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A mentira é tão velha quanto a política, mas ganhou novos meios

A mentira na política é antiga, só ganhou novos meios de propagação. Impacto ainda é difícil de medir, mas uma
coisa é certa: Justiça, redes sociais e imprensa ainda não sabem bem como lidar com fenômeno dessa proporção.

Symbolbild: Whatsapp (Getty Images/AFP/M. Vatsyayana)

Mentir na política não é algo novo. Pelo contrário: para muitos filósofos a política é o principal espaço para a
propagação de inverdades. Assim eleições já foram definidas, e guerras foram iniciadas ou justificadas, em governos
democráticos ou em ditaduras. Só que agora a mentira ganhou novos meios – e com a velocidade que ela chega, ela
se espalha.

Nas eleições deste ano, os brasileiros estão vivendo isso na prática, e a Justiça Eleitoral admite não saber o que fazer
com as chamadas fake news. Enquanto órgãos que deveriam controlar apenas acompanham, quase passivamente, a
enxurrada de informações duvidosas, as empresas que servem de meio para essas mensagens enxugam gelo ou dão
respostas insuficientes.

O professor de ética e política Milton Meira do Nascimento, do Departamento de Filosofia da USP, explica que a
mentira está presente na política desde a Grécia antiga, mas a forma como o espaço político lida com esse discurso
mudou com o tempo, e ele perdeu os meios para contradizer uma informação falsa.

"O mundo da política é o lugar do debate e da persuasão, desde a Grécia Antiga. Existia a mentira, mas também um
espaço para a argumentação, onde essa mentira era combatida. Quando a democracia moderna, já na formação do
Parlamento inglês no século 19, passa a ser construída pela representação política, em vez de se discutir propostas, a
política ficou centrada nas pessoas. Assim se perdeu o espaço de debate", diz o professor.

Nascimento lembra ainda que é justamente a falta de um espaço de debate que contribui para problemas atuais,
como as notícias falsas difundidas em redes sociais.

"Na filosofia, o ideal socrático assume o compromisso de ir atrás da verdade, de investigar a verdade debatendo e
conversando de forma saudável. Sócrates afirma que a busca pela verdade é um processo, mas para isso é preciso
um espaço de debate, algo que não ocorre nas redes sociais. No Whatsapp, as pessoas querem apenas uma
mensagem rápida, o fluxo só tem um sentido", afirma Nascimento.

Na história recente há diversos escândalos de mentiras orquestradas por governos. Um dos mais emblemáticos do
século 20 foi o de informações sobre a Guerra do Vietnã omitidas pelo governo dos EUA. Em 1971, o jornal The New
York Times publicou matérias sobre a real participação americana na guerra. A série de reportagens ficou conhecida
como Papéis do Pentágono.

Meses depois, a filósofa alemã Hannah Arendt escreveu o artigo Mentira na política: reflexões sobre os Papéis do
Pentágono para tratar sobre o tema. "A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, e mentiras sempre
foram encaradas como instrumentos justificáveis nesses assuntos", escreve Arendt.

O caso americano também é citado por André de Macedo Duarte, diretor da agência internacional da UFPR e
professor de filosofia da mesma instituição. Ele lembra que ditaduras e democracias abrigaram mentiras.
"O nazismo alemão, o fascismo italiano e o stalinismo soviético utilizaram meios de comunicação para reescrever a
história ou para difundir um clima de terror e ódio. Isso também ocorreu nas democracias, quando se descobriu que
havia um conjunto de mentiras e histórias distorcidas sobre o Vietnã", comenta.

Voltando a Arendt, ela menciona no artigo sobre os Papéis do Pentágono a forma como não apenas quem recebe a
mentira acredita na informação, mas também quem a produz. Isso faz parte do campo da imaginação, explica a
filósofa alemã. Ainda no século 4, o filósofo do cristianismo Santo Agostinho já tratava sobre a crença na mentira.

"Dizer uma coisa falsa não é mentira se alguém a crê verdadeira ou se tem opinião formada de que é verdadeiro
aquilo que diz", escreveu Santo Agostinho na obra Sobre a mentira: De Mendácio.

Duarte reforça essa questão da crença de quem replica uma informação falsa ao tratar sobre os tempos atuais.

"A produção da mentira exige certa plausibilidade. Não adianta dizer simplesmente que hoje marcianos vão invadir o
Brasil porque não cola. É preciso levar em consideração a realidade social e o contexto político para mentir. Por
exemplo, o antissemitismo não foi inventado pelo nazismo, ele já estava na Europa. Tinha apenas uma característica
diferente na Alemanha, mas existia também em outros países. O antipetismo também não foi criado nesta eleição, já
havia um passado de insatisfação com o partido que governou o país nos últimos anos devido aos escândalos da Lava
Jato e a economia ruim", explica o professor da UFPR.

Produção em massa

Um levantamento feito pela agência Lupa de checagem, a primeira criada no Brasil para a verificação, mostrou que
no primeiro turno apenas dez dos quase 50 boatos checados como "falsos" foram compartilhados 865 mil vezes no
Facebook. Nos dias 6 e 7 de outubro (dia da votação), a agência de checagem Aos Fatos desmentiu 12 notícias que
acumulavam juntas mais de 1,17 milhão de compartilhamentos.

Um levantamento realizado por duas universidades brasileiras, em parceria com uma agência de checagem, em 347
grupos de Whatsapp, encontrou entre as imagens mais compartilhadas apenas 8% podendo ser classificadas como
verdadeiras. O estudo dos professores Pablo Ortellado (USP), Fabrício Benvenuto (UFMG) e da agência Lupa analisou
conteúdos enviados entre 16 de setembro e 7 de outubro. A amostra considerou 347 grupos monitorados pelo
projeto "Eleições sem Fake", conduzido pela UFMG.

Com uma avalanche de informações falsas, corrigir todas as mentiras que circulam nas redes sociais é praticamente
impossível. Duarte ressalta que apenas com controle adequado do Estado ou das próprias empresas donas das
plataformas isso pode mudar.

"O projeto é de produção em massa de mentira quando o eleitor não tem como se defender. Existem dimensões em
que a mentira é empregada de maneira tão ostensiva que não há mais como o eleitor checar, é sufocante", diz
Duarte.

São milhares de memes, fotos, textos e vídeos falsos que circulam diariamente em grupos privados de Whatsapp ou
em páginas abertas no Facebook e no Twitter. O Brasil tem poucas agências de checagem para conter essa
avalanche. Para Cristina Tardáguila, que é diretora da agência Lupa, é preciso mais participação de órgãos oficiais.

"A mentira atual chega de uma forma muita rápida e se espalha da mesma maneira, são milhares de informações
falsas criadas todos os dias. Se somarmos todos os jornalistas que trabalham somente com checagem no Brasil acho
que não chegam a 50, então claramente não vamos dar conta. Acho que é perceptível que tanto o TSE quanto as
empresas não estão fazendo o seu melhor nesse trabalho de impedir a proliferação de notícias falsas", afirma
Tardáguila.

Tardáguila, juntamente com o repórter Chico Otávio, escreveu o livro Você foi enganado: Mentiras, exageros e
contradições dos últimos presidentes do Brasil, publicado este ano, onde eles apresentam casos emblemáticos de
mentiras com presidentes que marcaram a história do Brasil de 1920 até os tempos atuais. Para Tardáguila, a
pesquisa para a obra mostrou que o impacto da mentira é individualizado.

"A mãe que perdeu um filho na ditadura militar sente mais as mentiras do período do que uma pessoa que não teve
um parente assassinado. De forma diferente também sente a pessoa que perdeu todo dinheiro com as mentiras do
Collor sobre a economia, e que depois confiscou a poupança dos brasileiros", diz a jornalista.

Em 1937, o governo do presidente Getúlio Vargas divulgou um documento falso que relatava um suposto plano para
a tomada de poder por comunistas, o chamado Plano Cohen. A mentira serviu de desculpa para a ditadura do Estado
Novo. No período ditatorial, o governo controlou órgãos de imprensa e negou constantemente a prática de tortura.

Nas primeiras eleições diretas após a ditadura, em 1989, chegou-se a usar o sequestro do empresário Abílio Diniz
para ligar os criminosos ao PT. O mesmo PT, já no governo, anos depois não relutava em colocar, nos opositores nas
eleições, a pecha de que iriam acabar com os programas sociais.

Em 2014, a candidata Marina Silva (então no PSB) sofreu diversas críticas da presidente-candidata Dilma Rousseff.
Nas campanhas petistas, Marina iria enfraquecer o Banco Central e, também, acabar com o Bolsa Família.
Curiosamente, é um candidato petista, Fernando Haddad, o principal alvo de notícias falsas nestas eleições de 2018.

"O Brasil tem diversos exemplos de práticas mentirosas, mas acho que temos que separar o que é o jogo político,
que é duro, do que é mentira. O caso da Marina Silva em 2014 é um exemplo desse jogo político. Ela teve a chance
de se defender e rebater as acusações. O que temos hoje são diversas pequenas mentiras onde a defesa de todas as
afirmações é improvável", diz Duarte.

Perdidos no Whatsapp

Em dezembro do ano passado, o TSE chegou a montar um conselho contra fake news para as eleições 2018. No
entanto, meses depois, poucas reuniões foram feitas com os representantes do conselho, que conta com integrantes
de órgãos públicos e da sociedade civil. De concreto, pouco ou nada foi feito para impedir o que foi revelado pela
imprensa nas últimas semanas, em especial a denúncia de que partidos e candidatos usaram esquemas ilegais de
envio de mensagens pelo Whatsapp. A prática é proibida pela Justiça Eleitoral.

Durante uma entrevista organizada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no domingo (21/10), a presidente do
tribunal, ministra Rosa Weber, minimizou o impacto das notícias falsas no processo eleitoral, mas admitiu também a
falta de solução para o problema. "Nós entendemos que não houve falha alguma da Justiça eleitoral no que tange a
fake news. Se tiverem a solução para que se evitem ou se coíbam fake news, nos apresentem. Nós ainda não
descobrimos o milagre", disse a ministra à imprensa.

No dia seguinte, o TSE organizou uma reunião entre agências de checagem e representantes das plataformas de
redes sociais. Numa ironia involuntária, a porta-voz do Whatsapp mencionou na reunião uma suposta parceria entre
a rede social e agências de checagem do Brasil. A agência de checagem Aos Fatos negou que haja qualquer tipo de
parceria.
"Em sua fala, a representante da plataforma, Keyla Maggessy, enumerou por videoconferência uma série de
iniciativas de checagem com as quais mantém parceria. Afirmou, entretanto, que, entre os parceiros do Whatsapp
para combater informações falsas no aplicativo está Aos Fatos. A declaração não é correta", informa a nota da
agência Aos Fatos.

Ainda é difícil calcular o impacto da mentira nesta eleição. O instituto de pesquisa Ibope questionou entrevistados
sobre o quanto mensagens de Whatsapp os afetam na decisão pelo voto, e 75% das pessoas ouvidas responderam
que não há influência. Porém, Duarte lembra que o comportamento das pessoas com os seus celulares indica uma
interferência sem precedentes no dia a dia.

"O celular é uma prótese adaptada ao corpo humano. A primeira coisa que a pessoa faz ao acordar e a última antes
de ir dormir é olhar o celular. Não é o rádio ou a TV que você tem um momento para ligar e ser informado. No celular
isso ocorre a todo instante", diz Duarte

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