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O FASCISMO À ESPREITA NA RETA FINAL

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18 de outubro de 2014
por Paulo Moreira Leite
Atos de violência e intimidação são resultado previsível de uma política de criminalização da
política e dos políticos

Na quinta-feira, quando Dilma teve uma queda de pressão no SBT, um médico gaúcho usou o
twitter para mandar essa “#%&!##”chamar um “médico cubano.”

(Dois dias antes, ao sair do carro no estacionamento da TV Band, para o debate anterior, a
presidente foi recebida pelos gritos de um assessor parlamentar adversário. Ouviram-se coisas
como “vaca”, “vai para casa…”)
No Rio, o cronista Gustavo Duvivier passou a receber diversos tipos de ameaça depois que
publicou um texto onde deixou clara sua preferência por Dilma.

Agressores avançaram sobre o escritor Enio Gonçalves Filho, blogueiro com momentos de boa
inspiração — e que é cadeirante — quando ele se dirigia ao Churrasco dos Desinformados, na
Praça Roosevelt. Enio se dirigia a um protesto para responder ao comentário de Fernando
Henrique Cardoso sobre a vantagem de Dilma nos estados do Nordeste (“O PT está fincado nos
menos informados, que coincidem de ser os mais pobres. Não é porque são pobres que apoiam o
PT. É porque são menos informados,” disse FHC).

No meio do caminho, três sujeitos avantajados tentaram obrigar Enio a tirar sua camisa vermelha
— ele é petista — e chacoalhavam sua cadeira de rodas.

Uma comunidade de quase 100 mil usuários numa rede social, que se declaram profissionais da
classe médica brasileira, se tornou palco de uma guerra dentro da  corrida presidencial. Com o
título de “Dignidade Médica”, as postagens do grupo pregam “castrações químicas” contra
nordestinos, profissionais com menor nível hierárquico, como recepcionistas de consultório e
enfermeiras, e propõe um “holocausto” contra  os eleitores de Dilma.

Eleições apertadas, que envolvem projetos políticos distintos, podem gerar conflitos entre
eleitores que chegam a lembrar torcidas de futebol. Mas estamos assistindo a uma situação
diferente: ações agressivas destinadas a dar suporte a uma ideologia política de exclusão e
negação de direitos elementares.

A maioria dos estudiosos costuma ligar a emergência do ódio político, sentimento que está na
base dos movimentos fascistas, a situações de crise econômica, quando a maioria das pessoas não
enxerga uma saída para suas vidas nem para suas famílias. Embora a economia brasileira tenha
crescido pouco em 2014, ninguém definiria a situação do Brasil como catastrófica.

Ao contrário do que ocorria na Europa dos anos 20 e 30, que viu nascer os regimes de Benito
Mussolini e Adolf Hitler, o Brasil não se encontra numa situação de superinflação nem de
desemprego selvagem. A média dos últimos quatro anos de inflação é a segunda mais baixa da
história do IBGE — numa linha que vai até 1940.

O desemprego é o menor da história e continua caindo. Nada menos que 123 000 novos postos de
trabalho foram criados em setembro 2014. É inegável que ao longo dos anos ocorreram avanços
na distribuição de renda, no combate a desigualdade, na ampliação dos direitos das maiores que
passavam excluídas pela historia.

A intolerância de 2014 tem origem política e tem sido estimulada pelos adversários do PT e
Dilma. Procura-se questionar a legitimidade de suas decisões e rebaixar moralmente os eleitores
os apóiam.

Em 2006, quando Lula foi reeleito, um ano e meio depois das denúncias de Roberto Jefferson, o
Estado de S. Paulo publicou uma reportagem tentando sustentar que “a aceitação da corrupção na
política está mais presente entre os eleitores de baixa renda.”

Ao fazer pesquisas que associavam valores morais aos anos de educação formal de um cidadão, o
estudo A Cabeça do Brasileiro sugeria que a baixa escolaridade formal — condição da maioria
dos brasileiros — tornava a parcela menos educada da população mais vulnerável ao “jeitinho” e
outras práticas condenáveis.

Procurando entender a origem do fascismo nas primeiras décadas do século passado, Hanna
Arendt deixou lições que podem ser úteis para o Brasil de 2014.

Hanna Arendt usava uma expressão interessantíssima — “amargura egocêntrica” — para definir
a psicologia social dessas pessoas que integravam movimentos de vocação fascista. Ela escreveu:
“a consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser a expressão da frustração
individual e se tornava um fenômeno de massa.”

É sempre interessante recordar um levantamento feito em 2011 pelo instituto Data


Popular. Entrevistando 18 000 cidadãos na parte superior da pirâmide de renda, o DataPopular
descobriu que:

55,3% concordam que deveria haver produtos para ricos e pobres

48,4% concordam que a qualidade dos serviços piorou com o maior acesso da população

62,8% concordam que estão incomodados com o aumento das filas

49,7% concordam que preferem frequentar ambientes com pessoas do seu nível social
16,5% concordam que pessoas mal vestidas deveriam ser barradas em alguns lugares

26,4 % concordam que o metrô aumenta a circulação de pessoas indesejáveis na região em que
moram

17,1% concordam que todos os estabelecimentos deveriam ter elevadores separados.

A intolerância e o ódio cresceram no Brasil com uma consequência inevitável de um movimento


destinado à criminalização da política e dos políticos — em particular do Partido dos
Trabalhadores, nascido para ser “aquela parede protetora” das classes assalariados e dos mais
pobres, para usar uma expressão de Hanna Arendt. Pela destruição das barreiras de classe, que
permitem distinguir um partido de outro, os interesses de uns e de outros, firmou-se o conceito de
que nossos homens públicos são autoridades sem escrúpulo e bandidos de alta periculosidade,
sem distinção, descartáveis e equivalentes, “não apenas perniciosas, mas também obtusas e
desonestas, ” como escreveu a mestra.

As atitudes agressivas e tentativas de humilhação nasceram durante o julgamento da AP 470, no


qual se assistiu a um espetáculo seletivo de longa duração. Enquanto os acusados ligados ao PT e
ao governo Lula eram julgados em ambiente de carnaval cívico-televisivo, num espetáculo
transmitido e estimulado por programas de TV, os acusados do PSDB, envolvidos nos mesmos
esquemas, dirigidos pelas mesmas pessoas — e até com mais tempo de atividade — foram
despachados para tribunais longe da TV, a uma distancia de qualquer pressão por celeridade.
Sequer foram julgados — embora a denúncia seja anterior.

Há outros componentes no Brasil de 2014. A referencia sempre odiosa aos médicos cubanos que
respondem pelo atendimento de brasileiros que nossos doutores verde-amarelos não têm a menor
disposição de atender, revela o casamento do preconceito com um anticomunismo primitivo,
herança viva da ditadura de 1964. Permite ao fascismo recuperar o universo Ame-o ou Deixe-o,
assumir-se como aliado da ditadura sem dizer isso de forma explícita.

O progresso social dos últimos anos ajudou a criar ressentimento de camadas de cima que se
vêem ameaçadas — — em seu prestígio, mais do que por outra coisa – em função do progresso
dos mais pobres, essa multidão despossuída que na última década conseguiu retirar uma fatia um
pouco mais larga do bolo da riqueza do país.

Em 2010, a vitória de Dilma Rousseff foi saudada em São Paulo por um grito no twitter: “Faça
um favor a SP: mate um nordestino afogado!”, escreveu uma estudante de Direito. Três anos mais
tarde, ela foi condenada um ano e cinco meses de prisão, mas teve a pena transformada em
prestação de serviços comunitários.

“O que perturba os espíritos lógicos é a indiscutível atração que esses movimentos exercem sobre
a elite “, escreveu Hanna Arendt.

Richard Sennet, um dos principais estudiosos das sociedades contemporâneas, definiu o


ressentimento como a convicção de que determinadas reformas em nome do povo “traduzem-se
em conspirações que privam as pessoas comuns de seu direito e seu respeito.” Os benefícios
oferecidos aos mais pobres resultam em insegurança e insatisfação por parte dos cidadãos que
estão acima das políticas sociais dirigidas às camadas inferiores, explica Sennet, para quem essas
pessoas tem o sentimento de que o governo “não conhece grande coisa de seus problemas, apesar
de falar em seu nome.”

Mas quais seriam estes problemas? Hanna Arendt falou em “amargura egocêntrica.”

Na decada de 1950, poucas medidas de Getúlio Vargas despertaram o ódio de seus adversários
como a decisão de aumentar o salário mínimo em 100%. Pouco importava que esse número se
baseasse na inflação do período anterior, de inflação altíssima. A questão é que, com um salário
desses, um operário da construção civil poderia ganhar o mesmo que um militar de baixa patente
e outros funcionários públicos — e isso era inaceitável num país onde o trabalho de um pedreiro
era visto como a herança da escravidão.

O fim da história nós sabemos.

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