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Enquanto desconsiderarmos o racismo, não compreenderemos junho de 2013

Bianca Santana
Contribuição com a mesa redonda “Colonialidades e sua contestação: negociando a
convivência na América Latina”, que aconteceu no dia 13 de outubro de 2022, durante o
Encontro Anual do Mecila

Boa tarde.
Agradeço muito pelo convite para participar deste painel, apesar de neste 13 de
outubro eu estar mais disponível para falar de sofrimento social, e com bastante dificuldade de
ver horizontes da democracia. Mas prometo me esforçar.
Sou uma ativista e é deste lugar que tentarei contribuir com esta conversa. A Casa
Sueli Carneiro, de que faço parte, é uma das 250 organizações, coletivos e movimentos negros
do Brasil que compõem a Coalizão Negra por Direitos.
Desde o início de 2019, logo depois de Jair Bolsonaro assumir a presidência da
república e seu então super ministro Sérgio Moro propor um pacote de leis chamado de
anticrime, compreendemos que era momento de construir alianças entre grupos diferentes
para provocar incidência política coletivamente em instâncias nacionais e internacionais.
Diante do terrível cenário que incluia a possibilidade de o chamado excludente de
ilicitude – para que políticas tivessem licença prévia para matar, não bastasse a impunidade
corrente –, e a criação de um banco genético de pessoas presas, dentre outras medidas de
violação de direitos humanos e aprofundamento do genocídio negro no Brasil, fizemos
denúncias à OEA, à ONU, debates e cobranças no Congresso Nacional.
Conseguimos barrar perversidades naquele pacote de leis, apesar de sua aprovação.
Também dedicamos parte importante de nossos esforços, em 2019 e 2020, para contribuir
com a proteção de comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão, ameaçadas pelo
acordo de salvaguarda tecnológica Brasil - Estados Unidos para ampliar a base aeroespacial
de Alcântara. Bolsonaro e Trump assinaram o acordo, não conseguimos barrá-lo no
Congresso Brasileiro mas, em articulação com movimentos e parlamentos negros
norte-americanos, foi possível impedir investimentos de dinheiro público dos Estados Unidos
para a remoção de quilombolas de Alcântara. Incidência bem sucedida protagonizada por
quilombolas maranhenses, apoiada por organizações negras de todo o país.
Em 2020, quando parte da imprensa e dos chamados grupos progressistas entenderam
que a democracia estava em perigo – bem rápidos sempre – a Coalizão Negra por Direitos
publicizou um manifesto que afirmava: “enquanto houver racismo, não haverá democracia”.

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Este também foi o mote do encontro que tivemos em Olinda, Pernambuco, em dezembro de
2021, quando planejamos nossa estratégia de atuação em 2022.
Além de definir o apoio à candidatura de Luis Inácio Lula da Silva já naquele
momento, decidimos fortalecer candidaturas de movimento negro ao legislativo
comprometidas com a Agenda Política da Coalizão Negra por Direitos em todo o país. No dia
6 de junho de 2022, na Ocupação Nove de Julho, em São Paulo, foram apresentadas cerca de
120 candidaturas ao legislativo estadual e federal, em uma iniciativa chamada Quilombo nos
Parlamentos.
Apesar de duas das principais candidaturas da Coalizão terem ficado na suplência à
Câmara Federal – Douglas Belchior em São Paulo e Vilma Reis na Bahia, no último 3 de
outubro comemoramos 26 candidaturas eleitas: oito deputadas e deputados federais (Valmir
Assunção - PT/BA, Dandara Tonantzin - PT/MG, Carol Dartora, PT/PR, Benedita da Silva -
PT/RJ, Henrique Vieira - PSOL/RJ, Taliria Petrone - PSOL/RJ, Denise Pessôa - PT/RS, Erika
Hilton - PSOL/SP) e 18 estaduais deputadas e deputados estaduais, além de 97 suplências,
duas delas primeiras-suplências: Orlando Silva - PCdoB/SP e Robeyoncé Lima - PSOL/PE.
Cento e vinte candidaturas que somaram 4.223.028 votos, com um resultado importante, mas
muito aquém do necessário para que a população negra brasileira e a luta antirracista estejam
representadas no poder legislativo.
Enquanto houver racismo não haverá democracia. E esta afirmação também é
fundamental para compreendermos 2013.
Muito já foi dito e escrito sobre os protestos liderados pelo MPL - Movimento Passe
Livre – em junho de 2013, depois do aumento do valor da passagem do transporte público. A
escalada da violência policial para reprimir as manifestações multiplicava exponencialmente o
número de pessoas na rua. Não era por 20 centavos, era por direitos. E realmente, a cada dia
os atos eram maiores.
Crescia o desejo de participação política e o questionamento às instituições.
Rapidamente, a direita foi habilidosa em se apropriar das ruas e cresceram os brados de “sem
partido” e “sem bandeira”.
Não podemos ignorar que tanto a gestão municipal de SP como do governo federal
eram petistas e que o questionamento sobre a presença da esquerda nas ruas foi uma
crescente. Também não podemos ignorar os interesses internacionais no então
recém-descoberto pré-sal, o apoio a grupos de direita que passaram a surfar na
institucionalidade apesar do discurso anti-sistema. Em 2014, foi fundado o MBL, Movimento
Brasil Livre, que nada tinha a ver com o MPL, m realmente havia convocado as ruas em
2013. Mas não quero dedicar tanta atenção a análises mais conhecidas de 2013. Quero

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argumentar que a ocupação crescente das ruas por grupos conservadores, racistas, misóginos,
de extrema direita a partir de 2013 esteve diretamente relacionada à pauta racial.
Dois meses antes das chamadas jornadas de junho, no dia 3 de abril de 2013, foi
publicada no Diário Oficial da União a emenda Constitucional 72, a chamada PEC das
Domésticas. Pela primeira vez na história do Brasil, trabalhadoras domésticas tiveram – ao
menos no papel – direitos trabalhistas equivalentes aos das demais categorias profissionais.
Empregadas, babás, caseiros, motoristas passaram a ter – ao menos no papel, repito – jornada
de trabalho de no máximo 8 horas por dia, 44 horas por semana, pagamento de horas-extras.
Vocês devem conhecer os ensaios de Lélia Gonzalez e sua constatação de que no Brasil
pós-abolição, depois de 1888, o trabalho remunerado possível para a população negra
brasileira era o trabalho doméstico.
O trabalho livre assalariado, a partir do século 19, não estava disponível a quem o
realizara anteriormente como escravizado. A abolição legal, além de não ter sido
acompanhada por nenhuma política reparatória, foi concomitante ao incentivo à imigração
sob argumento de que o Brasil precisava de trabalhadores qualificados. Negras e negros não
tinham terra, nem escolarização, nem trabalho.
Apesar de muitas famílias de bem terem expressado preferência por trabalhadoras
domésticas “de boa aparência”, brancas, como se pode ver nos anúncios de jornal do final do
século 19 e ao longo do século 20, evidenciando discriminação racial também no trabalho
doméstico, é sabido que o dinheiro que chegava regularmente às comunidades negras
chegava, principalmente, pelos baixos salários das empregadas domésticas. E assim foi por
muitas décadas. Mais de cem anos depois da abolição, em 1998, 48% das mulheres negras
trabalhadoras eram empregadas domésticas.
Mas as mudanças a partir dos anos 2000 não foram poucas. Em 2008, o número de
trabalhadoras domésticas dentre o total de trabalhadoras negras caiu de 48 para 22 a cada 100.
E quem aqui não testemunhou as reclamações da classe média branca de que estava cada vez
mais difícil contratar boas empregadas, subservientes, dispostas a “dormir” no emprego,
disponíveis 24 horas por dia?
As cotas raciais para ingresso nas universidades públicas, praticadas na UERJ desde
2002, na UNB desde 2004 (não vou citar a USP para não envergonhar ninguém), tornadas lei
em 2012, apresentaram ainda mais possibilidades às “neguinha atrevida”, como bem nos
nomeou Lélia Gonzalez. Apesar de não frisar a questão racial no emprego doméstico, o filme
“Que horas ela volta” de Anna Muylaert é uma boa ilustração das mudanças possibilitadas no
Brasil.

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A luta histórica do movimento negro pelo acesso à educação, a luta por direitos das
trabalhadoras domésticas organizadas desde pelo menos a década de 1930, o feminismo
brasileiro, cada vez mais enegrecido, nas palavras de Sueli Carneiro, modificaram as políticas
públicas e enfrentaram de modo consistente – ainda que inicial – nossas desigualdades raciais,
sociais e de gênero. E isso era mais do que a classe média branca e as elites puderam suportar.
Ainda naquele 2013, o Programa Mais Médicos, do governo federal, trouxe médicos
cubanos e negros para suprir o déficit de profissionais do Sistema Único de Saúde. Não
bastasse pobre nos aeroportos, negro nas universidades, empregadas domésticas com direitos
trabalhistas, o PT ainda inventou médicos pretos. O Brasil racista, misógino e profundamente
desigual, este gigante, realmente acordou.
Nosso sofrimento social, ancorado no racismo anti-negro, no elogio à torutra, na
banalização do assassinato de cerca de 50 mil pessoas por ano, 75% delas negras, no
feminicídio, na violência pareceu pequeno perto do discurso esvaziado anti-corrupção.
Testemunhamos o golpe que depôs a primeira presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, de seu
segundo mandato, em 2016. É provável que pessoas dessa sala tenham afirmado que se
tratava de um impeachment legítimo, previsto na constituição, mesmo que pedalada fiscal não
fosse justificativa para impeachment, mesmo que deputados tenham votado sim ao
impeachment por Deus, por suas famílias, por torturadores.
E ainda hoje há estudos reconhecidos pelas ciêncis sociais brasileiras que fazem a
imensa ginástica retórica para tratar de segurança pública sem ao menos mencionar a palavra
racismo.
Enquanto não compreendermos a centralidade do racismo nos processos sociais
brasileiros, inclusive em 2013, não despacharemos os fantasmas que nos assombram e que
teimam em perturbar nosso frágil horizonte democrático. Enquanto houver racismo, não
haverá democracia.

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