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Bernardo Cabral Meneses Seguir

Contra o revisionismo histórico


Por vezes isto surge como uma excentricidade. Mas por detrás desta suposta “loucura” existe uma infra-
estrutura repressiva, a cancel culture, organizada para intimidar, excluir e silenciar.

23 fev 2022, 00:07 5 Oferecer artigo

Há hoje em dia, um enorme esforço para impor uma determinada memória e apagar ou derrubar
tudo o que contradiga a mesma. Os novos iconoclastas querem a censura e o desaparecimento de
memórias que consideram “erradas”, ao invés de uma coexistência pacífica de memórias numa
sociedade aberta e plural.

Cabe-nos a todos nós, tomarmos a palavra, mostrar que a História, sendo por vezes complexa no
que toca a questões delicadas, nunca deverá deixar de procurar a verdade. Não podemos em
momento algum, compactuar com aqueles que querem modificar acontecimentos autênticos em
conveniência de certas vontades.
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As personagens históricas devem ser avaliadas segundo os critérios do seu tempo e nunca de acordo
com uma “teoria presentista”, isto é, olhar para o passado e julgá-lo a partir dos padrões de hoje,
pensar fora da História.

Em Portugal, nos dias que correm, temos inúmeros activistas anti-racismo e anti-época colonial,
ligados a diversas organizações de extrema-esquerda, querendo impor-nos uma verdade vesga, uma
visão distorcida da história. No que diz respeito às ex-colónias,

Portugal teve, numa determinada fase da sua existência como país, um Império Colonial e um
espírito imperial. Tudo isso existiu e, depois, deixou de existir, sem que seja motivo de vergonha,
nem de ofensa para ninguém.

Há uma igualdade de direitos perante a História que muitos elementos da esquerda, no seu
fanatismo cada vez mais empedernido, se recusam a reconhecer.

O verdadeiro alvo desta historiografia é a Nação. Para esta gente, a História não nos educa nos
valores do patriotismo, não leva ao desenvolvimento de um sentimento de pertença a uma Nação.
Cada Nação é convidada a virar-se para as zonas sombrias da sua experiência histórica, para uma
valorização negativa centrada no orgulho de uma culpabilidade plenamente assumida, que acaba
sempre por designar o homem ocidental como culpado de uma sociedade que ele teria construído
para o seu exclusivo proveito e no seu exclusivo interesse. É um processo conduzido contra a
civilização ocidental no seu conjunto, primacialmente por um regresso hipercrítico quanto à
colonização e à expansão dos impérios europeus.

Neste sentido, viu-se mesmo esta historiografia criminalizar a descoberta da América pelos
navegadores europeus, sendo Cristóvão Colombo condenado como o primeiro genocida ocidental.
Em França, viu-se Napoleão ser reduzido à decisão de restaurar a escravatura nalguns territórios
franceses do Ultramar, não se tolerando mais a comemoração das suas vitórias como, por exemplo,
a de Austerlitz, em 1805. Por cá, e como veremos adiante, congelou-se o projectado Museu dos
Descobrimentos e apaga-se qualquer celebração dessa época.

As novas multidões de hoje, saem a correr dos campus universitários, onde já não se valoriza o
diálogo intelectual e muito menos qualquer referência moral, antes se propagam narrativas e
discursos de poder.

Necessitaremos sempre de referências, de heróis e de mitos. O que não precisamos é de uma cultura
de ressentimento para quem por definição tudo o que foi feito pelo homem ocidental é pecaminoso,
senão mesmo criminoso. A cultura da tal “narrativa” universitária que hoje se impõe de forma
totalitária.

A extrema-esquerda surge-nos hoje em dia numa galeria de professores universitários,


comentadores de televisão e de jornais e, em Portugal, até de Conselheiros de Estado. Nada disso,
porém, aconteceu por acaso. Aconteceu porque, nestes primeiros anos do século XXI, muito do que
se disse nas televisões e se ensinou nas Universidades foi dito e ensinado pela extrema-esquerda ou
segundo os termos em que a mesma coloca as questões. E este é talvez o facto político mais
significativo dos últimos tempos, mais do que quaisquer populismos.

É nas Universidades que o esquerdismo é fabricado. Os campus americanos foram o embrião deste
movimento a partir do final dos anos 60. Nos anos 80, institucionalizou-se nas Universidades, antes
de se tornar mediaticamente hegemónico, nos anos 2000, fruto de um cruzamento entre o neo-
marxismo e as formas mais tóxicas da contracultura. Como antigamente, trata-se ainda de derrubar
o “sistema”, isto é, o capitalismo e a democracia liberal, concebidos como fachadas de um poder
opressor. Só que esse poder já não é definido pela classe social, mas pela raça e pelo sexo. E por isso,
para o destruir, importa menos nacionalizar terras e empresas, do que alterar memórias, destruir
símbolos e refazer identidades, de modo a subverter a suposta hierarquia racial e sexual que é
mantida por essas memórias, símbolos e identidades. Por vezes, tudo isto surge à face da
consciência pública como uma excentricidade – a loucura do politicamente correcto. Mas engana-se
quem toma este movimento de modo tão leve. Por detrás dessa suposta “loucura”, existe uma infra-
estrutura repressiva, a cancel culture, organizada para intimidar, estigmatizar, excluir e silenciar
nas universidades, na imprensa, no mundo editorial, nas redes sociais e em muitos locais de
trabalho.

Em vez da velha “luta de classes”, temos assim as esquerdas ocupadas agora na “guerra cultural”.
Um dos seus aspectos é a criminalização do passado. A essa diferença chamava-se antigamente
História. Agora, chama-se crime. Sim, segundo estes combatentes da guerra cultural, é só por
criminalidade que o passado não é igual ao presente. E por isso, tudo o que diz respeito a esse
passado deve ser denunciado e demolido implacavelmente, até limparmos o nosso virtuoso
presente das manchas dos nossos perversos antecessores. Os seus livros devem deixar de ser lidos, a
sua música deve deixar de ser tocada, as suas imagens devem deixar de ser vistas, os monumentos
que os lembram devem ser destruídos, etc. Só assim poderá uma nova humanidade, pura e justa,
igualitária e sem preconceitos, emergir da depravação do passado.

Neste momento, o problema principal da nossa democracia é o da resistência da elite à mudança.


Uma mudança que reflicta e que represente o povo, cuja voz e anseios são por demais ignorados.
Uma mudança que regenere o sistema e que reforme os nossos piores atavismos e vícios colectivos.
Para lá do problema de fundo da educação, que vem de há muito tempo, esta “doença da pátria”
tem vários sintomas visíveis à vista desarmada em que os dois principais partidos do sistema, por
falta de coragem, não abordam e que concorrem para a insatisfação dos portugueses.

Sobre a escravatura, a extrema-esquerda tem procurado envergonhar os portugueses, dizendo-lhes


que o orgulho nacional, o nacionalismo, é um sentimento maligno e muitos portugueses com isso
retraem-se. Encolhem-se. Do mesmo modo, apresenta-lhes o passado do país como uma sucessão de
pilhagens e violências exercidas sobre povos indefesos, praticadas por bandidos e traficantes de
escravos. Por isso, a extrema-esquerda boicotou a existência de um Museu dos Descobrimentos,
propondo em seu lugar um Museu da Escravatura.

O tráfico e a escravidão na bacia do Atlântico e do “Novo Mundo” existiram entre os séculos XV e


XIX. Durante grande parte desse período, a prática da escravatura consolidou-se em África, na
Europa, na Ásia e na América. Em nenhum desses continentes era considerada crime. Antes de os
portugueses se terem envolvido no comércio de escravos, já os muçulmanos e os africanos o
praticavam em larga escala através do Saara, do Índico e do Mar Vermelho.

A Escravatura foi sendo ilegalizada e combatida a partir dos finais do século XVIII, graças ao
advento e triunfo de uma nova ideologia e de um movimento político nascido no Ocidente: o
abolicionismo. Nunca é demais recordar que a abolição da escravatura em Portugal deu-se em dois
momentos distintos: em 1761 na Metrópole e na Índia com o Marquês de Pombal e posteriormente
com uma lei de 1869, no reinado de D. Luís, que proclamou a abolição da escravatura em todo o
Império português, até ao termo definitivo de 1878.

Desde a visita em 2017 do actual Presidente da República à ilha Gorée (Senegal), uma ilha que está
associada ao tráfico transatlântico de escravos, que surgiram uma tempestade de críticas vindas da
extrema-esquerda, a exigir desculpas pelo envolvimento português no tráfico de escravos com
reparações de vária ordem. Procuraram, ainda, forçar mudanças nos programas e no ensino da
disciplina de História, para deles banir os pontos que lhes desagradam e incluir outros que
privilegiam.

É intolerável que um grupo de activistas tente colocar nos actuais portugueses um sentimento de
culpabilidade, quase sempre com distorções e descontextualizações do que se passou. Não faz
qualquer sentido que se promova uma leitura emocional dos acontecimentos do passado e que se
projecte nesse passado sentimentos, conceitos e valores actuais como se eles fossem eternos e já
existissem nos séculos em que foi praticado o tráfico de escravos.

Muita gente até há pouco tempo, exigia ao Estado português confissões de culpa com os
correspondentes pedidos de perdão, reclamando uma política de reparações para com esses povos,
sob a forma de compensações de vária natureza. Não há razão nenhuma para que Portugal peça
unilateralmente desculpa por uma relação mutuamente assumida com outros povos (num processo
histórico que foi de facto cruel e injusto, mas muito mais complexo do que aquilo que nos tentam
fazer crer). Nunca é demais lembrar que o tráfico de escravos foi uma prática que surgiu e se
manteve durante muito tempo por vontade de traficantes portugueses (e de outras nações
ocidentais) e de chefias africanas.

Mais recentemente, o debate tem vindo a acalmar, acreditando que poderá ser uma situação
transitória e que mais cedo ou mais tarde, irá surgir de novo com mais força. Devemos estar
preparados para esse regresso, com uma posição bem formada de modo a que possamos resistir
melhor ao próximo embate.

Relativamente aos Descobrimentos e à subsequente expansão, estes deram-se porque houve gente
que se meteu em navios e foi procurar o mundo. Esta verdade simples e óbvia precisa de ser
fortemente sublinhada, mil vezes se tal for preciso. A História não tem de ser politicamente
correcta, tem apenas de ser História, isto é, uma narrativa de acontecimentos verdadeiros, assentes
numa avaliação do passado, feita com um só peso e uma só medida.
Devemos celebrar os Descobrimentos sem nenhum complexo. Foi por eles que se fez a primeira
globalização neste mundo. É por eles que Portugal foi grande e é por eles que se fala português em
toda a parte.

Na última legislatura, tivemos um deputado do Partido Socialista que defendeu que o Padrão dos
Descobrimentos deveria já ter sido demolido. Ficámos a saber que vamos tendo deputados que em
vez de enaltecerem a nossa História ou, pelo menos, de a respeitarem, têm vergonha dela.

Nos anos 80 e 90 do século passado, a história das antigas “descobertas e conquistas” ainda foi
ressuscitada oficialmente como uma história de contactos entre povos, de “encontro com o outro”,
de “intercâmbio de culturas”. Foi essa a filosofia da Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos de 1986 a 2002 e da Exposição Internacional de Lisboa de 1998.

Na última década, porém, a “americanização” da Universidade portuguesa arrastou a mesma


geração que nos anos 90 se entusiasmava com o “intercâmbio de culturas” a reconceber o
“Império”, onde só terá havido escravização e o genocídio.

A lembrança, a evocação e o reconhecimento dos Descobrimentos estão perfeitamente na memória


retentiva de grande parte dos portugueses. Faz parte da sua identidade coletiva, pelo que devemos
sempre reconhecer, valorizar e estimar.

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