Você está na página 1de 3

Sem rua não há como garantir a urna

Bianca Santana

Em 2013 estivemos nas ruas. O Movimento Passe Livre (MPL), articulado


desde 2005, convocou manifestações a partir do aumento de preço do transporte
público em diferentes municípios e estados brasileiros. A brutal violência policial
mobilizada a cada ato tinha o efeito de dobrar o tamanho da manifestação seguinte.
Da tarifa, a demanda foi ampliada para uma maior transparência no setor de
transporte, depois, para revisão nos lucros das empresas. “Amanhã vai ser maior”
não era blefe. Retratava a tomada de consciência da necessidade de ocupar as
ruas. Não era por 20 centavos, era por direitos.
Mas o desejo de participação e de ação política direta foi interpretado como
traição pelos partidos de esquerda. A direita, acostumada a se apropriar de qualquer
coisa em benefício próprio, foi habilidosa em perceber a força das ruas e direcionar
a agenda política para o esvaziado discurso de enfrentamento à corrupção, um
velho conhecido na política brasileira, vide o “varre, varre vassourinha” de 1960.
Rapidamente, aumentaram os gritos de “sem bandeira”, declarações na grande
imprensa de que as manifestações eram apartidárias e a violência contra pessoas
vestidas de vermelho. Voltamos para casa assustadas, praticamente pedindo
desculpas ao PT que acusava movimentos de renovação política à esquerda de
estarmos a serviço da direita. E por W.O. a direita ganhou as ruas.
As conquistas do movimento negro de cotas raciais para ingresso na
universidade pública e aprovação de direitos trabalhistas a empregadas domésticas
somadas ao acesso da população a bens de consumo irritou a classe média racista
que se formou historicamente a partir de privilégios e da exclusão de negros e
pobres forjados como “o outro” da sociedade brasileira. Filha da doméstica na
universidade pública e pobre andando de avião não se podia tolerar, mesmo a
situação econômica da própria classe média tendo melhorado.
Em 2014 teve início a Lava Jato. O MPL perdeu espaço na cena política e foi
fundado o MBL (Movimento Brasil Livre), que surfou na institucionalidade fazendo o
discurso anti-sistema. Ainda assim, apesar deles todos, Dilma Rousseff foi reeleita
presidenta da república. Vencemos nas urnas. Mas como a rua continuava a ser
deles, em 2016 sofremos um golpe que derrubou Dilma e se aprofundou na prisão
de Lula e nas eleições de 2018. Nesse 2022 estamos mais uma vez focados nas
urnas e negligenciando as ruas.
Tenho ouvido de setores diferentes da esquerda brasileira que a Coalizão
Negra por Direitos foi a movimentação mais importante que aconteceu no Brasil nos
últimos anos. Isso me preocupa. Não por um problema da Coalizão. Mas por ainda
não sermos um movimento de massas e estarmos, infelizmente, longe disso. Em
2019, coletivos, organizações e movimentos negros se juntaram para fazer
incidência política nacional e internacionalmente e resistir, pelas vias burocráticas,
aos desmandos de um governo autoritário. Barramos pontos significativos do
chamado pacote anti-crime proposto por Moro quando era ministro de Bolsonaro;
interrompemos tentativas de retrocesso nas políticas afirmativas de ingresso de
pessoas negras nas universidades públicas, argumentamos publicamente contra a
federalização das investigações do caso Marielle, apoiamos quilombolas de
Alcântara, no Maranhão, na defesa de seu território frente a militares brasileiros e
norte-americanos. E mais importante que isso tudo, demos um salto organizativo
para dentro. Somos, atualmente, mais de 230 grupos negros em todo o país
trabalhando pela construção de uma agenda política de defesa de direitos e
enfrentamento ao neoliberalismo. Articulamos a campanha “Tem gente com fome”
que, a partir da distribuição de comida na emergência da pandemia, promoveu
educação política em territórios negros e periféricos espalhados em todos os
estados brasileiros. Semanalmente nos reunimos para debater a conjuntura e tomar
decisões coletivamente. E convocamos atos não apenas contra Bolsonaro, mas
também para denunciar e interromper o genocídio negro no país. E apesar de
reconhecer avanço, afirmo que ainda é pouco. Que só teremos chance real de
disputar uma sociedade justa e igualitária, livre de racismo e machismo, promotora
do bem viver, quando formos um movimento negro de massas.
E então me pergunto sobre 2022. Sem dúvidas, eleger pessoas negras é
importante. Mas esse deve ser nosso foco prioritário? Quanto cada mandato ligado a
movimento negro acumula para o movimento no geral e para a necessária
transformação da realidade social do país?
Em março deste ano estive em uma comitiva de organizações que compõem
a Coalizão na Colômbia e no Chile. Testemunhamos a reta final da campanha às
prévias de Francia Marquez, antes de que ela obtivesse 15% do total de votos para
presidente no país, e também a posse de Gabriel Boric no Chile, precedida pelo ato
do 8 de março nas ruas de Santiago. Estar em meio a mais de 350 mil mulheres
ocupando as ruas fez lembrar 2013 e ofereceu respostas de por que o governo
chileno pode se declarar feminista. Mesmo com todas as dificuldades, as greves e
manifestações de rua na Colômbia, as ocupações de escolas, greves e passeatas
no Chile foram fundamentais para disputar a sociedade e ter resultados eleitorais. E
a ampliação das ruas pode garantir governos de esquerda que abrirão caminhos
para a América Latina.
Aqui no Brasil, além de derrotar Bolsonaro nas urnas ao eleger Lula,
precisamos sustentar o resultado eleitoral e alargar nossa agenda política para toda
a população. Como a Coalizão Negra por Direitos pode expandir sua atuação
territorial? Como retomar o acúmulo das escolas ocupadas por secundaristas em
2015? Como apoiar o MST no enfrentamento ao agronegócio que mata
trabalhadoras e trabalhadores rurais todos os dias? Como garantir a posse de terra
e o fortalecimento de comunidades quilombolas? Como interromper a violência
contra meninas e mulheres indígenas e perceber nos povos originários a sabedoria
política fundamental para que a vida da humanidade ainda seja viável na Terra?
O discurso de renovação política virou até nome de partido que se diz novo
ao reproduzir velhas práticas. O próprio presidente miliciano, que foi deputado por
30 anos, faz discurso contra a velha política e se coloca como alternativa. Como
entramos no jogo para disputar, de verdade, o coração do povo? A confiança que
todas temos no Lula é insuficiente para garantir a retomada do país. Precisamos
eleger Lula e precisamos de mais.
Desenterrar os fantasmas de 2013 pode nos ajudar a compreender a
necessidade de abertura para uma nova cultura política – mais participativa, mais
feminista, mais negra, mais indígena, mais em dia com as possibilidades de
comunicação em rede, em conexão verdadeira com a demanda por autenticidade na
política. O mote da campanha de Francia Marquez, “Mulheres negras, da resistência
ao poder, até que a dignidade seja costume”, nos lembra como o acúmulo dos
movimentos de mulheres negras que influenciou toda a América Latina abriu
possibilidade de análise e transformação do mundo. As mulheres que resistem ao
machismo e ao racismo são as que cuidam das pessoas, das águas, do solo e precisam
estar no poder. Não para inverterem sua posição em uma lógica de desigualdade e
passarem a ocupar o topo, mas para contribuírem com a promoção de igualdade,
justiça e direitos para todo mundo. Essa era a agenda política de Marielle Franco ao ser
assassinada com quatro tiros na cara em março de 2018.
Quatro anos depois, não sabermos quem mandou matar Marielle nos mostra
como a verdade e a justiça sobre o assassinato de uma parlamentar negra não é
prioridade no Brasil. Nem do governo miliciano próximo dos acusados da execução
do crime nem da esquerda que diz querer derrubar Bolsonaro mas ignora o tema
que mais desestabiliza o presidente e seus filhos. Quem mandou matar Marielle,
afinal?

Você também pode gostar