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17/09/2023, 18:10 Lusotropicalismo e o mito da Portugalidade – Observador

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Lusotropicalismo e o mito da Portugalidade


A história do racismo em Portugal é a história de uma sociedade confortavelmente estagnada,
desinteressada em questionar e renovar pressupostos que nos dão uma falsa sensação de alento.

26 jul. 2020, 00:02 19 Oferecer

Na primeira metade do século XX, Gilberto Freyre desenvolveu uma “quase-teoria” sobre e relação
de Portugal com os trópicos. O “Lusotropicalismo”, como é denominado em vários livros –
inicialmente em O mundo que o português criou, de 1940, e mais tardiamente em Integração
portuguesa nos trópicos de 1958 e O luso e o trópico, de 1961 – é o embrião do qual nasceu a
narrativa corrente da relação de Portugal com as suas ex-colónias.

O Lusotropicalismo é um modelo social que explica as diversas características que, segundo o


sociólogo, distinguiram o processo de colonização de Portugal do dos demais impérios europeus.
Para Gilberto Freyre, o processo colonial português distinguia-se pela empatia, proximidade e até
afeição que os colonizadores portugueses demonstravam perante os indígenas. Este processo era,
naturalmente, fruto da própria origem da “Portugalidade”, ou seja, dos contactos prolongados que
os portugueses mantiveram com culturas distintas – entre celtas, romanos, judeus e mouros – e do
efeito que isso teria tido numa espécie de multi-culturalidade indissociável de cada português.

Infelizmente para o sociólogo, o Estado Novo da primeira metade do século XXI estava largamente
desinteressado em utilizar esta narrativa publicamente. Um dos mais importantes rostos da política
colonial portuguesa no início da ditadura, Armindo Monteiro, era um ávido defensor da “mística
imperial” e foi promotor da Carta Orgânica do Império Colonial Português, onde se podem ler
(várias) passagens como a do Artigo 232º, segundo o qual “Todas as autoridades e colonos […] têm a
obrigação de amparar e favorecer as iniciativas que se destinem a civilizar o indígena e aumentar o
seu amor pela Pátria Portuguesa”. Portugal tinha, portanto, um “dever” de “civilizar” os indígenas, o
que, naturalmente, impedia qualquer proximidade com o Lusotropicalismo de Freyre, segundo o
qual existiria uma relação de igualdade entre colono e indígena.

Contudo, no final da Segunda Guerra Mundial e com a subsequente pressão para o


desmantelamento dos impérios coloniais – que começava a notar-se mesmo entre os vencedores da
guerra, nomeadamente a França e o império britânico – o Estado Novo precisava de uma narrativa
eficiente para se descolar destes movimentos e continuar com um império colonial unificado.
Assim, no início da segunda metade do século XX, Salazar pede a revogação do Ato Colonial e
promove alterações na conceção colonial portuguesa. Nas palavras do próprio, “a constituição
portuguesa define a nação portuguesa como um Estado unitário na complexidade dos territórios
que a constituem e os povos que os habitam”. As colónias passam a “províncias ultramarinas”, o
termo “Império Colonial Português” é lentamente removido da linguagem estatal e a narrativa
oficial começa a focar-se numa versão agregadora da teoria de Freyre: Portugal não é apenas
Portugal, mas sim o conjunto de país com províncias ultramarinas, de colonizadores com colonos,
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17/09/2023, 18:10 Lusotropicalismo e o mito da Portugalidade – Observador

um país indissociável das suas partes, todas elas iguais entre si e todos os seus habitantes irmãos
entre eles.

É, hoje, mais do que óbvio, que o Lusotropicalismo estava condenado à partida: as forças políticas
nunca permitiram que as colónias fossem mais do que um poço de recursos naturais explorados à
custa do trabalho forçado dos locais; e qualquer indígena sabia, também, que havia um fosso
intransponível que o separava da vida de qualquer português: barreiras no acesso à educação, a
cuidados de saúde, à ocupação de cargos políticos e à própria autodeterminação.

Apesar do seu falhanço largamente prenunciado, a narrativa do Lusotropicalismo ecoa ainda com
muito estrondo na sociedade portuguesa e, muitas vezes, impede-nos enquanto país de iniciar
várias discussões públicas extremamente difíceis, mas absolutamente essenciais. Fomos educados a
achar que a integração portuguesa das colónias foi um processo excecional quando comparada com
os outros impérios coloniais europeus – que foi feita à base de respeito, pacifismo e até
miscigenação; e muitos acrescentam que os povos locais agradeceram o nosso apoio enquanto
colonos porque, claro, os próprios não se conseguiriam governar sozinhos.

A história, infelizmente, é outra. Portugal foi dos últimos países a descolonizar e fê-lo à custa de
uma guerra imbecil em todos os sentidos, sem comparação com os principais ex-impérios coloniais
europeus da altura. As colónias portuguesas, hoje todas elas independentes, nem sequer colhem os
frutos do suposto “sucesso” da sua colonização: entre Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e
Príncipe estão alguns dos países mais pobres do mundo; quase todas as ex-colónias portuguesas são
democracias disfuncionais, com um legado de instituições frágeis que impedem uma
autogovernação eficaz e próspera. Inegavelmente, a responsabilidade é nossa.

As palavras de vários atores políticos portugueses sobre o (não) racismo em Portugal – entre os
quais destaco Rui Rio e Jerónimo de Sousa – mostram o quanto desse legado lusotropicalista ainda
subsiste. A ideia é que Portugal não é racista porque os portugueses são “naturalmente” empáticos,
acolhedores e, no geral, boa gente. Em Portugal, uma grande parte da população – incluindo uma
parte da classe política – vê o racismo como aquilo que ele era há 20 ou 30 anos – uma luta por
direitos civis. O Chega, que é um bom barómetro de parte da sociedade portuguesa, utiliza esta
mesma narrativa para desproblematizar o problema e até gerar movimentos absurdos – como a
marcha anti-anti-racista – que tem uma adesão real da sociedade. É remetendo para a narrativa
lusotropicalista, jogando com uma conceção desinformada do colonialismo português, que este
discurso populista se torna viável.

As nuances da nova luta anti-racista – uma luta que já não é predominantemente sobre direitos
civis, mas sim sobre crenças internalizadas que afetam a real igualdade de acesso a bens e serviços
– requerem o mesmo tipo de rotura com o sistema que foi necessária nos anos 60 nos EUA (e um
pouco por todo o mundo). É urgente assumir um debate público sobre a descolonização e para isso
há que contar com a comunicação social – essencialmente as três principais estações de sinal aberto
-, a imprensa escrita, a comunidade académica e científica, e até os social media, para que se comece
a falar sobre colonialismo e descolonização da mesma forma que se fala sobre apoios públicos às
touradas, eutanásia ou a nacionalização da TAP.

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COLONIALISMO MUNDO RACISMO DISCRIMINAÇÃO SOCIEDADE HISTÓRIA CULTURA

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