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A DEMOCRACIA

SEU FUTURO SOCIAL E RELIGIOSO

PROJETO RESGATES DO ESBOÇO


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A DEMOCRACIA
E O

SEU FUTURO SOCIAL E RELIGIOSO

Por Mgr. GUILBERT

Arcebispa de Bordéos

Et dicit eis Jesus: Quid timidi estis,


modice fdei ?
«E Jesus lhes diz: por que Lemeis vós,
«homens de pouca fé ? »

(MATE, vim, 26.)

LISBOA
LIVRABIA CATHOLICA
JOAQUINA ANTONIO PAOHEBOO
CALÇADA DO CARMO, 6, 1.º (Rocio)

1888
——- a O e e eee
ocaabos panfme—a pe
4 .
:
Lisos — yr, UnivinsaL — 1886
INDICE ANALYTICO

I. — Origem da Democracia e seu progresso no passado e no futuro


IL. — Perigos que a Democracia corre e que só a religião, a Egreja,
POCO CONJRAE: ess cones caneco rss A TUNA 13
HI. — Não póde, menos do que qualquer outro, o regimen democra-
tico separar-se da Egreja, onde encontra a sua base mais
EIBED CIAL comes SCORE TOS SEEN de ve 25
IV. — À Egreja não se oppõe ao progresso social, pelo contrario fa-
VOrece-0 MUitO....... ci .reecis
V.—O progresso social, como o progresso religioso, só á custa
de
esforços se realisa. A provação é condição de toda a vida
terrestre para que nos não esqueçamos da vida futura.....
41
A DEMOCRACIA
E O

SEU FUTURO SOCIAL E RELIGIOSO

O nosso seculo tem, como teve cada um dos se-


culos passados, as suas provações e as suas cri-
ses. À epoca que atravessamos é indubitavelmente
uma epoca de crise e de profunda transformação
social: por toda a parte isto se reconhece, basta
ter olhos para vêr e ouvidos para ouvir.

O mundo moderno é impellido por um movi-


mento democratico de força irresistivel, movimento
para que não ha poder repressivo. A terra oscilla
debaixo dos nossos passos, e não só aqui, em Fran-
ça, como na velha Europa, na America, e até no
Extremo-Oriente. Por toda a parte se faz sentir
o surdo rumor que precede as commoções do solo,
e que annuncia a destruição e a ruina.
De feito, a democracia, á similhança duma tor-
rente que trasborda, arrasta nas suas ondas to-
dos os elementos, a verdade e o erro, o bem co
mal, as aspirações mais nobres c a vil cubica, O
a

possivel e o impossivel. Novo cahos onde reina a


6

mais completa anarchia nas ideias, como ha quinze


seculos, reinou nos factos, quando o velho mundo
romano, carcomido já, ruiu sob os golpes dos Bar-
baros.

Felizmente que no meio d'esse horroroso traba-


lho de decomposição, o elemento religioso teve as-
saz força para conjurar o perigo e salvar com a
civilisação a sociedade humana. E essa força per-
siste ainda. A Egreja nada perdeu da sua energia
immortal, e será sempre a taboa de salvação para
o mundo, na crise actual, como nas crises do fu-
turo.

A democracia, é, segundo a etymologia da pa-


lavra, o governo do povo pelo povo, nos seus re-
presentantes ou mandatarios.
Evidentemente, a democracia não teve uma exis-
tencia real antes da era christã, por isso que por
toda a parte se encontrava a escravidão, e nas
proprias republicas da Grecia e de Roma mais de
dois terços da população achavam-se reduzidos ao
estado de escravos.

Ninguem desconhece a horrivel situação d'uma


grande parte do genero humano, que era proprie-
dade, uma cousa, do senhor, «que d'ella dispunha
a seu talante, Parecia sem remedio este mal de
seculos, e os philosophos mais sensatos do tempao
1

consideravam-no incuravel, como uma fatalidade


social inherente à nossa natureza, quando uma
palavra, solta de labios divinos e dirigida tanto
aos senhores, como aos escravos, lhes diz: «Vós,
todos vós, sois irmãos, omnes vos fratres estis 1,»
Esta palavra, que até então se não ouvira, echoou
em toda a humanidade e foi o principio da mais
fecunda revolução social.
A Egreja nascente, depositaria do mysterioso
oraculo, realisando a sua missão, não quiz o em-
prego da força nem da violencia, que teriam sido
contraproducentes. Por meio da doçura e da per-
suasão, dirigiu-se a senhores e a escravos, a estes
prégando-lhes a obediencia, a paciencia e a resgi-
gnação, e áquelles a mansidão e todos os deveres
da caridade fraterna. Ouçamos o apostolo 8. Paulo
na sua Immortal epistola a Philemon, quando lhe
enviava o escravo que fugira *. Ouçamolo, diri-
gindo-se a toda a sociedade christã, na sua epis-
tola aos Galatas: «Todos os que fostes baptisados
em Jesus Christo, estaes possuidos de Jesus Christo.
Não mais judeu, nem gentio, escravo e homem Ii-
vre, homem e mulher. Todos sois um, em Jesus
Christo *.»

Esta doutrina, tão estranha então, por nova,


devia impressionar vivamente, e produzir impor-
tantes resultados, como o testemunha toda a his-

* Math, 3x0, 8,
2 Philem,
3 Galat, us, 27, 28.
8
toria dos primeiros seculos da Egreja christã. A
situação dos escravos melhorou sensivelmente, e
a sua liberdade, tão recommendada e apreciada
nas grandes obras de caridade evangelica, tor-
nou-se mais e mais frequente. A escravatura an-
tiga acabou por perder o seu caracter revoltante,
e tornou-se em simples servico.

Foi isto incontestavelmente um passo feliz na


senda do progresso, porém, faltava ainda muito
que andar. O homem deixava de ser vendido na
praça publica como o irracional, mas ficava liga-
do á terra e vendia-se com ella, como se vendem
as arvores lá plantadas.
Decididamente, não temos por que chorar o re-
gimen feudal, se bem que teve a sua razão de
ser; todo o espirito serio que estudou a histo-
ria d'essa epoca comprehende que, após as in-
vasões successivas dos Barbaros, n'esse mixto de
tantos povos, vencidos e vencedores, era difficil,
impossivel mesmo, estabelecer outro regimem. É
incontestavel que tambem o feudalismo teve as
suas glorias, e não se imagine que tudo se fazia
então pelo peor. Nem todos os senhores feudaes,
como os antigos senhores d'escravos, foram ty-
rannos. Conta-se entre elles um grande numero
de santos, christãos compenctrados do sentimento
do dever para com os servos, em quem a reli-
gião lhes mostrava irmãos, e quo elles procura-
vam tratar como taes, com bondade o piedosa
consideração.
Com tudo, sob a influencia da Egreja e dos
seus divinos ensinamentos, a dignidade humana
levantava-se dentro das almas, e a consciencia
desenvolvia-se e ganhava forças desde antes do
seculo xr, em que se manifestaram as primeiras
aspirações ao progresso e á liberdade.
Começou então essa larga e rude tarefa da li-
berdade das communas. Houve, sem duvida, mut-
tos obstaculos a vencer, muitas resistencias, como
ha sempre que se trata de desarreigar abusos se-
culares, que servem para sustentar os que se apro-
veitam d'elles. Mas não foram baldados os gene-
rosos e perseverantes esforços.
Mais do que uma vez os secundowà propria rea-
leza, quando lhe convinha diminuir e aniquilar
um poder que lhe fazia sombra e era entrave às
suas ambições.
Tambem muitos senhores feudaes leigos, e prim-
cipalmente ecclesiasticos, favoreciam estas nobres
aspirações democraticas, em vez de contrarial-as.
É-nos grato lembrar um dos nossos mais illustres
predecessores na cathedral VAmiens, o bispo 5.
Godofredo, que foi um dos que primeiro renunciou à
todos os seus privilegios, e, sem exigir indemnisa-
ção de especie alguma, deu a liberdade á communa,
de Amiens. Accrescentemos que teve a gloria de so!
frer bastante da parte dos conservadores dPaquelte
tempo, que o chamavam revolucionario, e classifi-
cavam de catilinarias os seus discursos; o que não
impediu que a Egreja o collocasse sobre os altares.
IO
——————

Como a vaga da montante, que, adiantando-se


e recuando, avança, o movimento democratico sus-
tentou com felicidade, apezar das resistencias, uma
lucta incessante até ao grande cataclysmo do ul-
timo seculo, em que se precipitou sobre o mundo
inteiro.

Mas se a Revolução franceza prestou á demo-


cracia Incontestaveis serviços, nem por isso deve
ser Julgada menos severamente. O progresso social
nada lucrou com as sangrentas orgias. Tantas cruel-
dades desnecessarias e tanto sangue inutilmente
derramado, importaram responsabilidades terriveis.
Houve criminosos, cujos nomes infamados para todo
o sempre, em vão se procuraria rehabilitar.
Todavia, é necessario convir em que a democra-
cia é hoje um facto notorio e palpavel. Se compa-
ramos a nossa epoca com as epocas precedentes,
desde a era christã, quanto progresso realisado!
que de mudanças prodigiosas na sorte da huma-
nidade, em todas as nações da Europa, e parti-
cularmente entre nós!
Em vez dos exagerados privilegios e das des-
egualdades injuriosas, a egualdade para todos pe-
rante a lei, como perante Deus; o accesso à todas
às carreiras, facultado a todos, sem distineção de
nascimento; a mais equitativa distribuição dos fa-
vores e dos cargos do estado; a justica imparcial
mais independente e melhor administrada.
Em vez do absolutismo e dos seus caprichos, te-
E

mos à liberdade, o respeito e a inviolabilidade para


as nossas pessoas e para os nossos direitos. À
nação, senhora de si propria, deixou de ser estra-
nha á gerencia dos seus negocios; incumbe-lhe
attender a essa gerencia e attende, e dá-se conta,
dos sacrificios que lhe são impostos.
É impossivel, comparando o presente com 0 pas-
sado, deixar de sentir o melhoramento de bem-es-
tar, de que gosam, sob todos os pontos de vista,
as massas, e que se deve evidentemente a todos
OS progressos sociaes.

E este espirito democratico, estas aspirações de


liberdade, de egualdade, de fraternidade, chegaram
a toda a parte, e manifestam-se mais e mais em
todos os povos civilisados do antigo, como do novo
continente. Affigura-se-nos certo que n'uma data
pouco afastada, pelo caminho que as cousas levam,
não haverá em parte alguma logar para o despo-
tismo. Existirá ainda algum homem d'Estado, por
mais partidario que seja do antigo regimen, que
acredite no restabelecimento duravel do poder ab-
soluto? d'um reinado de Luiz xrv?
Nós vemos, effectivamente, que em redor de nós,
entre todos os nossos visinhos, na Inglaterra, na
Hespanha, na Allemanha, na Belgica, na Austria,
o elemento democratico em cada dia ganha mais
terreno.
Não são constitucionaes ou representativos, os
seus governos, com o sufiragio universal, ou não
tende este a estabelecer-se por incessantes refor-
12

mas eleitoraes? Qualquer que seja a fórma offi-


cial, republicana, ou monarchica, lá existe, mais
ou menos, o governo do povo pelo povo.

Nenhuma força humana poderia fazer sustar


esta corrente, que nos parece providencial. Por-
que, mercê dos meios de propaganda que a de-
mocracia tem ao seu serviço, das modernas des-
cobertas scientificas, das industrias, do commer-
cio, que pôem em contacto as intelligencias e os
povos, as ideias caminham depressa, e nunca,
como agora, ellas caminharam tão depressa. E com»
fazel-as suspender? A imprensa e o jornalismo
arremessam-as aos quatro ventos; correm pelos
fios electricos; leva-as o vapor sobre os caminhos
de ferro e sobre os navios; estalam como bom-
bas sobre todos os campos de batalha! Sim, é
nossa convicção intima, que d'aqui a alguns annos,
cujo numero não podemos calcular, mas que não
será grande, a democracia com a civilisação christá,
terá feito a volta do mundo, para vivificar os
povos envelhecidos ou barbaros e levantal-os da
sua degradação e servilismo.

Mas não se esqueca que a verdadeira e legi-


tima democracia não póde viver e prosperar en-
tre um povo, sem uma condição essencial, a de
encontrar ahi bastante virtude para o acatamento
do regimen e cumprimento dos austeros deveres.
D'outro modo, está exposta a mil perigos; amea-
cam-na sobretudo os proprios excessos, que nunca
13

deixam de interromper-lhe o progresso, que pó-


dem suspendel-o, fazel-o recuar e entregal-a fatal-
mente, por algum tempo, nas mãos da dictadura.
Mais do que um exemplo nos offerece a historia.
A Egreja catholica, dizemol-o bem alto, é a unica
que póde salvar destes perigos a democracia mo-
derna.

JH

Era corrente na philosophia antiga que «mais


facil seria construir no espaço uma cidade, do que
uma sociedade sem Deus.»
E a verdade é que não se viu nunca um povo
digno d'este nome, um povo civilisado, onde não
existisse um templo, um altar, uma religião.
Se encontramos no passado religiões miseraveis,
mais ou menos depravadas, á superficie dos seus
erros e corrupções sobrenadaram sempre vestigios
da primitiva revelação, algumas verdades de re-
ligião natural, certos principios de moral essen-
ciaes, que bastaram para entreter o movimento
da vida social no coração das nacionalidades; e
sempre que este resto de força lhes faltou, cai-
ram fatalmente na decadencia, e n'uma dissolução
ultima.

Nós, só nós, temos a unica e verdadeira reli-


gião, a Egreja catholica divinamente levantada
sobre bases invenciveis. E esta obra immortal dum
Deus de misericordia, diz muito eloquentemente
14

Leão xr na sua incomparavel encyclica sobre a


constituição christã dos Estados, a Egreja, ainda
que, em si e pela sua natureza, vise á salvação
das almas e felicidade eterna, é na propria es-
phera das cousas humanas, a fonte de tantos e
tão grandes beneficios, que não seria possivel va-
zal-a em melhores moldes, se o seu fim principal
e directo fosse preparar e garantir a felicidade
n'esta vida. Effectivamente, onde a Egreja chegou,
mudou-se a face das cousas, e os costumes publi-
cos temperaram-se, não só de virtudes desconheci-
das até então, mas d'uma civilisação completa-
mente nova. Todos os povos que a receberam dis-
tinguem-se pela brandura, pela equidade, pelo
bom exito das suas emprezas. !»

Mas se todos os Estados carecem da religião


para subsistir e prosperar, ao Estado democratico
é ella indispensavel, por isso que é de todos o
que necessita de mais virtudes, de patriotismo,
d'espirito de sacrificio e dedicação, e portanto, de
mais atevantado sentimento religioso. Sustentam
esta verdade Montesquieu, de Tocqueville, e todos
os nossos grandes pensadores. Pelo que, o nosso
espanto corre parelhas com a tristeza, ao vermos
que entre os sectarios do regimen democratico,
certos homens, inimigos declarados da Egreja ca-
tholica e de toda a religião, procuram para ci-

' Encyclica Immoríale Dei,


15

mento do seu governo o atheismo e o materialis-


mo, a negação de toda a crença religiosa.
É verdadeiramente incrivel, isto! Inaginae
uma nação composta de atheus, de positivistas,
como elles se inculcam, sem crença em Deus, nem
na alma, e, conseguintemente, não reconhecendo
outra felicidade alem do que a terra lhes offerece
no espaço curto da vida presente, e nada receiando
nem esperando alem-tumulo. Em nome da vossa
moral independente, moral sem Deus, sem princi-
plo, nem sancção, invocareis perante elles, a pa-
tria e os austeros deveres, muitas vezes heroicos,
que ella impõe. Cuidaes que o vosso appello seja
ouvido? Imaginaes fazer calar, entre elles o egoismo
individual, a ambição e a cubiça? É impossivel.

Fallae muito e muito de liberdade, de egualda-


de, de fraternidade; esculpi esses grandes nomes
sobre todos os monumentos publicos; não bastará
isso para vos salvaguardar a democracia, se a
Egreja, que primeiro proclamou estes principios,
vol-os não explicar e fizer comprehender.

A liberdade não é, por certo, a faculdade de


tudo fazer. A verdadeira e legitima liberdade é
para cada um, o poder sem obstaculos, e na esphera
dos direitos, praticar actos, mas não sem respei-
tar à liberdade e os direitos alheios. Esta defini-
ção exacta é applicavel aos Estados, como aos in-
dividuos.
A liberdade e os direitos do Estado têm real-
16

mente limites. Isto, porem, é não poucas vezes


esquecido nas republicas e nas monarchias. O go-
verno, e principalmente o governo democratico,
deve respeitar a liberdade e os direitos naturaes
e legitimos de todos e de cada um dos cidadãos.
A demasiada concentração: do poder torna-se ty-
rannia, que suffoca a iniciativa do individuo, da fa-
nulla, da communa, e que dá em resultado um bando
d'escravos sob um senhor, ou bem elle seja repre-
sentado numa assembléa ou n'um monarcha, com
o nome d'Estado, mas que é apenas um despota. Não
se fez o povo para o Estado; no plano providen-
cial, o Estado é que foi feito para o povo. Sus-
tentar o contrario é, evidentemente, sustentar o
absurdo.

Assim como a liberdade e os direitos do Estado


são essencialmente limitados, tambem, inquestiona-
velmente, o são as liberdades individuaes de cada
cidadão: liberdade de pensamento, liberdade da
palavra fallada e escripta, liberdade d'acção; to-
das estas liberdades carecem de ser reguladas.
A liberdade de pensamento, que não pode ser
pautada no fôro externo, tem por norma a con-
sclencia do individuo que lhe prohibe adherir ao
mal e ao erro. Não ha menos certeza nas verda-
des moraes e religiosas do que nas verdades ma-
thematicas, e por isso não podemos, sempre que
ellas cheguem ao nosso conhecimento, regeital-as
sem culposa injustiça.
Não temos mais direito para duvidar que seja
17

um crime o parricidio, do que para duvidar que


os tres angulos do triangulo são eguaes a dois
angulos rectos.

Mas ainda mesmo que o homem se illuda em


boa fé, seja em materia religiosa, seja em poli-
tica, pode admittir-se que, no seu erro involun-
tario, tenha o direito de usar sempre da sua li-
berdade, e de dizer, de escrever e de fazer em
conformidade com os seus pensamentos e cren-
ças? Deve, realmente, fazer-se uma distincção es-
sencial entre o erro, que evidentemente, nenhum
direito pode ter a liberdade, e a consciencia, im-
vencivelmente erronea, que reclama o seu direito
de liberdade para publicar e propagar,o que gin-
ceramente julga ser a verdade. Comtudo, é im-
possivel conceder absolutamente, ainda ao homem
que se illuda em boa fé, uma liberdade illimi-
tada, sem que d'ahi resultem consequencias ex-
traordinarias e funestissimas.

Assim, a lhberdade de cultos, illimitada, au-


ctorisa logicamente os erros mais extravagantes,
as mais depravantes superstições, inclusivê os sa-
crificios humanos do antigo druidismo e os obs-
cenos mysterios dos santuarios de Eleusis.
À liberdade da palavra e da imprensa, illimi-
tadas, importariam o direito de propagar a im-
piedade e o atheigmo, as doutrinas antí-sociaes
mais subversivas, de propagar a revolta e a guerra
civil, tudo isto cousas lethacs para os governos.
eee
18

«Esta liberdade de pensar e de dar a publico


os pensamentos, isenta de todo o regulamento, diz
com muita razão o Papa na sua encyclica, não é
em si um bem por que a sociedade deva congra-
tular-se; ao contrario, é a causa de muitos ma-
les.»
Mas se a Egreja deve condemnar, e condemna,
estes abusos funestos, entretanto «ninguem, com
razão, a póde accusar de inimiga d'uma toleran-
cia justa e duma sã e legitima liberdade. E de
feito, continúa o Santo Padre, se a Egreja julga
que não pódem, legalmente, os differentes cultos
ser tidos na mesma conta da religião verdadeira,
nem por isso condemna os chefes do Estado que,
sob um ponto de vista razoavel, ou para evitar
males, toleram na pratica que cada um dos cul-
tos tenha seu logar no Estado. Quer ao contrario
a Egreja,e n'isto põe. o seu maior empenho, que
ninguem seja obrigado a abraçar a fé catholica
contra sua vontade, como pondera S. Agostinho,
«o homem só póde crer voluntariamente !.»
«Pela mesma razão, não póde a Egreja appro-
var uma liberdade que prepara o despreso das
mais santas leis de Deus, e se retrahe á obedien-
cia devida á auctoridade legitima. E licença, não
liberdade, que S. Agostinho com toda a justiça
classifica de «liberdade de perdição»? e o Apos-

3 "Jratado de 20 sobre 5, João, n.º 2.


2 Epis. ov, Ad donutistas, cup. u, n.º O,
19

tolo S. Pedro de «caminho do crime !». Alem d'isto,


essa pretendida liberdade, insensata, é uma ver-
dadeira escravidão: «O que pratica o peecado é
escravo do peccado» 2. Ao contrario, a verdadeira
liberdade, na ordem individual, não deixa que o
homem se torne escravo dos erros e das paixões,
a peior das tyrannias; e na ordem publica, é com-
pendio de sabias regras para os cidadãos, encami-
nha poderosamente ao bem estar, e preserva de
arbitrios a coisa publica. É esta liberdade, ho-
nesta e digna do homem, que a Egreja approva
encarecidamente, e para garantir aos povos o seu
g0z0, seguro e integro, combateu e luctou sem-
pre.»

Ha portanto um limite para todas as liberdades


humanas. Este limite não é sempre em toda a
parte o mesmo; póde e deve variar consoante os
tempos e as circumstancias, os costumes e o cara-
cter dos differentes povos, e na medida do grau
da sua civilisação; n'uma palavra, concedem e au-
ctorisam as leis mais ou menos liberdade na razão
inversa dos perigos que ha a receiar.

Mas estas leis prudentes e necessarias, que de-


vem circumscrever à liberdade humana, precisam
do apoio da religião no fundo das consciencias.
Sem elle, o que poderá soffrear o homem, arrastado

1 8, Pedro, wu, J0,


* 8. Joho, vin, Bá.
20

pela paixão violenta para alem da orbita dos seus


direitos, se se procurar contello apenas com O
medo do gendarme e da prisão, a que elle crê
escapar-se? «Póde o despotismo dispensar a fé,
diz algures M. de Tocqueville, não póde dispen-
sal-a a hberdade. A religião 'é muito mais neces-
saria na Republica do que na Monarchia, e mais
ainãa na Republica Democratica do que nas ou-
tras. Como poderia deixar de baquear a sociedade,
se não se apertasse mais o laço moral, ao passo
que o lamen politico se relaxa? E que poderia
fazer-se d'um povo, senhor de si mesmo, se elle
não tivesse submissão a Deus?»

À egualdade de todos perante a lei, como pe-


rante Deus, é seguramente uma grande cousa.
Mas a egualdade absoluta é evidentemente impos-
sivel; não existe em nenhum ponto, nem entrou
nos designios da Providencia. Phantasiae um mundo
povoado dhomens absolutamente semelhantes, phy-
sica e moralmente. Confessemos que um mundo
assim, era um mundo horrivelmente monotono,
onde o reconhecimento mutuo seria difficil. Deus
fez as cousas d'outro modo e, para maior belleza
da Sua obra, quiz a variedade na unidade.
Ha desegualdades essenciaes entre os homens;
não têem todos a mesma estatura, força muscular,
inteligencia, talento e capacidade. E o mesmo
acontece no que respeita á riqueza, á propriedade
material, por isso que não ha em todos egual ap-
tidão para a adquirir e conservar.
2
É alem d'isso evidente para todo o espirito pen-
sador que, se fosse possivel hoje dividir n'uma
perfeita egualdade os bens da França, esta egual-
dade desappareceria no dia seguinte.
Os proprios socialistas assim pensam. E por
isso a egualdade que elles reivindicam não é a
egualdade com os que lhes são inferiores, mas com
os que estão acima, que possuem mais; e difficil-
mente se resignariam a uma distribuição univer-
sal, que lhes impozesse a egualdade absoluta.

O que se tornaria a vossa democracia, depois


de terdes persuadido os desherdados da terra,
em harmonia com os vossos principios materialis-
tas, de que não ha alem do tumulo nenhuma com-
pensação para as desegualdades presentes, que
nada devemos esperar nem receiar depois da morte,
e de que é unicamente n'este mundo que deve
procurar-se a felicidade? Não são elles, os desher-
dados, o numero e a força?
O indigente, o operario, positivista e atheu, que
se esfalfa no trabalho arduo para ganhar o sus-
tento da mulher e dos filhos, o que nem sempre
consegue, que fará em face da vossa riqueza in-
solente, se o sentimento moral, ainda não de todo
extincto, não protestar contra as vossas funestas
doutrinas? Se lhes não restarem alguns vislumbres
da educação d'infancia, em que a mãe lhe fallou
de Deus e da Sua suprema justiça? Sim, porque
o homem que perdeu toda a esperança da immor-
talidade deve, so é logico e consequente, garantir-
22

se, tanto quanto caiba nas suas forças, a felici-


dade n'este mundo. O obstaculo que se lhe oppo-
nha tratará de superal-o a todo o custo. E se para
isso, desde que os seus manejos lhe não acarre-
tem perigo, elle tiver necessidade de decepar cem
cabeças de homens, quem lhe susterá a mão? É a
lucta pela vida, como diz a sciencia moderna, e não
lhe faltam exemplos no meio das florestas, onde
às pequenas arvores são asphyxiadas pelas grandes,
onde os mais fortes animaes devoram os fracos!
Mas, fallam-nos da fraternidade! Qual fraterni-
dade? Fóra dos principios christãos não existe
nem pode existir fraternidade.
Para os pantheistas tudo é Deus e Deus é tudo.
O universo, com todos os elementos que o com-
põem, é eterno, e uma lei fatal preside á organi-
sação e desorganisação dos seres que nos cercam;
mineraes, vegetaes, animaes. Todo este trabalho
eiiectua-se, diz-se, por evolução continua atravez
dos tres reinos da natureza. Cada ser organisado
começa pela cellula e desenvolve-se gradualmente
até ao homem, que não é talvez o termo ultimo
d'esta progressão.
Ora, o que será a fraternidade humana n'estes
systemas de philosophia? Realmente, estes sabios
pantheistas não têem outro direito que não seja o
de escrever com Job, porem sem tropas nem poesia:
«Eu disse ao verme do sepulchro: Tu és meu pae!
e à podridão: Tu és minha mãe e minha irmã! !»

* Job, xvu, 14,


23
Só o christianismo nos offerece os verdadeiros
principios da fraternidade humana. É elle que nos
ensina que todos descendemos do mesmo pae e
da mesma mãe, e n'esta unidade d'origem somos
realmente irmãos, por Isso que o mesmo bángue
circula nas nossas veias.
Filhos de Adão e Eva, a fé catholica revela-nos
uma outra fraternidade mais sublime e toda divina:
a fraternidade em Jesus Christo, que «não duvidou
chamar-nos seus irmãos» !. E somol-o, effectiva-
mente: o eterno Filho de Deus, encarnando, tor-
nou-se filho do homem, participe da nossa natu-
reza, razão por que nós lhe somos consubstanciaes,
na realidade. Este divino parentesco aperfeiçoa-se
e completa-se por virtude dos Sacramentos, e so-
bretudo do da Eucharistia, em: que Elle nos com-
munica a Sua propria Carne, e o Seu proprio San-
gue. Sim, nós somos Seus irmãos, e devemos .di-
zer a Seu Pae, como Elle Mesmo nos ensinou:
«Padre Nosso que estaes nos Ceus?.» E o apos-
tolo S. Paulo conclue d'aqui magnificamente: «To-
dos os que sois baptisados em Jesus Christo: não
sois mais do que um em Jesus Christo.»
Quem diria os effeitos maravilhosos d'esta di-
vina fraternidade no mundo, ha dezoito seculos?
É ella a fonte inexgotavel da caridade, sob todas
as fórmas: o amor do proximo, clevado até ao
heroismo, o perdão das injurias, lenitivo para ta-

! Hebr. sm, 11.


2 Muth., vr, 8.
3 Gal., ur, 28.
24

das as dores, o auxilio em todas as angustias.


Contae atravez todas as epocas e por toda a parte
onde passou a Egreja, os hospitaes, os estabeleci-
mentos de toda a especie abertos á Infancia, á ve-
lhice, a todas as enfermidades humanas: foi sem-
pre a fraternidade divina que poz e abençoou os
alicerces.

A liberdade, a egualdade e a iraternidade, ele-


mentos essenciaes da verdadeira democracia, nas-
ceram, portanto do christianismo, e só elle pode
garantir-lhes a integridade e pureza. Tocados pelo
atheismo, sempre, ao contrario, se desvirtuaram e
amesquinharam, e com elles desvirtuou-se e ames-
quinhou-se a propria democracia. Por sem duvida;
Interrogae a historia, ha lá, que-fortes, grandes e
terriveis lições.
Liberdade sem Deus! Quando não seja a licença,
desenfreada e a anarchia absoluta, não passa d'um
nome com que se velam os que a confiscaram em
proveito proprio. ,
Egualdade sem Deus! É o socialismo radical,
o communismo, todas essas monstruosas e loucas
utopias, impossiveis sem duvida, Irrealisaveis, mas
de que um ensaio, apenas basta para destruir
nalguns mezes um paiz inteiro e Juncal-o de rui-
nas immensas.
Fraternidade sem Deus! É a fraternidade da
besta, sem coração nem entranhas! a fraternidade
de Caim, a fraternidade da morte!
29

E poderia ser d'outro modo, n'uma sociedade


de atheus e de materialistas, se forem consequentes
comsigo mesmos e com os seus principios? Se o
ponto final da sua existencia é o nada eterno,
nenhum outro cuidado os deve preoccupar além
da satisfação na vida presente. Que lhes impor-
ta o mais? Que lhes importa o futuro da patria,
o vosso Deus-humanidade, ou o vosso Deus-Es-
tado, de que elles em breve se separarão para
sempre e que lhes não servirá para nada!

HI

A grande heresia do nosso tempo consiste em


querer, debaixo do barbaro nome de laicisação,
excluir Deus do Estado como da familia e de to-
das as instituições sociaes; tentativa impossivel,
porque é contra a natureza das cousas!

O homem é, sem duvida, um ser essencialmente


religioso; é este o seu caracter distinctivo. Tem
o presentimento do infinito; a consciencia d'uma
causa primaria e necessaria do mundo visivel, en-
trevê uma outra vida depois desta, e só a reli-
gião satisfaz as suas nobres aspirações, e as suas
esperanças na Immortalidade. Sente a mais im-
preterivel necessidade da religião para si e nas
suas relações com o mundo exterior. Quere-a no
lar para lhe ser consolação nas agruras, e conforto
26

nos desalentos; para lhe abençoar os filhos e con-


servar-lhes a fé, os costumes puros, e todas as
virtudes que constituem a honra da familia.

E, por ventura, o homem que se torna cidadão,


membro da sociedade civil deixa de ser religioso?
e a sociedade, como agrupamento de homens re-
ligiosos, pode não ser religiosa no seu conjuncto?
Por que ha de, pois, ser estorvada de manifestar
exteriormente a sua fé, e de professar a sua re-
ligião nacional? Pois que! Reconhece-se o direito
de communidade de ideias, e da sua propagação
e conversão em factos, em materia politica, com-
mercial, industrial, artistica, e não nos será dado
este direito em materia religiosa, e ha de ver-se
cada qual obrigado a encerrar-se dentro de si
mesmo, e prestar culto a Deus, só e privadamente!
Mas o culto exterior e publico é evidentemente
consequencia necessaria do culto interior e indivi-
dual. E não hade uma nação como a França, ge-
ralmente christã e catholica, estabelecer um ser-
viço publico do seu culto, nem, principalmente
inscrever os recem-nascidos no respectivo registro,
só porque, sob pretexto de liberdade de conscien-
cia, ha alguns dissidentes em pequenissima mi-
noria! O que seria de todos os outros serviços
publicos, se, por egual consideração, fosse neces-
saxo attender quem os tem em menos conta e os
não aproveitar?
Sem duvida que deve respeitar-se a liberdade
dos dissidentes: creiam o que quizerem 'ou não
27

tenham crenças; sejam livres no culto religioso da


sua escolha. Já o dissemos, a fé catholica não se
impõe com a força e pela violencia, mas pela per-
suasão, dirigindo-se á consciencia livre do homem.

Nós, os christãos, que somos a grande maioria


da França, sabemos que Deus, que fez os povos,
como fez a familia, tem sobre elles direitos sobe-
ranos e Imprescriptiveis, que lhe é devida a ho-
menagem publica da adopção da obediencia, do
amor, de tudo que constitue o culto nacional.
Ou será que uma nação tem menos necessidade
de Deus e da protecção de Deus, do que a fami-
lia, e o individuo? E quereis vós ao que dizeis,
lucisar o Estado, isto é tirar-lhe Deus e a reli-
gião. Não pode ser. Esse projecto de separação
da Egreja do Estado seria um contrasenso, uma
criminosa injustiça, se não fosse para o Estado
o peor dos attentados, pois feril-o-ia no seu prin-
cipio vital, na sua base de essencia.

Não se concebe um Estado, seja qual fôr o re-


gimen, sem uma ordem estabelecida; e, consequen-
temente, sem uma auctoridade respeitada e obede-
cida; d'outro modo seria a anarchia. E d'onde
procederá esta auctoridade, se não proceder de
Deus? Poderá tiral-o o Estado de si proprio? Será
a soberania do povo, segundo a linguagem em
uso, um principio primordial, que-constitue o povo
seu proprio soberano, absolutamente independente,
com o direito de tudo fazer e decretar, sem outra
28

necessidade, como diz Rousseau, mais do que a


propria vontade para legitimar os seus actos?
O bom senso o mais vulgar, responde que exis-
tem direitos anteriores aos do povo, direitos que
elle é obrigado a respeitar. Ha uma justiça eterna,
uma eterna lei, que a consciencia nos accusa, e
que nenhum legislador humano, monarcha ou as-
sembléa, poderia derogar sem crime. É esta lei
suprema e immortal a base necessaria das nossas
leis civis; é ella que lhes communica toda a força
e auctoridade para as tornar obrigatorias; sem isso,
não seriam leis.

Como suppor que o povo possa ter em si e ti-


rar de si o poder de governar? Sendo eguaes to-
dos os homens, nenhum, seguramente, tem o di-
reito de mandar os outros. Ora, um povo é apenas
a reunião de homens, um numero de individuos,
de unidades sem direito; como admittir que esta
somma de unidades sem direito possa produzir o
direito? Zero multiplicado por zero, dá zero. Não,
nenhum povo tem em si o direito de mandar, o
direito de impôr a sua vontade a uma conscien-
cia humana. Póde, sem duvida a força material
fazer martyres, mas essa força não attingirá nunca
os arcanos mysteriosos d'uma alma livre.
Em certas circumstancias providenciaes e resul-
tantes das forças dos acontecimentos, uma nação
póde escolher a fórma do seu governo, monarchica
ou republicana, eleger um ou dois chefes; não con-
testou nunca a Egreja este direito, como por duas
29

vezes o fez notar o Soberano Pontifice na sua


recente encyclica. Os escolhidos pela nação são por
certo os depositarios do poder, da soberania. Mas
esta soberania é de Deus, vem de Deus, «ommis
potestas a Deo», e só com este titulo o respeito
e a obediencia lhe são devidos.

A Egreja não deixou nunca de sanccionar com


a sua divina auctoridade esta sublime doutrina,
bascada na propria natureza das coisas, e ensi-
nou-a sempre, em todos os tempos. Escutemos O
nosso grande Pontífice Leão xim que, com uma
precisão admiravel, acaba de expôr-nos essa these
capital: «O homem nasceu para viver em socie-
dade, porque, sendo-lhe impossivel procurar no
isolamento o que é necessario e util á vida, e
adquirir a perfeição de espirito e de coração, foi
creado pela Providencia para unir-se aos seus se-
melhantes em sociedade, tanto domestica, como
civilmente, pois só assim terá o que precisa para
a perfeição da existencia. Mas como nenhuma so-
ciedade póde existir sem chefe, que presida e im-
prima a cada individuo o mesmo impulso efficaz
para um fim commum, segue-se que os homens
constituidos em sociedade carecem duma aucto-.
ridade que os governe, auctoridade que, assim
como à sociedade, procede da natureza, e portanto
de Deus.
«E assim, o poder publico não póde vir senão
de Deus. Deus é com efícito o Soberano Senhor
das cousas: todas devem, indistinctamente, ser-lhe
SO

submettidas e obedecer-lhe; de tal modo, que


aquelle que tem o direito de mandar só de Deus
recebe este direito, porque é Elle o Chefe supremo
de tudo o creado.»
«Todo o poder vem de Deus!.»

«De resto, a soberania não está em si neces-


sariamente ligada a nenhuma fórma politica; póde
muito bem adaptar-se a esta ou áquella, desde
que uma ou outra se torne apta á utilidade e bem
commum. Mas, seja qual for a fórma de governo,
os chefes do Estado devem ter absolutamente os
olhos fixos em Deus, soberano moderador do mundo
e tomal-o por modelo e como norma, no cumpri-
mento dos seus mandatos. E de feito, assim como
na ordem das coisas visiveis, Deus creou causas
secundarias, em que se reflectem d'algum modo à
natureza e a acção divina, e que concorrem para
o preenchimento das funcções do universo, tam-
bem quiz que na sociedade civil houvesse uma
auctoridade, cujos depositarios fossem como ima-
gem, não só do poder, que Deus tem sobre o ge-
nero humano, mas da Sua Providencia.
«O governo deve portanto ser justo; menos o
governo d'um senhor que dum pae, pois que à
auctoridade de Deus está ligada a uma bondade
paternal. Deve além d'sto exercer-se para bene-
ficio dos cidadãos, visto que os que teem aucto-
ridade sobre os outros tem-na exclusivamente para

1 Rom. xuir, 1.
31

garantir o bem publico. A auctoridade não deve


converter-se sob nenhum pretexto, no patronato
d'um só ou d'alguns, por isso que foi constituida
para o bem commum.
«Se os chefes do Estado se deixam cair n'uma,
administração injusta, se peccam por abuso do
poder, ou por orgulho, se não proveem aos in-
teresses do povo — compenetrem-se elles bem d'isto
— um dia hão de prestar contas a Deus e es-
tas contas ser-lhe-hão tomadas tanto mais seve-
ramente quanto mais santo é o cargo que des-
empenham, e mais elevado o grau de dignidade
de que se acham investidos: «Os poderosos se-
rão poderosamente punidos !.»
«Assim a magestade do governo captará a ho-
menagem espontanea do respeito dos cidadãos,
porque, se estes teem a convicção firme de que
a auctoridade dos que governam provém de Deus,
ver-se-hão obrigados, para serem justos, a accei-
tar docilmente as ordens dos principes, e a pres-
tar-lhes obediencia e fidelidade, com aquelle sen-
timento de piedade, que ha da parte dos filhos
para com os paes. «Toda a alma deve submet-
ter-se ás potencias mais elevadas 2.» Não é per-
mittido desprezar o poder legitimo, seja quem
fór a pessoa que o represente, como não é per-
mittido negar-se à vontade de Deus; os que resis-
tem cavam-se a propria ruina. «Quem resiste ao

* Sap., vi, 7.
2 Rom, xi, À.
32

poder resiste á ordem estabelecida por Deus; e


os que resistem attrahem sobre si mesmos a con-
demnação !.» D'aqui resulta que a esquivança
à obediencia e o revolucionar a sociedade por
meio da sedição é um crime de lesa-magestade,
não só humana, mas divina.»
Tal é, no plano providencial, a verdadeira con-
stituição dos Estados. E o codigo da moral civil
a que, positivamente, d'ella dimana, tem o seu
principio em Deus, com a Sua eterna sancção.
Portanto, respeito e obediencia ao poder da parte
dos que são governados. É um mandamento di-
vino, formal. Respeito ao poder tambem da parte
d'aquelles a quem elle foi confiado, e que não
tem o «lireito de exercel-o senão para o bem ge-
ral, nunca em seu pessoal interesse! «Vós sa-
beis, diz Jesus Christo, que os principes das na-
ções as dominam; não seja assim entre vós; O
que quizer ser maior entre vós, seja vosso ser-
vo... como o filho do homem, que não veio para
ser servido, mas para servir 2.»
«E agora, ó reis, comprehendei, instrui-vos,
vós, que julgaes a terra. *!» Uma grande res-
ponsabilidade peza sobre vós, e cedo tereis que
dar conta rigorosa da auctoridade ou da par-
cella de auctoridade de que apenas sois depo-
eitarios. Não o esqueçaes, 6 reis, imperadores,

! Rom, x, 2,
2 Muth., xxv, 28, 20,
3 Ps.,u, 10.
33
presidentes de republica, senadores, deputados, e
vós mesmos, simples eleitores, na soberania d'um
dia, quando vades levar á uma o vosso gufiragio!

Oh! se a democracia moderna quizesse compe-


netrar-se d'estes principios christãos; ge nos co-
micios eleitoraes, para escolha dos senadores, dos
deputados, dos conselheiros geraes, municipaes,
cada eleitor, inspirado no sentimento christão,
désse o seu voto apenas aos candidatos mais ho-
nestos e intelligentes, aos mais aptos para pres-
tar serviços ao paiz, que felizes resultados para
bem de todos! A obediencia nobilitada, tornar-se-
hia mais facil, e o poder, confiado em mãos di-
gnas, não deixaria de ser respeitado.
O Estado, salvo dos horrores da anarchia e das
vergonhas do despotismo, acharia na ordem a paz
e a felicidade.
IV

Nunca à Egreja, ha dezoito seculos, perdeu de


vista este fim social. Porque, longe de ser ini-
miga do Estado, accusação que lhe fazem indi-
gnamente, interessa-se, ao contrario, pela sua pros-
peridade, delle, e sempre se mostrou favoravel
ao progresso dos povos. Sem duvida esforça-se por
expurgal-a da escoria e de todos os elementos per-
niciosos, mas tem-se afanado e continúa a afanar-
se pelo desinvolvimento da verdadeira civilisação.
Testemunham-n'o os historiadores mais imparciaes,
S&

homens de intelligencia e de genio. Mas ninguem


como Leão xi expoz e analysou esta acção fecunda
e civilisadora da Egreja sobre a sociedade.
«Houve um tempo, diz elle, em que a philoso-
phia do Evangelho governava Os Estados.
Nesta epoca a influencia da sabedoria christã
e da sua virtude divina penetrava as leis, as ins-
tituições, os costumes dos povos, todas as ordens
e todas as relações da sociedade civil. Então a
religião instituida por Jesus Christo, solidamente
estabelecida no grau de dignidade que lhe é de-
vido, florescia por toda a parte, graças ao favor
dos principes e á protecção legitima dos magis-
trados. Então o sacerdocio e o imperio estavam
ligados entre si por uma feliz concordia e troca
amigavel de bons officios. Organisada d'esta sorte,
a sociedade civil produziu fructos superiores a to-
da a espectativa, a memoria dos quaes subsiste
e subsistirá, consignada como está em documentos
immortaes, que artifício algum dos adversarios po-
derá jámais corromper óu obscurecer.
Se a Europa christã domou as nações barba-
ras e as fez passar da ferocidade à mansidão, da
superstição á verdade; se repelhu victoriosamente
as invasões musulmanas; se tem guardado a su-
premacia da civilisação e se em tudo o que faz
honra á humanidade, constantemente e por toda
a parte se tem mostrado guia e soberano; se gra-
tificou os povos com à verdadeira liberdade de-
baixo de suas diversas formas; se tem fundado com
muita sabedoria uma multidão d'obras para alli-
db

vio das miserias, é fóra de duvida que tudo isso


é em grande parte devedor á religião debaixo
de cuja influencia e auxilio emprehendeu e levou
a cabo tão grandes cousas.

Sim, a Egreja catholica não foi nunca, no pas-


sado, inimiga do verdadeiro progresso social, e
está sempre disposta a auxilial-o, no presente e
no futuro. «Assim pois, declara n'outro logar o
nosso grande Papa, dizer que a Egreja vê com
maus olhos as ultimas fórmas do systema poli-
tico, e repelle em globo todas as descobertas re-
centes, é uma calumnia vã e sem fundamento.
«Regeita, por certo, as más opiniões, reprova
a perniciosa tendencia para a revolta, e muito
principalmente esta predisposição dos espiritos
em que se nota a vontade de afastar-se de Deus;
mas como o que é verdadeiro só póde proceder
de Deus, a Egreja reconhece como um traço da
inteligencia divina tudo quanto as indaga-
ções do espirito humano descobrem de verdade;
e por isso, que não ha verdade natural que pre-
judique a fé nas verdades divinamente reveladas,
que muito a confirmam, e porque toda a desco-
berta de verdade póde levar ao conhecimento do
proprio Deus, a Egreja acceitará sempre de bea
vontade e com satisfação tudo o que contribua
para o alargamento do cabedal das sciencias, e
patrocinará e dará incentivo ás que teem por fim
o estudo da natureza, como fez sempre a todas
as demais!
36

t u d o s à E g r e j a n ã o se op -
« N e s t e g e n e r o de e s
t a do e s p i r i t o ; vê s e m
põe à nenhuma descober
r a ç õ e s q u e v i s a m ào a p e r -
desprazer todas às locub g a n ata da
tar, € c o m o i n i m i
feiçoamento e bem es m e n t e q u e se-
, d e s e j a v i v a
inercia e da ociosidade a l h o s
o s a b u n d a n t e s os t r a b
jam coroadós de fruct
do homem. Tem incentivos
e esforços do genio
a r t e s € i n d u s t r i a s , € e n c a m i n h ando,
para todas as
e , t o d a s as i n d a g a ç õ e s a u m fi m
por sua virtud in te ll i-
pr oc ur a im pe di r qu e a
honesto e salutar,
genc ia e a in du st ri a do ho me m se de sv ie m do s
bens celestiaes. »

«Mas, accrescenta com tristeza O Santo Padre,


este modo de proceder, tão razoavel e prudente, é
depreciado no nosso tempo, em que 08 Estados
não só recusam conformar-se com os principios da
philosophia christã, mas parece quererem pôl-os
de parte cada vez mais. Comtudo, como é pro-
prio da luz reverberar ao longe e penetrar pouco
a pouco os espiritos dos homens, nós, levado pela
consciencia das muito altas e muito santas obri-
gações da missão apostolica de que nos achamos
investido, e em cumprimento d'um dever, procla-
mamos desassombradamente a verdade. Não que
tenhamos em nenhuma conta os tempos, ou por-
que julguemos dever condemnar os progressos ho-
nestos e uteis da nossa epoca; mas porque qui-
zeramos ver os negocios publicos seguir por ca-
minhos menos perigosos e assentar sobre bases
mais solidas; e isto sem offender a legitima lber-
J7
dade dos povos, essa liberdade, de que a verdade
é entre os homens a fonte e a melhor salvaguar-
da: «A verdade nos libertará !».
Infelizmente, a Egreja e os seus Pontifices nem
sempre teem sido escutados, como deviam sel-o,
e muitas vezes se tem posto obstaculos á sua ac-
ção salutar. Todavia, apezar dos obstaculos e dif-
ficuldades de todo o genero, no seio das socieda-
des que a Egreja attingiu, algumas mudanças ma-
ravilhosas se operaram sob a sua influencia. Com-
parem-se as condições do nosso tempo com as de
ha dezoito seculos! Que progresso nos: espiritos,
nos costumes, nas leis! Olhae para o mappa do
mundo: onde encontraes a civilisação? não é ape-
nas onde o Evangelho foi prégado, onde a cruz foi
hasteada e se conservou? De certo, em toda a parte
está a barbaria ou civilisações decrepitas, escassas
de seiva e de yida: É isto um facto incontestavel.
E será devido ao acaso este phenomeno de não
encontrar civilisação, que não seja importada pela
Egreja? Ninguem ousaria .affirmal-o. É que ha ea-
tre uma e outra, entre a civilisação e a Egreja,
um laço de parentesco, como de filho e mãe, fa-
dadas ambas para o mesmo. destino. Não tiveram
sempre como peoneiros em todos os caminhos do
mundo, os nossos missionarios catholicos? BK
quando o despotismo e os verdugos 08 aprisiona-
ram, à civilização foi aprisionada tambem e mor-
reu afogada no sangue dos martyres.

1 Joan. vis, 32, — Eneyelica Immortals Dei,


38 aa

Attentem nisto os diplomatas europeus, sobr,


?' .

tudo agora, que não ha já distancias, pois os int Au


. 4 A :
resses materiaes vão pôr em contacto todos 08
E"

povos e todas as raças. Como seria facil uma emu.


zada fecunda e pacifica a bem da humanidade!
Não se trata de certo de conversão por tio
da força e da violencia, que só dariam em resul.
tado pusillanimes hypocritas, e que a Egreja con-
demna; mas pela persuasão, pela palavra e dedi-
cação dos nossos apostolos missionarios, que ape-
nas carecem de que lhes protejam a vida e a liber-
dade.
Graças a intrepidos exploradores, cada dia se
faz mais luz sobre a situação das Innumeras po-
pulações da Asia, da Africa, da Oceania. É por
toda a parte, quasi, encontra-se a barbaria ou à
decrepitude, o abaixamento moral e à escravidão
d'uma grandissima maioria indignamente explorada
por uma minoria não menos degradada. Não seria
infinitamente para desejar, tanto no nosso imte-
como no d'ellas, que essas popula ções fos-
resse,
iniciad nas nossas ideias, no nosso espirito,
sem as
bella civilis ação christã fosse lá introdu -
e que -a
Porque, não padece duvida,
zida e propagada?
fazendo christã os, podemo s esperar fazer
somente
povos civilisados.

Só a Egreja Catholica é capaz de levantar à


humana e civilisar o mundo. Precisou
dignidade
cu lo s pa ra es ta gr an de ta re fa no so lo
de dezoito se
39

da velha Europa. Mas que são dezoito seculos com


relação ao numero de seculos que Jesus Christo
destinou para a Sua Egreja? Parece-nos que O
reinado do Evangelho está ainda no começo; não
deve elle estender-se a todos os pontos, até aos
extremos da terra, e levar a toda a parte a sua
acção salutar? A ordem divina foi dada: «Ide ao
mundo inteiro prégar o Evangelho a toda a crea-
tura, Omni creaturc !.» Evidentemente esta ordem
prophetica não foi ainda cumprida; não obstante,
cremos que na hora presente a Providencia prepa-
rou já tudo para um proximo triumpho. De feito,
nunca como agora a Egreja teveá sua disposição
melhores e mais poderosos meios de propaganda.
Garantam-lhe apenas a liberdade, de modo que
ella possa, sem grande perigo, apresentar-se a to-
dos os povos, a todas as raças, e ensinar-lhes as
suas doutrinas celestes. O exito será seguro.

De todas as religiões positivas que hoje cam-


peiam no mundo, é, sem duvida a religião catho-
lica a unica que tem uma historia authentica, e
que apresenta provas da sua divindade, fundadas
sobre factos e prodigios, que é impossivel negar,
sem renunciar a toda à certeza historica; só ella
dá solução aos grandes problemas da vida e da
morte, do tempo e da eternidade, e corresponde
ás exigencias e a todas as nobres aspirações do
espirito e do coração do homem. A Egreja catho-

! Marc. xvi, 15,


ss sas tm
o

lica apenas tem necessidade de ser conheci


* para
ser amada e abraçada.
Em face d'ella todos os cultos falsos, as falas
religiões positivas, bem como os vagos e cambian.
tes systemas de philosophia, estão condemnados a
esvaecer-se e a desapparecer, como as trevas des.
apparecem á chegada da luz. Sim, é para nús
convicção firme:que n'um dia que não vem longe,
talvez, o genero humano se dividirá, sob o ponto
de vista religioso, em duas classes de homens:
d'um lado, christãos catholicos, do outro, scepticos
que apenas crerão no nada. Mas o nada é o va-
cuo, que horrorisa a natureza, e o amor do nada
é monstruosidade que só pode existir como exce-
pção.

Comtudo, a incredulidade, o scepticismo, não des-


apparecerão completamente. É este o grande es-
candalo do futuro, que o apostolo classifica de ne-
cessario; haverá sempre n'este mundo duas cida-
des, a cidade de Deus e a cidade de Satan; sem-
pre o joio ao lado do bom grão, na mesma seara
do pae de familia; e Jesus Christo não quer que
o arranquem, mas que se espere o tempo da co-
lheita.
Os verdadeiros christãos hão de saber esperm
com paciencia e resignação, sobretudo com tnor
c caridade. Orarão, sem desesperar nunca de seus
irmãos transviados, muitos dos quaes voltarão como
Magdalena, Paulo e Agostinho, na pora mysterios
da graça, para encher de jubilo a um tempo à
4

Egreja da terra e a Egreja do céo, pois que é


grande no céo a alegria, sempre que um pecca-
dor se converte n'este mundo.

A Egreja catholica tem garantias de immorta-


lidade, já confirmadas em dezoito seculos de luctas
e de triumphos manifestamente sobrehumanos.
Deve, pois, até à consummação das coisas, continuar
no cumprimento da sua missão divina, que tem
por fim, primeiro e directo, guiar o homem ao seu
eterno destino. Mas, ao mesmo tempo, não dei-
xará nunca de ser o esteio firme dos Estados.
Não nos illudamos porém, sobre o futuro do
progresso social. A perfeição não é d'este mundo;
e a despeito dos serviços que a Egreja pode pres-
tar á democracia, preservando-a d'erros funestos
e penetrando-a dos melhores principios de vitali-
dade, esta não deixará de ter no futuro, como no
passado, uma rota difficil e laboriosa.

Ha ordinariamente, duas especies de adversa-


rios do progresso social. Uns, demasiado timidos,
receiam o menor movimento, recusam avançar, que-
rem parar e voltar para traz. Outros, por demais
audaciosos, tornam-se impacientes, querem ca-
minhar muito depressa, e sem attender ao meio
e às circumstancias, precipitam-se imprudente-
mente no proprio abysmo. Foi assim em todos os
tempos e por toda a parte.
42

Ha, com effeito, espiritos sempre voltados para o


sado, mais ou menos apostados a lastimar à
falta d'um estado. de coisas que se tornou impos-
sivel porque à humanidade, como as torrentes,
pão retrocede, € é em vão que se procura suspen-
der um movimento irresistivel e fatal.
É necessario tambem convir, em que a louca im-
prudencia de certos progressistas muitas vezes tem
inspirado justos receios. A historia moderna e a
contemporanea têem paginas tristes, pouco anima-
doras para aquelles mesmo que sentem maior ten-
dencia á democracia e á liberdade. E estes exces-
sos, indubitavelmente, ser-lhes-hão sempre estorvo
na sua propagação regular e benefica atravez do
mundo.
O que a prudencia hoje aconselha, não é com-
tudo impedir o progresso democratico; seria im-
potente para isso toda a força humana; mas
guial-o e esbulhal-o dos elementos impuros e pé
rigosos, que lhe são estranhos, sobretudo dirigil-o
caminho da justiça e da verdade , como se
pelo
dirige a corrente d'um rio, para que fecunde, mito
para que devaste as margens.

l o ao p r o g r e s s o so ci al ,
Mas o grande obstacu r e o € g 0 1 =
o, se rá s o m p
como ao progresso religios e m nunca
pa ix õe s, q u e nã o m o r r
mo , as m á s m a l d e s d e à ju ve n-
nad
«incli o ao
tre o homem, n c a d e l a u n i - s €
como diz a Escr i p t u r a *. D es e
tude»,
re

“Gen, vm, 21,


4d

e desencadear-se-hão em todos os tempos para se-


mear à perturbação, no Estado e nas suas neces-
sarias relações, de modo a travar e retardar a mar-
cha da civilisação.

A propria Egreja não está isenta d'estes peri-


gos, governadá como é por homens que não são,
com toda à certeza, impeccaveis. Mais d'um leitor,
insciente das fraquezas da natureza humana, ao
percorrer as paginas dos annaes da Egreja, se ad-
mirou e escandalisou por encontrar a par de vir-
tudes heroicas, desordens deploraveis. Os vícios
d'uma sociedade semi-barbara e em extremo de-
pravada, introduziram-se muitas vezes no proprio
santuario, desvirtuando-o e profanando-o. À ava-
reza nas riquezas, a ambição, a corrupção dos cos-
tumes, à simonia, fizeram verter lagrimas a mui-
tos santos, que nunca elles faltaram nos peores
dias, não cessando de pedir em altos gritos à re-
forma nos chefes e nos subditos. O concilio de
Trento comprehendeu bem esta necessidade, con-
sagrando á reforma do clero um capitulo em cada
uma das suas Sessões.
É incontestavel que, ao presente, o clero catholico
offerece, geralmente, um espectaculo dos mais con-
soladores. Comtudo, elle deve lembrar-se sempre
do conselho que Jesus Christo dava aos Seus apos-
tolos no jardim de Gethesemani: « Vigilate et orále,
.
vigiae é orac para não entrardos em tentação'»
——

! Math. x1v, 38.


44

Mas é moralmente impossivel não encontrar al-


guma vez escandalos na immensa legião sacerdo-
tal, dispersa por todo o mundo. O contrario seria
um milagre, que Deus não quiz, deixando ao. ho-
mem o livre arbitrio. Haverá pois, em todo o
tempo, alguns prevaricadores esquecidos dos seus
juramentos e da dignidade do seu sacerdocio, que
serão, d'algum modo, um obstaculo á acção da
Egreja na sua missão civilisadora.

Os governos humanos, por sua parte, quanto


não têem sofírido, e quanto não têem a receiar
sempre do desencadeamento das paixões? Sob
todos os regimens, assim na monarchia, como na
republica, que horriveis desordens! Sobre os thro-
nos e sobre os degraus dos thronos viu-se mui-
tas vezes a mais vil e a mais funesta cubiça;
povos indignamente opprimidos pela injustiça e
pelos caprichos despoticos; impostos esmagado-
res e revoltantes delapidações; a força e o san-
gue das nações, perdidas em guerras terriveis,
que. muitas vezes só tiveram por causa uma doida
ambição. A historia, diz-se com muita verdade,
não é, d'ordinario, mais do que um triste marty-
rologio, e «feliz do povo, disse algures Fénelon,
que não tem historia!»
E o regimen democratico não tem sido, mais
do que os outros, poupado a estas calamidades,
principalmente quando quiz eximir-se á influen-
cia religiosa e ás leis de Deus. As paixões desen-
freadas produzem, onde quer que seja, os mesmos
ss
resultados: «Eu quizera antes, dizia Voltaire, ser
governado por um demonio do inferno, do que
por um tyranno atheu; porque ne o tyranno qu IZCSSE
fazer-me pisar num almofariz, tenho a certeza de
que eu seria pizado n'um almofariz.» Realmente,
julgaes-vos em menor perigo sob a soberania Tuma
assembléa nacional, composta de atheus e de ma-
terialistas, que só a si desejam engrandecer-se,
que não curam muitas vezes de mais do que do
proprio interesse, e só pensam em ultimo logar,
quando pensam, no interesse publico? Mas isto é
o despotismo e a tyrannia na sua verdadeira 2cce-
pção. Simplesmente aqui o despota tem oitocen-
tas cabeças em vez d'uma, tem menos responsa-
bilidade pessoal e maior facilidade para crueis
violencias. Poderiamos, sem duvida, adduzir mais
d'um exemplo n'este sentido.

E que de miserias ainda, nas relações interna-


cionaes. Todas as susceptibilidades do amor pro-
prio collectivo, odios implacaveis, diplomacia sem
boa fé, em que se procura apenas o logro mutuo,
guerras atrozes. Attentae, seculo por seculo, no
mappa do mundo, e vêde as mudanças geogra-
phicas que ahi se operam continuamente: pergun-
tae quantas vezes a ambição deslocou os limites
de cada Estado, e por que preço de sangue em
cada vez?
O direito das gentes na guerra, como em tudo
o mais está, deveras, muito modificado e melho-
rado; mas a guerra não foi ainda proscripta; €
46

não será para lastimar ver hoje 08 povos, princi-


palmente os da Europa, converter-se cada um em
arraial entrincheirado onde se procura imaginar e
preparar as mais poderosas machinas de destruição
e de morte, o que absorve metade das riquezas na-
cionaes e os mais bellos annos das gerações novas?
Só o espirito christão, entrando no coração das
nacionalidades, pode remediar estes males. A fé
catholica tem effectivamente o direito de dizer, e
diz, ás nações: «Vós sois irmãs», como diz aos
homens: «Vós sois irmãos.» Ah! se esta doutrina
de fraternidade divina fosse em toda a parte ou-
vida e acceite, poderiamos certamente esperar essa
paz universal de que tanto se tem fallado, mas
que, sem a religião, não será mais do que um
sonho generoso.
O que, porém, é sobremaneira lamentavel é
que entre a Egreja, depositaria d'estas preciosas
doutrinas, e os governos humanos, que deviam
escutal-as, veem tambem interpôr-se as paixões,
e lançar a desunião e suscitar todo o genero de
hostilidades.
Entretanto, estes dois poderes, que Deus fun-
damentou para o governo do genero humano, estão
destinados como o demonstramos já *, à viver jun-
tos, ao lado um do outro, n'uma benevolencia
mutua; e nada ha mais facil. «Cada um, diz-nos
excellentemente o Soberano Pontifice, é soberano,
no seu genero, e está restricto em limites, per-

! Carta aos Senadores e aos Deputados sobre a abolição da Concordatn.


47

feitamente determinados, traçados em conformi-


dade com a sua natureza e fim especial. Ha,
pois, como uma orbita dentro da qual cada um
exerce a sua acção gure proprio. Todavia, como
esta differente auctoridade se exerce no mesmo
campo, pode acontecer que uma só e a mesma
coisa, se bem que sob um outro titulo, mas apesar
d'isso, uma só e a mesma cousa, dependa da ju-
risdicção e juizo d'um e d'outro poder.

«É portanto necessario que haja entre os dois


poderes um systema de relações bem ordenado,
não sem analogia com o que, no homem, consti-
tue à união da alma e do corpo. Não se póde
fazer uma ideia justa da natureza e da força
d'estas relações senão considerando, como disse-
mos já, a natureza dos dois poderes, tendo em
conta a excellencia e a nobreza dos seus fins,
pois que um tem por fim proximo e especial 0c-
cupar-se dos interesses terrestres, e Outro, pro-
curar os bens celestes e eternos.

Assim, tudo o que entre as cousas humanas é


sagrado, sob um titulo qualquer, tudo o que rves-
peita á salvação das almas & no culto de Deus,
quer .pela natureza, quer com relação ao fim, está
sob a jurisdicção da Egrejn. Quanto ás outras cou-
gas pertinentes á ordem civil e politica, é justo
sejam submettidas á auctoridade civil, pois Jesus
Christo mandou que se désse u Cesur o que é de
Cesar, e a Deus o que é de Deus.
h8

«Acontece, porém, que por vezes prevalece um


outro modo de garantir a concordia, a paz e a
hberdade, quando os chefes do Estado e os S0-
beranos pontifices se pôem de accordo sobre al.
gum ponto particular, por meio de seguro tra-
tado. Em taes circumstancias a Egreja dá exu-
berante prova da sua caridade maternal, levando
tão longe, quanto é possivel, a indulgencia e à
condescencia !,»

Estes meios, faceis, de manter a paze con-


cordia, tão preciosos, entre a Egreja e o Estado,
não foram até hoje bem comprehendidos, e não
o são ainda. Infelizmente a Egreja não deixou
nunca, sob todos os regimens politicos, de estar
sujeita a um sem numero de prevenções e hos-
tilidades.
Durante os tres primeiros seculos houve a per-
seguição aberta e sangrenta; e depois, nas diver-
sas epocas, que opposições mais ou menos arden-
tes, que ataques contra a Egreja! Mesmo quando
os poderes temporaes pareciam mostrar-se-lhe mais
favoraveis, não fizeram pagar-lhe caro esse favor?
Não nos propomos desenrolar a historiá do pas-
sado; consideramos simplesmente o de que somos
testemunhas. Desde o ferreo despotismo russo e
dos Estados mais ou menos representativos da
Allemanha, da Inglaterra, da Hespanha até ás re-
publicas franceza, suissa e outras, exceptuando a

à Encyclica Immortale Dei.


livre America do Norte, não se encontra por toda
a parte um espirito de prevenção e suspeição
odiosa para com a Egreja Catholica? Quando não
é a guerra aberta e declarada, é a desconfiança,
a ameaça, são precauções immensas e odiosas con-
tra o que se chama usurpações do clero, que aliás,
respeita as leis do seu paiz, não pede nem au-
toridade politica, nem riqueza, nem privilegios,
apenas reclama os seus direitos de cidadão, o di-
reito de viver e a liberdade.

Resignemo-nos porém: não é a lucta, na terra,


uma condição da vida da Egreja. que se não diz
vâmente Egreja militante? Incumbe-lhe combater
sem cessar todas as paixões; e os homens entre-
gues ás paixões são naturalmente seus inimigos.
Jesus Christo predisse-o aos seus apostolos: «Man-
do-vos como ovelhas ao meio dos lobos !.» «(O
discipulo não é mais do que o mestre... Se elles
chamaram ao pae de familia Belzebuth, o que
fará aos servos *?» E mais: «Sofirereis grandes tri-
bulações no mundo; mas confiae. eu venci o mun-
do *.» A divina prophecia cumprir-se-ha, pois, até
á consummação dos seculos.
Pelas mesmas razões, a vida dos Estados não
está mais ao abrigo da adversidade, do que a
Egreja, seja qual for o regimen politico, monar-
chico, ou republicano. É que não se acaba nunca
—"— qe 0 e te

à Math. x, 16.
3 Math. x, 24, 25.
3 Joan. As ás.
50

co m as paix ões hum ana s: à ambi ção, a cubi ça,


o egoismo, todas estas calamidades governamen-
taes se afferram à0 Estado e jámais serão com-
pletamente debelladas. E é alem de tudo, uma
provação necessaria para purificar as virtudes ci-
vicas, como às outras virtudes christãs. O cadinho
da provação é, segundo os tempos e as circums-
tancias, mais ou menos ardente e devorante. Mas
o christão encontra sempre ao lado da dôr a im-
mortal esperança para recordar-lhe que «nós não
temos aqui habi taçã o per man ent e, mas cami nha-
mos para uma outra !: a patria celestial, onde
não se entra sem ter passado por numerosas tri-
bulações *.

Portanto para a sociedade civil como para à


Eereja, nunca haverá aqui paz duravel e perfeita.
Lêde a historia do passado: nem um seculo, nem
um quartel de seculo, sem provas e tribulações.
E no futuro o contrario é impossivel. Cada gera-
ção terá suas provações, e como cada um dos mor
taes, poderá dizer como Job: «A vida do homem
sobre a terra é um combate, e os seus dias 08 dias
d'um jornaleiro. Como o escravo deseja à sombra,
como o jornaleiro espera o fim do seu trabalho,
assim eu tenho mezes vacuos, e conto noites cheias
de dôr. Se me deito, digo: Quando me levantarei?
quando acabará a noite? E até á noite encho-me
-——

* Hebr. xx, 14,


2 Act, Iv, 21,
51

de amargura.» ! Não ha que duvidar, seja qual for


no futuro o progresso democratico e social, elle
não acabará com o mal nem com as paixões hu-
manas. Haverá pois sempre borrascas e tempes-
tades, revoluções, terríveis algumas, que agitarão
o solo e destruirão na sua passagem as institui-
ções e os homens. E na verdade n'algumas horas
tudo poderá julgar-se perdido.
Entretanto, nós, os christãos, não nos intimide-
mos. Lembremo-nos da barca do lago de Tiberiade.
Um dia o Salvador ia na barca com .os seus dis-
cipulos, e «eis que uma grande tempestade se des-
encadeia sobre o mar, de tal modo que a barca
era subjugada pelas ondas; Elle dormia; os disci-
pulos aproximam-se, acordam-o, e dizem-lhe: Sal-
va-nos, ó Senhor, porque vamos morrer! Jesus res-
pondeu: Porque receiaes, homens de pouca fé? E
levantando-se, o mar fez-se calmo á Sua voz.»*
A barca é a Egreja que voga sempre sobre as
ondas encapelladas, no meio de tufões e tempes-
tades, que se succedem até ao fim das cousas.
Uma por outra vez os passageiros atarantados sol-
tam o grito de angustia! «Porque trepidaes, ó
gente de pouca fé?» A barca immortal, não sos-
sobrará e continúa a sua derrota: vae n'ella Jesus
Christo, e vão com Elle a civilisação e à salvação
para o mundo!
——— rt

!Job. ym. 1, 4.
* Math. VIII, 94, 25.

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