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C O N TAT O ( H T T P S : / / R E V I S TA C U L T . U O L . C O M . B R / H O M E / C O N TAT O / )
S O B R E ( H T T P S : / / R E V I S TA C U L T . U O L . C O M . B R / H O M E / S O B R E / )
Pós-verdade e política
Charles Feitosa
19 de julho de 2017
Onde não há fatos, nada é verdade – O que Trump tem a ver com Nietzsche, Foucault
ou Derrida? A resposta para o título desse texto é simples e cristalina como água que
jorra da fonte: nada, mas nada mesmo. Mesmo assim ocorre no noticiário político e na
internet volta e meia a associação, completamente indevida por sinal, entre as
estratégias midiáticas de desinformação de Trump e os esforços de desconstrução das
grandes narrativas da verdade pelos filósofos ditos “pós-modernos”.
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Onde não há fatos, não existe verdade única – Por que chamar essas formas
midiáticas de manipulação de textos ou imagens como pós-verdade? A escolha do
termo não é neutra, trata-se de uma interpretação que é ao mesmo tempo uma
acusação. Tudo se passa como se a “pós-verdade” fosse a verdade típica dos tempos
“pós-modernos”.
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Contra a lógica da razão e do mercado seria preciso inventar outras lógicas, norteadas
pelo reconhecimento do dissenso (a irredutível diversidade dos jogos de linguagem
nas culturas) e por uma revalorização da dimensão estética. Em um tempo em que não
é possível mais um discurso único e definitivo sobre o que é bom, justo ou verdadeiro,
Lyotard propõe a emergência do pensamento pós-moderno, cuja característica
fundamental é a afirmação das diferenças e do pluralismo.
Dentro desse contexto seria muito mais pertinente reconquistar o sentido mais
original e positivo do termo “pós-verdade”, enquanto um esforço anti-dogmático de
promover a pluralização e diversificação dos saberes. Então aqui cabem as seguintes
perguntas: Isso a que se hoje se nomeia “pós-verdade”, não seria apenas uma nova
fachada para um fenômeno bem antigo, a saber, a mentira na política? Não foi sempre
assim, na história dos gestores políticos, manipular informações para se manter no
poder? Ou será que há alguma diferença fundamental entre as mentiras tradicionais
dos homens de estado e a onda contemporânea de desvalorização da verdade?
De fato, já desde Platão sabemos que a mentira não é apenas um incidente ocasional
na vida política, mas é ela mesma um dos recursos disponíveis aos governantes na
difícil e inglória tarefa da administração das cidades. Na descrição da sua utopia, a
despeito do compromisso de cada cidadão de sempre buscar e defender a verdade,
Platão argumentava que seus dirigentes, somente eles, teriam a permissão de mentir,
pois a mentira, se usada adequadamente, pode contribuir para a realização do bem-
estar comum.
Onde não há fatos, tudo é verdade – Desde então a ideia da mentira na política como
um remédio amargo, mas necessário, se consolidou no nosso imaginário. Há
exatamente 50 anos atrás, em 25 de fevereiro de 1967 na The New Yorker, a genial
filósofa judia de origem alemã Hannah Arendt publicou um texto paradigmático sobre
o tema, intitulado Verdade e Política (em relação ao qual o título do meu presente texto
faz referência e reverência).
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O que mais me interessa no texto de Arendt é sua tese de que, mesmo reconhecendo
uma tensão estrutural entre verdade e política, existe uma mudança no modo clássico
e contemporâneo do uso da mentira na disputa pelo poder. A mentira clássica era
dirigida estrategicamente para este ou aquele grupo de inimigos e por isso poderia ser
facilmente detectada pelos historiadores como uma espécie de buraco ou de falha na
rede dos acontecimentos.
Onde não há fatos, há verdades em demasia – Talvez não possamos mais chamar de
mentira essa versão sistêmica e explícita, onde todos estão sendo enganados ao
mesmo tempo. Mas ao meu ver, “pós-verdade” também não é o nome mais adequado.
Talvez o mais correto seria falar de hiper ou ultra-verdade, pois vivemos em uma
época em que todos se sentem no direito de dizer qualquer coisa, seja nos discursos
políticos ou nas redes sociais, embasados em dados fictícios ou não, mas garantidos
pela crença tácita de que “tudo vale” e pela recepção acrítica da maioria dos tele-
expectadores e internautas.
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Quando há verdades em demasia o perigo não é mais apenas, como diz Arendt, a
descrença generalizada na realidade, mas a sua contrapartida, a revalorização reativa,
nostálgica e muitas vezes enceguecida dos fatos, como se eles existissem em algum
lugar objetiva e efetivamente e pudessem funcionar como uma pedra de toque nas
nossas falas.
Um sintoma dessa súbita revalorização dos fatos em si é a prática cada vez mais
difundida de facts checking dos discursos políticos na internet. Embora seja muito
saudável desvelar as falsas estatísticas citadas pelo MBL ou por Trump, é sempre bom
lembrar aquela frase do Nietzsche citada do início desse texto, para não cair na
armadilha inversa de achar que alguém tem o poder definitivo e inquestionável de
dizer o que são os fatos.
Charles Feitosa é Doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador do Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO
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