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'Portugal não é um país pequeno"

contar o 'império'
na pós-colonialidade

Organização de
MANUELA RIBEIRO SANCHES

Livros Cotovia
Título: Portugal não é um país pequeno: contar o império
na pós-colonialidade
© dos Autores e de Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006

"The hidden empire: peasants, nation building and the empire


in Portuguese Anthropology": reprodução autorizada de
Recasting Culture and Space: Iberian Contexts, Sharon Roseman
and Shawn Parkhurst (eds.), The State University of New York Press
© 2007, State University of New York.
Todos os direitos reservados.

ISBN 972-795-173-2
O IMPÉRIO ESCONDIDO: CAMPONESES,
CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO E IMPÉRIO
NA ANTROPOLOGIA PORTUGUESA 6
João Leal

A diferença entre "Völkerkunde" e "Volkskunde", entre o


estudo antropológico das "culturas primitivas" e o estudo antro-
pológico das "tradições e costumes populares", é central para a
história da antropologia europeia. George Stocking (1982) relacio-
nou o desenvolvimento destas tradições antropológicas distintas
com as circunstâncias políticas e ideológicas predominantes na
Europa de finais do século XIX e princípios do século XX. Os
estudos de "Völkerkunde", ou as "antropologias da construção do
império", desenvolveram-se em países que possuíram um império
colonial, como a França e a Grã-Bretanha, ao passo que os estudos
de "Volkskunde", ou as "antropologias da construção da nação",
se desenvolveram em países que tiveram um problema nacional
clássico, isto é, países envolvidos num processo de autonomia e/ou
independência nacional.
Esta distinção é duplamente paradoxal quando aplicada à his-
tória da antropologia portuguesa. O primeiro paradoxo deve-se ao
facto de, apesar da existência de um Império que durou até 1974,

6 Este ensaio foi escrito originalmente em inglês para a colectânea Recasting Culture
and Space: Iberian Contexts, coordenada por Shawn Parkhurst e Sharon Roseman e editada
em Nova Iorque pela SUNY Press. Uma versão prévia deste ensaio foi apresentada durante
um seminário no Programa de Mestrado de "Antropologia: Colonialismo e Pós-Colonia-
lismo" (ISCTE). Agradeço ao Miguel Vale de Almeida e à Mareia Wolff os seus comentá-
rios a uma versão anterior do texto. Tradução de João Catarino, revisão de João Leal.
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não ter surgido qualquer tradição sistemática de antropologia


social colonial em Portugal até ao final dos anos 1950. O segundo
paradoxo, correlacionado com este, deve-se ao facto de, apesar de
Portugal ter sido definido como uma das "velhas nações contínuas"
do Ocidente (Seton-Watson 1977) sem um problema nacional clás-
sico, a antropologia portuguesa ter surgido e se ter desenvolvido,
entre 1870 e 1970, como um projecto intelectual empenhado no
estudo das tradições populares, tendo em vista a busca da identi-
dade nacional portuguesa.
O primeiro paradoxo foi referido por Rui Pereira (1998) num
ensaio sobre Jorge Dias, um dos antropólogos portugueses mais
importantes do século XX, que, depois de se ter dedicado ao
estudo da cultura popular portuguesa, levou a cabo, no final dos
anos 1950, uma detalhada investigação entre os macondes do
norte de Moçambique (Dias 1964, Dias e Dias 1964, 1970).
No seu ensaio, Rui Pereira sublinha que, antes da pesquisa de
Jorge Dias entre os macondes, não era possível falar-se de um inte-
resse sistemático, entre os antropólogos portugueses, pelo estudo
social e cultural das diferentes populações que viviam nos territó-
rios das ex-colónias portuguesas em Africa e na Ásia. Pereira con-
trasta esta falta de interesse com o empenho demonstrado pelos
antropólogos físicos e biológicos em estudar o "outro colonial" e
explica-a como um resultado da "natureza subdesenvolvida"
(Pereira 1999: XI) do colonialismo português e como uma conse-
quência das políticas do estado português, especialmente durante
o Estado Novo. Rui Pereira salienta, em particular, as ligações
entre o desenvolvimento da antropologia biológica e física e a
necessidade de "mobilização da força de trabalho 'indígena'" (id.:
XVII) pelas autoridades coloniais portuguesas. Apoiando-se em
Alfredo Margarido (1975), destaca também a contradição entre a
política de assimilação forçada à cultura ocidental adoptada pelo
regime colonial e o desenvolvimento dos estudos socio-antropoló-
gicos das populações das ex-colónias portuguesas.
O segundo paradoxo tem sido referido por vários autores que
salientam o modo como a antropologia portuguesa se define como
uma antropologia de "construção da nação". Para Pina Cabral,
por exemplo, a antropologia portuguesa teve uma grande "impor-
tância no desenvolvimento da noção de nacionalidade no contexto
da hegemonia burguesa (...). Tal como noutros países europeus,
durante o século XIX e a primeira metade do século XX, o recurso
CONTAR O IMPÉRIO 65

à etnografia foi conscientemente associado (...) à procura de uma


identidade nacional" (1991b: 33). Eu próprio escrevi que "a antro-
pologia portuguesa [entre 1870 e 1970] não só se constitui como
um espaço disciplinar orientado para o estudo da cultura popular
portuguesa de matriz rural, como essa orientação foi dobrada por
pressupostos analíticos marcados pela centralidade da problemá-
tica da identidade nacional portuguesa" (2000a: 28). Tanto eu
como Pina Cabral, embora de maneiras distintas, referimo-nos aos
diferentes períodos de desenvolvimento da antropologia portu-
guesa, indicámos os autores que foram centrais nesse processo,
discutimos as várias definições de cultura popular dadas pelos
antropólogos e etnógrafos portugueses e realçámos as diferentes
questões metodológicas e teóricas por eles enfrentadas.
Existem outros estudos que completaram esta imagem da
antropologia portuguesa7. O que deles emerge é, uma vez mais,
esse duplo envolvimento da antropologia portuguesa entre 1870 e
1970 com o estudo da cultura popular e com a discussão da iden-
tidade nacional portuguesa.

1. O Império escondido I: cultura popular e decadência


nacional

Apesar de se ter confinado ao espaço restrito do Portugal


rural e da sua aparente indiferença em relação à dimensão colonial
do país, a antropologia portuguesa foi, entretanto, marcada pela
sombra do Império. Nos interstícios do seu discurso orientado
para a cultura popular é frequente encontrar, em pano de fundo, a
dimensão imperial de Portugal. Não se trata de uma presença
explícita, mas antes escondida, algo que não se dá imediatamente
a ver, mas que, apesar disso, está lá. E justamente esta presença
escondida do Império na antropologia portuguesa que este ensaio
pretende explorar.
Um dos melhores exemplos deste subtexto imperial pode ser
encontrado na antropologia portuguesa da viragem do século XIX
para o século XX. Os principais antropólogos da altura eram
Adolfo Coelho8 e Rocha Peixoto. Depois de se ter concentrado

7 Pode-se encontrar uma síntese das recentes tendências na história da antropologia

portuguesa em Leal 1999b.


8 Em relação a Adolfo Coelho, ver Leal 1993a, 1993b.
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exclusivamente na literatura e nas tradições populares, que tinham


sido os principais tópicos de investigação ao longo das décadas de
1870 e 1880, a antropologia portuguesa torna-se então um campo
de investigação mais plural e as questões relacionadas com a cul-
tura material, a arte popular e a organização social e económica
das comunidades rurais foram incluídas na agenda de pesquisa.
Ao mesmo tempo, a antropologia torna-se também num empreen-
dimento intelectual mais sofisticado, tanto em termos metodológi-
cos como teóricos. Têm lugar as primeiras tentativas para estabe-
lecer o trabalho de campo como metodologia-chave no estudo da
cultura popular portuguesa e, em termos teóricos, o evolucio-
nismo torna-se na influência dominante na antropologia portu-
guesa.
Entretanto, a característica principal deste período do desen-
volvimento da antropologia portuguesa foi a afirmação de uma
imagem negativa da cultura popular portuguesa. Esta imagem
contrasta nitidamente com a imagem da cultura popular predomi-
nante nas décadas de 1870 e 1880 (e que voltaria de resto a domi-
nar a antropologia portuguesa depois de 1910). De facto, em vez
de fazerem uma abordagem romântica aos costumes e tradições
dos camponeses, encarados como os fiéis depositários da alma da
nação, Adolfo Coelho e Rocha Peixoto tematizam o povo portu-
guês como uma entidade negativa, retratando os seus costumes e
tradições em termos fortemente críticos9.
Adjectivos como "boçal", "rude", "grosseiro" e "bárbaro"
foram comummente usados por ambos os autores para classificar
os costumes dos camponeses, e a avaliação dos vários aspectos da
cultura popular investigados estava em geral eivada de um tom
negativo.
Ao escrever sobre a olaria tradicional do norte de Portugal,
por exemplo, Rocha Peixoto caracterizou-a, tanto em termos tec-
nológicos como estéticos, como "próxima de alguns dos tipos mais
grosseiros das olarias primitivas", dispondo "de recursos incom-
paravelmente inferiores aos de muitas populações consideradas
bárbaras" (Peixoto 1967a [1900]: 112). O azulejo popular portu-
guês também foi classificado como "bárbaro, (...) grosseiro e
rude", "de factura péssima, de vidrado péssimo" (id., ibid: 135).
Podemos encontrar adjectivos e avaliações semelhantes nos

9 Tive oportunidade de analisar estas imagens negativas da cultura popular portu-

guesa mais detalhadamente em Leal 1995.


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ensaios de Peixoto sobre joalharia tradicional, ex-votos ou arqui-


tectura popular (1967d [1908], 1967c [1906], 1967b [1904]).
A sua descrição do interior da casa rural portuguesa, por exemplo,
era extremamente violenta. De acordo com Rocha Peixoto, "este
nos dá a impressão da (...) tradicional penúria [do povo portu-
guês], da índole rude e violentamente utilitária, da indigência
mental de um povo absolutamente carecido de faculdades artísti-
cas, a um tempo amorudo e interesseiro, pagão irredutível ainda
quando beato, escravo por vício de origem, por hábito histórico e
por eterno assentimento grato e conformista" (1967d [1904]:
160).
Entretanto, foi no seu ensaio sobre o fado (Peixoto 1997
(1897]), que Rocha Peixoto utilizou expressões mais fortes para
caracterizar a cultura popular portuguesa. As conclusões do
ensaio, em particular, constituem uma das descrições mais desen-
cantadas e pessimistas do povo português alguma vez produzidas
em Portugal: "ontem, ali na rua, passavam homens harpejando,
macilentos, queixa de peito, olho em alvo, grenha ao vento, pró
pagode. Um cantava (...) [um] conhecido mote dum fado típico,
com todo o temperamento dum povo lá dentro, imundo, vadio,
hipócrita, malandro. Miséria social, miséria orgânica, melopeia
sem encanto, sem frescura, sem ingenuidade, modismo de deses-
pero, de conformação, de penitência e de perdão, atitude e mar-
cha, emprego de vida e ideal, tudo dá, ao contemplar destes gru-
pos, uma noção: E a pátria que passa!" (id.: 335-336).
Adolfo Coelho usou um tom mais cauteloso. Entretanto, os
seus ensaios sobre pedagogia popular caracterizam-se por uma
abordagem do mesmo tipo à cultura popular portuguesa (Coelho
1993 c [1898] 1993 d [1910]) e os programas etnológicos e antro-
pológicos que escreveu em 1890 e 1896 (Coelho 1993a [1890] e
1993b [1896]) eram também bastante cépticos quanto às qualida-
des do povo português, visto como atingido por uma espécie de
"maladie étnica" (Coelho 1993a [1890]: 692) e descrito como a
"matéria bruta de um povo e não verdadeiramente um povo como
a complexidade da vida moderna exige que seja" (Coelho 1993c
[1898]: 705).
A razão principal para esta imagem negativa da cultura popu-
lar tinha a ver com a atmosfera geral que prevalecia então no meio
intelectual português, caracterizada por uma ideologia obcecada
com a decadência do país. Adolfo Coelho e Rocha Peixoto foram
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fortemente influenciados por esta ideologia, e as suas descrições


negativas da cultura popular portuguesa podem ser vistas como
um resultado directo dessa influência. Segundo eles, a cultura
popular portuguesa fora fortemente afectada pela decadência
geral do país e encontrava-se num estado de declínio que os dois
antropólogos tentaram justamente retratar. Assim, para eles, a
antropologia portuguesa, em vez de ser uma antropologia de
"construção da nação", era uma antropologia de "questionamento
da nação", preocupada com as expressões da decadência no seio
do povo português. De um símbolo romântico de identidade
nacional, a cultura popular foi por eles transformada numa
expressão do declínio do país.
A predominância desta ideologia de decadência nacional
estava ligada a um padrão mais abrangente do pensamento oci-
dental do fim do século XIX: como Herman (1997) observou, a
decadência do Ocidente e a decadência nacional constituíam
então um dos principais tópicos da filosofia e das ciências sociais
ocidentais.
Entretanto, no caso português, esta ideologia de decadência
nacional foi também decisivamente alimentada por uma série de
eventos encarados como "traumáticos" para o orgulho nacional
português. Entre eles encontrava-se o Ultimatum britânico (1890),
que limitou drasticamente os direitos coloniais portugueses em
Africa, afectando directamente o estatuto imperial do país. Para
além dos numerosos protestos anti-britânicos, o Ultimatum deu
também azo a uma série de reflexões cépticas sobre a viabilidade
da nação, construídas em torno da ideia da decadência nacional.
Os trabalhos de Adolfo Coelho e Rocha Peixoto podem ser
vistos como uma tradução antropológica destas ideias pessimistas
directamente decorrentes do Ultimatum. Isso significa que o
retrato negativo que traçaram da cultura popular portuguesa, em
vez de derivar directamente da análise dos costumes e tradições
dos camponeses, estava dependente, em última instância, de ques-
tões relacionadas com a condição imperial de Portugal. Embora
escondido, o Império foi assim o factor determinante na interro-
gação sobre a identidade nacional que se desenvolveu na viragem
do século XIX para o século XX na antropologia portuguesa.
Para além de ser a principal explicação para o tom pessimista
que caracterizou a antropologia portuguesa nas décadas de 1890 e
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1900, o Império também foi usado como um importante instru-


mento retórico nalguns dos ensaios antropológicos desse período.
No seu ensaio sobre a pedagogia popular em Portugal, por
exemplo, Adolfo Coelho (1993 c [1898]) sublinhou a importância
da noção ideal de pessoa transmitida pela pedagogia popular por-
tuguesa. Segundo ele, essa noção tradicional de pessoa daria tra-
dicionalmente ênfase a valores como a "franqueza", a "lealdade",
a "tenacidade" e a "coerência entre o pensamento e a acção" (Coe-
lho 1993 c [1898]: 222). Tradicionalmente referida por intermédio
da expressão "português velho", esta noção de pessoa, segundo
Coelho, salientaria as qualidades morais "dos Nunos, dos Albu-
querques e dos Pachecos" (id.: 223). No entanto, devido à deca-
dência do país, esta noção de pessoa encontrar-se-ia à beira da
extinção.
As referências imperiais na linguagem utilizada por Coelho
devem ser enfatizadas. "Português velho" foi uma expressão
cunhada durante os descobrimentos para descrever as qualidades
dos navegadores e dos conquistadores portugueses. "Os Nunos, os
Albuquerques e os Pachecos" eram homens ilustres como Nuno
Alvares Pereira, Afonso de Albuquerque ou Duarte Pacheco
Pereira, directa ou indirectamente ligados ao desenvolvimento do
Império ultramarino português.
Assim, apesar de, no plano explícito, Adolfo Coelho estar a
tratar de temas relacionados com a pedagogia popular portuguesa,
num plano mais implícito ele está de facto a comentar a decadên-
cia de Portugal desde os gloriosos dias da expansão até à actual
situação sombria do país. Ao escrever sobre camponeses, está na
realidade a pensar no Império.
Outro ensaio onde é possível encontrar um raciocínio similar,
é o ensaio de Rocha Peixoto sobre o fado. Tal como indiquei atrás,
este foi um dos ensaios mais cépticos alguma vez escrito por um
português sobre os portugueses. Centrado num género musical
popular, o ensaio incluía outras referências à cultura popular,
desde as crenças em lobisomens até à poesia tradicional. Mas o
que surpreende o leitor contemporâneo são as suas múltiplas refe-
rências à expansão portuguesa e à condição imperial do país.
Alguns dos episódios mais importantes da expansão ultrama-
rina portuguesa — a ocupação militar do norte de Africa no
século XV, as viagens marítimas para a índia, a exploração de ouro
e pedras preciosas do Brasil no século XVIII — são usados como
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ilustrações da natureza inconstante da alma portuguesa, de que o


fado seria a verdadeira expressão. A expansão portuguesa é apre-
sentada como uma metáfora do infeliz destino da nação portu-
guesa, impelida por um "delírio de grandeza" e por uma "alucina-
ção colectiva" que dispensava o trabalho árduo e a providência:
"Tudo quer ser marinheiro, mercador, traficante, pirata; o solo fica
abandonado; nem pão há que chegue para os que ficam em casa;
nem sequer existe quem teça um vestuário" (1997: 333). Para
Rocha Peixoto, a decadência da nação portuguesa, que a cultura
popular exprimiria de forma tão exuberante nos tempos contem-
porâneos, começara há muito tempo, e a expansão portuguesa era
a primeira e mais poderosa prova disso mesmo.
Resumindo: o Império é não só a explicação fundamental para
o tom pessimista da antropologia portuguesa na viragem do
século XIX para o século XX, como foi por referência directa ao
Império que a decadência da cultura popular portuguesa foi tam-
bém explicada nesse período. Embora se referissem explicita-
mente a questões relacionadas com a cultura popular portuguesa,
os antropólogos portugueses estavam na verdade a comentar a
condição imperial de Portugal.

2. O Império escondido II: a psicologia étnica portuguesa

Esta presença escondida do Império também pode ser encon-


trada nas obras dos antropólogos portugueses sobre psicologia
étnica. Com efeito, nas suas tentativas de enraizarem a identidade
nacional portuguesa no sólido terreno dos costumes e tradições
camponesas, os antropólogos portugueses, tal como os seus cole-
gas europeus, concederam ao tema do carácter nacional português
um papel extremamente importante. Para eles, a existência da
nação assentava numa "alma ou mentalidade nacionais", que deri-
vavam fundamentalmente da cultura popular e que reflectiriam
uma maneira de ser específica dos portugueses10.
O primeiro etnólogo português que tratou questões relacio-
nadas com a psicologia étnica foi Teófilo Braga, activo nas décadas
de 1870 e 1880, e que é usualmente considerado como um dos pais
fundadores da antropologia portuguesa. As suas primeiras abor-
dagens à psicologia étnica portuguesa desenvolveram-se em torno

10 Sobre a psicologia étnica portuguesa, ver Leal 2000a: 83-104 e Leal 2000b.
CONTAR O IMPÉRIO 71

de uma interpretação nacionalista da literatura popular, um dos


seus tópicos de investigação preferidos (Braga 1985 [1885] e
1894). Depois de Braga, a questão também foi abordada na vira-
gem do século XIX para o século XX. Tal como vimos, as ideias
de Adolfo Coelho e de Rocha Peixoto sobre a decadência nacional
estavam, de facto, fortemente associadas a uma avaliação negativa
do carácter nacional português.
Contudo, o principal antropólogo a trabalhar este tópico foi
Jorge Dias. Uma das suas grandes preocupações era a discussão
dos factores que explicavam tanto a diversidade como a unidade
da cultura popular portuguesa. Para explicar a diversidade, Dias
recorreu ao modelo proposto pelo geógrafo humano Orlando
Ribeiro (1963 [1945]), que tinha chamado a atenção para a exis-
tência de três principais áreas geográficas em Portugal: o Mediter-
râneo, o Noroeste e o Nordeste. Segundo Jorge Dias, essas áreas
geográficas deviam ser também encaradas como áreas culturais
ligadas a um certo número de particularidades relacionadas com a
cultura material, padrões de povoamento, tipos de família e de
organização social, crenças religiosas, etc. Apesar desta diversi-
dade, a cultura popular portuguesa mostrava entretanto, segundo
Dias, uma forte unidade cultural. Esta unidade cultural assentava
no carácter nacional português, que Jorge Dias analisou em "Os
Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa" (1990 [1953]),
um pequeno ensaio que permanece como um dos mais influentes
textos alguma vez escritos por um antropólogo português.
O ensaio, tal como já referi noutra ocasião (Leal 2000b), foi
influenciado pelos estudos sobre carácter nacional feitos por
antropólogas americanas como Ruth Benedict e Margaret Mead.
Mas foi também influenciado pelas teorias relacionadas com o
papel da saudade na identidade nacional portuguesa11.
As diferentes abordagens à psicologia étnica portuguesa que
acabei de mencionar baseavam-se na cultura popular. Foi do
ponto de vista dos costumes e tradições dos camponeses que o
carácter nacional português foi discutido pelos diferentes autores.
No caso de Teófilo Braga, as provas baseavam-se sobretudo em
diferente géneros de literatura popular, como a poesia tradicional
ou os contos populares. Nos casos de Adolfo Coelho e de Rocha
Peixoto, como já vimos, o suporte empírico foi fornecido pela
pedagogia popular, pelo fado e por outros materiais de cariz popu-

11 Em relação à invenção da "saudade", ver Leal 2000b.


72 PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO

lar. Finalmente, Jorge Dias baseou a sua análise em aspectos como


a religião popular, detalhes da organização familiar e social, a lei
consuetudinária, etc.
Contudo, apesar das abordagens propostas estarem firme-
mente enraizadas no terreno da cultura popular, por detrás delas
pode detectar-se de novo a sombra do Império. Já vimos isso em
relação a Rocha Peixoto e Adolfo Coelho. Os seus pontos de vista
pessimistas assumiram a forma de um conjunto de avaliações cép-
ticas da alma nacional portuguesa, misturadas com referências
várias à condição imperial de Portugal.
No caso de Teófilo Braga, é possível encontrar a mesma atrac-
ção pelo Império. Em O Povo Português nos seus Costumes, Cren-
ças e Tradições (Braga 1995 [1885]), um estudo ambicioso da cul-
tura popular portuguesa que é geralmente considerado a sua opus
magnum, Braga ofereceu uma visão detalhada do carácter nacional
português. Essa visão salientava o lado emocional do tempera-
mento português, e, entre outras qualidades, enfatizava "o génio
aventureiro" dos portugueses e a sua "tendência para a exploração
ultramarina" (Braga 1995 [1885]: 73). Teófilo Braga regressou ao
tópico em A Pátria Portuguesa. O Território e a Raça (1894). Entre
as qualidades da alma portuguesa que Braga então enumerou,
podemos encontrar características como a "capacidade de fácil
adaptação ao meio", o "cosmopolitismo", o "eclectismo étnico" e
a tendência para a assimilação de novas ideias (Braga 1894: 26).
"O espírito de aventura" dos portugueses, ligado às "descobertas
marítimas" (id.: 150) e alegadamente de origem celta, foi também
referido por Braga.
Nestas abordagens de Teófilo Braga à psicologia étnica portu-
guesa, encontramos novamente a sombra do Império. No caso de
O Povo Português..., essa sombra é discreta. "O génio aventureiro"
dos portugueses e a sua "tendência para a exploração ultramarina"
(id.: 1995 [1885]: 73) são apenas dois entre muitos aspectos que
caracterizariam a alma portuguesa. No entanto, no caso de
A Pátria Portuguesa, essa sombra é mais evidente. O retrato da psi-
cologia étnica portuguesa que Braga aí propôs, assenta, quase
exclusivamente, numa lista de características fortemente ligadas à
condição imperial do país.
Entretanto, é no ensaio de Jorge Dias que esta presença do
Império na descrição do carácter nacional português é mais evi-
dente. De facto, uma das primeiras ideias de "Os Elementos Fun-
CONTAR O IMPÉRIO 73

damentais da Cultura Portuguesa" tem a ver com a sua "natureza


expansiva": "a força atractiva do Atlântico, esse grande mar
povoado de tempestades e mistérios foi a alma da Nação e foi
com ele que se escreveu a história de Portugal" (Dias 1990
[1953]: 142). Segundo Jorge Dias, "os quatro pilares do génio
criador português: Os Lusíadas, os Jerónimos, o políptico de
Nuno Gonçalves e os Tentos de Manuel Coelho, são quatro for-
mas de expressão verdadeiramente superiores e originais de um
povo, que, durante mais de um século, esquadrinhou todos os
mares e se extasiou perante as naturezas mais variadas e exóticas"
(id., ibid.).
Depois desta elogiosa introdução, a presença do imaginário
imperial parece desaparecer do ensaio de Jorge Dias. Aliás, um
dos seus principais argumentos tem a ver com a complexidade da
personalidade portuguesa, que Jorge Dias associou à diversidade
das raízes étnicas do povo português: "A personalidade psico-
-social do povo português é complexa e envolve antinomias pro-
fundas, que se podem talvez explicar pelas diferentes tendências
das populações que formaram o país" (id., ibid.). E em torno desta
ideia que o corpo do ensaio de Dias é estruturado. Baseado numa
série de traços psicológicos contraditórios, o carácter nacional
português combinaria, por exemplo, uma forte capacidade sonha-
dora com uma poderosa vontade de acção, uma bondade intrín-
seca com uma certa tendência para a violência e a crueldade, um
sentimento fortemente individualista com "um grande fundo de
solidariedade humana", uma falta de sentido de humor com "um
forte espírito trocista e e uma ironia pungente" (id.: 145-146), etc.
Os exemplos apresentados por Jorge Dias na análise destas dife-
rentes antinomias centravam-se na cultura popular portuguesa e a
presença do Império parece dissipar-se.
No entanto, numa leitura mais atenta não é difícil detectá-la.
De facto, para Jorge Dias, uma das principais características do
carácter nacional português, por exemplo, era "uma enorme capa-
cidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres" — alegada-
mente expressa num processo de colonização, através da assimila-
ção ou miscigenação, distinta da de outros países europeus —
"sem que isso implique perca de carácter" (id.: 146). A antinomia
entre "o sonhador" e "o homem de acção" (id.: 145) também foi
oferecida como explicação para a expansão ultramarina portu-
guesa.
74 PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO

O modo como a natureza contraditória do temperamento


português foi abordada por Jorge Dias é igualmente revelador.
Dias entendia que ela era responsável pela alternância, entre "os
períodos de grande apogeu e de grande decadência da história
portuguesa" (id.: 146). As qualidades do carácter nacional portu-
guês, de acordo com Dias, revelavam-se em circunstâncias históri-
cas adversas; "no entanto, se (...) chamam o português a desempe-
nhar um papel medíocre, que não satisfaz a sua imaginação,
esmorece e só caminha na medida em que a conservação da exis-
tência o impele. Não sabe viver sem sonho e sem glória" (id.: 146-
-147). O apogeu a que Jorge Dias se refere é, claro, o período da
expansão ultramarina portuguesa e o declínio que menciona é o
declínio do Império português.
Resumindo: as abordagens feitas à psicologia étnica portu-
guesa mostram um padrão semelhante àquele que encontrámos
nas discussões antropológicas sobre a natureza decadente da cul-
tura popular portuguesa na viragem do século XIX para o século
XX. Em ambos os casos, apesar de se centrar explicitamente na
cultura popular, a antropologia portuguesa tinha no Império uma
das suas principais preocupações.
Outros exemplos menores desta tendência podem ser encon-
trados em episódios isolados da história da antropologia portu-
guesa. Gostaria de dar dois exemplos. Um dos textos pioneiros
sobre arte popular portuguesa, o principal campo de interesse dos
antropólogos e etnógrafos portugueses nas décadas de 1910 e
1920, foi o ensaio de Baldaque da Silva sobre "Nacionalização da
Arte Portuguesa" (Baldaque da Silva 1999 [1895]). Seguindo os
ensinamentos da escola Arts and Crafts sobre a importância da arte
popular na renovação nacional das artes, Baldaque da Silva forne-
cia vários exemplos de aspectos especificamente populares que
podiam ser utilizados como motivos de inspiração para artistas
eruditos. Sendo um especialista em comunidades piscatórias, as
propostas de Baldaque da Silva baseavam-se em artefactos como
elementos decorativos dos barcos de pesca, redes de pesca, etc.
Todavia, para sublinhar o valor artístico e nacional desses artefac-
tos, Baldaque apresentava-os como parte de uma grande tradição
artística portuguesa que remontaria ao estilo manuelino do
século XVI e às suas ligações com a expansão ultramarina portu-
guesa. Os pescadores portugueses, na sua maior parte analfabetos,
CONTAR O IMPÉRIO 75

eram assim transformados nos modernos herdeiros dos navegado-


res portugueses do século XVI.
Outro exemplo do Império como subtexto da antropologia
portuguesa pode ser encontrado nos trabalhos do etnógrafo aço-
riano Luís Ribeiro, que foi a figura principal no desenvolvimento,
durante o século XX, de uma forte tradição regionalista da antro-
pologia no arquipélago dos Açores12. Referindo-se às particulari-
dades da psicologia étnica açoriana a partir das tradições e costu-
mes dos camponeses, Ribeiro encarava a cultura popular açoriana
do século XX basicamente como herdeira dos navegadores portu-
gueses da época dos descobrimentos, "portugueses fortes e leais
ainda não depauperados pelas conquistas nem corrompidos pelo
oiro do Oriente, portadores de todas as virtudes da nossa raça, de
todas as grandes qualidades que tornaram gloriosa a nossa histó-
ria" (Ribeiro, L. 1993 [1919]: 4). A referência implícita de Ribeiro
às afirmações de Coelho sobre o declínio do modelo do "portu-
guês velho" (Coelho 1993c [1898]) em Portugal continental prova
de que modo antropologia rural e Império se interligam na histó-
ria da antropologia portuguesa.

3. Conclusões

Esta estranha mistura entre antropologia orientada para o


estudo da cultura popular e a sombra do Império convida-nos a
sublinhar os limites da nítida distinção estabelecida na história da
antropologia europeia entre antropologia da "construção da
nação" e antropologia da "construção do império" (Stocking
1982), entre "etnologia local" orientada para o estudo da cultura
popular e "antropologia cosmopolita" orientada para os "primiti-
vos" (Gerholm 1985).
De facto, o caso português mostra-nos que os limites entre as
duas disciplinas são menos definitivos e mais porosos do que habi-
tualmente se pensa.
Seja como for, nestas notas conclusivas, em vez de referir
questões relacionadas com problemas gerais da história da antro-
pologia, gostaria de discutir alguns aspectos da identidade nacio-
nal portuguesa que podem ajudar a explicar esta presença, afinal

12 Sobre Luís Ribeiro e a tradição etnográfica e antropológica açoriana, ver Leal

2000a-. 227-244.
76 PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO

não tão escondida, do Império na antropologia portuguesa cen-


trada no estudo da cultura popular.
O primeiro ponto que gostaria de referir diz respeito à impor-
tância geral do Império nos discursos sobre a identidade nacional
portuguesa. Esta importância é tão grande que, mesmo quando o
Império não é a questão central, se torna impossível evitar a sua pre-
sença. A antropologia portuguesa não é um caso isolado. Se olhar-
mos para outros episódios importantes na discussão da identidade
nacional portuguesa no século XX, encontramos o mesmo padrão.
Já referi a importância da saudade nas discussões sobre a
identidade nacional portuguesa do século XX. O termo "saudade"
foi proposto por Teixeira de Pascoaes em vários ensaios publica-
dos entre 1912 e 1926 como tema estruturante da alma da nação
(Pascoaes 1978 [1915], 1986 [(1912]). Inicialmente, as suas ideias
encontraram uma forte resistência por parte de outros intelectuais
portugueses empenhados em discussões sobre identidade nacio-
nal. Contudo, no médio prazo, a saudade tornou-se num estereó-
tipo razoavelmente importante nos discursos e práticas sobre iden-
tidade nacional dos portugueses.
Tal como sublinhei anteriormente (Leal 2000b), a abordagem
de Pascoaes ao termo "saudade" tinha uma forte orientação etno-
gráfica e antropológica. Apesar de poeta, Pascoaes recorreu a
exemplos da cultura popular portuguesa, especialmente da poesia
popular e de rituais religiosos populares como a Encomendação
das Almas13, na sua tentativa de demonstrar a dominância da sau-
dade na cultura portuguesa. Segundo ele, o povo era o poeta que
melhor compreendia a saudade e os poetas urbanos deveriam
seguir o seu exemplo.
Contudo, ao mesmo tempo, as suas ideias sobre a questão
também se caracterizavam por uma visão da história portuguesa
em que o Império constituía o acontecimento principal. Para ele,
por exemplo, a saudade tinha sido a força impulsionadora por
detrás dos grandes acontecimentos na história portuguesa, em par-
ticular dos acontecimentos relacionados com a expansão ultrama-
rina portuguesa. O grande objectivo do Saudosismo, o movimento
cultural e intelectual que fundou, era restaurar o esplendor per-
dido da vida e da cultura portuguesas, substituindo as influências

13 A Encomendação das Almas é um ritual especificamente português que ocorria

durante a Quaresma e cujo propósito era recordar os mortos.


CONTAR O IMPÉRIO 77

estrangeiras, tidas como responsáveis pela decadência do país


desde a época dos descobrimentos, por um culto das "coisas por-
tuguesas", que reflectisse a verdadeira "alma portuguesa". Em
suma: a sua "saudade" traduzia uma ansiedade nostálgica por um
tempo em que Portugal, devido ao Império, era grande.
O mesmo tipo de dialéctica entre afirmações baseadas na cul-
tura popular sobre a identidade nacional portuguesa e a sombra
omnipresente do Império, pode ser encontrado na maioria dos tra-
balhos da chamada escola da Filosofia Portuguesa, influenciada
pela ideias de Pascoaes, cujo objectivo principal era desenvolver
uma filosofia puramente portuguesa.
Os casos de Cunha Leão e Agostinho da Silva são particular-
mente interessantes. Cunha Leão (1971, 1973 [1960]) dedicou os
seus trabalhos, na senda de Jorge Dias em "Os Elementos Funda-
mentais da Cultura Portuguesa", a uma discussão aprofundada da
psicologia étnica portuguesa. Agostinho da Silva (1994a, 1994b)
tinha uma paixão pelas Festas do Espírito Santo, um ritual popu-
lar que tem lugar nas freguesias rurais do arquipélago dos Açores.
Cunha Leão transformou as ideias principais de Jorge Dias sobre
o carácter nacional português num retrato psicológico dos portu-
gueses dos descobrimentos e da expansão ultramarina. Quanto a
Agostinho da Silva, analisou as Festas do Espírito Santo como um
ritual ligado ao sonho português do Quinto Império, no qual o
esplendor perdido da nação seria recuperado.
Em ambos os casos, tal como no caso de Pascoaes, o que
parece estar em jogo é o Portugal pequeno da cultura popular e
dos costumes rurais. No entanto, aquilo que é na verdade referido
é o grande Portugal — colonial, expansionista, imperial — de
outrora.
Os casos de Pascoaes e da filosofia portuguesa não são fenó-
menos isolados, com um valor meramente histórico. Com efeito, é
possível afirmar que algumas das mais importantes reflexões con-
temporâneas sobre a identidade nacional portuguesa ainda se
encontram assombradas pelo Império. Apesar da Revolução de
1974 e do aparecimento de novos Estados independentes nas ex-
-colónias portuguesas terem posto fim aos sonhos imperiais por-
tugueses, os discursos e as práticas em torno da identidade nacio-
nal portuguesa ainda se encontram povoados pela presença escon-
dida do Império.
78 PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO

Miguel Vale de Almeida mostrou, por exemplo, que a nostal-


gia colonial faz parte da ideologia contemporânea da Lusofonia,
vista enquanto princípio central das políticas do estado português
no que respeita às suas ex-colónias (Almeida 2000). Para ele, o
apoio popular português à luta pela independência do povo de
Timor-Leste também pode ser visto como parte da mesma ten-
dência nostálgica pós-colonial (id., ibid.).
Eu próprio referi que as tentativas do Boaventura Sousa San-
tos de analisar, em termos sociológicos, as questões da identidade
nacional portuguesa, evidenciam dificuldades de distanciamento
em relação a alguns dos principais tropos relativos ao Império por-
tuguês utilizados por Jorge Dias e outros ensaístas portugueses.
Num ensaio intitulado "Modernidade, Identidade e Cultura de
Fronteira" (Santos 1994a), por exemplo, Sousa Santos caracteriza
a cultura portuguesa como uma "cultura de fronteira" de uma
maneira que recorda vivamente as observações de Jorge Dias
sobre a "enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias
e seres" (Dias 1990: 146), presente na expansão ultramarina por-
tuguesa14.
Mais recentemente, o protesto generalizado nos meios de
comunicação quanto à posição alegadamente subalterna ocupada
pelos Lusíadas de Camões nos programas nacionais das escolas
secundárias portuguesas teve como principal subtexto questões
relacionadas com o lugar que a época dos descobrimentos ocupa
na identidade nacional portuguesa.
O segundo ponto que gostaria de referir é mais geral. Se o
Império possui esta poderosa presença na cultura portuguesa, isso
deve-se em grande parte à sua presença nos discursos mais quoti-
dianos sobre identidade nacional. De facto, podemos argumentar
que uma das ideias estruturantes que os portugueses partilham
sobre si próprios pode ser subsumida na expressão: "somos peque-
nos, mas já fomos grandes". Por outras palavras: a nostalgia do
Império é uma das principais características dos discursos partilha-
dos pelos portugueses sobre identidade nacional. Essa nostalgia
imperial talvez não seja tão óbvia e articulada como os discursos
públicos mais estereotipados sobre a saudade ou a hospitalidade

14 Noutro dos seus ensaios, Sousa Santos refere-se explicitamente à "ponta de ver-

dade" das caracterizações idealistas do português como um 'polvo' (Unamuno) com 'capa-
cidade de adaptação a todas as coisas" (Jorge Dias), 'essencialmente cosmopolita' (Fer-
nando Pessoa)" (Santos 1994b: 60).
CONTAR O IMPÉRIO 79

como traços distintivos da cultura portuguesa, mas é muito mais


poderosa. Renan escreveu que cada nação assenta num consenso
centrado não só sobre o que recordar mas também sobre o que
esquecer. No caso português, um dos consensos principais em que
a identidade nacional portuguesa parece assentar, é numa espécie
de hipermnésia (Roth 1989) quanto à época dos descobrimentos.
O esplendor perdido do Império pode de facto ser visto não
só como um elemento importante da "literacia cultural" (Lofgren
1989: 13) dos portugueses, isto é, "o tipo de competência cultural
necessária para podermos participar no discurso público" (id.,
ibid.) sobre o qual assenta uma cultura nacional, mas também, de
um modo mais vago, como uma das bases fundamentais das "asso-
ciações, referências, e memórias" (id.: 13) implícitas que atraves-
sam os discursos e práticas quotidianas sobre a identidade nacio-
nal portuguesa.

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