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Reis negros na escola: festas de Congada e o ensino de História do pós-Abolição no

Brasil
Lívia Nascimento Monteiro

Dir-se-ia que após os trabalhos do dia, os mais bulhentos prazeres produzem sobre o negro
o mesmo efeito que o repouso. À noite, é raro encontrarem-se escravos reunidos que não
estejam animados por cantos e danças; dificilmente se acredita que tenham executado,
durante o dia, os mais duros trabalhos, e não conseguimos nos persuadir de que são
escravos que temos diante dos olhos.1

As palavras de Rugendas retratam o cotidiano da vida escrava no Rio de Janeiro


do século XIX, no qual danças e cantos animavam a corte imperial, algo que também
permeia a literatura da época. O tema sobre danças, cantos e festas é bastante
pesquisado no Brasil, com diversos estudos e publicações da área,2 porém, o mesmo é
pouco trabalhado no ensino, especialmente as festas reconhecidas como manifestações
culturais negras, como as Congadas, os Maracatus, as Umbigadas, os Jongos, as Folias
de Reis e tantas outras que existem em todo país. Elas não alcançaram os livros
didáticos e, no cotidiano escolar, estão vinculadas à comemoração do dia do folclore e
ao calendário de festividades.
O objetivo desse artigo é apresentar as festas de Nossa Senhora do Rosário,
também conhecidas como congados, congadas ou reinados3 e a ida dessa manifestação
cultural para a sala de aula, na prática educativa. Pretendo oferecer outras possibilidades
de trabalho com a Congada na sala de aula, para além das festividades do dia 20 de
novembro — dia da consciência negra.
Ao longo do século XX, os grupos de Congadas reinventaram seus ritmos, suas
danças e celebrações e as festas do Rosário mesclam práticas como procissões,
cerimônia de coroação dos reis, rainhas e princesas, banquetes e várias representações
dramáticas. Nos dias atuais, há uma relação entre a memória da escravidão e os usos

1
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil (1835). Tradução: Sérgio Milliet.
São Paulo, Círculo do Livro, s/d, p. 45.
2
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação do rei
congo. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2002. JANCSÓ, István; KANTOR, Iris.
Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. In:______. (Orgs.) Festa: cultura e sociabilidade
na América Portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial; Edusp; Hucitec; Fapesp, 2001.ABREU, Martha.
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999; PRIORE, Mary del. Festas e utopias no Brasil
colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994, entre outros.
3
O Reinado é a estrutura mais ampla e complexa, que abrange as guardas, os ternos e contempla vários
rituais. A congada, além de se referir à festa, também dá nome às guardas do Congo.
político e social desses festejos. Esse ativismo negro dos congadeiros está presente em
seus rituais, passos, danças e músicas, uma vez que reivindicam, através de suas
performances, espaços de cidadania e lutam contra o racismo. Desse modo, explorando
tais articulações, espera-se contribuir para as reflexões em torno das experiências negras
de congadeiros no pós-abolição4 no ambiente escolar.

O que são as congadas? E qual a sua história?


As congadas são manifestações culturais bastante expressivas nos estados de
Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Paraná. Os grupos se apresentam em forma de cortejo
real, incluem danças e cantos e são compostos predominantemente por homens e
mulheres negros, que se reúnem para louvar seus santos de devoção. A congada também
é chamada de terno, guarda, cortes ou bandas e entre os mais tradicionais grupos estão o
Moçambique, o Congo, a Marujada, o Candombe, os Caboclinhos, o Catopê e outros.5

4
Um questionamento levantado por Thomas C. Holt, Rebecca J. Scoot e Frederick Cooper é interessante:
quais são as fronteiras adequadas do estudo das sociedades pós-emancipação? Geralmente, os trabalhos
sobre o período do pós-abolição remetem ao fim da escravidão e não tem data limite, como afirmam os
autores. Para essa discussão, cf., especialmente, COOPER, Frederick. HOLT, Thomas C.; SCOTT,
Rebecca J. Tradução: Maria Beatriz de Medina. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e
cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. E ainda, o
recente trabalho de Rebecca Scott e Jean Hébrard, sobre a trajetória familiar de descendentes de escravos
em diversos espaços atlânticos, datados do fim do século XVIII até o início do XX. SCOTT, Rebecca J.;
HÉBRARD, Jean M. Freedom Papers. Na Atlantic Odyssey in the age of emancipation. Cambridge,
Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2012. E também: RIOS, Ana Lugão;
MATTOS, Hebe., A Pós-Abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, Rio de
Janeiro, 2004, v. 5, n. 8, pp. 170-198, jan.-jun. 2004.
5
BRASILEIRO, Jeremias. Cultura afro-brasileira na escola: o congado na sala de aula. São Paulo:
Ícone, 2010.
Terno de Congada de Piedade do Rio Grande — maio de 2013 — Foto: Lívia Monteiro.
Fonte: Acervo particular da autora.

Os primeiros registros de congadas são do período colonial: as primeiras


manifestações de coroação de reis negros teriam sido realizadas com os reis de Angola
no século XVII, e tal prática era realizada por escravos e forros no XVI em Lisboa. O
surgimento da eleição do rei e da rainha congos liga-se à representação política e
simbólica do rei do Congo, promovida em 1551, pelo rei português D. João III em
Portugal.6 Acredita-se que, no Brasil colonial, a primeira coroação do rei Congo feita
por uma irmandade religiosa ocorreu em Recife no século XVI e Chico Rei,
considerado o primeiro rei Congo a fazer um terno de Congada em Minas Gerais teria
sido coroado no ano de 1717.7
Através das irmandades religiosas, a população negra no Brasil colonial e também
imperial, escravos africanos, escravos nascidos no Brasil e livres, reconstruíram suas
identidades e reinterpretaram os códigos católicos, conquistando relativa autonomia

6
TINHORÃO, José Ramos. Os negros em Portugal. Uma presença silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988.
p. 140. ______. Os sons dos negros no Brasil: cantos, danças, folguedos, origens. São Paulo: Art. Ed.,
1988, p. 42.
7
FRANÇA, Cecília Cavalieiri; POPOFF, Yuri. Festa mestiça: o congado na sala de aula. Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2011, p. 9.
para praticarem seus cultos.8As irmandades negras desses períodos se formavam em
torno das identidades africanas mais amplas, criadas na diáspora negra9 e uma das
principais atividades dessas era a “promoção da vida lúdica, ou estabelecer o estado de
folia de seus membros e da comunidade negra em geral.”10
Nessas irmandades ocorriam as eleições dos reis e rainhas e as festas “[...] eram
acompanhadas do bater de atabaques, mascaradas e canções cantadas em línguas
africanas. [...] os africanos reviviam simbolicamente suas antigas tradições culturais e
consolidavam na prática novas identidades étnicas.”11
De acordo com Marina de Mello e Souza, o momento das eleições dentro das
irmandades representava o processo de recriação de tradições no qual mesclavam
fragmentos de uma memória africana e elementos da cultura católica portuguesa; a
coroação e a realeza representavam dentro das irmandades a constituição de identidades
africanas, pois havia a recuperação dos traços das identidades tribais e dos laços e
linhagem com a junção de diferentes grupos familiares em torno de um rei, o que
reforçava o sentido de pertencimento a um grupo, recriando tradições destruídas pelo
tráfico atlântico.12
Especialmente em Minas Gerais, no período colonial e imperial, as irmandades de
Nossa Senhora do Rosário eram bastante numerosas e expressivas; nesses espaços os
reis e rainhas pertenciam a diferentes grupos étnicos e eram de diferentes procedências;
ser rei conferia prestígio, mesmo a um escravo, por ser reconhecido não só junto dos
seus pares como frente à comunidade.13 Havia diversos rituais e a participação de
diferentes grupos, portanto, não se tratava de uma representação direta do reino do
Congo em terras coloniais, mas era, antes de tudo, uma “representação do novo grupo

8
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e identidades: significados do culto de Santo Elesbão
e Santa Efigênia no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais no Setecentos. Topoi, Rio de Janeiro, 2006, v. 7, n.
12, pp. 60-115, jan.-jun. 2006.
9
Para uma discussão em torno das questões da diáspora negra, cf.cf.: GILROY, Paul. O Atlântico
Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: UCAM/Editora 34, 2001. PALMER, Colin.
Defining and Studying the Modern African Diaspora. The Journal of Negro History, New York, 2000,
v. 85, n. 1-2, Winter-Spring, pp. 27-32, 2000. BUTLER, Kim. Defining Diaspora, Redefining a
Discourse. In: Diáspora. 2001. pp. 189-219. HALL, Stuart. Da diáspora, Identidades e Mediações
Culturais. Belo Horizonte/Brasília, Universidade Federal de Minas Gerais, Unesco Brasil, 2003.
10
REIS, João José. Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão.
Tempo, Rio de Janeiro, 1997, v. 2, n. 3, 1997, p. 25.
11
Idem.
12
SOUZA, Marina de Mello e. op. cit. p. 54.
13
BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em
Minas Gerais, século XVIII e XIX. Juiz de Fora: UFJF, 2005. p. 177.
reconstruído na situação colonial. Mesmo porque em Minas os irmãos provenientes do
Congo nem sempre constituíram a maioria das confrarias.”14
As irmandades negras, como são classificadas todas as irmandades frequentadas
pelos africanos e seus descendentes no Brasil colonial e imperial, têm variedade de
santos de devoção, como Nossa Senhora do Rosário, Santo Elesbão, São Benedito,
Santa Efigênia, Santo Antônio e outras. A linguagem religiosa no período colonial e
imperial, portanto, é o terreno da mediação cultural e as irmandades — e suas festas e
congadas — são entendidas como parte das estratégias encontradas pelos escravos de
resistirem à escravidão, como espaço de autonomia e criação de laços de solidariedade e
sociabilidade.
E com o fim da escravidão? O que aconteceu com as irmandades religiosas e suas
festas? Em diferentes aspectos e formas, essas manifestações culturais adentraram o
período do pós-Abolição e tornaram-se para a população afrodescendente uma
importante estratégia de inserção social na sociedade livre. As heranças culturais e os
usos políticos das mesmas continuaram existindo com o fim da escravidão, através das
festas de Congadas, mantidas em alguns aspectos, diferenciadas em outros e em
contínuo diálogo com as experiências passadas.
Muitos grupos foram fundados no século XX, outros já existem desde o período
colonial.15Alguns reinterpretaram e recontaram as histórias do passado escravista do
Brasil em suas festas. Diversos estudos16 demonstram as adaptações das práticas
culturais dessas manifestações.

14
Idem.
15
Elizabeth Kiddy estudou a Congada da cidade de Oliveira, região central de Minas Gerais. Seu recorte
temporal perpassa três diferentes períodos: colonial, imperial e o século XX e sua análise afirma que a
resistência, alternada de conformismo, é uma estratégia e uma condição para a manutenção dessa
manifestação cultural ao longo dos tempos. Na visão da autora, a congada é uma tradição de heterogenia,
pois “projeta-se nas acomodações das práticas ritualísticas uma força espiritual, baseada nos preto-véios e
ancestrais, expressa na devoção à santa”. KIDDY, Elizabeth. Blacks of the Rosary: memory and history
in Minas Gerais, Brazil.Pennsylvania State: University Press, 2005. p. 54.
16
Existem estudos sobre Congadas realizados em diversas áreas, por diversos estudiosos — antropólogos,
historiadores, sociólogos e outros que problematizam cada localidade. Em quase todas as análises,
destacam-se os aspectos referentes à diversidade rítmica presente no ritual, as celebrações e os elementos
africanos e católicos mesclados nessa manifestação. Trabalhos importantes: GOMES, Núbia; PEREIRA,
Edmilson de Almeida. Negras raízes mineiras. Coleção Minas e Mineiros. Belo Horizonte: UFJF, 1988.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A festa do Santo Preto. 2. Rio de Janeiro: Funarte/ UFGO, 1985.
GABARRA, Larissa de Oliveira. O Reinado do congo no Império do Brasil. O Congado de Minas
Gerais no século XIX e as memórias da África Central. 2002. 296 f. Tese. (Doutorado em História).
Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica. Rio de Janeiro, 2009. LUCAS, Glaura. Os
sons do Rosário. O Congado mineiro dos Arturos e Jatobá. Belo Horizonte: Universidade Federal de
Minas Gerais, 2002.
Na pequena cidade mineira chamada Piedade do Rio Grande, nos anos de 1920,
uma Associação de Congada e Moçambique foi fundada; seus rituais foram criados e
inventados a partir de outros grupos de Congadas existentes nas cidades vizinhas. Os
fundadores são descendentes de escravos e responsáveis pela construção de uma
memória da escravidão, transpassada para os rituais e festejos até os dias atuais. A rede
de relações mantida entre os membros está nos laços de parentesco, compadrio e
solidariedade entre tais. Sob a chefia do capitão, do rei e da rainha Conga, todos os
homens dançam e cantam em devoção à N. S. do Rosário, N. S. das Mercês e São
Benedito.17

Terno de Moçambique de Piedade do Rio Grande — maio de 2013 — Foto: Patrícia Andrade.
Fonte: Acervo particular da autora.

17
Esse grupo faz parte do meu objeto de estudo do doutorado em curso. Para as questões centrais acerca
das memórias do cativeiro, cf.: RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família,
trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Martin Denis Constant,
A Herança Musical da Escravidão. Tempo, Niterói, 2011, v. 15, n. 29, jan. 2011. pp. 15-41.
Reinado — Terno de Congada e corte do rei e rainha Conga de Piedade do Rio Grande — maio de 2009
— Foto: Lívia Monteiro.
Fonte: Acervo particular da autora.

Para Leda Martins, as culturas negras que matizaram os territórios americanos, em


sua formulação, evidenciaram o cruzamento das tradições e memórias orais africanas
com todos os outros códigos e sistemas simbólicos com os quais se confrontaram. Desse
modo, as congadas são as festas e cerimônias que o Reinado de Nossa Senhora do
Rosário faz para os santos católicos, festejados africanamente.18

Como “contar” essa história na sala de aula?

Embora haja uma forte presença de Congadas em diversos espaços do país e


muitos estudos que retratam tais grupos, como citamos, não percebemos sua presença
no ensino de História. Podemos dizer que há um silenciamento sobre essa temática no
ensino. Por que essa manifestação cultural se restringe apenas ao espaço cultural das
festas? Como inserir esse tema na sala de aula?
A Lei n.º 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história africana e cultura
afro-brasileira, promoveu a inserção e a valorização da cultura afro-brasileira nos

18
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: o reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo:
Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. pp. 24-30.
conteúdos escolares (a Lei n.º 11.645/2008 ampliou a primeira, incluindo a
obrigatoriedade do ensino de história indígena). Porém, como apontado por Giovana
Xavier, existe um silenciamento nos livros didáticos da história dos negros no pós-
abolição, que em geral, são apresentados como “mendigos”, “vagabundos”, “bêbados”,
“marginais” e outros estereótipos construídos socialmente.19
Em se tratando do tema das festas, em geral, esse conteúdo no ensino básico está
ligado às comemorações do dia do folclore, 22 de agosto e, em algumas escolas, ao dia
da consciência negra, 20 de novembro. Sobre esse aspecto, Verena Alberti afirma que
deve-se evitar confinar o estudo da história das relações raciais a nichos no currículo
limitando-o a momentos do ano letivo, como os dias 13 de maio (Abolição) e 20 de
novembro (Dia da Consciência Negra).20 O tema da História e da Cultura Afro-
brasileira deve ser incorporado ao projeto político pedagógico das instituições de ensino
e trabalhado ao longo do ano letivo e para que isso aconteça, é necessária uma junção de
medidas, como o reconhecimento do racismo, o investimento na formação inicial e
continuada dos docentes, as reformas curriculares, entre outras.
Pode ser interessante que as festas de Congadas no pós-abolição façam parte das
aulas de História no sentido de demonstrar os sujeitos congadeiros, as suas histórias na
festa, fora dela e os processos históricos e identitários que os constituíram. Nos dizeres
de Martha Abreu e Hebe Mattos:

uma outra estratégia de ensino, um certo sentido de valorização do tradicional


como aquilo que formalmente resiste a mudanças não deixa de estar presente
quando o texto das Diretrizes sugere que se traga para a escola congadas,
moçambiques, rodas de samba ou maracatus, como formas de ser e viver da
cultura negra. No entanto, tais manifestações têm história, precisam de tempo
e lugar para acontecer, e isso pode ser destacado pelo professor, para não se
correr o risco de mumificar tais manifestações no trabalho em sala de aula,
como resultados contrários ao que pretendem as Diretrizes. 21

19
XAVIER, Giovana. ‘Já raiou a liberdade’: caminhos para o trabalho com a história do pós-abolição na
Educação Básica. In: Amilcar Araújo Pereira, MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de História e culturas
afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013, p. 87.
20
ALBERTI, Verenai. Algumas estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasileira. In:
PEREIRA, Amílcar Araújo; MONTEIRO, Ana Maria. op. cit. p. 27-55.
21
MATTOS, Hebe.; ABREU, Martha Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africanas: uma
conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 41, p. 5-20, 2008.
Diferentemente da maneira como a escravidão foi constantemente abordada nos
livros didáticos, com diversas imagens dos escravos sendo castigados 22, as narrativas
congadeiras, suas festas e seus rituais contam outra história. Nessas narrativas, os
personagens centrais — afrodescendentes — são sujeitos históricos que construíram
suas identidades baseados nas relações entre o nós e os outros e são agentes históricos,
que transformaram suas experiências diaspóricas em práticas culturais que foram sendo
modificadas ao longo do século XX.
Um exemplo de narrativa congadeira que pode ser trabalhada na sala de aula é o
“mito da aparição de N. S. do Rosário”. Através dele, os grupos de Congadas explicam,
com diferenças regionais, a origem do culto à N. S. do Rosário: a aparição de uma
imagem nas águas do mar, a tentativa frustrada dos senhores brancos de tentarem retirá-
la e o êxito dos escravos de conseguirem tirar a imagem da água é ponto comum dessa
narrativa congadeira.
Desse modo, a escravidão lembrada pela congada “promove a reconciliação com
esse passado traumático, na medida em que diversos ternos atualizam durante os
festejos a aparição de N. S. do Rosário, evento transformador da imagem e do valor do
escravo perante os senhores”.23
Nos dizeres de dona Efigênia Nascimento, festeira e cozinheira da festa da
Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande (MG) há mais de quarenta anos: “N.
S. do Rosário tem essa festa por causa dos negros, quando a N. Senhora apareceu lá na
gruta, na água, juntou os fazendeiros com tudo que é riqueza e foi lá na gruta tirar ela do
buraco pra trazer pra Igreja [...] aí trouxeram, mas ela voltou. Então, vou te contar como
começou a congada, não acharam ela dentro da Igreja, ela fugiu de noite e foi embora lá
para a gruta dela onde apareceu, aí ela ficou lá e quando foi de noite, os negros se
juntaram, vestiram tudo de branco, tudo enfeitado, os negros foram lá na gruta onde ela
estava, chegou lá e cantaram ‘Senhora do Rosário vamos simbora, Oh, Senhora do
Rosário vamos simbora, a sua casa é sua morada, senhor rei mandou chamar, a sua casa
é sua morada’, aí N. S. do Rosário ‘luiu’ (foi com) eles.”24

22
MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de História: entre História e Memória. In: Silva, Simões, Franco,
(Org.). História e Educação: territórios em convergência. Vitória: GM/PPGHIS/UFES, 2007. pp. 59-80,
p. 70. ALBERTI, Verenai. op. cit. p. 33-35.
23
COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. As raízes da Congada: a renovação do presente pelos filhos do
rosário. 2006. 241 f. Tese. (Doutorado em Antropologia Social). Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social Universidade de Brasília. Brasília, 2006, f. 12.
24
Entrevista concedida por Efigênia do Nascimento Silva em 03 de junho de 2013 para o
desenvolvimento da tese de doutorado.
É interessante perceber através da narrativa da congadeira mineira, o quanto a
figura do negro é central para a retirada da imagem e enquanto mantenedor das festas.
Sua narrativa pode ser levada para a sala de aula, para que a abordagem das práticas
culturais afro-brasileiras seja considerada em seus aspectos históricos e com a
incorporação da noção dos afrodescendentes enquanto sujeitos da história.
Vale destacar que as festas de Congadas no Brasil ligam-se amplamente às
experiências sociais que permearam (e continuam permeando) o pós-abolição no Brasil,
“territórios nos quais silêncios, esquecimentos e protestos constituíram estratégias
possíveis e não-excludentes, utilizadas por ex-escravos e “pessoas de cor” para se
tornarem cidadãos da República e da nação.25 Em alguns grupos, os membros
fundadores são descendentes de famílias escravas, que com o fim da escravidão,
recriaram seus laços e memórias na realização das festas. Os rituais, as danças, os
cantos, as devoções e todos os elementos que compõem as festas de Congadas devem
entrar na sala de aula, pois é a partir desses aspectos que os grupos contam as suas
histórias, uma narrativa ritualizada pela performance do corpo e da dança.
O canto “Nossa Senhora do Rosário, ela não falava, no dia 13 de maio ela deu sua
palavra” é entoado pelo terno de Moçambique de Piedade do Rio Grande-MG há, pelo
menos, oitenta anos. Ao redor do andor que leva a imagem de N. S. do Rosário, todos
os moçambiqueiros cantam e dançam a memória da escravidão e celebram a liberdade,
com um agradecimento especial à N. S. do Rosário pela Abolição, no dia 13 de maio de
1888. É através desse e outros cantos e dos rituais dos ternos de Congada e
Moçambique de Piedade que as histórias da escravidão e da liberdade vêm à tona no
tempo presente nas Festas do Rosário em Minas Gerais.
Esse e outros trechos das músicas congadeiras podem adentrar o universo escolar.
Ao realizar um levantamento sobre as manifestações culturais existentes na cidade e
região, o professor pode levar para a sala de aula e debater com os alunos o material
levantado; além das músicas, existem fotografias, sítios virtuais e vídeos disponíveis.
As letras de músicas dos grupos de Congadas existentes no município de Montes Claros
estão disponíveis no livro de Cecília França e Yuri Popoff, Festa Mestiça, que também
contém um CD-ROM com músicas congadeiras gravadas. O livro ainda contém fotos e
explicações sobre os ternos da cidade.

25
CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos. Quase-cidadãos: histórias e
antropologias da pós-emancipação no Brasil. In:______. (Orgs.). Quase-cidadãos: histórias e
antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 8.
A combinação entre música, dança, cores, rituais, religiosidade e festa confere
identidade aos afrodescendentes no tempo presente e as funções de sociabilidade
assumidas pelas festas negras no Brasil são as de promover o pertencimento e resposta
ao racismo, como afirma Hebe Mattos:

[...] a construção de uma identidade negra positiva nas Américas não se fez
como contrapartida direta da existência ou da ‘sobrevivência’ de práticas
culturais africanas no continente, mas como resposta ao racismo e à sua
difusão nas sociedades americanas. No Brasil, este processo não se apresenta
diferente, mesmo que tenha se desenvolvido de forma peculiar. 26

É necessário que na educação básica, a abordagem das práticas pedagógicas seja


marcada pela alteridade cultural, algo que ainda precisa de avanços nos currículos
escolares brasileiros. A reflexão dos processos históricos relativos à temática da história
e das culturas afro-brasileiras exige mudanças relativas à própria conceituação de
cultura — que deve ser entendida em sua forma dinâmica e plural. E as manifestações
culturais híbridas e com variações políticas e identitárias.
Como afirmou Hebe Mattos, os autores dos PCNs (Parâmetros Curriculares da
Educação) enfatizaram que a educação deve estimular a convivência entre as tradições e
as práticas culturais diferenciadas, educando para a tolerância e o respeito às
diversidades, sejam culturais, linguísticas ou religiosas.27
A incorporação da temática das festas negras na escola vai nessa direção. Assim, é
fundamental que as práticas culturais do tempo presente estejam também presentes na
escola, pois por muito tempo foi negado aos afrodescendentes que suas narrativas
permeassem as salas de aulas. Desse modo, ao levar as histórias e as memórias dos
grupos de Congadas, tão silenciadas ao longo do século XX, para serem discutidas no
ensino básico, remetemos também à questão do direito à reparação e ao dever de
memória28.

26
MATTOS, Hebe., O ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In: ABREU,
Martha; SOIHET, Rachel. Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologias. In: ______. (Orgs.).
Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 129-
130.
27
Idem. p. 127.
28
PEREIRA, Júnia Sales; ROZA, Luciano Magela. O Ensino de história entre o dever de memória e o
direito à história. Revista História Hoje, Rio de Janeiro, 2012, v. 1, n. 1, . pp. 89-110, 2012. Para a
discussão a respeito do patrimônio imaterial, cf.: ABREU, Martha. Cultura imaterial e patrimônio
histórico nacional. In:______; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca. (Orgs.). Cultura Política e leituras
do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Faperj, 2007;
ABREU, Martha; MATTOS, Hebe., Remanescentes das comunidades quilombolas: memórias do
cativeiro, patrimônio cultural e direito à reparação. Revista IberoAmericana, Berlim, ano 11, n. 42,
2011.
Para Júnia Pereira e Luciano Roza, “estamos diante de uma reescrita da história
e dos usos e leituras do passado possibilitadas pela produção dessa área, em especial por
meio do ensino de história, forçada pela agenda antirracismo”29. Os autores afirmam
que, em Minas Gerais, as Congadas e as Folias de Reis apresentam-se em eventos
culturais dentro e fora da sala de aula, o que promove sua visibilidade frente ao
silenciamento social de tais grupos. A opção apontada por tais autores para o estudo da
história e cultura afro-brasileira é levar a palavra dos mestres (congadeiros, foliões e
outros) para a escola, pois eles são portadores de uma tradição viva. Para eles, as
conversas na escola favoreceriam a troca intergeracional.
O ato de fala põe em movimento, nessas rodas, as biografias dos envolvidos, as
curiosidades e disposições para a escuta, a capacidade de enunciar as histórias
silenciadas e a capacidade de lembrança. Há envolvimento, troca, dúvidas. A roda é um
desenho ritual que possibilita que, em posição de escuta e fala, diferentes sujeitos
possam pensar, sentir e se emocionar com as práticas culturais afro-brasileiras, e com as
lutas e afirmações que elas convocam.30Trabalhar com as práticas culturais afro-
brasileiras na sala de aula requer pensar na articulação entre História e ensino de
História, portanto, frente ao silenciamento da temática sobre as diversas festas negras
existentes no Brasil, a proposta é relacionar as memórias orais, formadoras dos grupos
de congadas no Brasil e o ensino. Nesse sentido, cabe lembrar que as inovações e as
revisões da historiografia no ensino, precisam levar em conta “as questões do ensino, da
didática, da educação, referentes a como tornar este saber possível de ser aprendido
pelos alunos.”31
Operar com a memória no ensino significa lidar com a construção individual de
cada aluno sobre uma referência cultural que também é coletiva, pois os alunos são
portadores de saberes e referências culturais, sejam elas familiares ou da comunidade
onde vivem.32 Desse modo, para Ana Monteiro, esses saberes prévios não devem ser
descartados, mas trabalhados na sala de aula:

[...] lugar onde e por meio do qual as memórias se entrecruzam e se


constituem não é um lugar de memória no sentido atribuído por Nora – lugar
onde memórias se cristalizam — se trabalharmos em perspectiva crítica,

29
PEREIRA; ROZA. op. cit. p. 92.
30
Idem, p. 95.
31
MONTEIRO, Ana Maria. op. cit. p . 63.
32
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. POLLACK, Michael.
Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1992, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992.
através da qual memórias espontâneas de nossos alunos são mobilizadas,
tornam-se objetos de estudo e de possibilidades de recriação.33

É importante que o aluno compreenda as diversas mobilizações que existiram e


que os “descendentes de escravos foram sujeitos múltiplos com visões de mundo e
interesses pessoais diversos que convergiram na formação de várias formas de
mobilização no mundo livre”.34 Como orientam as Diretrizes curriculares Nacionais
para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-
brasileira e africana, o ensino de História Afro-Brasileira deve abranger as iniciativas e
as organizações negras, como as associações negras recreativas, as irmandades
religiosas, os grupos do Movimento Negro. É nesse sentido que propomos o tema das
Congadas na sala de aula, com atenção dada à cada localidade e às diferentes
manifestações culturais. Com tal proposta, nossa intenção é demonstrar que as festas na
sala de aula devem enfatizar as agências dos indivíduos que mesclam tradições,
transformações e as diversidades culturais.
Sugestão de atividade didática
Tema: História e Cultura Afro-Brasileira

Título: Reis negros na escola

Conteúdos Históricos: Escravidão e Pós-Abolição no Brasil


Objetivos e metodologia: Contar a história das festas negras no Brasil, apresentar a
figura central dos negros enquanto agentes históricos e superar o racismo. A primeira
parte de atividade pedagógica consiste em levar congadeiros (ou membros de outras
manifestações culturais) para a escola e realizar uma roda de conversa. A segunda parte
é criar junto com os alunos uma peça teatral que encene a história de vida do Chico
Rei, apontada acima. A metodologia das duas atividades privilegia a participação e a
produção coletiva, assim, as atividades serão propostas, mas haverá espaço para
inclusão de outras atividades relacionadas e trazidas pela turma, com a inserção dos
alunos no processo educativo.
Tempo de trabalho
Duração em minutos: 100 min Duração em tempos de aula: 2 aulas

33
MONTEIRO, Ana Maria. op. cit. p . 63
34
XAVIER, Giovana. op. cit. p. 100.
Recursos necessários:
Vídeos: http://www.youtube.com/watch?v=pCsMowIBt-s

Desenvolvimento da atividade:
Aula 1
Com o convite previamente agendado com membros das manifestações culturais
negras presentes na cidade, a roda de conversa acontecerá dentro da sala de aula (ou em
outro espaço em que seja possível que todos se vejam). Antes de iniciar o bate-papo,
prepare os assuntos a propor e inicie com uma pergunta instigante, como preparação
para a roda. A proposta é que o convidado conte sobre a manifestação negra a que
pertence, sua criação, sua história e que todos intervenham e façam também
questionamentos para que o bate-papo aconteça. Assim como apontado pelas Diretrizes
Curriculares, deve haver “a valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, como a
dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura”. Pode-se pedir
para o convidado levar materiais do grupo, que favoreçam a conversa e a troca de
opiniões, como instrumentos musicais, peças de roupas e objetos utilizados. Durante a
roda, o professor deve perguntar se algum aluno já tinha ouvido a música ou conhecia o
ritmo, assim como a história do grupo. O objetivo maior dessa roda de conversa é criar
oportunidade de todos se expressarem, aumentando a competência comunicativa dos
alunos e seus conhecimentos. O professor deve ser o mediador e participante.

Aula 2
Caso a escola ou o bairro não tenha manifestações culturais negras próximas para
realizar a roda de conversa, pode-se propor uma montagem e encenação de uma peça
teatral que conte a história de Chico Rei, narrada acima. Essa atividade poderá
funcionar também como a segunda parte da atividade, após a roda de conversa. O ideal
é que todos participem dessa montagem teatral, iniciando com a leitura atenta sobre a
história da figura de Chico Rei, a exibição do vídeo (disponível em Recursos
necessários) que trata de uma montagem teatral sobre Chico Rei, a escolha dos
personagens principais e dos alunos que queiram interpretar. É interessante também
que os estudantes façam um mapeamento das festas e manifestações culturais
existentes em sua cidade ou bairro e assim decidam qual deverá ser representado na
escola.
O teatro deve ser utilizado como ferramenta pedagógica. A linguagem lúdica é ideal
para a montagem de peças sobre a cultura local e ajuda a desenvolver nos alunos
aspectos como a oralidade, os gestos, a linguagem musical e corporal. O ideal é que os
alunos se envolvam com a trama e os personagens.

Avaliação (1 tempos de aula): grupo de quatro alunos:


A roda de conversa deve ser avaliada pelo professor tanto no seu decorrer, com os
aspectos relacionados às falas e questionamentos dos alunos, e também no seu
fechamento, com o pedido de uma redação sobre o tema principal discutido na roda.
Em grupo de quatro alunos, o professor pode pedir essa redação e transformar a
oralidade em texto escrito.
Em relação à atividade teatral, pode-se filmar e fotografar a encenação e depois,
juntamente com os alunos, analisar a montagem e fazer um exercício de auto-avaliação
Sugestões bibliográficas:
ABREU, Martha. A festa é dos negros. Revista de História da Biblioteca Nacional.
Disponível em: < http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/a-festa-e-dos-
negros>, Acesso em: 10 fev. 2014.
FRANÇA, Cecília Cavalieiri; POPOFF, Yuri. Festa mestiça: o congado na sala de
aula. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de
coroação do rei congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

Sobre a atividade didática


O tema da cultura afro-brasileira pode ser trabalhado nas séries iniciais do
ensino fundamental através de lendas, contos, cantigas e brincadeiras, como sugeriu
Mônica Lima35. As festas também podem ser trabalhadas como uma experiência

35
Mônica Lima aponta que “no segundo semestre do primeiro grau, já podemos trabalhar com conteúdos
mais precisos, falar da Pré-História – questionando o termo, pois não é a escrita que cria a História –
como o tempo do processo de hominização, que se deu na África antes que em outros lugares do planeta.
[...]. Ao estudar o tráfico de escravos, não se limitar a falar do intercâmbio de pessoas por riquezas, mas
também das riquezas transportadas por estas pessoas dentro de si, no maior processo de migração forçada
da História da humanidade [...]. No ensino médio, ao retomar alguns conteúdos, debater as grandes
visões, situar o surgimento do racismo como projeto científico e político – utilizando estratégias que
permitam aos alunos construir e desestruturar ideias através de pesquisas, júris simulados,
dramatizações.” LIMA, Mônica. Fazendo soar os tambores: o ensino de História da África e dos africanos
pedagógica que tenha como ponto central a percepção das diferentes maneiras dos
indivíduos identificarem-se como congadeiros (ou participante de outro grupo de
manifestação) e as formas que construíram essa identidade e sua intensa relação com o
passado.36
Levantar questionamentos sobre as mudanças e também sobre as continuidades
das práticas culturais pode ser feito através da ida de congadeiros para a sala de aula
(caso haja na cidade ternos de Congadas, Moçambiques e outros grupos) e a realização
de entrevistas, com o foco intergeracional, especialmente com congadeiros de diferentes
gerações, como crianças e idosos.
Sendo o fio condutor, as memórias e as narrativas dos sujeitos envolvidos com
as festas, a intenção é tentar perceber as diferentes práticas culturais identitárias que
envolvem os grupos afrodescendentes ao longo do século XX. Assim, questionamentos
importantes sobre como a festa surgiu, porque ela existe, quem são os participantes, o
que eles representam, como era a festa no passado, devem ser norteadores para se
trabalhar com as Congadas na sala de aula.
Caso na escola haja alunos congadeiros ou participantes de outras manifestações
culturais negras, pode ser interessante convidá-los para desenvolver uma proposta
pedagógica que crie rodas de conversas cuja finalidade seja debater, conhecer,
transmitir e compartilhar as narrativas congadeiras.
Para Junia Pereria e Luciano Roza, “a gestualidade e a oralidade são meios de
transmissão dos saberes aos iniciados presentes nesses referenciais culturais afro-
brasileiros, ponto especial para aprendizagem da cultura pelos alunos”.37
Desse modo, pode-se pedir para que os membros dos grupos desenvolvam as
danças, os gestos, os cantos e as suas músicas como um exercício válido para a
valorização das práticas culturais. Além disso, os instrumentos musicais ajudam na
criação de uma sonoridade para esses debates e na apresentação dos ritmos negros na

no Brasil. In: BRANDÃO, André Augusto. (Org.). Programa de Educação sobre o Negro na
Sociedade Brasileira. Niterói: Ed. UFF, 2004. p. 169-170.
36
Para Claudia Oliveira, a escola, infelizmente, ainda é palco de preconceito racial. A autora analisou os
relatos e as vivências das crianças e jovens congadeiras na escola, em Minas Gerais, e percebeu que tais
sujeitos não compartilham a experiência de serem congadeiras na sala de aula, por conta do preconceito
existente. OLIVEIRA, Claudia Marques de. Cultura afro-brasileira e educação: significados de ser
criança negra e congadeira em Pedro Leopoldo — Minas Gerais. 2011.148 f. Dissertação. (Mestrado em
Educação). Programa de Pós-Graduação. Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 2011.
37
PEREIRA; ROZA. Op. cit. p. 95.
escola. Outra atividade é pedir para que os membros congadeiros falem e apresentem
seus figurinos, trajes e toda ritualística que lhes pertence.

As conversas podem — e devem — valorizar sujeitos e sua sabedoria, sua


consciência de estar no mundo e sua importância para um grupo, uma
comunidade, a importância do festejar e das louvações para quem deles
participa e com eles colabora. O recurso à palavra põe em cena o agente
histórico, todo ele considerado sujeito de ação e de capacidade de fala e de
elaboração de narrativas. Essa questão traz à baila o tema da agência
histórica, muito relevante quando o assunto diz respeito a sujeitos e grupos
sociais silenciados, invisibilizados ou estereotipados historicamente.38

Essa proposta de atividade pedagógica foi realizada na Escola Estadual Dr.


Antônio Batista do Nascimento, em Piedade do Rio Grande (MG), em conjunto com o
Projeto Compartilhar, idealizado pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultural. As
professoras de Geografia, Flávia Ferreira e Márcia Gonçalves, o professor de História,
José de Araceli Alves e outros professores promoveram uma roda de conversa
interdisciplinar com os membros da Congada e Moçambique da cidade, apresentada
nesse artigo. O atual presidente da associação, Elson Donizete de Oliveira, um dos
capitães dos ternos, Carlos Antônio Oliveira e a ex-presidente Francisca Braga
estiveram presentes na roda, juntamente com os alunos da escola pertencentes à
Congada e Moçambique: Miguel Vitor da Silva Oliveira, Marcos Felipe dos Santos e
Carlos Eduardo Castro Carvalho, ambos do 7. ° ano do Ensino Fundamental II. Todos
foram vestidos com as roupas utilizadas nos rituais e apresentaram seus principais
instrumentos, adereços, vestimentas e músicas. Em círculo, os alunos do 9. ° ano do
ensino fundamental e do 3. ° do ensino médio, puderam debater e conversar com os
membros desse grupo sobre sua história, seus rituais, suas músicas e performances. A
proposta foi bem sucedida e está esmiuçada na sugestão didática abaixo.
Outra opção como atividade pedagógica é a montagem teatral da Coroação dos
reis negros na escola. Essa atividade pretende contar a história dos reis negros no Brasil,
como a história do Chico rei, também conhecido como Galanga, um rei de uma tribo do
Congo que teria vindo para o Brasil como escravo no século XVIII e aqui virou herói.
Esse personagem lendário da tradição oral de Minas Gerais teria comprado sua alforria
e de outros escravos e esses o consideravam o rei. Esse grupo de homens libertos teria
construído a Igreja de N. S. do Rosário e na ocasião das festas, Chico rei era coroado, ao

38
Idem, p. 97.
som de tambores, pandeiros, caxambus e outros instrumentos. Com essa trama em
mãos, o professor pode incentivar os alunos a montar um espetáculo teatral.
Ao promover essas atividades pedagógicas, tanto a roda de discussão, como a
encenação teatral com os alunos, a partir do material levantado, os objetivos de
aprendizado podem ser concluídos no sentido de demonstrar que a congada — ou as
manifestações culturais presentes em sua cidade — são partes “do nós” e não “deles”, o
que ajuda a romper com os estereótipos culturais carregados de preconceitos. Os
professores também podem pedir uma produção textual como conclusão da proposta.
Essa proposta pedagógica deve ter como objetivo o fim do racismo dentro e fora da
escola.

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