Você está na página 1de 10

MÍDIAS, PUNITIVISMO, JUSTIÇA E DIREITOS: se correr o bicho pega, se ficar

o bicho come...
Melillo Dinis do Nascimento1

1 – Introdução
Em 2017 um dos mais destacados magistrados do país revelou em palestra o seu
espanto com o papel das mídias na produção da jurisdição2. A partir de um ponto de vista
do papel das instituições (Poder Judiciário, Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério
Público, Imprensa...), ele criticou de forma dura a tendência atual ao punitivismo e o papel
das mídias nesta realidade.
O punitivismo é uma tendência frequente de aumento da dureza das leis penais e
de sua aplicação, muito comum em tempos de crise e de violência e que geralmente vem
acompanhado da preocupação, do medo e da indignação3. Ao lado desta “dureza”, ele
está acompanhado de um tipo de espetacularização da punição por parte do Estado.
Também denominado populismo penal, o fenômeno do punitivismo tem como ponto de
partida dois centros: o cansaço de grande parte da população com a violência, a corrupção
e a impunidade, a questão social, a política, a economia ... enfim, as crises sejam elas
resultado de dados objetivos ou de exageros construídos; e a resposta simplista e simplória
das autoridades e dos especialistas com relação a estas questões, mais ainda num quadro
de ressaca nacional com “tudo que está aí...”.
2 – Política e justiça
O Brasil vive tempos em que a política se judicializou e o direito se politizou4.
Vivemos uma mudança de época mais que uma época de mudanças e ainda não sabemos

1
Advogado em Brasília-DF (www.melillo.adv.br), professor e pesquisador especialista em Direito Público,
é Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA) e Pós-Doutor em Direito Penal e Garantias
Constitucionais (UNLaM).
2
A reflexão é do Ministro Sebastião Reis, do STJ, em palestra no Instituto Victor Nunes Leal em setembro
de 2017. Disponível em http://www.conjur.com.br/2017-set-15/mp-usa-midia-forcar-condenacoes-leis-
imorais-ministro. Acesso em 22 Set 2017. Conforme a matéria disse o Ministro: “A omissão das instituições
(...) levou o Brasil a uma situação absurda, onde as pessoas precisam ter coragem para defender o que
acham justo. A presunção de inocência (...) acabou. E um dos motivos disso é uso indevido da mídia por
instituições. ”
3
Defino punitivismo a partir dos seguintes autores: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos:
conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. _____. Em busca das penas perdidas: a
perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da
impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de
Janeiro: Revan, 2015. CARVALHO, Salo. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Este último aponta que “o sintoma contemporâneo ... vontade de punir,
atinge os países ocidentais e ... desestabiliza o sentido substancial de democracia, propicia a emergência
das macropolíticas punitivista (populismo punitivo), dos movimentos políticos-criminais encarceradores
(lei e ordem e tolerância zero) e das teorias criminológicas neoconservadoras (atuarismo, gerencialismo e
funcionalismo sistêmico). ”
4
Não é sem razão que Lenio Streck denuncia os sintomas e as consequências deste duplo polo: “Tudo
começou com o ativismo e a judicialização da política... para chegar ao ápice: a politização da justiça”.
Disponível em http://www.conjur.com.br/2017-jun-29/senso-incomum-check-list-21-razoes-pelas-quais-
estamos-estado-excecao. Acesso em 22 Set 2017. Marcelo Neves trata da “acentuada interpenetração entre
os sistemas jurídico e político”. Ver NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã. São Paulo: Martins Fontes,
2006. O sistema jurídico se reproduz a partir da codificação lícito/ilícito e de seus elementos (Constituição,
leis, jurisprudência etc.). Já o sistema político – cuja definição poderia ser dada como “a esfera de decisão
coletivamente vinculante” – vale-se do código governo/oposição e dos seus programas (procedimentos
eleitorais, parlamentares, burocráticos etc.), cf. p. 86. A interferência do direito na política e vice-versa é
tal que um põe à disposição do outro a própria complexidade para ajudar na autoconstrução do sistema
alheio. Isso resulta em “uma necessidade recíproca de seleção e estruturação da complexidade penetrante”,
cf. p. 92.

1
para onde apontar o nariz. Esta complexa relação entre o direito e o poder político tem
exigido um cuidado extremo na análise do estágio do já complexo processo de
democratização brasileira.
Resta evidente que a pauta “Justiça/Judiciário” adentrou no mundo visível e
invisível da imprensa, das mídias sociais, dos novos e velhos meios de comunicação.
Basta pensar quantos profissionais da comunicação passaram a se dedicar a este tema, ao
espaço ocupado nas páginas impressas ou nos canais de comunicação eletrônicos que
tratam de decisões judiciais, tendências dos tribunais, a veiculação das falas dos juízes,
dos advogados e dos promotores em todos os cantos ao invés dos autos dos processos,
acompanhamento ao vivo com a presença de comentaristas do debate nas Cortes.
Conheço alguns membros do sistema judiciário (aqui incluo advogados, magistrados e
membros do ministério público) que não resistem a uma oportunidade de “aparecer”.
Aliás, esta é uma “necessidade”5. Um deles, nas manhãs que acorda sobressaltado,
começa a dar entrevista quando abre a geladeira em sua casa e esta acende a luz interna.
Há exageros. Todavia, penso que este é o preço da democracia, da democratização
das relações sociais e do atual estágio da vida. Explico-me.
3 – Meios de comunicação e mídias sociais
Os meios de comunicação e as mídias sociais6 são uma presença marcante na vida
das sociedades e na esfera pública7. Estou convicto que a opinião pública é cada vez mais
a opinião publicada. Estes sempre desempenharam um papel fundamental no campo da
política. É uma conquista civilizatória a comunicação e a presença da imprensa na vida
das sociedades. E a atividade de dar publicidade, transparência e luz solar8 à atividade
política amplia muito a nossa percepção do mundo da política.
Antes mesmo de 1808, com a chegada da família real ao Brasil, a imprensa já
tinha uma relação com o poder no Brasil. Até esta data era proibida a publicação de
jornais, livros ou panfletos (e toda e qualquer atividade de imprensa). Mas havia uma
imprensa “subterrânea”, sem contar a produção de fora (fosse em Portugal, fosse em
Londres com Hipólito José da Costa9), que fazia esta relação permanente entre a atividade
jornalística e o poder. Esta imbricação só aumentou no decorrer da história. Com a
chegada das mídias sociais, na virada deste século, o fenômeno ganhou uma amplitude
que modificou a qualidade e a quantidade da crítica ao poder político.
O que era comum e aceito por todos, mesmo com muitas críticas, era que as
pressões externas da opinião publicada (os meios de comunicação) decorriam do “jogo”
da política. Mudou a amplitude e a velocidade da presença dos temas políticos a partir
das mídias sociais, especialmente neste início de século, com o surgimento de uma
sociabilidade online. À medida que estes ambientes forem mais presentes e influentes na

5
Conheci em 2012 um advogado que me apresentou sua assessora de imprensa! Desconhecia, até então,
esta figura: assessoria de imprensa de advogado!
6
Denomino “meios de comunicação” os meios de comunicação existentes e dominantes antes da chegada
da internet como os grandes grupos de televisão, rádios, jornais impressos e revistas. Chamo de mídias
sociais, ainda de forma imprecisa, além das diversas redes de sociabilização online e de noticiário, os meios
típicos do meio digital, incluindo aí Facebook, Google etc.
7
Adoto a expressão “esfera pública” a partir da matriz harbemasiana. Ver HABERMAS, Jürgen. Mudança
estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1984.
8
Para usar a expressão conhecida de Brandeis, jurista e juiz da Suprema Corte americana do século passado:
“Publicity is justly commended as a remedy for social and industrial diseases. Sunlight is said to be the best
of disinfectants; electric light the most efficient policeman.” Cf. BRANDEIS, Louis Dembitz. Other
People's Money—and How Bankers Use It. Nova York: Frederick A. Stokes Company, 1914.
9
Fundador do Correio Braziliense, que começou a circular mensalmente em português em 1º de junho de
1808 em Londres, em Portugal e no Brasil. Cf. LUSTOSA, Isabel. O Nascimento da Imprensa Brasileira.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

2
vida dos cidadãos, os meios de comunicação necessariamente modificarão sua
importância ou centralidade na relação com o campo político. Não será diferente com o
sistema judiciário.
Outra questão é discutir os meios de comunicação e as mídias sociais como
produtos e produtores da sociedade em que se inserem. Muita gente aponta que parte da
crise que está aí é causada pelas mídias (portanto os meios de comunicação e as mídias
sociais são consideradas como produtores). Contudo, estes meios e mídias são também
“produtos” sociais, resultado das intervenções de vários grupos e interesses que se
aproveitam deste poder para ampliar o seu poder. Não é sem razão que muitos dos
proprietários destes meios e muitos dos presentes no espaço das mídias sociais são
“políticos”, sejam amadores ou profissionais, submetidos à denominação tradicional
(“jornalistas”) ou travestidos de “formadores de opinião”, sob os mais variados matizes.
E, sempre lembro, que ao lado da importância pública da atividade, antes de tudo isto é
um negócio (“business as usual”). Mas, além das forças produtoras, há que se entender
que a pauta, a notícia, as personagens e os roteiros do que vem noticiado são constitutivos
e constituintes desses “produtos”.
Nos tempos atuais, por força das inovações tecnológicas, há uma quantidade
excepcional de informações circulando. Somos uma sociedade em que a grande
quantidade de informações, entretanto, não se transformou em melhor formação ou mais
juízo10. O meio é a mensagem11 e a massagem12. Adotamos as linguagens das máquinas
e dos computadores, somos capazes de transmitir emoções humanas sob a forma de
emojis, temos fantasias com o poder ilimitado da comunicação e sonhamos com o dia em
que os smartphones estarão permanentemente acoplados a nossas mãos sem nunca
descarregar. Mas a solidão, o medo, a insegurança, a ansiedade, a ignorância e a angústia
existencial vieram também no pacote desta Torre de Babel, versão século 21.
Para complicar, a realidade eletrônica reduziu o sentido de realidade por trás dos
símbolos. O imaginário e real se confundem. O signo e seu referente, o verdadeiro e o
falso coabitam o mesmo campo simbólico13. As fake news (ou “fatos alternativos”!)
transformaram a fofoca e a bobagem em informação14. Estão em constante e feroz
competição por atenção, crença e engajamento. Viramos o resultado do algoritmo e não
o seu calculista. O resultado é a ampliação do sistema de controle social e de poder15,
desta vez na mão das companhias que dominam a distribuição da informação, e “criam”
uma desconfiança permanente a tudo e a todos, como parte de nossa condição social.
Além desses aspectos, há um elemento permanente neste campo da comunicação.
O que chama a atenção neste mundo da comunicação é o embate, a crítica e a novidade.
Mark Twain afirmava que a função da imprensa era separar o joio do trigo e publicar o
joio. Fora disto quase não há negócio. Não custa lembrar ainda a frase de Millôr
Fernandes: “A imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”.

10
Tomo o juízo mais que um gosto pessoal. Considero uma atividade espiritual por meio da qual o
pensamento se manifesta no mundo das aparências, na esteira das reflexões de minha filósofa de plantão:
ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Ed.
UFRJ, 1992.
11
MCLUHAN, Marshall. O meio é a Mensagem. In: Os Meios de Comunicação como Extensões do
Homem, São Paulo: Cultrix, 1969, pp. 21-37.
12
MCLUHAN, Marshall; FIORE, Quentin. The Medium is the Massage: An Inventory of Effects. Londres:
Penguin Books, 1967.
13
Cf. KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997.
14
Cf. FRANKFURT, Harry G. On Bullshit. Princeton: Princeton University Press, 2005.
15
BAUDRILLARD, Jean. Simulacra and simulation. Michigan: The University of Michigan Press, 1994.

3
Assim, é neste marco temporal e espacial que se deve meditar acerca da presença
do sistema judiciário no mundo das comunicações, da imprensa, das mídias sociais. A
vitrine chegou de vez, e, ao fim e ao cabo, estamos todos nus.
4 – Justiça, sistema jurídico e o mundo da comunicação
O sistema jurídico sempre esteve relacionado com o sistema político. O projeto
da “separação” dos poderes decorreu mais de um aspecto didático e simbólico que
concreto. Foi datado e limitado ao tempo de sua concepção. Mas transbordou. Do ponto
de vista descritivo esta ideia de separação significava que haveria uma autonomia pois
caberia ao Judiciário resolver os conflitos sociais a ele submetidos de uma forma
“independente” dos demais poderes (Executivo e Legislativo). Do ponto de vista
prescritivo, a separação permitia a construção de um senso de comum em torno da
natureza técnica da intervenção do sistema judiciário na vida da sociedade. Contudo, tal
padrão acabou por inventar um duplo polo: cooperação “pura” e/ou conflito “puro” entre
os poderes, sendo o poder judiciário o detentor permanente das “purezas”16.
Este quadro mudou em vários países especialmente após o século XX. A
tradicional forma de presença do sistema judiciário na vida social foi substituída por outro
tipo de percepção que, sem perder a sua complexidade17, obteve uma pulverização
constante no panorama visível dos conflitos políticos e sociais para o cidadão-
consumidor18. O juiz e o promotor foram reconhecidos como atores políticos. E muitos
gostaram desses novos tempos. No caso brasileiro, ocorreu uma explosão de litigiosidade
decorrente da Constituição de 1988, que agravou ainda mais esta realidade, submersa no
período anterior, com a retomada de direitos até então inéditos na história e o aumento
quantitativo dos casos em tramitação do poder judiciário19.
A elite presente nos quadros do sistema judiciário brasileiro (repito: advogados,
magistrados e membros do ministério público), incluindo-se a burocracia dos seus órgãos,
não possui uma homogeneidade, exceto quanto a uma presença destacada na parcela da
renda20 mais alta do país. Isto cria uma conformação plural de concepções de mundo

16
Para aprofundar esta análise ver RESTA, Emilio. L´Ambiguo Diritto. Milão: Franco Angeli Ed., 1984.
17
A ideia de “complexidade e direito” neste texto decorrem de dois autores. O primeiro, mais clássico, é
LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad: De la unidad a la diferencia. Madri: Ed. Trotta, 1998. O
segundo, a partir do marco teórico do primeiro, é de TEUBNER, Günther (ed.). Dilemmas of Law in the
Welfare State. Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1986.
18
No sentido dado a esta dualidade (consumidor e cidadão) por HIRSCHMAN, Albert O. De consumidor
a cidadão: atividades privadas e participação na vida pública. São Paulo: Brasiliense, 1993.
19
Para falar em números, o Poder Judiciário brasileiro finalizou o ano de 2016 com 79,7 milhões de
processos em tramitação, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Cf. Justiça em números
2017. Ano-base 2016. Publicado anualmente, desde 2004, o Relatório Justiça em Números divulga a
realidade dos tribunais brasileiros, com muitos detalhamentos da estrutura e litigiosidade. Disponível em
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/09/904f097f215cf19a2838166729516b79.pdf. Acesso
em 23 Set 2017.
20
Além de ser uma elite social e cultural, também considero os membros do sistema judiciário uma elite
econômica. Os magistrados que atuam no Supremo Tribunal Federal (STF), no Conselho Nacional da
Magistratura, no Tribunal Federal de Recursos, nos Tribunais Militares, nos Tribunais Eleitorais, Tribunais
e Juízos do Trabalho, Tribunais Estaduais e Tribunais Distrito Federal e dos Territórios tem como subsídio
(Juiz em entrância inicial) fixado em R$ 27.500,17 e não pode exceder o teto constitucional dos ministros
do STF, de R$ 33.763,00. Há, contudo outras formas de pagamentos e muitos superam o teto constitucional.
A remuneração de um membro do ministério público em entrância inicial varia conforme o estado,
geralmente fixada em R$ 26.125,17. Disponível em https://www.acheconcursos.com.br/artigo/veja-os-
salarios-da-magistratura-quanto-ganha-um-juiz-promotor-e-desembargador. Acesso em 23 Set 2017. Para
o futuro, se é que se pode imaginar que alguém lerá este texto, segue a paridade com o dólar do dia em
22/09/2017, conforme o Banco Central do Brasil, no fechamento do dólar americano no dia 22/09/2017,
Sexta-feira: Compra 3,1279. Disponível em http://www4.bcb.gov.br/pec/taxas/batch/taxas.asp?id=txdolar,
acesso em 23 set 2017. O grupamento pior remunerado é a da advocacia, que pelas características típicas
de profissionais liberais, não possuem uma única forma de rendimento. Conforme estudo divulgado em

4
associada à baixa qualidade na formação dos quadros deste agrupamento. Há poucos
consensos nestes grupos sociais21 e da porteira para dentro a tensão é grande.
No caso específico da magistratura, esta é, por vezes, ator coletivo ou ator juiz
singular a depender do caso, do problema ou da percepção do público, especialmente
quanto às decisões que são ofertadas para resolver um quadro de conflitos cada vez mais
desafiadores. Porém, à medida que aumenta a exposição pública há um crescimento
exponencial dos problemas do próprio modelo de sistema, seja em decorrência do
conteúdo das decisões, seja por conta do aprofundamento do debate sobre a validade ou
sobre a coerência das manifestações judiciais, seja sobre os salários e ganhos dos
membros desta elite, seja ainda face aos desequilíbrios que acometem qualquer
organização, deflagrando um amplo processo de discussão que, não sem certa razão,
envereda em temas mais largos como as relações essenciais entre direito e justiça22.
Nessa quadra, a presença do jogo de sombras e de luz que está relacionado à
atividade jornalística, seja por qualquer meio de comunicação ou de mídia social, apenas
fortalece a exposição dos intestinos e das artérias de um universo até então mais distante
do público e do publicado. Esta realidade não tem volta. Não há mais um porto seguro de
onde se pode viver. A privacidade, último bastião do indivíduo, está desaparecendo e
muitos ainda não se deram conta que isto é uma característica de nossos tempos. Outro
nome para o inferno23!. E como tudo que não tem solução, isto não é mais um problema.
Ou seja, se correr o bicho pega e se ficar o bicho come...
Mas, a questão grave ainda não é esta realidade. É o fato de que as pressões que a
mídia e os meios de comunicação faziam e fazem no mundo da política (pressões
legítimas sem hesitação) também agora subverte a ação de todos aqueles pertencentes ao
sistema jurídico. Dito de outra forma, o que coloca em risco as liberdades, os direitos e a
própria cidadania, de forma cada vez mais violenta, é que o sistema (jurídico e o
judiciário) acabou por estar cada vez mais submetido a estas mesmas pressões. Se antes
havia um véu de autonomia e distanciamento do mundo jurídico das pressões da primeira
página, este foi rasgado pela dupla atração que um construiu para o outro em um tempo
que o espetáculo ganhou outro valor nas sociedades atuais, tanto aqui como em outros
países. As pressões (i)legítimas da suposta “opinião pública” foram admitidas como

setembro de 2017 pelo World Wealth and Income Database, instituto codirigido pelo economista Thomas
Piketty, sobre a desigualdade no Brasil, a proporção da renda (antes dos impostos e transferências) obtidas
pelos 10 % com maiores salários (que ganham acima de R$ 5 mil mensais por pessoa) está em torno de
55% de toda a renda auferida no país, bem mais do que na China, EUA e França. E a parcela da população
cuja proporção é de 1% com os maiores salários (que ganham acima de R$ 25mil por mês) está em torno
de 27%. A renda, por razões históricas, políticas e econômicas, é muito mais concentrada no Brasil do que
em quase todos os outros países desenvolvidos e em desenvolvimento do mundo. Disponível em Economia
- iG @ http://economia.ig.com.br/2017-09-09/desigualdade-renda-brasil.html. Acesso em 23 Set 2017. A
elite que ocupa os postos de comando pode ser considerada como constituída de possuidores do poder, da
riqueza e da celebridade. Estes podem ser considerados como membros do estrato superior de uma
sociedade. Podem também ser definidos em termos de critérios psicológicos e morais, como certos tipos de
indivíduos selecionados. Ver WRIGHT MILLS, Charles. A elite do poder. 4ª ed., Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editores, 1982.
21
Cf. VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palacios Cunha;
BURGOS, Marcelo Baumann. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. 3ª ed., Rio de Janeiro: REVAN,
1997. Ver pp. 7-23.
22
Idem, p. 15.
23
Como diz Byung-Chul Han, a “sociedade da transparência é um inferno do igual”. Cf. HAN, Byung-
Chul. Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 12. O filósofo germano-coreano, da
Universidade de Friburgo, na Alemanha, discute que a bandeira da transparência se tornou o lema
hegemônico do discurso público contemporâneo. Vivemos, segundo este autor, em uma era em que a
transparência deixou de ser um simples valor para se transformar em uma verdadeira obsessão. E sempre
que a informação se torna fácil de obter, o sistema social muda da confiança para o controle.

5
fatores decisórios em muitos casos, sem que estes façam parte originariamente dos
mecanismos tradicionais e técnicos do mundo do direito. Ainda no campo político (ou
dos poderes executivo e legislativo), a importância desta opinião decorria da realidade
democrática das eleições e da necessidade do voto dos atores “políticos”. Pela mudança
do quadro do sistema jurídico, não foi apenas a imprensa que o escolheu, mas este também
decidiu abraçar e acolher esta nova realidade. Assim, mesmo que não precise da
legitimidade resultante dos votos de eleições majoritárias periódicas, o sistema judiciário
acabou por fazer parte do balcão de aceitação e validação do mercado público chamado
de opinião, comunicação, visibilidade, reconhecimento, mídias (tradicionais ou sociais) e
cultura.
Como o plantio é opcional, mas a colheita é obrigatória, o único caminho é separar
o joio do trigo. E ver publicado o joio!
5 – Punir é bom nos tempos atuais (?)
Entre as questões tradicionais do mundo jurídico, o crime e criminalidade são
realidades que batem em nossa porta de diversas formas, especialmente na forma de
notícias. Geralmente são tragédias e nas tragédias todos têm razão. Ao mesmo tempo,
eles são o resultado de uma construção social24. Nos tempos atuais, mais que o crime em
si, é o discurso sobre a crise do crime que impulsiona a preocupação, o medo25 e a
indignação como motor do sistema jurídico-penal e transforma o “perigo” em algo
onipresente26.
Se não o todo, grande parte desta construção social tem como base o mundo da
comunicação, seja pelas formas tradicionais, seja ainda com base nas mídias sociais. Não
se pode deixar de pensar na terrível paisagem da violência e da criminalidade sem
considerar o papel das mídias. No contexto específico da modificação do conceito de
fronteiras e da redução tecnológica das distâncias, a globalização27 apresenta uma
hipermediatização e, por conseguinte, um alto grau de conhecimento dos crimes que são
“publicizados”, mesmo quando são transmitidos a partir de vídeos e fotos em que a
população gera o conteúdo, as imagens e a sonoplastia do horror diante da violência. Esse
quadro permite que as representações midiáticas sejam um dos indicadores na natureza,
da extensão e da eficácia da justiça criminal, além de qualificar a resposta que os órgãos
de controle e repressão podem/devem fazer para atuar neste cenário, num movimento de
pendular do imaginário social que alimenta e retroalimenta esta máquina de fazer notícias
que não para nunca.
O que me parece distinto, todavia, é que uma parte ganhou papel distinto: o
sistema judiciário. Estamos vivendo outros tempos e a justiça é pop.
A relação entre mídias e sistema penal ocorre a partir de várias lógicas. De um
lado, as mídias necessitam da credibilidade, e, por isso, “vendem” o profissionalismo sob

24
A percepção da realidade como construção social (cf. BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A
construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 2002), também se estende à criminalidade como uma
construção social, típica do paradigma da reação social, nascido na década de 1960 por influência de duas
correntes da sociologia norteamericana: o interacionismo simbólico e a etnometodologia (cf. BARATTA,
Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3ª ed., Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002).
25
Ver ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à
violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. ______. Minimalismos e
abolicionismos: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Sequência, Florianópolis, ano
XXVI, v. 52, p. 163-182, 2006.
26
Cf. CABRAL, Juliana. Os tipos de perigo e a pós-modernidade: Uma contextualização histórica da
proliferação dos tipos de perigo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
27
Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 2ª ed., São Paulo: Cortez,
2002, p. 26: “(...)fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais,
religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo ”, embora se perceba uma tendência a reduzir o debate
acerca da globalização às dimensões econômicas,

6
a forma de “imparcialidade”, por meio de estratégias diversas: a escolha do “que é
notícia”; a opção pelos caminhos oficiais; o uso das fontes “protegidas” que confirmam
a hipótese do jornalista; a transformação do “furo” no objetivo do dia. Tal pressão acaba
por impor às notícias sobre crimes a primazia dos maiores índices de noticiabilidade. Para
tanto, numa relação simbiótica, policiais, procuradores e promotores de justiça, juízes e
advogados costumam ter espaço cativo nessas notícias, legitimando seus próprios atos. É
o cenário ideal para o boquirroto, para o profissional desesperado pelas luzes, viciado na
adrenalina do embate público, dependente da carência que vem acompanhada de um
excesso de autoestima na forma do escudo denominado celebridade. Doutro, a
concorrência, a velocidade e o pré-julgamento impõem um sensacionalismo na
abordagem e a espetacularização da realidade, como forma de se incrementar a audiência.
Mas, quase sempre acarreta uma visão deturpada sobre a criminalidade, gerando tensão,
medo e apenas mais insegurança.
A razão primordial humana das notícias é a natureza humana. Mas são as forças
econômicas que organizam a sua produção. Há, porém, fatores culturais, políticos e
sociais que acabam por impulsionar este processo permanente de produção de notícias28.
O que importa destacar é que tanto o produto como os produtores, tanto jornalistas como
fontes, tanto público como meios, enfim muito mais que o que vemos superficialmente,
estão envolvidos num trabalho de legitimação da realidade quando, em verdade, é apenas
uma de suas representações, especialmente quando está presente a tensão entre crime e
justiça. Dessa forma, o noticiário contribui para a formação de uma “cobertura
simbólica”, baseado numa cosmovisão única e predominante, que fortalece um paradigma
de sociedade29, como se isto fosse algo dado e consensual, natural como o nascer o dia e
o morrer do sol.
Em tempos assim, há três situações que considero interligadas, mas que se
revelam, cada uma, de forma distinta: a preocupação, o medo e a indignação.
Preocupação e medo do delito são dois conceitos que tento distinguir30. A
preocupação com o delito ou com a delinquência diz respeito a avaliação dos cidadãos
sobre a seriedade do problema da delinquência31. Este juízo, que muitas vezes é cognitivo,
outras nem tanto, se sustenta sem muita base em dados estatísticos objetivos (apesar dos
esforços das autoridades e dos diversos atores) além desta questão resvalar na tradicional
crítica da criminologia acerca das cifras32.
A preocupação com o delito repercute de modo direto nas atividades punitivas e
políticas (no Brasil temos até uma bancada da “bala”), com maiores exigências de
amplitude e intensidade da intervenção penal. As variáveis demográficas que parecem
mais influenciar as atitudes punitivas, conforme um dos clássicos dos estudos
criminais/criminológicos, é a idade, a formação, e, sobretudo, a tendência política33.

28
Cf. GREER, Chris. News Media Criminology, In: MCLAUGHLIN, Eugene; NEWBURN, Tim (eds.).
The Sage Handbook of Criminological Theory, London: Sage, 2010, pp. 490-513.
29
ERICSON, Richard; BARANEK, Patricia; CHAN, Janet. Representing Order: Crime, Law and Justice
in the News Media. Milton Keynes: Open University Press, 1991.
30
DÍEZ RIPOLLÉS, José Luís. La racionalidad de las leyes penales: Práctica y teoría. Madrid: Trotta,
2003.
31
DITTON, Jason; FARRALL, Stephen. (eds.). The Fear of Crime. Aldershot: Ashgate-Dartmouth, 2000.
32
A criminologia crítica sustenta que a igualdade penal preconizada pela escola positivista é meramente
uma fachada. Aponta, nessa quadra de inflação do direito penal, a existência de verdadeiras “cifras negras”,
a saber, diversas condutas criminosas que não são sequer alvo do conhecimento dos órgãos de segurança
pública ou, quando o são, não alcançam a devida resposta através dos órgãos de persecução penal. A tese
vai ao encontro da ideia de que a maioria da sociedade, até mesmo diante de tantos tipos penais, tende a
cometer delitos, mas somente uma pequena quantidade deles são adequadamente enfrentados. Ver:
SANTOS, Juarez Cirino. A Criminologia radical. Curitiba: IPCP/Lumen Juris, 2006.
33
KILLIAS, Martin. Précis de criminologie. Berna: Stæmpfli & Cie, 1991.

7
O medo do delito é mais profundo no campo sentimental – o que faria enrubescer
Jung, e que defino como a percepção que tem cada cidadão com suas próprias
possibilidades de ser vítima de um delito34, ainda que também se possa entender como a
simples apreensão de sofrer um delito, se atentamos tão somente ao aspecto emocional e
não aos juízos racionais deste cidadão35. Aqui a carga emotiva prevalece, pois, conforme
numerosos estudos empíricos em diversos países, o medo do delito e de ser vítima não
advém de possibilidades reais, ou seja, não decorre de causas objetivas e externas36. As
principais variáveis relacionadas ao medo do delito são: circunstâncias pessoais de
vulnerabilidade (gênero e idade), fatores ambientais (locais de residência) e
socioeconômicos (nível de estudo e de renda), a própria vitimização prévia e a de pessoas
próximas ou conhecidas. Todavia, estes fatores tem uma influência ambivalente sobre o
medo do delito: tanto há estudos que apontam que a baixa renda e a pouca formação
levam ao aumento do medo do delito, como há outros que são os habitantes das áreas
residenciais com menores índices de delinquência, normalmente com estudos superiores,
são os mais amedrontados37. Em recente pesquisa de opinião divulgada pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública aborda-se o quanto a população adulta brasileira sente
ou não a proximidade do crime organizado em sua vizinhança. Realizado pelo Instituto
Datafolha, o levantamento mostrou que 23% dos entrevistados consideram essa sensação
alta e 26%, média. Foram entrevistadas 2.087 pessoas de 16 anos de idade ou mais. 49%
da população pesquisada38. É muito. E é medo!
A principal consequência da preocupação com o delito é a de estabelecer um
horizonte de avaliação permanente das pessoas em cada sociedade. Até aqui creio que é
um importante indicador social e de proposição de políticas públicas de segurança e
defesa social. Mais ainda, importa destacar que faz parte do horizonte clássico dos direitos
humanos e da cidadania a garantia da liberdade das pessoas. Parece ingênuo. Mas não se
pode discutir a questão dos direitos humanos apenas num sentido tradicional de crítica ao
Estado e às classes dominantes opressoras. Este modelo crítico acaba por diminuir a
importância, para todas as classes, pessoas e grupos sociais, das condições mínimas de
liberdade, dentre elas o direito de ir e vir e não ser atingido por uma bala perdida e achada
exatamente na cabeça do transeunte.
Já o medo e sua disseminação transforma a sociedade em “fabricante” de seus
inimigos, na medida em que elege algumas classes como sendo perigosas, e trata alguns
de seus membros como inimigos em potencial, problema que agrava ainda mais a
segregação social39. Gera o punitivismo, o populismo penal e mais medo40.

34
FURSTENBERG, Frank F., Public Reaction to Crime in the Streets, In: DITTON, Jason; FARRALL,
ob. cit., 2000, p. 3 e ss.
35
Sobre os problemas conceituais e de medição do medo ao delito, ver FATTAH, Ezaat. Research on Fear
of Crime: Some Common Conceptual and Measurement Problems, In: BILSKY, Wolfgang; PFEIFFER;
C.; WETZELS, P. (eds.). Fear of Crime and Criminal Victimization. Stuttgart: Enke, 1993, p. 45 e ss.
36
RUIDÍAZ GARCÍA, Carmen. Los españoles y la inseguridad ciudadana. Centro de investigaciones
sociológicas, Opiniones y actitudes, nº 12, 1997, p. 18.
37
FUSTENBERG, ob. cit., p. 4.
38
Realizada por Renato Sérgio de Lima, teve abrangência nacional, incluindo Regiões Metropolitanas e
cidades do interior de diferentes portes, em todas as regiões do Brasil. As entrevistas foram realizadas em
março de 2017 em 130 municípios de pequeno, médio e grande porte. Disponível em
http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/percepcao-de-presenca-do-crime-organizadofaccoes-na-
vizinhancabairro-doa-entrevistadoa. Acesso em 25 de setembro de 2017.
39
ZAFFARONI, Eugenio Raul; OLIVEIRA, Edmundo. Criminologia e Política Criminal. Rio de Janeiro:
GZ Editora, 2010, p. 190/191. Num debate bem amplo, ver ainda ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo
no direito penal. 2ª. ed., Rio de Janeiro: Revan, 2007.
40
PRATT, John. Penal Populism, Londres: Routledge, 2007.

8
A indignação, desde tímidos murmúrios até violentos protestos, implica
articulação de opiniões críticas pessoais e coletivas em vez de uma atitude silenciosa de
retirada diante da crise. Faz parte de um mecanismo mais direto e objetivo, e em alguns
momentos é parte da ação política por excelência41. A questão é que a nossa conjuntura é
mais de ressaca nacional que de indignação ativa e transformadora. Mas pode mudar a
qualquer momento.
Diante deste quadro, no tempo e nas condições que temos no Brasil, quero destacar
dois aspectos da realidade que estão na esfera do que não sai do noticiário permanente de
preocupação, do medo e da indignação no cenário brasileiro: o tráfico de drogas e a
corrupção.
6 – Uma conclusão
Algumas interrogações éticas brotam de nossa situação histórica própria. Claro
que não se pode defender uma visão única. As sociedades contemporâneas, marcadas pela
existência de um pluralismo de cosmovisões e a ausência de explicações 42, dependem
decisivamente da experiência da globalização e da articulação do sistema econômico
mundial em um mercado único e excludente, contextualizada em cada lugar e a cada
tempo. Nessa quadra, há uma mudança na apresentação social da questão da
criminalidade. Como se refere Díez Ripollés:

los medios realizan diversas actividades para lograr el reconocimiento y la


delimitación sociales del problema. Ante todo, trazan los contornos de éste, lo que
llevan a efecto tanto reiterando informaciones sobre hechos similares […], como
agrupando hechos hasta entonces no claramente conectados, incluso realizando
conceptuaciones nuevas de hechos criminales ya conocidos; todo ello puede
originar, incidental o intencionalmente, una percepción social de que existe una
determinada ola de criminalidad, lo que refuerza la relevancia del problema. En
segundo lugar, destacan los efectos prejudiciales de la situación existente,
dañosidad que pueden referir a ámbitos sociales muy distintos y desenvolver
simultánea o alternativamente en planos materiales, expresivos o integradores.
Finalmente, plantean genéricamente la necesidad de ciertas decisiones
legislativas penales.43

Os meios de comunicação de massa, assim, são utilizados como mecanismos para


fomentar crenças, culturas e valores, de forma a sustentar os interesses – invariavelmente
mercadológicos – que representam. A criminalidade e sua persecução transformam-se em
mercadorias da indústria cultural, razão pela qual a imagem pública dessa mercadoria é

41
Adoto a ideia de indignação a partir de HIRSCHMAN, Albert O. Saída, Voz e Lealdade - Reações ao
declínio de firmas, organizações e estados. São Paulo: Ed. Perspectiva. 1973.
42
Ver OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética, Direito e Democracia. São Paulo: Ed. Paulus, 2010. Para
ele, na esteira de Habermas, a questão mais grave do tempo atual das sociedades é a “perda de legitimação
de uma fundamentação ontológica, radicada numa concepção objetiva da razão, das normas morais e sua
consequência maior é a falta de um consenso substantivo sobre valores, isto é, sobre a melhor forma de
vida, em nível da sociedade comum todo”. Daí que, eliminada a razão objetiva, “dependemos de uma
fundamentação pós-metafísica da moral”, cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. O Debate acerca da
fundamentação de uma teoria da justiça: Rawls e Habermas. In: FELIPE, S.T. (Org). Justiça como
equidade. Fundamentação e interlocuções polêmicas (Kant, Rawls, Habermas). Florianópolis: Insular,
1998.
43
DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. La racionalidad de las leyes penales: práctica y teoria. Madrid: Editorial
Trotta, 2003, p. 28.

9
traçada de forma espetacular e onipresente, superando, não raro, a fronteira do que é
passível de constatação empírica44.
Esses exemplos servem para demonstrar o surgimento de um discurso midiático
acerca da criminalidade que se move por si próprio – tendo por fio condutor os índices de
audiência – e que, em decorrência da sua superficialidade ao tratar do problema na
sociedade contemporânea, é designado por Zaffaroni como cool, dado que “não é
assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à qual é preciso
aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e para não perder
espaço publicitário.”45
A formação da opinião pública pelos mass media deságua na pressão popular
sobre os poderes públicos para que as reformas penais necessárias para fazer frente à
“cada vez mais aterradora criminalidade” sejam efetivamente levadas a cabo. Com isso,
os poderes públicos, “conocedores de los significativos efectos socializadores y, sobre
todo, sociopolíticos que la admisión de tales demandas conlleva, no sólo se muestran
proclives a atenderlas sino que con frecuencia las fomentan.”46 O Estado, assim, ao invés
de introduzir elementos de racionalidade nas demandas por mais segurança, as alimenta
em termos populistas, dado que a legitimidade do poder público exige que a promessa da
seguridade cresça com os riscos e seja ratificada ante à opinião pública.
Nesse contexto, “os políticos – presos na essência competitiva de sua atividade –
deixam de buscar o melhor para preocupar-se apenas com o que pode ser transmitido de
melhor e aumentar sua clientela eleitoral.”47. Isso porque o político que pretender
confrontar o discurso majoritário acerca da criminalidade é logo desqualificado e
marginalizado dentro de seu próprio partido, razão pela qual acaba por assumi-lo, seja
por cálculo eleitoreiro, seja por oportunismo ou até mesmo por medo. Diante da
imposição do discurso midiático, os políticos “devem optar entre aderir à publicidade da
repressão e ficar na moda (tornar-se cool) ou ser afastados pelos competidores internos
de seus próprios partidos, que aproveitariam o flanco débil de quem se
mostra antiquado e impopular, ou seja, não cool”48.
Que tempos! Que costumes!

44
ALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervencíon de la política populista. In. La
insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Instituto de Ciencias Criminales de Frankfurt. Área de
Derecho Penal de la Universidad Pompeu Fabra, 2000, p. 471-487.
45
ZAFFARONI, 2007, ob. Cit., p. 69.
46
DÍEZ RIPOLLÉS, ob. Cit., 2003, p. 66.
47
ZAFFARONI, 2007, ob. Cit., p. 77.
48
Idem. p. 78.

10

Você também pode gostar