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“A democracia nunca precisou tanto do jornalismo quanto naquele momento em que ela
era testada pelo sistema político, pela fúria popular e pelos novos atores políticos
fascistas, mas ele não esteve à altura. Não ajudou os seus leitores e espectadores a
entender melhor, a pensar melhor e a pensar outra vez antes de se engajar na briga.
Sobretudo não ajudou as pessoas hesitarem. Quando as pessoas estão tão apressadas, tão
zangadas e com tantas certezas, um jornalismo que produza hesitação dá à democracia o
que melhor pode fazer”.
Por isso, o jornalismo está menor hoje do que quando entrou na crise política que
começou em 2013. A degradação da política com que o jornalismo brasileiro tanto
contribuiu teve como consequência a degradação do próprio jornalismo de política na
opinião pública. As pessoas passaram a entender o jornalismo como parte da política,
como construção de narrativas interessadas e para induzir emoções e atitudes políticas.
Eis por que as fake news prosperaram tão intensamente. Muita gente não sabe quais são
os sinais seguros que distinguem as news verdadeiras das que são fake já que ambas
parecem querer o mesmo: desmascarar os políticos, contar podres, fazer denúncias,
motivar o sentimento de ultraje moral.
Além disso, estava já à obra, desde 2016 no mundo e a partir de 2019 no Brasil, um
ataque insidioso da extrema-direita à credibilidade jornalística. Chama-se ceticismo
mal-intencionado e consiste em induzir as pessoas a cancelarem a autorização social que
se dá ao jornalismo para nos dizer o que é verdadeiro ou falso no que tange a fatos e
acontecimentos da atualidade.
O Brasil sempre teve um bom e solitário jornalismo que se manteve digno e sóbrio
durante todo este período, mas foram muitos os jornalistas e as empresas de informação
que se jogaram à farra do antipetismo e da antipolítica que favoreceu em muito o êxito
político da extrema-direita. Estes têm uma parte importante na tragédia que vivemos,
sim.
O mais grave, contudo, é que, por muito tempo, o jornalismo político contentava-se em
colocar Bolsonaro na direita. Como se a extrema-direita bolsonarista estivesse em
continuidade com a direita republicana, que é uma posição legítima no espectro liberal-
democrático. Mas não o é. O jornalismo americano não normalizou Trump na direita e o
trataram como uma direita alternativa ou simplesmente com uma tendência política
nova que eles chamaram de populismo autoritário. O jornalismo brasileiro tem, em
geral, uma má formação em teoria política e acaba se atrapalhando todo nessas
classificações, ainda mais porque uma parte olhava para Bolsonaro através de Moro ou
através de Guedes.
Para ser simples, a extrema-direita não é uma direita republicana radicalizada. Ele é
uma inversão de qualquer valor republicano. Tem em comum com certas posições da
direita algum autoritarismo conservador, mas as semelhanças acabam aqui. A direita
liberal-democrata por exemplo é antiestatista (por vir do liberalismo que é o antagonista
do Absolutismo), é radical na defesa das liberdades que garantam a cada indivíduo viver
a sua vida com melhor lhe pareça, defende a divisão do Estado em três poderes, com
supervisão recíproca, para que o Executivo não resolva se transformar em um príncipe
eleito, é a favor de sistemas de pesos e contrapesos institucionais, é a favor de
transparência pública, etc. A extrema-direita, não. Quer um Estado tão grande ao ponto
de poder doutrinar todas as pessoas e decidir até com quem você se deita e a que deus
você reza, acha um estorvo tudo o que impede que o líder carismático imponha a sua
vontade, detesta os cabrestos institucionais, é liberticida por definição. Isso é o
trumpismo e o bolsonarismo. E é isso o que a maior parte do jornalismo brasileiro
demorou a ver.
Portal Imprensa - Por que você intitulou a obra como uma tragédia anunciada? A
chegada da extrema-direita ao poder poderia ter sido evitada?
Wilson Gomes - Porque nenhum dos personagens do drama pode alegar não ter sido
advertido, por muitos, de que haveria repercussões tremendas implicadas nos seus atos,
e que todos pagariam por suas decisões. Muitos de nós, inclusive do jornalismo, fomos
Cassandras, avisando, inutilmente, que aquele ato X ou Y estava grávido de
consequências de grande alcance. E a cada ato da tragédia as coisas só iriam piorando. A
metáfora da tragédia vem da inexorabilidade do desfecho horrendo e chocante, mesmo
que se saiba de antemão o que há de vir e até de que muitos se esforcem para evitar o
destino, a fatalidade.
Isso poderia ter sido evitado em muitos momentos. As massas de 2013 poderiam ter
usado mais inteligências que fúria, se Aécio tivesse paciência institucional em 2014
poderia ter sido o provável presidente em 2018, se Dilma tivesse maior capacidade de
negociação política e de comunicação a tentativa de impeachment poderia ter tido outro
desfecho, se a Lavajato tivesse sido republicana, isenta e imparcial não teria
contribuindo tão intensamente para o ódio interfacções, se Lula não tivesse subestimado
o antipetismo em 2018, se... Em suma, poder-se-ia ter feito algo, enquanto ainda era
tempo, mas não se fez, e os erros se foram acumulando até que a noite se fez inevitável.
Portal Imprensa - Quem você gostaria que lesse a obra? Para quem o livro foi
escrito?
Wilson Gomes - Eu o escrevi para as pessoas que gostariam de entender como é que
saímos de um estado consistente de contentamento em junho de 2013 e acabamos
dançando, bêbados e furiosos, um tango à beira do abismo em 2018. Eu fiz um registro,
no calor da hora e no vai da valsa, do que ia presenciando nesses seis anos em que
vivemos o que normalmente se vê em um século, e acho que este relato pode ajudar a
fazer sentido de uma história que ainda estamos vivendo.
Escrevi para os que ainda têm alguma esperança guardada por aí em algum lugar de que
tampouco esta noite durará para sempre. Para os que ainda acham que a saída não está
nas facas que afiamos e no combustível que estocamos, mas em alguma forma, coletiva,
de reconstruir, curar as feridas e, como disse Biden, nos convencer de novo de que
como país nós somos e podemos ser muito melhores do que isso que temos sido. A
democracia, e isso tem sido o meu mantra há alguns anos, é muito menos um dado de
fato do que uma tarefa. Precisamos de democratas para começar de novo. Escrevi para
os que acham que é possível aprender com os erros que cometemos.