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“O jornalismo jamais esteve à altura do desafio desses anos de

tormenta, ódio e fake news”, diz pesquisador Wilson Gomes

Publicado no Portal Imprensa em 3/12/2020

O professor e pesquisador Wilson Gomes acaba de lançar o livro “Crônica de Uma


Tragédia Anunciada” (Sagga Editora). A obra analisa como a extrema-direita chegou ao
poder no país. 
O  autor investiga como a Operação Lava-Jato, o antipetismo, as manifestações de 2013
e o impeachment de Dilma Rousseff, entre outros elementos, contribuíram para a
eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
“Eu o escrevi para as pessoas que gostariam de entender como é que saímos de um
estado consistente de contentamento em junho de 2013 e acabamos dançando, bêbados
e furiosos, um tango à beira do abismo em 2018. Eu fiz um registro, no calor da hora e
no vai da valsa, do que ia presenciando nesses seis anos em que vivemos o que
normalmente se vê em um século, e acho que este relato pode ajudar a fazer sentido de
uma história que ainda estamos vivendo”.
Nesta entrevista para o Portal Imprensa, o professor da Faculdade de Comunicação da
Ufba analisou também o papel da imprensa na ascensão da extrema-direita. 

“A democracia nunca precisou tanto do jornalismo quanto naquele momento em que ela
era testada pelo sistema político, pela fúria popular e pelos novos atores políticos
fascistas, mas ele não esteve à altura. Não ajudou os seus leitores e espectadores a
entender melhor, a pensar melhor e a pensar outra vez antes de se engajar na briga.
Sobretudo não ajudou as pessoas hesitarem. Quando as pessoas estão tão apressadas, tão
zangadas e com tantas certezas, um jornalismo que produza hesitação dá à democracia o
que melhor pode fazer”.

Wilson Gomes também é autor de "Transformações da política na era da comunicação


de massa" (Paulus), "Jornalismo, fatos e interesses" (Insular), "A Política na timeline"
(Edufba), "A democracia no mundo digital" (Edições do SESC), e co-autor, com
Rousiley Maia, de "Comunicação & democracia: problemas e perspectivas" (Paulus). O
pesquisador é coordenador do INCT em Democracia Digital, que envolve a UFBA e
mais 19 instituições de ensino superior brasileiras e 23 internacionais. 

Portal Imprensa - Qual foi o papel da imprensa na ascensão da extrema-direita ao


poder no Brasil?
Wilson Gomes - O jornalismo jamais esteve à altura do desafio desses anos de tormenta,
ódio e fake news, nunca tendo sido capaz de oferecer informações complexas,
profundas e fundamentais de maneira a devolver alguma racionalidade à confusão
generalizada. O jornalismo, em sua maioria, contentou-se em atiçar brigas e soprar
brasas, em degradar a política como um todo, em adotar enquadramentos de hostilidade
e guerra. Foi um jornalismo simplificador, frequentemente não resistindo à tentação de
apostar na roleta política e, sobretudo, que se entregou às delícias do regicídio. 
A democracia nunca precisou tanto do jornalismo quanto naquele momento em que ela
era testada pelo sistema político, pela fúria popular e pelos novos atores políticos
fascistas, mas ele não esteve à altura. Não ajudou os seus leitores e espectadores a
entender melhor, a pensar melhor e a pensar outra vez antes de se engajar na briga.
Sobretudo não ajudou as pessoas hesitarem. Quando as pessoas estão tão apressadas, tão
zangadas e com tantas certezas, um jornalismo que produza hesitação dá à democracia o
que melhor pode fazer. 

Em vez de usar como critério deontológico a hesitação, a capacidade de suscitar no


leitor um certo ceticismo ou suspensão de julgamento, o jornalismo adotou o que chamo
de princípio Bonner: se todo mundo me está criticando é sinal que estou equidistante
dos dois lados. O que é uma falácia brutal, por duas razões. Primeiro, porque jornalismo
não é atividade dramatúrgica, suscitar emoções não faz parte do que pode ser usado
como critério de sucesso ou fracasso da cobertura de um acontecimento ou da
explicação de um fato. O princípio Bonner normaliza uma aberração, que é o jornalismo
que de insuflar indignação moral e furor ético. Segundo, se todo mundo está com raiva
do que você faz isso pode muito bem significar que você está sendo injusto com todo
mundo e não que esteja sendo justo com os fatos. O jornalismo não tem que ser
equidistante, tem que ser justo e honesto com os fatos. 

Por isso, o jornalismo está menor hoje do que quando entrou na crise política que
começou em 2013. A degradação da política com que o jornalismo brasileiro tanto
contribuiu teve como consequência a degradação do próprio jornalismo de política na
opinião pública. As pessoas passaram a entender o jornalismo como parte da política,
como construção de narrativas interessadas e para induzir emoções e atitudes políticas.
Eis por que as fake news prosperaram tão intensamente. Muita gente não sabe quais são
os sinais seguros que distinguem as news verdadeiras das que são fake já que ambas
parecem querer o mesmo: desmascarar os políticos, contar podres, fazer denúncias,
motivar o sentimento de ultraje moral. 

O jornalismo só começou a mudar de vida em 2020 porque a conta chegou. Estávamos


afogando em fake news, à deriva em um mar de teorias da conspiração e este não era
um problema que afetava apenas a política e os políticos, mas o próprio jornalismo e a
sua credibilidade. 

Além disso, estava já à obra, desde 2016 no mundo e a partir de 2019 no Brasil, um
ataque insidioso da extrema-direita à credibilidade jornalística. Chama-se ceticismo
mal-intencionado e consiste em induzir as pessoas a cancelarem a autorização social que
se dá ao jornalismo para nos dizer o que é verdadeiro ou falso no que tange a fatos e
acontecimentos da atualidade. 

Não se aplica apenas ao jornalismo, mas a qualquer “autoridade epistêmica”, este


capital cultural decisivo em sociedade de massa, e que consiste em poder arbitrar com
credibilidade sobre verdade e falsidade. Todos precisam ser desqualificados, cientistas,
professores, intelectuais, juízes e, enfim, jornalistas. A premissa básica de ataque é que
todas essas autoridades estão comprometidas, vez que foram infiltradas e dominadas
pelos comunistas, pela esquerda, pelo globalismo e pelos progressistas. Não são
imparciais com a direita ultraconservadora, precisam ser substituídas por outras
autoridades epistêmicas, mas com mandato identitário: os nossos intelectuais, os nossos
cientistas, a nossa ecologia midiática de extrema-direita, composta por sites de
(fabricação) de notícias, canais de YouTube, influencers nas diversas plataformas
digitais. Estamos em plena era da epistemologia tribal, em que a verdade é medida pelo
nível de conformidade com as nossas expectativas e com o mínimo possível de
dissonância cognitiva e emocional. 

Em um mundo em que os acontecimentos verdadeiros são aqueles chancelados pelos


líderes tribais e que evitam qualquer dissonância cognitiva, o jornalismo de referência,
ele sim é que produz “fake news”, como dizem Trump e Bolsonaro. Toda notícia, todo
comentário político dissonante dos nossos valores e expectativas são falsos e mal-
intencionados. Neste universo, está autorizado o insulto ao jornalismo de referência,
que, afinal, pratica a arte imoral de produzir notícias falsas. Mais que isso, está
autorizado o desacato, a agressão, a ofensa ao jornalista. Antes, criou-se um ritual diário
de xingamentos e humilhações ao jornalismo e aos jornalistas no cercadinho do Palácio,
tanto por parte do governante quanto dos seus seguidores. 

O Brasil sempre teve um bom e solitário jornalismo que se manteve digno e sóbrio
durante todo este período, mas foram muitos os jornalistas e as empresas de informação
que se jogaram à farra do antipetismo e da antipolítica que favoreceu em muito o êxito
político da extrema-direita. Estes têm uma parte importante na tragédia que vivemos,
sim. 

Portal Imprensa - A definição de Bolsonaro como um político de “extrema-direita”


foi amplamente utilizada em órgãos da imprensa internacional, como The
Guardian, Financial Times e New York Times. Por que isso não aconteceu na
imprensa brasileira?
Wilson Gomes - Até este ano, a posição dominante do jornalismo político brasileiro era
se refugiar no lugar-comum de que “direita e esquerda não fazem mais sentido”. A ficha
vem caindo aos poucos, em uma redação depois da outra, de que as coisas são mais
complicadas que isso e que não dá para entender o que está acontecendo ao país sem
reabilitar o chamado “espectro ideológico”, o segmento de reta em cujos polos estão a
direita e esquerda. Depois das eleições americanas, deu um clique nas redações e agora
estão trabalhando cuidadosamente para separar a direita bolsonarista das outras direitas
e até um centro político (que tecnicamente ficou deserto com a polarização) foi
identificado.

O mais grave, contudo, é que, por muito tempo, o jornalismo político contentava-se em
colocar Bolsonaro na direita. Como se a extrema-direita bolsonarista estivesse em
continuidade com a direita republicana, que é uma posição legítima no espectro liberal-
democrático. Mas não o é. O jornalismo americano não normalizou Trump na direita e o
trataram como uma direita alternativa ou simplesmente com uma tendência política
nova que eles chamaram de populismo autoritário. O jornalismo brasileiro tem, em
geral, uma má formação em teoria política e acaba se atrapalhando todo nessas
classificações, ainda mais porque uma parte olhava para Bolsonaro através de Moro ou
através de Guedes. 

Para ser simples, a extrema-direita não é uma direita republicana radicalizada. Ele é
uma inversão de qualquer valor republicano. Tem em comum com certas posições da
direita algum autoritarismo conservador, mas as semelhanças acabam aqui. A direita
liberal-democrata por exemplo é antiestatista (por vir do liberalismo que é o antagonista
do Absolutismo), é radical na defesa das liberdades que garantam a cada indivíduo viver
a sua vida com melhor lhe pareça, defende a divisão do Estado em três poderes, com
supervisão recíproca, para que o Executivo não resolva se transformar em um príncipe
eleito, é a favor de sistemas de pesos e contrapesos institucionais, é a favor de
transparência pública, etc. A extrema-direita, não. Quer um Estado tão grande ao ponto
de poder doutrinar todas as pessoas e decidir até com quem você se deita e a que deus
você reza, acha um estorvo tudo o que impede que o líder carismático imponha a sua
vontade, detesta os cabrestos institucionais, é liberticida por definição. Isso é o
trumpismo e o bolsonarismo. E é isso o que a maior parte do jornalismo brasileiro
demorou a ver. 

Portal Imprensa - Por que você intitulou a obra como uma tragédia anunciada? A
chegada da extrema-direita ao poder poderia ter sido evitada?
Wilson Gomes - Porque nenhum dos personagens do drama pode alegar não ter sido
advertido, por muitos, de que haveria repercussões tremendas implicadas nos seus atos,
e que todos pagariam por suas decisões. Muitos de nós, inclusive do jornalismo, fomos
Cassandras, avisando, inutilmente, que aquele ato X ou Y estava grávido de
consequências de grande alcance. E a cada ato da tragédia as coisas só iriam piorando. A
metáfora da tragédia vem da inexorabilidade do desfecho horrendo e chocante, mesmo
que se saiba de antemão o que há de vir e até de que muitos se esforcem para evitar o
destino, a fatalidade. 

Isso poderia ter sido evitado em muitos momentos. As massas de 2013 poderiam ter
usado mais inteligências que fúria, se Aécio tivesse paciência institucional em 2014
poderia ter sido o provável presidente em 2018, se Dilma tivesse maior capacidade de
negociação política e de comunicação a tentativa de impeachment poderia ter tido outro
desfecho, se a Lavajato tivesse sido republicana, isenta e imparcial não teria
contribuindo tão intensamente para o ódio interfacções, se Lula não tivesse subestimado
o antipetismo em 2018, se...  Em suma, poder-se-ia ter feito algo, enquanto ainda era
tempo, mas não se fez, e os erros se foram acumulando até que a noite se fez inevitável. 
Portal Imprensa - Quem você gostaria que lesse a obra? Para quem o livro foi
escrito?
Wilson Gomes - Eu o escrevi para as pessoas que gostariam de entender como é que
saímos de um estado consistente de contentamento em junho de 2013 e acabamos
dançando, bêbados e furiosos, um tango à beira do abismo em 2018. Eu fiz um registro,
no calor da hora e no vai da valsa, do que ia presenciando nesses seis anos em que
vivemos o que normalmente se vê em um século, e acho que este relato pode ajudar a
fazer sentido de uma história que ainda estamos vivendo. 

Escrevi para os que ainda têm alguma esperança guardada por aí em algum lugar de que
tampouco esta noite durará para sempre. Para os que ainda acham que a saída não está
nas facas que afiamos e no combustível que estocamos, mas em alguma forma, coletiva,
de reconstruir, curar as feridas e, como disse Biden, nos convencer de novo de que
como país nós somos e podemos ser muito melhores do que isso que temos sido. A
democracia, e isso tem sido o meu mantra há alguns anos, é muito menos um dado de
fato do que uma tarefa. Precisamos de democratas para começar de novo. Escrevi para
os que acham que é possível aprender com os erros que cometemos. 

Leia a entrevista na íntegra em:


https://portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/84070/o+jornalismo+jamais+estev
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