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Todos, todos, todos?

Hábil líder político e bom comunicador, Francisco teve nesta ação de propaganda a inestimável ajuda
dos media nacionais, quer na interminável cobertura quer na abordagem totalmente acrítica - num misto
de ignorância, histeria e reverência - de tudo o que disse.

É bonito e é comovente, sem dúvida, uma imensa multidão a repetir, ao mote de um líder político-religioso,
"todos, todos, todos", num manifesto de igualdade e inclusão. Não ouvi, só li as descrições, mas duvido muito
que, pela TV ou presencialmente, essa promessa a tantas vozes não me levasse às lágrimas - afinal, vai
direita àquilo que em qualquer ativista dos direitos humanos, ateu ou não, constitui o fulcro do sagrado:
os outros, todos os outros, irmãos (Fratelli Tutti, como no título da terceira encíclica deste papa).

Acresce que, com o seu olhar compassivo e o seu discurso bem-humorado, contemporâneo, e as suas saídas
mais ou menos revolucionárias, a puxar à sul-americana teologia da libertação - defesa da libertação dos
oprimidos, "opção preferencial pelos pobres" -, Francisco entra fácil no coração. Como entra fácil no coração a
ideia de um líder religioso que, contra toda uma história de crueldade e exclusão, quisesse revolucionar a sua
igreja, transformando-a à imagem do mais fundamental e belo dos mandamentos, o amor.

Percebo assim que se queira gostar de tudo o que diz, que tanta gente de esquerda se encante com ele e,
também e talvez sobretudo, o queira usar como bandeira. Que se queiram ignorar as fífias, as contradições, os
passos em falso, a demagogia, a manipulação, a conversa mole, os pronunciamentos graves. As traições.

Percebo que seja assim para muitos (sobretudo porque, por falta de informação, não veem as contradições), e
até para a generalidade dos ditos "comentadores" - afinal, a maioria não quer fazer-se antipática, e quem
critica o papa, ainda para mais no meio de uma operação de marketing religioso apresentada como desígnio
nacional, atrai inevitavelmente apodos como "odiento", "mata-frades", "radical" (quando não é muito pior).
Portanto é normal, dizia (no sentido em que uma certa sonsice é normal) - exceto nos jornalistas. De
jornalistas espera-se que não façam papel de propagandistas ou catequistas. Que contextualizem, que
contraponham, que verifiquem. Que, sobretudo, façam perguntas.

Não é por acaso que, no voo de regresso a Roma, Francisco congratulou a jornalista alemã Emma Hirschbeck
pela "coragem" de lhe fazer a pergunta óbvia: "Como explica a incoerência entre uma igreja aberta a todos,
todos, todos, e uma igreja que não é igual para todos - onde nem todos têm os mesmos direitos,
oportunidades, no sentido de que, por exemplo, mulheres e homossexuais não podem receber todos os
sacramentos?"

Hirschbeck referia-se, claro, àquilo que o teólogo alemão Hans Kung apelidou de "difamação fundamental das
mulheres", o papel humilhante e insultuoso ainda hoje a elas alocado na igreja da qual Francisco é monarca
absoluto - desde logo por lhes estar vedado o sacerdócio (com a desculpa, formulada por João Paulo II, de que
Jesus foi homem e portanto os seus representantes não podem ser mulheres). A jornalista aludia também ao
Catecismo que, a parágrafos 2357 e 2359, classifica a homossexualidade como "depravação grave", só
remediável pela "castidade", assim como à determinação vaticana de 2021, expressamente aprovada por
Francisco, de que os casais de pessoas do mesmo sexo não podem ser alvo de bênção por padres
católicos (uma determinação à qual bispos de vários países têm desobedecido) porque, e cito, a Igreja
"não pode abençoar o pecado".

Pergunta evidente, a de Hirschbeck, como evidente deveria ter sido, nos media portugueses, a
contextualização com informação básica sobre os ditames católicos (que a maioria das pessoas, católicos
auto-identificados incluídos, desconhece), e a análise daquela proclamação de Francisco à luz da realidade
da sua organização e daquilo que tem sido o seu discurso.

Um discurso que parece ter evoluído desde a sua entronização, em 2013, quando disse que a questão da
ordenação das mulheres estava "encerrada", e desde 2010, quando, como bispo de Buenos Aires, se opôs à
aprovação da lei que permitiu o casamento de pessoas do mesmo sexo, apelidando-a de "maquinação
do diabo", e "destruição do plano de Deus". Uma evolução aparente que porém se contradiz quer nos
ditames vaticanos de que é fonte de autoridade suprema quer nos seus próprios escritos, como na exortação
apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor, 2016)": "Não existe fundamento algum para assimilar ou
estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o
matrimónio e a família".

Em resposta à pergunta da jornalista alemã, Francisco asseverou que não há contradição, porque uma coisa é
a Igreja acolher toda a gente, outra são as suas regras de funcionamento. Mas para exemplificar o
acolhimento de "toda a gente", incluindo os homossexuais, não podia ser mais cruel na dicotomia:
"Todos! Doentes e saudáveis, velhos e jovens, feios e bonitos... bons e maus!".
Saudades da ditadura

O sucesso dos partidos de extrema-direita e da sua retórica anti-democracia é, paradoxalmente, uma


manifestação do triunfo do regime democrático. Porque só há dois tipos de pessoas com saudade da
ditadura: ditadores e os que (já) não fazem ideia do que seja viver numa.

“Os miúdos que nascem agora estão tão longe do 25 de Abril como nós estávamos da 1ª Guerra Mundial.”

Quem me disse isto nasceu em 1968, a exatos 50 anos do final do final da dita guerra - uma guerra que
conhecemos nos livros e em alguns filmes, narrativa tão distante e onírica como o faroeste americano ou as
invasões francesas. Foi a primeira vez que percebi, em vertigem de desalento e estupor, como é possível aquilo
que me parece impossível: que haja, nas gerações mais novas, quem ache que uma ditadura não é uma coisa
assim tão má, e que uma democracia não é uma coisa assim tão estimável. É que não fazem qualquer ideia da
diferença; todas as suas vidas e referências estão imersas, ensopadas, no sistema democrático.

A começar pela facilidade com que o podem colocar em causa: que outro sistema político é tão dúctil e
paciente perante quem o insulta e despreza, quem lhe vaticina, deseja e planeia o fim? Que outro
sistema permite que qualquer pessoa se sinta à-vontade para caluniar os respetivos representantes,
para os acusar de tudo e mais alguma coisa sem, as mais das vezes, qualquer consequência? Que outro
sistema admite os ataques mais soezes e destrambelhados como forma de combate político e hesita
tanto em puni-los, por tanto execrar a severidade e o silenciamento?

A essa ausência de noção do que seria viver-se em ditadura - que explica o enlevo com soluções
“musculadas” em que que cada vez mais tropeçamos nas redes sociais e na retórica política mas também em
inquéritos sociológicos (num realizado em 2023 em 30 países - não incluindo Portugal - sob os auspícios da
Open Society Foundation, de George Soros, 35% dos inquiridos entre os 18 e os 35 anos disseram que “ter um
líder forte é uma boa forma de governar um país”; 42% dos mais jovens consideram até um regime militar
como “uma boa forma de governar um país”) - adiciona-se outro desconhecimento profundo: o daquilo que,
em termos de bem-estar, de “vida boa”, se deve à democracia. E esse desconhecimento está longe de se ater a
quem nasceu muitos anos depois do fim da ditadura.

Encontramo-lo, na verdade, em grande parte das pessoas em Portugal. Porque para grande parte das pessoas
esse bem-estar é a normalidade - é aquilo a que consideram, e muito justamente, ter direito. Aquilo em que
não pensamos, que não consciencializamos: como um sistema, vá, de climatização do qual só nos
lembramos quando falha. Quando de repente sentimos frio ou calor em vez de conforto, e pensamos: está
estragado, não presta, precisamos de outro.

Não passamos a vida a louvar haver esgotos, água nas torneiras, eletricidade, hospitais, escolas, estradas -
coisas que há 50 anos, ao contrário do que se passava na maioria dos países da Europa ocidental, estavam
muito longe de garantidas para uma parte considerável da população.

Não passamos a vida a louvar haver uma sólida rede de apoio estatal para permitir aos cidadãos enfrentar o
desemprego, a doença, a velhice, a pobreza. Não nos passa pela cabeça lembrarmo-nos de que coisas
como subsídio de desemprego, pensões para todos - mesmo para quem, por esta ou aquela razão, por
responsabilidade própria ou azares da vida, não fez descontos - e subsídio de parentalidade são
conquistas da democracia.

Não passamos a vida a reparar que vivemos num dos países mais seguros e pacíficos do mundo e com uns
dos serviços nacionais de saúde mais eficazes (sim, um dos mais eficazes). Aliás, pelo contrário: se há coisa
em que passamos a vida a reparar é naquilo que falha.

O que nos ocorre é dizer que é pouco e devia ser mais, que já não devia haver pobres, que é iníquo haver
pessoas a viver com tão pouco. É justo. É normal, claro, apontar o que falha; é apontando as falhas que se
progride. O risco é que se confunda a existência de falhas com falhanço global; é que o ruído sobre tanta
coisa que nos parece aquém do que deveria leve a considerar que está tudo errado. Há uma diferença
entre percebermos que aquilo que existe foi uma conquista deste regime e querermos melhorar, e
decretarmos que é tudo uma porcaria e que o regime falhou. Como, falhou?
Alguém se recorda de como era o sistema de segurança social da ditadura? Alguém sabe como viviam, de que
viviam, os velhos que já não podiam trabalhar? Alguém sequer pergunta o que sucedia aos desempregados?

Não: tudo isso passou e está no passado como se o que há tivesse surgido por geração espontânea e não pela
via das instituições democráticas, dos sucessivos governos eleitos, das propostas dos partidos, das lutas dos
sindicatos.

Como se não se devesse tudo a essa coisa de que se fala com tanto nojo e desprezo - a política. A política e os
políticos, isso a que políticos, tão ou mais políticos como os outros mas fazendo profissão de pretender não o
ser, apresentam como uma coisa suja, inútil, a deitar fora, a substituir pelo seu discurso de “verdades” que
mais não é que uma trapalhada de ódio e falsidades cozinhada para acicatar o descontentamento e festejar a
ignorância.

Sim: por definição, a democracia não entusiasma quem vive em democracia. Não parece uma ideia
salvífica - como pareceria a quem vive nela? - nem uma novidade atraente. É uma coisa da qual dizemos
mal com muito mais ímpeto do que bem. Sendo um processo nunca terminado, que depende da
mobilização coletiva para evoluir, e portanto da consciencialização dos seus defeitos e deficiências,
estimula-nos à crítica permanente. Até porque, sendo um sistema no qual coexistem várias forças políticas
e ideias em confronto e competição, é dessas críticas cruzadas que vive.

Haver de repente tanta gente em países democráticos a achar que a democracia não serve é,
paradoxalmente, uma espécie de louvor à democracia - à completa incapacidade que temos todos
(exceto os ditadores) de imaginar viver num sistema outro, e à fé que pomos na sua resiliência.

E é aí, claro, que nos enganamos: a democracia pode (se pode) ser destruída e só resistirá na medida em que
estejamos dispostos a lutar por ela. É bom que nos aprontemos.
Valete. O rapper, a adúltera, a caçadeira e a "pide feminista"

Um homem, arma em punho, surpreende a mulher na cama com o melhor amigo. É o enredo da última música
do rapper Valete, que há quem acuse de "apologia da violência e humilhação das mulheres". Ele nega - "É só
uma boa história, não tem mensagem" - e fala de "PIDE feminista"

"Revolta macabra, ele quer ver a cabra morta (...). O esforço que fiz para teres a vida acautelada /
Trabalho como um escravo para que não te falte nada (...) Forreta era o que ouvia das tuas bocas / quando
fui eu que comprei as tuas joias, as tuas roupas / Puta, cona alargada (...) / Agora vais sentir a sequela /
Com a caçadeira enfiada na tua goela / a bala a perfurar a tua traqueia / e o corpo como plateia enquanto
a morte fraseia."

Esta letra de BFF, a música que o rapper Valete, ou Keidje Torres Lima (Damaia, 1981), lançou no início de
setembro em vídeo, está a suscitar reações de choque e indignação. No clip, que segue fielmente a narrativa
da música, um homem surpreende a mulher na cama com o melhor amigo e, de caçadeira em punho, insulta-
a, acusa-a de viver à custa dele e enfia-lhe o cano da caçadeira na boca, apontando-a de seguida ao amigo
que acusa também de traição. Quando vai disparar acorda na cama ao lado da mulher: estava a ter um
pesadelo. "Estás todo suado", diz ela. "Vai tomar um banho." Enquanto ele o faz, o amigo sai do armário onde
estava escondido e foge.

"Esperei impacientemente pelo fim do vídeo para ver qual a emancipação mental que a música podia trazer...
Zero. A nível técnico de construção fonética e lírica, impecável claro, agora de substância e contributo para a
construção social e humana nadinha", lê-se no Facebook do músico em comentário a um post com o vídeo.
"Pelo contrário, o relato de uma história tipo igual a 1000 assassinatos de mulheres em Portugal. O juiz
Neto de Moura é que argumenta que traição pode dar morte legítima, ou que é normal bater numa mulher
com uma moca com pregos. Podem dizer que é um sonho, não interessa... por alguns comentários aqui
se percebe que isso é irrelevante. Tinhas aqui uma bela hipótese de nos trazer uma música na linha da
"Não te adaptes" [música de Valete sobre o papel da mulher] mas não... Profundamente
desiludido... Nota, não há uma única mulher aqui a comentar..." Outro fã, no mesmo local, corrobora: "do
Valete espero rimas pesadas e mensagens fortes que nos ajudem a sermos melhores seres humanos. Não é o
caso."

A maioria dos comentários - de facto, todos masculinos quando o DN os consultou, no início desta semana -
são de elogio e êxtase, porém. E há mesmo quem refute as críticas certificando que não fazem sentido e que
vêm de quem não conhece o trabalho do rapper.

"Foda-se o politicamente correto"

É o que se passa também no Instagram: "Vê-se mesmo que não entenderam a mensagem, vão ouvir Agir e
David Carreiras"; "Vocês realmente não conhecem Valete nem a sua obra. Valete é um rapper feminista
antes só de isso ser moda. (...) Nesta música ele somente faz um story telling [conta uma história], e
aproveita uma história para fazer uma música. Foda-se o politicamente correto"; "Ainda bem que o Valete
lançou esta música, para ver a cambada de malta ofendida nesta geração de merda de florzinhas de estufa
que pensam que a racionalidade, sentido crítico e artístico acaba onde começam os sentimentos delas."

Mas nesta plataforma os comentários desiludidos e indignados são mais numerosos que no FB. "Num país
como Portugal, onde os casos de violência doméstica têm vindo a aumentar de ano para ano, é vergonhoso ver
o tema abordado de forma tão leviana...", diz alguém em resposta ao músico Dino de Santiago, que elogia e diz
que vai pôr a canção de Valete "em repeat toda a noite".

Há quem manifeste perplexidade -- "Não entendi a letra, quer dizer entendi, só não entendi a apologia à
violência e à humilhação da mulher patente na letra!" - e quem seja mais veemente na crítica: "Estamos
em 2019, ano em que 20 mulheres já morreram vítimas de violência doméstica. (...) Ele devia aproveitar a
projeção que tem para passar outras mensagens. Este vídeo demonstra um completo desrespeito pela
mulher."; "Se isto tinha um propósito, passou completamente ao lado. É lamentável ver as músicas serem
produzidas para os putos decorarem as letras. É lamentável ver a representação do que acontece com
tantas mulheres tão banalizado num vídeo. Que adaptação a um público rasca."
Há mesmo quem considere que se pode estar na fronteira da ilegalidade: "O incentivo à violência não se
desculpa como criação de um enredo ficcional. O incentivo à violência não se desculpa como obra ou
ganha-pão. O incentivo à violência não só não se desculpa como não se devia tolerar. Pensei-te maior." E
quem pergunte: "Quantos e quantos miúdos se vão sentir moralizados com este tipo de mentalidade, sem
qualquer tipo de reflexão, depois de visualizarem esta caçadeira apontada a uma gaja?"

E se aparece quem contraponha com "isto não incentiva a violência, incentiva a lealdade", a resposta é
brutal: "Isso parece saído da boca de um dos homens que mataram a mulher durante o início deste ano:
isto não foi um incentivo à violência, foi um incentivo à lealdade. Assim garanto que a próxima já não me
trai (...). A única coisa que venho deixar clara com este comentário é que o Valete, enquanto influenciador
de pessoas, devia ter pensado nisto duas vezes. No entanto, tendo em conta a idade e o perfil de quem
comentou isto a dizer "grande cena", é normal que ele o faça para continuar a ganhar uns guitos.
Condenável, mas nada surpreendente."

"Não confundas luta feminista com PIDE"

Sónia Tavares, a vocalista dos The Gift, surpreendeu-se. E fez questão de o dizer a Valete, em público, no
Instagram: "Anda aqui uma mulher a fazer campanhas contra a violência doméstica e tu baralhas-me isto
tudo. És um tipo tão inteligente, escreves tão bem, fazes tão boa música, mas este vídeo não dá. As
crianças também gostam de ti e não vão perceber que este vídeo pode ser um abre-olhos. Uma voz ativa
como a tua era essencial na campanha contra a violência."

Valete não gostou: "Cuidado com a condescendência, Sónia. Não confundas luta feminista com PIDE. Onde
é que está decretado que não se pode fazer ficção com violência? Não faças da obra uma coisa que ela não é.
Como fiz em toda a minha vida contei uma boa história, consegui levar para um registo cinematográfico e
chegámos a este resultado. É uma boa história e bom cinema. Nada mais. Dissertações sobre homicídio
passional, violência doméstica cabem-te a ti. A Sónia e a sua gang da PIDE decretaram agora que não se
pode fazer filmes com violência e que não se pode fazer arte sem mensagem. Já agora manda também
mensagens ao Scorcese [realizador americano, autor de Taxi Driver, Goddfellas e Casino] quando ele põe
maridos traídos a matar esposas nos filmes dele. Esta mensagem é surreal vinda de uma artista como tu."

destaque "É só a obra de um contador de histórias a querer contar uma boa história. Associar aquela obra a
violência doméstica ou humilhação a mulher é super rebuscado." centro

Ela ameniza: "Não, querido Valete, era só uma opinião, eu não decreto nada. O meu sobrinho adora-te, tem 11
anos e não percebeu nada. Era só isso. (...) Acima de tudo o meu comentário elogia o teu trabalho. É só o meu
ponto de vista. (...) Eu luto contra todo o tipo de Pides, e não o contrário."

O rapper volta à carga: "É uma curta-metragem igual a muitos filmes que ele vê todos os dias. Entendes
que sou artista e tenho de me expressar da maneira que me apetece expressar. Ainda bem que o teu
sobrinho gosta, mas eu não faço música infantil, nunca fiz. Bem pelo contrário. Como te disse é só a obra
de um contador de histórias a querer contar uma boa história. Associar aquela obra a violência
doméstica ou humilhação da mulher é super rebuscado."

Sónia reforça a pedagogia: "Sei que não fazes música para crianças, eu também não, mas invariavelmente elas
chegam até nós. (...) Crianças à parte, digo-te do coração e só te escrevo porque trabalho diretamente com
mulheres vítimas de violência. Parece que vi a cara de todas no teu vídeo e gostava tanto que alguém
pudesse contar a história ao contrário. Do ponto de vista delas. E como amante de arte, sem qualquer
tipo de preconceito, queria que soubesses que a tua voz ativa chega efetivamente às pessoas."

"Criei uma personagem machista de propósito"

Em 2009, Valete parecia partilhar a opinião e sentido de responsabilidade de Sónia no que respeita à influência
do que faz nos mais jovens. "Os músicos têm de ter noção que a faixa etária entre os 13 e os 18 anos é
muito suscetível de ser influenciada. Os músicos podem influenciar esses jovens, influenciar para
tornarem o mundo melhor. Podem criar um novo movimento. Vi e senti isso com o primeiro álbum. (...)
Quero mudar o status quo. (...) Para mim, é sempre uma vitória se uma em cada cem pessoas captar a
verdadeira mensagem. Se uma delas travar maus comportamentos depois de ouvir aquele som."

Em causa estava, nesta entrevista, Roleta Russa , uma canção em que falava de sexo e do uso de preservativo.
"Acho que a forma como alertei para o problema foi a melhor. Tem muito mais eficácia do que 50 cartazes a
dizer "Usa o preservativo". As campanhas de sensibilização são moralistas, muito corny [forçadas, pirosas], e
os miúdos não gostam de ouvir. Não lhes fica no ouvido. Acho que a minha mensagem é facilmente captada."

destaque "Sabendo que os miúdos aprendem hoje muito através do hip-hop, se nós tivéssemos mais
mulheres a fazer rap provavelmente até já estávamos mais avançados nesta questão do feminismo." centro

Invocando a sua formação "em Comunicação e especialização em Marketing", certificava: "Não gosto de
chocar gratuitamente. Mas acho que tudo o que digo tem de ter impacto, eficácia. Tento transmitir algo
que as pessoas sintam. As pessoas têm de estar atentas ao que estão a ouvir. Preocupo-me em rimar
coisas explosivas. Em chocar para captar a atenção."

Em entrevista bem mais recente, ao Correio da Manhã , voltava a frisar a sua consciência da responsabilidade
pedagógica do hip-hop - e a propósito, precisamente, de sexismo. "Acho que um dos grandes problemas que
nós temos na música em Portugal em 2017 é a escassez de mulheres a fazer hip-hop. E isso às vezes é
capaz de nos levar a ter um discurso sexista. (...) Acho que é importante que as mulheres ensinem o
feminismo aos homens. Sabendo que os miúdos aprendem hoje muito através do hip-hop, se nós
tivéssemos mais mulheres a fazer rap provavelmente até já estávamos mais avançados nesta questão do
feminismo."

destaque "O que viste ali é um cineasta e um novelista a contar uma história - não há mensagem. Quando faço
uma obra há sempre um grupo que não entende. Acho que é um grupo minoritário e geralmente de pessoas
preconceituosas em relação ao rap." centro

Propósitos e preocupações que o Valete que fala ao DN parece simultaneamente renegar e assumir.

Questionado sobre qual a "verdadeira mensagem" de BFF, nega que exista. "Que mensagem? O que viste ali
é um cineasta e um novelista a contar uma história - não há mensagem. Quando faço uma obra há
sempre um grupo que não entende. Acho que é um grupo minoritário e geralmente de pessoas
preconceituosas em relação ao rap. O preconceito vem dessa coisa de as pessoas quererem perceber o
objetivo. A minha arte não é unidimensional, nunca foi. Tenho um fascínio incrível pelo comportamento
humano, a psicologia humana. Criei uma personagem machista de propósito."

"Não dou muita importância a minorias"

Porquê? "Porque é mais fascinante para o escritor. Porque criei uma obra mais violenta". Não o preocupa o
reiterar dos estereótipos - a mulher que vive à conta, falsa e dissimulada, a quem o marido ofereceu tudo e o
engana - e o banalizar da violência verbal sexista e da violência física, inclusive do homicídio "justificado" pelo
adultério? "Não estou a reiterar estereótipos. A história é aquela. O Valete nunca disse que não há
machismo, que não há homicídio passional... A história aconteceu perto de mim. 90% do que estou a
narrar ali é verídico. Não há ali juízo de valor."

Há quem diga, precisamente, que Valete fala de um amigo seu, que está preso - prefere não esclarecer se é
realmente assim. Mas também corre uma acusação de plágio: o rapper moçambicano Allan lançou este ano
uma música, Ninguém sai vivo , com um enredo igual, no qual um homem recebe uma chamada de alguém a
avisá-lo de que a mulher está com outro, e de arma em punho surpreende os dois, ameaça matá-los e quando
vai disparar acorda na cama ao lado da mulher. "Isso é patético", reage Valete, que garante não ter ouvido a
música de Allan antes de criar a sua. "Há um milhão de sons de rap com histórias semelhantes à minha.
Ouve Trapped in a closet do R. Kelly ou Fifth story do Common. Isso são dicas de quem não ouve rap."

Seja como for, a história de BFF é contada do ponto de vista do agressor, do homem "traído". E esse ponto de
vista é assumido por muitos dos que a elogiam.
destaque "O Valete nunca disse que não há machismo, que não há homicídio passional... A história aconteceu
perto de mim. 90% do que estou a narrar ali é verídico. Não há ali juízo de valor." centro

No Instagram do músico, uma jovem que comenta "só dá fortes aqui. Espero que algum gajo fale assim para a
vossa irmã ou a vossa filha" recebe como resposta "se a minha irmã for uma puta como essa do clip ao
foder na cama do marido com o melhor amigo dele... eu próprio vou falar com ela assim." Outro diz: "Isto
não é violência doméstica, violência doméstica é agredir de forma gratuita e sem justificação" -
considerando assim que a violência do vídeo e da canção é justificada. E outro ainda: "Que eu saiba, o vídeo
só mostra uma revolta de uma traição, ninguém maltratou ninguém nem magoou ninguém. Teve o cano
da arma na boca para apanhar um cagaço? Epá sabes também me apeteceu fazer isso à minha ex LOL
para apanhar um susto e aprender a ser uma mulher de valores."

"Ninguém maltratou nem magoou ninguém". Ao contrário do que se passou com os comentários de Sónia
Tavares, Valete não sentiu necessidade de responder a estes seus fãs, mesmo se assevera ao DN ter lido o que
escreveram.

destaque "Houve um grupo pequeno de feministas que não gostou - feministas de classe média alta, que não
ouvem rap. E um grupo de machistas ignorantes que também não entendeu." centro

"Não é a primeira vez que há má interpretação de músicas. Daí que eu tenha decidido deixar de me preocupar
com essas más interpretações. Não posso estar a despender esforço para justificar à esquerda e à direita.
Fiz a obra, a maior parte das pessoas entendeu. E houve um grupo pequeno de feministas que não gostou
- feministas de classe média alta, que não ouvem rap. E um grupo de machistas ignorantes que também
não entendeu."

Não o preocupa que haja quem veja o que fez como uma banalização e justificação da violência? "Eu por
hábito não dou muita importância a minorias - se fosse a maioria das pessoas ficava preocupado."

"O machismo é uma doença social"

Disse numa entrevista em 2017 que as mulheres têm de ensinar o feminismo aos homens, e que pode
acontecer ter um discurso sexista. Não põe a hipótese de lhe ter acontecido aqui ter esse discurso? "Já tive
frases machistas nas letras e fui alertado por amigas feministas - muitas vezes nós homens estamos a
ter comportamentos machistas sem nos darmos conta. Aliás não acredito em homens não machistas."

Não será que o machismo é algo que existe em toda a gente, porque fomos criados numa sociedade
machista? "Sim. É difícil as nossas sociedades não produzirem homens e mulheres machistas. É muito
difícil produzir a cura para esta doença social. Mas os homens num estágio de machismo muito mais
atrasado nem se preocupam com isso, nem se preocupam com a cura."

destaque "Muitas vezes nós homens estamos a ter comportamentos machistas sem nos darmos conta. Aliás
não acredito em homens não machistas." centro

Sabendo disso, de que forma é que a violência e o discurso da canção, o usar expressões como "puta" e "cona
alargada", não é dizer que isso é tudo OK? "Não. Fazem parte da personagem machista que retratei. E isto que
viste foi o pedaço de algo que vai ter continuação - vai haver um desenvolvimento das personagens, vai
ser uma série. Sei que ao terceiro ou quarto episódio quem criticou vai perceber que estou a construir
uma série e se calhar vai pedir desculpas. Vai perceber o registo que nunca viu na vida - um rapper a
contar uma novela. As pessoas estão a ter dificuldade em lidar com a coisa nova."

Mas qual é afinal a ideia daquele vídeo, pergunta Sónia Tavares, falando ao DN. "Temos de ler um manual de
psicanálise para perceber? Está extremamente bem feito a nível técnico e por isso é credível, tanto que revi o
medo de muitas histórias de mulheres que conheço. Percebo que o Valete queira defender o seu trabalho e
tenho a certeza de que ele não o fez com esse sentido da violência de género -- nem deve ter pensado nas
repercussões que ia ter." Suspira. "E ele diz que é muito rebuscado falar de violência doméstica a
propósito daquilo? Se fosse rebuscada a associação à violência doméstica jamais teria tido uma
intervenção daquelas no perfil público de um artista, de um colega. Quando me falaram daquilo e fui ver,
nem queria acreditar. O Youtube censurou um mamilo num clip meu e pelos vistos o cano da espingarda
na boca de uma mulher não incomoda. Um miúdo de 11 anos vê aquilo e acha que é espetacular pôr um
cano de caçadeira na boca de uma mulher."

destaque "O Youtube censurou um mamilo num clip meu e pelos vistos o cano da espingarda na boca de uma
mulher não incomoda. Um miúdo de 11 anos vê aquilo e acha que é espetacular pôr um cano de caçadeira na
boca de uma mulher." centro

Mas é crível que nesta altura dos acontecimentos, na era do Me too, e num país com um problema tão grave de
violência de género, Valete não tivesse antecipado as reações? A cara dos The Gift tem um sorriso na voz:
"Numa altura em que estamos todos abertos a essa consciencialização é de facto estranho. Mas a verdade é
que o vídeo está aí há duas semanas e mais ninguém na área musical disse nada. Pelos vistos acham
super normal. Ou ninguém se quer meter."

Contactada pelo DN, a cantora e compositora Blaya hesita. "O Valete sempre foi um rapper que a definição
dele é falar sobre as coisas que ocorrem no mundo." Mas que pensou quando viu o vídeo? "Claro que o
primeiro impacto é OK, está a abusar um bocado das mulheres e os homens vão achar que isto é uma coisa
normal. Mas ele é um story teller. Só que vai haver pessoas a dizer que ela, a mulher do vídeo, merece. A
glorificar aquela violência. O primeiro impacto quando vi o vídeo foi mesmo esse: está a incentivar os
homens a tratar mal as mulheres só por um motivo passional. Não era aquele vídeo que faltava de
certeza num país em que já foram mortas 20 mulheres este ano."

Exatamente o ponto do humorista Diogo Faro, que no Twitter escreveu: "A nova música do Valete está
excelente. É importante em 2019 continuar a retratar a mulher como propriedade do homem e o homem
como um atrasado mental. Fazia falta isto, de facto. (...) Não consigo ver nada no vídeo que seja uma
crítica àquilo que está representado nas imagens e nas palavras. E sendo do Valete, obviamente
esperava muito mais que uma representação da mulher mercadoria e do homem irracional."

Também Rita Ferro Rodrigues, da associação feminista Capazes, esperava outra coisa de Valete. E quis dizer-
lho. "Tive o cuidado de entrar em contacto com ele porque acompanho a sua obra e carreira e fiquei
estarrecida com este vídeo e com a letra da música que, para ser franca, me parece fora da linha de histórias
que conta e até das causas que defende publicamente. Conversámos longamente sobre o vídeo e sobre a letra
e eu transmiti-lhe a minha opinião: sendo um exercício artístico livre (ninguém questiona isso) é
extremamente perigoso. Coloca a mulher como dano colateral fútil de uma rixa entre machos e banaliza
de forma inadmissível a violência e a misoginia. Tivemos uma conversa cordial e franca e aquilo que o Valete
me disse não vou divulgar porque foi uma conversa privada. Mas posso divulgar parte daquilo que eu lhe
disse. Aconselhei-o a explicar-se publicamente e a falar de forma clara sobre o que pensa sobre o tema
da violência doméstica, da misoginia e da importância do trabalho de artistas que chegam de forma
impactante às novas gerações de um país onde de três em três semanas morre uma mulher vítima de
femicídio. O meu apelo para que o faça mantém-se."
E como não chegaríamos aqui?

"Ministério Público: como chegámos aqui?", perguntava ontem no <em>Público</em> a procuradora


geral adjunta Maria José Fernandes. Uma pergunta que se responde no seu corajoso e lúcido texto de
opinião: há muito que aqui estávamos.

Quando li que entre as transcrições de escutas da Operação Influencer tinham sido detetados vários erros,
confesso não ter achado surpreendente. E há um motivo específico para tal que não apenas o de errar ser
completamente humano; é que já tive o grato prazer de ler transcrições de escutas telefónicas nas quais fui,
como se costuma ler na imprensa da especialidade, "apanhada" (todo um programa nesta palavra) - querendo
dizer que fui escutada "fortuitamente" quando liguei para números de telefone que estavam sob escuta por
parte da justiça.

Há poucas coisas mais estranhas que ler a interpretação que alguém faz de conversas ou de mensagens
telefónicas que trocámos com outras pessoas. E digo interpretação porque, numa primeira fase dos
processos, aquilo que está nas transcrições não é o registo exato do que foi dito, mas resumos, ou seja aquilo
que as pessoas que escutam consideram "o essencial" do que as pessoas escutadas disseram.

Quando li esses resumos - muitos anos depois de me confrontar com "notícias" que por sua vez interpretavam
essas interpretações, e que foram publicadas quando o processo em causa não era ainda de acesso público,
significando que eu própria não podia sequer, nessa fase, aquilatar da justeza das interpretações jornalísticas
(chamemos-lhe assim, mesmo se em muitos casos havia zero de jornalismo, se entendido no rigor das suas
regras, nessas "notícias") - maravilhei-me duplamente. Pelo facto de conversas sem qualquer interesse para a
descoberta de uma qualquer verdade "criminal" terem sido transcritas - o que implicava terem sido valoradas
por autoridade judiciais como meio para a descoberta dessa mesma verdade - e pela forma como tinham sido
"noticiadas".

Houve por exemplo "notícias" em que me foram atribuídas conversas que eram afinal, percebi nas
transcrições (e digo percebi porque, sabendo que nunca as tinha tido, não havia como saber por que raio mas
atribuíam), de outras pessoas que não eu; houve "notícias" em que me foram imputadas intenções totalmente
inversas daquelas que estavam em causa nas conversas; e houve "notícias" que simplesmente comungavam
das interpretações de total má fé - não é possível chamar-lhe outra coisa - de quem transcreveu.

Há muitos exemplos, mas não tendo nesta coluna espaço infinito, darei apenas um: saíram "notícias" sobre
aquilo que seria a narrativa de um modus operandi criminal de um arguido como tendo-me sido comunicada
por uma pessoa que viria a ser também arguida (e que estava já sob escuta) quando afinal a conversa em
causa constava da leitura que essa pessoa estava a fazer-me dos jornais que comprara nesse dia, na
sequência da detenção de três dos arguidos do processo. Extraordinariamente, nos resumos das escutas,
ninguém achara importante anotar que aquela conversa era isso mesmo: alguém a ler narrativas
jornalísticas que por sua vez, em perfeita pescadinha de rabo na boca, se baseavam na narrativa da
própria autoridade judiciária que estava a escutar - e a minha reação e da outra pessoa a tais revelações.

Contado assim, parece até cómico, não é? Sucede que não, não tem graça nenhuma perceber a que ponto se
pode chegar, não só no desrespeito pelas pessoas, como (talvez ao menos isto para a maioria - que tão bem
parece conviver com a devassa tantas vezes absolutamente gratuita, com o único intuito de achincalhar e
destruir, da vida dos outros - seja relevante) no desprezo por aquilo a que costuma chamar a "verdade
material". Que esse desprezo exista no mundo infecto dos tablóides (cada vez mais hegemónico na
comunicação social portuguesa, mesmo nos órgãos que se afirmam "de referência") é mau que
chegue; constatar que as próprias autoridades judiciárias empenham em algo com a gravidade de
escutas a seriedade e o rigor de um qualquer tabloideiro é aterrorizador e talvez explique por que motivo
há processos que se arrastam sem conclusão à vista: chama-se muito simplesmente incompetência.

Claro que deveria, muito antes de novembro de 2014 - como é evidente, tenho estado sempre a falar da minha
experiência pessoal como pessoa escutada fortuitamente no âmbito da Operação Marquês -, saber que essa
incompetência malévola, que faz de inquéritos judiciais processos de intenções os quais, não raro, se
esboroam perante a sindicância de magistrados que levam a sério a sua responsabilidade de aplicar a lei sem
olhar a quem, não é incomum na justiça portuguesa. Nunca esqueci que um dos "indícios" do processo Casa
Pia apontado em "notícias" (indício de quê, desde logo?) era uma conversa de Paulo Pedroso com um homem
a quem o ex-governante chamava "menina" e que a investigação não conseguira identificar - conversa que,
viemos a saber porque a pessoa em causa se revelou publicamente, era afinal com uma mulher (e, claro, nada
tinha a ver com o objeto da investigação; como é sabido, Pedroso, depois de ter estado preso preventivamente
mais de seis meses, e de ter a vida destruída pela monstruosa suspeita de abuso sexual de menores, veria o
Tribunal de Instrução Criminal decidir, em maio de 2004, não haver indícios que permitissem levá-lo a
julgamento, acabando por, 14 anos depois, ganhar no Tribunal Europeu de Direitos Humanos o direito a ser
indemnizado pelo Estado Português em 68 mil euros por ter sido vítima de detenção ilegal).
Mas mesmo tendo noção de que coisas dessas aconteciam, mesmo tendo como jornalista reportado tantas
vezes sobre incompetência e desmandos das polícias, do ministério público, de juízes, tantas vezes me ter
deparado com situações de injustiça pungente e revoltante, nunca me tinha acontecido a mim -- e não há
nada, na forma como vimos e sentimos as coisas, que substitua acontecer connosco.

E porque vos conto tudo isto? Para já porque o efeito desses "erros" (chamemos-lhes assim) perdura na minha
vida, e perdurará decerto até ao seu fim, por mais ações que intente (e ganhe) contra quem quis deles fazer a
minha condenação na praça pública - já que não fui indiciada fosse do que fosse, restava isso. E porque quem
quer que seja que cometeu esses "erros" continua decerto alegremente a fazer o que fazia, como fazia - tenha-
se ou não demonstrado que a forma como "investiga" e acusa resulta em processos coxos, megalómanos e
infindáveis que desembocam em becos sem saída ou na mais que provável prescrição.

Porque nunca existiu aquilo a que um ex-presidente da República deu o nome de "sobressalto cívico" em
relação à forma corrupta e corruptora do regular funcionamento das instituições democráticas - e portanto da
democracia - como o sistema judicial se tem aliado a uma cultura jornalística tabloide para, nas palavras da
procuradora geral adjunta Maria José Fernandes no seu artigo de opinião no Público ("Ministério Público: como
chegámos aqui?") que incendiou esta segunda-feira, exercer "a investigação criminal como uma extensão
de poder sobre outros poderes, sobretudo os de natureza política", sendo quem se opõe a essa prática
"rotulado [de] protetor dos corruptos".

Porque alguém como António Costa, malgrado ter vivido de tão perto as perversidade inomináveis do Processo
Casa Pia, nunca teve a coragem de tentar, mesmo se a isso desafiado por Rui Rio, pensar uma forma de fazer
da justiça portuguesa uma instituição menos manobrável por poderes ocultos, mais eficiente e mais - passe o
pleonasmo - justa. Não cabe apenas a Costa, evidentemente, o ónus de nestes quase 50 anos de democracia
nada ter sido feito nesse sentido, e não é despiciendo para esse imobilismo que o PS esteja, vai fazer uma
década, assombrado pela acusação de corrupção a um ex-secretário-geral e ex-primeiro-minidstro. Mas o seu
- de Costa e do PS - tão taticista quão ingénuo "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política",
encontrou-se a 7 de novembro com a sarcástica comprovação da sua impossibilidade. A justiça
arrombou a porta que nunca existiu.

Como chegámos aqui, pergunta Maria José Fernandes no seu corajoso e lúcido artigo. Como não chegaríamos,
se já aqui estávamos há tanto tempo?
Tudo sobre a minha confusão

Ainda não sei bem o que penso do que se passou no Teatro São Luiz - porque há tanta coisa para pensar.
Das exclusões que não vemos ou sentimos àquilo que definimos como violência, passando pelo perigo
muito real de a afirmação de identidades e seus direitos nos fechar em caixas cegas - aquelas de onde
viemos.

Transfake. A palavra entrou subitamente na atualidade portuguesa, depois de na noite de quinta-feira, no


teatro São Luiz, a peça Tudo sobre a minha mãe - baseada no argumento do filme homónimo de Almodóvar -
ser interrompida por uma pessoa do público que se dirigiu ao palco e, apresentando-se como atriz transgénero
(trans), ordenou ao ator André Patrício, em cena como Lola (uma das personagens trans da peça), que o
abandonasse, gritando "transfake".

O pano caiu pouco depois, separando o elenco de quem o interpelava, mas ninguém impediu a interpelante de
prosseguir o seu discurso: estava ali a protestar por ter sido contratada uma pessoa não trans para representar
uma personagem trans. Explicando que, por não conseguir trabalho como atriz, é forçada a prostituir-se para
sobreviver.

O vídeo passou nas TV e corre nas redes sociais, pelo que muitos dos que me leem sabem o que se passou a
seguir: o elenco, a começar pela atriz Maria João Luís, veio à boca de cena, tentando dialogar com quem lhes
interrompera o trabalho. E no fim a atriz trans Gaya de Medeiros, que na peça dá corpo à personagem Agrado,
num discurso de punho no ar, proclamou: "Espero que hoje este ato da Keyla Brasil, uma artista que está
na prostituição, entre na história de Portugal, para que se entenda a importância desses corpos
ocuparem estes espaços para contarem as suas histórias. Isto não é contra o ator e o diretor. Isto é uma
denúncia histórica (...)."

A discussão pública iniciou-se de imediato, primeiro nas redes sociais e depois nos media, e logo na sexta-
feira a produção decidiu substituir, na personagem Lola, o ator André Patrício (que tem outros papéis na peça)
por uma atriz trans, Maria João Vaz.

Há tanta coisa para refletir sobre tudo isto, tanta perplexidade para elencar, que um texto de opinião não chega
- até porque, mesmo entre os que defendem o ato de Keyla Brasil e se congratulam com o seu resultado, há
variadas visões sobre o que ela fez, como entre os que rejeitam este tipo de ação e lamentam que a produção
tenha cedido ao protesto.

Começo então por esta palavra, transfake. O que quer isto dizer, sobretudo quando designando um ator em
personagem? Se fake quer dizer falso, a ideia é a de uma falsificação. Aquela que - informa-nos em artigo
no Público Dusty Whistles, ativista trans - ocorre quando "artistas cisgénero participam na exclusão de
trabalhadores culturais trans através da apropriação de papéis trans."

(Antes de mais: a expressão cisgénero, ou "cis", designa pessoas cuja identidade de género coincide com a
que lhe foi atribuída à nascença, em função das suas características morfológicas. As pessoas cis podem ser
heterossexuais ou homossexuais, como as trans).

A expressão transfake é aliás associada por Dusty Whistles ao blackface, exprimindo a ideia de que há um
"mascarar de", numa estereotipação ridicularizadora, quando alguém que não é trans "faz de" trans
numa peça ou filme, como quando alguém não negro pinta a cara para "fazer de" negro (como sucedeu
bastas vezes no teatro e cinema).

Isso mesmo afirma no seu artigo: "O casting transfake ridiculariza as pessoas trans, com a suposição,
mesmo que não intencional, de que não somos mais do que uma série de adereços amovíveis (...)." Sabe
que está a pisar em terreno movediço, pelo que acrescenta: "Não há nada de errado com o drag, que tem o seu
próprio lugar e importância na história da revolta queer, mas colocar uma pessoa cis em drag para
desempenhar o papel de uma pessoa trans é um escárnio da experiência trans."

Pois. Drag é precisamente a palavra que se usa para designar um "vestir de", um "fazer de" exagerado,
performático, em que alguém usa roupa, próteses (capilares ou outras) e maquilhagem para "parecer" ou
"representar" outro género. Historicamente, o drag - tanto "masculino" como "feminino" - tem de facto um
lugar na luta pelo derrube dos muros de género, usando, paradoxalmente, os estereótipos de género contra
esses mesmos estereótipos. A questão é como a assunção dessa liberdade que foi sendo assim conquistada
resulta, para Dusty, em que "uma pessoa cis em drag para desempenhar o papel de uma pessoa trans é um
escárnio da experiência trans." Escárnio? Por?

Entendamo-nos: a discriminação e exclusão das pessoas trans, mulheres e homens, é brutal e violentíssima, e
o desespero e revolta que conduzem a ações como a que vimos no São Luiz são totalmente compreensíveis; a
violência desse protesto deve acordar-nos para a que não vemos nem sentimos e que quem o protagonizou
sofre todos os dias.

O principal dos meus problemas - tenho vários - com a ação em si é que, para além da funda injustiça feita
ao ator cruelmente tratado como usurpador (e ao resto do elenco, que estava ali, frise-se, a trabalhar, e
numa peça ativista), não me faz qualquer sentido o decreto, como li no Instagram dos Fado Bicha,
ativistas trans na génese do protesto, de que "atores cis só podem representar personagens cis".

Tudo a favor de que atrizes e atores trans tenham muito mais acesso a trabalho, como as pessoas trans em
geral (como todas as pessoas excluídas e discriminadas), e que esta ação sirva para que se consciencialize a
necessidade de maior atenção, de maior procura nesse sentido. Mas que ideia é esta, também de um dos
membros do Fado Bicha, de que "alguém não trans representar uma personagem trans é ridicularizar a nossa
experiência"? Ou, como escreve Dusty: "O casting transfake nega os nossos mundos internos, perspetivas,
narrativas pessoais e a nossa própria luta".

Cada narrativa pessoal sendo única, cada mundo interno sendo isso mesmo, interno e no limite impartilhável,
que quer isto dizer? Que cada um só pode representar-se a si próprio, ser ator de si mesmo? E se falarmos de
grupos identitários, que é do que Dusty e outros ativistas trans estão a falar, onde é que isso nos leva?

Como mulher, a minha experiência de nascer mulher sendo vista como mulher e (des)tratada como
mulher toda a vida não é a mesma, nunca será a mesma, que a de uma mulher trans - por mais que ela
empatize comigo. Significa que devo considerar "escárnio" se uma atriz trans interpretar uma
personagem de mulher cis, porque a experiência dela não é nem pode ser a minha? E deverei sentir-me
ridicularizada como mulher, ou sentir a minha luta feminista deslegitimada, ao ver mulheres trans levarem a
estereotipação do que é suposto ser "o feminino" até ao caricatural, em vez de perceber que é a forma de,
como diz Agrado, num dos monólogos mais belos do cinema, "serem tanto mais autênticas quanto mais se
aproximam daquilo que sonharam para si"?

Como escreveu Gonçalo Diniz, o primeiro presidente da ILGA-Portugal, no Público (Sair do armário e entrar
numa gaveta), "a afirmação da "diferença" parece que perdeu a função e está a abrir um abismo cada vez
mais difícil de contornar. (...) Quando é que a estratégia da visibilidade deixou de ser um instrumento
para a igualdade e passou a ser uma bandeira divisória? Quando é que um movimento que lutava para
uma maior inclusão passou a valorizar uma postura dicotómica, quase tribal, na sua exclusividade?"

Onde está o esforço de empatia e de aceitação que era suposto, é suposto, ser esta luta tão longa pela
igualdade, pelo direito a cada um ser quem é? Onde está a ideia de que somos todos o mesmo, sendo o que
quisermos e sonharmos? Onde está o amor que foi o princípio e deveria ser o fim de tudo?

Tudo sobre a minha mãe é sobre isso mesmo: amor. O amor que liga pessoas tão diferentes, ou
aparentemente tão diferentes, que as leva a acolher-se, a proteger-se, a defender-se, a consolar-se. Era tão
claro na altura, em 1999. Por que deixou de ser?
Marcelo e o Portugal mais que imperfeito

Num notável discurso, o presidente abordou enfim o passado como ferida, pedindo que saibamos
assumir o olhar dos colonizados e entender que há várias histórias na história, incluindo a sua, filho do
último ministro das colónias, príncipe imperfeito deste regime e do outro. Uma mensagem claro escuro
como o país que interpela.

Em 2017, oito alunos de história do 12.º ano do Liceu Camões aceitaram falar com o DN sobre a forma como
viam o passado imperial e colonial português. Para estranheza da própria professora, a maioria reproduziu o
mito de que Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura, em 1761 (altura em que foi abolida a escravatura
apenas no território de Portugal "metropolitano" e mesmo assim não completamente). Do mesmo modo,
quando questionados sobre o que sucedera aos escravos depois de em 1869 se ter dado a oficial abolição da
escravatura em todos os territórios nacionais, muitos ficaram interditos. Um afirmou: "Então, deram-lhes o
estatuto igual aos das outras pessoas."

Não é espantoso. A maioria esmagadora dos portugueses, atrevo-me a dizer - eis uma sondagem que gostava
de ver - continua a achar que "fomos os primeiros a abolir" e desconhece totalmente o facto de à escravatura
dos negros se ter seguido o trabalho forçado, só formalmente abolido em 1962. Essa realidade do trabalho
forçado, que em pouco se distinguia da escravatura, atravessou o final do século XIX, a Primeira República e
praticamente todo o Estado Novo. Nas leis, os negros classificados como "indígenas", ou seja a maioria da
população de Moçambique, Angola e Guiné, eram excluídos da cidadania e tratados como sub-humanos -
constatação que o próprio regime salazarista fez através dos seus documentos internos, como demonstra o
historiador José Pedro Monteiro em Portugal e a questão do trabalho forçado (Edições 70, 2018).

A esmagadora maioria dos portugueses, dizia, desconhece estes factos, e desconhece-os não porque eles
não estejam amplamente estudados por gerações de historiadores e investigadores académicos, com vasta
obra publicada sobre a matéria, mas porque disso pouco tem passado quer para a discussão pública quer, o
que é fundamental, para aquilo que se aprende na escola e se lê nos manuais do ensino básico e secundário.
E não passa porque haja uma determinação consciente e malévola de mentir, mas porque coletivamente nos
apegámos à mistificação.

O problema não é, ao contrário do que se possa crer, exclusivo de pessoas "pouco cultas". Ainda há poucos
meses um reputado constitucionalista português me asseverava que o "nosso" regime colonial não foi racista.
Quando lhe retorqui com alguns factos básicos - nomeadamente a instituição do trabalho forçado e a lei do
indigenato - respondeu-me "era assim também nos outros países". Só ficou sem argumentos quando lhe
lembrei que data de 1930 a convenção da Organização Internacional do Trabalho - só ratificada por Portugal
em 1956, com prazo de cinco anos para aplicação - obrigando os signatários a acabar com o trabalho forçado
no mais curto prazo possível, e que os próprios relatórios dos funcionários coloniais portugueses
comparavam, até ao final dos anos 1950, a realidade do trabalho forçado à da escravatura, descrevendo
castigos corporais com chicote e grilhetas e chegando a dizer que o primeiro era pior que a segunda, já que
nesta ao menos o dono não estava interessado em matar o escravo já que pagara por ele, enquanto no
trabalho forçado tanto lhe fazia: se morria pedia outro.

A ideia de que "não se pode olhar para a realidade do passado com os olhos de hoje", tão usada a propósito da
história imperial e colonial portuguesa, soçobra perante a evidência de que estamos também a falar de coisas
que se passaram há menos de 100 anos, quando outros países ocidentais já tinham iniciado a descolonização
e quando eram muitas as vozes, inclusive em Portugal e nas colónias, a criticar - e a lutar contra - o que se
passava. Muitos dos olhos de então já olhavam aquela realidade como a olhamos hoje, como iníqua, ilegítima
e brutal.

E sim, vem todo este grande introito a propósito do discurso de Marcelo neste 25 de abril - um discurso
notável, talvez o melhor que já lhe ouvi, e no qual teve a inteligência de sublinhar a sua condição de filho do
último ministro das Colónias e de um dos últimos governadores de Moçambique, testemunha privilegiada (em
vários sentidos) do ocaso do império e da ditadura colonial.
Esta assunção da sua condição pessoal - que aliás repetiria a seguir num encontro com capitães de Abril e
jovens, no qual também fez um discurso muitíssimo interessante - tem um propósito mais ou menos claro: o
de demonstrar, e bem, que o 25 de Abril é simultaneamente rutura e continuidade. Como ele, filho de um
alto dignitário da ditadura que faria parte da Assembleia Constituinte de 1975 e acabaria duas vezes
eleito presidente da democracia, os militares que fizeram o golpe "não vieram de outras galáxias, nem
surgiram num ápice daquela madrugada para fazerem história. Traziam já consigo a sua história." E a sua
história eram "as suas comissões em África, uma, duas, três, até quatro, (...) tudo em situações em que a linha
que separa o viver ou morrer é muito ténue."

Eram pois os soldados do regime colonial, algozes, ocupantes, matadores, até serem os heróis da libertação.
Sabemo-lo, ou devemos sabê-lo - mas saberá Marcelo distinguir entre quem retirou dessa experiência a
deliberação de acabar com ela e quem, como Marcelino da Mata, a cujo enterro foi há meses como
presidente, ou seja em nome de todos nós, se gabava dos seus crimes nessa guerra e louvava a ditadura?

É que esse é o problema: distinguir. E Marcelo, como a maioria esmagadora dos políticos da democracia,
sejam como ele filhos de homens da ditadura ou como António Costa de oposicionistas, têm mostrado
dificuldade nessa distinção e nesse olhar para trás, na capacidade de traçar a linha entre o que é
admissível e até celebrável e o que deve ser censurado - porque é preciso dizer que houve coisas
censuráveis e criminosas, por mais que tenham feito parte de um contexto.

Daí que seja tão bem-vinda a exortação do presidente para "que se faça história, história da história, que se
tirem lições de uma e de outra, sem temores sem complexos", o reconhecimento de que "é prioritário estudar
o passado e nele dissecar tudo, o que houve de bom e o que houve de mau. (...) Que saibamos fazer dessa
história lição de presente e de futuro. Sem álibis nem omissões (...)."

É isso mesmo. Ou seria, se a seguir não acrescentasse: "É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem
autojustificações ou autocontemplações globais indevidas nem autoflagelações globais excessivas (...)
nem apoucamentos injustificados." É de novo a preocupação com "a visão auto flageladora da nossa
história" que vimos recentemente em António Costa, preocupação extraordinária num país que até hoje se
encarniça em negar "o que houve de mau" ou chega mesmo a celebrá-lo; preocupação contraditória num
discurso presidencial que nos diz que temos de olhar a história também "pelo olhar dos colonizados".

Olharmo-nos pelo olhar dos "descobertos", dos submetidos, dos colonizados e dos seus descendentes não é
só dizer que "nunca houve um Portugal perfeito" - a melhor frase do discurso do presidente. É sobretudo
reconhecer o que desse passado mais que imperfeito resta em nós como país, denunciá-lo e combatê-lo.
Aquilo, suspeito, a que Marcelo chama "excesso".
Fomos sempre tão amigos dos pretinhos
A piedosa fábula do "colonialismo português de rosto humano" é uma falsidade histórica. Ver Marcelo
repeti-la no lugar do crime é uma vergonha

Todo o indígena válido das colónias portuguesas fica sujeito, por esta lei, à obrigação moral e legal de, por
meio de trabalho, prover ao seu sustento e de melhorar sucessivamente a sua condição social." Este é o artigo
primeiro do Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas, de 1914. O segundo
esclarece que o indígena que não trabalhe sem para isso ter motivo "de força maior" será condenado (é
mesmo esta a expressão) a trabalho.

É certo que se estabelece que este deve ser pago e nunca "superior às suas forças", mas igualmente se diz que
os indígenas não podem despedir-se e que se fugirem serão capturados e castigados - condenados a mais
trabalho. E, no artigo 47.º, lê-se: "Pelo facto do contrato celebrado perante a autoridade pública, os patrões
recebem os poderes indispensáveis para, quando e enquanto a autoridade o não possa fazer por si própria,
assegurarem o cumprimento das obrigações aceites pelos serviçais ou a repressão legítima da falta desse
cumprimento. No exercício desse poder ser-lhes-á permitido prender os serviçais que (...) se recusarem a
trabalhar (...), [assim como] evitar que cometam faltas e empregar os meios preventivos necessários para os
desviar da embriaguez, do jogo, e de quaisquer vícios e maus costumes que lhes possam causar grave dano
físico ou moral." Esta "necessidade" é explicada no preâmbulo do decreto: "Preciso é (...) pôr nas mãos dos
patrões direitos sem os quais não é possível manter a disciplina." Para tal, é-lhes permitido terem uma milícia
nas suas propriedades. E o regulamento específico para Moçambique, do ano anterior, prevê que usem "os
meios possíveis" para "melhorar a educação" aos indígenas, "corrigindo-os moderadamente, como se eles
fossem menores". Prescreve também o luxo de um dia de repouso semanal, mas para ser gozado no local de
trabalho, do qual o "serviçal" só se pode ausentar por quatro horas. Ainda assim, estes regulamentos falam de
contratos "livres" e "voluntários" e proíbem grilhetas e algemas - não fosse alguém confundir o regime com o
da escravatura.

Isso mesmo comenta, em outubro de 1922, o jornal de Lourenço Marques O Brado Africano, a propósito das
denúncias internacionais de práticas esclavagistas nas colónias do país que bradava ser pioneiro no
abolicionismo: "Não sabemos o verdadeiro nome disto mas... escravatura não é. Os administradores das
circunscrições mandam prender os cidadãos para serem alugados aos machongueiros (...). Isto claro que não
é escravatura (...) mas, os que estão de fora e que não conhecem os nossos processos administrativos vendo
fazer isto (...), sugerem que se trata dos tempos da escravatura..." Apesar de no artigo 223.º do Regulamento
de 1914 se ameaçar com prisão de seis meses a cinco anos "todo o português que publicar notícias falsas e
tendenciosas, procurando demonstrar a existência de trabalho forçado ou não livre nas colónias portuguesas",
O Brado e outras publicações foram relatando as atrocidades cometidas por administração colonial e colonos.
Em 1925, narra-se a sorte dos trabalhadores da Incomati Sugar Estates, a quem era dada apenas uma refeição
por dia, um "tijolo" de farinha de milho (em contravenção da lei, que obrigava a três refeições diárias, incluindo
peixe ou carne e legumes): "Morrem muitos", conta ao narrador um local. "Como pode calcular, por causa de
um preto doente, ninguém vai incomodar o doutor que está a grande distância. De vez em quando - continuou
ele - os polícias matam aí um homem acusado de roubar cana. Esse e outros como ele são "atirados" por aí
pois, como viu, o cemitério é só para brancos." Em 1927, o mesmo jornal noticia a entrada no hospital de 17
trabalhadores da Cotton Plantation de Changalane "num estado absolutamente horrível, de tal forma magros
que não podiam andar e com a boca apodrecida pelo escorbuto".

Em 1926, já na ditadura, fora publicado o primeiro Código do Indigenato, que recusa direitos constitucionais
aos "indígenas". No preâmbulo, fala-se de "mentalidade de primitivos", e proíbe-se-lhes a rescisão do contrato.
Na Constituição de 1933, são integrados num capítulo à parte, o "Acto Colonial", mesmo se em 1930 a
Organização Internacional do Trabalho adotara a Convenção sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, que fixa
cinco anos para a extinção do mesmo nos países signatários. Portugal assinou-a, mas só a ratifica em 1956;
entra em vigor na ordem jurídica nacional em 1957 - a quatro anos do início da guerra colonial.

Difícil crer que um professor catedrático de Direito, constitucionalista e, supostamente, incansável leitor, além
de filho do último ministro do Ultramar (1973/74), que fora governador de Moçambique de 1968 a 1970 e, entre
1944 e 1947, secretário de Estado do ministro das Colónias Marcelo Caetano, desconheça esta tenebrosa
realidade. É certo que, como os compêndios escolares, toda a tradição discursiva dos responsáveis políticos
prolongou na democracia a piedosa fábula de um Portugal "pioneiro do abolicionismo" e "farol do
humanismo". Mas ir a Gorée, ao principal entreposto de escravos de África, como fez o PR, repetir essa cartilha
de factos alternativos à guisa de pedido de desculpas é simplesmente vergonhoso.
Bem-vindos aos anos 20
Estava sol. Teria quê, 8 anos? Subi à árvore e olhei o céu. Não havia nuvens para amparar o azul. Aterrada
como o protagonista de A Origem, de Graça Pina de Morais, agarrei-me aos ramos para não ser sugada pelo
vazio sibilante do espaço, a consciência do nada, de ser e contar nada. Empoleirada em 2019, o mesmo
arrepio.

Em Terminator, a fábula de 1984 sobre a ameaça mortal da tecnologia, o guerreiro que vem do futuro diz a
Sarah Connor que com a máquina exterminadora não há diálogo possível: está ali para a destruir e não parará
até conseguir. O terror como a impossibilidade de razão e diálogo, tão presente em tantas das narrativas mais
populares de hoje - das sagas com mortos vivos (tantas, porquê?) às com aliens, passando pelas guerras entre
humanos e máquinas. Sagas que nos distraem do essencial que não queremos encarar, de que é entre nós
que estão os monstros, que é possível, entre nós, essa impossibilidade da razão, essa total ausência de
diálogo, essa crueldade que não chega a sê-lo, porque não nos reconhece existência, sentimentos ou
semelhança.

Na mesma semana, vi no Twitter a foto de um homem num restaurante no Brasil com uma braçadeira nazi e no
Facebook um post, de uma amiga que vive em Berlim, traduzindo uma carta de ódio dirigida em 1924 ao pintor
judeu Max Liebermann. "Parece o Facebook", disse uma visitante do Museu Liebermann quando acabou de a
ler. Parece. Em 1924, porém, quem lesse aquela carta não podia saber o que prefigurava. Hoje sabemos. E
serve de quê.
Rendas congeladas no país dos vistos gold
Há semanas, conheci um empresário do ramo do imobiliário nascido em Nova Deli que se mudou do Dubai
para Lisboa em novembro. Quando lhe perguntei porquê, respondeu que Lisboa é um dos lugares mais
atrativos do momento para o seu mister. E está radiante com a sua aquisição mais recente: um último andar
perto do arco da Rua Augusta com cento e tal metros quadrados. Custou-lhe 650 mil euros e conta vendê-lo
por um milhão. Quando lhe perguntei como achava possível que alguém desse isso por um apartamento
daquela dimensão e com aquelas condições (sem estacionamento, desde logo), respondeu: "É a localização.
Tens de perceber que isto não é para portugueses." E acrescentou: "O centro da cidade já não é para vocês."

Um milhão de euros por um apartamento que há quatro anos estaria no mercado por, no máximo, 350 mil, e
provavelmente ninguém quereria comprar? Claro que podemos suspeitar de que este simpático especulador
imobiliário é doido. Mas não só temos indicadores internacionais de que Portugal é um dos países da UE nos
quais o preço do imobiliário mais subiu em 2016 (7,9%), como, vivendo perto da Rua Augusta, vi em três anos
um aumento brutal nos preços. Na minha rua, um prédio de três andares esteve em 2013 à venda por 400 mil
euros; agora, seria uma pechincha por três milhões; há, na zona, quem alugue casas de 100 e poucos metros
quadrados por 200 euros/dia.

Para isto contribuiu a conjugação de uma série de fatores: um dos IMI mais baixos da Europa; um
enquadramento legal e fiscal que, motivado pela sede de investimento num cenário de crise, criou condições
escandalosamente favoráveis à compra por não nacionais da UE e ao Alojamento Local em detrimento do
arrendamento de longa duração; a explosão do turismo e o facto de Portugal ser um dos países mais seguros
do mundo; a entrega de vistos de residência europeus em troca de compras imobiliárias acima de 500 mil
euros (os vistos gold); uma conjuntura internacional favorável a este tipo de investimento, devido à
rendibilidade historicamente baixa de ações e taxas de juro. E, claro, a total incapacidade, pelos responsáveis
políticos, de antecipação das consequências da combinação de todos estes fatores - ou uma criminosa
indiferença pelas mesmas.

Indiferença que se mantém naqueles que recebem cada proposta de regulação do setor com brados de "vão
matar a galinha dos ovos de ouro", "foi o turismo que nos tirou da crise, querem dar cabo da retoma" e "é assim
em todo o lado, o centro é para os ricos". No campo oposto estão os que falam dos turistas com raiva a raiar a
xenofobia e de Lisboa central como se parte dela não tivesse sido considerada inabitável por várias gerações e
o processo de "gentrificação" que tanto execram não fosse também constituído pelos próprios - chegados há
pouco às zonas que agora querem defender "dos de fora".

Entendamo-nos: o turismo é bom e inevitável numa cidade tão deslumbrante como Lisboa. E é ótimo haver
estrangeiros que querem nela viver e investir. Mas não se pode admitir que tal faça do centro coutada de
especuladores e o despovoamento dos anos 70/80 se replique. É pois necessário encarar este terramoto com
muito pragmatismo, abandonando velhos estereótipos.

Que sentido faz, por exemplo, que enquanto se discute como favorecer o arrendamento de longa duração se
aprove uma penalização acrescida para quem o efetua há décadas, prorrogando, até 2022, o período de
congelamento das rendas anteriores a 1990? Não só os argumentos apresentados pela esquerda são falsos e
perversos - a lei já protegia idosos e deficientes, estabelecendo um teto vitalício, fixado em função do valor
patrimonial, para as rendas nesses casos e garantindo subsídios estatais para quem não as pudesse pagar, o
que significa que esta moratória serve apenas para poupar uns trocos ao Estado - como beneficia quem tem
capacidade financeira para comprar prédios inteiros a senhorios depauperados e despejar os inquilinos a
pretexto de obras, indemnizando-os com base nas rendas artificialmente baixas. É pois um presente perfeito
para especuladores.

Acresce que, enquanto se fala em benefícios fiscais para o arrendamento de longa duração, a lei que
recongelou as rendas não prevê qualquer desconto no IMI ou IRS para proprietários obrigados a fazer de santa
casa. Estamos pois conversados sobre a inteligência e a justiça desta medida, símbolo perfeito da
incapacidade de pensar a política das cidades e da habitação de forma integrada e coerente, sem complexos
de trincheira. Os mesmos complexos que fazem adiar a revisão das regras do arrendamento de longa duração
no sentido de este constituir um risco menor e portanto uma atividade mais atraente - o que implica facilitar
despejos em caso de não pagamento -, ou estabelecer limites ao alojamento local (quotas por zona, direito de
veto dos condomínios), pôr fim à vertente imobiliária dos vistos gold, mantendo-os só para atividades que
gerem emprego direto e alterar a legislação sobre mais-valias de forma a penalizar quem, como o meu amigo
indiano, está a especular com os preços. Em suma: é preciso adotar um mix de políticas vistas como "de
direita" e "de esquerda", uma espécie de pacto de regime para a habitação. Assim houvesse visão, coragem e
sentido do bem comum.
O Correio da Manhã ou o jornalismo como álibi do crime
É a própria direção do CM, ao defender a publicação do vídeo como "jornalismo do melhor, sem medo,
livre", a autoacusar-se de total desrespeito pelas regras, alardeando o seu sentimento de impunidade.
Alegar que esta mesma direção é responsável por "um historial importantíssimo" é dizer "rouba mas faz".
Por outras palavras, o CM pode ser corrupto e corromper tudo, desde que faça o trabalhinho.

Não: publicar um vídeo que circulava nas redes sociais, de um rapaz a meter a mão nos jeans de uma rapariga
enquanto à volta, num autocarro, outros rapazes e raparigas incitam e aplaudem, não é jornalismo. Um vídeo
não é uma notícia. Notícia - porque tem interesse público - é informar sobre existência do vídeo, perguntar às
autoridades se estão a investigar, procurar saber que autocarro era aquele, se o motorista sabia, tentar falar
com alguns dos presentes ou até com os protagonistas, enquadrar o ocorrido em termos legais - pode ser
crime? Se sim, qual? No caso de a jovem ser menor, quais as implicações? Filmar aquilo é lícito? E difundir?

Tentar responder a estas perguntas básicas seria jornalismo. Mas acarretaria trabalho e tempo. E desde logo
tornaria evidente que filmar sem autorização dos filmados e difundir sem ela é crime (artigo 199.º do Código
Penal, eventualmente associado ao 192.º, devassa da vida privada), agravado (197.º) se ocorrer por meio de
comunicação social, visar o enriquecimento do agente ou causar prejuízo a outra pessoa. Mais: que no caso
de a jovem ser menor o filme entraria na categoria pornografia de menores (176.º). Ou seja: fazer jornalismo
implicaria tornar claro que ao publicar o vídeo o CM estaria a incorrer em vários crimes. Informar não seria
compatível com publicar. Portanto publicou-se. E publicou-se aquilo que o CM, apesar de nada ter feito para
se inteirar sobre o sucedido, apresentou como sendo o filme de um crime: "Rapariga filmada e abusada no
Porto e ninguém fez nada." Publicitou-se o vídeo de um crime sexual, revitimizando sem piedade aquela que se
apresenta como vítima, obrigada a rever o ocorrido e a confrontar-se com os comentários do público. Difícil
encontrar adjetivos para tanta crueldade, para a perversidade de, ao mesmo tempo, escrever "e ninguém fez
nada".

Acresce que, ao contrário do que a direção do CM pretende na resposta às críticas, quando o vídeo foi
colocado no site todos os rostos estavam nítidos à exceção do da rapariga em causa - e mesmo essa seria
identificada por quem a conhecesse. Só mais tarde as imagens foram tratadas, desfocando por completo os
intervenientes.

Óbvio que, para além de incorrer nos vários crimes enunciados, o CM violou praticamente todas as regras
jornalísticas. Inundada de queixas, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social instaurou um
procedimento; o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas censurou o CM e apelou a que retire o
vídeo do site (ainda lá está, contabilizando 15 889 partilhas - um êxito). Mas a Comissão da Carteira de
Jornalistas*, que tem o poder de zelar pelo cumprimento da lei que rege a profissão e cujo presidente foi tão
lesto a gritar crime quando Ronaldo mandou o micro da CMTV ao lago, está como morta. E da PGR nem um
pio. O facto de ninguém lhes ter perguntado nada ajuda: não houve um único artigo noticioso nos media
portugueses - um único - sobre o assunto. Deve ser porque não tem importância nenhuma, não é?

Mesmo na opinião publicada impera o silêncio. Cinco dias depois (escrevo no domingo) contei apenas duas de
jornalistas no ativo. Destas, a mais assertiva é a de Diogo Queiroz de Andrade, no Público: "Aquilo não é
jornalismo", diz, afirmando que o desrespeito pelas regras evidenciado pelo CM na publicação do vídeo é, não
uma exceção, mas o método do projeto. No mesmo sentido vão os colunistas Daniel Oliveira, no Expresso,
e Pedro Marques Lopes, no DN: verberam a conivência silenciosa que tem, dos jornalistas à justiça e políticos
(incluindo os que escrevem e colaboram com CM e CMTV), passando pela regulação, permitido, credibilizado
e abençoado os desmandos do CM. E, notável, no próprio CM, Ricardo Valadas, presidente da Associação
Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da PJ, repudia a publicação do vídeo, caracterizando-a
como "violência gratuita", "exploração comercial" e "venda de conteúdo a todo e qualquer preço".

É tudo. E é normal. Porque quem ataca o CM sabe o que o espera. Veja-se a tese de João Miguel Tavares: sim, o
CM "errou" ao publicar o vídeo mas é "abusivo" caracterizar o projeto a partir deste e outros "erros". Porquê?
Porque, diz JMT, tem "um historial importantíssimo no escrutínio do poder político e na denúncia da
corrupção". Sucede que é a própria direção do CM, ao defender a publicação do vídeo como "jornalismo do
melhor, sem medo, livre", a caracterizar o seu entendimento e prática e autoacusar-se de total desrespeito
pelas regras, alardeando o seu sentimento de impunidade. Alegar que esta mesma direção é responsável por
"um historial importantíssimo" é dizer "rouba mas faz". Ou seja, não interessam os meios, quantos atropelos
comete, crimes, atentados éticos, vidas destruídas. Por outras palavras, o CM pode ser corrupto e corromper
tudo, desde que faça o trabalhinho. Pode até financiar-se à custa de vídeos de miúdas a ser abusadas, e ai de
quem o atacar por isso: JMT e o CM cá estão para nos acusar de conluio com corruptos e "ódio".

Perguntou Bruno Nogueira, no Mata-Bicho da RDP: se não se reage a sério, com consequências, a isto, vai-se
reagir a quê? Vamos esperar que o CM mate e viole para pôr os vídeos no site?" Boa pergunta. E a resposta é:
sim, vamos.

Nota: Tenho, a correr nos tribunais, processos contra a Cofina, empresa proprietária do Correio da Manhã e da
CMTV.

*Ao contrário do que escrevi, a Comissão da Carteira de Jornalistas também abriu um procedimento em
relação à divulgação do vídeo pelo CM e CMTV. A nota correspondente está no site da CCPJ com data de 18 de
maio. Tendo consultado o site a 17 - data em que as outras instituições se manifestaram - e nada tendo
encontrado, não havendo, posteriormente, qualquer notícia respeitante à reação da CCPJ, presumi que esta
não iria, perante mais este atropelo às regras da profissão, reagir. Enganei-me. Pelo facto, peço desculpa aos
leitores e à CCPJ.
Cavaco de Rio Maior
Cavaco tem razão. Nunca em 40 anos o PM indigitado após legislativas deixou de ser o líder da força política
mais votada; os compromissos ratificados pelo país devem ser respeitados (desde que não ponham o país em
causa); a esmagadora maioria dos portugueses que votaram escolheram partidos europeístas (PSD, PS e
ultimamente também o CDS) que defendem a permanência de Portugal na NATO e no euro. Sucede também
que em 40 anos nunca tinha havido uma maioria viável da qual não fazia parte a força mais votada. E que a
esmagadora maioria dos portugueses escolheram partidos (PS-BE-PCP) que defendem o respeito pela
Constituição, coisa que da PAF ninguém pode dizer - o que, estranhamente, não parece preocupar o PR. E não
preocupa porque ele próprio resolveu fazer de conta que a Constituição não existe.

É que, como toda a gente sabe ou devia saber (anda aí muita a fingir-se de parva) a Constituição não diz em
lado algum que o indigitado tem de ser o líder do partido mais votado e muito menos que o PR pode colocar
partidos que representam 20% dos eleitores fora do quadro governativo quando, ainda por cima pela primeira
vez - o que um Presidente democrático e verdadeiramente de todos os portugueses festejaria -, os partidos em
causa querem entrar nele. Entendamo-nos: o acordo entre o PS, o BE e o PCP apresenta debilidades, sendo a
mais notória aquela que ontem transpirou - BE e PCP não tencionam fazer parte do governo. Opção pouco
compreensível e que denota uma reserva em relação à plena assunção de responsabilidade que deixa o PS, e
um governo PS, numa situação frágil e perigosa. Se Cavaco tivesse invocado apenas isso como motivo para
escolher indigitar Passos, agregando a esse fundamento o "costume" e jogando na possibilidade de haver uma
cisão no PS, nada a dizer. Mas Cavaco, invocando os sentimentos dos mercados e "das instituições
internacionais nossas credoras", fez questão de dizer que há no Parlamento duas forças políticas "intocáveis",
às quais não admite sequer prefigurarem-se como sustentação de um governo.

Ou seja: Cavaco não usou justificações democráticas e constitucionalmente sustentadas. Pelo contrário,
adotou uma postura autocrática, tornando claro a uma parte do país que o seu voto e ideias cheiram mal -
parte do país que, curiosamente, serviu para derrubar em 2011 um governo contra o qual reclamou "um
sobressalto cívico". Para Cavaco, BE e PCP só dão jeito para deitar abaixo governos, nunca para os sustentar. E
se os portugueses decidiram nas urnas virar a página, Cavaco cá está para lhes emendar a mão.
Independentemente da vontade dos eleitores, o homem que ocupa Belém com a mais baixa votação e pior
aprovação de sempre quer impor a sua, brandindo, como tantos, de Avillez a Barreto, fizeram nos últimos dias,
a sua moca de Rio Maior. Ganha a verdade e a clareza, se tivéssemos dúvidas. Mas alguém devia lembrar ao
PR que quem subiu à Fonte Luminosa foi o PS, e Costa esteve lá.
O "killer" Ventura e a normalização da mentira
Quando Ventura caluniou uma família negra em direto na TV, nem o contendor Marcelo nem quem
comentou e noticiou a seguir relevaram o facto. Pouco pode pois surpreender que, um ano depois, a sua
tática de mentira e lamaçal seja consagrada como "eficaz" e haja até quem graças a ela o apelide de
"killer".

E a "questão da mentira", como deve ser valorizada? A pergunta é do pivot que dirigiu, na SIC-N, a roda de
comentadores que se seguiu ao confronto entre Catarina Martins e o líder do Chega deste domingo à noite.
Ninguém de entre os três - Ângela Silva, Ricardo Costa e Pedro Marques Lopes - respondeu à primeira, pelo
que o pivot insistiu. Aí, o diretor da SIC afirmou: "A mentira existe sempre na política".

Depois de um debate em que Ventura falara de "polícias com reformas de 290 euros", de "Mercedes à porta de
quem recebe o RSI" e restante habitual chorrilho de aldrabices odientas, e de termos visto a jornalista
do Expresso Ângela Silva decretar que o deputado do Chega é "um killer" e "ganhou" a uma Catarina Martins
"quase frágil", o encolher de ombros normalizador de Ricardo Costa garantiu-nos aquilo que só não sabíamos
se muito distraídos nos últimos tempos: a maioria dos jornalistas e comentadores decidiu tratar Ventura
como se fosse "um político igual aos outros", analisando as suas "performances" sem se deterem sequer
a contradizer as falsidades que constituem toda a sua retórica. E até, como se constata pela opinião de
Ângela Silva, elogiando a sua "técnica" - como um júri de boxe que dá mais pontos a quem leva uma
marreta para o ringue.

Confesso que não sei bem interpretar esta posição, sobretudo quando assistimos simultaneamente à
profusão de "fact-checking" nos media. Será que é por esse motivo, porque há "espaços para fazer a destrinça
entre o verdadeiro e o falso", que os comentadores e jornalistas se acham desobrigados de sublinhar - ou
sequer valorizar - mentiras quando as ouvem? Será que acham tão óbvio que Ventura mente que já nem vale a
pena assinalar, porque toda a gente percebe? Será que, por ignorância ou desatenção, não reparam que
mente? Ou será que, como indicia a resposta de Ricardo Costa, acham que não mente mais que "os outros
políticos", ou que a política implica mentir e portanto quanto mais mentir mais "killer" é?

É tanto mais perplexizante esta atitude quando na mesma ocasião Pedro Marques Lopes sublinhou a
importância de desmontar as mentiras de Ventura e lamentou que Catarina Martins o não tivesse feito - sendo
óbvio que num modelo de debate de 25 minutos como é (incrivelmente) o escolhido pelas TV se favorece
quem manda bocas e se impossibilita qualquer demonstração sistemática de falsidade.

Entendamo-nos: se debater com um demagogo que se especializa em dizer agora uma coisa e daqui a bocado
o seu contrário (é ver as cambalhotas que o programa do partido tem dado nos últimos meses), em acusações
torpes, em chistes, em interrupções e em invenções é sempre muito difícil, em 25 minutos é um tormento. A
meu ver, Catarina Martins escolheu a postura mais eficaz: ignorar serenamente a maioria das mentiras e
ataques, não entrar em diálogo e escolher um ou dois momentos e temas fulcrais para expor a demagogia e a
mentira e sublinhar a sua diferença face ao oponente - fê-lo, e muito bem, com o racismo e com o Rendimento
Social de Inserção. Ao contrário do que sustentou Ângela Silva, a postura da coordenadora do Bloco não foi
"frágil"; foi tão forte e superior que, como bem assinalou Anabela Neves na CNN - corroborada por
Sebastião Bugalho -, deixou Ventura nervoso, aflito até. O líder do Chega não está habituado a não
conseguir irritar os adversários e precisa da lama para se sentir à vontade; assim ficou a rebolar sozinho.

Mas, admitindo naturalmente que haja diferentes opiniões sobre como melhor enfrentar Ventura num debate
deste tipo (sobretudo quando se disputa eleitorado, o que não é o caso de Catarina Martins), a questão é que a
tarefa de o combater e àquilo que representa não compete apenas aos adversários políticos - é antes de mais
até, defendo, do jornalismo. É aos jornalistas que compete contextualizar, expor falsidades, repor a verdade - e
perante alguém que se especializa em ódio e mentira e na destruição da democracia, chame-se Trump ou
André Ventura, não dá para entrar na desculpa da falsa "objetividade", muito menos para namoros a "killers".

Nos EUA, há um ano - a 6 de janeiro - viu-se no que pode resultar a sistemática efabulação odienta, com uma
multidão de hooligans trumpistas a invadir o parlamento. No mesmo exato dia, em Portugal, Ventura, no
debate televisivo com Marcelo, mostrava a foto de sete pessoas negras com o Presidente e acusava-o de,
naquela imagem, estar com a "bandidagem". Nem Marcelo nem a jornalista em estúdio - Clara de Sousa -
reagiram ao ataque racista. O mesmo sucedeu nos comentários que se seguiram nas TV e nas notícias sobre o
debate: não dei conta de alguém sublinhar a gravidade e a natureza do que ali se passara.

Não há duas interpretações possíveis para esse facto. A verdade é que ninguém, entre políticos,
comentadores e jornalistas, achou assim tão grave que Ventura tivesse usado a imagem daquelas pessoas,
por serem negras e pobres, como símbolo daquilo que diz combater e como arma contra o adversário.
Ninguém se deu sequer ao trabalho de saber se alguma coisa do que ali afirmou (acusou aquelas pessoas de
"terem vindo para Portugal para beneficiar do Estado Social", de terem "atacado uma esquadra da polícia" -
tudo falsidades absolutas) correspondia à verdade: o que terá interessado é se "foi eficaz", se conseguiu o seu
intento de embaraçar Marcelo, se foi ou não "killer".

Não tivesse existido um processo vitorioso em tribunal contra Ventura e o Chega e este episódio repugnante,
que define o partido e o seu líder, mas também o jornalismo e o comentariado nacional, teria sido esquecido
por quase todos. Uma democracia em que isto sucede, em que a mentira, a calúnia e o ódio passam como
normalidade, sem indignação nem refutação, e quem os usa como "vencedor", uma democracia que não
grita ao racismo mais gritante e na qual não entrar no jogo do demagogo é ser "frágil", é uma democracia
a precisar de cuidados intensivos.
A barba de Paulo Pedroso
Para muitos, nenhuma decisão de nenhum tribunal fará qualquer diferença. Têm a sua opinião sobre
Paulo Pedroso. E não precisam de provas. Como quem o investigou e o juiz que o pôs na prisão.

Em 2009, um amigo contou-me que fora acompanhar Paulo Pedroso na sua campanha autárquica em Almada
e que quase andara à pancada com um homem que aparecera a insultar o candidato. Tinham passado seis
anos sobre a sua prisão preventiva, em maio de 2003, por suspeita de abuso sexual de menores no caso Casa
Pia, sobre as acusações nos tabloides e nos outros que se não eram tabloides imitavam muito bem, sobre as
transcrições de escutas sem sentido, sobre as "certezas" que depois se transformaram em dúvidas e depois
em nada; tinham passado seis anos sobre a decisão da Relação de Lisboa, em outubro de 2003, que o
libertou, considerando que "os indícios recolhidos são claramente insuficientes para imputar ao acusado o
cometimento de quaisquer crimes concretos" e concluindo: "Isso é suficiente para anular a detenção
preventiva a que foi sujeito e ordenar a sua libertação imediata." E tinha passado um ano sobre a sentença do
Tribunal de Lisboa (anulada em 2010 na Relação) que caracterizava a ordem da sua prisão preventiva e a
decisão, em julho de 2003, de a manter, como tendo-se fundamentado num "erro grosseiro" na apreciação dos
elementos de prova e ditava que lhe fosse atribuída uma indemnização de 131 mil euros.

Tinha passado tudo isso, mas ainda havia quem o insultasse na rua. Como há, nove anos depois, quem seja
totalmente indiferente a qualquer decisão de qualquer tribunal que não confirme aquilo em que acredita. Uma
imputação do tipo da que foi feita a Paulo Pedroso tem este caráter indelével e terrível - reforçado pela prisão
decretada. Porque as pessoas concluem que se houve prisão foi porque havia provas; muitas nem sequer
conhecerão a diferença entre prisão preventiva e prisão por condenação, e a esmagadora maioria não terá
qualquer curiosidade em saber os exatos motivos da decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que
na semana passada reconheceu a ilegalidade da prisão de Pedroso e condenou o Estado português. "Acham"
e acabou

A atroz injustiça disto não é sanável por qualquer decisão e decerto não será colmatada por qualquer
indemnização. Paulo Pedroso era um jovem político brilhante e em ascensão. Foi, enquanto secretário de
Estado do governo Guterres, o teórico e feitor do Rendimento Mínimo Garantido, tem como sociólogo
pensamento estruturado sobre as questões da desigualdade e ideias para a combater, e a sua valia como
técnico afere-se na carreira internacional que prosseguiu. Faz-nos falta. Aquilo que o acórdão do TEDH - como
já o fizera o Tribunal da Relação de Lisboa em 2003 -- descreve como uma decisão de prisão preventiva
infundamentada, quer pela forma como foi identificado (através de uma pequena foto pouco nítida quando
outras fotos suas, mais nítidas, eram mostradas às alegadas vítimas sem que estas o "reconhecessem"), quer
pela falta de credibilidade e pela incerteza das acusações dos jovens que teriam alegadamente sido suas
vítimas, quer pelo facto de ter sido justificada a existência de perigo para a investigação com ações de
terceiros (conversas escutadas entre companheiros de partido), destruiu a sua carreira política. É, como disse
anteontem ao Expresso, "um estigma que perdurará para sempre". Do resto - do sofrimento pessoal e familiar
(quando foi preso tinha filhos pequenos) prefere não falar: "O lado íntimo do sofrimento deve permanecer
íntimo."

Podemos, é claro, ser insensíveis a isto. Não ser capazes de nos imaginar no lugar de Paulo Pedroso ou de
qualquer outra pessoa acusada sem provas, caluniada e enxovalhada nos media, insultada nas caixas de
comentários de jornais e na rua, olhada de lado nos cafés, restaurantes, supermercados, transportes
públicos, qualquer lugar onde se cruze com gente, a ponto de decidir sair do país, trabalhar lá fora. Podemos
ser incapazes de entender o desespero de quem sabe que não tem como demonstrar a sua inocência porque a
maioria não se dará ao trabalho ouvir ou ler o que se passou realmente e acha muito mais engraçado mandar
bocas. Podemos ser uns cepos de insensibilidade e falta de empatia, a quem não passa pela cabeça que
aquilo que sucedeu a Paulo Pedroso é uma incomensurável tragédia pessoal - e a quem o seu estoicismo não
comove.

Podemos isso tudo. E assim não nos darmos conta de esta ser também uma tragédia nossa. A de termos
media que desde 2003 se especializaram nas acusações sem provas, coadjuvados por um cada vez maior
grupo de comentadores para quem o Estado de Direito é uma maçada, uma desnecessidade até. A de termos
um ministério público que continua a ostentar em alguns casos interpretações romanceadas, canalhas,
voyeuristas e preconceituosas de "provas" e chegou agora ao ponto de permitir -- se nada faz para impedir nem
punir, permite -- a exibição televisiva de vídeos de interrogatórios. A de termos uma justiça na qual algo como o
que fizeram a Paulo Pedroso sucede e que não é capaz de o reparar, de tornar claro que é inadmissível, que
tem de haver consequências e que, sobretudo, não pode mais acontecer. O que, claro, quer dizer que não
temos justiça. Mas, está visto, não nos faz falta: temos a nossa opinião. Como aquela pessoa que em 2003 me
disse: "Já viste que ele não tem barba? Tem mesmo cara de pedófilo."
No limite, Tancos é uma ilusão de ótica
Em arte, chama-se <em>trompe-l'oeil </em>- à letra, "enganar o olho". Roteiro de falsetes numa história
que nem bem inventada foi.

Em tempos havia enigmas assim nos jornais. Um cadáver encontrado num quarto com as janelas e porta
fechadas por dentro mas uma faca espetada nas costas: suicídio estava fora de questão, mas como entrara e
saíra o assassino? À la Hercule Poirot ou Sherlock Holmes, os leitores deveriam espremer as meninges para
tentar deslindar o crime.

Agora, temos um passatempo destes para o país todo. Houve um roubo? Roubaram o quê? Devolveram o que
roubaram? Os roubados colaboraram na devolução e protegeram os ladrões? Quem afinal sabia da marosca?
E a marosca está só na devolução ou devemos pôr toda a história em causa?

Porque já tivemos muitas versões - até do que foi roubado. Em julho do ano passado, menos de 15 dias após o
"roubo", o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general do Exército Pina Monteiro, afirmou que
parte do material furtado estava "para ser abatido", e outra parte não tinha condições para ser usada de forma
eficaz. Ou seja, os ladrões, que claramente sabiam tudo sobre o funcionamento da base e do material que lá
estava e onde, tinham roubado coisas, na maioria, imprestáveis? Quê, por piada? Mais de um ano depois,
tendo o material sido alegadamente recuperado (com uma caixa de petardos "a mais", disseram-nos, e 1450
munições a menos), tal confirmou-se? Não sabemos.

Não sabemos nada. Não sabemos porque é que foram feitos dois buracos na rede da base de Tancos - um
não chegava? Não sabemos como foi possível 300 quilos de material serem levados, supostamente a pé,
num trajeto de 420 metros, até a um desses buracos, ainda por cima - se as imagens da "recuperação" do
material postas a circular pelo exército são verdadeiras -, em paletes de madeira, coisa maneirinha, boa
de levar às costas. Não sabemos como é possível que numa base onde a chefia sabia que tinha
videovigilância, sensores e eletrificação da cerca inoperantes não existiam sentinelas nem rondas
eficazes e não tenha havido disso consequências (à exceção de três processos disciplinares a baixas
patentes).

Não percebemos como pode haver uma operação fantoche para "recuperar" as armas com acusações
cruzadas entre três militares do Exército, um dos quais, Luís Vieira, ex-diretor da Polícia Judiciária Militar (preso
preventivamente) e outro Martins Pereira, o ex chefe de gabinete do ministro e atual adjunto do chefe do
Estado-Maior do Exército - e este último, Rovisco Duarte, que todos nomeou e superintende, ficar mudo e
quedo como se não fosse nada com ele.

Não percebemos como pode o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, almirante Silva Ribeiro, calar-se
ante toda esta fantochada.

Não percebemos como pôde o ministro agora demitido dizer, em setembro de 2017, em entrevista ao
DN/TSF um mês antes da "recuperação", esta frase sibilina - "No limite, pode não ter havido furto
nenhum. (...) Podemos admitir que o material já não existisse e tivesse sido anunciado... e isto não pode
acontecer" -, uma frase em que põe a hipótese de todo o caso ser uma fabricação, uma sabotagem, e
portanto um ato de traição perpetrado no seio do Exército, e isso não ter consequências.

Tanto mais que fabricação e sabotagem houve, parece hoje incontroverso, pelo menos na "recuperação". E, a
ser assim, há algum motivo para crer que os militares confessamente envolvidos nela só nessa estiveram
envolvidos? Sobretudo quando os próprios, alegando "honra" e "interesse nacional" e "espírito de sacrifício"
dizem coisas espantosas.

Por exemplo o ex-porta-voz da PJM, Vasco Brazão, atualmente em prisão domiciliária, garante que esteve, no
fim de 2017, numa reunião com o ex-diretor da PJM e o então chefe de gabinete do ministro, na qual foi
entregue um memorando com toda a história da inventona ao chefe de gabinete (com o objetivo, alega, de o
ministro retirar a PJ do rasto - mas, ainda que mal pergunte, ao CEME, seu chefe direto, nada teriam dito?).
Contraditado quer pelo ex-diretor da PJM quer pelo ex-chefe de gabinete, Brazão diz, segundo o Expresso de
ontem, que tem o memorando em causa e que vai dá-lo ao MP para ser analisado em busca de
impressões digitais. Portanto o memorando entregue afinal ficou com ele? Já o atual adjunto do CEME
certifica ter dado a "documentação verdadeira" ao MP. Ou seja, levou-a consigo quando saiu do
ministério? Isto agora é assim, levam-se papéis do governo para casa quando se sai do governo e ainda se
tem a lata de confessar?

"Um dia havemos de saber o que cada um sabia sobre esta história de Tancos", disse, um dia antes da
demissão de Azeredo, e tão sibilino como o seu ex-ministro, o PM no debate quinzenal. Talvez venhamos a
saber, talvez não. Mas já sabemos isto: da desonra o Exército não se livra. E da suspeita de que, como todos
antes de si, não sabe como pôr as Forças Armadas e as forças ocultas que nela medram na ordem, o governo
não se safa.
A Zippy, o Brunei e os sagrados corações

Nunca deixa de espantar o nível de paradoxo dos que em nome da "biologia", da "natureza" e de "deus"
querem impor às crianças a rigidez dos papéis de género e uma orientação sexual "certa". Têm medo de
que aquilo em que creem seja mentira, não é?

No mesmo mundo em que nesta semana o Brunei muda a lei para começar a lapidar até à morte
homossexuais e adúlteras, no Facebook português assistimos a uma flash mob na página da marca de
roupa Zippy por causa do lançamento de uma linha ungendered, ou seja, "sem género", para crianças,
com acusações de "agenda LGBTI", "erotização das crianças", "ativismo radical", "tentativa de mudar a
biologia" (juro) e desmaios perante a hipótese de "pôr meninos a usar saias" (não sendo o caso da coleção,
estranha-se que gente que se arroga "da família" não tenha em casa fotografias de antepassados; basta recuar
umas décadas para constatar que neste mesmo hemisfério e país - obviamente noutros, e sem ser preciso
lembrar os padres, há homens que usam saia diariamente - meninas e meninos usavam vestidos e não consta
que tenha havido drama por isso).

A coincidência destes dois acontecimentos é tanto mais interessante quando a mob que ataca a marca de
roupa o faz na perspetiva da vitimização, alegando que a existência daquela coleção é um sinal de uma
"ofensiva" - a terrível ofensiva daquilo a que chamam "ideologia de género" e que, já se sabe, "quer destruir a
família". Não é demais sublinhar que num mundo em que a verdadeira ideologia de género - aquela que
visa impor rígidos papéis de género a raparigas e rapazes e uma única orientação sexual, a hetero - literal
e ostensivamente mata, existem almas a, sem pudor, atribuir a quem combate essa ditadura intuitos
persecutórios e exterminadores.

Há mesmo alguém, entre aquelas dezenas de comentários furibundos, que escreve: "Não nos vão impedir de
pensar como Deus."

Esta extraordinária frase, que mereceria por si só uma monografia, tem tanto de potencial cómico como
mortífero. Se o comum é que quem crê na existência de uma divindade lhe atribua, para além de
omnisciência, uma autoridade indisputada e total sobre tudo, aqui vemo-nos perante a arrogância de se dizer
que não só se conhece o pensamento da divindade como que se é seu legítimo intérprete - e portanto agente,
ou mão de deus. Tal qual os governantes do Brunei ao decretarem a morte - e a morte pela multidão, pública,
lenta e o mais dolorosa possível - a todos os que infrinjam aquilo que ditam ser contrário ao "pensamento de
Deus".

É portanto esse "pensamento divino" que determina quais as "condutas sexuais corretas", logo "naturais". E é
por serem errados e portanto antinaturais, e terem de sofrer por isso, mas também por constituírem uma
espécie de potencial contaminante dos "corretos" que os homossexuais e as adúlteras têm de ser
apedrejados até morrer; porque a forma horrível e espetacular como serão exterminados, simbolizando
a repugnância castigadora da divindade, deve ser um exemplo para todos. Claro que, perante este
raciocínio, ocorre perguntar: se há os "naturais" e os "não naturais", de onde vêm, senão da "natureza", os
segundos, e porque é que é preciso fazer deles exemplo? Será que quem o faz acredita que se não assustar os
"naturais" eles se convertem ao "não natural"?

Deste lado do mundo, a perspetiva que anima a pequena multidão de arremessadores de pedras à marca
de roupa é igualmente paradoxal: não basta que, num mercado com múltipla oferta, não comprem para
os seus filhos, sobrinhos e netos; a linha de roupa tem de ser exterminada porque é um exemplo
perverso, um contaminante, um vírus, um perigo à solta. Não se pode deixar aquela roupa existir e é
mesmo preciso exigir à marca abjuração, de baraço ao pescoço: "Um pedido de desculpas e defenderem
publicamente a família matriz judaico-cristã no mínimo", reclama uma das comentadoras.

O paradoxo é totalmente exposto neste outro comentário: "As crianças nascem rapazes e raparigas, e não
vai ser uma moda estapafúrdia que vai mudar a biologia, a ciência e a evolução antropológica do ser
humano." De facto, do ponto de vista de quem considera que tudo é regido por um ente superior e que existe
uma separação intransponível, biológica e divinamente determinada entre raparigas e rapazes, não faz o
menor sentido achar que "uma moda estapafúrdia" mude alguma coisa. Que raio de deus ou natureza se
deixaria derrotar por calções e T-shirts coloridos ou um logo com um arco-íris? Que deus ou natureza
precisa de um índex de roupa, de lapidações e de terror, de toda uma máquina repressiva e excludente
ou seja, de cultura -, para se impor?

Nem de propósito, nesta mesma semana um colégio católico, o do Sagrado Coração de Maria, anunciou no
Facebook um ciclo de debates para alunos do secundário com quatro perguntas. Todas merecem análise, mas
o espaço e o tema implicam relevar esta: "Será que nascemos geneticamente gays ou é algo que resulta de
uma conjuntura externa?"

Devido à polémica, o post foi retirado; o colégio veio depois explicar que as perguntas tinham sido formuladas
de "forma extremada" com base em "problemáticas de atualidade". Ora os únicos círculos em que a origem da
homossexualidade é uma "problemática", e "de atualidade", são aqueles nos quais, precisamente, a
homossexualidade é problemática e portanto há quem se preocupe em perceber de onde vem e porquê - e
como, claro, pode ser "debelada" ou "curada". Sem se dar conta de que fazer esta pergunta expõe a verdadeira
dúvida: "Será que nascemos geneticamente heterossexuais ou é algo que resulta de uma conjuntura externa?"
Porque é isso que realmente esquenta estas cabeças, ou jamais se preocupariam com linhas de roupa ou
ações de educação para a igualdade protagonizadas por jovens LGBTI nas escolas. O seu terror é que se
deixarem as crianças em paz - se lhes derem liberdade e as deixarem pensar pelas suas cabeças - elas
sejam o que quiserem. É o que se chama, creio, uma crise de fé.
O Portugal novo e o Portugal antigo
50 anos depois de Abril, o país entra num novo ciclo, disse o PR no sábado. O que queria dizer ao certo
deveria ter agora de explicar, como ao resto que, ventríloquo, nos sussurra no Expresso. Até porque o que
se vê é uma irrupção do “Portugal antigo” - aquele que em 2016 garantiu “estar sempre à espreita”.

Nunca mais esqueci e já citei muitas vezes a prédica que o candidato Marcelo Rebelo de Sousa fez, na
campanha presidencial de 2016 (a da sua primeira eleição), numa escola secundária da área metropolitana de
Lisboa. Nela, além de elencar os aspetos em que considerava que a democracia portuguesa ainda
apresentava deficiência - como o estatuto da mulher e a discriminação das minorias/racismo -, garantiu que
“o Portugal absolutista miguelista, o Portugal ‘velho’ derrotado no século XIX pelos liberais”, continua a
existir, “ainda cá anda, sempre à espreita, e de vez em quando tem irrupções.”

Seis anos depois, em maio de 2022, o já presidente voltaria ao assunto, reformulando: “É tudo muito difícil
numa pátria em que a monarquia absoluta durou do quase início da sua história até ao quase final do século
XX”. Ficou assim claro que para o PR esse Portugal velho, que em 2016 dizia derrotado pelo liberalismo,
se havia afinal prolongado até ao estertor do salazarismo, só recuando ante o advento da democracia.

Impossível não recordar estas palavras quando, após o PR ter sábado, na comunicação pré-eleitoral ao país,
falado de “um ciclo que, nestes 50 anos do 25 de Abril se fecha, e outro que se abre”, deparamos com um
crescimento exponencial da extrema-direita, que quadruplica os deputados.

De que “fim de ciclo” falava Marcelo, e que “novo ciclo” pressagiava? Era apenas (um apenas com muitas
aspas), como lemos esta segunda-feira no Expresso, pela pena da sua habitual porta-voz jornalística (Ângela
Silva), a expressão, pelo presidente da República e em pleno dia de reflexão, portanto ao arrepio das
exigências do cargo e de toda a decência, do seu desejo de vitória da AD (aliás escancarado no referido
artigo: “Conseguiu evitar o que mais temia - uma nova vitória do Partido Socialista que colasse as suas
duas dissoluções do Parlamento a duas derrotas da sua família política”), ou o PR estava a prenunciar
uma “irrupção” do tal Portugal antigo?

Seria o mínimo que o PR se explicasse, e já agora fosse por uma vez questionado, de preferência com
microfones e câmaras à frente, sobre os recados que passa a vida a dar através do Expresso. Não só sobre o
que ali se diz das suas óbvias predileções políticas como sobre os conselhos que dá, publicamente, ao líder
da AD. O qual, a seu ver (ainda segundo o citado artigo desta segunda-feira), deve ir “avançando com medidas
que não dependem de aprovação no Parlamento (negociar com os polícias, por exemplo)” e saber “aproveitar
o excedente deixado por Fernando Medina para acudir a urgências” para “chegar ao Orçamento de Estado do
próximo ano em condições de se vitimizar caso lhe derrubem a lei mais importante do ano”. Ou seja, temos o
PR a dar, urbi et orbi, a tática ao seu partido com vista a alcançar um melhor resultado eleitoral, não nos
poupando sequer ao reconhecimento de que o PS, cuja vitória tanto terá temido, foi tão incompetente
que até deixou um muito útil excedente para o PSD instrumentalizar (o descaramento, deus).

É realmente espantoso assistir-se a este espetáculo e constatar que quase toda a gente, entre jornalistas e
analistas, finge que não percebe o que se passa, mantendo face ao PR e ao seu cargo uma reserva solene
de reverência da qual ele, como se vê, está longe de comungar e, logo, merecer.

Como se ser Presidente da República numa democracia eximisse alguém de crítica e sindicância, colocando-
o no lugar intocável reservado aos monarcas. Como, lá está, se esta figura dos políticos eleitos para o mais
algo cargo da nação os fizesse necessariamente parte do tal Portugal “antigo”, miguelista, que o próprio
Marcelo, filho de um ministro do salazarismo, reconhece ter durado até à sua maioridade - o Portugal antigo de
que ele é, sem segredo, um produto.

Lembre-se aliás que este mesmo PR, a 25 de Abril de 2021, assumiu, num discurso notável, a sua história
pessoal de testemunha do ocaso do império português. Para frisar, e bem, que todos temos uma, incluindo os
capitães de Abril, e sublinhar que esse grande acontecimento do nosso século XX foi, até pelo percurso dos
seus obreiros, simultaneamente rutura e continuidade.
É: o Portugal que nasceu do 25 de Abril é um processo. Um processo, como nos lembra Marcelo (por palavras
e atos), e agora também o esfuziante resultado da extrema-direita, no qual o Portugal antigo esteve andou
sempre por aí, esperando a sua oportunidade.

E é isso mesmo, dizia esta segunda-feira no Twitter Vicente Valentim, cientista político na Universidade de
Oxford, que explica o rápido crescimento da extrema-direita a que se está a assistir em vários países do
mundo, e também agora cá. “Muitas pessoas tinham já visões de extrema-direita, mas não as
expressavam porque temiam o ostracismo social”, escreveu o investigador, que defende essa tese no
livro O Fim da Vergonha - Como a Direita Radical se Normalizou (a publicar em abril). Com o surgimento
de líderes habilidosos (como Ventura), é possível, argumenta, que movimentos com estas características
“cresçam muito rapidamente - basta as pessoas começarem a agir em consonância com o que
pensem/sentem.”

Desse processo de normalização em curso, que deu já tão óbvios frutos (e passa pela assolapada paixão
mediática pelo líder do Chega), é exemplo perfeito o que ouvi esta segunda-feira quando uma mulher, sentada
numa paragem de autocarro em Oeiras, disse ao microfone da SIC-N que tinha votado no partido de
extrema-direita porque quer “para as filhas, netos e bisnetas o que havia antigamente, antes do 25 de
Abril”. Perguntada pela jornalista sobre se nesse caso achava que o seu voto “vai melhorar a vida
democrática do país”, a entrevistada diz que sim e que espera “melhoras na habitação e saúde”.

Confesso que, embora sabendo haver muita gente, incluindo entre quem a experienciou, que mitifica a
ditadura - também já escrevi aqui sobre isso, e sobre o facto de a meu ver tal dever ser interpretado,
paradoxalmente, como sinal do triunfo da democracia e das suas conquistas, dadas como tão adquiridas que
nem há capacidade para imaginar ou recordar o que foi o salazarismo -, não me habituei ainda a ver tal
mitificação brandida com tanto orgulho, e tratada, como sucedeu com a (jovem) jornalista da SIC-N, com
tamanha banalidade.

Desculpem-me se não concebo que aquela afirmação não ocasionasse o exacto contrário da pergunta feita -
porque, óbvio, quem tem saudades da ditadura e justifica com elas o voto num partido em princípio não está a
pensar contribuir para “melhorar a vida democrática do país”. Admito que a pergunta da minha camarada de
profissão tenha sido irónica, mas o que resulta dela é fazer parecer que antes do 25 de Abril não só havia
democracia como era melhor e com mais condições sociais, serviços e apoios públicos que agora - o que é
apenas uma barbaridade.

Que ante tal barbaridade uma jornalista passe em frente, como se não conseguisse descortinar a falsificação
ou achasse que não lhe cabe esclarecer quem ouve (e até a entrevistada), porque, quiçá, tal seria visto e
causticado como opinião ou tomada de posição política, é bem sinal do estado a que chegámos.
Saudades da ditadura
O sucesso dos partidos de extrema-direita e da sua retórica anti-democracia é, paradoxalmente, uma
manifestação do triunfo do regime democrático. Porque só há dois tipos de pessoas com saudade da
ditadura: ditadores e os que (já) não fazem ideia do que seja viver numa.

“Os miúdos que nascem agora estão tão longe do 25 de Abril como nós estávamos da 1ª Guerra Mundial.”

Quem me disse isto nasceu em 1968, a exatos 50 anos do final do final da dita guerra - uma guerra que
conhecemos nos livros e em alguns filmes, narrativa tão distante e onírica como o faroeste americano ou as
invasões francesas. Foi a primeira vez que percebi, em vertigem de desalento e estupor, como é possível aquilo
que me parece impossível: que haja, nas gerações mais novas, quem ache que uma ditadura não é uma coisa
assim tão má, e que uma democracia não é uma coisa assim tão estimável. É que não fazem qualquer ideia da
diferença; todas as suas vidas e referências estão imersas, ensopadas, no sistema democrático.

A começar pela facilidade com que o podem colocar em causa: que outro sistema político é tão dúctil e
paciente perante quem o insulta e despreza, quem lhe vaticina, deseja e planeia o fim? Que outro
sistema permite que qualquer pessoa se sinta à-vontade para caluniar os respetivos representantes,
para os acusar de tudo e mais alguma coisa sem, as mais das vezes, qualquer consequência? Que outro
sistema admite os ataques mais soezes e destrambelhados como forma de combate político e hesita
tanto em puni-los, por tanto execrar a severidade e o silenciamento?

A essa ausência de noção do que seria viver-se em ditadura - que explica o enlevo com soluções
“musculadas” em que que cada vez mais tropeçamos nas redes sociais e na retórica política mas também em
inquéritos sociológicos (num realizado em 2023 em 30 países - não incluindo Portugal - sob os auspícios da
Open Society Foundation, de George Soros, 35% dos inquiridos entre os 18 e os 35 anos disseram que “ter um
líder forte é uma boa forma de governar um país”; 42% dos mais jovens consideram até um regime militar
como “uma boa forma de governar um país”) - adiciona-se outro desconhecimento profundo: o daquilo que,
em termos de bem-estar, de “vida boa”, se deve à democracia. E esse desconhecimento está longe de se ater a
quem nasceu muitos anos depois do fim da ditadura.

Encontramo-lo, na verdade, em grande parte das pessoas em Portugal. Porque para grande parte das pessoas
esse bem-estar é a normalidade - é aquilo a que consideram, e muito justamente, ter direito. Aquilo em que
não pensamos, que não consciencializamos: como um sistema, vá, de climatização do qual só nos
lembramos quando falha. Quando de repente sentimos frio ou calor em vez de conforto, e pensamos: está
estragado, não presta, precisamos de outro.

Não passamos a vida a louvar haver esgotos, água nas torneiras, eletricidade, hospitais, escolas, estradas -
coisas que há 50 anos, ao contrário do que se passava na maioria dos países da Europa ocidental, estavam
muito longe de garantidas para uma parte considerável da população.

Não passamos a vida a louvar haver uma sólida rede de apoio estatal para permitir aos cidadãos enfrentar o
desemprego, a doença, a velhice, a pobreza. Não nos passa pela cabeça lembrarmo-nos de que coisas
como subsídio de desemprego, pensões para todos - mesmo para quem, por esta ou aquela razão, por
responsabilidade própria ou azares da vida, não fez descontos - e subsídio de parentalidade são
conquistas da democracia.

Não passamos a vida a reparar que vivemos num dos países mais seguros e pacíficos do mundo e com uns
dos serviços nacionais de saúde mais eficazes (sim, um dos mais eficazes). Aliás, pelo contrário: se há coisa
em que passamos a vida a reparar é naquilo que falha.

O que nos ocorre é dizer que é pouco e devia ser mais, que já não devia haver pobres, que é iníquo haver
pessoas a viver com tão pouco. É justo. É normal, claro, apontar o que falha; é apontando as falhas que se
progride. O risco é que se confunda a existência de falhas com falhanço global; é que o ruído sobre tanta
coisa que nos parece aquém do que deveria leve a considerar que está tudo errado. Há uma diferença
entre percebermos que aquilo que existe foi uma conquista deste regime e querermos melhorar, e
decretarmos que é tudo uma porcaria e que o regime falhou. Como, falhou?
Como se não se devesse tudo a essa coisa de que se fala com tanto nojo e desprezo - a política. A política e os
políticos, isso a que políticos, tão ou mais políticos como os outros mas fazendo profissão de pretender não o
ser, apresentam como uma coisa suja, inútil, a deitar fora, a substituir pelo seu discurso de “verdades” que
mais não é que uma trapalhada de ódio e falsidades cozinhada para acicatar o descontentamento e festejar a
ignorância.

Sim: por definição, a democracia não entusiasma quem vive em democracia. Não parece uma ideia
salvífica - como pareceria a quem vive nela? - nem uma novidade atraente. É uma coisa da qual dizemos
mal com muito mais ímpeto do que bem. Sendo um processo nunca terminado, que depende da
mobilização coletiva para evoluir, e portanto da consciencialização dos seus defeitos e deficiências,
estimula-nos à crítica permanente. Até porque, sendo um sistema no qual coexistem várias forças políticas
e ideias em confronto e competição, é dessas críticas cruzadas que vive.

Haver de repente tanta gente em países democráticos a achar que a democracia não serve é,
paradoxalmente, uma espécie de louvor à democracia - à completa incapacidade que temos todos
(exceto os ditadores) de imaginar viver num sistema outro, e à fé que pomos na sua resiliência.

E é aí, claro, que nos enganamos: a democracia pode (se pode) ser destruída e só resistirá na medida em que
estejamos dispostos a lutar por ela. É bom que nos aprontemos.
A fábula Barreiras Duarte
Pronto, já está: o secretário-geral de Rio caiu. Estamos contentes e saciados? Felizes com a nossa
democracia, o nosso jornalismo, a nossa academia, a nossa justiça? Que bom.

Antes da atual polémica, só associava o nome do ex secretário-geral do PSD (demitiu-se enquanto escrevia
este texto) a um episódio em que me causou boa impressão. Em agosto, numa altura em que o seu partido
apresentava um candidato autárquico com discurso xenófobo em Loures, verberou duramente Passos por
este, no último comício do Pontal, associar imigração a criminalidade e terrorismo e manifestar preocupação
pela possibilidade de "qualquer um poder entrar em Portugal".

Numa articulada entrevista ao Expresso, Barreiras Duarte, que foi secretário com a tutela da Imigração em
governos de Barroso, Santana e do próprio Passos, criticou aquilo que descreveu como "análises e
proclamações políticas baseadas no achismo" e, afirmando que a atual política de imigração portuguesa é
sobretudo fruto de governos PSD (o que pode ser contestado) e não advém de "visões securitárias", manifestou
a sua preocupação por "agora o PSD, pelo que se percebe, também [ter] racistas e xenófobos, que pelos vistos
têm apoios internos para defenderem essas posições". A uma pergunta direta sobre o discurso de Passos,
respondeu: "Até mete dó a contradição e a incoerência de algumas pessoas que brincam com o fogo, ao
abordarem de forma populista e generalista estas matérias, descurando potenciais efeitos de ricochete sobre
os portugueses [emigrantes]." E manifestou a sua convicção de que "o PSD nunca foi, não é, nem deverá ser
um partido político com discursos (e espero práticas) com tiques "trumpistas" e "lepenistas" (...) Porque, a
acontecer, estará a hipotecar muito do seu futuro de partido político moderado, tolerante e humanista. E a
acantonar-se na direita política retrógrada, caceteira, populista e oportunista. (...) Aliás, não deixa de ser
curioso verificar a incoerência de pessoas que se têm assumido tão liberais, defensoras da sociedade aberta,
do globalismo, da circulação de capitais e de empresas, e que nestas matérias são por um Portugal a preto e
branco e fechado. O PSD nunca foi isso e no futuro deverá tudo fazer para combater isso."

Tive pois dificuldade em reconhecer a pessoa apresentada na entrevista como estando a fazer "um
doutoramento sobre políticas de imigração" no autor de uma tese (ou relatório) de mestrado de 2014 escrita
com os pés e na qual nem as dedicatórias escapam ao ridículo e ao péssimo português - sendo que, parece, a
profusão de textos que tem publicado na imprensa (curiosamente sobretudo no Sol, onde saiu a primeira
notícia sobre o caso Berkeley) padece de problemas semelhantes - e que, para meu espanto, terá sido
valorada com 18. Quanto ao apresentar-se como "visiting scholar" de uma universidade californiana onde
nunca terá posto os pés e com a qual não terá tido qualquer contacto académico nem consigo comentar, de
tão patético.

Mas, confesso, se acho muito preocupante descobrir que existe um deputado, ex governante e alto dirigente
partidário que alegou um estatuto académico a que não tinha direito e aparentemente não consegue escrever
uma frase que faça sentido e com as vírgulas no sítio, assim como que uma tese nesses preparos tenha uma
nota tão elevada, se considero tudo isso notícia, não posso deixar de anotar que todos estes factos têm anos e
surgiram agora, por magia, nos media, quando Barreiras Duarte foi nomeado secretário-geral da direção de
Rio.

E dessas evidências se retiram várias coisas, que estão longe de se ater à pessoa e caso de Barreiras Duarte.
Uma é que o sistema de acreditação e de avaliação em algumas universidades portuguesas - e todos os
escândalos conhecidos ocorreram com privadas --, é algo de inadmissível e que tem de ser resolvido. Outra é
que os media funcionam demasiadas vezes como braço armado de interesses muito óbvios e repositório
acrítico e assanhado de "campanhas", sem o mínimo de distância e reflexão. Por exemplo, onde é que vimos,
nesta chusma de notícias, questionar a antiga direção do PSD, o ex PM e o ex ministro Miguel Relvas (do qual
Barreiras Duarte foi secretário de Estado e que também teve um pequeno problema académico), sobre se
sabiam alguma coisa sobre o que agora se revelou? Ou a universidade (a privada Autónoma) e o orientador, por
acaso Diogo Leite de Campos, do PSD, sobre a qualidade daquela tese ou relatório ou que raio é? Porque é que
o que é estrutural suscita tão pouco interesse e tudo se parece resumir a "demite-se ou não se demite", "cai ou
não cai"?
Como se não bastasse o gritante de alguém ter colocado a questão Berkeley numa "pastinha" até dar jeito usá-
la, lá voltámos a ver a PGR, depois do caso Centeno, a mergulhar de cabeça na refrega político-mediática. A
que propósito correu a anunciar um inquérito? Qual o crime em causa, se a acusação de que o ex governante
teria forjado um documento foi logo desmentida por quem acusou?

Entendamo-nos: é irresistível gozar Barreiras Duarte - eu própria o fiz no Twitter, analisando o seu quilométrico
CV no site do parlamento e gracejando, entre outras coisas, sobre apresentar-se como conselheiro económico
de um município chinês: "Põe no CV tudo o que apanha do chão". Mas uma coisa são piadas nas redes sociais,
outra o jornalismo, a política, a justiça. Era bom poder distinguir.
As concordatas de Francisco: olha para o que eu digo, não para o que eu faço
Malgrado discurso do papa sobre o imperativo de expor a verdade e compensar as vítimas, concordatas
assinadas no seu reino impõem que justiça "avise" hierarquia de investigações contra membros do clero,
"barricam" arquivos e - caso de Angola -, restringem as responsabilidades civil e criminal "à pessoa
física" dos eclesiásticos condenados, para evitar pagar indemnizações.

"Por toda a denúncia, informação ou inquérito relativo a um membro do clero ou um religioso, com motivo em
eventuais comportamentos incompatíveis com as leis civis ou penais do país, as autoridades judiciárias darão
conhecimento ao bispo responsável pela área, antecipadamente e de maneira confidencial. Se esses
procedimentos respeitarem a um bispo ou alguém com semelhante estatuto em termos do Direito canónico, a
Santa Sé será também informada, através da Nunciatura Apostólica."

Estes são os termos dos números 1 e 2 do artigo nono do "acordo-quadro", ou concordata, assinado entre o
Benim, pequeno país de 12,5 milhões de habitantes da África ocidental, e a Igreja Católica, através da
entidade jurídica "Santa Sé" (distinta do país Vaticano), a 21 de outubro de 2016, três anos depois de Francisco
ser entronizado e quando por todo o mundo se sucediam processos criminais e inquéritos sobre abusos
sexuais por membros da Igreja Católica.

A disposição concordatária estabelece assim que caso alguém apresente uma denúncia contra um religioso
ou padre a organização Igreja Católica terá de ser imediatamente avisada - no texto original, em francês, a
expressão usada é au préalable, que quer dizer "antes de qualquer ação" ou "antes de qualquer outra coisa".

Esta evidente intromissão no processo judicial, que não se encontra por exemplo nem na celebrada com
Portugal em 2004 (segundo opinião de penalistas ouvidos pelo jornal, uma disposição deste tipo seria
inconstitucional) nem em várias outras assinadas por países europeus, está, em diferentes graduações,
presente em recentes acordos da Santa Sé com vários países africanos - República Centro-Africana (2016)
República do Congo (2017), Angola e Burquina Faso (2019) - e também com Timor-Leste (2015).

Só em três dos acordos - Timor-Leste, Angola e Burquina Faso - se efetua a ressalva de que o aviso à hierarquia
apenas pode dar-se desde que "não implique prejuízos para as finalidades do procedimento", ou seja, não
prejudique a investigação (no caso de Angola refere-se também a necessidade de não haver prejuízo para o
segredo de justiça). E apenas no do Burquina Faso e da República Centro-Africana se exceptuam os casos de
flagrante delito.

É na concordata com este último país que se vai mais longe nas garantias dadas em caso de investigações
com clérigos católicos como objeto, estabelecendo aquilo a que se dá o nome de "foro privilegiado" e que se
aplica, na generalidade dos países, apenas às mais altas figuras do Estado: "No caso de um bispo ou de
padre exercendo uma jurisdição equivalente, é necessária [querendo dizer que nada se pode fazer antes
disso] a autorização prévia do Procurador-Geral e a Santa Sé será logo informada pelas autoridades
centro-africanas via Nunciatura Apostólica."

De resto, o desígnio de limitar a independência do poder judicial e o escopo da sua ação no que respeita à
Igreja Católica não se atem, nos acordos mencionados, ao "aviso" obrigatório: inclui a exclusão de acesso às
instalações, arquivos e registos desta entidade, como se se tratasse, em todos os casos, de território
estrangeiro, com o estatuto de embaixada, ao qual as autoridades locais estão impedidas de aceder sem
convite ou autorização; o direito de recusa de testemunho para os seus membros, alegando sigilo
profissional; e até a isenção indemnizatória para a instituição, que em dois dos países em causa recusa
assumir qualquer responsabilidade face às vítimas.

Especialmente curioso é pois que por exemplo o acordo com o Benim tenha sido festejado pelo papa, em
janeiro de 2019, numa alocução dirigida ao corpo diplomático acreditado no Vaticano, na qual aludiu também
ao abuso de menores, caracterizando-o como "uma das pragas do nosso tempo, que tristemente envolve
também alguns membros do clero", "um dos mais vis e hediondos crimes concebíveis", que causa "danos
irreparáveis para a vida", e assegurando: "A Santa Sé e a Igreja no seu todo estão a trabalhar para combater
e prevenir esses crimes e o seu encobrimento, de modo a chegar à verdade dos factos que envolvem
eclesiásticos e para assegurar justiça aos menores que sofreram a violência sexual agravada pelo abuso
de poder (...)."

Ora nos acordos recentes analisados pelo DN (nenhum dos quais, refira-se, está disponível na página do site
do Vaticano onde se encontram as concordatas) o que salta à vista não é o trabalho da Santa Sé para
"combater e prevenir" os crimes de abuso sexual e "o seu encobrimento", e "assegurar justiça" às vítimas.

Pelo contrário, aliás: quanto mais recentes são estes instrumentos legais, mais as disposições neles
constantes avançam no sentido de dificultar o trabalho das autoridades judiciárias ou de outras
instâncias de investigação (recorde-se que em vários países, como a Irlanda e a Austrália, os governos
nomearam comissões para investigar os abusos cometidos no seio da Igreja Católica) e de impossibilitar a
assunção de responsabilidades por parte das dioceses.

É nos dois últimos, o do Burquina Faso e Angola, ambos de 2019, que surge a deliberação de furtar a
organização Igreja Católica a responsabilidades civis (indemnizações) e criminais (por encobrimento, por
exemplo) nos casos em que os seus membros sejam condenados.

"A responsabilidade civil ou criminal relativa aos delitos civis e aos crimes cometidos por eclesiásticos é
exclusivamente pessoal. As sanções resultantes dos mesmos só podem ser impostas às pessoas físicas que
os cometeram. Além disso, apenas essas pessoas físicas responderão com os seus bens pessoais aos danos
materiais, imateriais ou morais ligados ao delito civil ou ao crime", impõe a Concordata angolana no numero 4
do artigo oitavo, cuja epigrafe é "Causas contra eclesiásticos".

No acordo do Burquina Faso, que antecede o angolano em alguns meses, ressalvam-se desta
desresponsabilização geral os casos de "cumplicidade comprovada": "Em todos os casos, a responsabilidade
penal e os efeitos civis que decorrem dos processos são sempre pessoais e, salvo cumplicidade
comprovada, não implicam nem a instituição a que pertence o faltoso nem os seus responsáveis
hierárquicos. Acresce que só as pessoas físicas que cometeram a infração penal respondem, com os seus
bens pessoais, pelos correspondentes danos materiais, imateriais ou morais."

Visa assim a Santa Sé que as vítimas de crimes cometidos pelos religiosos da Igreja Católica ou por leigos ao
seu serviço não possam demandar as dioceses para obter uma compensação, limitando-se aos bens dos
autores materiais dos crimes, individualmente considerados - se estes os não tiverem, paciência.

Percebe-se o cuidado: em todo o mundo a Igreja Católica (IC) tem sido obrigada a pagar avultadas
indemnizações às vítimas dos crimes dos seus membros, tendo várias dioceses, nomeadamente nos EUA,
entrado em falência (a última contabilidade é de 28 dioceses americanas falidas ou em vias de, mais três
ordens religiosas na mesma situação) devido a essas reparações. Reparações cujo direito se tem fundado
sobretudo na prova, obtida nos arquivos, de que a hierarquia, tendo conhecimento de denúncias, ou não as
valorizava, ou tentava calar e descredibilizar as vítimas ou, ciente de que o clérigo ou religioso em causa era
"problemático", limitava-se a mudá-lo de paróquia ou mesmo de país - muitas vezes para países do chamado
"terceiro mundo", onde a capacidade de denúncia e reação de eventuais novas vítimas seria ainda menor.

Logo em 2003, um relatório do gabinete do procurador-geral de Boston, em resultado da investigação inspirada


pelas reportagens do jornal The Boston Globe sobre abuso sexual por membros da diocese local, concluía que
a vitimização sexual de crianças por membros da IC era "generalizada" e conhecida pela hierarquia.

Seguiram-se escândalos em catadupa. Em 2018, o chamado Relatório da Pensilvânia (1400 páginas


publicadas a 14 de agosto desse ano, analisando sete décadas de abuso sexual por sacerdotes católicos
daquele estado americano) descrevia o modus operandi, ou "livro de estilo", da hierarquia católica face às
denúncias de abuso, tal como caracterizado pelo FBI: nunca se falava, nos registos escritos, de violação
nem de abuso, sendo usadas expressões mais suaves, "brancas", como "contacto inapropriado"; para
inquirir de uma denúncia eram escolhidos padres sem qualquer experiência na condução de inquéritos
de abuso sexual; se um padre acusado era retirado de um posto nunca se informava a comunidade das
razões desse afastamento. E certamente nunca se informavam as autoridades policiais ou judiciais -
quando muito mandavam-nos para centros da Igreja para serem "avaliados".
O que nos conduz à "inviolabilidade dos arquivos", que a Santa Sé quis garantir nos acordos analisados.

Encontramo-la no acordo-quadro com a República Centro-Africana, no artigo seis, número 2, misturada com a
dos locais de culto: "No quadro da sua legislação, a República Centro-Africana assegura a inviolabilidade
dos locais de culto: igrejas, capelas, oratórios, cemitérios e suas dependências, em particular os
presbitérios, os conventos e os arquivos eclesiásticos. A força pública pode aceder a estes lugares: por
convite da Autoridade eclesiástica competente; ou ainda depois de notificação da mesma Autoridade,
para executar um mandado judiciário contra pessoas acusadas de delitos cometidos no território do
Estado."

Esta redação, que coloca todos os lugares enumerados fora da autoridade do Estado, como se de território
estrangeiro se tratasse, não se limita a pretender retirar os arquivos do alcance da justiça. Ao restringir a
execução de mandados nesses locais àqueles que se refiram a "pessoas acusadas de delitos cometidos no
território do Estado" pode ser interpretada como querendo dizer que eventuais crimes cometidos nesses
mesmos lugares não estão abrangidos pela autoridade do dito Estado, mas sim pela da Igreja Católica -
reivindicação que esta entidade tem apresentado, sob outras vestes, noutras paragens (por exemplo no acordo
do Burquina Faso estabelece-se que "pertence exclusivamente à Autoridade eclesiástica a fixação livre das
leis e regulamentos e todos os atos jurídicos nos domínios da sua competência", deixando dúvidas sobre quais
serão, no entendimento da Santa Sé, esses domínios; como se verá mais à frente, há situações, como na
Argentina, em que a Igreja Católica afirma não ter de se submeter ao Estado constitucional de Direito,
recusando cumprir ordens de tribunal).

Nenhum dos textos analisados pelo DN tem disposições tão extremas como o da República Centro-Africana,
mas a inviolabilidade dos arquivos está em todos, à exceção do mais antigo, o de Timor-Leste.

No do Benim, além de se assegurar que "o segredo da confissão sacramental" é "absoluto e inviolável" - uma
garantia que se encontra em todas estas concordatas e é comum aos ordenamentos jurídicos de vários
países, incluindo Portugal -, também se lê: "Os arquivos eclesiásticos são invioláveis e beneficiam de
proteção especial".
Acrescenta-se ainda: "Os bispos, os padres e os religiosos têm o direito ao respeito pela sua obrigação ao
segredo ligado ao seu estado."

O texto relativo ao Burquina Faso coloca o segredo profissional destas categorias em pé de igualdade com "o
segredo profissional de profissões similares", mas de seguida estabelece que "a inviolabilidade do segredo
relativo ao ministério espiritual estende-se aos arquivos submetidos à jurisdição eclesiástica."

O de Angola, sob a epígrafe "Lugares de cultos" (artigo 6º) fixa a inviolabilidade destes mas também de
"residências episcopais, mosteiros (...), seminários, noviciados, residências de sacerdotes, conventos, bem
como obras sociais." Tudo o que é propriedade da Igreja Católica assume assim o caráter de "inviolável". Caso
ficassem dúvidas sobre os arquivos, há um artigo sobre eles, o 8º ("Sigilo sacramental, segredo profissional e
inviolabilidade dos arquivos"): "A República de Angola garante a inviolabilidade dos arquivos, registos e outros
documentos que pertençam à Igreja Católica", e "respeita o segredo profissional dos sacerdotes, dos
religiosos e das religiosas. Eles não podem ser obrigados a responder aos magistrados, ou a outras
autoridades, sobre matérias de que tiveram conhecimento no exercício do seu ministério ou do foro interno."

Já no de Timor-Leste assegura-se que "os clérigos e os religiosos podem recusar-se a depor sobre os factos de
que tomaram conhecimento na Confissão ou no exercício do ministério sacerdotal."

Refira-se que neste aspeto, o do "segredo profissional" eclesiástico, a Concordata de 2004 com Portugal
vai mais longe, repetindo quase palavra por palavra a disposição da de 1940, assinada por Salazar (a
qual, recorde-se, conferia aos membros da Igreja Católica a "proteção do Estado, nos mesmos termos
que as autoridades públicas"), e proibindo até a pergunta: "Os eclesiásticos não podem ser perguntados
pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por
motivo do seu ministério."
Curioso de resto constatar que concordatas tão recentes recuperam disposições que se encontram num
acordo com 68 anos - o celebrado em 1954 com a República Dominicana, um país com religião oficial católica
-, tornando-as ainda mais favoráveis à Igreja Católica.

"Em caso de que se levante acusação penal contra alguma pessoa eclesiástica ou religiosa, a jurisdição do
Estado a cargo do assunto deverá informar oportunamente o Ordinário [bispo] competente da zona e
transmitir ao mesmo os resultados da instrução e, em caso de existir, comunicar-lhe a sentença tanto da
primeira instância como de recurso ou revisão", dispõe o artigo 13º do acordo com este país da América do
Sul, que, como a concordata de 1940 com Portugal, assegura a proteção do Estado aos clérigos católicos.
Note-se porém que "acusação penal" pode ser interpretado como correspondendo a acusação formal, ou seja
à fase final da investigação, que é por definição pública, enquanto as concordatas recentes impõem que o
aviso seja efetuado logo no início do processo, quando ocorre a denúncia. Por outro lado, "oportunamente"
é muito menos impositivo e mais vago que o "antes de qualquer ação" que encontramos por exemplo no
acordo com o Benim.

Neste acordo com a República Dominicana, assinado durante a ditadura de Trujillo Molina, e cuja
constitucionalidade tem sido naturalmente posta em causa, encontramos também a imposição de um
tratamento especial para religiosos católicos em caso de detenção ou prisão: "O eclesiástico ou religioso será
tratado com o respeito devido ao seu estado e grau. Em caso de condenação de um eclesiástico ou religioso, a
pena cumprir-se-á, quando seja possível, num local separado do destinado aos leigos, a menos que o
Ordinário do sítio tenha reduzido o condenado ao estado leigo."

Foi em 2019, ano no qual a Santa Sé assinou os acordos com o Burquina Faso e Angola, que teve lugar no
Vaticano, em fevereiro, uma reunião considerada "histórica" dedicada à questão do abuso sexual de menores.
Durante a mesma, que congregou 114 presidentes de conferências episcopais de todo o mundo, o cardeal
Reinhard Marx, representante da Alemanha, admitiu que os arquivos da igreja naquele país sobre abusos
sexuais "foram destruídos ou nem sequer chegaram a ser criados". "Os procedimentos e trâmites fixados
para perseguir estes delitos foram deliberadamente ignorados, e inclusive apagados ou cancelados",
denunciou.

Em dezembro, o papa, que no final da citada reunião afiançara que "a Igreja não procurará jamais dissimular
ou subestimar qualquer um desses casos", anunciava, num conjunto de medidas que alteravam a lei
canónica, o fim do segredo pontifício nos casos de violência sexual e de abuso de menores e de adultos
vulneráveis cometidos por membros do clero.

Proclamada como "uma mudança radical na forma como a Igreja Católica vinha lidando com estes casos de
abusos sexuais de menores", a nova orientação, tornada pública por comunicado do diretor editorial da
Secretaria para a Comunicação do Vaticano, Andrea Tornielli, determinava que "as queixas, os testemunhos e
os documentos processuais relativos aos casos de abuso conservados nos arquivos dos Dicastérios
vaticanos, bem como os encontrados nos arquivos das dioceses, e que até hoje estavam sujeitos ao segredo
pontifício, poderão ser entregues aos magistrados de instrução dos respetivos países que os solicitem".

À primeira vista, a orientação contradiz as disposições sobre inviolabilidade dos arquivos que encontramos
nas concordatas recentes. Mas "poderão ser entregues" significa isso mesmo, que podem ser, mas também
podem não ser: não há obrigatoriedade.

Como o comprova por exemplo uma diocese do país natal do papa. Trata-se da diocese de Mendonza, na
cidade e província do mesmo nome, tristemente célebre em matéria de abusos sexuais devido ao caso do
Instituto Próvolo, uma instituição de ensino católico para crianças com deficiência auditiva na qual, de acordo
com a investigação judicial - que resultou na condenação de dois padres, em 2019, a penas de mais de 40
anos de prisão, estando a ser julgadas separadamente duas monjas e outras seis mulheres que trabalhavam
na instituição - crianças e jovens dos quatro aos 17 anos foram violados e torturados entre 2004 e 2016.
Nomeado por Francisco em 2018, o atual arcebisbo de Mendonza, Marcelo Colombo, é desde junho alvo
de uma queixa por desobediência e obstrução à justiça por, perante uma ordem de tribunal, recusar
entregar um processo canónico.
O processo em causa diz respeito à denúncia efetuada por uma paroquiana contra um diácono de Mendonza
com quem teve uma relação e que segundo ela a maltratava e a obrigou várias vezes a abortar. Tendo efetuado
a denúncia e não conhecendo de quaisquer consequências, a mulher, agora com 70 anos, dirigiu-se à justiça
argentina para se queixar do arcebispado.

Este, invocando a concordata celebrada pelo Estado argentino com a Santa Sé em 1966 (durante a ditadura
militar que vigorou de 1966 a 1973 no país), recusou, através do arcebispo Colombo, produzir os documentos
pedidos, por considerar que não está submetido à justiça do país: "Nego expressamente que o arcebispado
de Mendoza, pela sua condição de pessoa jurídica pública, tenha a obrigação de cumprir e ajustar a sua
estrutura, organização e funcionamento ao Estado Constitucional de Direito, a que estamos submetidos
todos. Porque é pessoa jurídica pública não estatal, regida pelo seu próprio direito (...)"

Uma recusa tanto mais significativa quando o arcebispado de Mendonza já foi, em 2015, condenado pelo
Supremo Tribunal por recusar entregar um processo.

O caso que resultou na condenação diz respeito a uma queixa efetuada ao arcebispado, em 2001, por
alegados abusos sexuais, ocorridos entre 1998 e 2001, de um padre sobre um jovem, Iván González. Quando
este quis conhecer do andamento do processo, tal foi-lhe negado, como sucedeu agora à citada paroquiana.
Iván avançou então com um processo contra o arcebispado, acusando-o de violar o seu direito à informação e
ao conhecimento da verdade, e sustentando que a Igreja Católica tem de ajustar o seu funcionamento à
Constituição e aos tratados internacionais sobre direitos humanos. Perdeu a causa em primeira instância mas
recorreu e ganhou.

Foi a vez de o arcebispado recorrer para o Supremo, defendendo não existir, em processo canónico, o
dever de informar nem de ser informado, e que a sentença condenatória violava a autonomia
constitucional da Igreja Católica, pondo em causa a Concordata argentina, nomeadamente o seu artigo
primeiro. Este, semelhante ao de muitos outros acordos com a Santa Sé, dispõe que "o Estado argentino
reconhece e garante à Igreja Católica Apostólica Romana o livre e pleno exercício do seu poder espiritual, o
livre e público exercício do seu culto, assim como da sua jurisdição no âmbito da sua competência, para a
realização dos seus fins específicos."

Na sua decisão, o Supremo, citando o papa - "A verdade é a verdade e não devemos escondê-la" -
manteve a condenação, sublinhando que a atitude do arcebispado contradizia as directrizes de
Francisco e que as normas da Igreja Católica não podem prevalecer sobre a Constituição nem sobre os
tratados internacionais de direitos humanos.

Isso mesmo, que a Santa Sé/Vaticano/Igreja Católica está vinculada aos tratados internacionais que assinou,
é o que lembra uma carta de abril de 2021, dirigida ao chefe de governo do Vaticano/Santa Sé (o secretário de
Estado da Santa Sé, o cardeal Pietro Parolin), assinada por um grupo relatores especiais da ONU, incluindo o
relator especial sobre tortura, o relator especial sobre a venda de crianças, prostituição e pornografia e o
relator especial para promoção da verdade, justiça, reparação e garantia de não repetição.

Tornada pública em junho do mesmo ano (por falta de resposta do destinatário no prazo de 60 dias),
a carta verbera a entidade Santa Sé/Vaticano/Igeja Católica - em cujas complexas definições jurídicas as
autoridades católicas costumam acobertar-se, à imagem do que sucede no mundo da finança com a criação
de empresas fantasma para evadir responsabilidades e identidades - por dizer uma coisa e fazer outra,
mantendo as velhas manhas ao pretender que tudo mudou.

"Estamos gravemente preocupados com as alegações persistentes de obstrução e de ausência de cooperação


da Igreja Católica com os processos judiciais domésticos, com o intuito de impedir a responsabilização dos
agressores e a atribuição de indemnizações às vítimas. Estamos igualmente preocupados com as concordatas
e outros acordos negociados pela Santa Sé com os estados, que limitam a possibilidade das autoridades civis
interrogarem, obrigar à produção de documentos ou processar pessoas associadas à Igreja Católica.
Solicitamos ao governo de sua Excelência de se abster de recorrer a práticas de obstrução e a colaborar
plenamente com as autoridades judiciárias civis e policiais dos países em causa, assim como abster-se de
assinar ou invocar acordos existentes para fazer escapar às responsabilidades membros da Igreja acusados de
terem cometidos abusos."

Um dos exemplos apresentado na carta dessa persistência no secretismo e encobrimento, na evasão à


responsabilidade e à reparação, é o caso do Instituto Próvolo, na nossa já conhecida província argentina de
Mendonza.

Um dos padres acusados (e, como vimos, condenados a mais de 40 anos de prisão) tinha sido alvo de
denúncias semelhantes em duas outras delegações do referido instituto - Verona, em Itália, e La Plata, na
Argentina - e o Ministério Público argentino pediu aos emissários do Vaticano que fornecessem os inquéritos
canónicos respetivos, tendo estes, recordam os relatores, negado, com o mesmo argumento apresentado
pelo atual arcebispo: a Concordata coloca a Igreja Católica fora da alçada da justiça do país.

A carta acusa também a Igreja Católica argentina de ter adotado, face aos numerosos processos por danos
que foram intentados contra ela no âmbito do mesmo caso, "estratégias dilatórias e obstrucionistas,
nomeadamente invocando o princípio da prescrição e adotando medidas para proteger os seus bens das
demandas."

A questão da prescrição é outra sobre a qual os relatores exprimem a sua preocupação, apontando a pressão
exercida pela Igreja Católica, nos vários países, para que "sejam mantidos os prazos de prescrição que
impedem as vítimas que atingiram a idade adulta - momento no qual são mais capazes de assumir perante um
tribunal os danos que sofreram - de denunciar os crimes."

Terminam endereçando à Santa Sé várias perguntas, entre as quais esta: "Queira informar se o governo de
vossa Excelência tomou medidas para revogar as regras das concordatas e acordos bilaterais que
impedem as autoridades civis de conduzir inquéritos eficazes sobre abusos sexuais." Como todas as
outras, terá ficado sem resposta.
Incompetência e irresponsabilidade
São 15 dias certos, os que passaram desde aquela aziaga noite de sábado. Surgiram entretanto, além da
audição da ministra e do secretário de Estado no Parlamento (na quarta-feira), dois relatórios essenciais, da
Secretaria-Geral do MAI e o do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, que ajudam a começar a perceber a
cronologia dos eventos, e nomeadamente das mortes, até à respetiva publicação desconhecida.

O segundo, além de não subscrever a tese da PJ para o início do fogo, descreve o seu comportamento: a partir
do final da tarde terá avançado com velocidade e intensidade avassaladoras. Se essa velocidade (ainda não
calculada) justifica a falta de tempo para resgatar as pessoas que estavam no seu caminho e interditar a zona,
incluindo a estrada onde houve mais vítimas, é algo que ainda não se sabe. Como não se sabe o quão
determinante para a tragédia foi a dificuldade nas comunicações. E se a Proteção Civil fez tudo o que podia - e
devia.

Sabemos ainda muito pouco, e é, apesar da justa exasperação que sentimos - estes 15 dias parecem meses -
normal que assim seja. Estas coisas levam tempo a investigar. Mas algo não podemos ignorar: a escancarada
incompetência e indecorosa irresponsabilidade de vários dos organismos envolvidos.

Por exemplo: diz a SGMAI que nunca soube, até depois das 21.00, que havia problemas com as comunicações
e que devia ter sido a Proteção Civil a avisá-la; a Proteção Civil devolve-lhe a acusação, dizendo que como
responsável pelo SIRESP a SGMAI tinha de saber o que se passava com as antenas. Desde logo, uma pergunta:
como é que se processavam as comunicações da SGMAI com a Proteção Civil? Era através do SIRESP?
Quantas vezes falaram e para dizer o quê? Não sabemos. Mas sabemos que, apesar de dizer que "até às 21.15
o COG [Centro de Operação e Gestão da SGMAI] não teve da parte da Autoridade Nacional de Proteção Civil
nem de nenhuma outra entidade utilizadora ou da operadora da rede SIRESP qualquer relato da existência de
dificuldades nas comunicações", a SGMAI admite logo de seguida: "A estação de Pedrógão Grande esteve em
modo intermitente entre as 19.38 e as 21.52, período durante o qual para o COG esteve em modo intermitente
(...). Não podia ter real noção dos problemas operacionais no terreno sem ser alertado pela ANPC." Como é
que é? Sabia que a estação principal da zona "estava em modo intermitente" mas parecia-lhe que estava tudo
OK? É normal um sistema de comunicações de emergência estar intermitente, ou é essa a "normalidade" do
SIRESP?

Depois, diz a SGMAI que a Proteção Civil sabia que seriam precisas mais de quatro horas para que as unidades
móveis, que podiam substituir as antenas fixas em caso de estas deixarem de funcionar, estivessem,
operantes, no local. Tem muita razão a SGMAI; a Proteção Civil deveria ter previsto a possibilidade de aquelas
serem necessárias e tido em consideração o tempo de deslocação. Mas, sendo a SGMAI a entidade
responsável pelo SIRESP, não deveria antes de mais aplicar esse raciocínio a si?

Até porque já tinha havido problemas com o SIRESP num incêndio anterior. Sabendo a SGMAI (ou não
saberia?) que a ligação entre as antenas terrestres é feita por fibra ótica, não lhe ocorreu que o fogo pode
destruir essas ligações? Pelos vistos não. Aliás, o que resulta do relatório é que não só não tomou providências
para que as unidades móveis estivessem em estado de prontidão como nem sabia onde andavam: reconhece
no relatório que só após contacto com a GNR e a PSP, depois das 21.00, soube do respetivo paradeiro.

Ficamos pois por entender em que consiste a "gestão" que a SGMAI diz fazer das unidades móveis do SIRESP e
que tipo de coordenação existe nesse sentido entre a SGMAI e a GNR e PSP: há regras? E se há, quais são e
como foi possível que estando uma das unidades, a confiada à GNR, em Espanha em reparação desde o início
de junho, a outra, confiada à PSP, fosse metida numa oficina com dois dias de antecedência em relação à data
da revisão, agendada para segunda 19 de junho, resultando daí que não havia nenhuma disponível para a
emergência em causa?

Continuando a lavar as mãos, a SGMAI culpabiliza a PSP. Que, é claro, também tem esclarecimentos a prestar.
Sobre o exposto e pelo facto de só ter ido buscar a estação móvel três horas após ser avisada de que devia
fazê-lo. Explicitando: tendo a SGMAI conseguido contactar o responsável pela oficina - donde se retira que a
PSP não o fez - às 23.54, às 00.11 avisou a PSP de que tinha de ir levantar a viatura. Mas esta só saiu da oficina,
em direção a Pedrógão, às 03.10. Que se passou nessas três horas?
Acrescente-se a toda esta desgraça o insulto do relatório do SIRESP, que assegura ter tudo corrido às mil
maravilhas com o sistema. Como fazer sentido disto perante 64 mortos? Como é possível que, para começar,
os responsáveis da SGMAI não tenham, ante o vergonhoso relatório que apresentaram, sido forçados a pedir a
demissão?

Não; não se trata de exigir demissões como preço da dor e da perda. Mas há conclusões para as quais não
precisamos de investigação: independentemente de se terem ou não perdido vidas por causa da colossal
incompetência explanada acima, não se pode correr o risco de tal suceder. Chega de lágrimas. Agora é preciso
agir.
A psicóloga anormal e o colunista leviano
Alguém que quer, através da prática clínica, impor aos outros as suas crenças religiosas não deve ter
licença para o fazer. É para isso que servem as leis e as ordens profissionais: para garantir que ninguém
usa o poder que lhe é conferido por uma certificação oficial para subverter a sua missão, infringindo
direitos fundamentais e incentivando discriminações que a Constituição interdita. Porque está errado.
Porque é maldoso. Porque destrói vidas

Uma psicóloga dá uma entrevista, enquanto psicóloga e presidente da associação dos psicólogos católicos, a
uma revista católica. Depois de afirmar que "hoje, nas escolas, falo com miúdos de 16 ou 17 anos que não
tiveram uma namorada e a primeira ideia que têm é: "Será que eu sou homossexual ou bissexual?" Já não lhes
passa pela cabeça serem heterossexuais", é perguntada sobre "como acolher os homossexuais". E responde:
"Para aceitar o filho não é preciso aceitar a homossexualidade. Eu aceito o meu filho, amo-o se calhar até
mais, porque sei que ele vive de uma forma que eu sei que não é natural e que o faz sofrer. É como ter um filho
toxicodependente, não vou dizer que é bom."

As declarações da psicóloga suscitam indignação. No seu Facebook, a 12 de novembro, a psicóloga queixa-se


de receber insultos e tenta explicar-se: "Dizem que comparei a homossexualidade à toxicodependência. (...)
Leram o texto original? O que disse é que perante um filho que tem um comportamento com o qual os pais não
concordam, devem na mesma acolhê-lo e amá-lo. A toxicodependência é apenas exemplo de comportamento
que por vezes leva os pais a rejeitar o filho. Não é uma comparação sobre a homossexualidade mas sobre a
atitude diante dela."

No dia seguinte, é tornado público um comunicado da Ordem dos Psicólogos Portugueses no qual esta diz não
se rever nas declarações daquela sua associada. Recusa-lhes "qualquer tipo de base científica" e considera
que "apenas contrariam a defesa dos direitos humanos, da evolução e equilíbrio social, e dificultam a
afirmação dos psicólogos na sociedade", anunciando um procedimento contra a autora: "Por considerar de
extrema gravidade as declarações proferidas pela Drª Maria José Vilaça, a Direcção da OPP (...) irá participar
os factos em causa ao Conselho Jurisdicional (CJ) da OPP, que é um órgão estatutário, independente, isento e
imparcial (...) que tem como competência zelar pelo cumprimento da Lei, do Estatuto e dos regulamentos
internos, quer por parte dos órgãos, quer por parte de todos os seus membros."

Ontem, no Público, em reação a este comunicado, João Miguel Tavares pergunta, escandalizado: "Pode um
psicólogo ser católico?" Frisando achar as declarações da psicóloga "de extrema infelicidade", o articulista crê
no entanto que o comunicado da OPP foi longe de mais: "As pessoas deixam de se limitar a criticar Maria José
Vilaça por ter dito uma tontice, e a rebater a sua opinião com argumentos sustentados, e passam a defender
que ela deve ser silenciada e proibida de exercer a sua profissão porque, pelos vistos, hoje em dia não se pode
ser psicólogo e ao mesmo tempo considerar a homossexualidade uma prática "não natural"". E prossegue: "É
que se não se pode, como a Ordem dos Psicólogos parece defender, se passou a ser uma coisa tão
inadmissível como a prática da lobotomia para curar doenças mentais, então há aqui uma notícia muito maior
do que as declarações de Maria José Vilaça, e que está tristemente a passar ao lado da comunicação social. A
primeira frase de todos artigos sobre este tema deveria ser esta: "A Ordem dos Psicólogos Portugueses
defende que um católico que aceite os ensinamentos da Igreja em relação à homossexualidade não tem
condições para ser psicólogo e deve abandonar de imediato a sua profissão.""

E testemunhas de Jeová, xiitas ou evangélicos?

A questão colocada por João Miguel Tavares é interessante, e é-o de várias perspetivas. Uma delas é,
naturalmente, a da relação entre religião, práticas clínicas e ciência em geral. Por exemplo, um médico pode
ser testemunha de Jeová? As testemunhas de Jeová, é sabido, são contra as transfusões de sangue. Chega
uma pessoa às urgências a esvair-se e tem o azar de lhe calhar como médico um testemunha de Jeová. Até
pode dar com equipa inteira testemunha de Jeová, por que não. Exemplo ridículo? Vamos a outro. Uma mulher
tem um acidente e vai parar a um hospital onde só estão médicos e enfermeiros homens, todos muçulmanos
xiitas do ramo que proíbe os homens de tocar em mulheres desconhecidas. Também é um exemplo estúpido?
Outro: uma mulher tem um aborto espontâneo e vai parar às mãos de um médico fundamentalista católico,
que, convicto de que se tratou de aborto voluntário, resolve fazer-lhe uma raspagem a frio, para a castigar. A
mulher morre. É impensável? É que sucedeu mesmo. Em Portugal, nos anos 60. E muitos outros casos assim,
testemunhados pelo obstetra Albino Aroso, que afirmou ter assistido a autênticos crimes contra as mulheres
no início da sua prática clínica - motivo pelo qual, sendo católico, fez da sua vida uma cruzada pelos direitos
reprodutivos delas.

Suponho que JMT dirá, em relação a todos estes exemplos que, caramba, há leis para impedir que se ponha
em perigo a integridade física e a vida de pessoas. Que é negligência médica, e homicídio negligente, recusar
uma transfusão, ou qualquer tratamento, a um paciente que pode morrer sem eles; que o médico que matou
aquela portuguesa nos anos 60 seria hoje acusado de homicídio e, provavelmente, de tortura.

Saíamos do domínio dos crimes e dos cuidados de saúde: devemos permitir a um professor evangélico que
recuse ensinar a teoria do Big Bang, dizendo aos alunos que o mundo foi criado por uma entidade divina em
seis dias? Estou convicta de que JMT, malgrado proclamar-se cavaleiro andante da liberdade expressão e
opinião, não veria escândalo em que este professor fosse sujeito a um processo disciplinar.

A defesa desmiolada da "liberdade de expressão"

JMT acha, no entanto, que uma psicóloga afirmar que a homossexualidade é uma doença (sim, é isso que ela
diz) e "não é natural" é diferente das situações descritas. Ora há, desde os anos oitenta do século passado, um
consenso científico sólido sobre a homossexualidade não ser uma doença, e Maria José Vilaça contradi-lo.
Com argumentos científicos, "sustentados"? Não, o próprio JMT admite que ela o faz por motivos religiosos.

Sendo razoavelmente óbvio que não dá para usar argumentos religiosos na prática clínica, JMT trata o dito de
Vilaça como mera "opinião". Como se um professor evangélico desse uma entrevista a dizer que acha a teoria
da evolução, de Darwin, uma completa treta, e o Big Bang uma coisa ridícula e que nunca jamais isso devia
fazer parte do programa escolar, mas à partida, e sem qualquer escrutínio, se partisse do princípio de que nas
aulas dá a matéria sem um comentário.

Ora isso é capaz de ser um bocado parvo. E leviano, e preguiçoso. Porque basta um pouco de pesquisa no
Google para descobrir que, apesar de tentar negá-lo no seu post no FB - já não é pecado mentir? - Vilaça
defende que a homossexualidade é uma doença. E, mais, que pode ser curada e que tenta curá-la. Disse-o
com todas as letras numa entrevista em 2008: "Entendo que é uma doença. (...) Toda a sexualidade que não é
vivida na diferença entre o homem e a mulher não é completa." Questionada sobre se já "curou"
homossexuais, responde: "O tratamento é possível, não quer dizer que se faça sem sofrimento. (...) Conheço
casos concretos que me passam pelas mãos."

A defesa desmiolada da "liberdade de expressão" tem destas coisas. Quando diz, em defesa de Vilaça, que "a
linha entre o confronto de ideias e o silenciamento de ideias está a ser ultrapassada vezes sem fim, criando
uma pressão insustentável sobre quem pensa diferente de nós", pelos vistos não ocorreu a JMT que talvez a
pressão insustentável e ilegítima não esteja onde a vê. Porque o que está em causa é uma psicóloga a tentar,
usando a sua pretensa autoridade científica e o ascendente na relação terapeuta/paciente, impor a sua
opinião sobre homossexualidade, sem ter sequer a honestidade de assumir que a afirma contra o consenso
científico. O que vemos é uma psicóloga a falar aos pais, dizendo-lhes que os filhos homossexuais têm
comportamentos ou ideias "não naturais", estão "doentes" e devem ser "tratados". Aquilo a que assistimos é a
uma psicóloga a angariar clientes e a encorajar famílias católicas a tratar miúdos como aberrações. Onde
andará a preocupação de JMT com o bem-estar e a liberdade dessas crianças e adolescentes?

Chamar vítimas aos carrascos

Em lado nenhum: o que interessa a JMT, num procedimento típico da era pós-facto, é apresentar Vilaça e os
católicos em geral como vítimas de perseguição e silenciamento, invertendo completamente as posições e
desprezando e elidindo as verdadeiras vítimas. Como se a história não testemunhasse de séculos de
perseguição dos homossexuais. Como se não tivéssemos ainda este ano sabido que o Reino Unido legislou no
sentido de conceder, finalmente, um indulto póstumo a todas as pessoas condenadas por homossexualidade.
A lei tem o nome de Alan Turing, um herói da segunda guerra mundial que conseguiu quebrar o código secreto
dos alemães, salvando milhares, senão milhões, de vidas, mas foi condenado devido à sua orientação sexual,
expulso do serviço público, submetido a castração química e reduzido à miséria e ao opróbrio, tendo-se
suicidado em 1954. Como se não houvesse ainda países, e não assim tão poucos (mais de 70), em que a
homossexualidade é crime e 10 onde a pena prevista é a morte; como se essa criminalização da
homossexualidade não estivesse, sempre, ligada a ditames religiosos.

É aliás curioso que JMT mencione a lobotomia com o intuito de estabelecer uma comparação, que crê
absurda, com a "opinião" da psicóloga. É que além de internados em asilos e condenados como criminosos,
muitos (e muitas) homossexuais foram lobotomizados; era um dos muitos "tratamentos" a que os submetiam
como "doentes mentais".

Tempos horríveis, dos quais Maria José Vilaça sente nostalgia, como se percebe na citada entrevista: "A partir
do momento em que a nossa cultura defende e até incentiva a ver a homossexualidade como uma coisa
normal, as pessoas já nem se põem a questão se é certo ou errado, se estão bem ou se estão mal, se é uma
perturbação ou não. E então vivem-na como normal, o que faz com que cada vez se generalize mais. Nós
sabemos que uma coisa que é errada, se a lei ou a moral comum a torna correcta, deixa de se pôr a questão,
deixa de ser um problema. Às tantas também é um problema cultural grave. (...) "É preciso que a pessoa se
sinta mal com isso (...). E que queira mudar."

É esta "opinião" que JMT nos exorta a "rebater com argumentos sustentados". Sério, devemos debater com
Maria José Vilaça se os homossexuais são ou não doentes e devem ou não ser discriminados, perseguidos e
levados ao desespero de modo a procurarem pessoas como ela? Já agora, chamamos os tipos do Daesh para
fazer parte da mesa redonda, não? E que tal aproveitar e debater também se a mutilação genital feminina é ou
não uma boa prática clínica?

Percebe-se que agora que Trump ganhou as eleições na América com um triunfal discurso "pós-facto", com o
apoio da Ku Klux Klan e nomeando um antisemita para seu braço direito, há quem ache que entrámos na
máquina do tempo e voltámos aos anos trinta do século passado; que o ódio, a mentira e o retrocesso são o
novo normal. Que temos de tratar com respeito, talvez mesmo com reverência, como se valessem o mesmo
que a racionalidade, consensos científicos e factos comprovados, as "opiniões" alucinadas, baseadas em
mentiras e crenças, de racistas, sexistas, homofóbicos e fundamentalistas religiosos. Mas não, João Miguel
Tavares, não temos. Melhor: não devemos. Não banalizaremos o mal. Alguém que quer, através da prática
clínica, impor aos outros, insensível ao sofrimento que causa e louvando-o até como "redenção", as suas
crenças religiosas, não deve ter licença para o fazer. É para isso que servem as leis e as ordens profissionais:
para garantir que ninguém usa o poder que lhe é conferido por uma certificação oficial para subverter a sua
missão, infringindo direitos fundamentais e incentivando discriminações que a Constituição interdita. Porque
está errado. Porque é maldoso. Porque destrói vidas. Não está em causa calar Maria José Vilaça: pode subir a
púlpitos, escrever artigos, dar entrevistas, ir à TV pregar a sua visão do mundo e dos homossexuais. Mas não
como psicóloga. Porque isso, sim, é uma total anormalidade

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