fundadora do coletivo #Nous- preocupa-se com sua imagem femi-
cínios ou à criação de bolsas de exce- Toutes [#TodasNós]. “Isso só mudou nista. Ele é parceiro do Conselho Con-
mulheres as levam a
lência. Há apenas duas menções à depois da nossa marcha [contra a sultivo para a Igualdade entre Mulhe- apoiar reformas que
igualdade salarial e um ponto reco- violência sexual e de gênero, em no- res e Homens, instituído em 2019 pelo prejudicam a grande
mendando a prorrogação da licença- vembro de 2019 (N.T.)], que reuniu G7 (então presidido pela França) com maioria de suas
-paternidade, medida colocada em 30 mil pessoas”. Marilyn Baldeck, o apoio de Marlène Schiappa. Essa co-
prática nesse meio-tempo, pois a li- delegada geral da Association Euro- nivência também é ilustrada por um
semelhantes
cença deve dobrar – de 14 para 28 péenne contre les Violences Faites apelo da direção da empresa ferroviá-
dias – a partir de 1º de julho de 2021. aux Femmes au Travail (AVFT, Asso- ria francesa SNCF aos jornalistas da FUNCIONÁRIOS CASTIGADOS
ciação Europeia contra a Violência redação na primavera de 2019. Em Se a feminização das esferas de po-
AFINIDADES ELETIVAS contra as Mulheres no Trabalho), la- pleno movimento social contra a re- der vai muito bem, na base da pirâ-
COM O “MACRONISMO” menta o desaparecimento dos “ca- forma que deveria abrir o transporte mide as coisas são diferentes: em
Essas afinidades eletivas entre as re- nais de comunicação com o poder de passageiros à concorrência, ela so- 2018, 78% dos empregados de meio
des do patronato feminino e o “ma- público desde 2017”. Marlène Schia- licitou um artigo exaltando sua políti- período eram mulheres, e quase
cronismo” ajudaram a marginalizar ppa assume essa ruptura com “asso- ca de igualdade entre mulheres e ho- uma em cada três mulheres tinha
os sindicatos de trabalhadores na ciações satélites do Partido Socialis- mens. Em contrapartida, passagens um emprego de meio período.8 Esse
questão da igualdade profissional. ta”, em suas palavras, esclarecendo grátis para os jornalistas. tipo de contrato predomina em pro-
Em 2018, o governo solicitou a exper- que os subsídios da AVFT foram Para essa mídia, a promoção de li- fissões altamente feminizadas do se-
tise de Sylvie Leyre, então diretora de mantidos: “É uma associação politi- deranças femininas tornou-se um te- tor de serviços (limpeza, restauran-
Recursos Humanos da Schneider zada, engajada com partidos de es- ma recorrente, bem como uma fonte tes, varejo, saúde etc.). Como corrigir
Electric. A ministra do Trabalho, Mu- querda. Eu não dou a caneta de meus de receitas. Há quatro anos, o prêmio essa política de igualdade profissio-
riel Pénicaud, pediu que ela definisse projetos de lei a pessoas que são opo- Business with Attitude [Negócios nal com dois pesos e duas medidas?
as modalidades de um software de sitoras do governo”, irrita-se quando com Atitude], organizado pela revis- Delphine Remy-Boutang considera o
avaliação das desigualdades sala- questionada a respeito. Marilyn Bal- ta Madame Figaro, premia empresá- empreendedorismo uma forma de
riais. Seu relatório deu origem ao Ín- deck defende-se, divertida: “Ao con- rias líderes de start-ups. Cerca de cem sair da precariedade: “Muitas mu-
dice de Igualdade Profissional, que trário do que pensa a ministra, a inscrições são examinadas pela reda- lheres ocupam funções que vão de-
foi integrado à Lei da Liberdade de AVFT e eu nunca fomos próximas do ção e por um júri, em grande parte saparecer: operadoras de caixa, por
Escolha do seu Futuro Profissional, Partido Socialista ou de qualquer formado por executivos de grandes exemplo. Elas precisam de ajuda pa-
de 2018. Para Sophie Pochic, a eficá- outro partido”. empresas – este ano: La Poste, Accor, ra fazer sua transformação digital”.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

Essa também é a abordagem da Insubmissa) voltado a “regulamentar


Force Femmes. A associação, criada a terceirização” no setor da limpeza, PROGRESSISTAS, MAS COM MODERAÇÃO...
em 2005 em torno das mesmas figu- que depois foi retirado. Na verdade, se
ras que o WF, hoje é presidida por An-
ne Méaux e por Véronique Morali.
o deputado de esquerda acabou deci-
dindo por retirar o texto no final de A fundadora do Women’s Forum for the Economy and Society (WF, Fórum de Mulhe-
res para a Economia e a Sociedade), Aude de Thuin, fez da promoção de mulheres
líderes corporativas sua causa pessoal e de sua vida um exemplo de sucesso. Em um
Com o apoio financeiro de grandes maio de 2020, foi porque o considerou
livro publicado em 2012, Femmes, si vous osiez [Mulheres, se vocês ousassem] (Ro-
empresas, os voluntários da associa- “esvaziado de seu conteúdo” pela
bert Laffont), a mulher de negócios conta ter sido uma criança “com uma natureza
ção ajudam mulheres desempregadas maioria parlamentar. extravagante”. Verdadeira “moleca”, ela teria desesperado sua mãe, que gostaria de
de 45 anos ou mais a encontrar um vê-la no funcionalismo. Mas o empreendedorismo era “realmente a história de [sua]
emprego ou a abrir sua própria em- DA HEWLETT-PACKARD vida!”, escreve a mulher que procurou a psicanálise para curar as feridas causadas
presa. “As burguesas muitas vezes se AO MINISTÉRIO pela falta de amor da mãe. Essa prática a fez concluir que “a autoconfiança é crucial
valeram de sua posição dominante Em julho de 2020, Marlène Schiappa para vencer na vida”.
para ajudar outras mulheres”, analisa cedeu seu lugar a Élisabeth Moreno, No início dos anos 2000, Aude de Thuin ganhou destaque pela criação de revistas
Françoise Picq. “Entre a filantropia e ministra delegada da Igualdade entre e feiras dedicadas à jardinagem e ao lazer criativo. Sua feira Création et Savoir-Faire
certo tipo de ativismo feminista, a li- Mulheres e Homens. A ex-presidente [Criação e Know-How], realizada na Porte de Versailles, em Paris, tinha uma “creche
nha geralmente é tênue.” De maneira da Lenovo França, então Hewlett- para homens, com um bar muito chique, serviço de engraxamento de sapatos, alfaiate
e televisão exibindo jogos de futebol e rúgbi”. Na época, apesar de suas conquistas
mais direta, Marion Rabier, professo- -Packard África, é uma “amiga do Wo-
– e de sua disposição para pagar um ingresso caro –, a empresária teve seu acesso
ra de Ciência Política da Universidade men’s Forum”, segundo Chiara Cora-
ao Fórum Econômico Mundial de Davos negado, segundo ela por ser mulher e dirigen-
de Mulhouse, afirma: “Eu não acredi- zza: “Vou tentar ajudá-la o máximo te de uma pequena ou média empresa (PME): “Na época, Davos recebia apenas 4%
to que a feminização das esferas do- que puder”. Ela também foi membro de mulheres”, conta. “Eu achava isso totalmente injusto.” Em 2003, o ex-diretor-geral
minantes seja mecanicamente uma do Club XXIe Siècle, participou da JFD do fórum, Claude Smadja, ajudou-a a criar um novo fórum econômico mundial, dedica-
alavanca para a igualdade profissio- e da Women in Africa, plataforma fun- do às “mulheres influentes”. A primeira edição foi realizada em 2005. Encontrando
nal”. Para ilustrar esse ponto, ela con- dada em 2015 por Aude de Thuin. “Te- “palestrantes” de todo o mundo em suas frequentes viagens para Washington (sobre-
ta sobre uma frequentadora do WF, nho muita esperança em Élisabeth tudo para assistir às conferências da fundação de Hillary Clinton), ela cercou-se de
que conheceu no decorrer de seu tra- Moreno, que conheço bem”, confessa mulheres de alto escalão: no primeiro conselho do WF estavam mulheres como Anne
balho, a qual se queixava de suas duas a criadora do “Davos das Mulheres”. Lauvergeon, presidente do conselho executivo da Areva, Véronique Morali, então dire-
secretárias, então em licença-mater- Pouco depois de assumir seu car- tora da Fimalac, a holding do bilionário Marc Ladreit de Lacharrière, ou ainda Laurence
Parisot, ex-presidente do Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop) e do Movimento
nidade, confidenciando-lhe a inten- go, Élisabeth Moreno almoçou com as
das Empresas da França (Medef), o principal sindicato patronal francês.
ção de futuramente contratar funcio- associações feministas que sua ante-
“O fato de eu ser uma feminista pragmática foi muito útil para o Women’s Forum,
nárias mais velhas... cessora havia deixado um tanto aban- que, por isso, nunca foi acusado de ser vingativo ou radical”, congratula-se em seu li-
As preferências ideológicas dessas donadas. Não é certo, porém, que uma vro. Não se trata de aderir a uma visão igualitarista das relações entre os sexos: “A
mulheres as levam a apoiar reformas nova página esteja sendo escrita. Du- complementaridade entre homens e mulheres [continua] essencial tanto na política
que prejudicam a grande maioria de rante o encontro, enquanto uma mili-
.

como no mundo econômico”. Preocupada em não fazer “sexismo às avessas”, Aude


suas semelhantes. Em setembro de tante da Federação Nacional de Mu- reitera que, durante sua presidência, o fórum tinha 20% de oradores homens. Assim,
2017, antes da assinatura dos decre- lheres Solidárias explicava que sua como as mulheres “não estão disputando nem competindo”, ela quer acreditar que
tos de reforma da legislação traba- associação havia coordenado uma re- elas são “um grande fator de mudança para construir um mundo mais moral, mais res-
lhista, elogiados por Laurence Pari- de de apoio e alojamento para vítimas peitoso em relação ao outro”.
sot, ex-presidente do Movimento das de violência, além de gerir uma linha Embora a maioria das líderes do WF tenda para o campo liberal (como Mercedes
Erra, presidente da agência de publicidade BETC, que apoiou Emmanuel Macron em
Empresas de França (Medef), cerca telefônica de emergência, a ministra
2017 e se descreve como “social-liberal”), algumas são próximas da direita conserva-
de sessenta personalidades e organi- respondeu com muita naturalidade:
dora. Em 2014, Aude passou seu lugar a Clara Gaymard, ex-presidente da General
zações feministas alertaram contra “Sim, é isso mesmo, estamos falando Electric France, que teve um papel fundamental na operação de compra da Alstom pela
medidas que iriam “aumentar as de- de experiência do cliente”.  empresa norte-americana. Exibindo publicamente suas convicções religiosas, ela par-
sigualdades profissionais”.9 Elas fica- ticipou da criação, em 1996, da Fundação Jérôme-Lejeune, que leva o nome de seu pai,
ram particularmente preocupadas *Maïlys Khider e Timothée de Rauglau- professor de medicina e ativista católico contra a interrupção voluntária da gravidez.
com o desaparecimento dos comitês dre são jornalistas. Rauglaudre é também Uma das pioneiras do WF, Anne Méaux, atuou na extrema direita em sua juventu-
de higiene, segurança e condições de autor de Premières de corvée [De baixo de, especialmente no Grupo de Defesa Sindical (GUD). Na época, ela conviveu com
trabalho (CHSCT), que se fundiram para cima], LGM Éditions, Paris, 2019. Alain Madelin e Gérard Longuet, anticomunistas virulentos que alguns anos depois se
com outros dois órgãos nos novos co- tornaram próximos do presidente Valéry Giscard d’Estaing. Léa Salamé entrevistou a
mitês sociais e econômicos (CSE). comunicadora para seu livro Femmes puissantes [Mulheres poderosas], que se origi-
1   S ophie Pochic, “Féminisme de marché et éga-
nou de uma série de entrevistas com personalidades femininas, as “entrevistas mais
“Quando começamos a ver agitações lité élitiste?” [Feminismo de mercado e igual-
dade elitista?]. In: Margaret Maruani (ed.), Je inspiradoras” que a radialista já realizou. Escolhida por sua “força interior” e sua “in-
relativas à violência contra a mulher
travaille, donc je suis. Perspectives féministes fluência na sociedade”, Anne Méaux passa rápido por seu passado neofascista – mo-
no trabalho, abolimos o CHSCT”, co- [Trabalho, logo existo. Perspectivas feminis- destamente descrito como uma luta contra as “violações das liberdades e do totalita-
menta Marilyn Baldeck. tas], La Découverte, Paris, 2018. rismo”.1 Reivindicando-se atualmente de “direita liberal”, em 2017, por meio de sua
Há anos, proliferam greves de ca- 2   Emmanuelle Gagliardi e Wally Montay, Guide
des clubs et réseaux au féminin [Guia de clu-
empresa de comunicação Image 7, ela foi assessora de François Fillon, então candi-
mareiras terceirizadas de hotéis. No bes e redes sobre questão feminina], Le Cher- dato à presidência.
verão de 2019, quando se iniciou uma che Midi, Paris, 2007. Desde a saída de Clara Gaymard, em 2017, o WF está sem presidente. É sua dire-
mobilização no hotel Ibis Batignolles, 3   Valérie Lion, “Entreprises: relever le pari des tora, Chiara Corazza, quem segura as rédeas. Ela foi recrutada por Clara, que cruzou
réseaux féminins” [Mundo corporativo: refor-
em Paris, Marlène Schiappa anun- com ela no setor de investimentos internacionais e na prestigiada escola privada Sta-
çar a aposta das redes femininas], L’Express,
ciou que examinaria a situação. Paris, 18 jan. 2019. nislas, em Paris, onde seus filhos foram educados juntos. Desde sua chegada, o WF
Sébastien Bazin, presidente do grupo 4   L aurence Boisseau, “La France championne conta com um comitê estratégico que reúne sete grandes grupos empresariais, entre
du monde de la féminisation des conseils eles Axa, Bayer, Microsoft e BNP Paribas, que mobilizam sua expertise para contribuir
Accor, do qual o hotel faz parte, fora d’administration” [França, campeã mundial na nas reflexões. Chiara também considera que homens e mulheres são “complementa-
um dos ilustres convidados do WF de feminização dos conselhos de administra-
ção], Les Échos, Paris, 7 mar. 2019.
res” (Les Échos, 21 out. 2019). “Eu só quero que as mulheres tenham as mesmas
2015. Em setembro de 2019, Marlène oportunidades na construção do futuro.” (M.K . e T.R.)
5   Ibidem.
Schiappa esteve no piquete do Ibis 6   M arion Rabier, “Entrepreneuses de cause:
Batignolles. “Ela deixou claro que não contribution à une sociologie des engage-  éa Salamé, Femmes puissantes [Mulheres poderosas], Les Arènes – France
1   L
poderia interferir nas decisões econô- ments des dirigeants économiques en Fran- Inter, Paris, 2020.
ce” [Empreendedores de causa: contribuição
micas da empresa, portanto na tercei- para uma sociologia dos compromissos dos
rização”, conta uma sindicalista que líderes econômicos na França], tese defendi- riés à temps partiel?” [Quais as condições de ram], Les Invités de Mediapart, 6 set. 2017.
estava ao lado das camareiras.10 A ex- da na École des Hautes Études en Sciences emprego dos trabalhadores de tempo par- Disponível em: https://blogs.mediapart.fr.
Sociales (Ehess), Paris, 2013. cial?], Dares Analyzes, n.025, Paris, ago. 2020. 10  Timothée de Rauglaudre, “Journées infernales
-secretária de Estado afirma ter 7   O ex-presidente da aliança Renault-Nissan é 9   
“ Loi travail: les droits des femmes passent d’une femme de chambre” [As jornadas infer-
apoiado o “princípio” do projeto de lei suspeito de vários desvios financeiros. (aussi) à la trappe” [Legislação trabalhista: os nais de uma camareira], Alternatives Écono-
do deputado François Ruffin (França 8   “Quelles sont les conditions d’emploi des sala- direitos das mulheres (também) desaparece- miques, n.396, Paris, 27 nov. 2019.
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17

PARA ACABAR COM A ESCASSEZ E COM AS FALSIFICAÇÕES

A emergência de o conjunto das doenças.7 Para suprir


suas imensas necessidades, o conti-
nente importa, sobretudo da Ásia, en-

uma indústria
tre 70% e 90% de seus medicamentos,
aos quais muitos países dedicam até
80% de seus gastos com saúde. Ape-
nas a África do Sul e o Marrocos dis-

farmacêutica africana
põem de uma indústria farmacêutica
que cobre de 70% a 80% da demanda
local.8 O desafio sanitário é também
um desafio comercial, uma vez que o
aumento das doenças não transmis-
síveis – câncer, diabetes, doenças
A África do Sul, ao lado da Índia, pediu à Organização Mundial do Comércio (OMC) que cardiovasculares – aguça o apetite
suspendesse a propriedade intelectual de vacinas e medicamentos durante a pandemia. das multinacionais.9 O continente
ainda representa apenas 3% de um
Trata-se de garantir à população o acesso a tratamentos mais baratos. mercado mundial que deve movi-
Apesar do surgimento de uma indústria local, a África continua dependente mentar US$ 1,4 trilhão em 2021.10
de grupos farmacêuticos estrangeiros Apenas 375 produtores, a maioria
deles sediada no Magreb e no Egito,
dividem o mercado continental.11 Ao
POR SEVERINE CHARON E LAURENCE SOUSTRAS* sul do Saara, há sobretudo fabrican-
tes de medicamentos genéricos sob
licenças estrangeiras, ou empresas

A
tenção para a cloroquina falsifi- tudo na África ocidental. A gem ou do consumível – no meio de que realizam pequenas operações,
cada! Produtos semelhantes ao automedicação, na ausência de pro- cargas legais”, explica Joseph Kpou- como o acondicionamento de pro-
Nivaquine, como o Nirupquin e fissionais que façam a prescrição, mie, alto funcionário da alfândega dutos importados que são reembala-
o Samquine, estão circulando estimula o tráfico. camaronesa. dos para o mercado local. As empre-
em vários países da África ocidental Analgésicos, antimaláricos, anti- sas asiáticas dividem a maior fatia
em diferentes embalagens, avisou a bióticos, antifúngicos... Todas as cate- UM QUARTO DOS desse mercado, com “toda uma série
Organização Mundial da Saúde (OMS) gorias de moléculas fazem parte desse DOENTES DO PLANETA de medicamentos genéricos, india-
no dia 9 de abril de 2020.1 Com a pan- cenário.4 No outono de 2019, as autori- No entanto, ocorre que “a maior par- nos, chineses ou paquistaneses, des-
demia de Covid-19 e a divulgação de dades de Uganda apreenderam caixas te dos medicamentos que circula no conhecidos fora da África”, destaca,
.

vídeos do virologista francês Didier com o carimbo “Doações do governo mercado paralelo é de produtos ver- em Abidjan, Jean-Marc Bouchez,
Raoult, explodiu o tráfico de antima- de Uganda, não destinadas à venda” dadeiros”, explica a antropóloga Ca- presidente da Associação da Indús-
láricos à base de cloroquina – alegada- cheias de produtos que foram adquiri- rine Baxerres, ligada ao Instituto de tria Farmacêutica da África Subsaa-
mente eficaz no combate ao vírus, dos pelo centro de compras do país a Pesquisa para o Desenvolvimento riana de Língua Francesa (Lipa). Ele
embora até o momento nenhum estu- preços de atacado e depois desviados (IRD) da França e à Universidade de acrescenta que, ali, os padrões inter-
do científico tenha demonstrado tal e revendidos a um preço mais alto por Paris Descartes, e principal pesqui- nacionais definidos pela OMS nem
eficácia. A apreensão de várias caixas comerciantes privados. Também fo- sadora do projeto sobre telemedicina sempre são respeitados, falando em
no final da primavera sugere, sem cer- ram encontrados medicamentos fal- Globalmed. O grupo UPSA, cujo fa- “práticas mais que duvidosas, favo-
teza, que há comprimidos vindos da sificados, em geral importados da moso Efferalgan pode ser encontrado recidas por regulamentações pouco
Ásia e de laboratórios clandestinos lo- Ásia. Os contrabandistas conseguem em todas as prateleiras dos comer- rigorosas”.12
cais.2 Nenhum desses medicamentos facilmente transportar substâncias ciantes ilícitos, confirma, nas pala- Os países de colonização francesa
tem autorização de comercialização. ilegais através de países enfraqueci- vras de seu presidente, François Du- e inglesa apresentam situações dife-
Para a OMS, o assunto é ainda mais dos pela guerra, como Nigéria e Ca- plaix: “A maioria são medicamentos rentes. Para os primeiros, a brutal
preocupante quando se sabe que mais marões, assolados pelo Boko Haram. verdadeiros desviados do circuito desvalorização do franco CFA (–50%),
de 100 mil crianças africanas morrem Diante do risco à saúde e das quei- oficial de distribuição local. Nunca em 12 de janeiro de 1994, atingiu em
todo ano pelo consumo de substân- xas dos profissionais do setor, os pre- recebemos notícias de produtos falsi- cheio um setor que importava 90% de
cias adulteradas. sidentes do Togo, do Congo-Brazza- ficados relacionados ao Efferalgan”. seus tratamentos de países com moe-
Em um continente com 30 mi- ville, de Uganda, do Níger, do Senegal, Mas o fenômeno das substâncias fal- das fortes – e milhões de africanos
lhões de quilômetros quadrados de Gana e da Gâmbia decidiram, em sificadas com dosagens incorretas sem seguro-saúde. “Os atacadistas
(três vezes o tamanho da Europa), janeiro de 2020, em Lomé, coordenar existe, afetando outros produtos. Em pararam de abastecer as farmácias
as dificuldades para chegar aos a luta contra o tráfico farmacêutico. Camarões, por exemplo, ele foi iden- enquanto aguardavam que o governo
pontos de venda dificultam o acesso Mas o tratado assinado será converti- tificado em relação ao tramadol, um autorizasse a mudança de preço”,
aos medicamentos, promovendo a do em ações? As companhias farma- analgésico de classe 2 que alimenta lembra Prosper Hiag, presidente da
escassez. Cápsulas, comprimidos e cêuticas, por sua vez, mobilizam-se uma crise de dependência de opioi- Ordem dos Farmacêuticos de Cama-
xaropes podem percorrer milhares para detectar fraudes e oferecer for- des na África central. A pandemia de rões. “Após três semanas de negocia-
de quilômetros, por portos e aero- mação aos agentes públicos. Em Covid-19 agravou os desvios e colo- ções, acabaram conseguindo um au-
portos, até chegar aos pacientes. 2008, por exemplo, a francesa Sanofi cou em evidência a subprodução lo- mento de 64% no preço de venda. Foi
Além disso, em 2014 havia na África inaugurou, em Tours, na França, o cal de medicamentos. “As restrições um drama. Você chegava à farmácia e
apenas 0,9 farmacêutico, técnico Laboratório Central de Análise de temporárias às exportações indianas descobria que o remédio que na vés-
farmacêutico ou equivalentes para Falsificações, que estuda casos de de- de hidroxicloroquina5 e a crescente pera custava 100 francos estava sen-
cada 10 mil habitantes, contra uma feitos vindos do mundo inteiro. A Pfi- demanda por cloroquina no mundo do vendido a quase 200. Foi então que
média mundial de 4,3, e apenas 2,6 zer, cujo Viagra é muito falsificado, lançaram luz sobre a dependência se começou a buscar soluções mais
médicos para cada 10 mil habitan- ensina às autoridades alfandegárias dos países da África ocidental em re- baratas, principalmente os genéri-
tes, contra 14,1 em escala global. É o técnicas para detectar produtos fal- lação a atores externos, estimulando cos.” Na África ocidental, esses medi-
continente com menores índices do sos, mesmo quando dissimulados em a produção regional desse medica- camentos eram então trazidos da Eu-
planeta. 3 Nesse contexto, explodiu o remessas legais. “Temos uma espécie mento”, explica o pesquisador Anto- ropa, especialmente de Bruxelas.
número de farmácias não autoriza- de compêndio de boas práticas que nin Tisseron.6 “Mas a Bélgica já estava mandando
das que oferecem todo tipo de pro- permite detectar as falsificações por A África abriga 25% de todos os fabricá-los na Índia. Aos poucos, os
duto em qualquer caixinha, sobre- meio de inspeção visual – da embala- doentes do mundo, considerando-se fabricantes indianos começaram a se
18 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

interessar pelos países africanos de

© Luc Gnago
língua francesa, respondendo aos
editais”, conta Prosper.
Os países de colonização inglesa
parecem em melhor situação: Nigé-
ria, Quênia e África do Sul contam
com dezenas de unidades de produ-
ção que atendem ao mercado local e,
às vezes, exportam para outros paí-
ses do continente. A África oriental e
a África meridional podem até ser
consideradas pioneiras na produção
em larga escala. Nas décadas de 1930
e 1940, o Reino Unido, então potência
colonial, instalou nesses países, as-
sim como no Zimbábue, as bases de
retaguarda de seus produtores
farmacêuticos.
Muito mais tarde, nos anos 1990-
2000, a pandemia de aids foi um in-
centivo para o desenvolvimento da
indústria local. A África do Sul deci-
diu então permitir importações pa-
ralelas de medicamentos oriundos de
países que os vendiam a um preço
mais barato, bem como difundir os
tratamentos genéricos. Na época, a
norte-americana Bristol-Myers Squi-
bb, a britânica GlaxoSmithKline e a
alemã Boehringer Ingelheim deti-
nham as licenças dos antirretrovi-
rais. Com o apoio de cerca de trinta
das maiores companhias farmacêu-
.

ticas do mundo, elas tentaram pro-


cessar o governo sul-africano por
violar as regras de propriedade inte-
lectual perante o órgão de regulação
de disputas da Organização Mundial
do Comércio (OMC). A pressão exer-
cida pelas associações de pacientes e
a decisão da empresa indiana Cipla Venda de drogas falsas e ilegais nas ruas de Abidjã, a maior cidade da Costa do Marfim
de comercializar os antirretrovirais a
preços baixos, em setembro de 2000, presa local Quality Chemicals Limi- fim, era o único produtor de soluções Combate à Aids, Tuberculose e Malá-
acabaram vencendo a resistência da ted. A empresa fornece tratamento a injetáveis da África ocidental de lín- ria, criado pelo ex-secretário-geral da
“Big Pharma”, que abandonou os pro- 700 mil pessoas soropositivas, do 1,2 gua francesa quando um incêndio in- Organização das Nações Unidas
cessos e deixou os genéricos se milhão que vivem no país. terrompeu sua expansão, em 2018. Em (ONU) Kofi Annan, cujo orçamento
desenvolverem.13 O setor farmacêutico africano de- 2003, a farmacêutica Gisèle Etamé chegou a US$ 2 bilhões em 2019. Essas
As regras atuais da OMC liberam senvolve-se sobretudo por meio de fundou, em Camarões, o laboratório organizações obviamente exigem
os países africanos menos desenvol- parcerias com empresas indianas: Genemark, que produz medicamen- respeito às normas da OMS, mas, em
vidos14 do pagamento de licenças far- Sun Pharma-Ranbaxy na Nigéria, Ca- tos genéricos, xaropes e comprimidos. razão dos custos, apenas algumas
macêuticas até 2033, e o Acordo sobre dila na Etiópia, Cipla em Uganda. Im- Esses novos produtores parecem estar unidades de fabricação subsaarianas
os Aspectos dos Direitos de Proprie- pulsionada pelo dinamismo do sul, o mais bem equipados, certificados pe- conseguem a certificação. “Tanto a
dade Intelectual Relacionados ao Co- oeste do continente acompanha o la OMS ou em via de ser; eles têm um fábrica quanto os produtos precisam
mércio (Adpic) concede diversas isen- movimento. Assim, a Strides Pharma papel cada vez mais importante no ser certificados pela OMS”, destaca
ções – as “flexibilidades Adpic” – que Science Limited, que começou como surgimento de mercados regionais. Neil Bradford. “Muitos produtores na
beneficiam os demais. Em 2003, a As- uma exportadora de genéricos pro- As companhias do setor depen- África, porém, fabricam apenas um
pen, fabricante sul-africana de medi- duzidos em sua fábrica de Bangalore, dem de fornecedores indianos para ou dois produtos: é pouco para fazer
camentos genéricos fundada em 1850, criou, por meio de parceria com em- obter os princípios ativos, ou da Chi- os investimentos necessários.”
obteve o direito de produzir versões presários locais, unidades de distri- na para a química fina. Os custos de As multinacionais que detêm os
genéricas de antirretrovirais. “O cus- buição e embalagem em Botswana e abastecimento tornam os produtos direitos dos medicamentos originais
to dessas terapias não passa de mais na Namíbia, antes de vender suas pouco competitivos em relação às im- não genéricos (medicamentos de re-
de US$ 100 ao ano”, explica Neil Brad- ações a outra empresa indiana, a portações extracontinentais de medi- ferência) buscam agora coexistir com
ford, diretor da Cipla Quality Chemi- Africure, em 2017. No ano seguinte, a camentos acabados.15 Além disso, os os fabricantes de genéricos que
cal Industries em Kampala (Uganda). Africure abriu sua primeira fábrica novos genéricos não seriam lucrati- atuam no continente. “Elas percebe-
“E isso constitui uma mudança enor- africana de produção de genéricos vos sem as grandes encomendas fei- ram que é inútil lutar para fazer valer
me se comparado com a época em em Camarões, e depois outra na Cos- tas por meio de editais pelas grandes suas patentes em países onde, de
que cada paciente tinha de pagar US$ ta do Marfim. Ela planeja instalar-se organizações humanitárias de saúde qualquer forma, os lucros são baixos:
16 mil para se tratar.” Foi o próprio go- em Burkina Faso, na Etiópia e no surgidas na década de 2000: a Aliança a África representa uma porcenta-
verno de Kampala que propôs à india- Zimbábue. Global para Vacinas e Imunização gem muito pequena do mercado to-
na Cipla instalar uma fábrica em Poucas são as indústrias pura- (Gavi), criada pela Fundação Bill e tal”, explica Denis Broun, assessor do
Uganda para produzir antirretrovi- mente locais. A Pharmivoire Nouvelle, Melinda Gates como parceria públi- presidente da Cipla. “Além disso, elas
rais diretamente, associando-se à em- um exemplo delas na Costa do Mar- co-privada, ou o Fundo Global de são obrigadas a praticar preços bai-
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19

xos lá. Vale mais a pena buscar uma e enfrentar o desafio das patologias
coexistência pacífica com os fabri- não infecciosas. As empresas estran- A BATALHA DO PREÇO
cantes de genéricos, especialmente geiras não pretendem deixar de lado
nesses mercados em que as inova-
ções são raras, ao contrário dos paí-
esse mercado em rápido crescimen-
to. Em Kampala, a indiana Cipla se
E m muitos países de renda baixa ou média, especialmente os africanos, os medica-
mentos custam de vinte a trinta vezes o preço internacional de referência para
genéricos. É o caso de produtos básicos como o paracetamol.1 Isso se deve à falta de
ses ocidentais, onde há maiores mar- prepara para construir uma fábrica coerência e de eficácia dos sistemas de saúde, mas também a uma demanda desor-
gens de lucros.” Por meio de suas dedicada exclusivamente ao trata- ganizada, a dificuldades logísticas e a uma cadeia de abastecimento concentrada que
fundações corporativas, essas com- mento do câncer.  negligencia as zonas rurais.
panhias cooperam com associações Associações como Médicos Sem Fronteiras (MSF) também questionam a políti-
locais para melhorar o acesso da po- *Séverine Charon e Laurence Soustras ca de preços praticada pelas companhias farmacêuticas. A associação pede, por
pulação à saúde. são jornalistas. exemplo, o fornecimento de bedaquilina, medicamento fabricado pela multinacional
Johnson & Johnson, ao preço de US$ 1 por dia (US$ 180 por seis meses). Em paí-
ses de renda baixa e média, esse medicamento contra tuberculose, vendido a US$
RESISTÊNCIA DOS
400 por seis meses, está de fato “fora do alcance de 80% das pessoas que preci-
PRODUTOS ESTRANGEIROS 1   “Alerte produit médical n.4/2020” [Alerta de sam dele para sobreviver”. 2 Em julho, a Johnson & Johnson chegou à metade do
As multinacionais, porém, não aban- produto médico n. 4/2020], OMS, Genebra,
caminho, aceitando comercializá-lo por US$ 1,50 ao dia. Segundo a MSF, o preço
donam o mercado. Elas tentam ga- 9 abr. 2020.
2   Idem. deve refletir a parcela dos subsídios concedidos à pesquisa e ao desenvolvimento,
nhar no volume de vendas de produ- 3   “Statistiques sanitaires mondiales” [Estatísti- bem como o papel da comunidade científica e de organizações ligadas ao combate
tos que só elas são capazes de fabricar cas mundiais de saúde], OMS, 2014. à tuberculose resistente.
em quantidade suficiente: é o caso da 4   Ler o suplemento “La santé pour tous, un défi A distribuição de medicamentos no setor privado (80% do abastecimento em paí-
planétaire” [Saúde para todos, um desafio
suíça Novartis, por meio da subsidiá- planetário], Le Monde Diplomatique, jul. ses de renda média) é feita de forma diferente nos países de colonização francesa e
ria Sandoz, ou da norte-americana 2019. naqueles de colonização inglesa. No primeiro caso, o preço de venda é administrado.
Pfizer, em processo de fusão com a 5   “Amendment in export policy of hydroxychloro- Como na França, a circulação dos produtos é garantida por distribuidores atacadistas,
quine” [Emenda na política de exportação de que se abastecem junto aos fabricantes e devem oferecer às farmácias, com muita
compatriota Mylan, ou ainda da fran- hidroxicloroquina], Governo da Índia, Nova
cesa Servier, com a subsidiária Bioga- regularidade, toda a farmacopeia autorizada. Já nos países de colonização inglesa, os
Délhi, 18 jun. 2020.
6   Antonin Tisseron, “Circulation et commerciali- laboratórios escolhem um agente, o único autorizado a importar os medicamentos,
ran, na África ocidental. A gigante
sation de chloroquine en Afrique de l’Ouest: que depois são revendidos a uma infinidade de empresas, que por sua vez os vendem
chinesa Fosun Pharma, por sua vez, une géopolitique du médicament à la lumière aos varejistas – que não necessariamente precisam ser farmácias. “Na África de lín-
aguarda a certificação da OMS para du Covid-19” [Circulação e comercialização gua francesa, como na França, uma caixa de remédios prescritos tem o mesmo preço
sua futura unidade de genéricos de de cloroquina na África ocidental: uma geopo-
lítica do medicamento à luz da Covid-19], Ins- em todo o território. Na África de língua inglesa, os preços são livres”, explica Jean-
US$ 75 milhões na Costa do Marfim. tituto Francês de Relações Internacionais, -Marc Leccia, presidente da Eurapharma, distribuidora francesa – tornada subsidiária
As patentes de tratamentos para Paris, 3 jul. 2020. da japonesa Toyota – que controla 40% da rede de distribuição da África ocidental.
doenças não infecciosas continuam 7   “ Le médicament en Afrique: répondre aux en- A liberalização de preços tem menos impacto onde as doações respondem por
jeux d’accessibilité et de qualité” [Remédios
nas mãos das multinacionais, que as metade de todos os gastos do setor público com saúde. Esse é o caso dos 24 países
na África: enfrentando os desafios da acessi-
cedem a conta-gotas para os genéri- de renda baixa da África subsaariana. O Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose
.

bilidade e da qualidade], Société de Promo-


cos. Com especialistas e amplos re- tion et de Participation pour la Coopération e Malária (que gasta pelo menos US$ 1 bilhão por ano na compra de produtos de
Économique (Proparco), dez. 2017. Disponí- saúde) atua como um poderoso centro de compras, capaz de negociar simultanea-
cursos, elas monitoram a evolução vel em: www.proparco.fr. mente com os oito fornecedores que dividem o mercado. Mas, mesmo entre industriais
das leis de propriedade intelectual. O 8   “Global Monitoring Report on Financial Pro-
tection in Health 2019” [Relatório de monito- e grandes organizações humanitárias, as negociações são difíceis: os laboratórios li-
objetivo seria retardar o surgimento mitam-se a suas margens, portanto a seus volumes. Para eles, os tratamentos menos
ramento global da proteção financeira da saú-
de uma verdadeira indústria farma- de 2019], OMS – Banco Mundial, Genebra utilizados – como o HIV pediátrico (em razão do declínio da doença entre as mães,
cêutica local, contornando, com – Washington, DC, 2019. portanto também entre as crianças) ou a combinação do antimalárico artesunato com
cláusulas restritivas, o sistema de li- 9   Ler Frédéric Le Marcis, “Les maladies du Nord
a mefloquina (necessária apenas no Vale do Mekong) – só têm interesse se os preços
migrent en Afrique” [Doenças do Norte mi-
cenças voluntárias que autorizam a gram para a África], Le Monde Diplomatique, forem elevados.
produção de genéricos de medica- mar. 2017. Mesmo quando há demanda, ela não determina necessariamente os preços prati-
mentos patenteados. Foi nesse espíri- 10  “ Le médicament en Afrique”, op. cit. cados. “A lógica de definição de preço por parte do fabricante não tem nada a ver com
11  Michael Conway, Tania Holt, Adam Sabow e o número de pessoas que precisam do produto”, lamenta Gaëlle Krikorian, encarregada
to que, em 2014-2015, a gigante norte- Irene Yuan Sun, “Should Sub-sahara Africa
-americana Gilead licenciou onze make its own drugs?” [A África subsaariana do programa de acesso a medicamentos da MSF. “Ela remete a uma espécie de pere-
genéricos indianos para distribuir deveria produzir seus próprios remédios?], quação entre a população que tem renda suficiente na população total e o tipo de preço
McKinsey and Company, 10 jan. 2019. Dispo- que é possível estabelecer.” Dessa forma, por meio de um hábil jogo de licenças, a gi-
seu tratamento para hepatite C em nível em: www.mckinsey.com. gante farmacêutica Gilead optou por comercializar seu tratamento contra a hepatite C
uma centena de países. 12  “ Bonnes pratiques de fabrication des produits
por milhares de euros em países de renda média como o Marrocos, onde ele só é aces-
Os governos da África do Sul e da pharmaceutiques: grands principes” [Boas
práticas de fabricação de produtos farmacêu- sível para uma fração das centenas de milhares de pessoas doentes. Os tratamentos
Nigéria são os únicos a oferecer aos ticos: grandes princípios], OMS, 2014. Dis- antigos, fáceis de produzir e menos lucrativos, são evitados pelos laboratórios, inclusive
fabricantes locais um regime fiscal ponível em: www.who.int. os genéricos: é o caso da penicilina e dos analgésicos, totalmente negligenciados em
vantajoso. No Quênia, associações de 13  Ler Philippe Rivière, “Après Pretoria, quelle grande parte dos países africanos mais pobres. A morfina, que sofre controle interna-
politique contre le sida?” [Depois de Pretória,
pacientes pedem tais incentivos, bem qual política contra a aids?], La Valise Diplo- cional mas é de produção muito barata em sua forma oral, é quase impossível de en-
como a tributação de medicamentos matique, 20 abr. 2001. Disponível em: www. contrar em grande parte do continente, ao contrário da forma injetável importada, que
importados. Hoje, o país produz ape- monde-diplomatique.fr. é mais cara e está disponível no mercado privado.
14  Angola, Benin, Burkina Faso, Burundi, Chade, Em maio de 2019, a Assembleia Mundial da Saúde aprovou uma resolução pedin-
nas 28% de seu consumo. “Tenho a Djibouti, Eritreia, Etiópia, Gâmbia, Guiné,
sensação de que, entre a falta de do transparência nos preços pagos por governos e compradores de produtos de saú-
Guiné-Bissau, Lesoto, Libéria, Madagascar,
Malawi, Mali, Mauritânia, Moçambique, Níger, de, bem como nos ensaios clínicos.3 “Uma coalizão muito interessante de países do
transparência dos países africanos e
República Centro-Africana, República Demo- Norte e do Sul, juntos, para dizer: ‘Precisamos de transparência; queremos saber
a influência dos produtores estran- crática do Congo, Ruanda, Senegal, Serra quanto pagamos, quem paga o quê e quanto cada coisa custa’”, comenta Gaëlle Kri-
geiros que não querem perder merca- Leoa, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Tanzâ- korian. Com o apoio de associações, África do Sul e Uganda fizeram campanha em
do, os ventos não são favoráveis ao nia, Togo, Uganda e Zâmbia (Fonte: Confe-
rência das Nações Unidas sobre o Comércio favor da resolução, enquanto Alemanha (que propôs 25 emendas) e Reino Unido se
desenvolvimento de uma indústria e o Desenvolvimento). opuseram a ela. (S.C. e L.S.)
nacional”, observa em Nairóbi Allan 15  “Why Kenyan manufacturers are walking a
Maleche, da associação queniana Ke- tightrope” [Por que os fabricantes quenianos 1   R achel Silverman, Janeen Madan Keller, Amanda Glassman e Kalipso Chalkidou,
estão na corda bamba], Business Daily, Nairó- “Tackling the triple transition in global health procurement” [Enfrentando a tripla
lin, que defende os direitos de pa- bi, 28 out. 2018. transição no abastecimento global de saúde], Center for Global Development,
cientes com aids e tuberculose. 16  Assefa Yibeltal, Peter S. Hill e Owain D. Wil- Washington, DC/Londres, 17 jun. 2019. Disponível em: www.cgdev.org.
Com um mercado farmacêutico liams, “Access to hepatite C virus treatment: 2   “ J&J doit rendre les médicaments antituberculeux disponibles pour tous à 1 dollar
lessons from implementation of strategies of par jour” [J&J deve disponibilizar medicamentos contra tuberculose para todos por
em plena expansão, a África produz increasing access to antiretroviral treatment” 1 dólar ao dia], Médicos Sem Fronteiras, Paris, 26 abr. 2019.
tratamentos acessíveis para algu- [Acesso ao tratamento do vírus da hepatite C: 3   “ Assemblée mondiale de la santé – Actualités du 28 mai 2019 – Journée de clôture”
mas doenças infecciosas, como a lições da implementação de estratégias para [Assembleia Mundial da Saúde – Atualização em 28 de maio de 2019 – Dia de
aumentar o acesso ao tratamento antirretrovi- encerramento], Organização Mundial da Saúde, Genebra, 28 maio 2018.
aids.16 Agora, precisa garantir a fa- ral], International Journal of Infectious Disea-
bricação de quantidades suficientes ses, v.70, Aarhus (Dinamarca), maio 2018.
20 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

ÁRABES DIVIDIDOS SOBRE A QUESTÃO PALESTINA

A lua de mel entre os


UM ESCUDO CONTRA O IRÃ
Em sua época, Barack Obama causou
consternação, para não dizer pânico,
no Golfo ao trabalhar pela assinatura,

países do Golfo e Israel


em 14 de julho de 2015, de um acordo
sobre a energia nuclear do Irã que sus-
pendia as sanções impostas a Teerã. É
verdade que seu sucessor, Donald
Trump, as restabeleceu após ordenar
Rompendo com a política de isolamento e boicote a Israel que prevalecia na região havia a retirada norte-americana do Acordo
mais de cinquenta anos, os Emirados Árabes e o Bahrein assinaram um acordo de de Viena, em 8 de maio de 2018. Mas
sua propensão a exigir que as monar-
reconhecimento mútuo com Tel Aviv no dia 15 de setembro. Enquanto a Arábia Saudita quias paguem “em dinheiro” por sua
reluta em dar esse passo, outros países árabes estão sendo encorajados pelos Estados proteção e a reiterar que os Estados
Unidos a também se envolver na normalização Unidos não deveriam mais se envol-
ver em “guerras sem fim” convenceu
os líderes do Golfo de que sua região
POR AKRAM BELKAÏD* não era mais tão estratégica para os
Estados Unidos. Desde então, a nor-
malização com Israel é vista como

E
m 23 de outubro, após vários da uma “frente de recusa” de nove refugiados palestinos. Oficialmente, uma questão de sobrevivência diante
meses de discussões e de me- países2 pedindo a continuação da lu- a posição da Liga permanece defini- da ameaça do Irã, ou mesmo daquela
diação norte-americana, Israel ta contra Israel para recuperar os ter- da pelo “plano Abdallah”, nome do de um Iraque que está se rearmando.
e Sudão concordaram em esta- ritórios perdidos durante a Guerra falecido monarca saudita que esteve E o resto do mundo árabe é instado a
belecer relações diplomáticas.1 Esse dos Seis Dias (5 a 10 de junho de na origem da proposta. Mas o equi- seguir essa mudança de curso.
entendimento sucedeu àqueles al- 1967). Os três “nãos” que moldaram líbrio de poder nessa instância ago- Em 9 de setembro, sob pressão da
cançados entre Tel Aviv e duas mo- as relações árabe-israelenses até o ra favorece os defensores da norma- Arábia Saudita, dos Emirados Árabes
narquias do Golfo, os Emirados Ára- fim da década de 1970 foram então lização, incluindo os Emirados e do Egito, uma moção de resolução
bes Unidos (EAU) e o Bahrein, com a proclamados ali: “não” à paz com Is- Árabes Unidos, o Bahrein, o Egito e, da Liga Árabe condenando a norma-
assinatura dos Acordos de Abraham rael, “não” ao seu reconhecimento e acima de tudo, mesmo que ainda lização com Israel foi enterrada em
em 15 de setembro. Em poucas sema- “não” às negociações. não a reconheça oficialmente, a Ará- uma reunião regular dos ministros
nas, três membros da Liga dos Esta- A tripla normalização dessas úl- bia Saudita. Para Riad, como para de Relações Exteriores, para grande
dos Árabes, juntando-se ao Egito timas semanas soou a sentença de Abu Dhabi e Manama, Tel Aviv é um desgosto dos palestinos – autores da
.

(1978) e à Jordânia (1994), quebraram morte para a iniciativa de paz árabe aliado lógico e seguro na guerra fria proposta –, que em consequência de-
o tabu do tatbi’, quer dizer, a normali- adotada na cúpula da Liga Árabe em que os opõe a Teerã. Essas monar- cidiram renunciar à presidência do
zação com Israel, e abandonaram a Beirute em março de 2002. Esta pre- quias acreditam que Washington conselho da Liga (ler boxe). “Os paí-
mouqata’a, ou seja, seu boicote. A via o estabelecimento de “relações não é mais o protetor confiável de ses do Golfo fazem a lei dentro da Li-
aproximação entre Tel Aviv e Cartum normais” com Israel em troca de outrora, aquele que, por exemplo, ga Árabe. Eles têm dinheiro, enquan-
é um símbolo ainda mais forte por- uma retirada total dos territórios organizou a resposta depois que o to, em outros lugares, existe crise
que foi na capital sudanesa que, em ocupados desde 1967 e de uma solu- Exército iraquiano invadiu o Kuwait econômica ou guerra civil. Para agra-
1º de setembro de 1967, foi constituí- ção equitativa para o problema dos em junho de 1990. dar à Arábia Saudita e aos Emirados e
obter ajuda financeira, basta parar de
falar dos palestinos”, confidencia um
diplomata magrebino habituado às
cúpulas dessa entidade, nas quais, já
há vinte anos, a linha de conduta em
relação à Palestina era ditada pelos
“falcões” (Argélia, Iraque, Sudão, Sí-
ria e Iêmen). Sinal dos tempos, nin-
guém mais ouve falar do gabinete de
boicote a Israel. Mas é verdade que
sua sede fica em Damasco...
Rápido para reclamar os louros da
evolução em curso, Trump tuitou em
24 de outubro que “cinco outros paí-
ses [árabes] pretendem seguir o
exemplo” de Abu Dhabi, Cartum e
Manama. Além do Sultanato de Omã,
da Mauritânia, do Catar e do Marro-
cos (os dois últimos já mantendo re-
lações informais com Tel Aviv), o in-
quilino da Casa Branca esperava
convencer a Arábia Saudita a oficial-
mente dar esse passo, mas a prudên-
cia do rei Salman bin al-Saud preva-
leceu. Em 2018, este último já
convocava o príncipe herdeiro,
Mohammed bin Salman (“MBS”),
após ele ter multiplicado as declara-
ções favoráveis a Israel e ao “direito
dos israelenses de ter sua própria ter-
ra”.3 Em janeiro, quando o Ministério
© Juliana Russo
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21

das Relações Exteriores da Arábia uma conferência sobre o progresso


Saudita elogiou o “plano do século” da “paz abraâmica” no Golfo e no
elaborado pelo governo de Trump Oriente Médio. Lá, uma agência de AMARGURA PALESTINA
para a solução da questão palestino- comunicação promoveu em menos
-israelense,4 o soberano se apressou de dois anos um encontro entre mu- POR OLIVIER PIRONET*
em tranquilizar os palestinos evo- lheres líderes dos dois países – in-
cando... a iniciativa do rei Abdallah.
Para o velho monarca, trata-se
cluindo uma representante de alta
patente do Exército israelense. Em N a Palestina, a reaproximação oficial entre os Emirados Árabes Unidos (EAU), o
Bahrein, Sudão e Israel gerou uma enxurrada de duras críticas. Elas são propor-
cionais ao sentimento de “abandono” experimentado por vários anos. O presidente
antes de tudo de manter as aparên- Dubai, grandes hotéis aguardam an-
da Autoridade Palestina (AP) da Cisjordânia, Mahmoud Abbas, denuncia a “traição”
cias e garantir que essa questão não siosamente o desembarque de legiões
das duas monarquias do Golfo, às quais ele refuta o direito de “falar em nome do
agrave uma situação interna já tensa de turistas israelenses, que em breve
povo palestino” ao decidir seu destino contra sua vontade. Por sua vez, Jibril Rajoub,
pelas incertezas sobre sua sucessão e deverão se beneficiar da isenção de secretário-geral do comitê central da Fatah, o partido de Abbas que forma a espinha
pelo desejo do príncipe herdeiro de visto. Nessa cidade mercantil, uma dorsal da AP, lamenta um ato “desonroso e vergonhoso”. Nabil Chaath, líder impor-
abalar a ordem estabelecida.5 No delegação de empresários liderada tante da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), conselheiro especial de
Twitter, rede social que oferece um por Erel Margalit, um grande nome Abbas e ex-ministro das Relações Exteriores, chama os acordos de normalização de
paliativo à ausência de liberdade de do capital de risco israelense, foi rece- “facada pelas costas” e acena com a ameaça de uma “Terceira Intifada”. Já o Hamas,
expressão, os sauditas estão dividi- bida com todas as honras. “É como se movimento islâmico no poder na Faixa de Gaza, acusa Abu Dhabi e Manama de “ofe-
dos. Se alguns se mostram claramen- apaixonar”, chegou a declarar Yous- recer um cheque em branco” a Israel para a continuação da ocupação. Em entrevista
te a favor de uma reaproximação com sef Abdulbari, astro apresentador da que não passou despercebida, o embaixador da Palestina na França, Salman el-Her-
Israel, julgando severamente os líde- Dubai TV, após receber Margalit e fi- fi deixa transparecer toda a sua amargura: acredita que os Emirados finalmente
“mostraram sua verdadeira face” e chegaram mesmo a “se tornar mais israelenses
res palestinos, outros, ao contrário, a car em êxtase com o aumento do in-
que os israelenses”.1 Finalmente, os palestinos “condenam” em uníssono o “pecado
recusam de forma veemente e exi- tercâmbio com os israelenses.7 O idí-
político” do Sudão, que por muito tempo defendeu ardorosamente sua causa.
gem a restituição de Jerusalém Orien- lio é ainda mais envolvente quando se No terreno, o Exército israelense está criando asas. Segundo um relatório da
tal aos palestinos. De acordo com o pensa que a juventude dourada dos OLP, entre 15 de setembro (dia da assinatura dos Acordos de Abraham entre Emira-
bilionário israelo-americano Haim Emirados é fascinada por Tel Aviv, dos, Bahrein e Israel) e 15 de outubro, ele abriu fogo 240 vezes sobre os territórios
Saban, o próprio “MBS” estaria ciente cujas noites festivas tendem a substi- ocupados. Matou dois palestinos e feriu uma centena, prendeu quase quinhentas
dos perigos de uma normalização tuir as de Beirute ou do Cairo. pessoas, incluindo crianças, demoliu dezenas de casas e realizou 370 incursões.2
que poderia “fazer que ele fosse mor- E os palestinos em tudo isso?
to pelo Irã, pelo Catar ou por [seu] Aqueles que vivem nos Emirados Ára- *Olivier Pironet  é jornalista do Le Monde Diplomatique.
próprio povo”.6 Isso sem esquecer bes Unidos, às vezes desde os anos
1   C f. Armin Arefi, “L’ambassadeur de Palestine tire à boulets rouges sur les Émi-
que outros membros da família real 1950, são forçados a se manter discre- rats” [O embaixador palestino atira bolas vermelhas nos Emirados], Le Point,
poderiam usar esse pretexto para im- tos. Um deles nos disse, sob condição Paris, 12 out. 2020.
pedi-lo de assumir o trono. de anonimato, que pensa em ir morar 2   “ PLO: Israel attacks escalate after normalisation with Arab states” [OLP: os ata-
.

ques de Israel aumentam após a normalização com os Estados árabes], Middle


Hostil ao Irã, mas também à con- no Kuwait, “monarquia que, ao con- East Monitor, 24 out 2020. Disponível em: www.middleeastmonitor.com.
fraria da Irmandade Muçulmana, trário das vizinhas, recusa qualquer
Mohammed bin Zayed al-Nahyan relacionamento com Tel Aviv enquan-
(“MBZ”) é a outra locomotiva de nor- to as terras palestinas não forem de-
malização com Israel. Mas o prínci- volvidas”.8 Se as autoridades dos Emi- so dos Emirados quanto o da Arábia mar tal decisão. Resta saber até onde
pe herdeiro e governante de fato dos rados insistem na ajuda financeira e Saudita. Como os primeiros, a pe- irá a contestação. 
Emirados Árabes é menos limitado humanitária que continuam a conce- quena ilha do Golfo, governada por
que seu homólogo saudita por consi- der aos palestinos, em particular para uma monarquia sunita, há muito *Akram Belkaïd  é jornalista do Le Monde
derações domésticas. Pouco nume- lutar contra a Covid-19, o discurso é realizou uma normalização de fato, Diplomatique.
rosos, fundidos em uma população menos prolixo na questão política. tendo até acolhido uma missão is-
1   Ler “Rapprochement calculé avec Israël”
estrangeira que representa 90% dos raelense não oficial em 2009.9 Mas a [Aproximação calculada com Israel], Le Mon-
6 milhões de habitantes da federa- MANTER AS APARÊNCIAS população, na maioria xiita, é muito de Diplomatique, maio 2020.
ção, seus súditos se acostumaram ao Para “MBZ”, uma das contrapartidas menos condescendente que a dos 2   Argélia, Egito, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líba-
no, Marrocos, Síria e Sudão.
longo das últimas duas décadas a da normalização é o abandono por Emirados Árabes Unidos. Embora a 3   Jeffrey Goldberg, “Saudi Crown Prince: Iran’s
uma normalização em pequenos Tel Aviv do projeto de anexação da repressão feroz ao movimento de supreme leader ‘makes Hitler look good’”
passos. Nos palácios de Abu Dhabi e Cisjordânia, a que o primeiro-minis- protesto popular de 2011 tenha en- [Príncipe herdeiro saudita: líder supremo do
Irã “faz Hitler parecer bom”], The Atlantic,
Dubai, joalheiros israelenses manti- tro israelense Benjamin Netanyahu fraquecido a oposição, esta não desa- Washington, DC, 2 abr. 2018.
nham discretamente suas lojas. Nas responde que está simplesmente pareceu e, como parte da opinião pú- 4   Ler Alain Gresh, “Israël-Palestine, un plan de
principais conferências organizadas “adiado”. Dessa forma, esse falso blica saudita, foi rápida em condenar guerre” [Israel-Palestina, um plano de guer-
ra], Le Monde Diplomatique, mar. 2020.
nas duas cidades, não era incomum diálogo de surdos, destinado a salvar a reaproximação com Israel. 5   Ler Florence Beaugé, “Une libération très cal-
encontrar acadêmicos israelenses as aparências, deve durar enquanto a Os dados são totalmente diferen- culée pour les Saoudiennes” [Uma liberação
que haviam vindo como “observado- Autoridade Palestina, atualmente li- tes para o Sudão. Em um contexto de bem calculada para os sauditas], Le Monde
Diplomatique, jun. 2018.
res convidados”. Em abril de 2011, derada por Mahmoud Abbas, se opu- transição democrática incerta,10 os 6   Conferência on-line “Israel’s security and pros-
após meses de intenso lobby, Abu ser a uma “paz” pouco constrange- generais no poder têm três priorida- perity in a Biden White House” [Segurança e
Dhabi acolheu a sede da nova Agên- dora para Israel. Se um líder mais des: que seu país seja retirado da lista prosperidade de Israel em uma Casa Branca de
Biden], Florida Jewish Vote Team, 21 out. 2020.
cia Internacional de Energias Reno- complacente lhe suceder e concor- de apoiadores do terrorismo, que dei- 7   Isabel Kershner, “‘It’s like falling in love’: Israe-
váveis (Irena), após se comprometer dar em fazer novas concessões, é cer- xe de sofrer sanções internacionais li entrepreneurs welcomed in Dubai” [“É como
a autorizar a abertura de uma repre- to que nenhuma licitação pró-pales- ligadas em particular aos massacres se apaixonar”: empreendedores israelenses
bem-vindos em Dubai], The New York Times,
sentação oficial israelense junto a tina virá dos Emirados. Para Abu que ocorreram em Darfur e que te- 7 nov. 2020.
essa instituição. Dhabi, Mohammed Dahlan, ex-líder nha acesso a financiamentos inter- 8   C f. Mona Farrah, “Les irréductibles Koweï-
Contudo, desde agosto reina o do Fatah e ex-chefe da segurança nacionais. A normalização com Israel tiens rejettent la normalisation avec Israël”
[Os irredutíveis kuwaitianos rejeitam a norma-
descontrole. Não passa uma semana preventiva em Gaza, é o candidato garante a Cartum o apoio de Washin- lização com Israel], Orient XXI, 13 out. 2020.
sem que a imprensa anuncie uma re- ideal. Morando em Dubai, em boas gton para alcançar esses objetivos, Disponível em: https://orientxxi.info.
união ministerial bilateral ou um relações com Abbas, ele não criticou mas provoca tensões entre os milita- 9   Barak Ravid, “Israel’s secret embassy in Bah-
rain” [Missão secreta de Israel no Bahrein],
evento que envolva os Emirados e Is- o acordo entre Emirados Árabes Uni- res e a coalizão de partidos e de orga- Axios, 21 out. 2020. Disponível em: www.
rael. Aqui, o Emirates Center for Stra- dos e Israel. Ele até teria sido um dos nizações que liderou o protesto con- axios.com.
tegic Studies and Research (Centro arquitetos dele. tra o regime de Omar al-Bashir em 10  Ler Gilbert Achcar, “Où va la ‘révolution de
décembre’ au Soudan” [Para onde está indo a
Emirates para Estudos Estratégicos e No Bahrein, a normalização apre- 2019. Essa coalizão acredita que não “revolução de dezembro” no Sudão?], Le
Pesquisa – ECSSR) está organizando senta uma cara que evoca tanto o ca- cabe a um governo de transição to- Monde Diplomatique, maio 2020.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

MÁXIMA INFLUÊNCIA COM O MÍNIMO ESFORÇO

Fantasmas em torno de
os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável e suas Perspectivas da
Economia Mundial são amplamente
usadas em todo o mundo, muito além

uma “ofensiva chinesa”


dos corredores da ONU.
“A maior parte das decisões e das
iniciativas dessas entidades [do De-
sa] vai no sentido de interesses dire-

nas Nações Unidas


tos da China, ou pelo menos não se
opõe a eles”, continua o diplomata. “É
uma estratégia de posicionamento
que se concentra também nos textos.
Uma resolução sobre um assunto es-
Na esteira de Donald Trump, diversos comentaristas estimam que a China está no rumo pecífico que emprega os elementos
de fagocitar a ONU. Se é difícil medir uma influência difusa, os dados objetivos mostram de linguagem de um texto terá in-
fluência jurídica sobre a forma como
que a realidade está longe de corresponder à fantasia. Por ora, com objetivos comerciais os Estados serão vinculados e sobre a
ou para legitimar suas ações, Pequim visa apenas comandar algumas agências constituição de normas futuras.” En-
tre os textos produzidos por esse de-
partamento, é possível conhecer “O
POR JEANNE HUGHES* modelo chinês de sucesso econômi-
co”4 – elogiado, é claro –, ou ser apre-
sentado às Novas Rotas da Seda (BRI),

“É
possível contar nos dedos prego, os funcionários da ONU são Porém, por mais estranho que o grande projeto do Estado chinês,
de uma mão os altos fun- desconfiados; o mesmo ocorre com os possa parecer, os números mostram como um meio de “cooperação para o
cionários chineses nas Na- diplomatas, embora estes nada te- que a China é bastante sub-represen- desenvolvimento sustentável”.5
ções Unidas. E não é por nham a temer, exceto a ira chinesa. tada nas engrenagens da organiza- Sub-repticiamente, a China tenta
falta de cargos de responsabilidade.” Quase todos pedem anonimato. “A ção:2 em 2018, entre as 37.505 pessoas gerir sua imagem por meio do domí-
O ano é 2005. Wang Jingzhang, diplo- China age ao longo do tempo, de for- empregadas apenas pelo Secretariado nio, ou pelo menos de um controle,
mata chinês aposentado que por ma muito organizada e sistêmica”, co- Geral (excluídas as Forças de Manu- do discurso. Assim, sua “capacidade
muito tempo foi secretário do Comitê menta P.F., diplomata francês em No- tenção da Paz), havia apenas 546 fun- de fazer parte de objetivos gerais, co-
de Sanções para o Iraque, da ONU, va York. “O modo de funcionamento cionários chineses, entre os quais mo os Objetivos de Desenvolvimento
queixa-se na imprensa de seu país.1 A da sociedade chinesa é o planejamen- muitos tradutores (132), sendo o man- Sustentável, nunca é realmente con-
.

pequena corte de funcionários envia- to, e isso fica evidente em sua aborda- darim uma das seis línguas oficiais da testada”, enfatiza nosso diplomata,
da pela China a Nova York é compos- gem das questões internacionais.” ONU. A China fica atrás da Índia (571), “embora não seja possível dizer que a
ta, em sua maioria, por tradutores e Integrada à ONU em 1971, substi- do Iraque (558) e do Reino Unido indústria chinesa é a menos poluente
redatores. Os não linguistas “traba- tuindo Taiwan, a República Popular (839), e muito longe da França (1.476) nem que os compromissos assumi-
lham dispersos em diversos serviços da China foi por muito tempo deixada e dos Estados Unidos (2.531). Embora, dos por Xi Jinping com o meio am-
técnicos ou gerais”. Segundo ele, das de lado, apesar de seu estatuto de considerados todos os setores e de- biente impressionam. No entanto, a
oito direções do Secretariado das Na- membro permanente do Conselho de partamentos da ONU (excluídas as China é mencionada em toda parte
ções Unidas, apenas o Departamento Segurança. Apenas em 2003 o país ob- Forças de Paz), o número de chineses como uma grande defensora do meio
para Assembleia Geral e Gestão de teve, com Shi Jiuyong, a presidência tenha dado um salto entre 2009 e ambiente, da biodiversidade etc. Em
Conferências, responsável pela ges- da CIJ. A partir daí, seguiu embalada. 2019, enquanto o de norte-america- termos de discurso e de imagem, o
tão das abarrotadas reuniões, é às ve- Em 2007, Margaret Chan, de Hong nos caiu, as hierarquias permane- efeito é convincente”.
zes deixado para um funcionário chi- Kong, assumiu a direção da primeira cem. A China responde por 1,2% dos Estratégico, o Desa é também, em
nês, que pode chegar ao posto de agência especializada da ONU, a Or- efetivos totais (contra apenas 1% dez suas próprias palavras, “um dos pon-
secretário-geral adjunto. Na ONU, os ganização Mundial da Saúde (OMS) – anos antes), e os Estados Unidos, por tos de entrada para ONGs que bus-
chineses sentem-se como se fossem a uma posição de influência, que per- 5% (contra 5,8%).3 É difícil afirmar cam um estatuto consultivo junto ao
quinta roda da carroça. mitiu elevar a medicina tradicional que há uma invasão chinesa na ONU. Ecosoc. Ao apoiar o Comitê das ONGs,
Quinze anos depois, o cenário é chinesa ao nível de norma internacio- “Ao contrário de alguns países, ele [as] orienta sobre a melhor forma
muito diferente: vários chineses nal em 2018, um ano após o fim de seu que têm uma presença simultanea- de contribuir com o trabalho do Con-
ocupam cargos de direção, por mandato. Durante esse período, Tai- mente muito ampla e muito diluída, selho”.6 E como as questões ligadas
exemplo, na Corte Internacional de wan foi integrado como observador às os chineses concentram-se em algu- aos “povos autóctones” também são
Justiça (CIJ) e na União Internacio- assembleias gerais da OMS, antes de mas direções”, explica P.F., “em posi- de responsabilidade do Desa, a dire-
nal de Telecomunicações (UIT) (ver ser excluído, sob pressão chinesa, ções de destaque, nem sempre de ní- ção chinesa está no lugar mais privi-
boxe). Alguns analistas preocupados após a eleição para a presidência da vel muito elevado, mas que têm uma legiado quando um indesejável ativis-
avaliam que é raro um país conse- ilha, em 2016, de Tsai Ing-wen, a presi- dimensão prescritiva ou são decisi- mo tibetano ou uigur se manifesta...
guir tanta influência em tão pouco denta do Partido Democrático Pro- vas para o funcionamento da admi- Em 2017, Wu Hongbo, então secre-
tempo. É como se, após uma longa gressista, independentista. nistração. E eles sabem muito bem tário-geral adjunto, destacou-se ao
bebedeira em comemoração ao “fim O ano de 2007 também foi o da identificá-las.” Um exemplo emble- jogar a carta da suspeita de terroris-
da história”, o Ocidente acordasse de chegada de Sha Zukang à frente do mático: o Desa. Ligado ao Secretaria- mo para expulsar, por meio das for-
ressaca em 2020 e percebesse que, na importante Departamento de As- do, ele constitui um feudo chinês há ças de segurança, o ativista uigur
mesa da ONU, quem serve o café da suntos Econômicos e Sociais (Desa), catorze anos, com três dirigentes su- Dolkun Isa, que se dirigia à sessão
manhã é a China. onde foram elaborados os dezessete cessivos. Embora pouco conhecido, anual do Fórum Permanente para
Objetivos de Desenvolvimento Sus- esse departamento é o principal au- Questões Indígenas da ONU – um
SUB-REPRESENTAÇÃO tentável, oficialmente adotados pela tor de toda a literatura da ONU: seus gesto reivindicado na televisão esta-
NAS ENGRENAGENS Assembleia Geral em 2015. Nesse relatórios e recomendações servem tal chinesa pelo próprio Wu Hongbo.
No entanto, conseguir declarações ano, sem chamar muita atenção, a de base para as negociações e os tra- No ano seguinte, seu sucessor, Liu
sobre as consequências dessa trans- China já controlava quatro agências balhos das comissões da Assembleia Zhenmin, tentou repetir a manobra,
formação é difícil: vinculados por especializadas. Essa situação ainda Geral e do Conselho Econômico e So- porém sem sucesso, graças à inter-
contrato a um dever de discrição, cuja perdura, mas os olhares mudaram, e cial (Ecosoc), órgão consultivo da venção das missões diplomáticas da
transgressão pode lhes custar o em- crescem as preocupações. ONU. Suas publicações anuais sobre Alemanha e dos Estados Unidos.
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23

© Amanda Daphne
UMA POLÍTICA MERCANTIL
O último relatório da Organização
das Nações e Povos Não Representa-
dos (Unpo),7 uma ONG heteróclita
que reúne tanto o Governo Provisó-
rio do Estado de Saboia como o Con-
gresso Mundial dos Uigures, descre-
ve em detalhes todas as técnicas de
bloqueio burocrático desenvolvidas
contra ativistas por diplomatas e fun-
cionários do Desa, do Ecosoc e até do
Conselho de Direitos Humanos da
ONU: credenciamentos que se arras-
tam, intimidação, monopolização do
tempo de fala... Mais do que qualquer
outro país, a China está sempre ali,
ao lado da Rússia e do Irã. Em março
de 2018, foi rejeitada uma resolução
de procedimento (que requer nove
votos sem veto) permitindo que o Al-
to Comissário para os Direitos Hu-
manos informasse o Conselho de Se-
gurança sobre as violações dos
direitos humanos na Síria, por causa
do voto contrário da Costa do Mar-
fim. Muitos viram nisso o resultado
de uma pressão chinesa nos bastido-
res. Em outubro, a China conseguiu
que fosse rejeitada uma resolução da
Assembleia Geral contra a repressão
e a violação dos direitos dos uigures
por 57 votos (entre eles os da Arábia
Saudita e dos Emirados Árabes Uni-
.

dos), embora tenha perdido um pou-


co de terreno: 39 votaram a favor, ao
passo que um ano antes eles eram 23. ram questões relacionadas ao bem- niência. O 5G é há muito tempo alvo Estados Unidos, e vice-versa. Não há
A eleição em 2019 – no primeiro -estar social e à produção local. “Há de uma disputa para saber quais fre- disputa pelo objetivo comum a ser al-
turno – de Qu Dongyu para a Organi- uma nova dinâmica. Qu Dongyu se- quências lhe atribuir no espectro, so- cançado nem tentativas de impor as
zação das Nações Unidas para a Ali- gue a tendência, que se volta para um bretudo entre os Estados Unidos (que faixas defendidas pelos norte-ameri-
mentação e a Agricultura (FAO) foi questionamento de práticas anterio- queriam as frequências mais altas, canos ou pelos chineses para fazer
vista como mais um símbolo dessa res, e ecoa o discurso de muitos Esta- em torno de 28 GHz) e a China (abai- faixas comuns”. Também não haveria
influência. Segundo alguns analis- dos africanos diante dos efeitos nega- xo 6 GHz). “As redes de telecomuni- mais problemas estratégicos em par-
tas, a China teria se beneficiado da tivos da Covid-19.” cações e de informática requerem ticular para os satélites: “Muitos paí-
retirada do candidato camaronês em O modelo de desenvolvimento normas internacionais para que os ses os têm, e é um sistema bastante
troca do perdão de uma dívida de agrícola preconizado pela China está equipamentos possam se comuni- ‘continental’: as frequências acima
US$ 70 milhões.8 Jean-Jacques Ga- de fato longe de ser atraente para as car”, explica Marceau Coupechoux, da Europa devem ser as mesmas que
bas, pesquisador e especialista em populações africanas em pleno cres- professor da Télécom Paris e da École na Turquia, mas é menos grave se
políticas agrícolas chinesas na Áfri- cimento demográfico e que devem Polytechnique. “Quanto mais uma elas forem diferentes acima de Si-
ca, vê nisso um voto de sanção contra continuar majoritariamente rurais norma (ou um padrão) é comparti- chuan [na China]... A situação é mais
o Ocidente por parte dos países afri- até 2050. Então, essa mudança de dis- lhada por um grande número de complexa para as constelações de sa-
canos, mais do que o sinal de uma curso é um desejo de ouvir esses paí- equipamentos, mais a rede tem inte- télites, mas, hoje, não existem mega-
real atração pela China. A aposta, pa- ses ou um golpe de comunicação? resse para seus usuários. Desse mo- constelações chinesas no mesmo ní-
ra esses países, seria fortalecer seu Desde a pandemia, a China não está do, a batalha entre países e entre em- vel de desenvolvimento que as
poder de negociação no cenário in- muito bem na imprensa: os depoi- presas é travada em grande parte nos norte-americanas OneWeb ou Spa-
ternacional e aumentar a ajuda, o in- mentos dos africanos de Cantão joga- organismos de padronização. Não ceX”. Para Brégant, apenas a direção
vestimento direto chinês e o comér- dos nas ruas pela polícia em abril se- admira que as grandes potências, en- encarregada dos programas para os
cio. “Até a epidemia, o que emergia mearam a ira no continente, rendendo tre elas a China, tentem exercer sua países em desenvolvimento, a UIT-D,
dos discursos de Qu Dongyu era uma ao embaixador chinês uma convoca- influência sobre esses órgãos.” poderia estar em posição de promo-
forte ênfase nas novas tecnologias, ção das autoridades nigerianas.9 Entretanto, também aqui parece ver as tecnologias chinesas. Mas no
no 5G e no desejo de vender um mo- Outra instância de interesse da complicado medir a extensão dessa momento ela tem uma diretora
delo de intensificação do tipo ‘revo- ONU: a UIT, reino de Houlin Zhao des- influência. Gilles Brégant, diretor da norte-americana...
lução verde’, como a conhecemos na de 2015. Ela se ocupa da gestão do es- Agência Nacional de Frequências Em compensação, o Departamen-
década de 1960, com sementes me- pectro das frequências em escala glo- (ANFR) da França, que representa o to de Operações de Manutenção da
lhoradas, pesticidas etc. Havia pouco bal, da atribuição de órbitas de satélites país na UIT-R, órgão responsável por Paz (Domp), vinculado ao Secreta-
espaço para a agroecologia, a biodi- (qualquer pessoa que deseje enviar forjar as normas internacionais de riado da ONU, parece negligenciado
versidade. O novo diretor-geral colo- um satélite ao espaço deve pedir a ela), radiocomunicações, tem uma abor- pela China. É verdade que o país con-
cava a China em um papel de lideran- bem como da internet, que entrou em dagem moderada: “Os fabricantes tribui ali com mais tropas do que os
ça”, explica Gabas. Uma política mais seu campo de atuação nos anos 2000 têm interesse em obter faixas mun- outros quatro membros permanen-
comercial do que justa, voltada a es- – uma ampliação de seu campo de diais. O trabalho de harmonização tes do Conselho de Segurança.11 Não
coar insumos agrícolas – a China é o competência que gerou polêmica.10 da UIT consiste em encontrar pontos há dúvida de que essa presença maci-
maior produtor mundial de fosfatos. A China é suspeita de querer defi- comuns que permitam, por exemplo, ça lhe permite acompanhar seus in-
Desde a crise, Gabas nota que surgi- nir as normas segundo sua conve- que seu telefone francês funcione nos vestimentos, sobretudo na África, on-
24 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

qual ela lidera um pacote de 150 vo- 5   “Jointly building the ‘Belt and Road’ towards
de se desenvolveram seis das treze Pesquisador do Instituto de Estu-
sustainable developments goals” [Construin-
operações de paz realizadas em 2020. dos Internacionais de Xangai, Mao tos. Muitas vezes, ela não aparece na do juntos as Novas Rotas da Seda rumo aos
Sua influência dentro do próprio or- Ruipeng analisou as contribuições origem de uma decisão, mas é o mo- Objetivos do Desenvolvimento Sustentável],
tor de tais decisões quando esses Es- ONU, 16 ago. 2016.
ganismo, porém, não parece ser das pagas ao Sistema de Desenvolvimen-
6   C f. “Bureau de l’appui aux mécanismes inter-
maiores. “Essa é uma das grandes to das Nações Unidas (UNDS), res- tados votam em assuntos que não gouvernementaux et de la coordination” [Es-
perguntas que todos se fazem aqui”, ponsável em especial pela aplicação lhes dizem respeito diretamente.” critório de Apoio aos Mecanismos Intergover-
A missão diplomática chinesa per- namentais e da Coordenação], Desa.
confessa B.S., um funcionário africa- dos Objetivos de Desenvolvimento
Disponível em: www.un.org.
no do Domp. “Mas a China não tenta Sustentável.16 Segundo o pesquisador, manente na sede, em Nova York, não 7   “Compromised space: Bullying and blocking at
assumir um papel de potência.” Esse esses fundos teriam permitido à Chi- respondeu a nossas solicitações. Mas the UN Human Rights Mechanisms” [Espaço
Xu Bo rejeita essas ideias de voto por comprometido: perseguição e bloqueio nos
departamento, de longe o mais pesa- na solicitar mais envolvimento no
Mecanismos de Direitos Humanos da ONU],
do em termos de despesas, continua projeto Novas Rotas da Seda. De fato, procuração e de desejo de dominação: Unrepresented Diplomats Project, Bruxelas, 15
sendo reserva privada da França, que o UNDS foi a primeira instância den- “Sempre que há um confronto, fala-se jul. 2019. Disponível em: https://unpo.org.
em ofensiva chinesa para mudar a or- 8   Valérie Segond, “Les étranges pratiques de la
o lidera desde 1997. “Corriam rumo- tro da ONU a assinar um memorando
Chine pour conquérir la FAO” [As estranhas
res, com a chegada de António Guter- de entendimento sobre o projeto, em dem mundial. Isso não é verdade. En- práticas da China para conquistar a FAO], Le
res [o atual secretário-geral da ONU, 2016, concedendo-lhe a legitimidade quanto os norte-americanos assu- Figaro, Paris, 21 jun. 2019.
mem o papel de policiais do mundo, a 9   M artine Bulard, “À Canton, les Africains confi-
eleito em 2016], de que um chinês ha- desejada pela China. Como esse de-
nés à la matraque” [Em Cantão, africanos são
via sido sondado para sua direção, partamento tem a particularidade de China paga seus tributos e se benefi- isolados na base do cassetete], Planète Asie,
mas os ocidentais ficaram em alerta e ter suas entradas em quase todos os cia da existência de uma instituição 14 abr. 2020. Disponível em: https://blog.
como a ONU”. Essa posição lembra a mondediplo.net.
se uniram contra a China.” Final- órgãos da ONU, Mao Ruipeng dá a en-
10  “ European Parliament warns against UN Inter-
mente, e sem surpresa, o francês tender que a China teria aproveitado a do presidente Xi Jinping, que em 22 de net control” [Parlamento Europeu adverte
Jean-Pierre Lacroix foi nomeado. oportunidade para obter, em troca de setembro mais uma vez defendeu o contra o controle da internet pela ONU], BBC
“multilateralismo” na Assembleia Ge- News, 22 nov. 2012.
Quanto aos instrumentos orça- gentilezas, a adesão de treze agências
11  
“Pays contributeurs en soldats et policiers”
mentários, a China ainda não tomou e programas à iniciativa Novas Rotas ral da ONU. Esse multilateralismo em [Países que contribuem com soldados e poli-
conta deles. É verdade que há quinze da Seda, entre elas a FAO, o Desa, a versão chinesa que lhe cai tão bem...  ciais], Domp, 31 ago. 2020. Disponível em:
https://peacekeeping.un.org.
anos suas contribuições (obrigató- OMS, o Programa Conjunto das Na-
12  Resolução adotada pela Assembleia Geral da
rias) para o orçamento da ONU não ções Unidas sobre HIV/aids (Unaids) *Jeanne Hughes  é jornalista. ONU em 22 de dezembro de 2018.
passavam de 2% do total, e hoje ela é e o Alto Comissariado das Nações 13  “Scale of assessments for the fiscal period
1   W an Jingzhang, “La vie secrète des employés 2020-2021” [Escala de pagamentos para o
o único país além dos Estados Unidos Unidas para os Refugiados (Acnur).
chinois de l’ONU” [A vida secreta dos funcio- período fiscal de 2020-2021], Onudi, Viena,
a exibir uma cota de dois dígitos: 12% Mas o pesquisador reconhece os limi- nários chineses da ONU], Radio China Inter- 1º-3 jul. 2019. Disponível em: www.unido.org.
– contra 22% dos norte-americanos.12 tes de seu estudo: “O financiamento national, 20 dez. 2005. Disponível em: http:// 14  “Contribution to Unesco’s regular budget”
news.cri.cn. [Contribuição para o orçamento regular da
A China é a principal contribuinte da do UNDS pela China é relativamente
2   “Composition du Secrétariat: données démo- Unesco], Unesco, Paris, 1º jan. 2020. Dispo-
Organização das Nações Unidas para baixo se comparado aos doadores tra- graphiques relatives au personnel: rapport du nível em: https://teamsnet.unesco.org.
o Desenvolvimento Industrial (Onu- dicionais” – isto é, a Organização para 15  “Contributors – Financial Flow” [Contribuin-
.

secrétaire général, A/74/82” [Composição


do Secretariado: dados demográficos relati- tes – Fluxo financeiro], OMS, Genebra, 2019.
di), fornecendo 19,8% de seus recur- a Cooperação e o Desenvolvimento
vos ao pessoal: relatório do secretário-geral, Disponível em: http://open.who.int.
sos,13 e da Organização das Nações Econômico (OCDE), que reúne os A/74/82], Assembleia Geral das Nações Uni- 16  M ao Ruipeng, “China’s growing engagement
Unidas para a Educação, a Ciência e a países capitalistas desenvolvidos. das, Nova York, 22 abr. 2019. Disponível em: with the UNDS as an emerging nation: Chan-
https://undocs.org. ging rationales, funding preferences and futu-
Cultura (Unesco), em cujo orçamen- Em suma, as contribuições volun-
3   “Chief Executives Board for Coordination” [Con- re trends” [O crescente envolvimento da Chi-
to tem uma participação de 15,49%14 tárias chinesas são tão baixas que é selho Diretor Executivo], ONU, 31 dez. 2009 e na com o Sistema de Desenvolvimento das
– duas agências que os Estados Uni- difícil generalizar e concluir que o 2019. Disponível em: www.unsystem.org. Nações Unidas como uma nação emergente:
4   “ Le modèle chinois de réussite économique” mudando fundamentos, preferências de finan-
dos abandonaram, respectivamente, país esteja comprando as institui-
[O modelo chinês de sucesso econômico], ciamento e tendências futuras], Deutsches
em 1996 e em 2018. Além disso, ela ções. “A Alemanha dá muito dinheiro Desa, ONU, 23 fev. 2012. Institut für Entwicklungspolitik, Bonn, 2020.
paga bem e no prazo: na primavera, o voluntariamente e gasta infinita-
país já havia quitado toda a sua cota mente mais do que a China”, explica
do orçamento de 2020. um alto funcionário que trabalha na
Quinta Comissão da Assembleia Ge- EM MENOS DE UMA DÉCADA...
CONTRIBUIÇÕES VOLUNTÁRIAS ral, encarregada das questões orça-
2012 Margaret Chan, de Hong Kong, é reeleita diretora-geral da Organização Mundial
LIMITADAS mentárias. “Nesse estágio, o orça-
da Saúde (OMS), cargo que ocupava desde 2007. Em 2017, é substituída pelo
Ocorre que o nível dessas cotas mento é, para esta última, um etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus.
não fornece nenhuma informação instrumento de presença, de legiti- 2013 Li Yong é nomeado diretor-geral da Organização das Nações Unidas para o De-
sobre a estratégia do país. Na verda- midade, mas não de influência, o que senvolvimento Industrial (Onudi), da qual Austrália, Canadá, Estados Unidos, Fran-
de, elas são em grande parte determi- não significa que isso não possa mu- ça, Nova Zelândia, Portugal e Reino Unido já não fazem parte.
nadas por regras obrigatórias consa- dar dentro de alguns anos.” Diploma- 2014 Zhao Houlin é eleito secretário-geral da União Internacional de Telecomunicações
gradas na Carta das Nações Unidas, ta chinês e ex-funcionário da Unesco, (UIT). Em 2018, é reeleito para seu segundo e último mandato. Ele ocupava o
às quais todos os Estados-membros Xu Bo até acredita que “o aumento cargo de vice-secretário adjunto desde 2007.
aderem, e estão diretamente ligadas das contribuições obrigatórias chi- 2015 Fang Liu é eleita secretária-geral da Organização da Aviação Civil Internacional
ao PIB de cada nação. Elas são pagas nesas foi mais aceito do que desejado. (Icao). Em 2018, é reeleita para a função até 2021. Yang Dazhu é nomeado dire-
tor-geral adjunto da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), junto com
em bloco e não são atribuídas a des- No DNA chinês, não gostamos muito
cinco outros diretores (de nacionalidades norte-americana, marroquina, italiana,
pesas específicas. de dar dinheiro: preferimos mantê-lo
russa e espanhola).
Apenas as contribuições voluntá- conosco a fim de ajudar a acabar com 2017 Liu Zhenmin assume o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (Desa)
rias, destinadas a despesas específi- a pobreza na própria China”. como secretário-geral adjunto nomeado pelo secretário-geral da ONU. Ele subs-
cas, podem dar uma indicação das Sub-representação do número de titui Wu Hongbo (2012-2017), que fora o sucessor de Sha Zukang (2007-2012).
preferências chinesas. Após Donald funcionários, influência limitada nos 2018 Xue Hanqin é eleita vice-presidente da Corte Internacional de Justiça (CIJ), pre-
Trump, muitos acusaram a China de círculos em que seus interesses co- sidida por Abdulqawi Yusuf (Somália). Xing Qu é nomeado diretor-geral adjunto da
manter a OMS à sua mercê financei- merciais estão em jogo, fraco uso de Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco),
ra. Porém, embora sua contribuição instrumentos orçamentários... “Po- dirigida pela francesa Audrey Azoulay.
obrigatória à entidade – proporcional de-se ter a impressão de que a pre- 2019 Qu Dongyu é eleito diretor-geral da Organização para a Alimentação e a Agricul-
ao PIB e à população – seja alta (22% sença chinesa na ONU é relativa, des- tura (FAO). Hua Jingdong é nomeado vice-presidente do Banco Mundial, cujo
presidente é o norte-americano David Malpass.
do total), a voluntária é baixa (1,4%). proporcional à sua economia ou
2020 Wang Binying, diretora-geral adjunta da Organização Mundial da Propriedade In-
Os maiores contribuintes são os Esta- população”, observa P.F. “Porém, não
telectual (Ompi) por doze anos, concorre ao cargo de diretora-geral, mas é derro-
dos Unidos, a Fundação Bill e Melin- se deve esquecer que a China muitas tada por Tang Daren, de Cingapura.
da Gates, o Reino Unido, a Alemanha vezes fala como membro do G77, gru-
e o Japão.15 po de países em desenvolvimento no
DEZEMBRO 2020   Espaço Institucional 25

Ensino híbrido: a nova fronteira do ensino formal


O
Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou em 6 de outubro 35% dos alunos estudavam em escolas com uma plataforma de suporte
• 
uma resolução que permite o ensino remoto nas escolas públicas e de aprendizagem on-line eficaz.
particulares até 31 de dezembro de 2021. A decisão possibilita que 42,3% dos alunos tinham professores com recursos profissionais efica-
• 
as redes estaduais e municipais reorganizem seus calendários 2020/2021 zes para aprender a usar dispositivos digitais.
tanto para manter as aulas exclusivamente on-line, se a pandemia exigir, 50,6% dos alunos tinham professores com as habilidades técnicas e pe-
• 
como para iniciar uma retomada das atividades presenciais de forma dagógicas necessárias para integrar dispositivos digitais à instrução
gradual e rodiziada. É nessa segunda frente que se insere um dos princi- dos alunos.
pais desafios da educação na atualidade: a estruturação, para o ensino 52,2% dos alunos tinham professores com tempo suficiente para pre-
• 
formal, do ensino híbrido ou combinado. parar aulas integrando dispositivos digitais a elas.
O parecer do CNE vem ao encontro da flexibilidade que as redes ne- Como indicam as estatísticas, as disparidades em termos de infraes-
cessitam1 para adequar a oferta da educação pública neste contexto de trutura tecnológica das escolas e qualificação dos professores, que se so-
pandemia e de retomada das aulas presenciais. A retomada combina nú- mam às desigualdades do aluno brasileiro no acesso à internet, impõem
mero reduzido de alunos, rodízio de turmas e manutenção das ativida- enormes obstáculos à plena implementação do ensino híbrido. Tais difi-
des remotas, e as redes são uníssonas ao afirmar que a continuidade e culdades foram esmiuçadas no webinário do Instituto Unibanco por Nu-
ampliação da reabertura dependem das condições sanitárias. nes e por representantes das secretarias de Educação dos estados do Es-
Assim, enquanto a vacina contra a Covid-19 não estiver aprovada e am- pírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Norte.
plamente disponível, o modo de operação das escolas precisará continuar
se adequando – e mesclando atividades presenciais e remotas conforme o
que os especialistas e pesquisadores denominam de ensino híbrido. INTERAÇÃO VIA TECNOLOGIA
TEM VANTAGENS E PONTOS A AVANÇAR
Para Carmem Prata, assessora de tecnologia educacional da Secretaria
ABECEDÁRIO DO ENSINO HÍBRIDO Estadual de Educação do Espírito Santo, o período de ensino remoto pro-
Michael Horn e Heather Staker, no artigo “Blended Beyond Borders: porcionou aumento da interação entre professores e alunos, dinâmica
A scan of blended learning obstacles and opportunities in Brazil, Malay- que deve continuar com a adoção do modelo híbrido. “O ensino híbrido
sia, & South Africa” (2015), conceituam o ensino híbrido como um pro- expande muito o tempo de estudo e comunicação entre a turma e os pro-
grama de educação formal, no qual o aluno aprende em parte por meio fessores. O que antes eram 50 minutos de aula, agora são 24 horas de co-
on-line – com algum controle do aluno sobre o tempo, lugar, percurso e/ municação aberta, 24 horas de conteúdos disponíveis, seja via WhatsA-
ou ritmo da aprendizagem – e em parte em um espaço físico longe de pp, outra rede social ou uma plataforma mais robusta”, explicou.
casa. As modalidades de aprendizagem presencial e a distância adotadas Além de permitir mais tempo de interação professor-aluno, a tecno-
na trajetória do aluno são conectadas para fornecer uma experiência de logia age como apoio ao professor no processo de aferir se o aluno está
.

aprendizagem integrada, o que pode incluir o uso de dados da aprendi- aprendendo e desenvolvendo suas habilidades. “Ela possibilita tornar o
zagem on-line para informar e orientar a aprendizagem off-line. aprendizado do aluno visível”, reforçou Nunes, destacando a contribui-
Além disso, o ensino híbrido pode ser estruturado via atividades sín- ção da tecnologia para dar transparência às produções dos estudantes e
cronas, nas quais o professor e os estudantes trabalham juntos em um abrir espaço, a partir daí, para uma intervenção mais individualizada
horário predefinido de maneira on-line ou presencial, ou assíncronas, do professor. O próximo passo no terreno do ensino híbrido, adicionou,
quando o aluno pode estudar em seu próprio tempo e velocidade, sem seria adaptar a abordagem metodológica, tornando-a mais significativa
necessidade de estar com a turma ou o educador. O ensino híbrido busca para os alunos.
unir os aspectos positivos das duas metodologias, a fim de oferecer me- Todavia, para ser aproveitado em potência máxima, o ensino híbrido
lhores condições de aprendizagem para os alunos. precisa de capacidades, habilidades e engajamento – tanto de professores
César Nunes, gerente de desenvolvimento de soluções do Instituto quanto de alunos –, ao lado de amplo acesso à internet. “Não basta a se-
Unibanco, situa que o ensino híbrido pode ser entendido como uma ala- cretaria definir metodologia e dispor de plataforma. É preciso que os
vanca para que os alunos se vejam como permanentes aprendizes. “A professores dominem as ferramentas que têm disponíveis, para que con-
gente pensa que aprender pode ser prazeroso e que isso pode acontecer sigam enxergar seu potencial e perceber se elas são realmente eficientes
a qualquer momento e em qualquer lugar”, disse ele, durante o webiná- para aquilo que estão planejando”, disse Carmem. Não é o fato de ter
rio Desafios do Ensino Híbrido, realizado recentemente pelo Instituto uma ferramenta ou portal de conteúdos que vai fazer com que os alunos
Unibanco. “Na sociedade do conhecimento, todos nós deveríamos ser estudem e colaborem, complementou. “Esse engajamento deve ser cons-
aprendizes a vida inteira e carregar este gosto por aprender o tempo truído diariamente por meio de metodologias”, afirmou a assessora.
todo”, acrescentou.
OS PROFESSORES E SUAS REDES
OBSTÁCULOS MÚLTIPLOS E CAMINHO A PERCORRER Para que os professores consigam realizar seu trabalho da melhor for-
Com dados coletados em 2018, o recém-lançado relatório “Políticas ma possível nesses tempos de pandemia, as redes de ensino estão se mo-
eficazes, escolas de sucesso”, elaborado pela Organização para a Coope- bilizando para oferecer formação específica, além de articular dinâmicas
ração e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), traçou uma espécie de de troca entre os educadores.
linha de base pré-pandemia sobre a capacidade das escolas de promover Seja com ações com maior centralidade, como ocorre em Minas Ge-
o ensino e a aprendizagem usando dispositivos digitais. O documento rais, ou com maior autonomia para as escolas, como no caso do Rio
foi divulgado com a finalidade Grande do Norte e do Espírito
de orientar os gestores públi- Santo, no que tange à estrutu-
cos em suas decisões de inves- ração de conteúdos e da carga
timento mediante as mudan- SAIBA MAIS SOBRE ENSINO HÍBRIDO horária de ensino, é esperado
ças trazidas pela Covid-19. que as secretarias de Educação
O estudo se baseou em rela-
tos de diretores de escolas de
Impulsionado por epidemias anteriores à
Covid-19 na região da Ásia-Pacífico, o en-
sino híbrido já vinha ganhando força no
• “Cinco lições para a educação escolar no
pós-Covid-19” (2020), por Bento Duarte
da Silva.
compareçam com orientações
e o apoio necessário – às esco-
países-membros e países par- las, aos professores e aos alu-
mundo, o que se acentuou com a pandemia • “Empoderando professores para prover
ceiros da OCDE. Em 2018, os nos – para o avanço do ensino
do novo coronavírus. Vários conhecimen- ensino híbrido naw reabertura das esco-
entrevistados no Brasil expuse- híbrido.
tos têm sido sistematizados a respeito: las na Malásia” (2020), registro de prá-
ram o seguinte cenário:
• “Aprendizagem combinada para ensino ticas preparado pelo Unicef (em
• 26% dos alunos estudavam
superior de qualidade: estudos de caso inglês).
em escolas com velocidade
selecionados sobre a implementação da • “Tecnologias e ferramentas para o ensi-
ou banda de internet
Ásia-Pacífico” (2017), relatório assinado no híbrido” (2020), artigo de Alekya
suficiente.
pela Unesco (em inglês). Chalumuri (em inglês). 1 Ver Observatório de Educação,
Planejamento de Rede: pandemia exige
flexibilidade, 28 set. 2020.
26 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

UMA MASCOTE ETERNAMENTE ISENTA DE RESPONSABILIDADES

A indestronável
monarquia
britânica
Depois da Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales, o
norte da Inglaterra experimenta um movimento político
em favor da independência. Tensões nacionalistas, caos
parlamentar por ocasião do Brexit, fiasco na luta contra a
Covid-19: a tempestade parece estar varrendo tudo no
Reino Unido. Tudo exceto a Coroa, que continua a
proporcionar um senso de coesão à maioria dos britânicos

POR LUCIE ELVEN*

T
endo percorrido as ruas de Lon- contrado. Ela vê a tarefa de revigorar
dres em júbilo no dia da coroa- o povo, ainda que de forma breve e li-
ção da rainha em 1953, os soció- mitada, como parte de suas obriga-
logos Michael Young e Edward ções. “É muito bom se sentir como
Shils qualificaram o evento de “gran- uma espécie de esponja”, ela confi-
de ato de comunhão nacional”. Fazia denciou em 1992, em um documen-
.

todo o sentido, escreveram eles, co- tário da BBC, evocando sua relação
mo “experiência não individual, mas com os súditos. A “esponja” era uma
coletiva”, que unia milhares de famí- metáfora para o serviço que ela sen-
lias em um fervor popular que lem- tia que deveria prestar a eles, associa- tamente se tornam consensuais e en- intolerável de patriotismo. A curiosa
brava a celebração da vitória sobre a do a uma imagem de uma soberana tram na categoria das grandes causas, imunidade que protege a família de
Alemanha nazista. O ar vibrava com comum e próxima das pessoas.2 A es- como a pesquisa sobre o câncer ou o Elizabeth de qualquer tentativa de lhe
o calor humano; até mesmo os bate- critora Zadie Smith, em um artigo apoio à Cruz Vermelha. Em outubro exigir uma responsabilidade também
dores de carteira tinham parado de para a Vogue, observa que “a senhora de 2020, contra o pano de fundo de se encaixa no reino político: Johnson
trabalhar, e reinava um espírito de Windsor é amplamente apreciada debates acalorados sobre os legados zombou da ideia de prestar assistên-
comunhão que teria horrorizado por sua ostentação modelada com da escravidão e do Império, o prínci- cia às autoridades judiciais america-
“aqueles que têm o viés racionalista base em gostos emprestados da pe- pe Harry, que este ano se distanciou nas em sua investigação sobre o prín-
das pessoas educadas de nosso tem- quena classe média: cães Corgi, cor- da família real, falou de seu “desper- cipe Andrew (suspeito de
po, especialmente aqueles de dispo- ridas de cavalos e a novela de TV tar” de consciência sobre a questão cumplicidade nas agressões sexuais
sição política radical ou liberal”.1 EastEnders”.3 do racismo estrutural. A maneira cometidas pelo falecido empresário
Hoje, enquanto as desigualdades A rainha distribui as honras; é um mais militante e emocional pela qual Jeffrey Epstein), algo que ele tem o
não param de se aprofundar no Reino dos poucos poderes que lhe restam. sua mãe, Diana Spencer, a famosa La- cuidado de não fazer quando se trata
Unido, a monarquia parece ter con- “As pessoas precisam ser encoraja- dy Di, via seu envolvimento humani- de Julian Assange.
servado sua popularidade. Quase das”, observava já em 1992. “O mun- tário – por exemplo, indo a um hospi- Voluntariamente centrado na pe-
dois em cada três britânicos aprovam do seria muito sombrio sem isso.” Os tal para apertar a mão de um paciente quena ilha heroica que resistiu aos
sua existência. São apenas 22% a de- tapinhas nas costas vêm com o apoio de aids sob os flashes de fotógrafos – alemães e os derrotou na Segunda
sejar seu desaparecimento, sendo os real às obras de caridade, que sinali- repugnava os membros mais velhos Guerra Mundial, o romance patrióti-
mais hostis os escoceses. Paradoxo za uma preferência pela filantropia da casa de Windsor. co britânico torna-se complicado à
surpreendente: quando os tempos em detrimento do serviço público. Frequentemente, a instituição da luz dos muitos laços da família real
são difíceis, a família real parece ser- Desde a Revolução Gloriosa de 1688- família real é usada com fins políticos com os nazistas, que parecem ir além
vir de diversão ou consolo. Nas núp- 1689, espera-se que a monarquia se na linha de frente das guerras cultu- da crença compartilhada nas hierar-
cias reais dos últimos dez anos, sem- mantenha afastada da política; seus rais. O atual primeiro-ministro, Boris quias dinásticas. As duas irmãs do
pre houve um tolo para afirmar que o direitos, para retomar a fórmula de Johnson, foi acusado por seus opo- marido da rainha, o príncipe Philip,
moral da nação precisava de um im- Bagehot, são limitados a “ser consul- nentes de ter “mentido para a rainha” radicadas na Alemanha, eram liga-
pulso. Como Walter Bagehot escreveu tada, encorajar e alertar”. Como re- quando a convidou para pronunciar a das ao Partido Nazista, a ponto de
em 1867 em A Constituição inglesa, as sultado, os assuntos nos quais a fa- dissolução do Parlamento a fim de ter uma delas ter colocado no filho o no-
pessoas se curvam ao “espetáculo mília real se envolve, por mais rédea solta nas querelas do Brexit, em me de Adolf. Depois de ter abdicado
teatral da sociedade”, do qual a ra- políticos que sejam, são facilmente agosto de 2019.4 Durante seu mandato para se casar com uma norte-ameri-
inha é o “ponto culminante”. percebidos como apolíticos. à frente do Partido Trabalhista, entre cana divorciada, Eduardo VIII, tio de
Quando o príncipe William defen- 2015 e 2020, Jeremy Corbyn foi conti- Elizabeth, foi para a Alemanha em
O CULTO DA TRADIÇÃO de reivindicações caras aos millen- nuamente criticado por sua falta de 1937, a convite e às custas do Reich; lá
Elizabeth II viaja pelo país usando as nials (pessoas nascidas entre meados deferência para com a rainha, sua re- ele conheceu o Führer pessoalmente
cores damasco, púrpura ou chartreu- dos anos 1980 e os anos 1990) – sobre cusa em abaixar a cabeça, cantar o em frente a uma fábrica de munições.
se para ter maior visibilidade; 30% da saúde mental ou sobre mudanças cli- hino nacional ou assistir ao discurso As imagens o mostram no Castelo de
população afirma já tê-la visto ou en- máticas, por exemplo –, elas imedia- real na televisão no Natal – uma falta Balmoral, na Escócia, uma residência
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27

© Diana Ejaita
radas de seus colegas e compatriotas. (Elisabete I) ou tenha sido acometido celebridades globais; no século XXI, o
“Tais cabalas não existem na Ingla- de gota (a rainha Ana). “Hoje não de- clã se divide entre os que se entregam
terra”, onde a Constituição emana da capitamos mais as damas reais, mas à divulgação banal de si mesmos nas
“simplicidade de nosso caráter nacio- ainda as sacrificamos”, constata a ro- redes sociais e os que persistem em
nal”, disse ele, passando um pouco mancista Hilary Mantel sobre a fixa- manter o mistério que garante seu
por alto sobre a turbulência que seu ção da mídia pelo físico de Kate Mid- poder. Embora a rainha nunca tenha
país conhecera um século antes, em dleton, esposa do príncipe William.8 dado uma entrevista à imprensa e a
particular com a execução de Carlos I. monarquia continue sendo o único
“Estamos decididos a manter uma UMA DAS MARCAS DE órgão do Estado imune à liberdade de
Igreja estabelecida, uma monarquia MAIOR SUCESSO NO MUNDO informação, a Coroa foi forçada a
estabelecida, uma aristocracia esta- Também no cenário internacional, a transgredir um pouco seu voto de dis-
belecida, assim como uma democra- monarquia britânica está perdendo crição com a morte da princesa Diana
cia estabelecida, cada uma segundo o seu brilho. Há alguns anos, vozes se em Paris, em 31 de agosto de 1997. Co-
grau que lhe é próprio. [...] É a desgra- levantaram para exigir que, após o fi- mo assinala o ex-diretor do Le Monde
ça (e não, como pensam esses senho- nal do reinado de Elizabeth II, a lide- Diplomatique Ignacio Ramonet, o aci-
res, a glória) daquela época submeter rança da Commonwealth9 seja exerci- dente do túnel da Ponte de l’Alma foi
tudo à discussão, como se a Consti- da de forma alternada por cada um de um momento crucial na história da
tuição de nosso país fosse motivo de seus membros, ou por uma figura po- imprensa, um “psicodrama planetá-
altercações, e não de celebrações.” lítica reconhecida, antes que a rainha rio” testemunhando uma “globaliza-
O culto da tradição é ilustrado, por consiga impor a sucessão do príncipe ção emocional”. O fluxo contínuo
exemplo, pela permanência dessa es- Charles em seu posto. Apenas cerca possibilitado pela internet, a atenção
tranha noção jurídica que é a “prerro- de vinte países10 deverão um dia subs- maníaca aos detalhes observada pe-
gativa real”, em virtude da qual o go- tituir seu retrato nas notas: mais da los tabloides e a cobertura maciça da
verno pode arrogar-se os poderes metade dos estados da Common- grande mídia combinaram-se para
outrora atribuídos à Coroa, que lhe wealth – 31 de 54 – agora são repúbli- desencadear uma crise sem prece-
permitem agir fora da lei. Nesse con- cas. Em setembro, a ilha de Barbados dentes: “Diana deixava o perímetro
texto, como apontou o teórico político decidiu retirar da rainha sua posição limitado e folclórico da seção de cele-
Harold J. Laski, “a Coroa é um hieró- de chefe de Estado. A Austrália reali- bridades para entrar direto nas prin-
glifo nobre”5 que permite que muitos zou um referendo sobre essa questão cipais e nobres seções dos jornais diá-
funcionários se esquivem de suas res- em 1999, que foi perdido por pouco rios da imprensa política”. Sua morte
ponsabilidades, escondidos atrás de pelos partidários do regime republi- foi o “primeiro episódio dessa nova
um véu de mistério. As tentativas de cano. Uma votação semelhante pode- era da informação global”.12
reformar esses privilégios falharam, ria se seguir na Nova Zelândia, de “A casa de Windsor tem um cora-
.

em nome desse princípio relembrado acordo com sua primeira-ministra, ção?”, “Mostrem-nos que podemos
em 2009 pelo governo neotrabalhista Jacinda Ardern, enquanto 44% dos contar com vocês”, “Onde está a ra-
de Gordon Brown: “Nossa Constitui- canadenses afirmam ser a favor do inha?”, “Onde está a bandeira?”: as
real valorizada por sua família, ensi- ção se desenvolveu organicamente ao divórcio com a Coroa britânica (con- “primeiras páginas” da imprensa13
nando a saudação hitlerista às sobri- longo dos séculos, de modo que não tra 29% que desejam o contrário). farfalhavam de indignação quando o
nhas. Mais tarde, estabelecido nas há necessidade de mudá-la por um No entanto, dessa máquina legal e Palácio de Buckingham ostensiva-
Bahamas, ele tentou convencer os Es- simples desejo de mudança”.6 financeira que é a casa de Windsor – mente deixou de içar a Union Jack até
tados Unidos a permanecer neutros Segundo o historiador David Can- batizada de “a firma” (“The Firm”) pe- a metade do mastro, como dizem ser
na guerra contra a Alemanha. Outro nadine, a continuidade entre os ri- lo príncipe Philip – não se pode dizer tradição no caso da morte de uma fi-
admirador de Adolf Hitler, o duque de tuais de hoje e os do passado distante de forma alguma que não esteja adap- gura real. Em setembro de 1997, a ra-
Saxe-Coburgo, primo do pai de Eliza- seria, no entanto, “bastante ilusó- tada aos tempos modernos. Ela conti- inha cedeu à pressão popular e con-
beth, compareceu ao funeral do rei ria”.7 Seria apenas um resíduo das nua sendo uma das marcas de maior cordou em demonstrar emoção. A
vestido como general da Sturmab- tradições extravagantes desenvolvi- sucesso do mundo. Depois de sua fu- explosão de tristeza planetária pro-
teilung (Seção de Assalto, SA). das no século XIX para compensar o ga para Los Angeles, Harry e sua espo- vocada pela morte de Lady Diana –
A monarca que reinou por mais enfraquecimento dos poderes da fa- sa, Meghan Markle, transformaram multidões em lágrimas, funeral visto
tempo na história da Inglaterra e da mília real e o esboroamento de seu literalmente seu status principesco por metade da população mundial, a
Europa incorpora uma certa forma de império. Nessa hipótese, tradições em uma marca registrada, a Sussex Ponte de l’Alma e a rua do Palácio de
atemporalidade. Do desmantelamen- ainda mais rocambolescas terão de Royal, que usam tanto para adornar Kensington cobertas de montanhas
to do Império ao referendo sobre o ser postas em prática ao longo dos anoraks como para liberar patrocí- de flores – exigiu um eco da rainha.
Brexit (2016), passando pelo movi- próximos anos se a monarquia quiser nios. Maravilhada com esse conto de Em seu discurso ao vivo na televisão,
mento punk, apenas sua idade mu- superar os desafios que a aguardam. fadas, a bíblia dos meios de negócios, o primeiro que ela dava em 38 anos,
dou. Hoje ela usa peles sintéticas, pre- O príncipe Charles, herdeiro do tro- The Economist, retoma a máxima de Elizabeth adotou um tom pessoal, até
feridas às verdadeiras, mas, no fundo, no, certa vez inundou o governo com Karl Marx segundo a qual o capitalis- íntimo, que não era habitual dela: “O
a rainha é história conservada no ge- cartas sobre arquitetura, mudança mo destruirá os vestígios do feudalis- que estou dizendo agora, como ra-
lo. Ela aparece de vez em quando, climática e miséria social, mas o sen- mo para se alegrar pelo fato de a mo- inha e como avó, vem do coração”, ela
quando ocorrem catástrofes, para so de tato político de sua mãe cruel- narquia britânica ter “fortalecido o disse, balançando levemente e reci-
tranquilizar seu povo. Em um discur- mente lhe faz falta. Com uma taxa de capitalismo em vez de miná-lo”.11 A tando as palavras escritas para ela
so no início do primeiro confinamen- popularidade de 47%, ele vem apenas rainha gosta de se exibir como apolíti- pelo spin doctor (assessor de comuni-
to por conta da pandemia de Co- em sexto lugar entre as figuras reais ca, trabalhadora e dedicada, virtudes cação) do primeiro-ministro Tony
vid-19, em março, ela evocou, com mais populares. Alguns temem que, que um chefe de start-up não rejeita- Blair, Alastair Campbell.
traços congelados, a canção de guerra com a morte de Elizabeth, toda a mo- ria: “A maioria das pessoas tem um O reality show real cujos tabloi-
de Vera Lynn “We’ll meet again” [“Nós narquia vacile. Outros estão espa- emprego e depois vai para casa, en- des engordam – a nora bulímica, o fi-
nos encontraremos novamente”]. lhando teorias malucas nas redes so- quanto em minha existência trabalho lho adúltero, o filho ilegítimo indis-
A continuidade é um valor caro ciais de que ela já estaria morta, e vida são uma coisa só”, disse na BBC ciplinado – humaniza as pessoas
aos monarquistas. Em suas Reflexões atualizando a obsessão mórbida dos em 1992. “Às vezes, gostaria de ter dessa organização secreta na mente
sobre a Revolução Francesa, de 1790, o britânicos com o corpo de seu mo- mais tempo para mim.” do público. Como Bagehot ainda ob-
filósofo Edmund Burke comparou a narca como personificação do Esta- Adicione-se a isso que, no século serva, “uma família no trono é uma
febre revolucionária do campo do Ilu- do, quer se presuma que tenha tido XX, graças à televisão e aos paparazzi, ideia interessante. [...] Uma família
minismo às disposições mais mode- sífilis (Henrique VIII), seja virgem membros da família real se tornaram real ameniza a vida política pela in-
28 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

and meaning of ritual: the British monarchy


corporação sazonal de belos aconte- do extra a uma instituição que, de lhões) de perdas de receita registra- and the ‘invention of tradition’” [O contexto,
cimentos”. Na verdade, os tormentos maneira mais ou menos ambígua, já das na gestão de seu parque desempenho e significado do ritual: a monar-
quia britânica e a “invenção da tradição”], c.
da vida familiar fornecem uma dis- o tem em quantidade. imobiliário por causa da pandemia. 1820-1977. In: Eric Hobsbawm e Terence
tração bem-vinda ao poder aparen- A cada ano, a família real custa ao E, no entanto, em meio aos con- Ranger (org.), The Invention of Tradition [A in-
temente imutável exercido por um país 67 milhões de libras (R$ 500 mi- frontos que abalaram o país nos últi- venção da tradição], Cambridge University
Press, 1983.
clã cujo status eminentemente espe- lhões). Ela pratica a evasão fiscal por mos anos, por causa do Brexit e da 8   H ilary Mantel, “Royal bodies” [Corpos reais],
cial garante imunidade a qualquer meio de isenções15 e drenagens para independência da Escócia, tão inti- London Review of Books , v.35, n.4, 21 fev.
forma de democracia. locais offshore.16 O vínculo firmado mamente ligados à questão de sua 2013.
9   Federação de 54 estados, antigos territórios
com um clã aristocrático que contro- soberania, a monarquia escapa aos britânicos, formalmente unidos em 1949 como
CAMPEÃ DA EVASÃO FISCAL la todos os circuitos das finanças tor- olhares.  uma união de países “livres e iguais”. A rainha é
A casa de Windsor domina uma cul- nou a City de Londres ainda mais reconhecida como chefe da Commonwealth.
10  Anguilla, Antígua e Barbuda, Austrália, Baha-
tura em que os códigos de classe atrativa para os sonegadores de todo *Lucie Elven  é jornalista. mas, Belize, Bermudas, Canadá, Chipre, Do-
mais refinados, do mordomo à eti- o mundo, contribuindo para a alta minica, Gibraltar, Granada, Guernsey, Ilhas
queta dos discursos, se tornaram vertiginosa dos preços e aluguéis na 1   E dward Shils e Michael Young, “The meaning Cayman, Ilha de Man, Jersey, Malvinas, Mont-
of the coronation” [O significado da coroa- serrat, Nova Zelândia, Santa Helena, Santa
uma especialidade nacional. A in- capital. Em princípio, a rainha possui ção], The Sociological Review, v.1, n.2, Lon- Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e
dústria da herança real, monetizan- um sexto de todas as terras do plane- dres, 1 dez. 1953. Granadinas, Tuvalu.
do o passado e inventando tradições, ta. Em um recente debate parlamen- 2   “ Elizabeth R: A Year in the Life of the Queen” 11  “Harry, Meghan and Marx” [Harry, Meghan e
[Elizabeth R: Um ano na vida da rainha], Marx], The Economist, Londres, 16 jan. 2020.
emprega mais trabalhadores que as tar sobre a indústria eólica no mar, BBC, 1992. 12  Ignacio Ramonet, “Contre le mimétisme”
indústrias da pesca e da mineração Boris Johnson chamou o portfólio de 3   Z adie Smith, “Mrs. Windsor. The reassuring [Contra o mimetismo], Le Monde Diplomati-
combinadas.14 Ela é fonte de produ- imóveis da monarquia, o Crown Esta- domesticity of our head of state” [Sra. Wind- que, out. 1998.
sor. O tranquilizador caráter doméstico de 13  The Daily Mail, The Express e The Sun, res-
tos culturais variados e rentáveis, co- te, de um “mestre do fundo do mar” nossa chefe de Estado], Vogue, Londres, pectivamente.
mo filmes A rainha (2006) e O discur- (14 out. 2020). A moratória sobre des- dez. 2017. 14  Sam Wetherell e Laura Gutiérrez, “It just won’t
so do rei (2010), ou a série The Crown pejos de aluguel decretada pelo go- 4   S everin Carrell e Owen Bowcott, “Did John- die” [Ela simplesmente não vai morrer], Jaco-
son lie to the Queen?” [Johnson mentiu para bin, Nova York, 19 maio 2018.
(lançada em 2016), da Netflix. O ator verno para lidar com a crise da Co- a rainha?], The Guardian, Londres, 24 set. 15  John Harris, “‘Essentially, the monarchy is cor-
ou a atriz que interpretam o monar- vid-19, ameaçando jogar 55 mil 2019. rupt’ – will republicanism survive Harry and
ca sempre recebem uma chuva de famílias nas ruas, foi suspensa em se- 5   Harold J. Laski, “The responsibility of the State Meghan?” [“Essencialmente, a monarquia é
in England” [A responsabilidade do Estado na corrupta” – o republicanismo sobreviverá a
prêmios de prestígio, como se inter- tembro. Na mesma semana, soube-se Inglaterra], Harvard Law Review, v.32, n.5, Harry e Meghan?], The Guardian, 8 maio 2018.
pretar um rei ou rainha representas- que o contribuinte pagaria ao Crown Cambridge (Massachusetts), mar. 1919. 16  Hilary Osborne, “Revealed: Queen’s private
se uma conquista mais notável que Estate um aumento generoso para 6   “ Revisão dos poderes de prerrogativa real estate invested millions of pounds offshore”
executiva: relatório final”, Ministério da Justiça [Revelado: fundo da rainha investiu milhões
interpretar qualquer outro ser hu- compensar parcialmente os 500 mi- Britânico, Londres, out. 2009. de libras em paraísos fiscais], The Guardian,
mano e como se isso desse um senti- lhões de libras esterlinas (R$ 3,5 bi- 7   David Cannadine, “The context, performance 5 nov. 2017.
.

A capa de toureiro da
tentativa de reproduzir os argumen-
tos da Lei Gayssot reprimindo as pro-
postas negacionistas parece dificil-
mente resistível.

liberdade universitária
A ofensiva conseguiu provocar
uma indignação coletiva, ainda mais
porque a defesa da liberdade de ensi-
no, de pesquisa e de expressão é um
dos raros assuntos que mobilizam
imediatamente uma corporação em
Se a liberdade de ensino e de pesquisa não é submetida a nenhuma forma de censura, geral pouco combativa. O caso Vin-
ela necessita também que o conjunto da comunidade universitária possa trabalhar cent Geisser, em 2009, dá uma ilus-
tração disso. O sociólogo do mundo
com serenidade. A batalha da liberdade universitária é tanto uma questão árabe e muçulmano entrou, na épo-
de interesse financeiro como de grandes princípios ca, em conflito com o funcionário de
segurança e defesa (FSD) do Centro
Nacional de Pesquisa Científica
POR DOMINIQUE PINSOLLE* (CNRS), oficialmente encarregado,
entre outras coisas, de “garantir” ati-
vidades de pesquisa consideradas

A
s elucubrações do ministro ção no âmbito das universidades e palmente pela União Nacional dos “sensíveis”. Convocado diante da co-
francês da Educação Nacional, dos órgãos de pesquisa. Estudantes da França (Unef), ataca- missão de disciplina do CNRS por
Jean-Michel Blanquer, a pro- As hostilidades foram declaradas da no texto – almejava, no entanto, faltar a seu dever de reserva, o pes-
pósito do “islamoesquerdis- em 31 de outubro, quando o Le Monde explicitamente “o islamismo funda- quisador recebeu o apoio de uma pe-
mo” na universidade tiveram um publicou um artigo assinado por uma mentalista” e concluía que “é exata- tição com assinaturas prestigiosas.
efeito que, provavelmente, não desa- centena de universitários apoiando mente essa ideologia e aquelas e O caso foi encerrado com uma sim-
grada nem ao seu autor nem à sua co- Blanquer e fustigando a suposta “ne- aqueles que a seguem que devem ser ples advertência. Isso relembrou
lega, a ministra do Ensino Superior, gação” de uma parte de seus colegas combatidos sem interrupção”.2 que, na França, a “independência” e
da Pesquisa e da Inovação, Frédéri- concernente às “derivas islamistas” Pouco importa. Os signatários a livre expressão” dos professores e
que Vidal. Enquanto o criticado pro- que afetaram sua própria institui- conseguiram uma dupla proeza: ali- pesquisadores são garantias no âm-
jeto de lei de programação da pes- ção.1 As reticências para “designar o nhar-se por trás de um ministro em bito constitucional desde 1984 e, ao
quisa (LPR – Loi de programmation islamismo como responsável pela nome de sua independência e inti- mesmo tempo, são limitadas na lei
de la recherche) estava em análise morte de Samuel Paty” [morto em mar Vidal, em nome da liberdade de apenas pelos “princípios de tolerân-
parlamentar, a concentração nos de- atentado praticado em outubro em expressão, a estabelecer “medidas de cia e objetividade”.
bates sobre a liberdade universitária Conflans-Sainte-Honorine] revela- detecção” e uma “instância encarre- A indignação suscitada no mundo
impediu a visualização das reivindi- ram, segundo eles, a gravidade da si- gada de recuperar diretamente os ca- universitário pela tribuna do dia 31
cações feitas já durante um ano por tuação. O comunicado intersindical sos de ataque aos princípios republi- de outubro não contrariou as expec-
um grande movimento de contesta- de 21 de outubro – coassinado princi- canos e à liberdade acadêmica”. A tativas nem do conteúdo nem da for-
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ma. Denunciando uma “caça às bru- (LRU), em 2007, os estabelecimentos ral do CNRS, Antoine Petit, pedia, entre os “CDI de missão” [contratos
xas”, outro texto logo identificou padecem de um subfinanciamento além de suas resoluções, uma lei não por tempo indeterminado enquanto
essas acusações como um “ataque crônico, defasado pelo aumento do igualitária: “Sim, não igualitária, dura o projeto] e as “cadeiras de pro-
contra o Estado democrático de di- número de estudantes. Sua “autono- uma lei virtuosa e darwiniana”.6 To- fessor júnior”. O estatuto nacional dos
reito”. 3 A ênfase desse protesto con- mia” se reduz à possibilidade de eles das as condições de mobilização con- professores pesquisadores foi ainda
firma a dificuldade dos intelectuais próprios se infligirem, com mais ou tra a precarização das vidas e das mais enfraquecido porque o Conselho
de se conceberem simplesmente co- menos ardor, uma política de austeri- condições de trabalho de cada um es- Nacional das Universidades (CNU),
mo trabalhadores que lutam contra a dade orçamentária. Se a liberdade de tavam reunidas. Os olhares já se vol- encarregado de gerenciar as carreiras
degradação de suas condições de ensino e de pesquisa não é submetida tavam para além das universidades, dos professores, vê suas prerrogativas
trabalho. Já em 2009, a mobilização a nenhuma forma de censura, ela ne- para os “coletes amarelos”, os grevis- reduzidas em matéria de recrutamen-
contra o desmanche do status dos cessita também que o conjunto da tas da SNCF [Companhia Nacional tos em benefício dos estabelecimen-
professores pesquisadores foi apre- comunidade universitária possa tra- das Estradas de Ferro] e da RATP [Au- tos. Enfim, uma emenda destinada
sentada como uma questão de civili- balhar com serenidade. Ora, o impe- toridade Autônoma dos Transportes aos estudantes muito politizados aos
zação”...4 Um grande número de ca- rativo da “excelência” impõe correr Parisienses], os hospitais, os profes- olhos da hierarquia pune pesadamen-
tegorias profissionais foi atacado por atrás de licitações para projetos na sores das escolas, das faculdades e te “o fato de penetrar ou se manter nos
um governo conservador, com a in- esperança de obter fundos dos quais dos liceus... recintos de um estabelecimento de
diferença da maior parte daquelas e as unidades de pesquisa não dis- Em seguida, chegou o confina- ensino superior [...] com o objetivo de
daqueles que professam nos anfitea- põem mais. Aliás, esse modo de fi- mento. A prisão domiciliar coletiva perturbar a tranquilidade ou a boa or-
tros. Mas alguns universitários, con- nanciamento demonstrou sua inuti- alguns dias depois acabou com o elã dem do estabelecimento”. A única ilu-
vencidos de ocupar um lugar à parte lidade no contexto da pandemia de e sujeitou os professores às videocon- sória proposta de submeter a liberda-
na sociedade, não podem se impedir Covid-19: entre 2015 e 2019, o virolo- ferências. Todas as palavras de or- de universitária ao respeito dos
de recomeçar, toda vez que são em- gista Bruno Canard e sua equipe do dem que tinham agitado a institui- “valores da República”, que gastou
purrados, o eterno combate do Ilu- CNRS tiveram cinco projetos concer- ção durante quatro meses se tanta tinta, foi abandonada. Como se,
minismo contra o obscurantismo, nentes ao coronavírus recusados pela apagaram subitamente diante das dado o primeiro golpe no touro, não
em um mundo onde o papel do per- Agência Nacional da Pesquisa, que os discussões infindáveis com um voca- houvesse mais necessidade de agitar o
seguido estaria reservado a eles. A julgou não prioritários.5 A batalha da bulário desconhecido antes da pri- pano vermelho. 
propaganda da extrema direita e liberdade universitária é tanto uma mavera: ensino “presencial” ou “a
seus êxitos eleitorais fomentam os questão de interesse financeiro como distância”, aulas “sincronizadas” ou *Dominique Pinsolle  é historiador e pro-
mais alarmistas discursos. Assim, o de grandes princípios. “dessincronizadas”, funcionamento fessor da Université Bordeaux-Montaigne,
apoio aos pesquisadores franceses Essa evidência se encontra no cer- de “modo degradado”... A querela do na França.
que vem do exterior, mais graças às ne do movimento iniciado no outono “islamoesquerdismo” acrescentou
1   “Une centaine d’universitaires alertent: ‘Sur
redes de uma profissão fortemente de 2019 nas universidades. Tudo co- uma última pá de cal no caixão das les dérives islamistes, ce qui nous menace,
internacionalizada do que à notorie- meçou, como sempre, pelos estudan- reivindicações, que, apesar de tudo,
.

c’est la persistance du déni’” [Uma centena


dade de Blanquer na América do tes. Um deles, Anas K., acabava de continuam a aflorar on-line. de universitários alerta: sobre as derivas isla-
mistas, o que nos ameaça é a persistência da
Norte, não se preocupou com sutile- tentar se imolar por meio do fogo pa- Diante das universidades petrifi- negação], Le Monde, 31 out. 2020.
zas ao postular uma “tendência ra denunciar a precariedade de todas cadas pelo confinamento, a intransi- 2   “Face à l’obscurantisme, faisons grandir une
mundial em que o racismo é protegi- aquelas e aqueles que, como ele, são gência de Vidal e da maioria parla- société unie et fraternelle” [Diante do obscu-
rantismo, façamos crescer uma sociedade
do como liberdade de expressão, en- obrigados a trabalhar para continuar mentar durante a análise da LPR foi unida e fraternal], comunicado intersindical,
quanto expressar um ponto de vista seus estudos. A essa causa se juntou a semelhante a uma desprezível de- 21 out. 2020.
antirracista seria uma violação”. As luta contra a reforma da previdência. monstração de força de um lutador 3   “Cette attaque contre la liberté académique
est une attaque contre l’État de droit démo-
universidades teriam passado para Uma minoria de professores, pesqui- sem adversário. Alertas e críticas for- cratique” [Esse ataque contra a liberdade
as mãos da Ku Klux Klan sem que sadores e membros do corpo admi- muladas por um grande leque de ins- acadêmica é um ataque contra o Estado de-
ninguém percebesse? nistrativo se juntou às assembleias tâncias e organizações universitárias mocrático de direito], Le Monde, 2 nov. 2020.
4   “ Université, un enjeu de civilisation” [Universi-
Além das batalhas de textos que gerais e aos cortejos. A raiva era ainda junto ao Executivo foram ignoradas dade, uma questão de civilização], L’Humani-
interessam aos trabalhadores inte- maior porque um projeto de “lei de como se não fossem importantes. O té, Saint-Denis, 18 fev. 2009.
lectuais, a liberdade universitária su- programação plurianual da pesqui- texto final se mostra até pior do que o 5   Bruno Canard, “La virologie est un sport de
combat” [A virologia é um esporte de comba-
põe que o ofício de professor e de pes- sa” (LPPR, que se tornou LPR) levava que foi contestado no início. A lógica te], Université ouverte, 19 set. 2020. Disponí-
quisador possa ser exercido em a temer o pior em matéria de finan- “darwiniana” imposta à pesquisa é vel em: https://universiteouverte.org.
condições materiais satisfatórias. ciamentos, de precariedade dos con- acompanhada de um aumento da 6   Antoine Petit, “La recherche, une arme pour
les combats du futur” [A pesquisa, uma arma
Desde a lei relativa às liberdades e tratos e da concorrência nefasta entre precarização pela multiplicação de para os combates do futuro], Les Échos, Pa-
responsabilidades das universidades instituições. O presidente diretor-ge- contratos por tempo determinado – ris, 26 nov. 2019.

História Natural Aspectos do novo Etica


Resultado de uma das radicalismo O ser humano enfrenta
mais importantes diariamente dilemas de natureza
empreitadas cien�ficas do de direita é�ca e moral. Simon Blackburn
Século das Luzes, esta Adorno analisa o potencial aborda as principais questões
edição traz uma seleção fascista na Alemanha, com que tensionam esse debate,
de capítulos mais o ressurgimento nos anos trazendo à reflexão o próprio
representa�vos da obra 1960 de um novo significado da vida.
magna do conde de radicalismo de direita, no
Buffon, que busca reunir seio de uma democracia
todo o conhecimento das bem-consolidada, em
"ciências naturais" pleno auge do capitalismo.
disponível em
seu tempo. Produzir conteúdo
Compartilhar conhecimento.
Desde 1987.
www.editoraunesp.com.br
30 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

MEDIDAS TÃO ANTIDEMOCRÁTICAS QUANTO INEFICAZES

Quem vai parar a


máquina repressiva?
Apoiado pelos principais sindicatos de policiais, o projeto de lei sobre segurança global foi votado pela
Assembleia Nacional francesa em 24 de novembro. Ele estende uma tendência repressiva que, da luta
contra o terrorismo ao estado de emergência sanitário, vincula a segurança à restrição de liberdades.
E se essa estratégia se mostrasse contraprodutiva?

POR VINCENT SIZAIRE*

O
s assassinatos de Conflans- caracterizado pela arbitrariedade e terizada por um aumento significati- durante o estado de emergência terão
-Sainte-Honorine e de Nice, pelo excesso. A ordem penal republi- vo do poder das autoridades. Por um revelado uma possível associação
perpetrados em outubro por cana foi construída sobre a convicção lado, tais buscas são ordenadas ape- terrorista de criminosos em menos
jovens fanáticos que afirmam de que uma lei é “tanto menos eficaz nas pelo Poder Executivo; e, no caso de 1% dos casos.10 E, em relação àque-
pertencer a um islã fantasioso, deram quanto mais desumana”.3 de medidas de estado de emergência, las ordenadas desde então, apenas
um novo impulso a todos aqueles sem nenhum controle judicial prévio, duas pessoas das 165 buscas foram
que, em nome da “guerra contra o DISPERSÃO DAS FORÇAS POLICIAIS as diligências podem simplesmente processadas sob esse pretexto.11 Ob-
terrorismo”, exigem a suspensão Se queremos acabar com a corrida ser objeto de controle a posteriori do serve-se que, tanto num caso como
mais ou menos duradoura de nossas repressiva desenfreada, talvez seja o juiz administrativo – se for o caso de no outro, esses procedimentos pode-
liberdades públicas. E, mesmo que momento de considerar que, longe de um recurso ser interposto, o que mui- riam perfeitamente ter sido iniciados
algumas vozes tenham se levantado ser um obstáculo para a efetividade to raramente acontece. Por outro la- em um quadro judicial, que concede
para defender os princípios do Estado das punições, o respeito ao Estado de do, e sobretudo, elas podem ser reali- poderes de busca idênticos em maté-
de direito,1 nenhuma questionou di- direito é uma de suas condições bási- zadas contra qualquer pessoa cujo ria de crime terrorista.12 Quanto à
retamente a visão segundo a qual, cas. Quanto mais garantimos – em “comportamento” seja percebido co- afirmação de alguns segundo a qual
.

diante do crime terrorista, a expan- particular pelo controle de uma auto- mo uma “ameaça”,6 sem que seja ne- as “visitas” administrativas teriam
são infinita do poder repressivo seria ridade independente – que as medi- cessário caracterizar o cometimento permitido afastar a dúvida dos servi-
um mal necessário. das privativas ou restritivas da liber- de um ato concreto. ços de inteligência em relação a de-
Preocupante do ponto de vista de- dade adotadas pelas autoridades Desde o fim do estado de emer- terminados indivíduos,13 ela parece
mocrático, essa retórica está longe de públicas sejam estritamente neces- gência, as autoridades também de- acrobática em um momento em que
ser inédita. Ela encontra suas raízes sárias e proporcionais ao objetivo vem justificar que a pessoa “ou entre estes últimos possuem todos os dis-
na tradição autoritária que tem tra- que perseguem, mais nos permiti- em relação de maneira habitual com positivos possíveis e imagináveis pa-
balhado nosso ordenamento jurídico mos a possibilidade de realizá-las. pessoas ou organizações que inci- ra monitorar as pessoas das quais
desde o final do século XVIII.2 Nós a Essa hipótese se verifica em primeiro tam, facilitam ou integram atos de suspeitam, desde a interceptação de
encontramos no cerne do projeto de lugar no que diz respeito aos disposi- terrorismo, ou apoie (ou se filie a) te- suas conversas telefônicas até a ins-
lei que, sob o pretexto de garantir a tivos de combate aos chamados cri- ses que incitem o cometimento de talação de um sistema de escuta em
“segurança global”, tende a impedir mes terroristas. Desde o início da dé- atos terroristas ou façam apologia a seu apartamento, passando pela es-
qualquer questionamento das forças cada de 1980 e da abolição do tais atos”.7 Mas a natureza extensa do pionagem da menor de suas ativida-
policiais pelas violências que come- Tribunal de Segurança do Estado, conceito de terrorismo permite um des digitais.14
tem. Também está presente nas me- sempre foi por meio de procedimen- escopo particularmente amplo de
didas de exceção colocadas em práti- tos legais conduzidos por juízes de aplicação.8 E se a questão também se COERÇÃO DESPROPORCIONAL
ca pelo governo francês desde instrução independentes que os pla- coloca no que se refere aos procedi- Na realidade, a prodigiosa inefi-
fevereiro para enfrentar a crise da nos de ataques foram frustrados, per- mentos penais, estes pressupõem, no cácia dessa repressão “livre e sem
saúde, reforçando a ideia de que a re- seguindo seus autores sob a alegação mínimo, o cometimento de um delito distorções” é facilmente explicada.
núncia mais ou menos completa de de associação terrorista – e prenden- que, se for mais ou menos arbitraria- Ao alargar de modo desproporcional
nossa liberdade de ir e vir seria o pre- do-os – antes que passassem à ação.4 mente qualificado de terrorista, im- o escopo dos fatos e gestos passíveis
ço a pagar para salvar nossa vida e Se essa abordagem está longe de ser plica a prova de um ato material ilíci- de serem qualificados de “terroris-
nossa saúde. isenta de crítica, o enquadramento to, o que de forma alguma é o caso em tas”, ela leva à dispersão, ao espalha-
Baseadas na oposição simplista judicial pressupõe que as forças poli- questões administrativas. mento e, logo, ao esgotamento das
entre segurança e liberdade, essas re- ciais e os magistrados apoiem o pro- Ressurgimento de uma aborda- forças repressivas. Pior ainda, corre-
presentações derivam do mais com- cesso desta ou daquela pessoa em gem para contornar as garantias do -se o risco de, em última instância,
pleto dogmatismo. A exigência cons- elementos precisos, objetiváveis e processo penal que se observa desde reduzir a capacidade dos serviços de
titucional de fiscalização e consistentes. o início do século XIX,9 essa resposta polícia e dos magistrados de identifi-
moderação da ação das autoridades Por outro lado, as medidas admi- administrativa constitui, sem dúvi- car projetos criminosos comprova-
repressivas, que hoje gostaríamos de nistrativas de combate ao terrorismo, da, o paradigma da repressão desen- dos, deixando de convidá-los a se
colocar entre parênteses, estrutura o que se multiplicaram ao longo da úl- freada que os depreciadores do Esta- concentrar de maneira precisa e rigo-
projeto penal iluminista, consagrado tima década, apresentam um balan- do de direito reclamam. No entanto, rosa nos atos que pretendem perse-
pela Declaração dos Direitos do Ho- ço pouco lisonjeiro, assim como as ela se mostra mais eficaz, ou seja, guir. Numa altura em que ninguém
mem e do Cidadão, de 26 de agosto de buscas ordenadas sob a cobertura do mais capaz de permitir a elucidação pensa em negar a persistência e a gra-
1789. Ora, esse projeto foi construído estado de emergência proclamado de atos terroristas e, em particular, a vidade do risco de um atentado, é
não apenas em oposição ao despotis- entre novembro de 2015 e outubro de identificação de ataques planejados? realmente razoável pedir aos procu-
mo do poder monárquico, mas tam- 2017 e que, com o nome de “visitas”, Sem ofender seus defensores, a cons- radores dedicados ao combate ao ter-
bém como reação à ineficácia do sis- agora figuram no direito comum.5 tatação do fracasso é mais que gri- rorismo que se encarreguem do me-
tema repressivo do Antigo Regime, Essa repressão extrajudicial é carac- tante. Assim, as buscas ordenadas nor procedimento aberto sob a
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31

© Philippe Wojazer/Reuters
*Vincent Sizaire é professor associado
acusação de apologia ao terrorismo
da Universidade Paris Nanterre e autor de
contra pessoas estúpidas o suficiente
Être en sûreté. Comprendre ses droits pour
para terem mostrado seu apoio a este
être mieux protégé [Estar em segurança.
ou aquele crime?
Entender seus direitos para estar mais bem
Embora não tenhamos o mesmo
protegido], La Dispute, Paris, 2020.
nível de distanciamento, a ineficiên-
cia tendencial da arbitrariedade dos
poderes públicos também é ilustrada 1   C f., por exemplo, “Terrorisme, liberté d’expres-
na implementação do estado de emer- sion, laïcité... Au-delà des polémiques et de
l’instrumentalisation politicienne, les principes
gência sanitária instituído pela Lei n.
et le droit” [Terrorismo, liberdade de expres-
2020-290, de 23 de março de 2020. Va- são, secularismo... Para além das controvér-
mos esclarecer desde o início que não sias e da instrumentalização política, os prin-
cípios e a lei], Sindicato dos Advogados da
era absolutamente necessário insti-
França, Paris, 30 out. 2020.
tuir um novo regime de exceção para 2   Ler “Des sans culottes aux ‘gilets jaunes’, his-
fazer frente à crise sanitária: a “urgên- toire d’une surenchère répressive” [Dos sans-
cia” era muito mais dar às medidas de -culottes aos “coletes amarelos”, a história de
uma escalada repressiva], Le Monde Diplo-
restrição à liberdade adotadas pelo matique, abr. 2019.
governo uma base legal mais sólida e 3   M ichel Lepeletier de Saint Fargeau, relatório
sobre o projeto de Código Penal, Assem-
protetora que a simples invocação de
bleia Constituinte, sessões de 22 e 23 de
“circunstâncias excepcionais”. Embo- maio de 1791.
ra essa lei tenha permitido um melhor 4   Art. L.421-2-1 do Código Penal.
5   Lei de 30 de outubro de 2017, que reforça a
enquadramento da intervenção das
segurança interna e a luta contra o terrorismo.
autoridades, ela está longe de prevenir 6   Art. 11 da Lei n. 55-385, de 3 de abril de
qualquer risco de arbitrariedade. Esse 1955.
7   Art. L. 228-1 do Código de Segurança Interna.
risco decorre, em primeiro lugar, dos
8   Ler “Quand parler de ‘terrorisme’?” [Quando
critérios que permitem o desencadea- falar sobre “terrorismo”?], Le Monde Diplo-
mento de um estado de emergência matique, ago. 2016.
9   C f. Sortir de l’imposture sécuritaire [Sair da
sanitária, que pode ser decidido para
impostura de segurança], La Dispute, Paris,
pôr fim a uma “catástrofe sanitária 2016.
que coloca em perigo, por sua nature- Exército Francês patrulha a região da Torre Eiffel, em Paris 10  Trinta procedimentos abertos sob essa acu-
sação para “mais de 4.300” medidas de bus-
za e gravidade, a saúde da popula-
ca, de acordo com o estudo de impacto do
ção”.15 No entanto, a noção de “catás- um lado, as restrições que podem ser nor observação das ações profiláti- projeto de lei que reforça a segurança interna
trofe” é muito vaga e, acima de tudo, ordenadas pelo primeiro-ministro cas pelos cidadãos. Reconhecendo e o combate ao terrorismo de 22 de junho de
.

2017. Além disso, nenhuma infração foi cons-


muito subjetiva. Da mesma forma, a são definidas de forma exaustiva, por indiretamente esse risco, o governo,
tatada em quase 88% dos casos.
noção de “perigo” é muito ampla: por outro apenas a quarentena ou a colo- desde os primeiros dias do confina- 11  Relatório de informação n. 348 sobre o con-
hipótese, qualquer doença infecciosa cação em isolamento estão sujeitas à mento da primavera, mobilizou mais trole e fiscalização da Lei n. 2017-1510, de
30 de outubro de 2017, Senado, Paris, 26
afeta nossa saúde, quando apenas revisão judicial sistemática de sua ne- de 4,3 milhões de controles policiais
fev. 2020.
eventos de natureza que ameaçam a cessidade e proporcionalidade.16 No para garantir seu cumprimento.18 O 12  Art. 706-89 e seguintes do Código de Pro-
vida ou, pelo menos, que afetam irre- entanto, tal como deliberou o Conse- custo desse dispositivo poderia, sem cesso Penal.
13  L aurent Borredon, “État d’urgence: ‘Ne cas-
paravelmente a integridade física de lho Constitucional, esse requisito dúvida, ter sido alocado de forma
sez pas la porte, sonnez, je vous ouvre’” [Esta-
parte significativa da população de- também se aplica à prisão domiciliar muito mais útil para a proteção de do de emergência: “Não arrombe a porta, to-
veriam ser capazes de justificar a ado- particularmente mais rigorosa que pessoas particularmente vulnerá- que a campainha, vou abrir para você”], Le
ção de medidas tão restritivas das li- aquela à qual todos nós estamos no- veis à doença... Monde, 14 dez. 2015.
14  Art. L.851-1 e seguintes do Código de Segu-
berdades quanto aquelas permitidas vamente sujeitos.17 Garantir que as violações das li- rança Interna.
pelo estado de emergência sanitária. Aqui, de novo, notamos que essa berdades sejam estritamente adap- 15  Art. L.3131-12 do Código de Saúde Pública.
16  Artigos L. 3131-15 e L. 3131-17 do Código de
A imprecisão dos critérios de mudan- coerção desproporcional provavel- tadas e proporcionais não constitui
Saúde Pública.
ça na exceção é ainda mais problemá- mente reduzirá a eficácia bem com- apenas uma necessidade democráti- 17  D ecisão n. 2020-800 DC, de 11 de maio de
tica quando se pensa que o Parlamen- preendida da resposta do público. ca. É também condição sine qua non 2020, cons. 43, Conselho Constitucional,
Paris.
to só é convidado a votar sobre a Assim, o excesso pode levar a uma para a eficácia da luta contra o peri-
18  Relatório da missão de acompanhamento do
prorrogação do estado de emergência menor adesão às medidas de restri- go em nome do qual queremos res- projeto de lei de emergência para lidar com a
de saúde após um mês e que se, por ção e, em consequência, a uma me tringi-las.  epidemia de Covid-19, Senado, 2 abr. 2020.

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32 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

MÚSICA

O desastre. E depois? Tantos grupos com interesses às ve-


zes contraditórios. Essa fragmenta-
ção, que talvez a pandemia esteja ab-
sorvendo pelo vazio, explica o tempo
que foi necessário para chegar ao sur-
O Centro Nacional da Música, na França, acaba de ser aberto. Encarregado gimento do CNM: meio século.
especialmente de colocar em prática uma política de apoio à criação não No entanto, a relação da música
com o poder é antiga: Luís XIV criou a
diretamente “rentável”, ele terá de enfrentar a devastação promovida pela Academia Real da Música (ancestral
crise sanitária e, a longo prazo, as pressões dos interesses comerciais da Ópera Nacional) em 1669, e as en-
comendas reais aos músicos eram nu-
merosas. Mas não se inventou muita
POR ÉRIC DELHAYEJ* coisa diferente durante muito tempo.
Quando o Estado subvenciona com-
panhias de concertos sinfônicos, a
partir de 1861, trata-se mais de uma
pulverização de créditos mínimos do
que de uma ação estruturante. A Cai-

“E
vitar as falências.” Durante abalou o castelo de cartas, ainda “missão de apoio à criação e à difu- xa Nacional das Letras e o Centro Na-
a coletiva de imprensa, em mais porque o ecossistema da música são” evocada pelo CNM. cional da Cinematografia (CNC)2 fo-
3 de novembro de 2020, o (artistas, técnicos, produtores, edito- Em tempos normais, cumprir efe- ram fundados em 1946. O país foi
presidente do Centre Na- res, difusores...) já estava fragilizado tivamente essa missão já não seria dotado de um Ministério dos Assun-
tional de la Musique (CNM) chegou pela degringolada da indústria fono- nada simples. Na verdade, essa cadeia tos Culturais, confiado por Charles de
rapidamente ao que hoje é priorida- gráfica dos últimos vinte anos. É pre- de produção se caracteriza por suas Gaulle a André Malraux em 1959. Mas
de. Desejado durante muito tempo e ciso acreditar que a amplitude e a disparidades estéticas, sociológicas e foi preciso esperar mais quatro anos
criado juridicamente em janeiro, o profundeza dos desgastes confirma- econômicas: entre amadores e profis- para que o ministro admitisse, diante
estabelecimento público que mal rão a necessidade de coordenar e sus- sionais, entre música clássica subven- da Assembleia, “uma parte de inação
acabou de ser instalado foi obrigado a tentar um setor que movimentou 9,7 cionada e músicas contemporâneas, do Estado” no âmbito da música. A dé-
se ocupar de problemas urgentes, bilhões de euros e representou entre música gravada e espetáculo ao cada assistiu ao desenvolvimento do
quando, em março, os shows foram 256.957 empregos em 2018,1 em alta vivo, entre selos independentes e vinil, do rock’n’roll e do compositor
proibidos. Sua criação marcava a re- sob o impulso do streaming até a grandes empresas internacionais, en- Pierre Boulez, que queria encarnar “a
novação das políticas públicas volta- ruptura de 2020. É preciso acreditar tre pequenas e grandes salas, peque- esperança de uma cultura musical
das à música após décadas de tergi- também que os imperativos econô- nos e grandes festivais, artistas emer- audaciosa, renovada”.3 Previsto para
.

versações. Porém, a crise sanitária micos não terão o efeito de enterrar a gentes e grandes estrelas milionárias... dirigir o primeiro Serviço da Música,
integrado ao Ministério da Cultura,
© Alberto Bigoni/Unsplash

Boulez, defensor do serialismo, foi


descartado em 1966 em benefício de
outro compositor, Marcel Landowski,
fiel ao sistema tonal.
Landowski declarou, então, sua
linha básica: “A partir de agora, em
troca de subvenções mais importan-
tes, trata-se de promover e controlar
[...] uma política de criação, de gran-
de ação cultural e de qualidade de
interpretação que deverá permitir,
sob o controle do Estado, um desen-
volvimento e uma nova influência da
música”.4 Paralelamente à criação,
em 1967, da Orquestra de Paris (cofi-
nanciada pelo Estado e pelo municí-
pio), ele organizou a descentraliza-
ção, estimulando uma rede de
orquestras e óperas regionais e dan-
do apoio ao desenvolvimento de es-
colas de música e de conservatórios
nacionais por região.5 Autor de um
“Plano de dez anos”, em 1969, para
eliminar o “atraso considerável” que
não permitiu a adaptação da música
às profundas mudanças sociais e
técnicas do mundo moderno”,6 de-
pois, em 1971, primeiro diretor da
música, da arte lírica e da dança, de-
senvolveu um projeto de democrati-
zação baseado no ensino e na forma-
ção. Mas, dispensado após a eleição
de Valéry Giscard d’Estaing, em 1974,
não pôde levar a cabo seu projeto do
Centro Nacional da Música e da Dan-
ça, um “órgão público-privado, com
A crise sanitária abalou o ecossistema da música que já estava fragilizado nos últimos vinte anos fundos profissionais e gerado pelos
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 33

profissionais sob a tutela da admi- 230 milhões de euros em 2019, en- çamento do CNC é de aproximada- jeto de lei para sua criação (abr. 2019):
nistração”...,7 previsto pelo CNM. quanto em 2002 correspondiam a mente 700 milhões de euros) do nele, “o acompanhamento da avalia-
Se Landowski e Malraux preconi- 1,432 bilhão de euros. Apesar da po- ponto de vista geral, em relação às ção de risco” econômico é menciona-
zavam a democratização cultural, pularidade dos shows e dos festivais, ambições declaradas: apoio aos ar- do como “uma das razões de ser da
tratava-se sobretudo de tornar aces- essa queda reativou a ideia de um es- tistas em fase de criação, aos emer- política pública em favor da música”.
síveis as obras do repertório erudito tabelecimento público: o CNM. Sua gentes, às estéticas ditas precárias, às Críticos que descrevem o CNM como
(patrimonial ou contemporâneo), na edificação se chocou com o fraciona- estruturas descentralizadas, à pari- uma entidade submetida à indústria
contramão da abundância criativa mento do setor e com tergiversações dade mulheres-homens, às novas da música, em detrimento do interes-
do jazz, do punk e da música disco, de sucessivos ministros, até que um tecnologias... Na realidade, a criação se geral, já se fizeram entender.11
que estavam em plena ebulição. Foi novo relatório, em 2017, concluiu que desse “operador global” não tem co- Thiellay nos declarou acreditar que
com a chegada de Jack Lang ao mi- o CNM “poderia participar, em tem- mo único objetivo estruturar e unifi- essa “crise dramática” pôde “legiti-
nistério, em 1981, que todos os gêne- pos de revolução digital, de um novo car o setor. Essa unificação deve per- mar” o CNM. Não bastará. 
ros da época passaram a ser levados projeto para a política musical”.10 mitir uma política cultural de
em consideração, da canção à músi- Validado em 2019 pelo ministro proteção, para citar a declaração de *Éric Delhayej  é jornalista.
ca contemporânea, passando pelo da Cultura, Franck Riester, o CNM princípio publicada em seu site: “A
rock: “A partir de agora, mais do que não partiu do nada. Ele se apoiou no música em todas as suas estéticas”.
propor o acesso a um patrimônio Centro Nacional da Canção, da Va- Em outras palavras, contrabalançar 1   “L’économie mosaïque. Troisième panorama
cultural, o Estado pretende apoiar e riedade e do Jazz (CNV), uma asso- as lógicas de mercado. des industries culturelles et créatives en Fran-
favorecer o desenvolvimento das ciação fundada por produtores de es- Em meados de junho, para 2020, o ce” [A economia mosaico. Terceiro panorama
das indústrias culturais e criativas na França],
práticas de cada um”.8 A ação não co- petáculos em 1986, transformada em segmento já avaliava suas perdas em France Créative – EY, Paris, nov. 2019.
bre mais apenas o ensino, mas tam- seguida em um estabelecimento pú- 4,5 bilhões de euros, principalmente 2   Q ue se tornaram respectivamente o Centro
bém a produção e a difusão: finan- blico de caráter industrial e comer- em razão do desmoronamento do es- Nacional do Livro (1993) e o Centro Nacional
do Cinema e do Desenho Animado (2009).
ciamento de locais de reprodução, cial, sob a tutela do Ministério da petáculo ao vivo (83% das perdas). As 3   Carta de Pierre Boulez a André Malraux, 20
apoio às federações de práticas de Cultura, em 2002. Seu papel: receber ajudas do Estado se multiplicam: no nov. 1965. In: Christian Merlin, Pierre Boulez,
amadores, criação de uma Orquestra uma taxa de 3,5% do valor arrecada- início de novembro, o orçamento do Fayard, Paris, 2019.
4   Discurso, em 14 de março de 1967, diante da
Nacional de Jazz, fundação do Estú- do pela bilheteria, em seguida redis- CNM foi acrescido de 137,4 milhões Comissão de Concertos.
dio de Variedades, inauguração da tribuí-lo de modo a estimular a cria- de euros suplementares para os pro- 5   Guy Saez (org.), La Musique au cœur de
primeira casa de espetáculos Zénith tividade e a rentabilidade dos blemas mais urgentes. Não é garanti- l’État. Regards sur l’action publique de Marcel
Landowski [A música no coração do Estado.
em Paris, lançamento da Festa da espetáculos musicais, uma expres- do que, como em outros setores, será Considerações sobre a atuação pública de
Música em 1982... Diretor da música são que engloba especialmente o suficiente. Mas se, evidentemente, é a Marcel Landowski], La Documentation fran-
e da dança (1981-1986), Maurice “humor” e os espetáculos circenses. questão da sobrevivência que se colo- çaise, Paris, 2016.
6   N otes d’information du ministère de la culture
Fleuret viu seu orçamento triplicar, O CNM o substituiu, ampliando sua ca hoje, para as estruturas e para os [Notas de informação do Ministério da Cultu-
o das regiões foi multiplicado por ação para a música “erudita” e para a artistas, é importante também pre-
.

ra], n.7, Paris, 1º trimestre de 1970.


seis, e a música ficou no topo dos se- música gravada. Ele integra, desde 1º parar o futuro. 7   M arcel Landowski, Batailles pour la musique
[Batalhas em prol da música], Seuil, Paris,
tores culturais mais subvenciona- de novembro, associações de direito O governo delegou a presidência 1979.
dos. Mas Fleuret salienta que, “para privado, das quais se supõe que os do CNM a Jean-Philippe Thiellay, 8   Philippe Teillet, “Une politique culturelle du
todas essas realizações, as respecti- papéis de ajuda e consultoria serão tecnocrata, membro fundador da rock?” [Uma política cultural do rock?]. In:
“Rock: de l’histoire au mythe” [Rock: da histó-
vas profissões, que nelas tinham um preservados: o Fundo para a Criação Fundação Terra Nova e que durante ria ao mito], Vibrations. Musiques, médias,
interesse direto, no entanto, por in- Musical (FCM), que dá suporte à muito tempo presidiu diversos gabi- société, Toulouse, 1991.
crível que pareça, continuaram si- criação, difusão e formação; o Clube netes ministeriais antes de ser no- 9   Anne Veitl e Noémi Duchemin, Maurice Fleu-
ret: une politique démocratique de la musique
lenciosas, ausentes, às vezes hostis e, de Ação de Selos e Vendedores de meado administrador do Centro Cul- [Maurice Fleuret: uma política democrática da
seja como for, sempre divididas”.9 Discos Independentes Franceses tural Nacional do Havre e música], Comité d’histoire, La Documentation
Essas divisões continuaram nos (Calif); o Centro de Informação e de diretor-geral adjunto da Ópera de Pa- française, 2000.
10  Roch-Olivier Maistre, “Rassembler la musi-
anos 1990: florescente, dinamizado Recursos para as Músicas Atuais (Ir- ris. Um perfil surpreendente, dada a que. Pour un centre national” [Reunir a músi-
pela explosão das vendas de CD a ma); e o Escritório de Exportação, preponderância das músicas con- ca. Por um centro nacional], relatório para o
partir de 1988, o segmento não sentia que trabalha com os selos ou com os temporâneas. Mas o que mais impor- Ministério da Cultura, Paris, out. 2017.
11  C f. Jean-Michel Lucas, “Le rapport sur le Cen-
necessidade de se unir. Mas a fonte se produtores de artistas que decidiram ta é saber se o CNM, quando os tem- tre national de la musique ne fait que vendre la
esgotou com a desmaterialização dos vender para o exterior. pos voltarem a ser quase “normais”, République au plus offrant” [O relatório sobre
apoios na virada do século. Na Fran- Entre as taxas, o Estado etc., o dará prioridade aos artistas ou se o Centro Nacional da Música não faz nada
mais que vender a República pela maior ofer-
ça, as vendas de suportes físicos (CD CNM foi dotado de 50 milhões de eu- conformará com as missões descritas ta], Profession spectacle, 13 mar. 2019. Dis-
e vinil) caíram: elas representavam ros, um montante insuficiente (o or- no relatório de apresentação do pro- ponível em: www.profession-spectacle.com.

“NÓS, SERES HUMANOS


QUE VIVEMOS NAS MATAS,
NÓS SOMOS A
Acesse gratuitamente o livro
BIODIVERSIDADE” “SABERES DOS POVOS DO CERRADO E BIODIVERSIDADE”
www.campanhacerrado.org.br/saberespovoscerrado
Socorro Teixeira,
Quebradeira de coco babaçu Bico do Papagaio, Tocantins

Realização: Apoio:
34 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

COMBATE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

As ilusões do podemos realizar são as leis da física


e da lógica: é possível imaginar que
nos teletransportemos um dia, pois a

decrescimento
ideia não viola nenhuma lei física;
mas, pelo mesmo motivo, não é con-
cebível que inventemos uma máqui-
na de movimento perpétuo.
Compreendemos facilmente que
os defensores do decrescimento não
Para alguns ecologistas, a crise ambiental atingiu um nível tal que uma única solução se apreciem a comparação com Malthus.
impõe: o decrescimento. Segundo eles, as mudanças climáticas não provêm de um modo Mesmo que uma minoria deteste a hu-
manidade, comparando-a a um vírus
de produção guiado pelo mercado e, portanto, irracional: elas decorrem do crescimento, tóxico para o planeta, a maioria forja
que infla a demanda energética e trava o objetivo de descarbonizar a economia. suas convicções no fogo dos combates
Como a redução da produção de bens produziria o efeito inverso, seria contra as injustiças sociais que decor-
rem dos desregramentos ambientais.
conveniente cortar a atividade. Uma análise coberta de dificuldades Eles lembram também que, contraria-
mente ao reverendo britânico, seu
movimento não se interessa pela
POR LEIGH PHILLIPS* questão da superpopulação: dedica-
-se a limitar o crescimento econômi-
co, não demográfico.

À
s vezes esquecemos que os se- Todos aqueles que cresceram nos E de qual legitimidade o Norte po- Mas imaginemos que tenhamos
res humanos nem sempre são anos 1980 provavelmente se recor- deria se arrogar para explicar aos identificado um limite superior à
impotentes perante os dese- dam de ter, em algum momento, países do Sul que eles não podiam quantidade de bens que é possível
quilíbrios que eles provocam. atormentado sua mãe para que ela dispor de meios para conservar seu produzir sem provocar uma catástro-
Nos anos 1980, a ameaça ecológica se parasse de usar laquê nos cabelos. alimento refrigerado? O discurso fe ecológica. Imaginemos que a par-
encarnava no “buraco da camada de Nem todas cederam a esse apelo. progressista não consistia em afir- tir de agora a economia mundial se
ozônio”, esse gás que nos protege dos Tampouco os dirigentes políticos. mar, ao contrário, que há falta de re- contente com esses volumes. Imagi-
raios solares, mas cuja presença se Mais do que contar com iniciativas frigeração no mundo? Hoje, feliz- nemos enfim que a sociedade opere
reduzia na atmosfera. Anunciador de individuais, e insensível às lamenta- mente, constatamos um aumento de uma distribuição perfeitamente
cânceres de pele, epidemias de imu- ções dos lobistas comprometidos seu uso sem impacto na camada de igualitária dessa produção em escala
nodeficiência, degradação das reser- com os industriais, o Protocolo de ozônio, pois conseguimos tecnolo- planetária, mas que não exista ne-
.

vas de água, perturbação dos ciclos Montreal interveio diretamente nos gias que não mais destroem esse gás. nhum limite ao crescimento da po-
bioquímicos e baixa da produção mercados para impor uma Essa singular capacidade dos se- pulação. O que aconteceria então?
agrícola, o fenômeno não ameaçava regulamentação. res humanos de transformar seu mo- Todo ano nascem novas crianças e
menos a humanidade do que as mu- Se tivéssemos tentado frear o au- do de vida é determinante e explica os bens disponíveis são distribuídos
danças climáticas. Lá também os mento do número de geladeiras no por que Thomas Malthus e seus su- igualitariamente, mas em uma quan-
culpados eram as emissões antropo- mundo, por exemplo, ou mesmo re- cessores modernos se enganam. Não tidade menor: a produção estagna,
gênicas, principalmente os cloro- duzido sua quantidade total em esca- somos como bactérias em uma placa não os nascimentos. Depois de um
fluorcarbonetos (CFC), logo reduzi- la planetária, em vez de introduzir de Petri: contrariamente a outras es- tempo, todo mundo se encontra auto-
dos no discurso midiático a seu uso regras impondo uma mutação tecno- pécies, não consumimos recursos em maticamente empobrecido... a menos
em geladeiras e aerossóis. lógica, teríamos caminhado sem dú- um nível constante. Graças ao pro- que a sociedade se imponha um teto
A partir do Protocolo de Montreal, vida para o desastre. Proclamar gresso tecnológico e a escolhas polí- demográfico. Dizer que há bens de-
que foi assinado em 1987 e entrou em “Existem muitas geladeiras, e nenhu- ticas, podemos, se desejarmos, evo- mais em circulação ou gente demais
vigor em 1º de janeiro de 1989, essas ma a mais” teria resolvido o proble- luir. E, quando nos deparamos com no planeta significa a mesma coisa.
emissões caíram 98%.1 O fenômeno ma do crescimento das emissões, limites naturais, somos capazes de Alguns defensores do decresci-
de destruição do ozônio se inverteu mas não o das próprias emissões, do inovar para ultrapassá-los. A história mento, como Troy Vettese, admitem
nos anos 2000 e espera-se que a ca- mesmo modo que não se trata hoje de da nossa espécie poderia, aliás, se re- que, a seus olhos, a ameaça do caos
mada atmosférica de gás retome seu reduzir os gases de efeito estufa, e sumir a essa disposição. As únicas ecológico justifica uma dose de
estado inicial até 2075.2 sim de eliminá-los. fronteiras intransponíveis àquilo que “ecoausteridade” para as populações
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35

© Bernard Hermant/Unsplash
do Norte: “Encontrar uma solução
para a crise ambiental implica que a
burguesia mundial, as algumas cen-
tenas de milhões de pessoas mais ri-
cas, reduza seu padrão de vida”3. Vet-
tese não determina quem são esses
“milhões de pessoas” que constituem
a “burguesia mundial”. Mas, visto
que a Europa ocidental e os Estados
Unidos contam com cerca de 800 mi-
lhões de habitantes, seus leitores po-
dem imaginar que ele não está falan-
do unicamente de Bernard Arnault,
dono da LVMH Moët Hennessy Louis
Vuitton, e da rainha da Inglaterra.
Outros, como o antropólogo Jason
Hickel, defendem que o decrescimen-
to não é uma política de austeridade,
mas de abundância. É possível imagi-
nar uma redução planejada da produ-
ção nas nações com renda elevada, de
modo a manter os níveis de vida e até
melhorá-los, eles explicam. Segundo
Hickel, isso implicaria, por exemplo,
redistribuir a riqueza existente.
Vejamos mais de perto o que
ocorreria na ausência do crescimen-
to econômico. Felizmente, o econo-
mista Branko Milanovic, um dos es-
pecialistas mundiais na questão das
desigualdades, nos facilitou esse tra-
balho: segundo seus cálculos, a ren-
da média anual, em 2018, era de
.

aproximadamente US$ 5.500.4 Por-


tanto, a proposta de Hickel implica-
ria reunir todas as rendas superiores Podemos sugerir que dois terços da atividade produtiva ocidental são supérfluos? Não são
a essa soma, de maneira a elevar os
mais pobres para o mesmo nível. riam disponíveis apenas oito horas Em primeiro lugar, nenhuma nas de waffle, as televisões. O sonho
Cinco mil e quinhentos dólares, ou por dia; os proprietários de carros só quantidade de tempo livre compensa segundo o qual a ausência de todos es-
seja, 4.700 euros (R$ 30 mil) por ano? teriam direito a utilizá-los um dia a os tormentos da pobreza: a possibili- ses bens de consumo – um retorno a
A maioria dos ocidentais ganha mais, cada três; e trabalharíamos treze ho- dade de se liberar das pressões pro- uma “vida simples” – seria a receita da
às vezes muito mais do que isso. Na ras por semana”, conclui Milanovic. fissionais, com risco de não comer, já felicidade seduziu as camadas mais
França, segundo o Instituto Nacio- “Ridículo!”, respondem os defen- é oferecida a todos, sem suscitar um abastadas da burguesia, pois sonha-
nal da Estatística e dos Estudos Eco- sores do decrescimento. A redução da entusiasmo desmedido. Na socieda- mos melhor com a simplicidade quan-
nômicos (Insee), o salário médio produção ocidental não seria feita de de capitalista, a única coisa mais du- do todas as nossas necessidades estão
bruto anual era de 26.634 euros (R$ maneira tão transversal. Ao contrá- ra que ser explorado é não o ser. satisfeitas. Uma das críticas internas
170 mil) em 2015 (últimas cifras dis- rio: tudo o que é benéfico para a so- Além disso, a ideia de que o lazer e mais persistentes da União Soviética
poníveis). Certamente, trata-se de ciedade continuaria como antes, en- os serviços sociais emitiriam menos era de que a vida ali era cinza: sentiam
estimativas grosseiras, mas passar quanto o que é inútil desapareceria. gás de efeito estufa repousa na con- falta de roupas coloridas, música e
de 26.634 para 4.700 euros constitui- E cabe a Hickel listar os setores “des- vicção de que eles não exijam a utili- abacaxis. Nós queremos pão, sim; mas
ria uma amputação do nível de vida truidores do ponto de vista ecológico zação de produtos manufaturados e queremos rosas também. 
dos trabalhadores franceses. Segun- e que têm pouco, ou nenhum, inte- não requeiram, portanto, energia
do os cálculos de Milanovic, os 27% resse para a sociedade”: o marketing, nem extração de recursos naturais. *Leigh Phillips  é autor de Austerity Eco-
da população mundial que embol- os 4×4, o boi, o plástico descartável e Ora, os setores do lazer e de serviços, logy and the Collapse-porn Addicts: A De-
sam mais da metade da renda veriam os combustíveis fósseis. certamente menos “sujos” que a in- fence of Growth, Progress, Industry and
seus benefícios serem cortados em Indiscutivelmente produzimos dústria pesada, não deixam de ser Stuff [Austeridade ecológica e os viciados
mais de dois terços. montanhas de objetos e de serviços menos poluidores: os instrumentos em pornografia em colapso: uma defesa do
Os partidários do decrescimento inúteis, mas podemos realmente su- musicais são fabricados com madei- crescimento, do progresso, da indústria e
explicam que essa evolução não se gerir que dois terços da atividade pro- ra, metal, plástico; os hospitais estão das coisas], Zero Books, 2015.
basearia em transferências orçamen- dutiva ocidental são supérfluos, pro- repletos de equipamentos que neces- 1   U
 ma retomada das emissões não declaradas
tárias do Norte para o Sul: o grande duzindo coisas que não têm o menor sitam de centenas de minerais dife- foi registrada a partir do início dos anos 2010
ajuste resultaria de um mecanismo interesse? Daí provêm, provavelmen- rentes, assim como dos derivados de na Ásia oriental, sugerindo que alguém está
mentindo na região. Ver https://ozonewatch.
que autorizaria o Sul a desenvolver te, as outras soluções imaginadas por petróleo; o material de escalada, os gsfc.nasa.gov/meteorology/annual_data.html.
sua produção, enquanto o Norte re- Hickel: redução da semana de traba- caiaques, as bicicletas provêm de ma- 2   “The Antarctic ozone hole will recover” [Furo
duziria progressivamente a sua. Em lho, expansão do tempo de lazer e teriais que extraímos do solo. na camada de ozônio antártica vai se recupe-
rar], Nasa, 4 jun. 2015. Disponível em: ht-
outras palavras, tratar-se-ia de redu- ampliação de serviços sociais gene- Se é crucial restaurar e desenvolver tps://svs.gsfc.nasa.gov.
zir em cerca de dois terços a produ- rosos. Se todo progressista digno des- os serviços públicos, especialmente 3   Troy Vettese, “To freeze the Thames” [Para
congelar o Tâmisa], New Left Review, n.111,
ção de riqueza nos países desenvolvi- se nome aplaudiria tais perspectivas, para chegar ao fim da crise de mora- Londres, maio-jun. 2018.
dos. “As fábricas, os trens, os nada indica que elas compensariam dia de que as sociedades desenvolvi- 4   Branko Milanovic, “The illusion of ‘degrowth’ in
aeroportos funcionariam um terço o corte anunciado no rendimento de das padecem, o Estado social não é a a poor and unequal world” [A ilusão do “de-
crescimento” em um mundo pobre e desi-
do tempo atual; a eletricidade, o cada um nem que permitiriam redu- única fonte de nosso bem-estar: há gual], Global Inequality, 18 nov. 2017. Dispo-
aquecimento e a água quente fica- zir a produção econômica. também o cinema, os jogos, as máqui- nível em: http://glineq.blogspot.com.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

SUCESSO DE UMA NOÇÃO MENOS INOCENTE DO QUE PARECE

A tirania da benevolência
A gestão da crise sanitária apoia-se na obrigação de cada um se proteger e proteger os demais, especialmente
os “mais vulneráveis”. O governo francês apela ao altruísmo e, em caso de negligência, a punições. Mas esse
chamado à responsabilidade revela uma incitação virtuosa ou um empreendimento de redefinição do cidadão?

POR EVELYNE PIEILLER*

“I
nformação coronavírus: va-
mos nos proteger uns aos ou-
tros.” A frase, que evoca ao
mesmo tempo um preceito
bíblico e o slogan de uma companhia
de seguros, parece revelar uma ver-
dade evidente, essas sentenças cheias
de bom senso espontâneo que não
podem ser questionadas. Parece de
fato difícil responder com um “por
quê?” tempestuoso. Quem poderia se
opor a essa magnética incitação, sa-
bendo-se que não cumpri-la implica
colocar os outros em perigo? Só resta
determinar quais regras devemos se-
guir para nos proteger uns aos outros:
ainda que se possa debater sobre este
ou aquele dispositivo, a afirmação
inicial é evidente. No entanto, como
.

frequentemente é o caso das verdades

© Winny Tapajós
evidentes, essa ordem não tem nada
de natural; ela tem a ver com a cons-
trução de um conjunto de valores e
com uma concepção do humano.
De modo flagrante, o léxico e as
práticas do governo na gestão da crise
sanitária permitiram a entrada em
cena da “filosofia do care”, promovida
agora por Martine Aubry, prefeita de
Lille.1 Um tanto zombada até pouco
tempo atrás, a noção hoje é um furor.
Emmanuel Macron batizou de “Care”
(Comitê Análise Pesquisa e Especiali-
zação, na sigla em francês) a instância
encarregada de “guiar a decisão go-
vernamental nas áreas médicas e so-
ciais”; o ministro da Saúde, Olivier
Véran, o saudou, no Journal du
Dimanche (16 maio 2020), como um
“conceito muito moderno”. O termo
inglês care significa “cuidado” e tam-
bém “solicitude” (os apreciadores de
ficções anglo-saxãs conhecem o in-
cansável “Take care” com o qual os
personagens se despedem, com um ar
geralmente preocupado). Um pensa- Como sublinha de maneira escla- do care. Parece um belo truque de Kant, que é deslegitimada como “va-
mento do care foi elaborado primeiro recedora obra recente assinada por mágica: confundir “autonomia” sim- lor central” pela “antropologia da
por feministas norte-americanas, a uma ex-ministra socialista e uma fi- plesmente, noção impressionante- vulnerabilidade”.
filósofa Carol Gilligan e a cientista lósofa que fez parte da equipe da mente vaga, e “autonomia da razão”,
política Joan Tronto, que, para além campanha presidencial de Benoît que, construída ao longo de um gran- UMA “REGRA DE VIDA”
de uma reabilitação das profissões do Hamon, essa vontade se apoia na de trabalho de emancipação dos pre- PARA MACRON
cuidado e das pessoas que trabalham convicção de que “vivemos no mito conceitos, possibilita que se pense li- Característica do pensamento do ca-
com isso, tem por objetivo, mais radi- de nossa autonomia e de nossa inde- vremente, que se funde um re,4 o termo “vulnerável” se tornou,
calmente, introduzir questões éticas pendência – valores da sociedade mo- julgamento, e por meio disso, permite no contexto da pandemia, obsessivo.
na política. Trata-se de fato de colocar derna desde o Iluminismo”.3 A afir- o estatuto de cidadão. É essa autono- Mesmo que seja claro que ele permite
“a vulnerabilidade no coração da mo- mação merece que paremos e nos mia... da razão, projeto do Iluminis- evitar a palavra “velhos”, seu uso não
ral, em vez de valores como a autono- concentremos, sob a cobertura mo- mo, mas também de René Descartes, testemunha unicamente certa deli-
mia, a imparcialidade, a igualdade”.2 ral, no sentido propriamente político de Baruch Spinoza, de Emmanuel cadeza. Para o dicionário Larousse, a
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37

palavra designa “Quem está exposto to social. Ela deseja extrair este últi- Para Jonas, “a responsabilidade é a simples “humanidade”. É uma con-
a receber ferimentos, golpes; quem mo de sua igualdade “abstrata”, de solicitude, reconhecida como um de- cepção nova do cidadão que se insta-
está exposto aos efeitos de uma doen- seu universalismo “frio”, para orien- ver, de outro ser que, quando sua vul- la, e é importante não deixar o senti-
ça; que pode servir de alvo fácil aos tá-lo para inter-relações fundadas sob nerabilidade está ameaçada, se torna mentalismo, a culpa ou até mesmo a
ataques de um inimigo”. Em outras a percepção de uma desigualdade de um ‘se preocupar com’”. É imperativo generosidade do altruísmo mascara-
palavras, é “vulnerável” quem está fato. A democracia terá finalmente que esse dever seja respeitado, o que rem suas questões. A sociedade é con-
em posição de fraqueza. Nada impli- um “conteúdo sensível”: 8 as vulnera- não é simples, como indicava Worms. siderada um conjunto orgânico que
ca que ele deve ser protegido pelos bilidades singulares serão levadas em E é por isso que “a democracia, como somente a coerção pode dirigir ao
fortes. Nada, a não ser nossa aptidão conta pelas políticas em nome de ela funciona atualmente – e orienta- Bem; as decisões políticas são justifi-
à benevolência, a mesma que levou uma benevolência reparadora; é so- da como ela é sobre o curto prazo –, cadas pela antecipação do pior; a
alguns a... cuidar do outro com solici- bre a base das diferenças que será de- não é efetivamente a forma de gover- emancipação não passa mais pelo de-
tude. Todos já perceberam que a be- finida uma nova, autêntica e carnal no que convém a longo prazo”. Mais senvolvimento do espírito crítico,
nevolência está furiosamente na mo- ação de um processo de compensa- vale uma “tirania benevolente”10 pa- mas pelo reconhecimento de uma
da – foi inclusive a palavra do ano em ção, integrando a assimetria essen- ra, de maneira responsável, impor a fragilidade constitutiva e de uma in-
2018 para o dicionário Le Robert. Ela cial entre a constelação dos mais fra- todos que se comportem de maneira terdependência generalizada, noções
está em todos os lugares: no geren- cos e dos outros. Mas, se é patente que responsável, como – exemplo que Jo- que encontramos no centro desses
ciamento – em 2011, 228 empresas a igualdade de direitos não é suficien- nas adora lembrar – são nossos pais. propósitos da colapsologia ou das
francesas, entre elas a France Télé- te para garantir a igualdade real, de Macron entendeu direitinho: ele gos- ideias “comuns”. Macron, em seus vo-
com e o HSBC, assinaram um “cha- acordo com que normas fundar esses ta, ao longo de suas decisões, de evo- tos para 2020, pôde assim sublinhar
mado à benevolência no trabalho” novos direitos diferenciados? Quem car “nossos filhos”, “nossos concida- que a reforma da Previdência repousa
por iniciativa da revista mensal será escolhido como objeto político dãos mais vulneráveis”. “sobre um princípio de responsabili-
Psychologies Magazine –, na pedago- da benevolência? Com base em que Ainda que tenham encontrado di- dade”. Por outro lado, não há questão
gia,5 nos tuítes de Edgar Morin, nos vamos determinar quais cidadãos versas preocupações ecológicas (pro- de princípio ou de dever em relação
festivais de música6 e nos discursos minorados – em todos os sentidos do teger a natureza) que lhes deram um aos operários da fábrica da Bridgesto-
políticos. Macron a reivindica sem termo – deverão ter sua minoração re- enquadramento teórico, assim como ne em Béthune, ameaçados de demis-
hesitar: “Tenho uma regra de vida, parada? A benevolência generalizada diversas organizações de defesa dos são. O governo denuncia a “brutali-
tanto para mulheres e homens quan- será suficiente para justificar o prin- “mais frágeis”, essas considerações dade” do anúncio, mas não impõe a
to para as estruturas: a benevolência” cípio da diversidade de tratamento? político-metafísicas também têm “benevolência”. Da mesma maneira,
(France 2, 10 abr. 2016). Mais ampla- Ainda mais porque, como pres- uma forte influência sobre as normas os 650 mil acidentes de trabalho rela-
mente, a noção se irradia nas decla- sentia Macron quando era candidato internacionais e os conceitos jurídi- tados em 2019 provavelmente não o
rações de todo tipo. Até mesmo o pre- à eleição presidencial (“Eu sempre cos que ditam a necessidade e as re- afligem. O care tem seus limites. 
sidente do Conselho Europeu, cultivei a benevolência, com a espe- gras do “princípio de precaução” –
Charles Michel, se apropriou dela, em rança secreta, grudada no corpo, de constitucionalizado na França desde *Evelyne Pieiller  é jornalista do Le Mon-
.

sua mensagem para a Conferência que ela era contagiosa”, Lille, 14 jan. 2005. Elas entraram, de maneira con- de Diplomatique.
sobre o Estado da União (8 maio 2017), essa bela disposição por vezes temporânea, em ressonância com as
2020), na qual pediu uma “sociedade é um padrão de comportamento. preocupações das instituições inter- 1   L er “Liberté, égalité... care” [Liberdade, igual-
da dignidade e da benevolência”. Sem medo de chocar, Frédéric Wor- nacionais. Desde 1994, o Relatório dade... care ], Le Monde Diplomatique, set.
2010.
Por mais simpática que seja, po- ms, membro do Comitê Nacional de Mundial sobre o Desenvolvimento 2   Sandra Laugier, artigo “Care”, Encyclopaedia
rém, a noção não é assim tão límpida Ética, nos lembra: “A malevolência é Humano, do Programa das Nações Universalis.
quanto parece. Segundo o dicionário bem mais universal do que a bonda- Unidas para o Desenvolvimento, pa- 3   Najat Vallaud-Belkacem e Sandra Laugier, La
Société des vulnérables. Leçons féministes
Larousse, trata-se de uma “disposição de”.9 Para generalizar a benevolência ra o qual contribuiu o economista d’une crise [A sociedade dos vulneráveis. Li-
de espírito inclinando para a com- – por vezes volátil – em relação aos Amartya Sen, recentralizou a questão ções feministas de uma crise], Gallimard, Pa-
preensão, a indulgência em relação ao vulneráveis, é preciso pôr em jogo sobre a segurança da pessoa e assina- ris, 2020.
4   J oan Tronto, Un monde vulnérable. Pour une
outro”. Isso coloca o benévolo em su- outra noção, que não vem da esfera lou uma temática nova, acordando politique du care [Um mundo vulnerável. Por
perioridade em relação ao objeto de das emoções, mas da consciência: o politicamente a primazia do medo. uma política do care ], La Découverte, Paris,
sua amável indulgência. A intenção é sentimento de responsabilidade. É a 2009.
5   Ler Clothilde Dozier e Samuel Dumoulin, “La
boa, o que não impede que sua valori- versão cívica da benevolência. NOVA CONCEPÇÃO DE CIDADÃO ‘bienveillance’, cache-misère de la sélection
zação e seu papel levantem algumas Padrinho espiritual do care, o filó- Em 2001, o relatório da Comissão In- sociale à l’école” [A “benevolência”, o escon-
questões, pois a benevolência, que sofo alemão Hans Jonas, ex-aluno de ternacional sobre Intervenção e So- de-miséria da seleção social na escola], Le
Monde Diplomatique, set. 2019.
forma com o care e a vulnerabilidade Martin Heidegger, define o campo berania dos Estados, sob a égide das 6   Flora Santo, “Paris: Manifesto XXI organise
uma trilogia conceitual, é uma im- em sua obra principal, O princípio Nações Unidas, se intitulava “A res- son festival sous le signe de la bienveillance et
pressionante ferramenta ideológica. responsabilidade (1979), cujo título ponsabilidade de proteger”, noção de l’amour” [Paris: Manifesto XXI organiza
seu festival sob o signo da benevolência e do
É o que nota com pertinência uma afirma sua oposição ao Princípio es- que seria endossada em 2005, no Do- amor], Trax, 2 set. 2020. Disponível em: www.
das filósofas dessa trilogia, Fabienne perança, de Ernst Bloch. Crítico da cumento Final do Encontro Mun- traxmag.com.
Brugère: “Na França, por exemplo, a “utopia marxista”, esse ensaio, ani- dial. Essa elaboração terminou por 7   Philippe Douroux, “Fabienne Brugère: ‘Il faut
construire de la bienveillance non seulement
ligação social parece fundada em an- mado pela necessidade de lutar con- redefinir o dever de proteção das po- dans la morale, mais aussi en politique’” [Fa-
tagonismos. [...] Essa maneira de ver tra a capacidade que a humanidade pulações pelos Estados. Foi então re- bienne Brugère: “É preciso construir a bene-
pode se desenvolver na França por- possui de se autodestruir, afirma que conhecida para a “comunidade in- volência não somente na moral, mas também
na política”], Libération, Paris, 5 ago. 2016.
que somos um país laico e até ampla- “é preciso prestar mais atenção à pro- ternacional” uma competência em Cf. também Fabienne Brugère, L’Éthique du
mente ateu”. Em resumo, “talvez a fecia da infelicidade do que à profecia caso de “falha manifesta”. É esse care [A ética do care ], Presses Universitaires
França tenha dificuldade em pensar a da felicidade” e que “o medo se torna conceito que foi invocado, pela pri- de France, Paris, 2017.
8   Fabienne Brugère, “Pour une théorie générale
sua relação ao outro”, já que, aqui, “a a primeira obrigação”. Mas é impor- meira vez, em fevereiro de 2011, a fim du care” [Por uma teoria geral do care ], La Vie
política só existe por meio do antago- tante que esse medo, indispensável de autorizar uma intervenção arma- des Idées, 8 maio 2009. Disponível em: ht-
nismo”. Isso implica “construir a be- percepção da vulnerabilidade do vi- da na Líbia, destinada a garantir a tps://laviedesidees.fr.
9   Frédéric Worms, Sidération et résistance.
nevolência não somente na moral, vo, se torne uma ferramenta de pre- proteção da população civil contra a Face à l’événement (2015-2020) [Sideração e
mas também na política”.7 Sim, aí está servação da vida. Ele deve então ser vontade do Estado.11 resistência. Diante do acontecimento (2015-
de fato uma “questão política crucial”, acompanhado da interiorização, pa- Exigir a tomada de responsabili- 2020)], Desclée de Brouwer, Paris, 2020.
10  Hans Jonas, Le Principe responsabilité [O
como tinha finamente notado, na en- ra cada um, de sua “responsabilida- dade em um dever de proteção dos princípio responsabilidade], Flammarion, Pa-
trevista já citada, o ministro da Saúde de” na manutenção da vida. “Ser res- vulneráveis se revela, assim, uma em- ris, 2013.
Véran. A necessidade reivindicada da ponsável significa aceitar ser preitada que se vincula muito mais 11  Ler Anne-Cécile Robert, “Origines et vicissi-
tudes du ‘droit d’ingérence’” [Origens e vicis-
benevolência é o agente discreto de ‘sequestrado’ pelo que há de mais radicalmente com o político do que situdes do “direito de ingerência”], Le Monde
um desejo de modificar nosso contra- frágil e de mais ameaçado”, explicita. com o realismo prudente ou com a Diplomatique, maio 2011.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  DEZEMBRO 2020

MISCELÂNEA

livros internet
assentadas e assentados de reforma agrária e NOVAS NARRATIVAS DA WEB
outras populações de base camponesa.
Os artigos que compõem esse livro ecoam a Sites e projetos que merecem seu tempo
memória ancestral de que as paisagens onde
a biodiversidade do Cerrado vibra não são re- EDUCAÇÃO SOB VIGILÂNCIA
SABERES DOS POVOS presentações de uma natureza intocada, e sim
DO CERRADO E patrimônios históricos e socioculturais, fruto da Mais de 65% das instituições públicas
BIODIVERSIDADE convivência e cuidado dos povos com o Cer- de educação no Brasil usam softwares
Vários autores, rado. Ao mesmo tempo, os relatos e análises baseados em modelos de negócios que
Campanha Nacional mostram que esses saberes tradicionais vão se extraem dados pessoais para obter pre-
em Defesa do Cerrado transformando, sendo desenvolvidos e continu- visões sobre o comportamento dos usuá-
amente testados, adaptados e reinventados por rios e, com isso, ofertar produtos e servi-

F ruto de um amplo processo colaborativo, o


livro é uma ode aos povos do Cerrado, ver-
dadeiros guardiões e multiplicadores das rique-
meio do manejo consciente das paisagens, ao
longo de inúmeras gerações, e por isso mesmo
são resilientes, diversos e apropriados a cada
ços. Educação Vigiada é uma iniciativa de
acadêmicos e membros de organizações
sociais que apresentam no site uma ampla
zas dessa imensa região. Os povos do Cerrado lugar. Essa conexão entre tradição e inovação pesquisa para incentivar um debate na so-
são diversos. São indígenas de tronco Macro-Jê – em meio a uma profunda crise ecológica ciedade em relação aos impactos sociais
(como os Xerente, Xakriabá, Apinajé e Xavante), mundial e mesmo após décadas de devasta- da vigilância.
mas também Tupi-Guarani (como os Guarani e ção do Cerrado pelo agronegócio monocultor https://educacaovigiada.org.br
Kaiowá) e Arawak (como os Terena). São co- – está entre os maiores legados dos povos do
munidades quilombolas, como os Kalunga, os Cerrado, partilhando horizontes de vida, agora
jalapoeiros e centenas de outras pelos sertões e para o futuro. ATLAS DO ANTROPOCENO
do Cerrado. São comunidades tradicionais, tão
diversas como o próprio Cerrado e que têm sua [Diana Aguiar e Helena Lopes] Respectiva- Toda ação humana tem impactos em ou-
vida entrelaçada nas árvores e plantas, bichos, mente, assessora política da Campanha Na- tras espécies – não há vida na Terra des-
chapadas, vales e águas da região, como as que- cional em Defesa do Cerrado e pesquisadora conectada de algum ecossistema. O An-
bradeiras de coco-babaçu, raizeiras, geraizeiras, de pós-doutorado no CPDA/UFRRJ; e espe- tropoceno é o período geológico em que
.

fecho de pasto, apanhadoras de flores sempre- cialista em Agroecologia e Justiça Climática da as ações humanas causaram impactos
-vivas, benzedeiras, retireiras, pescadoras arte- ActionAid e doutoranda em Ciências Sociais no irreversíveis ao planeta. A proposta des-
sanais, vazanteiras e pantaneiras. São, ainda, as CPDA/UFRRJ. se site é tentar relacionar esses impactos
causados por uma infraestrutura imperial
e industrial. Traz inúmeros artigos e cone-
xões interativas para que você siga algu-
ma linha de raciocínio proposta. Foi tam-
bém publicado como livro pela Stanford
University Press.
tégia de remediação da violência via repressão, https://feralatlas.supdigital.org
denunciando a diminuição constante dos inves-
VIDAS NEGRAS timentos sociais que poderiam a médio prazo
IMPORTAM E produzir resultados mais efetivos. Em um mun- TRABALHO DIGITAL
LIBERTAÇÃO NEGRA do de oportunidades desiguais, a ascensão de
Keeanga Yamahtta-Taylor, pessoas negras torna-se exceção instrumenta- DigiLabour é uma newsletter sobre mun-
Editora Elefante lizada para confirmar a regra – de que o baixo do do trabalho e tecnologia produzida por
acesso aos serviços sociais de qualidade segue Rafael Grohmann, professor do mestrado

O primeiro passo para enfrentar o racismo


estrutural é compreender as narrativas que
legitimam a opressão e entender como o mo-
promovendo a marginalização de negros po-
bres. “Sempre houve diferenças de classe entre
afro-americanos, mas é a primeira vez que elas
e doutorado em Ciências da Comunicação
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos). Traz entrevistas, traduções de
dus operandi das instituições resulta em maio- se expressam por uma minoria de negros que trechos de livros, uma varredura sobre as-
res taxas de pobreza e violência contra negros. exerce significativo poder político e autoridade suntos como comunicação no mundo do
Considerando isso, é possível partir para a re- sobre a maioria das vidas negras”, pois isso le- trabalho; dataficação; capitalismo e coope-
sistência e a luta. É nesse sentido que Keeanga vanta questões importantes “sobre o papel da rativismo de plataforma; circulação de sen-
Yamahtta-Taylor analisa o combate à conjuntura elite negra na contínua luta pela libertação e de tidos; trabalho humano e inteligência artifi-
político-social norte-americana, em que a igual- que lado ela está.” cial; organização coletiva de trabalhadores
dade só existe na letra morta da lei. A autora alerta que “Exigir tudo é tão eficaz no mundo conectado. O site tem o arquivo
Taylor percorre documentos e bibliografia quanto não exigir nada”, cutucando os que cri- de todas as newsletters distribuídas.
especializada para desvendar a retórica do ticam pautas identitárias em nome do mate- https://digilabour.com.br
daltonismo racial modelada nos anos pós-se- rialismo histórico. É fundamental, segundo ela,
gregação: doravante o sonho norte-americano que os ativistas do Black Lives Matter revejam
estaria disponível a todo e qualquer cidadão questões não resolvidas pelo movimento negro [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
que primasse pelo esforço, independentemente histórico, entre elas a cooptação da luta pelo Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
de sua cor. Daí para o consentimento tácito da capital e a ausência de solidariedade com ou- ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
violência policial é um passo. tros grupos marginalizados. pela ECA-USP e doutorando em Design
Em contraposição, ela destrincha a pauta do na FAU-USP.
Black Lives Matter sobre a ineficácia da estra- [Vanessa Machado] Historiadora.
DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Editorial de novembro
“O editorial mostra bem o que é esse ódio. Ano 14 – Número 161 – Dezembro 2020
www.diplomatique.org.br
Sou neto de italianos, branco, fui casado
com uma mulher preta e fomos discrimina-
dos até por meus familiares, com os quais DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
cortei relações. A tal ‘miscigenação’ foram Silvio Caccia Bava
centenas de estupros cometidos por senho- 02 Editorial
A implosão do sistema político
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
res brancos e religiosos.” Por Silvio Caccia Bava Rubens Naves

Orlando São Paulo, por e-mail Editor


Luís Brasilino

A revolta das sul-coreanas


03 Eleições nos Estados Unidos
A amarga vitória democrata Editora-web
Por Serge Halimi Bianca Pyl
“As séries sul-coreanas têm retratado essas
O grande desfile de lágrimas
questões do machismo.” Por Thomas Frank
Editor de Arte
Cesar Habert Paciornik
Marlin Baldan, via Instagram Um trumpismo sem Donald Trump
Estagiária
Por Jerome Karabel Gabriela Bonin
Em Liverpool, o futebol como
Revisão
definidor da identidade 08 Capa
Periferias de São Paulo:
Lara Milani e Maitê Ribeiro
“Os investidores norte-americanos soube- Gestão Administrativa e Financeira
conjuntura e pós-pandemia
ram usar muito bem essa identificação da Por Tiaraju Pablo D’Andrea
Arlete Martins

cidade com o time, mas essa paixão fervo- Emergência climática e o futuro das cidades Assinaturas
rosa sempre existiu.” Por Henrique Botelho Frota assinaturas@diplomatique.org.br

Cello, via Instagram Tradutores desta edição


Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,

Moscou sonha em se tornar


12 Confinamento esvazia as metrópoles
A vingança do campo
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant

Por Benoît Bréville Conselho Editorial


uma cidade global Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
“Eu discordo do artigo, o Kremlin tem ado-
tado políticas públicas de segregação.” 14 Todas iguais, mas umas mais iguais que as outras
As redes “feministas” das maiores empresas
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
Edu Simões, via Instagram cotadas na Bolsa de Paris José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
Por Maïlys Khider e Timothée De Rauglaudre Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,
As privatizações disfarçadas na África Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo

17 Contra escassez e falsificações e Vera da Silva Telles.


.

“Não é privatização disfarçada,


A emergência de uma
é privatização declarada.” indústria farmacêutica africana
Assessoria Jurídica
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
Aldenir Dias, via Instagram Por Severine Charon e Laurence Soustras
Escritório Comercial Brasília
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Documentário “Negligência de quem?”
20 Árabes divididos sobre a questão palestina Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
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“Tiram a floresta dos índios e agora até as A lua de mel entre os países do Golfo e Israel
crianças. Como uma mãe vai confiar que Por Akram Belkaïd Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre, em parceria
um governo tão preconceituoso e contra com o Instituto Pólis.
todo indígena vai cuidar bem 22 Máxima influência com o mínimo esforço
Fantasmas em torno de uma Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
dos seus filhos?” “ofensiva chinesa” nas Nações Unidas
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
Tel.: 55 11 2174-2005
Gabriel Baleeiro, via Facebook Por Jeanne Hughes diplomatique@diplomatique.org.br
www.diplomatique.org.br

“As ações públicas feitas sob a ótica dos 26 Uma mascote eternamente Assinaturas: Leila Alves
isenta de responsabilidades assinaturas@diplomatique.org.br
preconceitos e estereótipos étnicos e ra- Tel.: 55 11 2174-2015
A indestronável monarquia britânica
ciais. Muito triste essa situação toda. Como Por Lucie Elven Impressão
disse a defensora pública, esses preconcei- D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda.
CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhan-
tos enraizados não deixam que essas pes-
soas possam ver a verdade sobre os povos 28 Educação
A capa de toureiro da liberdade universitária
guera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086,
Cep: 07753-040 - Cajamar - SP

indígenas e respeitar a cultura deles.” Por Dominique Pinsolle


Dri Alves, via Facebook
30 Medidas tão antidemocráticas quanto ineficazes
Quem vai parar a máquina repressiva?
Por Vincent Sizaire
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)

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O desastre. E depois?
Hubert BEUVE-MÉRY
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Por Éric Delhayej Presidente, Diretor da Publicação
diplomatique@diplomatique.org.br Serge HALIMI
As cartas são publicadas por ordem
de recebimento e, se necessário, 34 Combate às mudanças climáticas
As ilusões do decrescimento
Redator-Chefe
Philippe DESCAMPS
resumidas para a publicação. Por Leigh Phillips Diretora de Relações e das Edições Internacionais
Anne-Cécile ROBERT
Os artigos assinados refletem o ponto de
vista de seus autores. E não, necessariamen- 36 Sucesso de uma noção menos
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Le Monde diplomatique
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te, a opinião da coordenação do periódico. A tirania da benevolência secretariat@monde-diplomatique.fr
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Por Evelyne Pieiller
Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
com 37 edições internacionais em 20 línguas:

38 Miscelânea 32 edições impressas e 5 eletrônicas.


ISSN: 1981-7525
Capa: © Lila Cruz
ANO 14 / Nº 161 R$ 18,00

05 17 26
ELEIÇÕES NOS EUA UM CONTINENTE NEGLIGENCIADO ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADES

A AMARGA VITÓRIA A EMERGENTE INDÚSTRIA A INDESTRONÁVEL


DEMOCRATA FARMACÊUTICA AFRICANA MONARQUIA BRITÂNICA
POR SERGE HALIMI E OUTROS POR SEVERINE CHARON E LAURENCE SOUSTRAS POR LUCIE ELVEN

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