Você está na página 1de 395

Manuel Carlos Silva

RESISTIR E ADAPTAR-SE
Constrangimentos e estratégias camponesas no Noroeste de Portugal

Edições Afrontamento
Título: Resistir e Adaptar-se. Constrangimentos e estratégias camponesas no Noroeste de Portugal
Autor: Manuel Carlos Silva
© 1998, Manuel Carlos Silva e Edições Afrontamento
Edição: Edições Afrontamento/ R. Costa Cabral. 859 /Porto/ Tel.: 5074220
Colecção: Biblioteca das Ciências do Homem/ Sociologia. Epistemologia/ 24
Nº de edição: 635
ISBN: 972-36-0451-5
Depósito legal: i 18202/97 ·
Impressão eacabamento: Rainha & Neves, Lda. / Santa Maria da Feira
Dezembro de 1998

2
À memória do meu pai
À minha mãe, irmãs e irmão

À Isabel e ao Jorge

«Terra e céu, aspirações e apetites,


vida e morte, toda esta poeirada
redemoinha no meu caleidoscópico rústico»

AQUILINO RIBEIRO
in «Prefácio» a
Aldeia: terra, gentes e bichos,
1946
4
ÍNDICE

SIGLAS.................................................................................................................................................................... 8
NOTA PRÉVIA, pelo Professor Veit Bader ........................................................................................................... 12
PREFÁCIO.............................................................................................................................................................. 14

PARTE I
PROBLEMA, MÉTODO E TEORIA

CAPÍTULO 1. Introdução, problema e método.................................................................................................. 20


1.1 De servos a camponeses ........................................................................................................................... 22
1.2 Do Estado liberal ao «Estado Novo» .......................................................................................................24
1.3 Uma classe-apoio do salazarismo ............................................................................................................ 26
1.4 Trajecto de pesquisa e método pluridisciplinar ....................................................................................... 27

CAPÍTULO 2. «Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos? .............................................. 35


2.1 Campesinato e protótipos culturais-normativistas .................................................................................... 35
2.2 O modelo sócio-psicológico...................................................................................................................... 37
2.3 Modelo de poder ....................................................................................................................................... 39
2.4 A abordagem marxista tradicional ............................................................................................................ 40
2.5 Posição: balanço e perspectiva ..................................................................................................................41
2.6 Urna racionalidade específica mas adaptativa .......................................................................................... 44

CAPÍTULO 3. Constrangimentos e estratégias...................................................................................................54


3.1 Estratégias básicas.....................................................................................................................................56
3.2 Religião, Igreja e poder clientelar ............................................................................................................. 61

PARTE II
COMUNIDADES E RECURSOS: CONTINUIDADE E MUDANÇA

CAPÍTULO 4. Da relativa autarcia à coexistência económica ........................................................................... 77


4.1 Breve relance histórico-demográfico ........................................................................................................ 78
4.2 Minifúndio: áreas, culturas e produções ................................................................................................... 88
4.3 Divisão do trabalho e ciclo agrícola ......................................................................................................... 94

CAPÍTULO 5. Comunitarismo: identidade e diferenciação............................................................................... 103


5.1 Sistema de decisão: o conselho .................................................................................................................107
5.2 Infra-estruturas, baldios e vezeira .............................................................................................................109
5.3 Entreajuda: simetrias e dissimetrias .......................................................................................................... 110

CAPÍTULO 6. Novas dependências......................................................................................................................117


6.1 A incipiente modernização........................................................................................................................ 120
6.2 Da policultura à pluriactividade ............................................................................................................... 124

CAPÍTULO 7. Controlo sobre recursos e grupos sociais.................................................................................... 134


7.1 Grupos domésticos e distribuição de recursos .......................................................................................... 135
7.2 Grupos sociais ........................................................................................................................................... 143

6
PARTE III
ESTRATÉGIAS E MODOS DE REPRODUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO

CAPÍTULO8. O casamento .................................................................................................................................. 160


8.1 Interconhecimento e endogamia ............................................................................................................... 162
8.2 Interesse e paixão ...................................................................................................................................... 168
8.3 Paixão e interesse ..................................................................................................................................... 174
8.4 Os excluídos: celibatários e bastardos ...................................................................................................... 181

CAPÍTULO 9. Herdar, poupar e educar............................................................................................................... 189


9.1 Modos de fazer herdeiros .......................................................................................................................... 190
9.2 Competir pela sucessão ............................................................................................................................. 199
9.3 Alguns estratagemas mais..........................................................................................................................204
9.4 Poupar e comprar para deixar.................................................................................................................... 209
9.5 Educar herdeiros .......................................................................................................................................214

CAPÍTULO10. Migrações..................................................................................................................................... 220


10.1 Fluxos migratórios: uma constante em Portugal .....................................................................................221
10.2 Destinos e pontes migratórias .................................................................................................................222
10.3 Partida e «salto»: sonho e escape.............................................................................................................225
10.4 Com o cordão telúrico .............................................................................................................................232
10.5 O regresso: reprodução e reconversão ....................................................................................................238

PARTE IV
CAMPONESES, IGREJA E ESTADO: OS MEDIADORES
CAPÍTULO 11. Crença e poder.............................................................................................................................255
11.1 A Igreja católica: «civilizar» e legitimar ................................................................................................256
11.2 Pela vigilância de costumes ....................................................................................................................259
11.3 Polarização e coexistência.......................................................................................................................264
11.4 «Pontos» e «contrapontos» (1960-85) ....................................................................................................270
11.5 A festa: competir e integrar.....................................................................................................................280

CAPÍTULO 12. Entre a aldeia e o Estado: o mediador ......................................................................................285


12.l O mediador como catalisador de resistência (1850-1940) ......................................................................287
12.2 O mediador como amortecedor (1940-74) .............................................................................................295
12.3 O mediador como agente partidário (1974-90) ......................................................................................300

CAPÍTULO 13. Um poder local familista: concorrência e dividendos .............................................................310


13.1 Recursos e estratagemas: o compadrio ...................................................................................................311
13.2 Competências, favores e domínios .........................................................................................................313
13.3 Os dependentes: a segurança mínima......................................................................................................324
13.4 «Servindo» para servir-se .......................................................................................................................328

CONCLUSÃO..........................................................................................................................................................338

ANEXOS ..................................................................................................................................................................344

BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................................................368
SIGLAS

A Casa de Aguiar (com o respectivo número de casa incluindo membros da casa não designados no
anexo 26; usa-se, em alternativa, o nome por que é conhecida a casa)
AABA Auto de aforamento dos baldios paroquiais por meio de repartição e arbitramento de
foros por louvados, Aguiar, 1913, Arquivo da Junta de Freguesia de Aguiar
AB Acta da Câmara de Barcelos, Arquivo Municipal de Barcelos
ABA Assentos de Baptismo de Aguiar, Registos Paroquiais de Aguiar
ABL Assentos de Baptismo de Lindoso, Registos Paroquiais de Lindoso
ACA Assentos de Casamento de Aguiar, Registos Paroquiais de Aguiar
ACL Assentos de Casamento de Lindoso, Registos Paroquiais de Lindoso
AD Aliança Democrática (PPD/PSD+CDS+PPM)
ADB Arquivo Distrital de Braga
ADVC Arquivo Distrital de Viana do Castelo
Ae Antepassado de casa actual de Aguiar (o e é abreviatura de ex)
AJA Actas da Junta de Aguiar, Arquivo da Junta de Fre.;uesia de Aguiar
AJFA Arquivo da Junta de Freguesia de Aguiar
AJFL Arquivo da Junta de Freguesia de Lindoso
AJL Actas da Junta de Lindoso, Arquivo da Junta de Freguesia de Lindoso
AMB Arquivo Municipal de Barcelos
AOA Assentos de óbito de Aguiar, Registos Paroquiais de Aguiar
APB Actas da Câmara de Ponte da Barca, Arquivo Municipal de Ponte da Barca
APBE Actas da Comissão Executiva da Câmara de Ponte da Barca, Arquivo Municipal de
Ponte da Barca
APU/CDU Aliança Povo Unido/Coligação Democrática Unitária
AVA Autos de Vistoria para Aforamento, Barcelos, Arquivo Municipal de Barcelos
BL Barros Lima (nome de notário), Barcelos
C Repartição notarial
CA Circular Administrativa Eclesiástica (Aguiar), Arquivo Distrital de Braga
CAA Convenção Antenupcial (Aguiar), Notariado de Barcelos
CAB Cooperativa Agrícola de Barcelos
CAL Convenção Antenupcial (Lindoso), Notariado de Ponte da Barca, Arquivo Distrital de
Viana do Castelo
CC Código Civil, Porto: Porto Editora, 1966
CDC Código de Direito Canónico, Lisboa: Conferência Episcopal Portuguesa, 1917
CDS Centro Democrático Social
CL Circular Administrativa Eclesiástica (Lindoso), Conservatória do Registo Civil de
Ponte da Barca
CM Carvalho Maia (nome de notário), Barcelos
CMB Câmara Municipal de Barcelos
CMPB Câmara Municipal de Ponte da Barca
CR/CTT Comissão de Recursos dos Correios, Telégrafos e Telefones de Portugal
CRCB Conservatória do Registo Civil de Barcelos
CRCPB Conservatória do Registo Civil de Ponte da Barca
CTT Correios, Telégrafos e Telefones de Portugal
CVA Contrato de compra e venda (Aguiar), Notariado de Barcelos
D.L. Decreto-Lei
docs. documentos
DPCB Divisão Paroquial da Comarca de Barcelos, 1865, Arquivo Municipal de Barcelos
DRAEM Direcção Regional Agrária de Entre Douro e Minho

8
DLL Documento local de Lindoso (recolhido em trabalho de campo)
EAA Escritura Antenupcial (Aguiar), Notariado de Barcelos, Arquivo Municipal de
Barcelos
ED Escritura de Doação, Notariado de Barcelos, Arquivo Municipal de Barcelos
EDP Electricidade de Portugal
EE Escritura de Emprazamento, Notariado de Barcelos, Arquivo Municipal de Barcelos
EUA Estados Unidos da América
FAOJ Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis
FN Foral Novo
GFA Graça Faria (nome de notário), Barcelos
GNR Guarda Nacional Republicana
ha hectare
IARA Inventário de Associações Religiosas, Aguiar, 1959, Registos Paroquiais de Aguiar
ILA Inquérito local de Aguiar, 1984-85
ILL Inquérito local de Lindoso, 1984-85
INE Instituto Nacional de Estatística
Inq Inquirições
IOA Inventário Orfanológico, Aguiar, Tribunal de Barcelos
IOL Inventário Orfanológico, Lindoso, Tribunal de Ponte da Barca
ISCTE Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
JA Jornal de Aguiar (boletim local)
JAC Juventude Agrária Católica
L Casa de Lindoso (seguida do respectivo número, incluindo membros não designados
no anexo 25; usa-se, em alternativa, o nome da casa por que é conhecida)
LC Livro de Coimas, Arquivo Municipal de Barcelos
LCDPQ Livros de Conciliações do Distrito de Paz de Quintiães, n.º' 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77,
78, 79, 79A, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 1897-1926, Arquivo Municipal de Barcelos
LCED Livro da Contribuição Extraordinária de Defesa das paróquias do Julgado de Aguiar,
1813, Arquivo Municipal de Barcelos
LCNC Livro de Conciliações e não-Conciliações, Aguiar, 1835-1857, Arquivo Municipal de
Barcelos
LDA Livro de Décimas de Aguiar, Arquivo Municipal de Barcelos
LDMA Livro de Dispensas Matrimoniais de Aguiar, Arquivo Distrital de Braga, Registos
Paroquiais de Aguiar
LDL Livro de Décimas de Lindoso, Arquivo Distrital de Viana do Castelo
Le antepassado de casa actual de Lindoso (o e é abreviatura de ex)
LF Luís Filipe (nome de notário), Barcelos
Li Livro
LISL Livro do Imposto do Selo, Lindoso, Arquivo Distrital de Viana do Castelo
LSA Livro de Sisas, Aguiar, Arquivo Municipal de Barcelos
LSB Lançamento de Sisas, Barcelos, Arquivo Municipal de Barcelos
LTBCB Livro do Tombo dos Bens da Câmara de Barcelos, Julgado de Aguiar, 1824, Arquivo
Municipal de Barcelos
LTL Livro de Testamentos de Lindoso, 1741-1768, Arquivo Distrital de Viana do Castelo
LUA Livro d'Usos da Freguesia de Aguiar, Barcelos: Rogério Calás, 1920
LVD Livro de Visitações e Devassas, Arquivo Distrital de Braga
M Maço
m2 metros quadrados
MCS Manuel Carlos Silva
MFA Movimento das Forças Armadas
MPA Memórias Paroquiais de Aguiar in Dicionário Geográfico, Câmara de Barcelos,
vol. 1, 57:401-403, Lisboa: Torre do Tombo
MPL Memórias Paroquiais de Lindoso in Dicionário Geográfico, Câmara de Viana, vol.
20, 89:665-672, Lisboa: Torre do Tombo
NRPCB Notas dos rendimentos paroquiais da Câmara de Barcelos, 1891, Arquivo Municipal
de Barcelos
NTB Notário de Barcelos (seguido de I ou II)
NTPB Notário de Ponte da Barca
NTVP Notário de Vila de Punhe
NTC Notário de Capareiros
NYRB New York Review of Books
OL Ofício relativo a Lindoso, Arquivo Municipal de Ponte da Barca
P Processo
PA Processo de aforamento, Arquivo Municipal de Barcelos
PCF Partido Comunista Francês
PCP Partido Comunista Português
PPD/PSD Partido Popular Democrático/Partido Social Democrata
PPM Partido Popular Monárquico
PS Partido Socialista
PSD Partido Social-Democrata
PSP Polícia de Segurança Pública
PTL Portaria do Arcebispo (relativa a Lindoso), Arquivo Distrital de Braga
r coeficiente de correlação
RAC Recenseamento Agrícola ao Continente, Lisboa: INE
RLA/PB Registo de Licenças Administrativas, Ponte da Barca, 1933-57, Arquivo Municipal de
Ponte da Barca
RLCD Rol de Lançamento das Contribuições Directas, Ponte da Barca, 1872, Arquivo Distrital
de Viana do Castelo
RP Rocha Peixoto (nome de notário), Barcelos
RPA Registos Paroquiais de Aguiar
RPAL Registos de Processos de Alfândega, 1933-1941, Arquivo da Guarda Fiscal, Lindoso
RPL Registos Paroquiais do Lindoso
RV/PB Registo de Licenças de Veículos, Arquivo Municipal de Ponte da Barca
Sec Secção
SEOP Sociedade de Empreiteiros de Obras Públicas
SIA Sisa (Aguiar), Arquivo Municipal de Barcelos, Notário de Barcelos, Repartição de
Finanças de Barcelos
SIL Sisa (Lindoso), Arquivo Municipal de Ponte da Barca, Notário de Ponte da Barca,
Repartição de Finanças de Ponte da Barca
SPSS Statistics Package of Social Sciences
ss seguintes
STJ Supremo Tribunal de Justiça
TA Testamento (Aguiar), Arquivo Distrital de Braga, Notariado de Barcelos
TB Tribunal de Barcelos, Processos Judiciais
TL Testamento (Lindoso), Arquivo Distrital de Viana do Castelo, Notariado de Ponte da
Barca
TPB Tribunal de Ponte da Barca, Processos Judiciais
TRP Tribunal de Relação do Porto
V verso da folha (documentos antigos) ou versus
v.g. verbi gratia = por exemplo
VMJ Vítor Marques Júnior (nome de notário), Barcelos
VPA Visita Pastoral a Aguiar, Arquivo Distrital de Braga
VPL Visita Pastoral a Lindoso, Conservatória do Registo Civil de Ponte da Barca

10
Resistir e Adaptar-se

NOTA PRÉVIA
por Veit Bader*

Um filho de camponeses do Norte de Portugal perde a fé católica ao estudar Filosofia em Espanha,


escapa-se do Seminário, junta-se, na Faculdade de Direito em Lisboa, ao movimento de resistência
estudantil e foge, por razões militares e políticas, para a Holanda, onde estuda Antropologia Cultural e
Sociologia.
Como objecto da sua dissertação escolhe um tema sobre o qual parece ter iniciado o trabalho de
campo desde o nascimento: os camponeses no noroeste de Portugal e sua anuência «passiva» ao bloco
político conservador, nomeadamente no século XX. A dissertação daí resultante sobre formas de resistência
e adaptação camponesas, orientada por um socialista radical alemão que, também por razões políticas,
teve de emigrar para a Holanda, é, a vários títulos, uma excelente obra.
Carlos Silva conseguiu, de modo exemplar, reunir, desenvolver e articular uma extensa e profunda
abordagem teórica com um estudo empírico de excepcional profundidade e intensidade. Numa abordagem
teórica interdisciplinar combinou perspectivas históricas, económicas, sociológicas e antropológicas
deforma consistente e inovadora. A dimensão histórica, incidindo na contingência dos acontecimentos e
contextos, serve para corrigir as preconceituadas macro-explicações estruturalistas, amiúde aduzidas por
bastantes sociólogos. Numa perspectiva antropólogica, o autor evidencia, com uma grande sensibilidade e
inventividade, a clareza e a riqueza do significado das acções dos protagonistas locais nos seus micro-
contextos. Como sociólogo oferece um contrabalanço perante a perspectiva contingencial de muitos estudos
históricos, assim como a microfocalização exclusivamente enviesada sobre o actor por parte de diversos
antropólogos.
A estratégia teórica resultante desta combinatória interdisciplinar, analisando os actores individuais e
colectivos em contextos bem diferenciados, coloca o acento tónico no grau de recursos disponíveis e
mobilizáveis e num conceito lato de «estruturas de oportunidade». Tal perspectiva é fortemente influenciada
por alguns teóricos do campesinato e, em especial, pelas recentes abordagens de Pierre Bourdieu, James
Scott e de mim próprio. O autor consegue superar velhas dicotomias bem conhecidas nas ciências sociais e
que têm constituído reais bloqueios na pesquisa: accionalismo voluntarista versus estruturalismo
determinista (incluindo as novas variantes estruturalistas e das teorias do microteorias versus
macroteorias; teorias da ação racional versus teorias normativistas de integração; teorias da contingência

*
Professor Catedrático em Filosofia Social e Sociologia. Universidade de Amesterdão.
12
versus teorias evolucionistas; teorias da privação relativa versus teorias da mobilização de recursos e
teorias da estrutura política de oportunidades, etc. A estratégia teórica de Carlos Silva não é só
equilibrada, mas também claramente demarcada das estratégias concorrentes e, nesta delimitação,
demonstra um excepcional conhecimento da grande variedade de teorias que são relevantes para o seu
projecto de investigação. Mais relevante ainda é o facto de tal estratégia teórica ser operacionalizada ao
ponto de conduzir a própria investigação empírica.
A pesquisa empírica em Lindoso e em Aguiar é extraordinariamente rica e profunda. Ela contextualiza
e articula as mudanças económicas e políticas mais relevantes no desenvolvimento macro-histórico com
uma análise detalhada das diferentes classes e grupos sociais nas aldeias, do seu respectivo poder de
disposição sobre o diversificado espectro de recursos, das suas estratégias mais importantes de reprodução
e mobilidade sociais (casamento, herança, migrações), bem como da relação dos diferentes grupos sociais
com a Igreja, o Estado e os notáveis e mediadores locais. Tendo em conta estas dimensões, esta obra é um
exemplo paradigmático de um falso estudo de caso», no qual são recolhidos dados e é utilizada uma larga
escala de métodos qualitativos e quantitativos: análise estatística, análise documental em arquivos
paroquiais, municipais edistritais, eclesiásticos e nacionais; extensos e detalhados inquéritos locais,
entrevistos (semi)estruturadas e livres e sobretudo longa observação participante nas duas aldeias durante
um período superior a dois anos. No tratamento desta enorme montanha de dados Carlos Silva demonstrou
uma excelente combinação entre uma «sofisticação» quantitativa e uma utilização selectiva e criteriosa das
passagens mais características extraídas dos documentos e das entrevistas. Se tivermos em conta a
apreciável riqueza e a variedade do material empírico evidenciado nesta publicação e numa outra que se
seguirá sobre a reprodução social dos grupos domésticos e sobre a conflitualidade interdoméstica e
intradoméstica, é, de facto, de admirar como Carlos Silva conseguiu estruturar e apresentar todo esse
material, de modo a transformá-lo num livro bem escrito e de leitura agradável.
Este estudo prossegue de modo fecundo a rica tradição de estudos camponeses e da Sociologia Rural
na Península Ibérica e na área mediterrânica. Mais, ele torna-se uma referência obrigatória para
estudiosos das estratégias casamenteiras e de herança, dos processos migratórios, dos sistemas de
patrocinato, da religiosidade popular quotidiana e da sua simbiose com a envolvência eclesiástica nesta
área. Os membros do júri da dissertação, oriundos da Espanha, de Portugal e da Holanda, foram unânimes
em atribuir a este estudo, defendido na Universidade de Amesterdão em 1994, amáxima classificação com
distinção e louvor. Apraz-me neste momento, em de 1997, constatar que, com esta obra, avaliada em
concurso por um prestigiado jurí internacional, o autor foi laureado com a primeira edição do Prémio
Sedas Nunes o mais destacado pioneiro das ciências sociais em Portugal. É de desejar que, para além da
versão portuguesa, não só seja publicada o mais breve a versão espanhola mas que surja também uma
tradução inglesa de forma a tornar acessíveis a um público internacional mais alargado os resultados deste
excelente estudo.
Resistir e Adaptar-se

PREFÁCIO

Como outros projectos, também este tem os seus motivos e a sua história, cujo longo percurso conheceu
interrupções e vicissitudes várias. Não obstante o facto de os estudos camponeses terem sido, social e
politicamente, senão menosprezados, pelo menos relegados para segundo plano e, por outro lado, terem
deixado de estar de «moda» na comunidade académica, à escolha desta temática presidiram duas ordens de
razões: social e científica. Pertence à evidência factual que os camponeses, formando até recente data a
classe maioritária a nível mundial, têm desempenhado em diversas conjunturas históricas, designadamente
contemporâneas, um papel sócio-político decisivo nos processos de mudança, seja de natureza
revolucionária, seja de carácter restauracionista, o que nos remete igualmente para a importância científica
desta problemática. Além disso, tais processos e suas implicações de diversa índole mantêm vibrante
actualidade, tanto em sociedades predominantemente agrário-camponesas, como em países semiperiféricos
como Portugal com uma forte componente económico-social e político-ideológica de raiz camponesa. A
estas razões acresce uma motivação de carácter pessoal que, reforçando as primeiras, contribuiu, sem
dúvida, para manter de pé o projecto e superar alguns obstáculos no próprio itinerário da pesquisa. Bem viva
na memória familiar e pessoal persiste a difícil trajectória de meus pais camponeses, em cujo contexto as
minhas irmãs, o meu irmão e eu próprio crescemos, trabalhámos e realizámos os primeiros anos de estudo.
A unidade familiar forjada na dureza da vida também se reflectiu no apoio que sempre deram ao meu
trabalho. Para eles, pois, assim como para a Isabel e o Jorge pela menor atenção prestada da minha parte, o
meu primeiro e mais profundo reconhecimento.

Um dos antecedentes do presente trabalho situa-se no processo da reforma agrária no pós 25 de Abril de
1974. Um voluntarioso grupo de dez estudantes de Sociologia e Antropologia da Universidade de
Amesterdão decidiu, no âmbito das respectivas licenciaturas, fazer uma pequena investigação-acção em
cooperativas no Alentejo e no Ribatejo, o que daria lugar a um trabalho por subgrupo e a um outro final. A
mim e à minha colega antropóloga Marga van Toor coube-nos uma investigação-aprendizagem em duas
cooperativas - Torre Bela e Brinçal -, da qual resultou um relatório marcado por uma vivencia fortemente
ideologizada e orientada para a praxis imediata num processo transformador dos campos do sul no pós 25 de
Abril de 1974.
No regresso permanecia candente uma questão: porquê o desencontro político-ideológico entre o
proletariado (urbano) e rural do sul e o campesinato nortenho? Como explicar o respectivo alinhamento
sócio-político de sinal contrário entre ambos? Foi precisamente esta questão que me fez reorientar
preocupações para o norte do país, dando lugar, de novo em colaboração com a mencionada antropóloga, a
um trabalho mais prolongado entre 1980 e 1982 sob o título «Sobreviver e resistir como camponeses», o
qual, não obstante as repetidas e aparentes manifestações de interesse por vários peritos de estudos rurais,
acabou por não ser interessante para vir a prelo! Nesse trabalho esboça--se já uma primeira reflexão teórica e
histórica mais elaborada mas ainda bastante generalizante e em que os elementos empíricos, recolhidos num
14
curto trabalho de campo em Aguiar, são algo dispersos e pouco sistematizados. Impunha-se, por
conseguinte, dar continuidade ao trabalho, aprofundando-o teoricamente e, sobretudo, enriquecendo-o
empiricamente. Foi assim que, por sugestão amiga mas quase imperativa de um dos meus orientadores de
então, o Professor Veit Bader da Universidade de Amesterdão, ousei elaborar, em 1983, o projecto de
investigação «Camponeses minhotos: «conservadorismo» ou estratégias de subsistência, mobilidade e
resistência?». Apresentado ao Instituto de Investigação Holandês (Zuiver Wetenschappelijk Onderzoek -
Z.W.O.) pelo Professor Veit Bader que se dispôs a apoiá-lo como orientador, acolhido com especial carinho
pelo Dr. David Baytelman, ex-ministro de Agricultura do governo de Salvador Allende e então exilado e
docente no Instituto de Estudos Sociais em Haia, e pelo co-orientador Professor Gerrit Huizer, destacado
pioneiro de investigação e acção em prol de colectividades camponesas na América Latina, o projecto
acabaria por ser aprovado e subsidiado pelo Z.W.O., sendo eu integrado, em contrato de 30 meses, como
assistente na Universidade de Amesterdão. Quero, pois, primeiramente, exprimir o meu sincero e cordial
agradecimento aos meus pacientes orientadores e indefectíveis companheiros do projecto, em especial ao
Professor Veit Bader que, apesar da distância geográfica, não deixou de estimular-me como amigo e
inspirar-me teoricamente desde a primeira hora do projecto, durante dois anos de trabalho de campo e,
sobretudo, na fase final da leitura e da correcção da tese.
Mesmo correndo o risco de omitir colegas e amigos que, de algum modo ou esporadicamente, ajudaram
à execução do projecto, não posso deixar de mencionar, na Holanda, Marga van Toor, Albert Benschop,
Miklós Rácz, Augusto Florêncio, Eef e Erik Andriessen e, em Portugal, Miguel Martins, Laura Pliego, Nuno
Pizarro, Manuela Ivone Cunha, Joana Schouten Patuleia, José Manuel Mendes e, em especial, José Manuel
Sobral - este último pela leitura atenta e crítica da tese -, às equipas de Informática do Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) e da Universidade do Minho, particularmente a Jorge Carvalho,
Pedro Ramos, Francisco Mendes, Salvador Lima e, no campo estatístico, ao Professor Ernesto Figueiredo.
Destaco, em particular, os apoios dos Professores Fernando Oliveira Baptista, Raúl Iturra, José Madureira
Pinto, José Capela, Abílio Lima de Carvalho, Luís Polanah e sobretudo Alice Geraldes, João Ferreira de
Almeida e Eduardo Sevilla-Guzmán que, em fases diferenciadas, ora acompanhando o trabalho, ora
prestando-se a creditar a continuidade do projecto, ora ainda a avaliá-lo, contribuíram para a sua
concretização em 1994. Pela sua financeira uma palavra de reconhecimento da minha não só ao Z.W.O. na
fase inicial na Holanda, como também na fase final, em Portugal, à Universidade do Minho e aos seus
respectivos responsáveis na Reitoria e no Instituto de Ciências designadamente ao seu Presidente e à
Directora do Centro de Ciências Históricas e Sociais e, em especial, à Junta Nacional de Investigação
Científica e Tecnológica (JNICT) e à Fundação Calouste Gulbenkian, que subsidiaram, em parte, o referido
projecto. Igualmente manifesto o meu reconhecimento à editora Afrontamento e seus responsáveis,
nomeadamente à Dra. Marcela Torres e ao Dr. José Ribeiro e, em particular, ao velho amigo e colega
Arnaldo Fleming, cuja «partida» definitiva, além de nos deixar indignados e abalados, representou uma
perda humana significativa não só para os seus familiares, amigos e colegas mas também para o ambiente
editorial e cultural do norte do país. Este trabalho, aceite por ele e pela Afrontamento em 1996, poderia ter
permanecido, como noutros casos, na gaveta ou na biblioteca, sem chegar ao público interessado.
Por fim, é aos moradores de Lindoso e aos conterrâneos de Aguiar (4:1.1, 4:1.2) – as duas aldeias
analisadas neste estudo – que manifesto o meu sincero obrigado.Da minha experiência do trabalho de campo
posso asseverar que a «dissecação» antropo-sociológica de qualquer das duas colectividades não constituiu
tarefa fácil. Por um lado, era pedida a cooperação dos protagonistas locais que, paradoxal mas
compreensivelmente, tendem a ser relutantes em manifestar as suas estratégias mais íntimas ou ciosos em
ocultar as suas fragilidades: relações extramatrimoniais, ilegitimidades, envolvimento em conflitos
susceptíveis de patentear as suas invejas ou «maldades» interfamiliares ou, por vezes, as suas ambições de
comando da aldeia. As circunstâncias viriam a exigir-me, além dalguma dose de resistência «camponesa»,
uma habilidade táctica mínima capaz de contornar as contradições intra-aldeãs com aparente distanciamento.
Ressalvando alguns casos perpassados de reticências e dissabores – compreensíveis no Lindoso pela minha
situação de estranho não controlável e, em Aguiar, pelo meu lugar próximo no xadrez local mas com uma
impertinente função de «coscuvilheiro» – dei-me por relativamente satisfeito com os resultados do trabalho
de campo. A recolha de bastantes dos dados ter-se-ia tornado impraticável sem a colaboração franca de
Resistir e Adaptar-se

grande parte dos habitantes de ambas as aldeias e, sobretudo, sem a engenhosa sabedoria e a generosa
paciência de meus valiosos informantes, cujos nomes, para não criar susceptibilidades de conterrâneos seus,
prefiro não mencionar.
Relativamente à organização da tese, apresentar-se-á, no fim do primeiro capítulo, um esboço das
quatro partes da tese e respectivos capítulos. Para já, apresentada a motivação pessoal e destacada a
relevância científica e social do projecto, impõe-se, primeiro, contextualizar e enunciar a questão central e,
depois, traçar um breve panorâmica da evolução do campesinato português para, em seguida, dar conta do
método pluridisciplinar adoptado, assim como do percurso concreto da pesquisa. De resto, aos leitores
avessos às discussões teóricas, embora a contragosto meu, sugiro-lhe, após a introdução, começar pela parte
II.

16
Resistir e Adaptar-se

18
PARTE I

PROBLEMA, MÉTODO E TEORIA


Introdução, Problema e Método

CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO, PROBLEMA E MÉTODO

O facto de os camponeses1do demograficamente denso norte e centro do país terem surgido a participar
activamente na cena política no pós 25 de Abril 1974, em particular no verão de 1975, desempenhou um
papel decisivo na deslocação da relação de forças entre a «esquerda» e a «direita», permitindo uma
recomposição e um reforço das componentes desta última.
A atitude reactiva do campesinato nortenho, face ao rumo aparentemente progressista, não representa
apenas um fenómeno conjuntural ou casual, mas aparenta reflectir uma constante histórica contemporânea.
Já Silbert notara no seu magnífico estudo sobre o fim do Antigo Regime, em relação aos camponeses, o
seguinte: «Não é a revolução camponesa, mas antes a sua ausência e até, em larga medida, o apoio que as
massas camponesas deram às forças reaccionárias que há que explicar»2.
Nos fenómenos de migração e, particularmente, de emigração detectam-se diferentes padrões de
comportamento e expectativas entre os trabalhadores assalariados rurais e urbanos, por um lado, e os
pequenos camponeses emigrados, por outro3. Enquanto os primeiros estavam mais dispostos à participação
na luta sindical colectiva, partiam os camponeses-operários da ideia de que, trabalhando duramente, com
horas extraordinárias e economizando ao máximo, seria possível realizar ou restabelecer o seu velho sonho
de independência económico-social. Socialmente considerada, a emigração dos camponeses representou,
com efeito, uma forma de protesto em massa, mas praticamente sem expressão activa, organizada.

A força eleitoral dos partidos conservadores nas sucessivas eleições parlamentares, autárquicas e
presidenciais no pós 25 de Abril de 1974 coincide, em grande parte, com a zona minifundiária do norte e do
centro do país, registando-se uma certa estabilidade e, não raras vezes, um avanço em detrimento dos
partidos progressistas, tal como o demonstram os resultados dos estudos de Alarcão (1981:334 ss) e de
Gaspar e Vitorino (1976:83 ss). Mas será que os camponeses são conservadores por serem «pequenos
patrões», devido ao seu carácter «pequeno-burguês», tal como explícita ou implicitamente sugerem alguns
autores marxistas4?
O raciocínio destes autores assentaria no facto de, não se enquadrando os camponeses na relação salarial
e dispondo de meios de produção (terra, gado), constituiriam como que uma espécie de mini-burguesia, em

1
O termo camponeses (parcelares)/ campesinato, subsumindo diversas camadas hierarquizadas, engloba uma classe social, cujas
unidades domésticas baseiam-se exclusiva ou predominantemente na força de trabalho familiar, dispõem do cultivo de um ou
vários pedaços de terra, próprios e/ou arrendados, vivendo, eventualmente em complementaridade com outras fontes de
rendimento, apenas ou sobretudo do produto do seu trabalho. Esta definição não exclui todavia, como observa Mintz (1973:91 ss),
uma série de (sub)tipos camponeses presentes nos diferentes tempos e espaços.
2
Silbert 1978 I:79. Sobre a acção «passiva», «conservadora» e/ou «individualista» dos camponeses nos séculos XIX e XX e seus
apoios às forças legitimistas, conservadoras e moderadas, cf. Martins in Silbert 1960:51, Telles 1903:119 ss, J. S. Dias 1979:306
ss, Monteiro 1990:147, A. B. Silva 1993:342, Valente 1974: 156 ss, Ferraz 1975:470, Cerqueira 1973:481 ss. Sobre o pós 25 de
Abril de 1974, cf. Gallagher 1977:63-64, Tavares 1976:2249 ss, Collin 1975:390 ss, Burguete 1978:86, Pinto 1980:3-41 e
1982:133 ss, Silva e Van Toor 1982:5 ss, Almeida 1984:597 ss, Silva 1987:407 ss, Bennema 1992:112 ss
3
Igualmente constatado por M. V. Cabral 1978:419, 423. Ver, a respeito de Itália, Mc Donald 1956:437-445; sobre França,
Tavemier 1972:111 ss, Gratton 1971:408 ss e 1972:163-195, Bois 1971:346 ss, Lambert 1975:100 ss, E. Weber 1976:282 ss;
sobre Espanha, Guzmán 1979:107-187; e, sobre alguns países do Terceiro Mundo, Worsley 1964:155 ss.
4
Entre outros, Marques e Bairrada 1982: 1290 ss, e, de modo ora indefinido e ambíguo, ora implícito e subentendido, cf.
respectivamente J. S. Martins 1973 1:37 ss, R. Costa 1975:200 ss, Cunhal 1976:174, F. Rodrigues 1964:13-19 e 1965:81.
22
Problema, Método e Teoria

que a posse ou a propriedade da terra funcionaria como elemento central que, qual cordão umbilical,
prenderia à burguesia o «velho» campesinato. E, partindo da concepção clássica de que as fracções da
pequena burguesia são duvidosas e vacilantes, o campesinato, como tal, penderia para o lado mais forte: a
burguesia!
Segundo estudos recentes5, cerca de 83% das «empresas» agrícolas em 1968-70 são unidades
domésticas familiares, que contribuem com 36% do produto agrícola bruto (PAB) e 43% da agricultura
comercializada, constituindo os latifundiários, a burguesia agrária e os agricultores orientados basicamente
para o mercado uma minoria de 17% que participaria com 64% do PAB e com 57% da produção para o
mercado. No meu entender, não tem sido tanto a componente burguesa-empreendedora no sector agrário,
mas antes os elementos camponeses que têm constituído a principal classe-apoio não dominante do bloco
conservador.
Mesmo sem estabelecer um paralelo com os padrões de vida modernos, a maioria dos camponeses vivia
em condições precárias, sem infra-estruturas, ou então muito deficientes, sem cuidados médicos e sem
segurança social, tal como o mostrámos noutro trabalho (Silva e Van Toor 1982:53-63). Como se explica
então que a acção política dos camponeses parcelares não só tivesse travado o desenrolar progressista dos
acontecimentos, mas estivesse inclusivamente perpassada por ligações «conservadoras» e acabasse por
reforçar o bloco sócio-político dominante dos latifundiários e das camadas burguesas conservadoras?

À primeira vista, parece haver um desfasamento entre a situação sócio-económica empobrecida dos
camponeses parcelares e uma posição político-ideológica não correspondentemente revoltosa, mas, pelo
contrário, resignada, fatalista6. É para este embaraçoso «conservadorismo» que se tenta encontrar uma
explicação. Daí o poder formular-se a questão nos seguintes termos:

Quais são os principais factores e mecanismos susceptíveis de explicar quer a diversidade de


acção sócio-política dos camponeses parcelares, quer particularmente a já referida atitude de
passividade e quietismo, a qual acaba por favorecer o bloco de poder conservador? Sob que
constrangimentos e a que estratégias obedece a acção dos diversos grupos sociais para manter ou
melhorar a sua posição social?

Todas as organizações de esquerda, mormente os partidos comunistas, insistem repetidas vezes nos seus
programas na necessidade e na importância de o movimento operário ganhar as classes ou camadas médias,
entre elas o campesinato, para uma frente antilatifundista e antimonopolista7. Raramente esta tese foi posta
em causa, não se perguntando sequer até que ponto os camponeses estão interessados num forte movimento
operário. Mais, será possível a realização da aliança operário-camponesa? E, se o é, sob que condições?
Quanto ao caso português, verifica-se a ausência de semelhante convergência histórica entre operariado
e campesinato, não se tendo vislumbrado tão-pouco prenúncios significativos de união entre os camponeses
parcelares e os operários rurais (e urbanos) como, por exemplo, durante e a propósito das ocupações de terra
no pós 25 de Abril 19748.
De acordo com a explicação clássica, que encontrou certo eco nalguns marxistas portugueses, é dado
como assente que o comportamento dos camponeses se deveria igualmente aos efeitos negativos
temporários da «repressão política», da «manipulação ideológica», do obscurantismo salazarista: o

5
Cordovil 1979:149 ss. Com resultados aproximados, cf. Barros 1981:120 ss, Cavaco 1980:9 ss, Offenberg e De Wit 1980:41,49-
54, Carvalho 1984:145 ss. A predominância das empresas familiares na formação social portuguesa já houvera sido salientada por
Nunes (1964:417), Nunes e Miranda (1971).
6
Poulantzas (1975: 16) designou este desfasamento de hiato entre a «determinação estrutural de classe» e a «posição política de
classe». Cf. também Leppert 1974:32 ss. Porém, estes autores denotam, na questão referida, uma certa incompreensão da acção
campesina pelo facto de não terem em conta a especificidade da economia campesina e suas estratégias familiares.
7
Por exemplo, PCP in Perceval 1973:201 ss, PCP in Cunhal 1974:139 ss.
8
Cf., a este propósito, Cunhal 1974:197 ss, Barros 1979:77-80, V. M. Ferreira 1977:113, 153 ss, M. V. Cabral 1978:428,
Malefakis 1980:469, Hoebink 1979:5-6, especialmente em Portalegre e em Santarém, em que a relação entre pequenos
camponeses e assalariados rurais é de 1 :2,7. Sobre o processo de reforma agrária, cf. também Bandarra e Jazra 1976:81 ss,
Baytelman 1979, Barros 1986:53 ss, Barreto 1987: 119 ss.
Introdução, Problema e Método

analfabetismo, a «ignorância» e/ou a «falsa consciência» dos camponeses 9.


Nas décadas de sessenta e setenta alguns marxistas de inspiração maoista, críticos do PCP, acrescentam
ainda que um factor complementar mas decisivo para explicar a ausência da esquerda enltre os camponeses
do norte seria o abandono «oportunista», por parte dos «revisionistas» do PCP, da «aliança operário-
camponesa» (cf. F. Rodrigues 1964: 12 ss).

Os aparelhos de Estado, as ideologias dominantes nomeadamente a da religião católica, o analfabetismo


entre os camponeses constituem indubitavelmente condições, ora necessárias, ora coadjuvantes para o
domínio de classe. Mas, embora tais factores contribuam para a compreensão do comportamento dos
camponeses, em particular a sua passividade, eles são insuficientes para a sua explicação. Os camponeses
nortenhos também eram crentes e analfabetos e, contudo, levantaram-se contra o Estado Liberal. A acção
política dos assalariados rurais (e industriais) e pequenos seareiros no sul, igualmente analfabetos, foi, já
neste século, de sinal contrário ao dos camponeses nortenhos. A bem dizer, nas explicações de carácter
ideologizante e moralizante, não só é ignorado ou subestimado o funcionamento da economia campesina,
como também os próprios camponeses são vistos como seres amorfos, sem cultura e histórias próprias e
como instrumentos passivos de forças cegas, pérfidas.
O campesinato parcelar é, assim, amiúde analisado, não a partir de dentro, da sua posição, mas a partir
de fora, como «classe-objecto», o que dificulta o acesso ou até impossibilita a determinadas elites o
entendimento da cultura camponesa. Neste sentido, é de capital importância a assunção do método
weberiano de «compreensão» (verstehen) como instrumento para poder compreender e explicar a acção
teleológica, empaticamente inteligível e racional do campesinato10.
A fim de contribuir para a compreensão e a explicação da acção «conservadora» dos camponeses
nortenhos no século XX, particularmente durante o «Estado Novo» (1926-1974), torna-se pertinente
analisar, na medida do possível, o tipo de relação existente entre o campesinato nortenho, em particular
minhoto, e as classes (sub)dominantes. Tal implica ter previamente em conta as nascentes configurações de
classes sociais sob o liberalismo (1820-1910) e o republicanismo (1910-1926), aliás ambos bastante
desfavoráveis ao campesinato.
O facto de, até às tentativas de centralização estatal nos séculos XVIII e sobretudo XIX, não se terem
verificado levantamentos camponeses tão frequentes e favoráveis como sucedeu especialmente durante e
contra o processo de centralização do Estado liberal, exigiria uma retrospectiva histórica mais aprofundada,
que, além de extrapolar o meu propósito e a minha área de competência, parece-me ainda nos seus
primórdios. Limitar-me-ei, por isso, a fazer uma breve referência a antecedentes históricos mais remotos, a
nível geral, e a destacar alguns rasgos mais marcantes da evolução histórica do campesinato, sobretudo na
época contemporânea, fenómeno este estará por certo interligado com o lento e ziguezagueante processo de
acumulação de capital e a correlativa submissão e/ou resistência dos pequenos produtores agrícolas11.

1.1. De servos a camponeses

Com base nos elementos recolhidos e, sobretudo, nos fornecidos por historiadores poder-se-ia formular

9
Cf. por exemplo, Offenberg e De Wit 1980: 151-152, F. Rodrigues 1965:81. Contra esta interpretação, cf. Lemarchand 1981:11
e, sobretudo, Scott 1985:317 ss.
10
Sobre este aspccto, ver a sociologia compreeensiva de Weber (1978:4 ss); cf ainda Bader et a/. 1980:65-99, Bourdieu 1977:4 ss,
1980:29 ss, Huizer 1979:26 ss, Scott 1985:241 ss, 304 ss, 1990:133 Abcrcrombic e Turner 1978: 149 ss.
11
Tendo em contu não existir um único e exclusivo modelo de acumulação de capital, o esforço combinado das várias ciências
sociais poderá oferecer pistas para estudos comparativos sobre processos e mecanismos de integração/resistência dos grupos
domésticos camponeses. Sobre outras sítuuções e países. há diversos estudos: cf Marx 1974 I:355 ss, Van Bath 1978:71 ss, Amin
1979:20 ss, Moore 1966:92 ss, 201 ss, 433 ss, Landes 1969:41-123, E. Weber 1976:4-191; Shanin 1972:9-27, 145 ss; Huízer 1972
e 1973, Wolf 1974, Guzmán 1979; Scott 976 e 1985, respectivamente sobre Inglaterra, França e Alemanha; Rússia; América
Latina e Espanha; sudeste Asiático. Sobre Portugal, embora não existam estudos explicitamente focalizados sobre esta temática,
são de referir, para diversos períodos, contribuições importantes de algumas obras gerais de historiadores, entre os quais Silbert
1978, Pereira 1979, Marques 1978, 1981-85, Mattoso l 985, Godinho 1980, Castro 1980, Justino 1987, além de outros de carácter
histórico-sociológico, designadamente de M. V, Cabral 1976 e 1979, Medeiros 1978, Freitas et a/. 1976, Baptista 1978 e 1981,
Pinto 198:'í, Almeida 1986.
24
Problema, Método e Teoria

a seguinte hipótese de trabalho: a decrescente dependência camponesa não se deveria tanto à revolução
liberal de 1820, como seria mais ajustadamente reconduzível às configurações sócio-políticas do período da
Reconquista no âmbito e na sequência da específica matriz feudal dos séculos IX a XIII. Nesta,
paralelamente à centralização do poder junto da Coroa, assistir-se-ia à concessão de cartas de foral, ao
enfraquecimento dos feudos medievais e à diminuição do rendimento dos senhores da terra, bem como à
introdução progressiva do sistema parcelar12, conquistado por novos candidatos a camponeses, em
complementaridade com a defesa das terras comunais. Além disso, é importante referir concessões e
instituições tais como o direito de presúria e o direito de asilo13 e sobretudo a revolução de 1383,
temporariamente bem sucedida, sobretudo graças ao papel activo de mercadores e artesãos e à pressão sócio-
política da «arraia-miúda», na linguagem de Fernão Lopes.
A génese histórica da classe camponesa, ou seja, a passagem da servidão à condição de camponeses terá
de ser compreendida, fundamentalmente, a partir não só da relação de exploração económica e da sua luta
pela libertação da condição servil contra a coerção e a tutela da feudalidade, mas também do instável
contexto político-militar, designadamente das contradições internas entre vassalos laicos e vassalos
eclesiásticos e entre estes e a Coroa14, da necessidade de povoamento e de arroteamento das terras, bem
como de seguidores para os novos senhores do território, aspirando os cavaleiros abastados a mais terra e os
soldados sem terra a um pedaço da mesma, da possibilidade de dispor de largas reservas de reféns
muçulmanos sem precisar de recorrer a servos nativos. Com base em estudos de medievalistas portugueses
como Mattoso (1985:268), é verosímil aplicar-se a Portugal a conclusão de Vilar sobre a Espanha medieval:
«A função dominante do clero e da nobreza durante a Idade Média não teve de modo algum como
consequência a destruição social ou a auto-anulação política das outras classes sociais» (Vilar 1981:28)
entre as quais obviamente o campesinato.
Com o advento do mercantilismo e, mais tarde, do liberalismo, a acção local dos camponeses orientou-
se não tanto contra a velha nobreza como, sobretudo, contra elementos da burguesia ascendente, com as suas
bases comerciais-urbanas e representantes do seu Estado nascente. Uma tal política mercantilista foi
calculisticamente defendida pelo marquês de Fronteira que, em conversa com o «iluminado» estrangeiro
Merveilleux, afirmava que ela era conveniente ao «bem do Estado» e à «tranquilidade dos naturais»15, não
interferindo demasiado nem com o sistema minifundiário das colectividades camponesas nem com o regime
latifundiário. Neste âmbito toma-se pertinente referir que a tese de Anderson (1974:20-21) e Wallerstein
(1974:403), segundo a qual a aristocracia e a «burguesia» fundiárias possuiriam interesses contrários ou até
incompatíveis com a burguesia comercial, não é aplicável ao Portugal imperial e mercantilista. Assim, no
concernente ao desenvolvimento das formações sociais mercantis em Portugal, afigura-se mais adequada a
tese de Weber (1978 II:1070 ss), mais recentemente expressa também por Mendras: «A ruptura entre a
feudalidade e o capitalismo comercial parece secundária, contrariamente à continuidade da
"senhoriagem", entendida como um sistema de exercício do poder e da exploração da terra» (Mendras
1976:120).

Ao contrário de outros países como a Inglaterra, a precoce comercialização da agricultura desde os

12
Cf. respectivamente G. Barros 1945 I:80 ss, A. B. Coelho 1981:21 ss, Castro 1980:28 ss, Sampaio 1979:131 ss, Marques
1978:106.
13
Direito de presúria: instituição de direito medieval, em que a Coroa, com o seu séquito armado, tomava ou deixava tomar a
chamada terra de ninguém, depois da partida dos vencidos, mantendo a Coroa o direito a uma parte dessas terras denominadas
terras realengas (cf. G. Barros 1945 N:27-29, Sampaio 1979:49, Castro 1980:31, Marques 19811:140). Direito de asilo: instituição
igualmente medieval, em que servos e colonos, sempre que a extorsão da renda em trabalho ou em espécie se tornava
insuportável, tinham a possibilidade de escapar e refugiar-se junto de um senhor menos explorador e vexatório (cf. G. Barros 1945
N:57, A. B. Coelho 1981:24). Estas instituições impediam uma servidão total, como refere G. Barros (1945 IV:81), evitando
assim a plena vinculação ao senhor da terra, caracteóstica típica da economia feudal. Semelhantes práticas são igualmente
constatáveis em situações pré-coloniais designadamente em Burma e Java (cf. Adas 1981:229).
14
De referir, entre outros, os conflitos ocorridos nos (arce)bispados de Braga, Porto, Coimbra, as Ordens de Tomar, Santiago,
Aviz, Alcobaça e Templários. Cf. estes e outros exemplos in G. Barros 1945:440-454, Marques 1981-85 I:154 ss, Mattoso
1985:135, 416,428 ss.
15
ln «Memoires instructifs pour un voyageur dans les divers États de l'Europe» (1738) in Castelo Branco Chaves, Os Livros de
Viagens em Portugal no Século X'Vlll e a sua Projecção Europeia, Lisboa 1977:85-86, in Serrão e G. Martins 1978:12.
Introdução, Problema e Método

séculos XV e XVI não conduziu, nas formações ibéricas, a volumes consideráveis de acumulação de capital
e, menos ainda, a um processo de industrialização, dando lugar a padrões sociais aristocráticos, luxuosos e
barrocos, cujos figurinos dominantes são, na terminologia de Godinho (1980:103), o de negociante-
enobrecido e o de fidalgo-negociante. O que a comercialização certamente teria influenciado seria o nível do
rendimento dos pequenos produtores mercantis, não raro dependentes das flutuações dos preços. Nem
sempre o comércio interno e/ou o externo pioraram a situação dos produtores camponeses, que procuraram
tirar proveito da concorrência entre comerciantes nacionais e estrangeiros e, sobretudo, da crescente procura
de géneros agrícolas, nomeadamente seda, linho e vinho, o que, quanto a este último, levou Pereira a
denominar o aumento de plantio de vinhas de «febre vitícola» (1979:164 ss.). Houve até períodos em que se
verificou uma certa adaptação ou complementaridade mútua entre os interesses dos comerciantes e os dos
pequenos produtores, ambos interessados na manutenção gratuita das pastagens comunais, embora por
motivos diferentes: os primeiros à procura do lucro e os segundos na luta pela sobrevivência e/ou pela
melhoria de posição (cf. Silbert 1978 1:316-331). Por outro lado, o acesso aos mercados locais constituiu
para os camponeses e artesãos uma estratégia para escapar ao controlo dos senhores da terra, controlo esse,
em regra, retido apenas pela via administrativa e repressiva, tal como o mostrou, entre outros, S. Schneider
(1980:57, 76 ss).
No último quartel do século XVIII e, sobretudo, após a revolução liberal de 1820 e com a
independência do Brasil em 1822, tentou a «burguesia» aristocratizada criar o seu Estado moderno,
aplicando a dupla estratégia de apropriação-exclusão16: uma táctica de fusão e usurpação para com as
categorias hierarquicamente superiores da velha nobreza e a Coroa e outra de exclusão para com as classes
consideradas inferiores (artesãos, camponeses), das quais pretendia recolher os excedentes através das
colectas de impostos. O Estado central apresentava-se como o factor de perturbação do modo de existência e
da mundividência dos camponeses, situação que persistiria mais tarde com a I República (1910-1926).

1.2. Do Estado liberal ao «Estado Novo»

Ao lado dos levantamentos regionais bastante autónomos como o da Maria da Fonte, os antigos estratos
do campesinato constituíram com frequência, no século XIX, uma importante base social de apoio dos
legitimistas, implantados por intermédio de notáveis locais, designadamente eclesiásticos. Para Telles (1903:
119), também no início do século XX, não só a dispersão, por larga zona, da classe dos proprietários-
lavradores modestos e a sua falta de solidariedade recíproca a tomam politicamente um valor nulo como as
classes subalternas (rendeiros, jornaleiros), «mantidas secularmente numa tutela compressora e
deprimente», formam «uma multidão inconsciente, servil, ignara, emudecida que haverá cerca de meio
século deixou-se cair pesadamente numa espécie de sonolência cataléptica» (Telles 1903: 138).
Contrariamente a outras situações históricas noutros países, a componente camponesa no
desenvolvimento e na marcha da revolução liberal de 1820 esteve, segundo Silbert (1968:37 ss) e J. S. Dias
(1979:306), praticamente ausente. A reviravolta liberal deu-se a partir da cúpula administrativo-militar,
sendo de salientar o papel do exército e do funcionalismo público17.

16
Sobre o conceito de exclusão, cf. Weber 1978:43-46. Cf. ainda, numa perspectiva (neo)weberiana, Parkin 1979:89-115. Acerca
das virtualidades e dos limites do conceito de «exclusão social», cf. Benschop 1982: 12-13. Além da clássica inteipretação de
Weber (1974:51 ss) no sentido de uma correlação entre a ética protestante e a origem do capitalismo e, em especial, o tipo ideal de
empresário, é de relevar, no campo marxista, a polémica sobre qual dos factores - exógeno, endógeno ou ambos como algo
intrínseco ao modo de produção feudal teria(m) conduzido à dissolução do feudalismo e à emergência e à formação do
capitalismo mercantil: cf. respectivamente Sweezy (1950:134 ss), Dobb (1950:157 ss) e Anderson (1974:21 ss). Em termos
configuracionais, a tensão e a interdependência entre a nobreza e a burguesia é brilhantemente analisada por Elias (1982 Il:313
ss). Sobre o modo como certas elites dependentes, enquadradas em grupos não coiporativos, empreendem processos de
modernização, se bem que não de desenvolvimento, cf., especificamente em relação à Catalunha e à Sicília Ocidental, Schneider
et a/. 1972:330 ss.
17
Entre outros exemplos históricos de apoio camponês a revoltas e revoluções, ainda que nem sempre controladas por
protagonistas camponeses, são de referir França de 1789, México de 1910 e China de 1949. Nalgumas das situações como, por
exemplo, a do México de 1910, importa contudo referir que não houve posicionamentos unidireccionais ou uniformes por parte do
campesinato. Enquanto, por exemplo, os camponeses de Morelos participaram na revolução mexicana, os de Oaxaca não aderiram
26
Problema, Método e Teoria

O processo de desamortização tornou-se quase que uma simples transferência dos direitos sobre a terra
– parcialmente mediada pelo Estado liberal – das mãos da Igreja, em especial das extintas ordens religiosas,
e da Coroa para os novos senhores da terra e letrados. Estes, que tiveram acesso à terra expropriada,
«nacionalizada», a um preço político de amigos, continuaram a viver das rendas e aristocratizaram-se.
Enquanto o historiador Herculano, em meados do século XIX, calculava em 50 a 60.000 contos o produto
total dos bens das ordens religiosas e da Coroa, o rendimento total da venda desses bens em 1838 foi de
7.584 contos e, em 1875, não ultrapassou os 15.000 contos! (Godinho in Castro 1980: 165-166). Este
arrivismo liberal e suas manifestações de «devorismo» ou «regabofe», em que «o barão sucede ao monje e o
conde come o fidalgo» – e ao qual fazem referência alguns autores como Martins (1982 II: 13 e Sérgio
(1972: 1 –, reflectiam a «revolução agrária falhada» (Silbert 1977: 100) e teriam contribuído decisivamente
para o que Godinho (1980: 142) denomina «industrialização impossível».
Os homens do poder liberal não satisfizeram determinadas aspirações dos camponeses, atendendo ao
facto de que a maior parte destes não possuía os meios monetários necessários para a remissão dos foros e a
compra de terras. Salvo o aliviar de algumas cargas fiscais do Antigo Regime, mantiveram-se intactas ou até
se agravaram certas formas de arrendamento, parceria e tributação: substituição do acordo verbal sobre os
emprazamentos vitalícios de enfiteuse por contratos escritos mais curtos, introdução de novos impostos e do
princípio da partilha igual, com a consequente fragmentação da terra e o aumento de receitas tributárias
fiscais e a multiplicação de emolumentos. Por outro lado, tiveram lugar frequentes tentativas de quebrar os
laços de segurança locais, fazendo ouvidos surdos às petições comunitárias nas Cortes Liberais18 e
permitindo a apropriação individual das terras, o aumento das rendas19 19 em relação a situações anteriores
sob o Antigo Regime e, sobretudo, a centralização do Estado pela imposição burocrática e pela coerção
física para extracção do excedente através de impostos. Em suma, o campesinato, não tendo constituído uma
classe aliada, ainda que subalterna, sob o regime liberal, tão-pouco obteve deste efeitos emancipadores.
Na sequência e em paralelo com revoltas anteriores a 1820, especialmente a de 1808-09, a revolta
camponesa conhecida por Maria da Fonte (1846-1851)20que se iniciou nas regiões nortenhas mais

ao programa revolucionário dos zapatistas o que, segundo R. Waterbury (1975:436), dever-se-ia à articulação de três factores:
modo de produção latifundiário, exploração directa e coerciva e comunidade não fechada em Morelos e pequena produção
camponesa, exploração indirecta e sistema comunitário fechado com estrutura vertical e clientelar em Oaxaca.
O facto de, na revolução liberal de 1820 em Portugal, o apoio camponês parecer, em grande parte, ausente não significa que, em
certas regiões, tal como constata Monteiro (1985:34 ss) para o couto de Alcobaça, que os camponeses locais não tenham invocado
a nova legislação liberal (v.g. a Lei dos Forais de 1822) para redobrar a sua resistência e/ou recusa ao pagamento de direitos
senhoriais e, assim, fazer valer os seus velhos ou novos direitos. Por outro lado, da relativa não-mobilização camponesa em prol
da revolução liberal não se infere a inexistência de revoltas e movimentos camponeses de carácter anti-senhorial antes e após a
revolução de 1820, revoltas e movimentos de resto amplamente ilustrados, entre outros, por Silbert (1978) e Tengarrinha (l982:
154 ss). Por fim, importa salientar o facto de que o exército, dominado pelos liberais ingleses, depois da retirada dos invasores
franceses, viria a ler um papel repressivo nas eleições, nas exacções tributárias e, em especial, mais tarde nas revoltas camponesas
no norte sob o governo de Cabral. Esta violência era função da necessidade de o Estado obter meios financeiros através da
tributação e da monopolização político-económica, tal como o sublinha Elias (1982 II: 113 ss).
18
Mais que atender às intenções dos reformadores liberais, a minuciosa análise de Silbert (1968:20 ss) sobre as inúmeras petições
das populações rurais dirigidas às Cortes Liberais fornece-nos uma imagem mais adequada das suas reivindicações e expectativas,
ilusões e desilusões, conforme a capacidade de formular petições. Enquanto grande parte destas provinha de lavradores ricos e
membros ascendentes da burguesia, por parte dos jornaleiros não havia praticamente petições. Entre os pequenos camponeses,
além de escassos registos denotativos de queixas políticas contra o Antigo Regime, verificavam-se contudo bastantes reclamações
contra a carga fiscal dos liberais, em particular a sisa, contra erros de registo administrativo e contra a sobrecarga de um longo
serviço militar.
19
Na província do Minho, em finais do século XVl11, a renda somava cerca de 60% do rendimento líquido, enquanto nos séculos
XIV-XV oscilava entre 30% a 40% (cf. Pery in Castro 1980:112 e C. Vieira 1981: 173). Sobre a evolução da renda fundiária, cf.
A. Oliveira 1980:5 ss.
20
A maioria dos historiadores portugueses, para além das diferenças metodológico-teóricas entre si, interpreta as revoltas
camponesas em Portugal e, em particular, a da Maria da F ante no processo de luta anti-feudal (Sá 1969:276 ss) ou de transição do
Antigo Regime para o capitalismo (cf. Pereira 1979:326 ss, M. V. Cabral 1976:24 ss, 134 ss). Para uma interpretação algo
diferente no sentido do carácter anti-centralista e anti-estatal das referidas revoltas, cf., de modo embrionário, sobre a revolta de
1808-1809, V.alente 1979: 7-48 e, de modo mais explícito, sobre a revolta da Maria da Fonte, Riegelhaupt 1981:130 ss, M. Pinto
1979:83 ss, Silva e Van Toor 1982:88 ss, Sobral 1987:1-28, Feijó 1992:30, 222, e, sobre o campesinato na ilha da Madeira, cf.
Branco 1987:189 ss, 222. Teoricamente ainda, cf. Elias 1982 II:112 ss, Tilly 1975:6 ss.
Introdução, Problema e Método

montanhosas e menos comercializadas, é explicável não tanto pela penetração do capital, mas mais pelas
extorsões fiscais, pela coerção física militar, pelo desrespeito perante a organização interna das
colectividades camponesas e seus valores, nomeadamente religiosos, e pela intromissão policial-burocrática
(regedor e funcionários camarários) na vida da aldeia por parte de um Estado cada vez mais centralista.

Nos finais do século XIX e, em particular, durante a I República, não foi igualmente por acaso que os
republicanos, sendo, em princípio, partidários de todos os direitos cívico-políticos, incluindo o sufrágio
universal, acabariam por impedir o seu alargamento à população campesina e jornaleira. Sintomático do
fosso existente entre os republicanos letrados e o «velho» campesinato é o facto de se encontrar nos campos
do norte e do centro do país o suporte social das tentativas de restauração monárquicas. Os camponeses,
encontrando-se limitados ao microcosmos da aldeia, sem apoio nem ligação orgânica às débeis organizações
operárias, predominantemente urbanas, acabavam por apoiar, através dos notáveis locais, representantes de
grupos sociais pertencentes ao bloco conservador agrário-clerical. À falta de melhor, este enraizado bloco
era menos assolador para o seu modo de existência e cultura que a nova configuração urbano-industrial
(burguesia industrial, por um lado, e proletariado, por outro) sob a égide liberal-republicana, indiciando este
contexto que a contradição central e dominante se situava então ao nível da cidade-campo.
Princípios e dogmas da economia liberal, proclamados pelos citadinos republicanos, esbarravam com as
tradições imersas na sociedade rural. A política dos republicanos, assim como os seus interesses e valores
afrontavam directamente os dos camponeses. Não só decretaram a supressão ou a diminuição dos terrenos
comunais e a respectiva apropriação individual (sobretudo quando feita sob a batuta dos mais abastados),
como aumentaram alguns impostos (25% sobre a contribuição industrial e predial rústica, 10% sobre o
imposto de transacção) e/ou criaram sucessivamente novos impostos (o imposto pessoal sobre o rendimento,
o imposto para a escola primária, o imposto fundiário extraordinário)21. Por outro lado, além de coagirem os
produtores camponeses a entregar os excedentes dos géneros alimentícios, permitiram uma relação de troca
entre produtos não-agrícolas e agrícolas bastante desfavorável a estes últimos na razão de 4:1, 3,5:1, 2:1 e
1,5:1 respectivamente em 1917, 1920, 1923 e 192622. Acresce ainda que, se o envio de camponeses-soldados
para os campos de batalha da primeira guerra mundial fazia aumentar o descontentamento entre as
populações rurais, a racionalidade dos «iluminados» republicanos, inclusive dos radicais da Seara Nova,
induzia-os não só a não compreender, mas também a estigmatizar a dita «irracionalidade» das crenças e
«superstições» dos camponeses, levando o regime a reprimir, pela mão dos carbonários, moral e físicamente
os padres e, assim, a impedir a expressão livre das práticas religiosas.

1.3. Uma classe-apoio do salazarismo

A débil implantação e até a ausência não só dos partidos liberais-republicanos, mas também das
organizações socialistas e comunistas entre o campesinato nortenho, manter-se-á, quer durante a I
República, quer ainda durante o regime salazarista. Poder-se-á neste ponto objectar que, sob o regime
ditatorial de Salazar e Caetano, não eram admitidas manifestações de protesto. Há, porém, que sublinhar
que, já em pleno pós-25 de Abril, os levantamentos camponeses no norte e no centro do país, bem como nas
ilhas da Madeira e dos Açores, não se dirigiram contra os notáveis conservadores e reaccionários, mas
justamente contra pessoas progressistas locais, bem como contra o governo central de Vasco Gonçalves.
Na sociedade portuguesa, predominantemente agrária até meados do século XX, a população
campesina, na sua maioria, mostrou na arena pública, por mediação da Igreja e seus representantes locais,
uma considerável «anuência passiva» para com a elite governante salazarista 23. Os protestos locais

21
Sobre a partição e a venda de terrenos baldios, cf. D.L. 4812 de 1918, D.L. 7127 de 1920, D.L. 7933 de 1921, D.L. 9843 de
1924 e D.L. 10552 de 1925; sobre o aumento e/ou a criação de impostos, cf. Lei 1368 de 21-9-1922, Decreto-Lei de 27-1-1923 e
Lei de 9-9-1924 in Telo 1980 I:247. Cf. também Silbert 1960:68, Junta de Colonização Interna 1939:14 ss.
22
Sobre a entrega coerciva de produtos para venda e sobre o desfavorável rácio dos preços agrícolas face aos não agrícolas nos
referidos anos, cf. Castro 1945:155-160; cf. ainda Basto 1936 IV:368 ss e Medeiros 1978: l 22 ss.
23
Esta «anuência», vista pelo ângulo dos camponeses, pode ser entendida como uma forma de resistência silenciosa. Além disso,
tal não significa que não se tenham verificado conflitos a serem esclarecidos pela pesquisa histórico-sociológica. Refiram-se, por
28
Problema, Método e Teoria

camponeses durante o «Estado Novo» apresentaram um carácter incidental e/ou defensivo, distinguindo-se
da resistência mais ofensiva e combativa por parte de assalariados fabris e rurais e doutras camadas
trabalhadoras, que se esforçavam por se organizar em sindicatos, ora oficiais, ora clandestinos.
A consolidação do salazarismo, por um lado, travou, até certo ponto, o incipiente processo de
industrialização e, por outro, contrariou as tendências de secularização ideológica, que era percebida pelas
classes não capitalistas, nomeadamente artesãos e camponeses, bem corno pelos proprietários fundiários e
pela Igreja, como uma ameaça à velha ordem agrária. O corporativismo e o ruralismo salazaristas
revigoraram assim o bloco agrário-comercial, reforçando deste modo a hierarquia e a desigualdade
estruturais existentes.
Inspirando-se na filosofia escolástico-tomista, assim como nas encíclicas papais anti-racionalistas e anti-
modernistas do século XIX (Diuturnum, Syllabus e sobretudo Rerum Novarum), o salazarismo jogou com os
sentimentos de descontentamento e de angústia dos produtores artesãos e camponeses envolvidos num
quadro não capitalista, transpondo para um cenário mistificador determinados valores da realidade
campesina, como família e dever, pátria e crença, poupança e glorificação do trabalho rural, da sua história e
tradições24. Estes elementos não eram, contudo, apenas imaginários nem faziam unicamente parte da retórica
salazarista, mas reflectiam traços da realidade do Portugal rural, designadamente das chamadas camadas
médias e, em especial, dos camponeses. E isto arrastaria consigo um efeito de reconhecimento junto das
famílias camponesas, de modo que, aos seus olhos, o regime surgia como legítimo. Este aspecto sintetizou-o
E. Lourenço do seguinte modo: «Para os camponeses, Salazar era o legítimo representante da Nação»
(1978:32).

Embora o salazarismo tenha contribuído indirectamente para o prolongamento da «agonia» dos


camponeses, isolou e integrou o eventual potencial de resistência e de protesto anticapitalista dos mesmos.
Sem ir ao encontro das aspirações básicas dos camponeses, fez todavia com que a extorsão do excedente,
nomeadamente na política fiscal, se mantivesse suportável, sobrecarregando mais as classes industriais.
Além disso, conseguiu que os termos de troca na evolução dos preços agrícolas e não agrícolas se
mantivessem relativamente estáveis ou favoráveis aos produtores agrícolas (cf. Mendes 1983:430 ss) e que
os projectos de emparcelamento da pequena propriedade – considerado como uma das condições necessárias
à racionalização moderna da agricultura – não fossem impostos, mas apresentados numa base facultativa.
A ideologia e a política do salazarismo contribuíram, de maneira astuta, para ultrapassar as contradições
internas no seio das classes dominantes, permitindo uma transição controlada e sem sobressaltos da
sociedade agrária para a industrial que, desde a década de 1950-60, despontava. E foi neste contexto que à
elite salazarista, coadjuvada pelos mecanismos de patrocinato local, particularmente pela acção conjugada
do clero no centro e no norte do país, se tomou possível manter os camponeses submissos e dependentes.

1.4. Trajecto de pesquisa e método pluridisciplinar

Enunciado o problema e lançado um relance panorâmico à história sobretudo contemporânea do


campesinato português, impõe-se agora explicitar alguns pressupostos metodológicos e, seguidamente,
relevar o percurso e as respectivas fases desta pesquisa sociológico-antropológica e histórica. A articulação
desta tripla dimensionalidade contribuiu, sem dúvida, para superar algumas (pseudo)dicotomias, oposições
ou insuficiências de qualquer das dimensões tomada isoladamente. Com efeito, a configuração actual de
Lindoso e de Aguiar e a acção dos seus habitantes, com as suas identidades e diferenciações, contradições e
(re)classificações sociais, não poderiam ser captadas apenas com base em dados estatísticos oficiais ou

exemplo, as contestações campesinas contra a proibição da produção e da venda do chamado «vinho americano», resultante do
respectivo decreto de 18-1-1955, assim como os protestos locais contra a apropriação estatal ou particular de baldios e a
destruição de pastagens, nomeadamente no Lindoso, em consequência da plantação de pinheiros e eucaliptos. Cf. a este respeito
A. Ribeiro 1985:24 ss, Cunhal 1974:197.
24
Cf. Salazar 1937-56 II:130 ss, e in Ferro 1934:134; cf. também T. Pereira 1937:48, 142 ss. Teoricamente sobre a integração
política dos camponeses e de seus valores, cf. Hobsbawm 1973: 17 ss. Sobre a relação entre sociedade rural e o discurso
salazarísta, cf. Joaquim 1979:690 ss e sobretudo M. L. Martins 1990:67 ss.
Introdução, Problema e Método

apressados inquéritos. Foi necessário deitar mão dos métodos qualitativos e, em especial, de certos
instrumentos antropológicos, amplamente comprovados, os quais desvelam com certo intimismo as
experiências, os significados e as motivações dos actores, perspectiva esta aliás convergente com o já
referido método weberiano da compreensão. A componente empírica do trabalho, baseada em dois estudos
de caso, não impede, tal como o mostrou Bourdieu (1989:32 ss), a descoberta, no particular, das
características invariantes, possibilitando assim a construção de um modelo interpretativo e explicativo.

Outro aspecto fulcral reside no facto de as colectividades rurais não constituírem realidades estáticas e
fechadas mas configurações históricas relativamente abertas e, como tal, tornam imprescindível uma mínima
dimensão diacrónica que registe a dinâmica estrutural e accional dessas micro-sociedades e as suas
(inter)dependências perante as demais entidades e instituições extraparoquiais, designadamente municipais e
estatais. Nesta óptica, e na senda de uma orientação teórico-metodológica já desbravada por autores como
Bourdieu (1980:87, 234 ss), Giddens (1984:1-40), Bader e Benschop (1988:35 ss), importa, sem cair em
posições eclécticas, superar a clássica dicotomia entre estrutura e acção, ambas imbricadas nas práticas
sociais. Recusando um «monoteísmo metodológico» (Bourdieu 1989:25) e partindo de um enfoque
pluridisciplinar, procurei combinar alguns dos habituais métodos sociológicos (inquéritos, entrevistas) com
outros tradicional e especificamente antropológicos como o da observação participante sem descuidar, na
medida do possível e da minha competência, o estudo das fontes documentais. Porém, talvez uma breve
descrição do caminho metódico-técnico e de suas vicissitudes torne mais atractiva a leitura daquilo que, de
facto, no terreno representou para mim um desafio e uma catarse, uma aventura e uma prova, por vezes
dolorosa, por vezes gratificante.

Tendo optado, no projecto, por realizar o trabalho de campo em duas aldeias minhotas, uma do Baixo
Minho e outra do Alto Minho, uma vez chegado a Portugal em Abril de 1984, comecei por aquela que,
inicialmente, me era mais próxima, familiar: a da minha própria aldeia de origem materna, situada no
concelho de Barcelos, deixando a escolha da segunda para uma fase posterior. Num primeiro momento, uma
carta minha e uma credencial do meu supervisor, em português, lidas do altar pelo pároco, explicando os
«inofensivos» objectivos do meu estudo das tradições e dos costumes da freguesia, facilitaram a aceitação
do projecto. Durante um ano foi-me possível acompanhar e participar, fotografar e filmar actividades
produtivas e outros acontecimentos públicos importantes tais como eleições, missa dominical, festas locais e
romarias regionais.
Alheio ao que diversos antropólogos experimentaram e designaram como o inicial «choque psico-
cultural», neste revisitar sistemático da aldeia, senti claramente a vantagem de reconhecer o território de
minha infância e juventude, a satisfação de rever diariamente conterrâneos – cujas trajectórias de vida me
eram globalmente conhecidas –, amigos e parentes que, além dos laços de afectividade, constituíam, para
começar, velhos e renovados informantes para os meus objectivos. Por sua vez, também eu, filho de uma
modesta camponesa e de um merceeiro recém-desipotecado, considerado então um «solteirão», uma pessoa
«viajada» e «estudada» – como diziam –, representava para os grupos domésticos de Aguiar, conforme o seu
posicionamento face a mim e à minha família, uma expectativa ou um apoio, um repto ou um incómodo,
enfim, um regresso querido e bem-vindo para uns, indesejado e invejado para outros. Em suma, como
investigador «indígena», não escapei certamente às indeléveis consequências do lugar social de minha
família nas malhas da «tribo» aldeã.
Ora, é precisamente neste ponto que as incontestáveis vantagens iniciais traziam simultânea e
posteriormente inevitáveis inconvenientes. Com efeito, o prévio conhecimento e a familiaridade com
bastantes dos conterrâneos – dos quais alguns me adoptaram como ocasional assistente social – permitiu-me,
a partir do terceiro mês, marcar encontros e ter entrada em diversas casas. Começando, nestes encontros, por
ouvir, em narração livre e retrospectiva, a história da família e de seus membros, fui preenchendo os
respectivos inquéritos, aliás excessivos e indiscretos sobretudo no concernente aos seus bens, rendimentos
ou depósitos bancários. Tive a oportunidade de ouvir, registar e sensibilizar-me com incríveis, admiráveis e,
por vezes, dramáticas histórias de vida de duas gerações sofridas, cujos sinceros desafogos os induziam, no
fim do questionário, a comentários como este: «Ao fim e ao cabo confessei-me mais a ti que ao padre». Por
outro lado, sem partilhar o suposto preconceito objectivista de que a pertença ao próprio grupo de estudo
30
Problema, Método e Teoria

impediria o necessário distanciamento com o «objecto» e, como tal, constituiria um insuperável obstáculo à
apreensão fidedigna do real, devo confessar algumas dificuldades sobretudo quando e à medida que se iam
frustrando certas expectativas de conterrâneos incluindo algumas estratégias matrimoniais relativas à minha
pessoa. Acresce ainda que para alguns médios e abastados lavradores, a pesquisa a realizar por um filho de
uma modesta família constituía uma latente afronta à sua posição, dando lugar a algumas – felizmente
poucas – situações de desconfiança, esquivez ou indisponibilidade e, por vezes, de ignorante ou atrevida
arrogância: «para quê ou para quem escreves isso?», «se ele andou a estudar para fazer isto, também eu
sem estudar o fazia», ou «se fosse eu, fazia esse trabalho doutra maneira». Mais, dei-me conta que uma ou
outra figura influente, sem sabotar directa ou abertamente o meu trabalho, tentou, embora em vão, numa fase
um tanto tardia, minar de modo subreptício o meu terreno de acção, precavendo alguns familiares seus para
que não colaborassem. Todavia, o que subjectivamente mais me chocou foi o tradicional peso das recíprocas
marcas ou estigmas sociais com a sua intrincada trama de invejas e conflitos interfamiliares. Fazendo estes
parte daquilo que um observador qualificado denominou um intrigante «ninho de víboras» intra-aldeão, a
densidade conflitual e suas implicações obrigaram-me a uma autêntica catarse e reflexão sobre o meu papel
de investigador e sobre o objectivo da pesquisa, o qual aliás não pode nem deve constituir um fim em si
mesmo. Dados os meus propósitos, tive, durante a minha estadia, o imenso cuidado de evitar rupturas e
manter conjunturalmente uma certa equidistância perante os protagonistas de conflitos interfamiliares e, em
especial, de acesas lutas político-religiosas.
Durante o trabalho de campo, além de observar e anotar dados e acontecimentos de acordo com os itens
do projecto de investigação, fui realizando os inquéritos porta a porta incluindo, logo que possível, as casas
de emigrantes. Simultânea ou seguidamente fui recolhendo dados dos registos paroquiais e da Casa do Povo
e copiando as fichas das matrizes prediais na Repartição de Finanças, os processos de escrituras notariais e
de litígios encontrados no Arquivo Municipal e, sobretudo, no Tribunal Comarcal de Barcelos.

Em Março de 1985 passei a visitar algumas aldeias do Alto Minho, a fim de seleccionar uma segunda
aldeia-tipo que servisse, de certo modo, de contraponto à primeira: uma aldeia para mim estranha, com uma
economia agro-pastoril de montanha e com um historial de colisão com a Câmara e o Estado.
Numa das viagens exploratórias parei em Lindoso, uma povoação agro-pastoril afectada pela construção
de uma barragem, primeiro nos anos vinte e, de novo, actualmente por uma outra em maior escala. Se o
presidente da Junta, por razões pessoais ou outras, tentou logo despachar-me, o pároco foi, desde o início,
extremamente simpático e hospitaleiro ao ponto de, além de facilitar-me o acesso aos exíguos registos
paroquiais, disponibilizar-me um quarto na sua residência paroquial. Deixando eu na penumbra as posições
pessoais acerca da política e da religião mas assistindo às cerimónias religiosas, o pároco, sua mãe e irmã,
bem como as famílias mais próximas destas constituíram assim o meu apoio inicial e um ponto de arranque
fundamental para esta mais incerta aventura do meu trabalho de campo. De facto, para os moradores era
estranha a minha própria pessoa, assim como invulgar o facto de, como doutor-letrado, vir ali «fazer
perguntas» e «ouvir contar misérias»! Não obstante as conversas informais nos cafés e o anúncio público do
pároco na igreja acerca dos meus objectivos, a desconfiança da facção anti-pároco e, sobretudo, a não
identificação física da minha pessoa com a do referido anúncio provocaria comentários nada confortantes
para mim, embora compreensíveis perante a minha posição de intruso: «que é que vem cá fazer este tipo?»,
«que é que sabe ele: é engenheiro ou doutor dequê?», «que história é que ele quer contar: uma história da
carochinha?».

Dificultada a minha inserção na aldeia, passadas três semanas, estava quase decidido a desistir de
assumir Lindoso como aldeia do meu projecto. Num período em que se estava a consumar o processo de
expropriação de terrenos pela EDP em vista à implementação da referida barragem, o meu confronto com
rostos desconfiados e até gélidos deveu-se a vários equívocos: primeiro, o de ser inicialmente considerado
mais um engenheiro da EDP e, posteriormente, ao visitar algumas famílias em suas casas, testemunha de
Jeová ou funcionário de qualquer organização «perigosa». Só quando, desfeito sobretudo o primeiro
equívoco – que me obrigou a tomar posição pública perante um de dois negociadores da EDP –, tendo
prestado ou organizado alguns serviços gratuitos de transporte com o meu carro e outros de carácter
assistencial (sessão de enfermagem, pedidos de reforma e redacção de cartas em francês) e, sobretudo, após
Introdução, Problema e Método

ter participado mais activamente nos labores agrícolas, é que fui conseguindo romper o gelo, de modo que
os moradores do Lindoso me fossem abrindo as suas e as suas mentes. Deveras, os primeiros meses
constituíram uma autêntica prova de fogo e, simultaneamente, um processo de conquista da confiança
mínima de um povo escarmentado de artimanhas de agentes estranhos, a que há a juntar o compreensível
retraimento da facção anti-pároco que me assumira, de início, como um aliado do padre. Somente quando,
comprovada a minha relativa neutralidade nos conflitos internos e, em particular, no referente ao pároco,
consegui conversar com alguma intimidade com as famílias opositoras deste, esta outra metade da aldeia me
foi desbloqueando os restantes obstáculos e foi gradualmente colaborando com a minha pesquisa. De resto,
esta seguiu as mesmas fases, centrou-se nas mesmas perguntas do inquérito e utilizou os mesmos métodos e
ferramentas que em Aguiar, excepto a deliberada não utilização de gravador para registar algumas histórias
de vida pelo risco ou receio de seus efeitos contraproducentes numa terra estranha. Se alguns, em entre os
mais providos, a fim de evitar fornecer dados sobre posses e rendimentos, se esquivavam, subavaliavam ou
pretextavam ora estar ocupados, ora cansados ou com sono, a grande maioria foi pouco a pouco depositando
confiança e respondendo, creio, de modo relativamente fiável. Por fim, importa destacar o facto de que, à
excepção de alguns mais reservados ou interessados em prover uma imagem menos «degradante» ou
«desclassificatória» de seu duro passado, também em Lindoso bastantes foram os que, narrando tanto as
suas proezas e sucessos como os seus dramas e «misérias», fizeram de mim um confidente seu. Foi
certamente com emoção que, na parte final do trabalho de campo, sobretudo quando lhes exibi fotografias,
diapositivos e, mais tarde, um filme-amador sobre o Lindoso, senti, por parte de muitos moradores, um
ambiente não só de relativa aceitação como de uma quase adopção entusiástica e de um carinho maior que o
de alguns de meus conterrâneos de Aguiar.

O inquérito por mim delineado, pretendendo ser bastante completo, tomou-se demasiado longo e
pesado, obrigando, por vezes, a duas sessões ou encontros por casa. Por outro lado, a fim de obviar a
cálculos subjectivos, por excesso ou defeito, tentei, na medida do possível, testar as respostas dos inquiridos
quer através de fontes escritas, em particular as relativas à superfície das terras, quer através de observações
próprias ou de terceiros, em especial de informantes-chave. Deste modo se supriram, em ambas as aldeias,
as escassas escusas a algumas perguntas indiscretas. Em dias ou períodos vagos do trabalho de campo e,
sobretudo, após a sua conclusão, além de assistir a algumas reuniões de cooperativas e organizações de
agricultores a nível municipal e regional, levei a cabo entrevistas semi-estruturadas com dirigentes e
membros de cooperativas, do Parque Nacional da Peneda Gerês, da Guarda Fiscal, da Guarda Florestal e da
EDP. Mais relevante foi, contudo, o inestimável acolhimento e a preciosa colaboração de responsáveis e
trabalhadores nas diversas instâncias: cooperativas e direcções regionais agrárias, notariados e tribunais,
arquivos municipais e da Guarda Fiscal, conservatórias do Registo Civil, Repartições das Finanças de
Barcelos e de Ponte da Barca, onde efectivamente a receptividade e a disponibilidade para deixar-me copiar
as respectivas escrituras, processos judiciais transactos, matrizes e outros documentos me foram
extremamente valiosas.
Quanto ao acesso à consulta das matrizes prediais – mais informal em Ponte da Barca,da mais
burocrática em Barcelos ao exigir-me uma licença especial do Ministério das Finanças em Lisboa! –, dada a
inexistência de cadastro geométrico relativo a ambas as aldeias no Instituto Geográfico e Cadastral,
determinar a quantidade de bens fundiários possuídos por cada família não constituiu, de modo algum, obra
fácil. Para atalhar esta dificuldade, além dos dados obtidos nos inquéritos, foram manualmente copiados os
dados das fichas matriciais das Repartições das Finanças. Estando estas ordenadas em consonância com a
situação topográfica dos prédios, um primeiro tratamento exigiu a ingente tarefa de juntá-las e contabilizar
as respectivas parcelas de cada grupo doméstico, ao que acresceu, em bastantes casos sobretudo de Lindoso,
o facto de tais parcelas estarem ainda registadas no nome dos pais, avós ou até bisavós dos actuais
possuidores. Apesar das deficiências ou insuficiências de um ou outro método, a combinação dos dados
obtidos por inquérito e os recolhidos por via administrativa ofereceu virtualidades susceptíveis de superar
ora as distorções das estatísticas oficiais, ora as deliberadas ou inadvertidas imprecisões dos inquiridos, ora
ainda as reservas destes por infundados mas compreensíveis receios fiscais ou outros.

Os arquivos paroquiais designadamente as Actas daJunta de Aguiar e sobretudo as de Lindoso, os Róis


32
Problema, Método e Teoria

de Desobriga de Aguiar e os arquivos municipais constituíram o principal manancial de informação, sendo


de relevar as Actas da Câmara de Barcelos e as Actas da Câmara de Ponte da Barca, os Livros de Matrizes
Prediais, as Escrituras e Convenções Antenupciais, os Livros de Testamentos, os Inventários Orfanológicos,
os Livros de Décimas e outros Livros de Contribuições tais como a da sisa ou para a defesa, os Livros de
Conciliações e não Conciliações, os Documentos Notariais, os Processos Judiciais dos Tribunais de
Barcelos e de Ponte da Barca e diversos documentos de aforamentos e outros relativos a Aguiar e ao seu
Julgado. Além dos municipais, foram consultados, relativamente a ambas as aldeias, os arquivos paroquiais
e distritais de Viana do Castelo e, sobretudo, de Braga, nomeadamente os Assentos de Baptismos, Assentos
de Casamentos e Assentos de Óbitos, as Visitas Pastorais e Circulares Administrativas Eclesiásticas, Livros
de Dispensas Matrimoniais de Aguiar, Livros de Visitações e Devassas e, em Lisboa, a Torre do Tombo
para consulta dos Forais e das Memórias Paroquiais. Ainda a nível nacional, algumas instituições oficiais
como o Instituto Nacional de Estatística (INE) forneceram-me dados suplementares que pude confrontar
com os próprios, optando contudo predominantemente pelos obtidos por mim próprio. As diferenças de
resultados, sobretudo quanto ao número de casas, deve-se à discrepância de critérios: enquanto o INE tende
a excluir as casas agricolamente inviáveis, os inquéritos locais abrangem-nas todas inclusivamente as dos
emigrantes.

Realizado o trabalho de campo, a codificação e a elaboração de uma matriz, a inserção e o tratamento


informático dos dados, principalmente os obtidos pelos respectivos inquéritos locais através do programa
SPSS, transformar-se-iam num processo bastante penoso devido aos meus exíguos conhecimentos
informáticos. A paciência dealguns membros da equipa de informática do ISCTE e, posteriormente, da
Universidade do Minho ajudaram-me a superar alguns obstáculos.
No concernente aos diversos aspectos analisados, procurei, quer em base documental, quer através dos
questionários e das entrevistas livres, relevar a memória e a vivência actual dos protagonistas, ora
reproduzindo a sua palavra espontânea, ora descodificando-a na medida da minha arte e do espaço
disponível. A este propósito, convém esclarecer que, tanto em relação a citações de obras escritas em línguas
estrangeiras como às fontes documentais em português arcaico, optei por traduzi-las ao português (actual).

Como unidade de análise básica assumi o grupo doméstico, o que, pelo menos em colectividades
camponesas, me parece central em termos não só de produção como de reprodução social. Este ponto de
partida metodológico, classicamente adoptado por Schumpeter (1972:169) e, mais recentemente, por
Goldthorpe (1983:468), Rapp (1983:35 ss) e Almeida (1986:233 ss), mantém-se adequado desde que, tal
como o reconhecem estes últimos autores, completado ou refinado com a situação de classe individual e
outras variáveis como o sexo e a geração no seio do grupo doméstico. Com efeito, ao lado da comunidade de
interesses e rendimentos familiares, importa não obnubilar, como refere Benschop (1993:298), a pluralidade
e, por vezes, a oposição de identidades e interesses entre membros do grupo doméstico.

Tendo em conta as pragmáticas pressões institucionais acerca dos prazos para terminar a tese, duas
opções foram insuficientemente ponderadas na elaboração do projecto e que me exigiram um duplo
dispêndio de tempo e energia: uma primeira concernente à amplitude dos aspectos abordados e uma segunda
relativa ao estudo de duas e não apenas uma aldeia. Quanto à primeira, trata-se de uma tensão permanente e
não resolvida entre o aprofundamento detalhado de um nível ou parcela da realidade aldeã e a necessidade
de focar mais significativas dimensões. Evitando um tratamento empírico separado, por vezes repetitivo e,
sobretudo, uma duplicação de referências bibliográficas, espero ter conseguido não uma espécie de duas
monografias com acusado carácter descritivo e holístico em sentido clássico, mas antes um registo e uma
análise simultânea de ambas as colectividades. Deste modo, creio ter tratado a problemática a partir das
dimensões centrais do projecto e incidido a análise nos diversos níveis de estruturação da acção social dos
protagonistas de ambas as aldeias.
Relativamente à segunda opção, ela permitiu-me, além de evitar uma fixação exclusiva e demasiado
umbilical numa única aldeia, inferir algumas frutíferas comparações substantivas entre uma aldeia de vale e
uma outra de montanha e, sobretudo, alguns ensinamentos a nível de métodos e técnicas de investigação no
terreno. Todavia, analisados a posteriori os resultados, estes não demonstraram diferenças tão marcantes
Introdução, Problema e Método

entre ambas as aldeias, sobressaindo com frequência as suas semelhanças. A dilatação de tempo consumido
em trabalho de campo, assim como, sobretudo, a morosidade do duplo tratamento dos dados, extraídos dos
inquéritos e da pesquisa documental histórica nas diversas instâncias locais, municipais e distritais,
tomaram-se demasiado ingentes para um só e, amiúde, solitário investigador. Hoje, considerando a temática
e a substância do trabalho, a encetar tal investigação comparativa, teria optado por seleccionar uma segunda
aldeia não-minhota, nomeadamente ribatejana ou alentejana, com uma história e um perfil sócio-político
diferentes. Tal significa que o desafio se mantém aberto para um próximo futuro. Antes disso, porém,
procurarei publicar num outro trabalho três capítulos da tese que, por razões editoriais e porque a sua
eliminação não belisca o essencial do argumento, poderão, quando retrabalhados com outro material então
recolhido, autonomizar-se e dar aso a uma outra publicação centrada na reprodução e/ou mobilidade social e
na conflitualidade intra e interdoméstica ao longo de cerca de cem anos. Os três capítulos excluídos desta
publicação são «Reprodução e mobilidadesocial», «Competir para reclassificar-se» e «Casa e poder
doméstico».

O material empírico induzir-me-ia a reconsiderar algumas das anteriores reflexões teóricas, impelindo-
me a sucessivas e adicionais leituras de obras, ensaios e artigos. Alguns capítulos exigiriam ainda um
aprofundamento maior, mas tal obrigaria a mais leituras que só o avisado e decidido conselho dos meus
orientadores me fez suspender. Por agora, o que à luz de leituras de historiadores nacionais, estudiosos do
campesinato e reflexões próprias sobre a racionalidade campesina (sua economia, estratégias, política,
normas e valores) – enriquecidas com os resultados do trabalho de campo sobre as duas aldeias minhotas –,
procurei foi tentar compreender e explicar a sócio-política dos camponeses minhotos nos séculos XIX e,
sobretudo, XX. Partindo duma hipótese explicativa da estruturação da acção dos camponeses e demais
protagonistas locais a diversos níveis – social, organizacional e interactivo –, a tarefa mencionada implica
colocar o acento tónico nos seguintes itens a expor ao longo de quatro partes:

(i) Uma vez feita uma sucinta incursão nos antecedentes históricos do campesinato e sua articulação
com as demais classes inseridas nos blocos sócio-políticos, demarcando esta evolução nalguns
períodos-chave, passou-se a enunciar o problema central sobre a acção predominantemente
«passiva» e aparentemente «conservadora» dos camponeses. À questão seguir-se-á a exposição
dos principais modelos correntes sobre a acção campesina: o modelo funcionalista de índole
normativa e culturalista, o modelo sócio-psicológico nalgumas das suas variantes tradicionais, o
modelo de poder, o modelo marxista, sendo feita, de seguida, na esteira da perspectiva de alguns
autores, um balanço crítico com a minha própria posição. Posteriormente, dada a importância da
especificidade da economia e da racionalidade camponesas para a compreensão e a explicação de
seu comportamento, far-se-á das mesmas uma breve caracterização, uma vez analisadas e
avaliadas as concepções sobre o campesinato por parte da moderna racionalidade liberal, por um
lado, e do marxismo ortodoxo, por outro. Nesta perspectiva, sem perder de vista os
constrangimentos estruturais, tomar-se-ão reveladoras as diversas estratégias aplicadas pelos
camponeses enquanto modos de obter, conservar ou transmitir recursos: desde as estratégias
básicas (casamento, herança e migrações), passando pela religiosidade e pelas relações com a
Igreja, até ao sistema de patrocinato.

(ii) Numa segunda parte começar-se-á por referir as dimensões de conservação e de mudança de Lindoso
e de Aguiar, retratando brevemente ambas as aldeias e fornecendo, seguidamente, no contexto de
suas relações de dependência e/ou autonomia perante a feudalidade (Coroa, nobreza e Igreja) e o
Estado e suas instituições, uma breve retrospectiva histórico-demográfica e um sucinto
enquadramento geo-histórico de ambas as povoações. Tendo em conta a caracterização da
tradicional economia camponesa e a problemática acerca da desigualdade comunitária, testar-se-á
e confrontar-se-á a discussão teórica com os resultados empíricos relativos tanto ao
funcionamento da economia agro-pastoril de ambas as aldeias e respectiva divisão do trabalho e
ciclo agrícola, como ao desvelar dos pólos de identidade e diferenciação sociais nas práticas
34
Problema, Método e Teoria

comunitárias, como ainda às novas dependências económicas verificadas nas respectivas


comunidades desde os anos sessenta.
Ainda com base nos dados empíricos obtidos de diversas fontes e particularmente dos inquéritos
locais, o último capítulo da segunda parte centrar-se-á na análise das diversas categorias de
exploração agrícolas, da acção dos vários tipos de actores sociais em ambas as aldeias, tendo
como trave-mestra do argumento o grau de controlo sobre recursos (por exemplo, terra, gado,
equipamento) e a distribuição dos mesmos pelos diversos grupos sociais.

(iii) No quadro dos processos de reprodução e transformação dos grupos domésticos, destacam-se,
numa terceira parte, entre os constrangimentos e as estratégias familiares mais relevantes em
vista da sobrevivência e da melhoria da sua condição social:
a) os processos de determinação e escolha de parceiros conjugais, em consonância com os
critérios geo-sociais, de modo a garantir as condições de reprodutibilidade social;
b) os modos de acesso à posse de recursos, quer pelos mecanimos competitivos inerentes ao
processo de devolução dos bens na herança, quer por outras vias como a poupança em vista
da aquisição de bens fundiários, educacionais ou outros;
c) os processos de reprodução, transformação e/ou reconversão das casas pela via migratória,
cujas poupanças obtidas em sectores não agrícolas têm funcionado como o meio de injectar
recursos de modo ora a satisfazer as necessidades dos respectivos grupos domésticos dentro
ou fora da agricultura, ora a melhorar as condições de vida e aumentar, se possível, o
potencial produtivo das respectivas explorações agrícolas.

(iv)Por e em articulação com os vectores de carácter sócio-económico, torna-se imprescindível, para


compreender e explicar o comportamento dos diversos actores presentes nas respectivas aldeias
analisar, na quarta e última parte, a componente político-ideológica. Neste âmbito salientam-se as
formas de dependência religiosa e política dos moradores crentes perante os seus patronos e
mediadores locais. Assim, sem anular a especificidade e a relativa autonomia da religiosidade e
demais crenças dos moradores, as suas normas e valores designadamente religiosos são
enquadrados nas relações de poder em termos históricos e actuais, sendo dado especial relevo ao
papel parapolítico e ideológico da Igreja. É todavia com a emergência do moderno Estado-Nação
que as colectividades e a maioria dos seus moradores, ao mesmo tempo que resistem, vão
progressivamente, através de mediadores competitivos, integrados e interessados, perdendo peso
e poder perante as diversas instituições municipais e estatais.
Problema, Método e Teoria

CAPÍTULO 2

«CONSERVADORISMO» E RACIONALIDADE CAMPESINA: QUE MODELOS?

Não há concordância sobre qual ou quais os factores determinantes para explicar o comportamento campesino.
As respostas – que nem sempre são dadas de maneira explícita – poder-se-ão subsumir em quatro modelos: o modelo
funcionalista, o modelo sócio-psicológico, particularmente da corrente behaviorista, o modelo de poder e o modelo
materialista-histórico.
Tradicionalmente as posições teóricas têm-se polarizado e radicalizado com base em determinados preconceitos
historicamente compreensíveis pelo facto de, por sua vez, estarem aquelas imbricadas com interesses e visões do
mundo opostas ou mesmo antagónicas: por exemplo, determinismo estrutural de carácter materialista ou idealista
versus interaccionismo não raramente voluntarista. Ora bem, se a acção dos actores sociais é condicionada por causas
estruturais, há, porém, no quadro interactivo de seus protagonistas sociais, uma maior ou menor margem de opção, o
que nos remete para a necessidade de analisar, tal como propõe Bader (1991:44 ss), os diversos níveis de estruturação
da acção social, quer numa base individual, quer, sobretudo, em termos colectivos. Neste prisma, embora com
desigual intensidade, os modelos referidos e, em especial, os três primeiros são criticados na medida em que, através
de conceitos como cultura, sentimento e poder respectivamente, se apresentam unilaterais, ultrapassam os seus limites
empíricos e elevam os referidos conceitos, sem qualquer mediação, a categorias explicativas de carácter universal,
constitutivo.

2.1. Campesinato e protótipos culturais-normativistas

Diversos autores têm procurado explicar tacitamente o «conservadorismo» camponês partindo dum tipo ideal
ontológico, em que o comportamento campesino é envolto numa roupagem moralizante. E, assim, são destilados
certos ethos, arquétipos ou personalidades-base1, por vezes contraditórias, tais como personalidade
campesinaindividualista e calculista face a uma outra, solidária e comunitarista, hospitaleira e dionisíaca2.
Políticos e ideólogos conservadores portugueses há que têm considerado os camponeses parcelares como
portadores de virtudes conservadoras tais como discrição, prudência e equilíbrio3.

Esta maneira de pensar tem sido desenvolvida basicamente pela corrente funcionalista. Omitindo com frequência
ou, pelo menos, não explicitando qualquer relação causal entre cultura e demais aspectos da vida social, a maior parte
dos autores funcionalistas, além de acentuar o carácter integrativo, autárcico e quase homogéneo das comunidades,
sublinha a supremacia da cultura como factor «superorgânico» e, como tal, explicativo das formas de acção
campesina. As colectividades camponesas funcionariam como um todo relativamente fechado, hierárquico e
harmonioso, em que cada uma das partes seria dependente da outra, detendo estatutos e preenchendo papéis
complementares. Como tal, com base num modelo decalcado da biologia, elas deveriam ser explicadas organicamente
em si próprias e a partir das suas instituições, na sua totalidade cultural monolítica e integradora (laços de parentesco,

1
Cf. Kardiner 1961:126 ss, Linton 1952:83 ss. No seu estudo sobre os camponeses de Montegrano na Itália, Banfield (1958:10,
83 ss) constrói a tese do «farnilismo amoral», segundo a qual cada família procura obter vantagens imediatas e se despreocupa do
bem comum e do cumprimento de determinadas regrasmorais, pressupondo que as demais famílias actuarão do mesmo modo.
Esta tese, que poderia também ser subsumida no modelo sócio-psicológico, foi objecto de pertinente crítica por Silverman (1968:
1 ss), Huizer (1972:30 ss), Guzmán (1983:57 ss) e Bell e Newby (1982:153 ss).
2
Em Portugal, sobre o protótipo individualista dito «endémico», cf., embora nem sempre explicitamente, Cunha 1932:110, Caldas
1947:116, 162, M. Pereira 1979:14; sobre a personalidade-base comunitarista e dionisíaca, cf. Dias 1984:15 ss, 315 ss, cujas
premissas surgem em vários de seus incondicionais seguidores tais como A. Lopes (1984:1-6).
3
Preto 1945:48-51, Salazar 1937 ll:137 ss, T. Pereira 1937:48, 142. Para exemplo do suposto protótipo naturalmente
«conservador» do povo português, cf. o discurso de Moura Relvas na Assembleia Nacional a 25-3-1938 (in Mónica 1978:116).
36
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

língua, religião, folclore), sem qualquer referência aos constrangimentos económicos ou à polarização de grupos e
classes sociais ou da sua relação com o Estado4. E, mesmo quando autores como Kroeber (1963:89 ss) ou Redfield
(1961:41 ss) não ignorem certa tensão entre a lógica das comunidades campesinas portadoras da «pequena tradição» e
os sistemas da «grande tradição» sediados na cidade, a sua interacção comunicativa é analisada mais em termos vagos
de complementaridade ou interdependência supracomunitária, nacional.

Esta tese é partilhada pelo próprio Dias (1984:315 ss), aliás na esteira de autores funcionalistas e adeptos de
estudos comunitários pelo chamado método de natureza psico-cultural e configuracionista tais como respectivamente
Linton (1952:21 ss), Kardiner (1961:9 ss) e Benedict (1934:59, 247 ss). Em termos durkheimianos, dir-se-ia que, em
contraposição à solidariedade orgânica, resultante das funções diferenciadas e interdependentes na moderna divisão do
trabalho nas sociedades modernas, os moradoresem comunidade, manifestando uma solidariedade mecânica ou por
similitude, partilhariam de uma identidade e de uma consciência colectivas, caracterizadas por um conjunto
relativamente coeso de sentimentos e crenças, de signos e símbolos, cuja ofensa ou transgressão acarretaria, na
consciência colectiva, estados fortes e emotivos tendentes a dirigir e a conformar com ela as forças e as energias
individuais e, eventualmente, a penalizar as condutas «desviantes» (cf. Durkheim 1977 I: 87, 131 ss). Para Durkheim
(1959:200) era justamente a conformidade com essa consciência colectiva e a consequente satisfação do indivíduo
com a sua própria sorte o que constituía uma das condições indispensáveis para a consolidação de determinada ordem
social.
Neste modelo cultural-normativista – incluindo diversos ingredientes tais como condutividade, pressão,
crescimento e difusão da crença generalizada, mobilização dos participantes, controlo social – poderá ser englobada a
posição estrutural-funcionalista de Smelser (1962:8, 12 ss) e sobretudo Parsons (1988:15, 494 ss), cujas componentes
básicas da acção social seriam analiticamente por ordem hierárquica os valores, as normas, a mobilização da
motivação individual para a acção organizada e os obstáculos ou as facilidades situacionais (informação,
qualificações, equipamento) para obter determinados objectivos concretos. A estabilidade do sistema exige que os
papéis e as respectivas acções dos protagonistas sociais, supeditando-se a um sistema de valores culturais comuns,
sejam empiricamente avaliados em função destes: «o "foco" da estrutura de um sistema de acção radica na dimensão
dos padrões de valor comuns da sua cultura» (Parsons 1967:339).
Há que reconhecer com certeza que a comunidade de território, os esquemas de percepção, as interacções e
vivências não só vão modelando as condutas dos moradores de determinada colectividade, como inclusivamente
(re)criam entre eles um determinado grau de identidade geo-social e cultural. A dimensão cultural e simbólica
constitui, com efeito, uma componente inerente a qualquer sociedade e, por isso, postular a sua centralidade na acção
humana não implica forçosamente assumir uma posição culturalista, subjectivista ou idealista, tal como o demonstrou
Geertz (1973:10 ss) e como amplamente, em contexto português, o explanou A. Silva (1984:20, 113 ss) na sua análise
e interpretação da cultura popular. Ou seja, na esteira da sociologia compreensiva e interpretativa de Weber (1978:4
ss), Geertz (1973:5 ss) assume um conceito semiótico de cultura no sentido de que os actores sociais não podem
tornar-se inteligíveis nem operar sem determinados feixes de significados socialmente estabelecidos; por outro lado,
eles constroem os seus códigos culturais, interpretam e atribuem significados à acção social sem que tal envolva
necessariamente perder de vista a diferenciação das mundividências e das condições históricas e sociais da sua
emergência, consolidação e eventual declínio. Ora o que as concepções culturalistas tendem a desvanecer ou até negar
são precisamente tanto as condições sociais de produção e circulação das culturas como o contraste e a polarização de
posições e representações dos actores em comunidade. Uma breve retrospectiva histórica das diferenciadas
mundividências dos grupos sociais, das inúmeras revoltas campesinas5e demais formas de resistência é, por si,
suficiente para desconstruir tais abordagens como ahistóricas e idealistas, mostrando assim os seus aspectos político-
ideológicos tendenciosos em proveitoda manutenção da desigualdade social estrutural. Mais, o facto de os actores de
diferentes grupos sociais convencionarem ou aceitarem aparentemente as diferenças de riqueza e poder perante
determinado statu quo tradicional não envolve, de modo algum, nem uma identidade de percepções nem um
assentimento cordial nem sequer uma homogeneização cultural, tal como o demonstraram Black (1972:624ss), Mintz
(1973:96 ss) e Scott (1985:284). Por conseguinte, contrariamente aos pressupostos parsonianos do «poder consensual»
(cf. Parsons 1966:240 ss) e, até certo às algo sobrevalorizadas bases não coercivas de legitimidade defendidas por

4
Neste ou semelhante parâmetro teórico são de referir, entre outros, Kroeber (1963:92 ss), Le Play (1982:240 ss), Malinowski
(1944:38, 158 ss), Linton (1952:11 ss) e, de certo modo, Pitt-Rivers (1961:76 ss), os quais foram sujeitos a fortes críticas
respectivamente por Steward (in Silverman 1983:20), Eizner (1972:319 ss), Jollivet (1974a II:157 ss), Seve (1975:108 ss) e
Gilmore (1980:2 ss). Em Portugal, é de relevar Dias (1961:5 ss e 1964:81-83), cuja tese seria igualmente objecto de análise crítica
por Ruivo e Leitão (1982:52 ss).
5
Sobre revoltas e revoluções camponesas de carácter antifeudal e, mais tarde, anticapitalista, cf. Mendras 1976:114 ss, Moore
1966, Huizer 1973, Wolf 1974, Scott 1976 e 1985, Skocpol 1979:7-96.
Problema, Método e Teoria

Simmel (1977:151 ss), Swartz et al. (1966:14 ss) e, até certo ponto, por Weber (1978: 31-38) os actores subordinados
ou dependentes, sendo não raramente induzidos a consentir a contragosto, nem sempre nem tão amiúde aceitam no seu
íntimo estruturas, grupos ou indivíduos com poder.
Afirmar que determinada sociedade ou comunidade possui ou manifesta determinada orientação cultural e/ou
certo tipo de mentalidade, sem especificar as condicionantes contextuais e processuais, os significados e as motivações
diferenciadas dos actores sociais e de seus grupos de pertença, torma-se um exercício especulativo, contraditório e
estéril. No caso vertente, tal representaria ontologizar determinados tipos ideais de carácter funcional ou reduzir a
acção camponesa a determinadas personalidades-base ou modais de tipo «natural» ou a certos lugares comuns tais
como «espírito do povo». Por exemplo, considerar como fenómenos pan-humano e universal o protótipo do camponês
«invejoso», independentemente dos processos de (des)apropriação do excedente, de alienação de recursos ou
competição pelo seu controlo, representaria, como refere Faris (1972:190), uma forma de desviar a atenção do local de
exploração e/ou opressão e justificar, sob um «funcionalismo espúrio», o domínio de determinados grupos sociais.
Com efeito, uma tal abordagem constituiria propriamente uma variante do pensamento metafísico ou ahistórico, que
baseia a acção humana em determinados estereótipos, ou seja, numa espécie de caracteres eternos ou seculares,
inerentes à «natureza» humana, tais como egoísmo e ciúme face a altruísmo e comparticipação.
Ocultas sobre um descritivismo analiticamente pouco ou nada fecundo e/ou implícitas em determinados lugares
comuns, estas construções apriorísticas acerca do campesinato são apresentadas com explicação daquilo que
justamente há que explicar: ora a conduta quietista, ora a acção revoltosa dos camponeses

2.2. O modelo sócio-psicológico

Mais que um modelo, mais adequado seria enunciar diversos modelos psicológicos, os quais, não raro, diferem
entre si tanto ou mais que a abordagem formalmente psicológica perante outra de carácter sociológico.
Uma das explicações correntes mais tradicionais, de teor psicológico, da acção colectiva, residiria no facto de os
actores sociais, quando enquadrados em manifestações gregárias e anónimas, serem susceptíveis de apresentar um
carácter explosivo, irracional, anormal e patológico. Outra vertente psico-sociológica assinalável seria constituídapela
teoria psicanalítica em diversas tonalidades (freudiana, junguiana) até à teoria crítica sustentada por fundadores da
Escola de Francoforte como Horkheimer e Adorno (1979:37 ss, 55 ss). Se para a psicanálise a conduta dos indivíduos
seria explicável em função do grau de satisfação ou frustração do inconsciente erótico individual ou colectivo, para os
referidos autores da teoria crítica determinadas ideologias e comportamentos repressivos radicariam em determinado
tipo de personalidade autoritária frustrada e manifestar-se-iam em preconceitos, na pseudo-cultura, na burocracia e na
tecnocracia.
Modernas teorias psicológicas, em particular a behaviorista, começariam por abandonar a tipologia clássica por a
considerarem rígida, fixista, senão mesmo metafísica. Embora ainda influenciada pelo funcionalismo, a corrente
behaviorista reconheceu uma maior variabilidade do comportamento humano. É, com efeito, numa perspectiva psico-
social que certos cientistas sociais como Davies (1962:6 ss) e Gurr (1970:13 ss) procuram explicar os comportamentos
políticos a partir da convergência ou discrepância entre expectativas e gratificações ou entre as relativas privações dos
actores sociais e as suas capacidades de realização presente ou futura de determinadas necessidades, desejos e/ou
objectivos materiais, psico-sociais e outros. Assim, a explicação do comportamento humano, sobretudo quanto ao
eclodir ou não de situações revolucionárias, assentaria em variáveis mensuráveis, que forneceriam a medida de
satisfação--insatisfação, apatia-rebeldia, coragem-angústia, frustração-agressividade. Estes «estados mentais» seriam,
por sua vez, operacionalizados em dete1minadas variáveis de estratificação tais como rendimento, educação, estilo de
vida, cuidados médico-sociais. E, assim, chegar-se-ia à relação causal entre as expectativas e os sentimentos
correspondentes à posição de cada actor social no sistema de estratificação e a sua acção social6. Aplicadas aos
camponeses, as premissas deste modelo de acção de tipo eruptivo implicariam que, situando-se estes nos escalões
inferiores da pirâmide da estratificação aldeã em relação à posse de meios de produção (terra, gado), mais
descontentes e, portanto, mais (pre)dispostos ao inconformismo e à revolta seriam. De resto, segundo Davies (1962:8),
mais que a privação física de bens seria ora a insatisfação, ora o medo da perda abrupta da relativa prosperidade
adquirida o que condicionaria a acção dos actores sociais. Expectativas emergentes mas goradas de melhoria social
constituiriam assim a pedra angular de movimentos, revoltas ou inclusivamente revoluções sociais.

6
Além dos autores já referidos, cf. ainda Lopreato e Hazelrigg (1972:22 ss) e sobretudo Smelser (1962:8 ss). Segundo os
defensores do modelo sócio-psicológico, embora quem detenha um estatuto mais elevado e possua mais recursos tenderá a ser
mais confonnista perante o statu quo, convém todavia precisar que a insatisfação e a eventual revolta depende menos da privação
física de bens do que da frustração de expectativas criadas. Contra esta abordagem sócio-psicológica, cf. a cerrada crítica de Aya
(l 979:50 ss).
38
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

A uma certa tipologização psicológica ou moral da acção social não escapam alguns proeminentes sociólogos
como Homans (1983:33 ss) e, em particular, estudiosos do campesinato, ao qual seriam atribuídos determinados
síndromas ou ethos psico-sociais, morais ou culturais autocentrados: o «amoral-familista» (Banfield 1958:83), o de
«encolhido» (Erasmus 1968:69 ss), o de «invejoso» (Foster 1972:165 ss) ou o de «modesto-invejoso» (Tolosana
1973:833). Estes síndromas que, numa estratégia niveladora, seriam, segundo Foster (1965:301 ss), susceptíveis de,
excepcionalmente, encaminhar os actores sociais para uma conduta colectivizante, têm, contudo, regra geral, um efeito
de ensimesmamento «familista» ou involução individualista. Assim, com o destaque dado, por exemplo, ao síndroma
de «encolhido», pretende-se dizer que o camponês, ao ocultar ou subestimar os seus próprios recursos ou, pelo menos,
ao evitar alardear os seus progressos, não representaria uma ameaça para a comunidade e, em particular, para os
vizinhos que, deste modo, não o incomodariam. Por sua vez, ainda em consonância com o ethos de «invejoso» ou
«modesto-invejoso», se alguém progride, só o poderia fazer, em princípio, a expensas do vizinho, inibindo assim
qualquer atitude de acção colectiva. Todavia, se, para uns, o simples facto de os grupos domésticos se sentirem real ou
imaginariamente afectados pelo «mal de inveja» intensificaria o potencial conflitual, para outros tal reforçaria a
igualdade e a coesão comunitárias. Em Portugal, Cabral (1989:59 ss), assumindo uma orientação simbólico-
cognitivista, tende também a prototipificar psico-moral e culturalmente o camponês minhoto que, em contraste com o
protótipo cultural burguês, estaria impregnado de traços idiossincráticos e homogeneizantes. Estas configurações
conteriam, quando muito, certas dicotomias, entre as quais algumas de tipo maniqueísta tais como a retradução acrítica
do benfazejo «princípio do bem» como força social (v.g. a religião católica, o lado direito) versus o mortal «princípio
do mal» enquanto força «anti-social» (v.g. a bruxa, o lado esquerdo).
Também os defensores da teoria da modernização e dos obstáculos à sua implementação entre os camponeses
tendem a imputar a inércia campesina a determinadas predisposições hostis à inovação e ao espírito associativo e
empresarial e até a atribuir, por vezes, situações de atraso a estados patológicos dos actores sociais7.
Os defensores dos arquétipos culturais ou protótipos socio-psicológicos, assumindo explícita ou implicitamente
premissas do modelo liberal e cognitivista e procurando explicar as condutas dos camponeses, fazem-no a partir da
(mundi)visão ou imagem (emic) que estes possuem acerca das quantidades finitas de bens valiosos (terra, saúde,
amor). Estes autores, ao fazer tábua rasa não só da sociogénese dos traços psico-morais, dos rituais e das concepções
simbólicas como também dos processos de diferenciação e reclassificação sociais mediante o controlo de recursos,
tendem a apresentar as configurações sócio-psicológicas como entidades «objectivas» empiricamente dadas e
inamovíveis, aproximando-se assim, sem assumi-lo, da abordagem funcionalista centrada nos arquétipos. Ou seja, ao
centrarem-se nas manifestações psico-sociais empíricas, esbatem ou relegam para segundo plano as causas histórico-
estruturais da acção e do próprio imaginário colectivo.

Tanto a explosão violenta como a passividade «amorfa» de uma massa de actores camponeses não podem ser
atribuídas ao carácter irracional ou patológico de seusprotagonistas, uma vez que, tal como aponta Bader (1991:24 ss),
seria susceptível de ser questionada como unilateral, individualista ou elitista uma racionalidade assumida como
normal, paradigmática e universalmente válida. Por outro lado, se o papel dos líderes «naturais» do campesinato é
bastante decisivo para moldar a acção dos camponeses, sobretudo dependentes, esta não é redutível nem à simples
manipulação dos camponeses nem, tal como argumenta Migdal (1974:61), a motivações ou valores especificamente
camponeses. Por fim, a explicação da acção apática ou revoltosa dos camponeses não pode ser inferida da simples
soma de indivíduos satisfeitos ou insatisfeitos nem tão-pouco do estatuto que se possui na ordem social. Isto implica
que, tal como o reconhece o próprio Davies (1962:6), não há necessariamente relação directa de causa-efeito entre a
pobreza ou privação relativa e a eventual revolta subsequente ao conflito sócio-político.
O «conservadorismo» e o individualismo campesinos não são de modo algum resultantes nem da abundância de
terra, nem dum nível de vida confortável. Segundo os inquéritos agrícolas do INE de 1952-54 e 1968, 2% (em 1952-
54) e 3% (em 1968) das empresas agrícolas com mais de 20 hectares ocupavam respectivamente 59% e 61 % da
superfície, enquanto 98%, em 1952-54, e, em 1968, 97% das «empresas» com menos de 20 hectares apenas
dispunham de 41 % e 39% de terra respectivamente. Ora estes dados apontam para uma forte desigualdade na
distribuição da terra em desfavor dos camponeses parcelares. Porém, mais que o longínquo latifúndio do sul, para os
camponeses minhotos contavam as diferenças internas no seio da aldeia, as extorsões do sobretrabalho através de
impostos, rendas e juros e, sobretudo, tal como o sublinham diversos autores (Moore 1966:498 ss, Wolf 1974:288 ss,
Scott 1976:7 ss), o grau e o modo como essa extorsão afectava ou não a sua subsistência, a sua posição social o poder

7
Esta tese é defendida, entre outros, por Rostow (1964:14 ss), Lemer (1958:43 ss), Rogers (1969:292 ss). A tese da modernização
em Portugal é explícita ou implicitamente assumida e propugnada por Caldas (1964:466 ss), H. Barros (1972:8-12, 41), M. Pereira
(1979:14 ss). Entre os seus críticos, são de referir Frank 1967:20 ss, Huizer 1970:303 ss, 1972:19 ss, Lloyd 1971:63 ss, Tipps
1973:199-226, Guzmán 1983:54 ss e, em Portugal, Baptista 1981:63 ss, Silva e Van Toor (1982:42 ss), Carvalho 1984:111 ss,
139-142.
Problema, Método e Teoria

e as suas autonomias ou solidariedades locais.

O modelo psicológico moderno, nalgumas das suas variantes, acentua apenas um dos momentos que está, em
maior ou menor medida, normalmente presente em cada acção humana: os processos de motivação, as disposições e
os tipos de orientação na acção facultados pela experiência e as redes de interacção. Com efeito, estes factores
contribuem, como referem Bourdieu (1979:122 ss), Bader (1991:69, 166 ss) e Benschop (1993:382 para explicar a
diversidade de hábitos, representações e estilos de vida entre actores originários ou situados na mesma condição
social, do mesmo modo que, tal como sublinham Thompson (1982:9 ss) e Scott (1990:113 ss), é nas identidades e
experiências historicamente vivenciadas onde medeiam e se repercutem os condicionamentos objectivos, operantes
nos processos de formação, consciencialização e acção de classe. A este nível, a (pre )disposição psíquica dos
chamados «estados mentais» contribui, sem dúvida, à manutenção ou à disrupção de determinadas situações políticas,
sendo, por exemplo, de relevar respectivamente os sentimentos de resignação fatalista ou o receio de perder posições e
benefícios adquiridos. Contudo, do ponto de vista analítico e estruturante da acção, os defensores do modelo sócio-
psicológico, ao não considerarem os níveis social e organizacional como hierarquicamente prioritários, não se
encontram em condições de explicar como é possível que situações semelhantes gerem movimentos diferentes e até
contrários. O modelo da relativa privação acaba por não explicar, por exemplo, por que éque, em determinadas
situações históricas, apesar da pobreza e do desemprego, do analfabetismo e da carência de cuidados médicos e
sociais, há um grande descontentamento, mas não se verifica qualquer levantamento ou revolução. Pelo contrário, tais
situações, conduzindo amiúde a sentimentos de impotência, desespero ou até resignação com o statu quo, não são
suficientes para a mobilização política. Tal como Scott (1976:4) observa, se o descontentamento ou a raiva fossem
suficientes para um levantamento, então todo o chamado Terceiro Mundo estaria ardendo em chamas.

2.3. Modelo de poder

Embora com diferentes tonalidades, cientistas sociais há, sobretudo politólogos, que consideram o
factor poder como a chave explicativa da acção sócio-política das classes sociais, bem como dos diferentes
resultados políticos a nível local ou nacional. Tais acções e efeitos são, por sua vez, resultantes do jogo
interactivo entre o desenvolvimento da política do Estado-Nação e os interesses dos respectivos grupos
sociais implicados e/ou afectados.
Assim, no caso vertente, à acção campesina, seja ela resignada, revoltosa ou revolucionária, seria
subjacente na arena política uma estratégia de poder consciente, calculada, cuja realização estaria
dependente do grau do próprio «poder táctico» (organização e mobilização, recursos económicos e outros)
em relação a outras classes. As diferentes situações políticas (movimentos, revoluções) seriam o resultado de
relações de poder de umas classes em face doutras e eventualmente, articuladas ou não com factores
externos, das respectivas coligações feitas entre si8.

A orientação sociológico-política, ao partir das relações de poder para explicar a acção dos camponeses,
tem uma base mais realista que as explicações anteriores. Não obstante o conceito de poder ser entendido
num sentido demasiado lato, o modelo estratégico de poder oferece certamente elementos válidos para
compreender e explicar a acção dos camponeses. O patrocinato9, enquanto expressão de poder e de controlo
sobre recursos, é, sem dúvida, uma base que permite aos seus detentores não só dispor das fontes de riqueza,

8
Com diferentes variantes, cf. Dahrendorf 1959:165 ss, Wolf 1974:293 ss, Blok 1974:6 ss, Aya 1979:40 ss, Foucault 1979:167 ss.
Skocpol 1979:11 ss. Foi tendo em conta o maior «poder táctico» e a mobilidade dos médios camponeses que Wolf (1974:300 ss)
lhes reconheceu uma maior «liberdade táctica» como base de rebeliões camponesas: «É justamente devido ao próprio desejo de
manter-se tradicional que o camponês médio ou livre se torna revolucionário» (Wolf 1974:301). Moore (1966:453 ss), embora não
assuma uma explicação monocausal, atribui à relação de poder entre classes sociais uma notável força explicativa das diversas
configurações sócio-políticas. A um nível micro-sociológico, também Berger (1972:273 ss, 1975:25 ss), no seu estudo de duas
aldeias na Bretanha, considera o factor político e, especificamente, o modo e o tipo de organização aldeã a variável condicionante
dos diferentes resultados e efeitos políticos constatados em cada uma delas.
9
Sobre o patrocinato, cf. 3:2.2 e, sobre o conceito de poder, cf. Weber 1978:53. Acerca do patrocinato, enquanto mecanismo de
mediação e poder, cf. Bailey 1970:41 ss, 167 ss, Weingrod 1977:42 ss, Boissevain 1966:18, 1977:89-90 e, enquanto uma das
fontes de desigualdade social tendo por base o conceito de controlo sobre recursos sobretudo indirectos, cf. Bader e Benschop
1988:149 ss.
40
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

entre as quais a força de trabalho, mas também organizar a distribuição dos bens de consumo, o que,
consequentemente, reforça a sua própria posição económica.
Dos trabalhos de alguns historiadores10 se pode inferir que, em relação às colectividades rurais
designadamente portuguesas, a relativa autonomia local constituiu a melhor garantia para limitar ao mínimo
possível a subtracção do excedente por parte de espoliadores ou intrusos, tais como senhorios, comerciantes,
prestamistas e representantes do governo central ou funcionários camarários. Nas primeiras tentativas de
emancipação campesina da servidão durante a Reconquista (séculos IX-XIII), nos levantamentos no século
XIX e nas relações políticas sob a I República, desempenhou um papel decisivo, nas estratégias de
sobrevivência e resistência dos camponeses parcelares, o equilíbrio instável, causado pelas contradições
entre as fracções políticas dominantes e subdominantes.

A análise dos processos sociais exige que, além de serem identificadas as estratégias e as decisões dos
protagonistas, se tenham em conta, como refere Almeida (1984:585 ss), os efeitos derivados dos lugares
«impessoais» susceptíveis de reproduzir as preexistentes assimetrias sócio-económicas. Por outro lado, tal
como sublinha Bader (1991:32 ss), o modelo de poder, na sua reacção anti-economicista e anti-estruturalista,
além de subestimar a dimensão cultural e identitária dos grupos sociais, restringe o conflito ao conflito
político e assume este como substitutivo do económico. Acresce ainda que tal modelo, concedendo
demasiado peso às intenções ou opções estratégicas dos actores sociais, parte implicitamente dos
pressupostos (neo)liberais e das teorias da decisão e do jogo, segundo as quais cada classe e seus membros
sabem, em sentido estratégico e táctico, o que melhor lhes convém, como se na base estivesse sempre
subjacente uma espécie de sabedoria política ou astúcia calculada. Ora a experiência histórica mostra-nos
que nem sempre assim é necessariamente, tendo-se verificado casos de suicídio político no plano, quer
individual, quer colectivo. Os camponeses nem sempre dispõem de suficiente informação e conhecimento
fundamentado das diversas situações estratégicas e, tão-pouco, duma organização adequada, a nível
nacional.
De modo geral, os camponeses, empiricamente, conhecem bem quais os seus próprios interesses. No
entanto, por interferência ou bloqueio de factores normativos ou ideológicos (por exemplo, a religião oficial
estabelecida) podem ora recorrer a soluções de carácter escapista, involutivo ou «familista», ora equivocar-
se quanto ao carácter político dos seus «protectores» locais ou «salvadores» nacionais, bem como quanto à
força dos seus adversários.
A ideia tácita duma balança de poder, que à partida poderá inclinar-se para qualquer dos lados, não é –
salvo em situações excepcionais de ruptura – aplicável à posição dos camponeses parcelares, os quais são,
em regra, dominados e, perante o poder, se encontram em situação de impotência política.

2.4. A abordagem marxista tradicional

Segundo a abordagem materialista histórica, a acção camponesa explica-se, ora partindo de categorias
derivadas dos modos de produção feudal ou capitalista, ora aceitando a especificidade da economia ou do
modo de produção camponês e a sua articulação com outros modos de produção. Mas o que se entende por
modo de produção?
Para alguns autores marxistas, sobretudo franceses11, o modo de produção é a articulação complexa das
instâncias económica, política e ideológica. Contrariamente a esta concepção demasiado lata, outros autores
como G. Cohen (1978:28-36) e Bader et ai. (1980:40 ss) entendem modo de produção como uma totalidade
específica estruturada ou unidade coerente de determinado estádio de desenvolvimento das forças produtivas
e das relações de produção. Nesta óptica, seria o desenvolvimento das forças produtivas que constituiria o
quadro limitativo-permissivo das relações de produção, nomeadamente das instâncias político-

10
Silbert 1978 I:152 ss; G. Barros 1945 IV:53-63 e Herculano s/d VII:191 in A. B. Coelho 1981:29-33; Mattoso 1985:234, 268,
278, 334, 453 ss e 1985a: 18 ss.
11
Althusser 1972:87 ss, Althusser e Balibar 1973 II:91 ss, Godelier 1973:139 ss, Poulantzas 1975:22. Ver também Anderson
1974:403 ss, Karsz 1974:176-193.
Problema, Método e Teoria

ideológicas12.Importa, porém, referir que, para estes e outros autores (neo)marxistas, se, de facto, entre as
forças produtivas e as relações de produção, não existe qualquer relação simétrica ou ziguezagueante, tal não
significa que a acção seja mecanicamente determinada, conhecendo, pelo contrário, diversos níveis de
estruturação, como veremos.

Embora Marx não tenha desenvolvido, de modo sistemático, uma teoria das classes e, muito menos,
uma teoria sobre o campesinato por considerá-la uma classe periférica ao modo de produção capitalista
(2:6.2), uma das suas preocupações analíticas fundamentais centrou-se nas contradições estruturais do
capitalismo e na inerente acção polarizadora das suas classes sociais nucleares - burguesia e proletariado.
Caber-lhe-ia basicamente a este último a tarefa histórica de organizar-se, transmutar-se de «classe em si»
para «classe para si» e, assim, revolucionar a sociedade e o Estado burguês, a fim de implantar e fazer
triunfar o socialismo. Neste processo tanto os fundadores do marxismo como, sobretudo, os seus principais
seguidores como Lenine (1977) atribuíram ao campesinato um papel diferenciado, com segmentos a aliar-se
à burguesia e outros ao proletariado conforme a sua posição mais próxima ora de uma ora de outro e a
respectiva conjuntura sócio-política. A este respeito Marx (1970) chega a analisar a acção sócio-política do
campesinato francês sob a dominação napoleónica, fazendo uso de algumas ideias que assentam, por um
lado, no funcionamento atomístico da economia campesina e, por outro, em factores político-ideológicos
bloqueadores de uma viragem revolucionária e favoráveis a uma restauração da burguesia mais
conservadora e retrógrada. Daí que, segundo Marx (1970:133), se, por um lado, as isoladas condições sócio-
económicas de vida dos camponeses faziam deles uma classe, por outro, na medida em que não possuíam
nem consciência nem organização políticas, a nível nacional, não formavam uma classe. Seriam, portanto, o
apego ao seu pedaço de terra e a ilusão ideológica de se sentirem representados no bonapartismo autoritário
os factores que explicariam a postura «conservadora» dos camponeses.
Na sequência da tradicional abordagem marxista, ainda recentemente, autores marxistas como Jollivet
(1974:236, 257 ss) tendem a remeter a conduta individualista dos camponeses para a sua economia parcelar,
atomizada e o seu respectivo tipo de tecnologia rudimentar.
As condições sociais, marcadamente as económicas, constituem um factor necessário mas não suficiente
para explicar o comportamento político. Tal como constata Bennema (1992:112 ss), referindo-se ao Alto
Douro, os jornaleiros, incluindo os totalmente despossuidos de terra e com baixos salários, manifestam
posições políticas de apoio à direita.
Na senda de Bourdieu (1989: 133 ss) e em sintonia com alguns marxistas críticos como Bader (1991:22
ss, 108 ss) e Benschop (1993:115 ss), importa reconhecer que o apriorismo estrutural e economicista da
ortodoxa análise marxista das classes, além de denotar uma concepção tendencialmente ontologizante,
levou-o não só a ignorar ou menosprezar características das dimensões organizacional e interactiva e, em
especial, alguns traços de identidade geo-social e cultural intergrupais, como também a reduzir
indevidamente outras linhas de oposição ou ruptura ao conflito de classes. Por outro lado, os
posicionamentos sócio-políticos «conservadores» do campesinato - amiúde não congruentes com a
dicotómica visão burguesa ou proletária sob a dominação capitalista - eram explicados ou a partir de
atávicos e inconscientes resíduos feudais ou a partir de processos de manipulação e mistificação dos
aparelhos ideológicos do Estado e seus respectivos discursos. De um modo um tanto curioso, na tradicional
e dominante interpretação marxista iam de mãos dadas um economicismo e uma ideologização ou
inclusivamente uma moralização dos actores sociais, em particular dos camponeses.

12
Para esta interpretação concorrem não só posições recentes de autores como Tepicht (1973:17), Jollivet (1974a:199 ss), Mollard
(1977:16-34), Meillassoux (1977:10 ss) como as próprias considerações rebuscadas de marxistas estruturalistas como Althusser
(1972), Godelier (1973), como ainda inclusive alguns escritos de Marx (1974a, 1974:521) e de Marx e Engels (1972 I:21-30, 78).
A este respeito, convém entretanto referir que, sem entrar agora em linha de conta com a caricaturização do marxismo por
bastantes adversários e vulgarizadores do mesmo, não há unanimidade entre os marxistas. Enquanto a tendência tradicionalmente
dominante, codificada e ossificada pelo estalinismo, tem acentuado a determinância do económico, para outros como Lukacs
(1976:27 ss) e Llobera (1979:252), o económico, na concepção marxista da história, seria, entre outros, um factor prevalecente,
devendo o determinismo tecno-económico ser mais justamente imputado à tendência revisionista do marxismo presente
designadamente em Bernstein.
42
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

2.5. Posição: balanço e perspectiva

Um dos dilemas que, atravessando as diversas correntes nas ciências sociais, ainda não se apresenta
totalmente resolvido é o da relação entre estrutura e acção. Sem deter-me agora sobre esta questão que tem
sido debatida desde os clássicos até hoje, creio ser pertinente assumir a distinção de Luhman (1982:71 ss),
independentemente dos pressupostos neofuncionalistas deste, acerca dos níveis de estruturação da acção:
social, organizacional e interactivo. Aceitando estes níveis de abstracção mas sem cair no enredo
(neo)funcionalista, vem-se, em todo o caso, esboçando um caminho de solução graças às contribuições
teórico-metodológicas sobre a causalidade estrutural por parte de autores como Bourdieu (1979:112 ss,
1980:87, 233 ss), Giddens (1984:1 ss), Bader e Benschop (1988:61 ss), Bader (1991:41 ss). Evitando um
ecleticismo estéril, estes autores procuram, por um lado, superar a «física social» ou a «mecânica do sistema
dado» propugnada pelas diversas espécies de estruturalismo e, por outro,acautelar-se contra a simples
«fenomenologia social» ou a moda da «lógica das estratégias» (Bourdieu 1980:234 ss) tão do agrado das
teorias dos jogos e, até certo ponto, do transaccionalismo e do interaccionismo simbólico. As perspectivas
orientadas para o actor são legítimas e pertinentes, desde que circunscrevam o âmbito específico de seus
objectivos ou articulem esse nível de análise com os demais, de modo a não obnubilar os constrangimentos
organizativos e sócio-estruturais.
A acção política concreta, se, por um lado, não deve ser interpretada a partir de um modelo monocausal
designadamente pela sua conotação ontológica, tão pouco pode sê-lo a partir de uma simples soma ecléctica
de diversos factores. Tal como foi referido, a acção factual depende e é determinada mediante a acumulação
e a articulação dos diversos níveis de estruturação: societal, organizacional e interaccional. Por outro lado, o
apelo a um enfoque pluridimensional não exclui por certo a necessidade de hierarquizar prioridades
analíticas nos níveis e factores referidos, reconstruí-los, validá-los teoricamente e testá-los empiricamente.

Às diferentes atitudes políticas dos camponeses parcelares (revolta, resignação, repulsa ou retraimento)
está subjacente a presença ou a ausência duma determinada medida de efectivo poder de disposição
(Verfügungsgewalt ou tactical power), quer quanto aos recursos directos nomeadamente as condições de
produção e seus resultados, quer quanto aos recursos indirectos, em especial os relacionados com as
oportunidades de prestígio e poder13. Tal constitui um requisito fundamental e indispensável para a
segurança e a sobrevivência dos camponeses, assim como, eventualmente, para a melhoria da sua posição
social. Neste sentido, haverá que demarcar-se das teorias homogeneizantes e ideologizantes que tendem a
pautar e explicar a conduta campesina a partir da força ou do impacto das ideologias dominantes sobre
classes dominadas como o campesinato. A este respeito sobressaem as contribuições críticas de
Abercrombie e Turner (1978:149 ss) e, em particular, a incisiva e pertinente análise de Scott (1985:29, 241
ss) sobre as diferenciadas formas de percepção da própria realidade pelos actores camponeses e suas
«formas quotidianas de resistência» às práticas e às ideologias das classes dominantes. A tese central deste
último autor consiste em postular como princípio explicativo da acção sócio-política campesina a «ética de
subsistência». Segundo as premissas da «ética de subsistência», conta mais o primado da segurança de
subsistência e a estabilidade de um rendimento mínimo que a quantidade do excedente extraído pelo
proprietário fundiário ou outra instância. É contudo a sua noção moral de «justiça económica» o que,
juntamente com outros factores (nível de organização, aliança com outras classes, capacidade repressiva das
classes dominantes), estabelece os limites da exploração, considerando tolerável ou não uma dada situação
até ao ponto de ela se tomar ou não explosiva. Tal posição é, de certo modo, reforçada por autores como
Lipton (1968:341 ss), segundo o qual quanto mais pobres forem os camponeses, mais e compulsivas serão as
suas prioridades relativas à subsistência e maior a aversão ao risco em termos económicos e políticos. As
suas veladas ou abertas formas de resistência consistiriam, como explicita Scott (1985:290, 1990: 119 ss) em

13
Cf. respectivamente Weber 1978:71 ss, Wolf 1974:299. Cf., a respeito da luta pelo controlo do pedaço de terra e do excedente
produzido, igualmente Kula 1976:133 ss, Scott 1976:5-6, Jenkins 1979:40, 96, 149, 151, Bader e Benschop 1988:130 ss. Para
situações de ausência ou ténue presença de poder na esfera pública, Scott (1990:114 ss) constrói o conceito de «registos ocultos»
dos actores sociais dominados para designar os seus ressentimentos, manifestações de agravo e protestos silenciosos, ocorridos na
esfera doméstica e/ou informal, esfera esta denominada por Giddens (1984:124 ss) de «região de rectaguarda».
Problema, Método e Teoria

mitigar as extorsões ou exigências de exploradores e/ou dominadores internos, avançar os seus próprios
pedidos e reclamações ou, simplesmente, e, em regra, sob a forma de «registos ocultos» fora da esfera
política, questionar as interpretações correntes das situações e dos acontecimentos. Já Kula, a propósito das
acções «conservadoras» dos camponeses polacos em contexto dito feudal, as interpretava como formas de
resistência anti-senhorial: «Nessa situação, em que o camponês deparava comum atentado às suas
condições de vida,o seu tradicionalismo – por paradoxal que pareça –era uma forma de luta de classes»
(Kula 1976:70).
Tendo em conta estes pressupostos e considerandos é possível asseverar que a acção concreta dos
actores sociais no espaço rural minhoto e, em particular, no das duas aldeias, não só é diferenciada por grupo
social e/ou tipo de casa, como é variável conforme o lugar social que aqueles ocupam em diferentes
formações históricas e, mais concretamente, na comunidade onde vivem. A atitude de passividade e
resignação tornar-se-á compreensível, tendo em conta a posição objectiva de vida – um conceito mais lato
que o de posição de classe, tal como defende Bader (1991:102) na sua crítica a Bourdieu – e, em particular,
as relações de poder local desigual, mormente sob a forma de relações de dependência perante os
mediadores e patronos locais sobretudo eclesiásticos.
O «conservadorismo» dos camponeses parcelares é determinado socialmente e, neste sentido,
coincidem as abordagens marxista e weberiana. Porém, metodologicamente considerada, a acção
«conservadora» não é todavia redutível à acção social «compreensível» de Weber, como notam Bader e
outros acerca dos limites da teoria da acção weberiana: «…neste conceito de acção racional,
“compreensível”, encontram-se irrevogavelmente inseridas relações sociais estruturais, que, por seu lado,
não se deixam reduzir à acção “compreensível”» (1980:108).14
Com efeito, constatam-se no chamado conservadorismo camponês actos não intencionados que,
provindo de e sendo determinados por factores estruturais endógenos e exógenos, não são redutíveis à acção
«compreensível». A diversificada acção campesina não pode ser analisada sem ter em conta os
constrangimentos da sociedade dominante e, em particular, a posição e a correlativa forçasócio-política das
demais classes sociais. Nesta perspetiva poder-se-ia afirmar que quanto maior for o atraso do modo de
produção capitalista (em particular, o papel da burguesia industrial), maior será a probabilidade de uma certa
medida de autonomia camponesa, assente no seu modo de produção. Desde que os camponeses parcelares se
encontrem relativamente libertos do domínio feudal, mas sem estarem todavia integrados no modo de
produção capitalista – ou então em grau muito reduzido –, será verosímil constatar neles uma atitude política
passiva e esquiva. Esta asserção, pressupondo a necessidade de ter em conta a posição relativa do
campesinato perante outras classes e o próprio Estado-Nação, surge reforçada por clássicos estudiosos do
campesinato tais como Moore (1966:457 ss), Wolf (1956:1065 ss), Silverman (1970:329 ss), Alavi (1973:38
ss), Migdal (1974:207 ss), Scott (1976:4) e sobretudo Shanin, um dos mais abalizados peritos do
campesinato: «A existência duma relação entre as características básicas da sociedade camponesa e a sua
resistência passivaparece evidente» (1971:259).
Em suma, também os camponeses no noroeste de Portugal, sendo directa ou indirectamente explorados
e oprimidos mas estando, em regra, desprovidos de organização colectiva adequada e doutras condições para
assumir o confronto público, têm-se pautado, em regra, por formas de resistência predominantemente
esquivas e passivas e por estratégias alternativas de tipo familista. Quer os resultados obtidos no trabalho de
campo, quer os elementos recolhidos da já referida historiografia portuguesa apontam para a seguinte
hipótese: os camponeses, procurando minimizar os riscos, esforçam-se por

a) resistir à sua aniquilação económica e política e sobreviver como camponeses ou noutra


condição social autónoma similar, reduzir dependências e/ou obter um mínimo de segurança
existencial através do controlo de recursos disponíveis, nomeadamente conquistando ou
preservando pelos meios ao seu alcance o(s) seu(s) pedaço(s) de terra próprio(s) ou

14
Cf também Jollivet l 974a:205 Tepicht l 973: 19, 41 ss. Sobre os limites da teoria da acção, cf. ainda (1976:15-23) e Bader et al.
(1980:99-l 3, 313), embora, em posteriores obras. Bader (1988, 1991), distanciando-se um tanto de sua posição anterior, incorpora
contribuições de outros paradigmas e constrói uma síntese teórico-metodológica mais enriquecedora e fecunda para a pesquisa
empírica.
44
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

arrendado(s) e, eventualmente, as terras comunais;


b) deitar mão e/ou maximizar todas as oportunidades palpáveis a nível, já económico, já político,
a fim de melhorar as suas condições de vida familiares e consolidar ou reconverter, de modo o
mais autónomo possível, a sua posição, bem como a de seu(s) filho(s) herdeiro(s)/a(s) na
colectividade ou fora dela.

2.6. Uma racionalidade específica mas adaptativa

Uma das razões da dificuldade de compreensão do comportamento campesino é o desconhecimento,


senão o desprezo, do funcionamento do seu tipo específico de economia, a respeito do qual observou
Chayanov: «Na teoria moderna da economia nacional tornou-se corrente considerar quase todos os
fenómenos económicos exclusivamente segundo o vocabulário de uma economia capitalista... Os outros
tipos – não-capitalistas – de vida económica são considerados destituídos de importância ou em vias de
desaparecimento» (1976:478).
Pressupostos ora da teoria da modernização, ora do «benéfico» desenvolvimento das forças produtivas
em direcção ao socialismo conduziram ao que Giner e Guzmán (1980:13) denominam «ideologia de
descamponização». Perante tais premissas impõe-se indagar até que ponto a economia campesina opera e se
destaca dos demais tipos de economia ou modos de produção.
Não obstante as limitações que implica oferecer uma esquematização da economia ou do modo de
produção camponês15em relação ao seu funcionamento concreto em determinado tempo e lugar, torna-se
pertinente referir algumas características típicas da tradicional economia campesina, proporcionando assim
um instrumento analítico importante para compreender e explicar a acção camponesa.

2.6.1. A economia campesina: um «estorvo»

A propósito dos diferentes modos de orientação do actor nos diferentes sistemas sócio-culturais – ainda
que não necessariamente correlatados com o território – Parsons (1988:101 ss), recolhendo e, por vezes,
enviesando contribuições teóricas protagonizadas nomeadamente por Tönnies (1953:49-63), Durkheim
(1977 I:87 ss) e sobretudo Weber (1972:87 ss, 1978:40 ss), agrupa-os em dois blocos tendo implicitamente
como pano de fundo analítico o binómio comunidade e sociedade, entendido de modo contrastante e mesmo
dicotómico. Por outro lado, na esteira de Sorokin e Zimmerman (1929:13 ss), a mudança social é
conceptualizada por Parsons (1964:339 ss, 1988:102 ss) em termos de «universais evolucionistas» e de um
continuum do pólo comunitário tradicional para o pólo societal moderno. Enquanto ao actor em comunidade
corresponderiam predominantemente características típicas tais como a orientação colectiva, a afectividade,
o particularismo, a adstrição em base parental e a normatividade difusa ou inclusiva na implementação de
papéis, o actor em sociedade, através do processo de socialização e interiorização das normas e valores da
sociedade moderna, conduzir-se-ia basicamente pelas seguintes variáveis-padrão: auto-orientação,
neutralidade afectiva e correlativas relações de tipo contratual, valores ditos universais e papéis específicos
alcançados pela via da aquisição ou do mérito próprio.
Ao mesmo tempo que, neste esquema conceptual – aliás em certa analogia com o folk-urbancontinuum
de Redfield na dicotomia entre «pequena tradição» versus «grande tradição» ( 1961 :41 ss) – confluem
linhas de análise sociologicamente consagradas, nele se misturam, por um lado, românticas e nostálgicas
idealizações sobre a comunidade e, por outro, preconceitos urbanos e valorações etnocêntricas e até
classistas acerca da emergência e da consolidação da sociedade urbano-industrial, enquanto modelo
teleologicamente positivo. Até mesmo eminentes estudiosos do campesinato como Banfield (1958: 162 ss) e
Poster (1965:310), não obstante considerarem as suas comunidades como relativamente fechadas e imbuídas

15
Althusser (1972), Poulantzas (1975) e Anderson (1974), não obstante o seu esforço em caracterizar a riqueza das diversas
determinações do conceito de «modo de produção», distinguiram, de modo dicotómicoe formalista, «modo de produção» como
totalidade abstracta e não realmente existente e «formação social», enquanto totalidade real concreta, confundindo nesta distinção
o abstracto com o irreal e perdendo de vista a dialéctica relação entre o universal e o singular, o geral e o particular. Ora, o mais
elevado grau de abstracção do conceito «modo de produção» não exclui a sua presença e tradução no real.
Problema, Método e Teoria

pelos já referidos síndromas do «familismo amoral» e da «inveja», pretendem, em última instância,


respectivamente através de métodos da educação ou mudanças nas orientações cognitivas e correspondentes
incentivos a iniciativas lucrativas, integrar os «retraídos» camponeses nos parâmetros da economia de
mercado e na «superior» sociedade moderna e aberta.

Ora, contrariamente ao dualismo académico sociológico da corrente (estrutural) funcionalista que, de


modo dicotómico e algo rígido, contrapõe «comunidade» a «sociedade», «solidariedade mecânica» a
«solidariedade orgânica», sociedades agrárias ditas particularistas a sociedades urbano-industriais
consideradas universalistas; contrariamente, por outro lado, à idealização romântica da sociedade campesina
tradicional16, a economia e a sociedade camponesas não formam um sistema estático ou fechado, que seria
imune ou impenetrável a influências exteriores. Pelo contrário, em resposta aos desafios de aumento da
produtividade agrícola e ao «movimento de incorporação» a que se refere Pearse (1971:72), as economias
domésticas campesinas têm denotado capacidade de mudança e sobretudo de adaptação, tanto a nível
político-cultural como inclusive técnico-económico.
A concepção evolucionista linear assumida pelos teóricos da modernização pressupõe a existência de
um continuum entre a aldeia «atrasada» e a cidade «civilizada». Particularmente em relação a comunidades
inseridas em sociedades industriais complexas, tal continuum enferma contudo de um espúrio enviesamento
físico-espacial, como refere Pahl (1966:317). Por outro lado, a tese do continuum surge da necessidade
político-ideológica do sistema dominante no sentido de superar as referidas bipolaridades clássicas de modo
a imprimir uma determinada direcção e finalidade à mudança social, em especial nas sociedades não
desenvolvidas. Com efeito, paralelamente a coexistências de situação e permeáveis continuidades nas redes
sociais ligadas ou não localmente, constatam-se marcantes descontinuidades e resistências em termos
espacio-sociais. Nesta óptica, poder-se-á acrescentar que o agir dos camponeses apresenta uma racionalidade
específica que nem sempre nem totalmente é dominada por um qualquer poderoso sistema exterior. A
negação ou subestimação da economia, da racionalidade campesina e suas estratégias de resistência, por
parte de muitos cientistas sociais, políticos e funcionários, tem conduzido a sobrevalorizar a racionalidade
formal moderna, inerente à origem e ao desenvolvimento do capitalismo, considerando os camponeses
«parolos» e «selvagens» e remetendo as suas normas e valores para o campo do irracional e do mágico, do
supersticioso e do religioso. Assim, os sistemas anteriores ao capitalismo moderno seriam não-livres,
anormais, de modo que só a racionalidade liberal seria lógica, só o homem moderno seria um homo
economicus. E, pressuposta a superioridade desta racionalidade, haveria que impingi-la aos «atrasados» e
«ignorantes» camponeses! Não é fortuito que os pensadores e economistas de cariz liberal não prestassem
atenção à «transitória» economia campesina ou então a analisassem a partir das categorias da economia
liberal: propriedade, contrato, oferta e procura, empresa e lucro17.
O enfoque formalista, baseado nas premissas liberais e pretendendo aplicar-se inclusivamente a tipos de
economia tais como a camponesa, viria a ser questionado, de modo sistemático, por Polanyi (1957:46, 1976:
117 ss), segundo o qual os tipos de economia não mercantil e seus princípios de reciprocidade e
redistribuição escapariam às leis do sistema de mercado e estariam embebidos, em termos substantivos, em
específicas instituições económicas e não económicas (parentais, políticas, religiosas). Alguns marxistas
como Godelier (1984:37), não obstante a crítica a Polanyi por este não aceitar a teoria do valor nem explicar
as mudanças de forma nas sociedades, incorporam na sua antropologia económica a concepção
substantivista, assumindo que instituições não económicas como, por exemplo, o parentesco, a política ou a
religião funcionariam como relações de produção. Mais recentemente, numa perspectiva diferente, Bouquet

16
Embora com diversas tonalidades, vejam-se estas sucessivas concepções respectivamente em Tönnies (1953:49-63), Durkheim
(1977 I:87-154), Parsons (1967:353 ss, 1988:102 ss); Le Play in Eizner 1972:319; Kroeber 1963:89 ss. Estas concepções são
criticadas por, entre outros, Amin 1981:11 ss, 65 ss, Tipps 1973:199-226, Wallerstein 1974:388 ss, Vergoupolos 1978:198 ss.
17
Posições defendidas respectivamente por Marshall (1954:119-208), Herkovitz (1982:13 ss, 47 ss). A própria Sociologia Rural
americana dos anos 1920-1940 reflecte bem os preconceitos sobre o camponês e sua economia (cf. Giner e Guzmán 1980:17,
Newby e Guzmán 1983:23 ss). Já o próprio Comte perdia de vista a especificidade das ditas classes médias como o campesinato
ao prefigurar a sua dissolução, em que «o topo confundir-se-ia com os patrões-patrícios e a sua massa com os proletários»
(1852:310). Para uma crítica aos economistas liberais e formalistas, cf., além de Polanyi (1957:139 ss), Kula (1976:62, 167 ss},
Meillassoux (1977:14 ss).
46
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

e De Haan (1987:259), demarcando-se das premissas naturalistas e materialistas, assumem o parentesco


como categoria relacional abstracta capaz de explicar as relações, atitudes e representações dos actores
sociais.
Embora a racionalidade moderna dominante signifique e exprima um gigantesco desenvolvimento das
forças produtivas, não se pode daí induzir a tese geral que os modos de produção não-capitalistas,
nomeadamente o camponês, não sejam duráveis nem contenham elementos de liberdade e racionalidade.
Apelando à distinção weberiana de racionalidade formal e material e, sobretudo, aos quatro tipos de acção
social (Weber 1978:24 ss)18, trata-se mais de uma questão de diversidade e especificidade das formas de
racionalidade e acção social.
Os autores do evolucionismo moderno propugnam, com efeito, por uma mudança da sociedade
tradicional para a moderna através do «contacto» ou da «difusão cultural» como uma das vias de
modernização. Adoradores do «progresso», encontram-se presos duma concepção simplista e linear,
uniforme e totalizante acerca do processo histórico, denotando um etnocentrismo que testemunha uma
atitude arrogante ao pressupor que a burguesia ascendente, enquanto geradora e portadora duma nova forma
de sociedade, seria mais progressista que o campesinato secularmente explorado e dominado.
Expressão desta inadequada aplicação da racionalidade moderna às pequenas unidades de produção
familiar é o mal-entendido da maior parte dos economistas agrários portugueses tradicionais119
designadamente no que respeita a questão da superioridade do rendimento da pequena exploração face à
grande20, aplicando aos dois tipos de economia os mesmos critérios de racionalidade e categorias
económicas (capital e contabilidade, empresa e empresário, renda e lucro). Os seus cálculos, relacionados
com o limiar da rendibilidade agrícola, chocam com a maneira de funcionar das pequenas economias
agrícolas domésticas, nas quais o rendimento bruto resulta frequentemente ser igual ou até inferior aos
custos de produção, nem sempre obedecendo os camponeses aos «ajustados» objectivos propostos pelos
referidos agrónomos!

Mais recentemente autores há como Popkin (1979:16 ss) que, contrapondo-se com certa pertinência às
premissas dos autores da «economia moral» (2:5, 2:6.3), tentam construir um modelo explicativo racional
da acção campesina, mas fazem-no de modo subtil sob as premissas da economia política liberal na variante
da teoria económica dos jogos de Neuman e Morgenstern e (1964:15 ss) e, complementarmente, sob a
formulação da teoria utilitarista exposta por M. Friedman e Savage (1948:279 ss), à qual o próprio Popkin
apela21.
Com razão defende Popkin que perspectivas e normas não podem, directa e simplesmente, determinar
acções. Mas como pode Popkin então pretender explicar as acções dos camponeses a partir dum outro
normativismo que pressupõe como motor da acção ora a opção individual ora as regras inerentes à teoria dos
investimentos e dos jogos? Não terá maior consistência e probabilidade o fundamento explicativo da
sobrevivência campesina, por parte dos autores da «economia moral», quando despida de certas conotações
romântico-morais, do que o pressuposto da motivação preferencial dos camponeses pela lógica do lucro
tipicamente capitalista, a qual, segundo Popkin, seria extensível à conduta campesina na aldeia, nos sistemas

18
Para desenvolvimento da questão relativa aos diversos tipos de racionalidade nomeadamente da camponesa, cf. também Kula
1976: 164-175, Meillassoux 1977:21-62, Habermas 1981:208, Vergoupolos 1978:195 ss e, em Portugal, Reis 1981:151 ss.
19
Basto 1936 IV:90 ss, H. Barros 1948-54 1:341 ss; Caldas 1947:50, 72-77, 174-178; M. Pereira 1979: 14 ss. Medida pelos
parâmetros dominantes, a agricultura do nordeste transmontano é caracterizada como «anquilosada» igualmente por Cepeda
(1988: 117).
20
Embora em sentido crítico e em tese contrária, cf. igualmente Castro 1945: 118, J. S. Martins 1973 1:40 ss, Cunhal 19761:67 e
1976 II:9 ss. Sobre este ponto é de salientar a crítica pertinente de Baptista 1981:73-77, Reis 1981:153 ss e Carvalho 1984:106 ss.
Esta clássica questão já fora alvo de acesa polémica na Alemanha entre E. Bernstein (1964:65 ss) e Kautsky (1974:216 ss) e, na
Rússia, entre populistas e bolcheviques, nomeadamente Lenine (1977). Sobre este assunto, cf. ainda Shanin 1972:45-62,
Vergoupolos 1978:151-162, Tepicht 1973:16 ss, Gasson e Errington 1993:59 ss, e, sobre a caracterização dos fundadores do
populismo russo e, em particular, do anarquismo agrário (Bakunine e Kropotkine), cf. Guzmán 1988:23-46.
21
Ver Popkin 1979:21. Em última instância, Popkin, tal como os formalistas, rejeitando as premissas da economia moral fundadas
nomeadamente em Chayanov (1976:478 ss), Wolf (1966, 1974), Migdal (1974) e Scott (1976), assume que a economia
camponesa se distingue não por ser basicamente uma economia de subsistência, mas porque proporciona rendimento em vez de
salário. Para uma crítica da teoria subjectiva da acção económica, cf. Bader 1976:28-33.
Problema, Método e Teoria

de patrocinato e nas relações de mercado?


O recurso ao modelo formal da teoria dos jogos aponta para uma situação hipotética, ideal, em que cada
jogador seria um actor informado, consciente e livre e que, em igualdade de circunstâncias, tomaria sempre,
perante os seus parceiros do puzzle, a decisão racional conforme aos seus interesses. Ora, as práticas da vida
refutam a petição apriorística de tal modelo por trás do qual se esconde a vontade de justificar o statu quo
ou, como refere Bourdieu, se procura a todo o custo «dissolver num fiat inaugural o arbitrário do instituído
e colocar arbitrariamente a livre decisão dum sujeito consciente e racional como princípio de práticas
menos racionais» (1980:79).
O modelo racional de Popkin reduz as orientações da acção campesina a uma simples lógica
estratégico-utilitarista, ignorando outros tipos de orientação, interesses e motivações, particularmente as
tradicionais e afectivas, aspectos estes desbravados por Weber (1978:24-30) e reelaborados e refinados por
Bader (1991:65 ss) e Benschop (1993:382 ss).
Teoricamente admissível e historicamente verificável é o facto de que, à medida que se desagrega o
quadro tradicional da economia e da sociedade camponesas, a sua relativa autonomia vai diminuindo ao
ponto de, para reproduzir-se, depender cada vez mais dos imperativos estatais, da lógica do mercado e
demais condições externas: a política agrícola, os preços, os salários ou remessas do exterior, o crédito, a
compra de produtos industriais a montante e a jusante, entre outras. O grau aproximado de autonomia,
diferenciação ou dependência deverá ser objecto de estudo empírico em cada situação histórica. Em relação
ao campesinato nortenho, além dos resultados extraídos do próprio trabalho de campo, outros consistentes
estudos recentes – entre os quais os de O'Neill (1984:91 ss), Pinto (1981:199 ss, 1985:345 ss), Almeida
(1986:211 ss) – constatam diferenciados tipos de actores e lógicas sociais. As múltiplas estratégias destes
entrecruzam-se numa variada gama de comportamentos e de formas de acção que, de modo algum, são
redutíveis à lógica da economia de mercado, cujos elementos, embora presentes, nem sempre são
dominantes a nível microcósmico da aldeia, como veremos.

2.6.2. Camponeses: um «hieróglifo»

Tão pouco, do ponto de vista teórico marxista, o campesinato foi adequadamente interpretado e
compreendido. Marx, Engels, Lenine, por um lado, e, por outro, os sociais-democratas alemães Kautsky e
Bernstein22, constatando o gigantesco desenvolvimento das modernas forças produtivas e da divisão do
trabalho, partiam do pressuposto de que os camponeses parcelares constituíam vestígios anacrónicos e
formavam uma classe em desagregação. Afectados pela mecanização e pela modernização agrícolas,
sobrecarregados por impostos do Estado e hipotecas dos usurários, os camponeses ficariam endividados e
não estariam em condições de resistir ao processo de proletarização, restando-lhes ser arrasados pela
agricultura capitalista em consonância com as suas inexoráveis leis de acumulação e centralização. Nesta
perspectiva, o campesinato, decompondo-se tendencialmente em elementos proletários e elementos
burgueses, é definido de modo ambíguo não tanto por aquilo que é, mas mais por aquilo que não é,
resultando daí, senão a negação da sua racionalidade específica, pelo menos, a sua subestimação.
Esta visão levaria Lenine (1977) a conceber uma notável diferenciação sócio-económica e uma
consequente polarização sócio-política entre os camponeses (pequeno)burgueses e os (semi)proletários,
posição que viria a ser negada por Chayanov (1966:254 ss), aliás com base nos mesmos dados estatísticos.
A abordagem dicotómica do campesinato a partir do esquema de tipo industrial «burguesia-
proletariado», no seguimento das referidas teses de Marx e de Lenine, deixa entrever uma das lacunas ainda
presentes nas posições tradicionais dos partidos comunistas, bem como na maioria dos marxistas actuais,
entre os quais Perceval (1973:158 ss), Poulantzas (1975:204-208), Cunhal (1976 I:10 e II:9 ss), Marques e
Bairrada (1982: 1295). É nesta linha flutuante que, teoricamente, o campesinato é considerado pelos
referidos autores, por um lado, como um «estrato intermédio», «uma fracção da pequena burguesia

22
Cf. Marx 1973:180 ss e 1974a I:444 ss, Engels 1973, Lenine 1977 – embora com posição diferente depois de 1905 (cf. Ennew et
ai. 1977:301 ss) – Kautsky 1974, E. Bernstein (1964:47 ss). Mais recentemente, cf. Galeski 1972: 11 ss. A debilidade da posição
marxista nesta problemática, reconhecida por autores corno Goodrnan e Redclift (1985:233) e nós próprios (Silva e Van Toor
1982:44 ss), já tinha sido alvo de urna incisiva crítica por Giner e Guzmán (1980:13-26).
48
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

tradicional» ou então, num outro pólo e por outros autores marxistas (Faure 1974:8 ss, Lambert 1975:72-74),
é equiparado substancialmente ao proletariado, não obstante o manto jurídico, entendido como puramente
formal, da propriedade familiar. Deste modo, os interesses dos camponeses seriam apenas contemplados na
medida em que, paradoxalmente, fossem sacrificados no altar da impetuosa industrialização e se
submetessem a esta em benefício e em nome da mais elevada estratégia proletária! Só assim e nessa altura
poderiam os camponeses tomar-se virtualmente revolucionários!
Nesta óptica, não é de admirar que, em consequência da atribuição de categorias derivadas dos sistemas
feudal e capitalista, o camponês represente para Marx «a barbárie no seio da civilização» e que os seus
representantes de tipo bonapartista permaneçam, efectivamente, um «hieróglifo indecifrável para a razão do
homem civilizado» (Marx 197 4b:79). Só mais tarde, na sequência da leitura da «Sociedade Antiga» de
Morgan (1987) e da «Comunidade Rural» de Kovalevski (1879) (in Godelier 1973:83 ss, Dugett 197 5: 17 5
ss) e sobretudo da troca de correspondência com os populistas russos, começa Marx (1973a:318-342) a
superar a sua posição negativista e, por vezes, pejorativa sobre as colectividades camponesas consideradas
«fósseis históricos» ou «comunidades vegetativas», a admitir modalidades de acumulação primitiva
diferentes da inglesa e a duvidar da inevitabilidade da benéfica função do capitalismo como formação social
anterior ao socialismo.
Mais recentemente, diversos marxistas como Ennew et al. (1977:295 ss) persistem, à luz dos textos
clássicos, em negar especificidade analítica ou validez heurística ao termo camponês e à sua economia ou
modo de produção, procurando apenas fundar a unidade das formas de produção campesinas na sua relação
com o capitalismo. Quando muito, tentam ora considerar as sociedades camponesas como resultados de
combinações de diversas estruturas (Harrison 1977 :335), ora elaborar uma construção teórica em que o
camponês deverá ser englobado na categoria mais lata da pequena propriedade parcelar e da produção
mercantil (Jollivet 1974:246, Gutelman 1975:68-83, Godelier 1973:73 ss). Para Mann e Dickinson
(1978:466 ss), dada a especificidade das condições «naturais» da produção agrícola e a não coincidência
entre o tempo de produção e o tempo de trabalho, a persistência da pequena produção mercantil campesina
explicar-se-ia justamente pela lógica do capitalismo, não interessado em penetrar determinados sectores da
produção agrícola porque não atractivos em termos de lucro.

Não obstante certas reformulações críticas, por parte de alguns marxistas, a interpretação dogmática no
seio do marxismo tem contudo persistido até hoje em elevar o específico quadro histórico da origem e do
desenvolvimento do capitalismo europeu inglês a uma espécie de princípio histórico filosófico ou matriz
essencialista, à qual se deveriam subordinar as diferentes formações históricas concretas.
Relativamente a Portugal vários têm sido os cientistas sociais portugueses23 que têm retomado, da
modalidade inglesa de acumulação de capital, a tese do desaparecimento relativamente rápido dos pequenos
produtores agrícolas e a têm transplantado para as formações sociais portuguesas nos séculos XIX e XX.
Diversos estudos empíricos têm denotado que, em bastantes formações sociais europeias e, em especial,
nas mediterrâneas, designadamente a portuguesa24, os camponeses não têm sido expropriados de modo
abrupto ou violento, dando lugar a processos de diferenciação, descamponização e recamponização num
processo histórico de submissão lenta, longa e complexa. Donde, no processo de integração das formas de
produção não-capitalistas na capitalista, não há um esquema único e predeterminado, constatando-se antes
diferentes modos de acumulação de capital e diversas formas de submissão, ora formal, ora real do

23
Por exemplo, Castro 1945: 120 ss, J. S. Martins «Prefácio» in Cunhal 1976 I, Cunhal 1974:51 ss, 1976 ll:161-209. F. Rodrigues
1965:79-80, Almeida e Barreto 1976:101, R. Costa 1975:13-94. Alguns autores como J. S. Martins (1973 1:37) assumem a
pequena produção camponesa como fazendo parte integrante do modo de produção feudal e em vias de desaparecimento. Num
percurso diferente, M. V. Cabral, embora inicialmente defensor da tese do crescimento relativamente rápido das forças produtivas
e da industrialização destruidora do campesinato (1979: 141 ss), moderará a sua posição ao constatar a estabilização das pequenas
e médias explorações não capitalistas nomeadamente agrícolas (1978:415, 1983:215 ss, 1986:7 ss).
24
Cf., concretamente para França, Servolin 1972:46 ss; para Espanha, Guzmán 1979:177 ss; para Portugal, Silva 1989:112 ss e, de
modo geral, Vergoupolos 1978:196 ss. Com este processo poder-se-á articular um outro relativo à desproletarização, estabilidade
e/ou crescimento do sector informal, nomeadamente na América Latina, tal como o constataram Carriere et al. (1989:2 ss). Entre
os estudos que tendem a empolar o processo de capitalização da agricultura nos países do sul da Europa: cf., para França, Mollard
1977:22 ss; para Portugal, cf. Freitas et ai. 1976:56 ss, além dos referidos na nota 23.
Problema, Método e Teoria

campesinato, de que o caso inglês e a correlativa expropriação representa tão só uma das modalidades. Mais,
contrariamente a pressupostos relativos à eventual retirada do capital no sector agrícola, sempre que
afectado pela baixa de preços e pelo aumento de custos agrícolas, as unidades domésticas campesinas
persistem em manter-se, embora a expensas de uma baixa remuneração familiar ou de injecções
permanentes ou ocasionais oriundas de sectores não-agrícolas.

O maior ou menor grau de diferenciação e desintegração do campesinato, sendo efeito de factores


endógenos e exógenos, depende não só, como refere H. Bernstein (1977:68), das condições concretas da
intensificação das relações mercantis, mas também da actividade, da autonomia e da capacidade de
resistência dos próprios actores campesinos, os quais, relacionando-se não raro com o mercado, baseiam-se
contudo fortemente, como aponta Long (1986:13 ss), em relações não mercantilizadas. Por outro lado,
embora admitindo que a tese da proletarização defendida a um alto nível de abstracção e analisada a longo
termo não seja rebatível, o correlativo processo de proletarização não caminha de maneira linear mas
contraditória e não é certamente visível em cada fase do desenvolvimento histórico. A título ilustrativo, na
formação social portuguesa de 1930 a 1960/70, há como que um sustido adiamento do processo de
proletarização, para o qual teriam contribuído as estratégias de sobrevivência e resistência do campesinato,
reforçadas aliás pela linha político-ideológica do nacionalismo salazarista, ruralista, adverso à cidade e ao
processo de moderna25.

Os camponeses têm, pelo menos até recente data, constituído a maior classe a nível mundial e, em
muitos países do chamado Terceiro Mundo, além de eventualmente reforçarem a sua consciência política,
aumentaram em número. Tal como o constataram e explanaram diversos autores (Shanin 1971:17, 1974
III:198 ss, Mendras 1976:39 ss, Friedman 1978:564) tal facto é consequência, além doutros factores, de
avanços tecnológicos, de reformas agrárias favoráveis à divisão de latifúndios, do papel do Estado e da
crescente procura de géneros alimentares.
Igualmente em países semiperiféricos como Portugal, as persistentes capacidades e estratégias de
resistência e adaptação das economias domésticas campesinas revelaram-se maiores do que se pressupunha.
Basta fixar-se nos resultados dos sucessivos Inquéritos às Explorações Agrícolas do INE, segundo os quais
as explorações de tipo familiar teriam passado de 82.3% em 1952-54 para 84.9% em 1968 e 92.5% em 1979
(Freitas et ai. 1976:103, Silva e Van Toor 1982:81, Wall 1986:90). Em princípio, é plausível a tese que
quanto mais autónomos sejam os camponeses em relação ao modo de produção capitalista, maiores serão as
suas possibilidades de resistência e maior a sua força de negociação perante outros parceiros sócio-políticos.
E, quanto menores forem a sua capacidade de organização e a sua influência no jogo eleitoral parlamentar,
tanto mais forte será a tendência para evitar confrontos e esperar a sua «salvação» de instituições como a
Igreja, o exército ou individualidades na área do poder, favorecendo soluções bonapartistas, não raro reflexo,
por sua vez, das relações tradicionalmente presentes numa parte considerável das economias domésticas
campesinas26.

2.6.3. Economia camponesa: uma caracterização

À economia campesina corresponderia, segundo Galeski «o modo de produção mais antigo e mais
universal conhecido na história», posição esta já defendida por Chayanov (1976:480). Com efeito, o modo
de produção camponês, enquanto uma das variantes do modo de produção doméstico, se sincronicamente
não conhece formas puras e tem coexistido em simbiose com outros tais como o tributário, o feudal ou o
capitalista, é passível de reencontrar-se diacronicamente em diversas configurações históricas, sobretudo

25
Para desenvolvimento desta questão e, sobretudo, para dados estatísticos, cf. Silva e Van Toor 1982: 143-154, 198-204 e Silva
1989: 134-144. A real bipolarização, ainda que amiúde romantizada e ideologizada, entre campo e cidade é uma constante desde o
século XIX até, pelo menos, aos anos sessenta deste século, a qual não só é reassumida, com diferentes tonalidades político-
ideológicas, por diversos escritores do rural (cf. Dinis 1912, C. C. Castelo Branco 1971), como reapropriada por políticos e
ideólogos conservadores (1:3). Cf, a este respeito em França, Ponton 1977:62 ss.
26
Cf., este respeito, Marx 1970:133, Wolf 1966:81 ss, Jollivet 1972:260, Mendras 1976:101-109.
50
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

desde o século X nas sociedades europeias, dando lugar a uma problemática de articulação e transição27.
Tomando como critérios as técnicas de cultivo, a extensão da terra e o modo de apropriação, assim
como o lugar do campesinato nas diferentes fases de desenvolvimento social, diversos autores28 distinguem
(i) a camada diferenciada dos «protocamponeses» em sociedades nómadas e tribais, (ii) o grupo marginal ou
minoritário de colonos e rendeiros agrícolas, submetidos sob os modos de produção esclavagista e feudal
mas relativamente libertos desde os séculos XV-XVI e (iii) os actuais camponeses, coexistindo ou não com
outras formas ora comunitárias ora latifundiárias, fortemente presentes sobretudo em países do Terceiro
Mundo. Dada a existência de diversos tipos camponeses na história, será possível definir e caracterizar a
especificidade do campesinato e, em particular, a sua economia face aos demais tipos de economia?

Weber (1978:90, 87 ss) distingue entre economia de aquisição (erwerben) orientada para o lucro com a
inerente acumulação de capital e economia doméstica (haushalt) capaz de simplesmente prover às
necessidades do agregado familiar, economia na qual não se aplica a distinção weberiana entre racionalidade
formal e racionalidade material. Teria sido a posse conjunta de bens e serviços produzidos e repartidos entre
os membros do grupo doméstico-agrícola o que teria induzido Weber a considerar tal tipo de unidade
familiar como «comunismo doméstico» (1978:359).
Tal como foi referido, Marx rejeitou taxativamente uma defmição específica do campesinato na medida
em que tendia a encarar a produção campesina, ora como base da pequena burguesia rural, ora como o
estádio prévio do ameaçador espectro da proletarização. Porém, numa fase mais madura do seu pensamento,
além de assumir que a produção camponesa se orienta basicamente para a produção de valores de uso,
reconhece a casa camponesa como centro de produção relativamente autónomo e considera que o camponês:
«é colocado em condições de ganhar a sua vida de tal maneira que o seu objectivo não consiste no
enriquecimento mas na autosubsistência, permitindo assim a sua reprodução como membro da
comunidade» (Marx 1973:187).

Seria contudo o populista russo Chayanov (1966:53 ss) o autor que, pela primeira vez, autonomizou e
sistematizou teoricamente a economia campesina como modo específico de produção. Os pressupostos
básicos deste tipo de economia seriam (i) a relativa flexibilidade no acesso aos recursos sobretudo fundiários
e tecnológicos por parte dos grupos domésticos; (ii) a produção de valores de uso em função da satisfação
das necessidades familiares e não de valores de troca em função do lucro, tal como sucede na empresa
capitalista; (iii) a avaliação subjectiva da (des)utilidade marginal do trabalho, sendo a intensidade deste
determinante do grau de (auto)exploração da força de trabalho familiar; (iv) a determinação da quantidade
de produção conforme o tamanho do grupo doméstico, assim como a não utilização, por parte deste, de
trabalho assalariado; (v) a possibilidade não só de adquirir mercadorias não produzidas na exploração, como
inclusivamente de obter capital por empréstimo ou por acumulação na exploração; o estabelecimento, por
parte de cada comunidade, de um rendimento mínimo socialmente aceitável para todos os grupos
domésticos.

Ao tentar demarcar as economias e sociedades primitivas ou tribais das campesinas autores como
Kroeber (1963:92) e Redfield (1961:23 ss) definiram-nas especificamente como «sociedades parciais» num
sentido vago e mais cultural que económico, relevando a sua dependência perante a civilização ou o sistema
envolvente (religião, linguagem, governo). Porém, a elaboração teórica mais cabal e adequada da
especificidade campesina viria a ser posteriormente realizada por Wolf (1966:1 ss), Shanin (1973:63 ss,
1974:186 ss, 1979:9 ss), Tepicht (1973:13 ss), Guzmán (1983:33ss), sendo salientadas as seguintes

27
Cf., entre outros, Gutelman 1975:67 ss, Mendras 1976:11, Meillassoux 1977:19-20, Amin 1978:16, 37 e 1981:53-57, Rey
1979:69 ss. Habermas 1981:204 ss. Sobre a pertinência ou não de manter o conceito de modo de produção camponês, cf. Shanin
1979:30 ss. Para Dalton (1972:385 ss), uma vez constatadostrês tipos sequenciais de camponeses na história (servil, dependente
mas moderno, pós-camponês), não é possível construir uma definição ou tipo ideal de campesinato.
28
Entre os quais Shanin 1972:207-210, Tepicht 1973:21 ss, Mendras 1976:45 ss, Guzmán 1979:30-33 e, em especial, Wolf
1966:19 ss, o qual elaborou e caracterizou detalhadamente os diversos ecotipos camponeses e as fases da evolução do
campesinato na história. Sobre as condições de emergência da incipiente economia campesina sob o feudalismo, cf. Duby
1973:205-236 e, sobre a construção e a evolução do conceito de «camponês», cf. Silverman 1983:7-31.
Problema, Método e Teoria

características: a família como unidade básica multifuncional de organização social, a actividade agrícola e,
em regra, pecuária, uma cultura tradicional específica e uma dependência multidireccional face aos poderes
externos.
Na senda de Wolf, há ainda a sublinhar os chamados autores da «economia moral», entre os quais
Migdal (1974:60 ss) e sobretudo Scott (1976:1-11). Este último adianta, como foi referido, o conceito de
«ética de subsistência», a qual, não sendo ditada pela maximização do lucro da economia de mercado e
sendo um tanto adversa ao risco, possui não só uma vertente económica, mas também uma dimensão moral,
normativa e cultural, dimensão esta que, de modo semelhante, a atribuiria Thompson (1979:65-66) às
classes não capitalistas na Inglaterra.
Na economia camponesa verifica-se uma relação específica, quase umbilical, dos camponeses com a
natureza e a terra, funcionando a freguesia ou mesmo a aldeia como sua base territorial, não só no referente
à produção, mas também à manutenção das infra-estruturas, à execução de tarefas administrativas e à
eventual mediação para o exterior. Com efeito, a aldeia constitui o que Guzmán (1983:45) denomina o
«quadro relacional» dos camponeses, enquanto vector decisivo para compreender e explicar tanto a sua
actividade sócio-económica como os seus comportamentos sócio-culturais.
Cada casa detém um determinado poder de disposição sobre as condições de (re)produção (terra, gado,
águas), organiza e avalia o respectivo processo de produção e os seus resultados. O pedaço de terra, ora
próprio, ora, em menor grau, arrendado, constitui a base da sua segurança existencial, bem como uma das
condições da sua relativa liberdade, segurança e liberdade que, embora cada vez mais limitadas no contexto
do capitalismo, contribuem a explicar, de certo modo, a realidade da e a retórica sobre a autonomia
campesina.
Sendo relativamente autónoma a organização de cada casa, tal implica uma segmentação vertical das
unidades domésticas no seio da aldeia. A esta polarização aludem Shanin (1972:39) e sobretudo Tepicht
(1973:19, 23) ao distinguir o «rigoroso colectivismo» familiar perante o «individualismo face ao exterior»
ou ainda Sahlins quando observa: «Se dentro do círculo doméstico os movimentos decisivos são centrípetos,
entre as casas campesinas tais movimentos são centrífugos» (1972:97).
Enquanto local de conservação e transmissão do património familiar e enquanto portadora dos direitos e
deveres formais (uso de águas e baldios, representação da família em determinadas cerimónias), a casa surge
como a unidade de referência tanto residencial e económica como pedagógica e cultural, constituindo-se
como o esteio principal do processo de socialização, de dependência mútua nas diferentes fases da vida
desde criança a adulto e de apoio e solidariedade com os não-activos (doentes, inválidos).
Tradicionalmente, sendo a tecnologia utilizada de carácter elementar e formando como que um
prolongamento da energia animal e humana, a divisão de trabalho é de tipo rudimentar e a especialização,
nos processos de organização do trabalho, apresenta-se fluida de acordo com o sexo e a idade. Os adultos –
homens e mulheres – constituem indubitavelmente os principais participantes e coordenadores da força de
trabalho, mas os velhos, as crianças e os adolescentes consideram-se indispensáveis, para além da necessária
entreajuda de parentes e vizinhos, sobretudo nas sementeiras e nas colheitas.
Ainda segundo Chayanov (1966:90 ss), a intensidade do trabalho é inversamente proporcional à
quantidade de terra e à relativa capacidade de trabalho presente na economia familiar e directamente
proporcional às pressões e necessidades de consumo familiares, nomeadamente ao quantitativo de bocas a
alimentar. A fim de assegurar a reprodução das economias domésticas campesinas e providenciar à
subsistência e ao eventual aumento de necessidades dos activos e sobretudo dos não activos, o grupo
doméstico procura, de acordo com as vicissitudes da vida, aumentar a produção através do aumento da terra,
da intensificação do trabalho e/ou da diminuição do consumo. Mantendo-se idênticas certas condições (solo,
clima, condições de mercado), quanto maior o rácio produção-consumo por cada casa, maior o rendimento
per capita e maior a propensão à acumulação, a qual será contudo subjectivamente travada, logo que o
grupo doméstico obtenha um óptimo de equilíbrio em relação à aplicação dos recursos e à satisfação das
necessidades. Estas decisões, implicando eventualmente auto-exploração, seriam, segundo a polémica
posição de Chayanov (1966:70 ss, 1976:482), Kerblay (1971:153), Scott (1976:13) e Vergoupolos
(1978:65), assumidas em função da avaliação subjectiva do valor-trabalho e da marginal (des)utilidade

52
«Conservadorismo» e racionalidade campesina: que modelos?

respectivamente do esforço e do produto29.


Dado o relativo poder de disposição e a tecnologia simples, o trabalho, de acordo com o tamanho da
família, é um elemento relativamente estável dentro do grupo doméstico. Sendo levado a cabo em base
familiar, o trabalho é orientado exclusiva ou principalmente para a reprodução simples, ou seja, para a
produção de bens de uso e a satisfação das necessidades elementares do agregado familiar como núcleo
básico e, em maior ou menor medida, de parentes e vizinhos. É neste âmbito que a economia camponesa é
denominada «natural» na medida em que o capital-dinheiro, em formações sociais debilmente
monetarizadas, detém na troca interfamiliar uma função marginal, aspecto este relevado por alguns autores
como Mendras (1976:45 ss). Quando muito, em tais sociedades, utiliza-se o dinheiro predominantemente
como meio de transacção com agentes externos à aldeia (compra de artigos não produzidos localmente,
pagamento de impostos) ou, internamente, em ocasiões especiais (pagamento de tornas a coherdeiros por
altura da sucessão).

Particularmente antes do processo de monetarização das economias locais, tem lugar na comunidade
uma diversidade de padrões e formas cooperativas de entreajuda que levaram alguns autores a elaborar
algumas distinções tipológicas. Assim, Sahlins (1972: 191 ss) distingue reciprocidade generalizada e
indefinida entre parentes próximos, reciprocidade equilibrada entre parentes distantes ou entre vizinhos e
reciprocidade negativa ou desequilibrada, com proveito desigual ou apenas para uma das partes, entre
actores com posições assimétricas. No quadro tradicional, as casas tendem a ser relativamente autónomas
para o exterior, mas mais ou menos dependentes entre si.
Além de estabelecer relações de troca na aldeia, os grupos domésticos movimentam-se, numa rede de
contactos fortemente personalizados, nas feiras e nos mercados locais, os quais funcionam não só como
locais de compra e venda mas também como centros de informação e de encontro30. Entretanto e cada vez
mais, sob o impacto da economia de mercado, a exploração campesina, embora resistindo para sobreviver,
tende a transformar-se e a adaptar-se às novas condições do desenvolvimento capitalista. É justamente
partindo das condições de reprodução e/ou transformação do capitalismo avançado (circulação da terra, do
trabalho e do crédito) que Friedman (1980: 158 ss) autonomiza e destaca teoricamente a «forma de produção
simples de mercadorias», a qual, enquanto forma de existência dependente, constitui uma exigência
específica resultante das relações mercantis das formações sociais capitalistas e da sua penetração no ciclo
de (re)produção dos respectivos grupos domésticos camponeses. Importa, porém, relevar que, mesmo nos
processos de incorporação, as estratégias adaptativas exprimem, de alguma forma, modos de conservação e
resistência. Ou seja, adaptar-se, embora pressuponha uma fase de maior dependência e correlação de forças
desfavorável, não deve ser entendida como simples sinónimo eufemístico de claudicação incondicional e
absoluta, implicando não raro um comportamento activo perante novas condições envolventes.

Outro traço da economia e da sociedade camponesas reside no facto de os seus actores se encontrarem
numa posição de explorados e dominados por classes e instituições da sociedade que, dentro e sobretudo
fora da colectividade aldeã, exigem uma parte do seu produto sob a forma de renda ou de imposto (Wolf
1966:9 ss, Shanin 1971: 15). Porém, a importância e o quantitativo de sobretrabalho, bem como a maneira
como lhes é subtraído, dependem da articulação da economia camponesa com o modo de produção
dominante e, em particular, do facto de a extracção do excedente pôr ou não em causa a sua subsistência.
Sem denegar o núcleo básico da economia camponesa, este modelo abstracto necessita de ser refinado,
atendendo não só à diferenciação tipológica de actores camponeses como ao facto de alguns deles não
obedecerem ao esquema delineado por Chayanov e seus seguidores. Assim, por exemplo, nas sociedades
camponesas tradicionais, verifica-se, para além das formas de reciprocidade na entreajuda, uma desigual

29
Esta concepção subjectiva do trabalho camponês em Chayanov (1976:482-485) tem sido criticada por autores como Tepicht
(1973:33 ss), Harrison (1977:331) e, em Portugal, por P. Monteiro 1985:103 ss.
30
Sobre a economia campesina, cf. Chayanov 1966:90 ss, 1976:478-502, Marx 1973: 180-226, 1973a:318-342, Weber 1978:87,
116,356 ss, Wolf 1966:18-59, Thorner 1971:202-218, Shanin 1971:14-17, 1973:63-80, 1974:186-206, Sahlins 1972:76 ss, Galeski
1972, Tepicht 1973:13-46, Mendras 1974:11-38, 1976:39-56, Kula 1976:43, 133 ss, Meillassoux 1977:21-66, Estrada e Guzmán
1978:257-271, Guzmán 1983:33-77, Hunt 1979:249 ss. E, em particular, sobre os mercados como locais não só de transacção
económica mas também de informação e encontro, cf. Nash 197 l: 170 ss, Shanin 1973:74.
Problema, Método e Teoria

participação no mercado de trabalho. Enquanto as explorações menos providas dispensam, na aldeia ou fora
dela, mão-de-obra, camponeses há, sobretudo os mais abastados, que, em maior ou menor medida, utilizam
trabalho assalariado e, estando em condições de arriscar algo mais que seus parceiros menos afortunados,
tendem a investir ou são forçados a expandir para além da simples satisfação das suas necessidades (cf.
Harrison 1975:409 ss, Hunt 1979:253 ss, Goodman e Redclift 1985 :236 ss). Por outro lado, o modelo
chayanoviano é tecnológica e socialmente mais estático e uniforme que dinâmico e inclusivo dos impactos
de fenómenos «atípicos» ou menos ponderados nos seus pressupostos (pluriactividade, migrações,
industrialização em meio rural), demasiado autocentrado e bastante insensível à interdependência e à
eficácia dos sistemas envolventes capazes de, a médio-longo prazo, alterar o perfil do camponês. A figura
cada vez mais generalizada do camponês a tempo parcial nas formações sociais contemporâneas vem
tornando problemáticos tanto alguns pressupostos clássicos do liberalismo e até do marxismo ortodoxo (cf.
Mingione e Pugliese 1987:91) como a própria abordagem chayanoviana acerca dos tradicionais equilíbrios
no seio do sector agrícola. Além disso, a necessidade de redefinir a relação entre o rural e o urbano (Kayser
1988:78 ss) e entre o rural e o espacial (Barros 1990:46 ss, Baptista 1993:11 ss), a importância do local
contraposto ao nacional (Pahl 1966:317 ss) e a crescente heterogeneidade social presente nas modernas
colectividades rurais apelam, amiúde, à superação do velho conceito de comunidade pelo mais amplo de
sistema social local propugnado por diversos autores tais como Bradley e Lowe (1984:5 ss) e Medeiros
(1988:148 ss).
Por conseguinte, a uma caracterização de tipo sincrónico e aparentemente estática impõe-se acrescentar
que a economia campesina, assim como os sistemas produtivos locais (Reis 1988:128) vão moldando e
sofrendo, por factores endógenos e exógenos e de acordo com o ritmo e as fases de desenvolvimento global,
transformações e recomposições relevantes, aspectos estes confirmados em diversos estudos tal como o de
Redclift (1973:8 ss). Para tais mudanças e recomposições, dever-se-á, na esteira de Kayser (1973:5 ss,
1984:298 ss) não só ter em conta o ambiente regional, o tamanho da colectividade e a proximidade urbana,
como também por certo não descurar, entre outros, o aumento de injecções monetárias do exterior
especialmente pela via migratória, algum investimento em capital mecânico-tecnológico e na educação
formal, a intervenção estatal e, sobretudo, a crescente especialização vertical da produção campesina e sua
integração no mercado e, em especial, nas indústrias agro-alimentares. Tais factores vêm assim alterar as
premissas chayanovianas acerca do produto derivado do rácio produtor-consumidor no exclusivo âmbito da
exploração familiar.

54
Constrangimentos e Estratégias

CAPÍTULO 3

CONSTRANGIMENTOS E ESTRATÉGIAS

O título em epígrafe remete para o dilema atrás expresso acerca da tensão dinâmica entre estrutura e
acção. Enquanto constrangimento pressupõe as linhas de força presentes na estrutura, estratégia implica a
realização de um ou vários objectivos a médio-longo prazo, sendo não raro assumido um considerável grau
de liberdade de opção por parte do actor social. Ora, o grau de opção, além de diferenciável de acordo com a
posição de cada grupo social, não deverá, todavia, obnubilar, como assinala Redclift (1986:219), os
constrangimentos estruturais. Por exemplo, as estratégias e respectivas representações de continuidade ou
descontinuidade relativas à conservação do património diferem conforme a maior, menor ou nula capacidade
de reprodução patrimonial, além de outras variáveis, como refere Salitot-Dion (1977:42 ss), tais como
solução de reforma para o testador, grau de educação dos herdeiros, presença e participação destes na
exploração e, sobretudo, desejo e disponibilidade à sucessão.
Tendo em conta a premissa enunciada de que a estruturação da acção se vai construindo a diversos
níveis, apenas uma perspectiva que encare a relação entre constrangimento e estratégia, não de modo
dicotómico, mas tensional e articulado, poderá compreender e explicar a acção, ora diversificada, ora
convergente dos camponeses minhotos e, em particular, dos das duas aldeias estudadas. As interacções dos
actores sociais a nível microaldeão não são separáveis ou independentes dos constrangimentos estruturais de
origem endógena e/ou exógena.

Só partindo da tese do Portugal agrário e debilmente industrial até meados do século XX – tese aliás
defendida por alguns autores e por mim próprio noutro trabalho1– se toma compreensível a relativa
operacionalidade e a eficácia das diversas estratégias camponesas. Com efeito, dado o atraso e a morosidade
do desenvolvimento agro-industrial português, as economias domésticas campesinas detinham,
particularmente até 1960, uma relativa autonomia, encontrando-se ainda pouco afectadas pelo raio de acção
do modo de produção capitalista. Por outro lado, sem negar os constrangimentos da sociedade envolvente,
importa sublinhar que os camponeses não devemser considerados apenas como objectos-alvo ou sujeitos que
se desviam ou adaptam a planos impostos de fora, mas antes como actores sociais que racionalmente gizam
diferenciadas estratégias no sentido de minimizar e até minar certas dependências do Estado ou do
mercado2. Por fim, uma vez que os actores sociais não são simples ecos das estruturas, toma-se
1
Especialmente sobre os séculos XIX e XX, cf. sobretudo Godinho 1980:117 ss, J. Reis 1984:7-28, Justino 19871:29-138 e ll:105
ss, Silva e Van Toor 1982:115 ss, Silva 1989:111-155.
2
Cf. também Mouzelis 1977:51-53. Ploeg (1985:5-25), embora empolando algo a dimensão decisória do actor social, constata,
num estudo no norte de Itália, por parte dos donos de explorações de tamanho médio, dois tipos de lógica agrícola - uma de
Problema, Método e Teoria

imprescindível articular os constrangimentos relativos ao contexto das forças e instituições locais com o
agir, consciente ou não, dos actores locais, visível desde as suas estratégias matrimoniais e sucessórias,
passando pelas migratórias, até às estritamente políticas ou simbólicas.

Dado que a reprodução social inclui lógicas diferenciadas e manifesta formas moldadas pelo específico
contexto histórico de cada freguesia e pelo lugar social ocupado por cada grupo doméstico, convém ter
presente, como referem Goody (1976a:2 ss) e Rapp (1983:35), a centralidade e a contingência das
estratégias de reprodução doméstica nomeadamente pela via do casamento e da herança (8., 9.). Em regra,
quanto maior o controlo que os grupos domésticos detenham sobre os recursos, maior a virtualidade de se
manterem nas posições cimeiras da colectividade, restando aos demais a possibilidade de se reproduzirem
nos escalões médios e inferiores do xadrez local.
Na sua luta pela conquista e/ou pela manutenção do seu modus vivendi, em especial as suas formas de
produção familiares, os camponeses têm aplicado e combinado diferenciadamente, ao longo do tempo,
estratégias de resistência e adaptação ao seu alcance. Consequentemente, a sociedade camponesa,
impulsionada pelos seus actores sociais, (i) tem conhecido processos de mudança interna e (ii) não tem sido
impermeável às influências exteriores ao meio rural:

ad (i) Contrariamente a uma concepção estática das sociedades rurais tradicionais, mormente
proveniente da racionalidade liberal e moderna, os grupos domésticos camponeses têm denotado, no quadro
limitado de determinados constrangimentos inerentes às diversas situações históricas, uma notável
capacidade de mudança, acomodação ou retracção nas suas estratégias, já ofensivas, já, sobretudo,
defensivas. Estas, estreitamente ligadas à sua racionalidade específica, são detectáveis nas actividades tanto
económicas como não económicas. Bath (1978:165-168) assinala, entre outras, importantes e, por vezes,
incisivas modificações na economia agrário-campesina: o arroteamento de terras bravias, a estrumação cada
vez mais intensiva, a substituição do sistema rotativo de duas culturas pelo de três, a passagem à policultura
com sucessivas introduções de novas culturas (por exemplo, batata, milho) e a combinação de culturas
agrícolas e de pastagens. Porém, do mesmo modo, sempre que as condições externas ou internas se
apresentem adversas, adaptam estratégias de ensimesmamento, retirando-se, por exemplo, das relações
mercantis ou procurando transitoriamente, se possível, actividades ou modos alternativos de vida dentro ou
fora da colectividade.

Reportando-nos a Portugal e, em especial, ao Minho enquanto sociedade agrário-campesina, pelo menos


até à década de sessenta, também aí as estratégias camponesas encontram-se imbricadas no seu ser e agir no
âmbito da família e demais relações de parentesco no concernente ao poder de disposição sobre a casa, à
organização desta e seus resultados; na venda directa nas feiras locais, mantendo um controlo mínimo nos
circuitos de distribuição ou adaptando-se às oscilações do mercado regional e nacional; no esforço em
minimizar ou difundir os riscos inerentes aos sistemas de crédito, renda e impostos e, particularmente, no
destino do excedente; nos casamentos, nas heranças e nas eventuais decisões relativas à compra de terra, à
intensificação do trabalho e/ou à diminuição quantitativa e/ou qualitativa no consumo; nas tentativas de
evitar a proletarização, preservando, no possível, a autonomia familiar e aldeã na base dos hábitos
comunitários de entreajuda simétrica ou assimétrica; na proliferação de filhos, sobretudo no passado, não só
legítimos mas também bastardos, bem como na adopção de criados como forma de prover às necessidades
de força de trabalho com um mínimo de custos e, assim, manter a unidade doméstica3. Tradicional e, embora
sob novas formas, mais recentemente, são ainda de referir as estratégias assentes na pluriactividade e na
migração, mantendo a exploração operacional e relativamente estável com um perfil basicamente feminino
(Besteman 1989:142); a procura de alternativas para alguns dos filhos em sectores não agrícolas, em

intensificação e outra de extensificação - com resultados diferenciados nas condições de reprodução: a primeira mais independente
e a segunda mais dependente do mercado.
3
As referidas estratégias domésticas – também verificadas, como veremos, em Líndoso e em Aguiar – têm sido sublinhadas, entre
outros, por Chayanov 1966, 1976:485 ss, Ku!a 1976:43 ss, Bourdieu 1962:34 ss, 1980:249-331, Mendras 1976:77 ss e, em
Portugal, por Iturra 1983:81 ss, 1985:59-81, O'Neill 1984:145-385, Pinto 1985:127 ss, Almeida 1986:257 ss, Geraldes 1987:256
ss, Cabral 1989:63 ss, Wall 1992:163-182.
56
Constrangimentos e Estratégias

especial através de estratégias educativas, quer no tradicional contexto eclesiástico, quer, ultimamente, no
laico-civil; e - por fim mas não menos importante - nas atitudes, calculadas ou não, face aos mediadores nas
diversas formas do regime patrocinal.

ad (ii) Contrariamente a uma concepção essencialista de modo de produção designadamente em relação


ao campesinato, por um lado e, por outro, contrariamente a uma concepção psicoanalítica e psicoidealizante
da sociedade camponesa levada a cabo, nomeadamente em Portugal, por Santo (1980:153 ss, 1984:15 ss),
esta não forma um sistema fechado ou imune a influências resultantes doutros modos de produção, em
especial do capitalista, tal como sustentam, entre outros, Bettelheim (1969:322), Servolin (1972:45 e,
sobretudo, Vergoupolos (1978:220 ss). Do ponto de vista económico, as economias domésticas não se
reproduzem apenas ou por obra do modo de produção capitalista, embora sejam forçadas a adaptar-se-lhe,
procurando fazê-lo do modo menos prejudicial possível. Aldeias minhotas como Lindoso e Aguiar, pelo
menos desde meados deste século, configuram-se mais como colectividades relativamente abertas,
afastando-se assim cada vez mais das velhas comunidades camponesas bastante fechadas, tal como as
descreveu Wolf ( 1957 :2 ss) para a América Central ou Java nos anos cinquenta.
Embora a tendência dominante do modo de produção capitalista seja a de submeter, a longo prazo, as
antigas formas de produção não capitalistas, entre as quais a camponesa, nem sempre as classes dominantes
estão funcionalmente em condições ou, por vezes,nem sequer interessadas em operar a destruição das
mesmas. Independentemente de determinadas vantagens eleitorais – em que o campesinato tem constituído,
em diversos países, uma reserva de forças políticas conservadoras ou burguesas –, há fracções do capital,
cujo objectivo se centra em reestruturar ou recriar uma parte dos antigos produtores sem necessariamente
integrá-los ou concentrá-los verticalmente. Para além da possibilidade de ramos da agropecuária (aviários,
estufas hortícolas) serem passíveis de mecanizar-se e viabilizar-se com um mínimo de terra, o facto de os
camponeses serem detentores de terra, em nome próprio, liberta a burguesia agro-industrial da necessidade
de incluir, nos cálculos de custos, os encargos com o recrutamento, a mobilidade e o controlo da força de
trabalho assalariada e, sobretudo, com a renda absoluta, o que indirectamente possibilita o aumento da taxa
de lucro, tal como o frisaram diversos autores4.
No quadro dos correlativos processos de conservação-dissolução e/ou adaptação-recomposição das
formas de (re)produção não capitalistas face ao modo de produção capitalista destaca-se o comunitarismo,
denotativo da considerável, ainda que relativa, autonomia das economias agro-pastoris-artesanais (5.). No
concernente a Portugal, a permanência dos modos de vida comunitários teria contribuído, em grande
medida, para a relativa tranquilidade social e política no norte do país. Já em 1935, na sequência das suas
pesquisas sobre Portugal, caucionadas por figuras do regime salazarista, concluía o sociólogo francês
Descamps: «No norte de Portugal há ainda aldeias, em que as famílias mantêm entre si laços comunitários.
Elas formam a parcela mais estável da sociedade portuguesa» (1935:xiii).
As possibilidades de resistência do campesinato nas formações sociais antigas e modernas, sendo
diversas, dependem da maneira como o modo de produção camponês coexiste ou está submetido a outros.
Por exemplo, numa formação social, em que o modo de produção tributário (cf. Amin 1981:50 ss) seja
dominante, especificamente sob a forma de renda monetária, a posição do campesinato difere de uma outra
em que seja preponderante o modo de produção capitalista. Tal como se constatará respectivamente em 6.,
11. e 12., factores endógenos e exógenos, a nível económico-social, e mudanças de configurações religiosas
e políticas evidenciam que, não obstante as persistentes estratégias de resistência e adaptação, as
comunidades e suas respectivas identidades tendem a ser incorporadas, absorvidas ou diluídas, tal como o
assinalaram, entre outros, Redclift (1973:3 ss) e Almeida (1986:373).
Para as sociedades de feudalismo moderado, tributárias e de transição para o capitalismo, é válida a tese
de que quanto mais liberto e autónomo for o campesinato dos modos de produção co-existentes, maior o
grau de autonomia e o potencial de resistência. Ou seja, quanto maior a margem de negociação perante os
demais actores colectivos, designadamente a burguesia, tanto melhor posição adquirirá o campesinato em

4
Cf., entre outros, Marx 1974a 11:631 ss, 658 ss, Mandel 1962 11:180, Servolin 1972:74-75, Jollivet 1974:238-239, Rey 1979:35-
67, Vergoupolos 1978:158 ss, Tepicht 1973:35, Gutelman 1975:126-139.
Problema, Método e Teoria

determinadas situações sócio-políticas sobretudo revolucionárias. Se, nesta perspectiva, as categorias


tacticamente móveis e mais bem posicionadas são os camponeses médios, como defende Wolf (1974:300),
tão pouco é todavia de excluir que camponeses menosprovidos, desde que adequadamente organizados ou
apoiados, possam, em determinadas constelações políticas, constituir grupos coerentemente tanto ou mais
revolucionários que os primeiros.

3.1. Estratégias básicas

Para reproduzir-se socialmente, as estruturas das colectividades ou sociedades deverão, como sublinham
Bader e Benschop (1988: 112 ss), preencher uma série de requisitos indispensáveis, entre os quais produção
material, reprodução biológica e protecção social, condições infra-estruturais e ecológicas mínimas,
informação e comunicação, qualificação e coordenação, requisitos estes que se repercutem nas relações inter
e intrafamiliares. No vertente caso das casas pertencentes às categorias de camponeses relativamente
autosuficientes, poder-se-á dizer que, em regra, tais grupos domésticos estão em condições de organizar o
processo produtivo e reprodutivo. Não obstante, tal como foi enunciado, serem várias as estratégias de
reprodução e transformação, fixar-me-ei nalgumas delas por assumirem uma função nuclear na acção
camponesa: o casamento, a herança e as migrações.

Quer os condicionalismos e as estratégias de casamento, quer as situações e os estratagemas centrados


no processo de transmissão dos bens pela herança constituem duas componentes fundamentais e
indissociáveis dos processos de reprodução e, eventualmente, de mobilidade social.
Na análise do casamento há a considerar vários aspectos desde o processo de formação da decisão de
casar-se, passando pela dimensão ritual, até à dinâmica reprodutivo-estratégica. Se as causas subjacentes às
estratégias matrimoniais abarcam dimensões da conduta humana que não se compadecem com uma
explicação mecânica, economicista, seria, senão ilusório, pelo menos deformador ou insuficiente partir
analiticamente ora das considerações oficiais das instituições celebrantes, ora apenas das emoções e
representações dos noivos ou cônjuges.
Um dos correntes e estereotipados pressupostos consiste em conceber e avaliar o casamento mediante
um continuum evolutivo de padrões de comportamento desde os dominados pelo interesse ou pelo cálculo –
e como tal imputáveis à «rudeza» ou «mesquinhez» dos protagonistas camponeses – até às modernas formas
de emparelhamento baseadas em opções individuais, às quais presidiria já não o cru interesse material, mas
o amor romântico, a emoção ou o sentimento, eventualmente combinado com factores erótico-estéticos,
enfim, uma relação empática e intensiva entre os cônjuges e um corte com os laços comunitários. Nesta
caracterização assume-se tendencialmente, por um lado, uma visão desvalorizadora das relações amorosas
tradicionais vistas como instrumentais e, por outro, uma perspectiva encomiástica e sobrevalorizadora da
sociedade moderna, tal como o expressam tácita ou explicitamente alguns autores como Shorter (1976:3-21)
e, até certo ponto, Simmel (1977:375 ss). Estas posições enquadram-se e convergem, em última instância,
com as premissas etnocêntricas e glorificantes das sociedades urbano-industriais, as quais, por sua vez,
assentam nos pressupostos dicotómicos do tradicional versus o moderno e nas respectivas variáveis-padrão
teorizadas pelos expoentes máximos do evolucionismo estruturo-funcional, particularmente de Parsons
(1964:356, 1988:102) (2:6.1). Com estas premissas se articulam, em relação à estrutura familiar, os
mecanismos de socialização dos filhos por parte dos pais e a atribuição dos respectivos e recíprocos papéis
na família nuclear (por exemplo, instrumentalidade masculina versus expressividade feminina) explanados
por Parsons (1956:45 ss), mecanismos e papéis que, além de conservadores, se apresentam demasiado
estáticos e rígidos.
Flandrin (1975:95 ss), embora empolando a dimensão de liberdade de opção, tem mostrado como,
designadamente entre o século XVI e o século XIX, os amores camponeses constituíam uma realidade
vivida. Teoricamente, porém, têm sido autores como Bourdieu (1980:249-331), Goody (1983:2 ss), Segalen
(1983: 15 ss) e sobretudo Medick e Sabean (1984:10 ss) que mais têm destacado que interesse e emoção
formam um todo indissociável, socialmente constituído e originário de uma mesma matriz. Diferente é a
questão de saber como se articulam estes dois aspectos nos diversos processos de trabalho, nas relações de
58
Constrangimentos e Estratégias

propriedade e nas interacções sociais e se, eventualmente, o interesse ou o cálculo prevalece sobre a paixão
ou vice-versa. Os imperativos de ordem sócio-económica surgem ora conjugados ou até ocultos sob
condicionamentos de atracção física, ora mediados por disposições inculcadas na educação familiar sob
expressões de carácter afectivo-sentimental ou moral, tal como o exprime Bourdieu: «As estratégias
matrimoniais não têm por princípio nem a razão calculadora nem as determinações mecânicas da
necessidade económica, mas antes as disposições inculcadas pelas condições de existência, espécie de
instinto socialmente constituído que leva a viver como necessidade inelutável do dever ou como apelo
irresistível do sentimento as exigências objectivamente calculáveis de uma forma particular de economia»
(1980:270).
O casamento, conforme a categoria social dos noivos, conduz ora à recomposição de patrimónios ora à
junção de salários e outros rendimentos originários da terra, já própria, já arrendada, permitindo amiúde a
aplicação de aforros agrícolas e extra-agrícolas. Uma explicação adequada, assumindo não só a
determinação dos factores económicos e políticos como o eventual concurso de outros tais como a atracção
erótico-sexual, remete-nos, por conseguinte, para a articulação das relações de domínio de classe e
patriarcal, relações estas igualmente presentes, como veremos em 8:4 e 9:3, no fenómeno da ilegitimidade.
Se os protagonistas de relações de parentesco oficial tendem a negociar e a celebrar o casamento ideal e
extraordinário entre partidos de elevada posição social, são todavia as relações de parentesco práticas, como
refere Bourdieu (1980:299 ss), as que são reactivadas para levar a bom termo os diversos empreendimentos
matrimoniais. Ou seja, o casamento conserva uma função instrumental em vista da reprodução social da
casa, pressupondo relações sociais das que ele próprio é resultante. Daí que, no contexto tradicional da
sociedade campesina envolvida por um sistema de herança avantajada, influenciar ou inclusivamente
determinar qual ou quais do(s) filho(s) ou filha(s) deveria(m) casar-se e, eventualmente, ser o(a) sucessor(a)
principal na casa constituía uma preocupação nuclear dos respectivos grupos domésticos. Aos demais filhos
restar-lhes-ia, senão encetar profissões não agrícolas prestigiantes (militar, padre), manter-se celibatários na
casa ou emigrar, duas alternativas de exclusão e, simultaneamente, de complementaridade de um objectivo
estratégico central: permitir o acesso, por parte do herdeiro principal, ao controlo da terra e à reprodução da
casa. Assim, o casamento, enquanto instituição monogâmica e indissolúvel, embora, como defende Goody
(1983:83 ss), fortemente modelado desde o século IV pelas prescrições cristãs e pelos interesses
eclesiásticos, articula-se com estratégias de estabilidade por parte das colectividades e dos grupos
domésticos em condições de gerir um património autónomo, tal como o sublinham Aries (1983:148 ss) e,
em Portugal, Cabral (1991:156).
Os padrões de casamento e eventuais variações inter-regionais de nupcialidade, designadamente em
Portugal, estão intimamente relacionados, dependendo, como refere Bacci (1971:50 ss), dos modos de
distribuição da propriedade e dos respectivos sistemas de herança, assim como, por consequência, do padrão
de emigração basicamente masculino sobretudo nos distritos do norte. Um sistema indivisível ou avantajado
tenderá a provocar alta taxa de emigração e a criar padrões de baixa nupcialidade rural ainda que não
necessariamente urbana-, casamento tardio e elevado índice de celibato, tal como tem sido referido, entre
outros, por Habakkuk (1955:6 ss) e, em Portugal, por O'Neill (1984:204 ss).

O sistema de herança divisível na variante de partilha igual, se é também susceptível de induzir à


mobilidade geográfica e a movimentos migratórios, como aliás o próprio Habakkuk (1955:7) reconhece,
tende a elevar a taxa de nupcialidade e a fragmentar o património familiar ou a endividar o herdeiro
principal da casa, operando assim como factor de desclassificação e/ou desagregação do grupo doméstico
originário. Porém, o significado e o alcance das formas de distribuição e transmissão de bens de herança,
assim como as possibilidades de investimento de eventuais poupanças agrícolas e extra-agrícolas realizam-
se diferenciadamente por local geográfico e por grupo social, por um lado, e sofrem transformações ao longo
do tempo, por outro.

Os sistemas de propriedade e herança permitem levar a cabo estratégias de identificação, reprodução e


perpetuação dos grupos domésticos (cf. Bertaux 1978:48, 72 ss). Relativamente à instituição da herança,
creio ser pertinente e aplicável a distinção de Augustins (1982:40 ss) entre suceder, enquanto processo de
Problema, Método e Teoria

tomar o lugar e a dignidade do testador e de sua casa e herdar entendido como processo de (in)divisão e
aquisição de bens por transmissão inter vivos ou post mortem. Com efeito, mesmo quando no
contemporâneo direito sucessório português se tenha adoptado o princípio da partilha igual, permitindo
assim o concurso de todos os herdeiros, manteve-se, todavia, designadamente até aos anos cinquenta e
sessenta, sobretudo em Aguiar, a prática da herança avantajada, surgindo, neste último caso, um dos filhos
como herdeiro principal, ao qual lhe são conferidos o acesso ao património fundiário e a gestão da casa. Se a
partilha igual constitui um mecanismo de redistribuição de recursos, ainda que exíguos, e de acesso
generalizado à igualdade de direitos na esfera sucessória, a solução extrema da herança indivisível e suas
correlativas instituições como a primogenitura e o morgadio exprimem uma desigualdade de tratamento dos
herdeiros e, simultaneamente, a necessidade de preservação do património familiar. Se bem que, como
refere Goody (1976a:6), a distinção destes modos de herdar não deva ser entendida de modo absoluto – uma
vez que as diversas práticas concretas situar-se-iam num continuum entre os dois extremos –, estes dois
pólos institucionalizados de herdar têm produzido historicamente os seus efeitos sociais. Se, no sistema de
herança indivisível, os virtuais direitos, pretensões ou sentimentos dos excluídos são autoritária ou
subtilmente abafados, no da partilha tendencialmente igualitária este tipo de exclusão e conflitualidade tende
a desvanecer-se. No entanto, também na modalidade de partilha igual, sobretudo em casos em que se
verifique uma exiguidade de recursos com uma elevada taxa de fertilidade e correlativa pressão
demográfica, as relações entre irmãos/cunhados e sogros(as) e genros/noras conhecem igualmente latentes
ou manifestas tensões e emulações, tal como, por exemplo, Segalen(1984:130 ss) o registou para a Bretanha.

Relativamente a Portugal, na sequência e paralelamente a vestígios doutras instituições do regime


sucessório medieval tais como o direito de troncalidade5, o morgadio – que legalmente seria abolido em
1863 mas persistiria, na prática, até mais tarde – assegurava não só a inalienabilidade como a transmissão
jurídica ao primogénito dos domínios patrimoniais, bem como outros direitos aos demais detentores menores
de terra. A própria abolição legal do morgadio viria provocar o aparecimento de um sucedâneo hábil – as
doações –, as quais, segundo R. Silva (1983:44), ter-se-iam multiplicado a partir de 1897, época em que
também em Aguiar se registaram algumas (9:1).Ainda até recente data, como o demonstrou O' Neill
(1984:364 ss) para uma aldeia transmontana, no sistema de herança prevalentemente indivisa e post mortem,
os filhos não-herdeiros vão sendo socializados e «domesticados» no sentido de aceitar como facto inelutável
a sua exclusão do património transmissível.
Hoje, mais que ontem, as condições de produção agrícola permitem, em regra, a reprodução camponesa
de um ou dois, mas de modo algum de todos os herdeiros. Daí que a atenção se centre cada vez mais em
formas de reprodução não agrícolas, inserindo os filhosem lugares de produção industrial ou de serviços
articulados amiúde com actividades agrícolas a tempo parcial, como veremos em 6:2. Tais estratégias, além
de coadjuvar processos de recomposição camponesa, vão ao encontro das necessidades das pequenas,
médias e, por vezes, grandes empresas não agrícolas na medida em que estas se permitem pagar baixos
salários a uma mão-de-obra dispersa, dócil e flexível, de mentalidade camponesa e, por norma, não
sindicalizada e bem relacionada com os seus patrões, aspectos constatados tanto em Lindoso e Aguiar como
noutras aldeias (cf. Ingerson 1982:1486, M. V. Cabral 1983:215 ss, Lewis e Williams 1986:332 ss).
Uma terceira e fulcral situação constrangedora e simultaneamente estratégica tem por foco de análise os
movimentos migratórios, de que se destacam os relativos à épocacontemporânea. Desde meados do século
XIX, a par de transferências de capital das regiões e dos países centrais para os periféricos, se tem
igualmente intensificado, por parte destes em direcção àqueles, a exportação de matérias-primas e de força
de trabalho. Como explicar, no processo histórico das nações e do sistema económico-político mundial, a
relativa escassez de força de trabalho sobretudo não qualificada nos países do centro e a sobreabundância da
mesma nos periféricos?
A teoria clássica liberal parte do pressuposto que no mercado se verifica uma auto-regulação e uma
concorrência perfeitas. De acordo com a lei da oferta e da procura, o mercado encarregar-se-á de equilibrar

5
Recuando ao regime sucessório medieval, é de destacar o direito de troncalidade no quadro do sistema de propriedade vinculada,
cuja regra, na falta de descendentes, consistia cm transmitir a herança aos herdeiros pela via parental do falecido, salvaguardando
a integridade do património familiar (L Telles 1963:144 ss, R. Silva 1983:16 ss).
60
Constrangimentos e Estratégias

os fluxos migratórios, não havendo necessidade de colocar obstáculos extra-económicos para manter esse
equilíbrio. Neste sentido as migrações teriam por função repor eventuais diferenciais salariais nos diversos
países, reconhecendo-se assim as vantagens comparativas decorrentes da divisão do trabalho e, em
particular, das trocas inter-regionais ou internacionais da mão-de-obra. Vistas tais vantagens pela
perspectiva do emigrante, estes mesmos autores sustentam ainda a denominada teoria do capital humano,
segundo a qual o emigrante decidirá partir, sempre que os benefícios a médio e a longo prazo recompensem
os custos e os sacrifícios da emigração.
Numa versão mais apurada que a clássica, teóricos expoentes da corrente neoliberal, tentando suprir as
incongruências da concorrência perfeita e incidindo o acento tónico no crescimento produtivo, assumem a
possibilidade de um equilíbrio inter-regional ou internacional, desde que regiões ou países com elevados
volumes de capital possam afluir para espaços com baixos salários e que agentes assalariados possam
livremente acorrer a países com salários mais compensadores, cabendo contudo ao Estado um papel
regulador, ainda que limitado e, portanto, sem pôr em causa os pressupostos básicos.
A persistência de desigualdades sociais e desequilíbrios inter-regionais com as respectivas dessincronias
de crescimento, bem como o círculo vicioso de acumulação-retardamento levaram autores como Myrdal
(1959:13 ss) e Seers (1967) a criticar as teorias (neo)liberais do equilíbrio estável e das vantagens
comparativas do comércio internacional e a aventar o princípio da causação circular com efeitos
cumulativos. Porém, para estes autores, se, por um lado, este princípio é susceptível de reproduzir as
preexistentes situações de subdesenvolvimento, pode igualmente induzir pólos e efeitos impulsores de
crescimento, desde que o Estado e outros factores institucionais corrijam desajustamentos e regulem tais
processos. Nestas condições, tais centros de crescimento, sendo necessariamente propulsionados por
unidades empresariais fortemente capitalizadas, embora possam de início acarretar um certo retardamento
económico ou polarização social, acabarão por, numa fase posterior, constituir alavancas de inovação e
desenvolvimento, para o qual poderão contribuir, entre outras, as iniciativas dos agentes locais.
Embora distanciando-se do conceito de «crescimento» e «pólos de crescimento», é de destacar a
abordagem do desenvolvimento local e regional autocentrados, cujos proponentes (Lopes 1980:276 ss,
Cepeda 1988:39 ss) tendo em conta os diversos aspectos do fenómeno migratório (económico-demográfico,
político e cultural) e vincando a necessidade de potenciar os recursos e valores regionais, igualmente
procuram superar os efeitos perversos do crescimento desigual e, em especial, os desequilíbrios causados
pelas migrações (subdesenvolvimento, desenraizamento).
Nem as correntes clássica e neoclássica nem os propósitos reformadores da teoria dos pólos de
crescimento ou do desenvolvimento local e regional põem em causa os pressupostos básicos do próprio
sistema de produção capitalista. Será a tese marxista que os criticará radicalmente, quer nas suas posições
tradicionais (Marx 1974a, Lenine 1970, Luxemburgo 1967), quer nas mais recentes versões designadamente
a da teoria da dependência e da (semi)periferia face ao centro sustentada, entre outros, por Frank (1977),
Cardoso e Falleto (1971), Castles & Kosack (1973), Wallerstein (1990) e, em Portugal, Ferreira (1977:12
ss), Santos (1985:869-901) e Fortuna (1993: 59 ss). Assente na economia de mercado é o próprio modo de
produção capitalista que (re)produz as referidas desigualdades, desequilíbrios e consequentes movimentos
migratórios: concentração de capital nos países ou regiões do centro, excedente e desemprego de mão-de-
obra nos da periferia, troca desigual entre os fluxos de capital e bens manufacturados dos primeiros para os
segundos; e, por parte dos países da periferia, exportação de matérias-primas e mão-de-obra sobretudo
jovem, não qualificada e, em regra, sem encargos pré-emigratórios com a alimentação e a formação mínima,
fazendo assim fluir as correspondentes mais-valias dos países da periferia para os do centro. Não destruindo
os monopólios, basicamente privados, do poder económico nem a natureza predominantemente classista do
poder político, a concretização do desenvolvimento integrado a partir da base, independentemente das boas
intenções, toma-se problemática e prisioneira das suas utopias quando não questiona os cimentos do actual
sistema.
Também em Portugal, como país tradicional de emigração sobretudo desde a segunda metade do século
XIX até ao presente, não tem sido alheia aos discursos político-ideológicos de vários quadrantes a questão
da emigração, sobressaindo o elaborado pela elite conservadora e passadista, onde são veiculadas
concepções eivadas de uma certa idealização psicologizante, exaltando, como que por destino, o modo típico
Problema, Método e Teoria

de ser português enquanto figura invariavelmente «aventureira» e migrante6.


Ressalvando esta (pseudo)explicação de carácter ideológico e quase mítico, outras respostas se
apresentam com um menor ou maior grau de verosimilhança e fundamentação. Enquanto autores como
Ribeiro se inclinam a ver na «pressão demográfica» o factor gerador da emigração e, nesta, a sua «vocação
demográfica» (1970:349), outros como Antunes (1981:20 ss) e sobretudo Brettel (1991:23 ss) – esta última
sem descurar a dimensão demográfica – tendem a acentuar ora o perfil sócio-psicológico do emigrante, ora
um determinado ethos cultural, o qual, a par de efeito, funcionaria como variável (co)explicativa da decisão
migratória. Nesta óptica, as opções individuais e a sua interacção com o grupo, constituindo o factor
decisivo e imediato para a mudança estrutural da sociedade, conduziriam a padrões de conduta e a situações
caracterizadas por homeostase ou equilíbrio populacional7.

Desde os finais do século XIX, numa interpretação um tanto organicista, alguns autores apontam como
causas da emigração as situações de miséria, o relativo excesso de mão-de-obra rural, considerando-a como
o «resultado de uma deficiência ou de uma perturbação nos órgãos da sociedade» (Herculano 1873:70) ou
o «epílogo necessário da desordem económica» nacional ou ainda o «atestado de prostituição política e
económica» do país (Martins 1956:260-261). Ainda sobre a emigração nos séculos XIX e XX e, em
particular, a última vaga emigratória dos anos sessenta e setenta, Serrão (1977:146 ss) e sobretudo Almeida
e Barreto (1976), sem deixarem de focar a emigração como resultado dos desequilíbrios sócio-económicos e
geográficos do sistema capitalista mundial, analisam-na contudo basicamente como um produto de
desequilíbrios regionais e condicionalismos endógenos de carácter sócio-económico inerentes ao atraso
estrutural do capitalismo português.
Mais recentemente, numa linha interpretativa semelhante mas com uma análise mais elaborada e/ou
incorporando as próprias opiniões dos protagonistas migrantes, sobressaem respectivamente os trabalhos de
Godinho (1978:23 ss) e M. Silva et al. (1984). Também estes autores, embora referindo diversos aspectos da
emigração, incidem particularmente sobre as razões económicas quer sob o prisma da procura por parte das
necessidades do país receptor, quer a partir da oferta do país fornecedor e, em especial, das carências dos
actores-migrantes num país semiperiférico como Portugal, em vias de desenvolvimento mas com relativo
excesso de mão-de-obra. Neste sentido, a emigração constitui uma resultante dum fenómeno de repulsão,
por parte das colectividades rurais, e de atracção, ainda que instrumental, por parte dos centros industriais-
urbanos.

Antes de mais e em relação à referida abordagem psico-mítica, quase desnecessário será notar que o
período de ascensão de Portugal como nação colonial e mercantilista se distingue todavia dos objectivos
estratégicos dos emigrantes contemporâneos que, desde meados do século XIX até hoje, despontaram rumo
ao Brasil, à Argentina e a outros da América e, posteriormente, em direcção ao noroeste e norte da Europa.
Por outro lado, quanto aos movimentos migratórios dos séculos XIX e XX, tão pouco é possível construir
uma imagem monolítica e descontextualizada da emigração. Daí tomar-se necessário considerar o
diferenciado e subordinado lugar da agricultura no modo de produção capitalista, a nível nacional e
internacional, como propõe Almeida (1977:801 ss) e sobretudo as diversas fases ou, na terminologia de
Sayad (1977:61 ss), «idades» da (e)migração, designadamente camponesa. Os factores de atracção e
repulsão, as causas e os efeitos dos movimentos emígratórios a curto, médio e longo prazo devem, portanto,
ser objecto de análise cuidada de período a período.
As migrações oriundas dos meios campesinos terão certamente que ser analisadas em parâmetros
regionais e internacionais à luz da desigual acumulação de capital de região para região e de país para país.

6
A este respeito, cf., entre outros, Sampaio 1979 II:159. Ainda que parcial, esporádica ou incidentalmente, cf. também Maciel
1979:49 e sobretudo Cepeda (1988:209) que refere «a vocação portuguesa para se espraiar pelos quatro cantos do mundo». Desta
«fatal» vocação parecem estar arredados os últimos fluxos migratórios em que, por efeito do processo de modernização e
descompressão demográfico-social, vão sendo visíveis, segundo J. Peixoto (1992:854 ss), alguns indícios de relativo estancamento
desde a década de oitenta.
7
Subjacente a esta interpretação e ao próprio conceito de «homeostase» – aliás importado do funcionalista K. Davis (1963:345 ss)
– encontram-se os pressupostos (estruturo)funcionalistas, presentes singularmente em Parsons (1988:35 ss) como seu expoente
máximo.
62
Constrangimentos e Estratégias

Também em Portugal para explicar o fenómeno migratório dever-se-á ter em conta não só a sua situação de
pobreza e atraso estruturais, de desemprego e incapacidade de absorver o excedente da própria força de
trabalho nomeadamente rural, mas também a relativa falta de mão-de-obra sobretudo não especializada nos
países de acolhimento, ainda que em contextos diferenciados. Assim, se no século XIX a emigração
nomeadamente portuguesa se correlaciona com a amplidão dos países receptores e, em particular, com a
abolição de sistemas de escravatura e de (semi)servidão (como, por exemplo, no pós-1888 no Brasil), na
segunda metade do século XX a sua absorção, por parte dos Estados Unidos, do Canadá e de países
europeus, relaciona-se com o excedente de capital, em consonância com a fase de reconstrução após a II
Guerra Mundial e o boom industrial americano-europeu a partir da década de sessenta.

De modo geral e ainda em termos macroeconómicos e financeiros, se as emigrações pela via das
remessas cobriram o défice de mão-de-obra não qualificada nos países do centro, as respectivas remessas
contribuíram, de modo recorrente, para manter o statu quo sócio-económico interno e contrabalançar os
défices orçamentais e comerciais nos países exportadores da referida mão-de-obra designadamente em
Portugal (cf. Pereira 1981:36 ss, Serrão 1985:1000). Porém, nem os camponeses são simples executores de
exigências macroestruturais nem as suas decisões de (e)migrar são apenas resultantes de sistemas e factores
exógenos às economias camponesas – perspectiva que, se exclusiva, denotaria uma visão «etnocêntrica e
parcial» (Sayad 1977:59). Por isso, as migrações internas ou externas constituem simultaneamente respostas
estratégicas à imperiosa necessidade de reprodução, reestruturação, reconversão ou até temporário
abandono, conforme o diferenciado grau de controlo sobre recursos, a dimensão e as estratégias dos
respectivos grupos domésticos. Na mira de reproduzir e expandir a exploração ou superar as crises do ciclo
familiar, como refere Medick (1976:306 ss) e, deste modo, diminuir os riscos de desagregação, os grupos
domésticos colocam sazonal ou definitivamente os membros excedentes da força de trabalho familiar em
diferentes sectores, estratégias essas que, no decurso do trajecto, podem mudar de configuração. Sempre
que, comparativamente ao aumento de sacrifícios exigidos pelo trabalho agrícola, as remunerações obtidas
nos mercados de trabalho exteriores sejam possíveis e compensem ou superem os rendimentos daquele, é
provável que se verifique, tal como não só os liberais mas também autores como Tepicht (1973:133 ss) o
observaram, a transferência sazonal ou permanente de parte da força de trabalho familiar. Nesta óptica, a
migração, tal como o celibato ou o sacerdócio, tem em vista preservar o património ou, pelo menos, «evitar
uma descida de estatuto familiar» (Iszaevich 1975:302). Neste contexto, mesmo quando o processo de
proletarização seja, a longo prazo, «inevitável», poder-se-á compreender como, contrariamente a previsões
ou análises um tanto lineares de Castro (1945:86), F. Rodrigues (1965:80) e R. Costa (1975:97 ss), não se
tem assistido em Portugal, menos até 1960-70, a fenómenos generalizados de proletarização, mas antes de
recomposição e reestruturação dos lugares camponeses (Silva 1989:125 ss).

3.2. Religião, Igreja e poder clientelar

A acção campesina, em especial as suas posições de alinhamento com representantes do bloco


conservador no Portugal contemporâneo, não pode ser compreendida e explicada sem ter em conta, a nível
local, o sistema de patrocinato ou clientelismo, cujo significado importa, antes de mais, referir, bem como as
dimensões que esta temática, a nível teórico, tem levantado. Visto que patronos e mediadores operam como
elos de conexão entre dois pólos, a análise da mediação clientelar é inseparável das relações entre duas
entidades mediadas: os aldeões e o Estado.
Na sequência da ideia-chave de que nem os pressupostos liberais nem os do marxismo ortodoxo tiveram
em conta a especificidade da racionalidade campesina, tal défice, repercute-se igualmente na abordagem do
fenómeno religioso entre a população rural e, em particular, a camponesa. É neste âmbito que a visão
cosmogónica e naturalista do campesinato não recebe estatuto de filosofia e a sua religiosidade, além de
considerada não reflexiva, é relegada para a categoria residual de «superstição».

Também na prossecução da política em sentido estrito verificam-se estratégias tendentes a assegurar


Problema, Método e Teoria

e/ou melhorar o seu modo de vida. Dadas as condições de produção e existência relativamente atomistas e
isoladas, rara e dificilmente os camponeses se têm podido organizar e afirmar como classe, tal como já o
salientara Marx (1970:132-133) e teoricamente o desenvolveu Bader (1991:216 ss). Porém, mesmo quando
não se encontrem organizados, a partir de uma situação relativamente semelhante e tendo em conta, tal como
o sublinha Kula (1976:134), a luta pela retenção máxima possível do excedente, os camponeses actuam na
mesma direcção, dando lugar ao que Scott (1990:183 ss)ambiguamente denomina «infrapolítica». Em todo o
caso, coincidente ou não com os interesses colectivos, cada casa procede em função de seus interesses e
estratégias que, sempre que possível,se repercutem na arena política. Daí que uma das condições básicas de
reprodução e eventual mobilidade social, ora ascendente, ora descendente, consistirá na determinação do
grau de poder e prestígio político e simbólico que cada uma das famílias vai detendo, adquirindo ou
perdendo no xadrez local. Neste sentido, o lugar de cada família depende não só do poder económico de
cada uma, mas também de outras fontes ou recursos que arrastem consigo aumento de prestígio e poder. Do
mesmo modo, os clientes dependentes estabelecem as suas estratégias e cálculos em regime patrocinal8em
função da obtenção de trabalho, terra e favores.

Certos autores como Lerner, Banfield e Rogers9 defendem, nas suas teorias pró-modernização, que são
os elementos da elite local, enquanto possuidores de recursos materiais, educacionais ou simbólicos, que
constituem os agentes inovadores e difusores de processos de modernização sócio-económica e política das
colectividades. Embora tal ocorra com frequência em sociedades de transição e implantação do modo de
produção capitalista, sucede, porém, que em determinadas sociedades e períodos históricos, têm sido
justamente certos notáveis locais que, em função das suas posições de domínio, têm liderado processos ora
de libertação anticolonial, ora de resistência a programas de incorporação na economia e na sociedade
envolventes. Donde, uma abordagem ahistórica ou descontextualizada conduzir-nos-ia a um beco sem saída.
Sem excluir a confluência de diversos tipos ou funções mediadoras num dado período, importa todavia
ensaiar uma análise histórica das mesmas, tendo em conta as condições estruturais e conjunturais que
possibilitam aos mediadores-guia tomar ou não viáveis esquemas de inovação e laços de interacção eficaz
entre as colectividades e as instituições municipais ou estatais. Estas, no processo da sua implantação nas
colectividades locais, não raro necessitam ora de utilizar a força física – como já o referira Marx (1974a
I:442 ss) –, ora de intensificar divisas de persuasão ideológica e, assim, diluir normas e valores camponeses,
ramificando a sua acção em diversos sectores: desde os projectos infra-estruturais, de política agrícola e
desenvolvimento, passando por programas específicos a nível da educação, saúde e segurança social, até à
inserção nos mecanismos políticos locais.

3.2.1. A crença: vivência e legitimação

Do facto – aliás evidente em Lindoso e em Aguiar (11:1) – de a crença e a simbologia religiosas terem
dominado e enformado a «consciência colectiva» dos moradores e absorvido uma parte não negligenciável
do seu quotidiano, poder-se-á, perante a questão inicialmente colocada, concluir que a religião constitui o
principal factor estruturante da conduta sócio-política dos camponeses?
Confinando-se a religião à dimensão simbólica do comportamento humano, ela tem sido

8
Em relação a Portugal, enquanto no norte as relações clientelares têm persistido até recente data, a progressiva e mais precoce
erosão do sistema clientelar no sul - a que se refere Cutileiro (1977:321, 327 ss) - contribui para explicar a forte desestruturação
das relações verticais e a correlativa intensificação das relações horizontais de classe no suL A tal resultado não serão certamente
estranhos vários factores tais corno o carácter mais coercivo do latífundismo, as fracturas entre trabalhadores permanentes e
eventuais, o êxodo rural e o desemprego resultante dalguma mecanização (cf. Barros 1986:266 ss, Baptista 1980:358 ss) e, por
fim, mas não menos importante, o crescente absentismo dos latifundiários, nomeadamente quando bastantes deles deixaram de
prestar algum apoio, mesmo que paternalista, aos trabalhadores (recrutamento, assistência familiar mínima).
9
Lemer 1958:47 ss. Banfield 1958:155 ss, Rogers 1969:292 ss. Tal como foi referido, a posição de Banfield é rebatida por
Silverman (1968:1-20). Entre os críticos das temias da modernização através da difusão cultural ou pela inovação tecnológica
iniciada pelos moradores económica ou politicamente mais dotados, cf., além dos autores referidos na nota 7 do capítulo 2, ainda
Wertheim 1971:98 ss e Migdal 1974:149 ss.
64
Constrangimentos e Estratégias

tradicionalmente analisada a partir de dois eixos considerados determinantes da acção social: um de tipo
(estrutural)funcionalista com forte pendor culturalista e cujos expoentes seriam, entre outros, Durkheim
(199l:92 ss), Parsons (1963), Bellah (1964:359 ss); outro, histórico e (estrutural)materialista, no qual
sobressaem, além de Marx, representantes da visão marxista tradicional tais como Althusser (1980:43, 58
ss). Se, por exemplo, para Durkheim, a religião constituiria um «sistema solidário de crenças e práticas
relativas às coisas sagradas»(1991:108-109) e, como tal, separadas, interditas e opostas às expressões
profanas, para Marx a religião seria um subproduto da miséria humana, uma criação fantasmagórica do
homem alienado que serviria de «ópio do povo» (1982:383). Enquanto para os (estrutural)funcionalistas a
religiosidade e, em particular, o ritual, como sistema produtor de sentido e/ou componente da dimensão
normativa, comunicativa e cultural inerente a qualquer sociedade, seria factor constitutivo e estruturante da
vida comunitária e (co)determinante da acção humana, para a maior parte dos marxistas o subsistema
religioso, decorrendo do processo de divisão do trabalho manual e intelectual e fazendo parte integrante do
complexo superestrutural e da ideologia dominante, representaria um epifenómeno, cujas funções
consistiriam em alienar os sujeitos dominados e, deste modo, legitimar e reproduzir a estrutura de
desigualdade sócio-económica.

Qualquer uma destas posições resulta inadequada ou insuficiente. O funcionalismo, ao assumir


vagamente a sociedade como substrato (quase)ontológico da crença e ao sugerir, em simultâneo, a dimensão
religiosa inserida na «consciência colectiva» como factor imanente e determinante dos fenómenos sociais,
tende a transmutar ou a reduzir o seu holístico à dimensão normativa ou cultural. Mais, denota a sua função
legitimadora do statu quoquando, ignorando a polaridade contraditória na sociedade e no seio da própria
comunidade eclesiástica, concebe o ideário religioso em termos orgânicos e consensuais, além de obscurecer
ou ocultar a que instituições e grupos sociais aproveita principalmente o operar da função religiosa no todo
social. Além disso, a toda a série de ritos e demais actos cerimoniais encontra-se a necessidade prática de
prover à produção de bens e à reprodução da sua própria existência. Nesta perspectiva, o binómio sagrado-
profano surge impregnado de certa ambiguidade analítica decorrente da fluidez, (con)fusão e incerteza dos
respectivos campos, à qual subjaz, como refere Bourdieu (1971:308), a divisão entre os detentores da
revelação do saber acerca do sagrado e os seus profanadores e consumidores dele despossuídos. Por fim,
carece de fundamento social e científico a preocupação, aliás metafísica, de autonomizar em absoluto a
dimensão ritual-religiosa sem articulá-la devidamente com a dimensão terrena, crítica esta que, embora não
aplicável, em primeira instância, a Durkheim, o é certamente à maior parte das visões transcendentes e
teológicas acerca da religião. Não só o avanço dos processos de secularização vai retirando espaço ao
domínio do sagrado como as actividades e manifestações religiosas, sendo eminentemente sociais, são
também «mundanas» (diesseitig), como já o fizeram notar Weber (1978:399 ss) e, mais recentemente,
Bourdieu (1971:299, 1980:160).
Por seu o marxismo tradicional, ao considerar a religião um simples subproduto ideológico, tende a
menosprezar o nível interactivo ou a negar o sentido vivencial e afectivo, por parte do crente, sentido esse
não só reassumido com entes sobrenaturais mas também inscrito na materialidade das suas relações
horizontais, ainda que mitificadas ou transmutadas no ritual com o cosmos, a natureza e os demais homens.
Neste âmbito, a componente simbólico-religiosa, enquanto fornecedora de esquemas de percepção, sentido e
mundividência existenciais, constitui um dos elementos essenciais, reais e não falsos, no processo total de
reprodução social.

Vários são, porém,os autores que não se identificam nem com a visão ora transcendente, ora imanentista
e redundante do (estrutural) funcionalismo, nem com a abordagem mecanicista e redutora do marxismo
ortodoxo acerca da religião. Uns, afastando-se do (esrutural)funcionalismo, retomam, quer a partir da
semiótica, quer a partir do transaccionalismo e do interaccionismo sócio-antropológicos, a relação entre o
crente e o sagrado pela via ritual,enquanto modo de conhecimento e/ou comunicação ouainda como forma
de transacção ou interacção10. Em Portugal, esta orientação interpretativa é assumida, de modo mais

10
A este respeito, cf. respectivamente Barth 1966:1 ss, Goffman 1974:101 ss, 121 ss. Porém, já o próprio Weber, aliás em
Problema, Método e Teoria

implícito que explícito e com acentuado cunho cognitivista e ritual-simbólico, por autores como Cabral
(1989:67 ss, 163 ss). Porém, não articulando ou mesmo fazendo tábua rasa da sociogénese dos ritos,
designadamente religiosos, e dos seus símbolos ligados à vida doméstica e comunitária, tende Cabral a
apresentá-los como entidades empiricamente inexoráveis ou a construir alegóricos dualismos a partir de
«espontaneidades» (quase) autogeradas11, acabando assim por reproduzir, num engodo empiricista, alguns
dos pressupostos filieclesiásticos dominantes. Os símbolos aí descritos, embora reveladores da acção ou
mundividência dos actores, não são por si ou sua sponte criadores de dimensões estruturais não simbólicas
da realidade social.
Tendo em conta a força sedutora ou a eficácia operatória das ideias religiosas no quotidiano produtivo e
vivenciado, por um lado e, por outro, procurando superar o impasse economicista de que o marxismo
tradicional tem sido acusado, alguns marxistas como Godelier (1973:141 ss, 1977:327) enveredam por uma
linha teórica oposta à funcionalista mas pontualmente coincidente com esta a respeito do papel dominante e
teleologicamente funcional da religião como «relação de produção», em particular nas sociedades não
capitalistas.
A este raciocínio subjaz, além da trivial redundância de que as acções sociais são função do todo social,
a insuficiência ou até a não-destrinça analítica entre a racionalidade religiosa dos camponeses e a inerente à
religião oficial – neste caso católica. Mesmo quando, nas práticas sociais concretas, em especial nos
processos de socialização, se imbriquem sincreticamente elementos de uma e outra, a fusão analítica de
ambas, além de obnubilar a especificidade manifesta ou latente dos diferentes interesses e estratégias dos
protagonistas em presença, acaba por confundir em vez de esclarecer o problema heurístico da religião face
a outras dimensões da realidade, nomeadamente a económica e a política. Na realidade, do facto de
elementos derivados de sistemas de mundividência e legitimação exteriores relativamente se autonomizarem
e sobreporem a outros de origem camponesa é curial inferir a sua função no processo de legitimação e
dominação mas, de modo algum, a sua indispensabilidade para o processo de trabalho, tal como sugere, por
exemplo, Iturra ao afirmar que pela lei canónica «a religião se tornou em racionalidade do trabalho»
(1986:140) ou que as ideias e acções religiosas aprendidas e repetidas na esfera do ritual oficial «não se
limitam a facilitar alguns aspectosda empresa familiar, mas são de todo em todo a sua racionalidade (Iturra
1985:72). Deste modo, transmuta-se indevidamente o domínio da doutrina católica no dominante e (quase)
exclusivo factor estruturante da acção camponesa.

Atendendo, por um lado, à importância da dimensão religiosa, concretamente nas duas aldeias
estudadas, e, por outro, à inadequacidade do (estrutural) funcionalismo ou à insuficiência das demais
posições acerca da crença religiosa, como abordá-la de modo heuristicamente plausível e fecundo?
A centralidade desta questão exige que, na análise da religião, além da dimensão interaccional e
comunicativa, se entre em linha de conta com a função de legitimação-aceitação dos diversos tipos de
práticas e representações presentes nos diversos grupos sociais, possibilitando assim o perpetuar das relações
de dominação, aspecto este focado por Marx (1982:383 ss) e Weber (1978:455 ss) e desenvolvido por
autores como Bourdieu (1971:310 ss) e Bader et al.(1980:439 ss).
A marcante abordagem weberiana, enriquecendo mas doseando e corrigindo a critica marxista quanto à
alienação religiosa, poderá oferecer um fértil fio condutor. Se, por um Weber coincide com Marx na
importância do desenvolvimento da cidade para a produção das grandes religiões e, sobretudo, no enfoque
da religião pelas suas funções de conservação e legitimação da ordem social e política, não deixa, por outro,
de articular o conteúdo da mensagem religiosa com o processo de autonomização dos interesses do corpo de

consonância com a sua metodologia, englobara esta perspectiva na sua análise da religião: «As manifestações externas do
comportamento religioso são de tal modo diversas que a compreensão deste comportamento só poderá ser obtida do ponto de
vistadas experiências, das ideias e dos objectivos dos indivíduos interessados, numa palavra, do ponto de vista do "significado"
do comportamento religioso» (1978:399).
11
Assim, por exemplo, para Cabral (1989:172 ss), o lado direito seria identificado como masculino, sacral, correcto e benéfico e o
esquerdo como feminino, diabólico, incorrecto e maléfico; o ritual eclesiástico exercido pelo sacerdote teria um carácter
profilático em benefício da comunidade, enquanto as práticas rituais da bruxa, além de «anti-sociais», cumpririam uma função
terapêutica de tipo familista; só o sacramento do matrimónio - e de modo algum o casamento civil - poderia provocar a eficácia e
mediar entre a maldade do sexo e o desejo de reprodução.
66
Constrangimentos e Estratégias

peritos na produção, na racionalização e na distribuição de bens de salvação – os sacerdotes – e com as


necessidades reais e vivências impregnadas de sentido por parte dos seus consumidores despossuídos - os
fieis, os laicos. Tal significa, neste âmbito, que se torna sociologicamente relevante analisar a função
organizacional das instituições dos regimes religiosos, as quais delimitam os parâmetros normativos dos
discursos e as acções dos crentes e estabelecem para o seu cumprimento, em diversos graus, esquemas não
só de persuasão como de coerção, senão física, menos psico-moral. Por fim, o sistema de valores religiosos
tende a consagrar determinadas categorias de ordem gnoseológica e lógica, categorias essas que pela
tradição kantiana são assumidas como universais, embora subjectivas, e por Durkheim (1991:52 ss)
relevadas como constitutivamente sociais e objectivas.
Como veremos em 11:1 e 11:4em colectividades rurais como Lindoso e Aguiar a dominante Igreja
católica, se, por um lado, incorpora visões e interesses de grupos (sub)dominantes e sofre pressões de outros,
dominados, mormente do campesinato, por outro, produz e alimenta, pela «absolutização do relativo e pela
legitimação do arbitrário» (Bourdieu 1971:329), representações religiosas adequadas à posição de cada
classe ou grupo social, ora justificando, ora «naturalizando» o lugar de cada um, de modo a induzir cada
indivíduo a aceitar o seu próprio «destino» social.
Procurando superar a tradicional unidimensionalidade marxista acerca da religião como simples
fenómeno ilusório ou alienatório, autores como Bourdíeu (1989:8-13) e Bader (1991:176 ss), considerando a
religião uma componente nuclear do sistema simbólico, analisam-na na dupla vertente de produto social e
intelectual (opus operatum) e de quadro cognitivo de orientação e actividade (opus operandi) na medida em
que não só co-estrutura, legitima e preenche funções numa determinada ordem social como enquadra as
diversas esferas de sentido dos actores sociais, ideia esta aliás já presente em autores como Berger e
Luckman (1976:36 ss) e Geertz (1973:90 ss). Mais ainda, segundo Bader (1991:177), se, por um lado, a
religião fornece um quadro de referência relativamente estável para integrar as experiências e os significados
biográficos dos crentes, por outro, quando problematizada, pode originar definições alternativas ou
interpretações criticas da realidade (11:4, 11:5).

Na esfera do simbólico-religioso, nenhum outro fenómeno tem suscitado tanto interesse prático-teórico
nem sido sujeito a diferentes interpretações como a festa. Constituindo um tema polarizador da atenção dos
cientistas sociais e, em particular, de historiadores, sociólogos e antropólogos, não só tem sido objecto de
leituras diferentes pelos estudiosos do fenómeno, como também é diversamente percepcionado pelos actores
sociais, quer em contexto urbano, quer em meio rural.
Na esteira de Mauss (1993:274), poder-se-ia dizer que a festa constitui um fenómeno social total na
medida em que abarca diversos aspectos da realidade social: ritual-simbólico, socio-económico,
organizativo-político, lúdico, estético e erótico. Não obstante a pertinência da atribuição do carácter holista à
festa e de esta, em maior ou menor medida, englobar as dimensões referidas, importará certamente
estabelecer uma hierarquia analítica para a compreensão e a explicação da festa.
Na esfera religiosa e, em particular, na sua vertente ritual12, a festa é, em regra, associada ao sagrado, à
componente simbólica ou até mística da relação do homem com o transcendente, o divino. Embora
tradicionalmente confundida com o cerimonial, enquanto categoria instrumental de manutenção da ordem
social, o ritual tem sido objecto de várias interpretações: funcionalista, transaccionalista ou interaccionista
simbólica, weberiana e marxista.
Para o funcionalismo e, em especial, para Durkheim (1991:640 ss), a festa constituiria um fenómeno
pré-ideológico de unidade cultural e coesão imanente à sociedade. Esta, enquanto entidade gestante do

12
Tradicionalmente o interesse tem-se centrado mais nos ritos de iniciação e de passagem ou apenas nos ritos que pressupõem um
contexto sagrado ou religioso, o que eliminaria do campo do ritual as cerimónias e outros comportamentos expressivos e
comunicativos. Mais ajustado e pertinente se afigura contudo o conceito mais amplo de ritual, tal como é definido por Leach
(1968), Goody (1977) Goffman (l 974), segundo os quais cabem no conceito de ritual todos os comportamentos formais,
reconentes, estereotipados que sejam expressivos e portadores de mensagens simbólicas. Nesta óptica, serão de relevar, a título de
exemplo, os rituais envoltos na taberna ou no café, os quais, enquanto locais mediadores de práticas, imagens e representações
sociais (Brito 1991:195 ss, Andrade 1991:270 ss), têm constituído não só componentes do arsenal ritual em contexto não sagrado
como expressões importantes dos códigos culturais e, em especial, da sociabilidade masculina em países mediterrânicos.
Problema, Método e Teoria

sagrado e portadora de um imaginário colectivo, recriar-se-ia e libertar-se-ia no caos primordial e na


transgressão profana para, num segundo momento, se refundir e (re)integrar na ordem e na regra, sendo o
ritual o recorrente catalisador e espelho dos laços comunitários.
Na perspectiva funcionalista, importa reter a contribuição de Smith (l964:81 ss) que, privilegiando mais
o ritual que a crença, assume aquele como um pré-requisito funcional determinado pelas necessidades
práticas da sociedade. Esta tese seria prosseguida por Radcliffe-Brown (1989:228 ss) que, pressupondo a
festa como mais um ritual, concebe este como parte integrante e expressiva da estrutura social, para cuja
manutenção, funcionamento e reprodução o ritual contribui de modo incontornável.
Desta concepção funcionalista se afastam autores como Arellano (1959: 189 ss), Cancian (1974:164 ss)
e Silverman (1981) que, partindo dos diversos significados, ora manifestos, ora latentes ora até
inconscientes, atribuídos pelos actores sociais, constatam igualmente a existência de rituais não só
expressivos de ordem e harmonia mas também de desordem, de estratificação e desigualdade, de oposição
ou até de rebelião, os quais são aliás importantes não só para a recomposição de posteriores equilíbrios mas
também para a efectivação de mudanças sociais. Os próprios ritos de passagem estudados por Van Gennep
(1978) e, em Portugal, especialmente por Oliveira (1984:17-213) e Iturra (1986: 145 ss), representando
momentos inerentes a certas fases do ciclo de vida (nascimento, casamento, morte), são denotativos dos
cortes iniciáticos ou das descontinuidades sociais ocorridas no processo sequencial da vida físico-biológica e
social dos seres humanos. Os ritos representam, como refere Leach (1968), situações de fronteira,
ambiguidade e transformação e podem mesmo comportar elementos de transgressão perante ostatu quo. Por
outro lado, os rituais comunitários não são apenas reflexos das relações sociais dadas, tal como defendia
Durkheim (1991:637 ss), mas enformam e podem contribuir para alterar os próprios códigos sociais e
culturais, como reivindicam Turner (1974:131 ss) e Geertz (1973:143 ss).
Outros ainda como Duvignaud (1973:41 ss), assumindo uma perspectiva secularizada da festa e, como
tal, emancipada da sua dimensão possessiva e mítico-transcendente, salientam a vertente de transgressão e
ruptura com o statu quo económico e cultural, considerando assim a festa como «subversão criativa». Numa
linha sócio-psicológica e até psicanalítica, Santo (1984:72 ss) interpreta determinadas festas e rituais
agrários, nomeadamente em contexto português, como expressões ginocráticas da religião popular face às da
religião oficial católica e do Estado.

A festa, conservando diversas vertentes designadamente a ritual-simbólica e a lúdico-erótica reflecte,


com efeito, na sua configuração e processo, determinados contextos e preenche mesmo determinadas
funções sociais e culturais. O enfoque que todavia, em termos de prioridade analítica, se apresenta como
mais adequado é, uma vez mais, o resultante das contribuições inspiradas em Weber (1978:590 ss) que
assentam mais na análise do enquadramento institucional-organizativo e legitimador ou contestatário da
festa. Neste sentido, a festa, entre outras manifestações religiosas, não surgirá apenas nem tanto como
momento de catarse e libertação, nem como mecanismo de convergência e redistribuição do excedente,
como defende Foster (1972:180), mas mais como expressão espácio-temporal dos processos de
reclassificação e integração sociais e inclusive de hegemonização, polarização ou rivalidade dos
protagonistas individuais ou colectivos aí envolvidos. É particularmente na festa que a religião oficial
católica e a religiosidade popular, embora se realimentem mutuamente ao ponto de assumirem na prática
formas simbióticas e sincréticas (Badone 1990:6 ss), denotam contudo determinadas tensões e polarizações
entre si (cf. Santo 1984, Almeida 1987, Silva e Van Toor 1982, 1988). É igualmente na festa que os factores
religioso e político se imbricam e onde se reflectem os diversos contextos de maior ou menor poder
eclesiástico. Emboracom ligeiras variantes, nesta perspectiva se posicionam, nalguns estudos e ensaios em
Portugal a este respeito, autores como Riegelhaupt (1973, 1982), Pinto (1985:155 ss), Almeida (1986:282
ss), Silva e Van Toor (1982:244 ss, 1988:70 ss), Esteves (1986:65 ss), Sobral (1990:354 ss), A. Silva
(1994:169 ss), J. Leal (1994: 260 ss) e, em especial, Sanchis 13 (1983:27 ss) que, no seu estudo sobre a

13
Com efeito, Sanchis (1983:23 ss), começando por partilhar as premissas de Dahrendorf (1959) e do próprio Weber (1978) e,
nesta óptica, entender a festa como ensejo (enjeu) de polarização social, retoma contudo o que ele denomina a «verdade» e a
«dialéctica» durkheimianas da festa. Assim, embora expandindo o momento de tensão, ruptura e inovação da festa, acaba Sanchis
por derivar o elemento constitutivo desta de uma indefinida «energética social englobante», transcendente, (quase) mística. Um
68
Constrangimentos e Estratégias

romaria, não obstante um certo eclecticismo teórico, foi certamente o estudioso que mais elementos
empíricos e analíticos forneceu sobre a festa.

Não obstante a dimensão religiosa da festa possuir o seu campo de acção próprio e condicionar
fortemente o posicionamento dos crentes, a mensagem religiosa em contexto festivo não implica
necessariamente, como pretende Durkheim (1991), a conservação da ordem social, a integração consensual
ou o reforço da solidariedade. Dependendo do contexto sócio-político e dos objectivos estratégicos dos seus
portadores, a festa, impregnada de elementos religiosos tanto pode legitimar e reforçar determinada ordem
temporal como inspirar mudança pela ruptura, aspecto este relevado hoje por teólogos da libertação, teóricos
da praxis revolucionária e sociólogos da religião14, alguns dos quais ancoram a sua perspectiva na análise
weberiana da profecia carismática. Em todo o caso, seja num sentido de sujeição político-ideológica, seja
enquanto potencial de resistência ou lema de emancipação perante regimes e formas de opressão, a função
religiosa, quando e porque enquadrada por um aparelho de poder centralizado e burocratizado – a Igreja – e
exercida por profissionais operadores do culto – os padres –, não possui um carácter axiologicamente neutro
e apolítico. Donde, neste âmbito, toma-se imprescindível uma abordagem que articule a religião e o ritual
com e na política, tal como o já referira Gramsci (1976:48 ss) e têm insistido diversos cientistas sociais,
entre os quais Boissevain (1965), Cohen (1969:221 ss) e sobretudo Bourdieu (1971:298, 1980:243), Paige e
Paige (1981:44 ss), Bax (1991:23) e Bloch que sintetiza: «Convémreparar primeiramente na política e
depois na religião, vendo esta como o exercício duma forma particular de poder, do que fixar-se na religião
fora do contexto político e considerá-la como a forma de explicação» (1974:79).
Com efeito, são vários os antropólogos e sociólogos que, inspirando-se no paradigma marxista, o
conjugam com a contribuição eliana acerca do processo civilizacional (cf. Elias 1982 1:23 ss) e/ou o refinam
com a análise de Weber (1978:237 ss) relativa à autoridade tradicional e hierocrática (Anstalt)15. Articulando
estes pressupostos, é possível analisar fecundamente o mosaico das diversas e sucessivas configurações
hierocrático-estatais que se vão cristalizando a partir das relações de competição e monopolização entre os
regimes religiosos e o processo de formação dos Estados.

3.2.2. Patronos e clientes

Por patrocinato entende-se o mecanismo de vinculação, ora formal, ora informal, de coerção psico-
social e, por vezes, física, no qual se verifica um maior ou menor grau de servilidade ou dependência

outro autor que, em Portugal, analisou com finura e pormenor a festa, designadamente a festa do Espírito Santo nos Açores, foi J.
Leal (1994). Sem desconsiderar os méritos do autor nesta temática, J. Leal (1994:260 ss, 280 ss) mantém alguma ambiguidade
acerca da relação entre festa e poder eclesiástico, enquanto expressão da «religião oficial». Por um lado, reconhece na festa a
linguagem e a dimensão do poder; por outro lado, ao analisar e interpretar a polarização entre parte dos paroquianos e o padre na
festa, remete tal polarização para questões de liderança local, quando é justamente a liderança eclesiástica, articulada ou não com
facções ou personalidades laicas, que, pelo menos tanto quanto pude constatar em Lindoso e em Aguiar, está em jogo e é objecto
de disputa e/ou contestação, sendo aliás a festa, neste enquadramento, um dos ensejos duma prolongada luta, ora latente, ora
manifesta pelo poder local.
14
Contrariamente à posição prazenteira de autores liberais ou céptica por parte de marxistas ortodoxos, os movimentos
milenaristas, inclusive os retrospectivos «em busca do paraíso perdido», não são forçosamente retrógrados, podendo mesmo
constituir fragmentos de resistência actuais sob a forma de sonhos utópicos ou reinterpretações religiosas face às elites
dominantes. Em diversas situações históricas e ainda hoje, sobretudo em diversos países do Terceiro Mundo e, em particular, na
América Latina, a religião tem não raro constituído para os dominados uma bandeira de protesto e até uma alavanca de
mobilização e emancipação políticas, testada na praxis revolucionária dos crentes e, por vezes, na de alguns agentes hierárquicos
das diversas Igrejas. Para desenvolvimento destes aspectos, cf. Weber 1978:439 ss, Lanternari 1963 vi:321 ss, Lenski 1966:263 ss,
Huizer 1985:56-60, Bernales 1982:41 ss, Scott 1985:333 ss, 1990:116, 157 ss.
15
Por Anstalt («associação compulsiva») entende Weber uma «organização que, dentro de uma dada esfera específica de
operações, impõe com relativo sucesso a sua ordem sobre todas as acções que se conformam com certos critérios específicos»
(1978:52), cujo exemplo paradigmático é a Igreja enquanto «organização hierocrática» (Weber 1978:54). Para desenvolvimento
desta temática, cf. Bader et al. 1980:439 ss e Balandier (1987: 106 ss). Nesta perspectiva são de referir ainda, entre outros
estudiosos da religião, Inglis (1991:55-72), Kertzer (1991:85-103) e Driessen (1991:237-259).
Problema, Método e Teoria

durável por parte de clientes face a pessoas social e/ou politicamente influentes denominadas patronos.
A nível interaccional, entre patrono e cliente estabelece-se um acordo tácito ou explícito assente numa
reciprocidade que, em regra, pressupõe uma relação que Sahlins (1972:195) e Riegelhaupt (1979:511)
denominam de «reciprocidade negativa». De facto, o patrono protege e ajuda o seu cliente numa base
individual ou, no dizer de Foster (1967:214), Wolf (1966:81) e Boissevain (1966:24), de «maneira diádica»,
mas a contrapartida, por parte do cliente, implica prestação de serviços, reconhecimento e, em última
instância, um considerável grau de disponibilidade e dependência pessoais.
Ainda que sobrepostas e mutuamente relacionadas, é possível distinguir com Boissevain (1977:88-90)
três categorias de patrocinato e suas correlativas formas de dependência. Enquanto uma de tipo tradicional e
patrimonialista basear-se-ia mais na posse da terra e uma outra no estatuto social de notável letrado, uma
terceira de tipo organizacional estaria mais ligada à função de mediação administrativo-política, sobretudo
em sociedades segmentadas pela divisão cidade-campo com relativo alto grau de centralização estatal. O
patrocinato político é designado em Portugal, bem como nos demais países ibéricos e latino-americanos, por
caciquismo. Este, enquanto forma específica de patrocinato, pressupõe uma cadeia piramidal em que os
clientes buscam contacto com certos mediadores locais, os quais, por sua vez, exercem poder pela
disponibilidade de conexões mantidas com os notáveis dos aparelhos camarários e/ou com os líderes
partidários a nível concelhio, distrital ou até nacional.
Diversos estudos empíricos e subsequentes elaborações teóricas, em especial as referentes a países da
América Latina e outros situados na área mediterrânica, no sul e sudeste asiáticos, no Japão 16, têm mostrado
que os enraizados sistemas de patrocinato são codeterminantes do agir submisso e resignado de actores
dependentes, nomeadamente camponeses.
Numa perspectiva estrutural-funcionalista e com uma ênfase sócio-psicológica, autores como Parsons
(1988:103 ss), Parsons e White (1961:90 ss), enquadrando as relações patrocinais no âmbito da comunidade
e em contraponto com as relações societais, caracterizam-nas como difusas e particularistas, múltiplas e não
contratuais, recíprocas e relativamente simétricas. Outros, tais como Pitt-Rivers, Peters e sobretudo
Eisenstadt e Roniger17, reformulando pressupostos (estruturo)funcionais, redefinem patrocinato como uma
combinação especial de um generalizado e específico modo de troca, distinto da economia de mercado e
perpassado ora de «prístinos» atributos morais tais como espiritualidade e confiança (fides), ora de
obrigações derivadas de relações mais institucionalizadas. Estes autores, não obstante incorporarem
elementos provindos de outras correntes teóricas (coerção, negociação, desigualdade e poder) e, por isso,
admitirem determinadas ambiguidades e tensões na relação patrocinal, tendem contudo a enxertá-los num
fundo de intimidade e solidariedade, aliás basicamente assumidas como informais e voluntárias, entre
patrono e cliente.

A análise das relações patrocinais tem sido envolvida e particularmente reivindicada pelas correntes
configuracionista, simbólico-interaccionista e transaccionalista18, predomínio aliás compreensível perante a

16
Para a área mediterrânica, cf., entre outros, Kenny 1960: 14-23, Boissevain 1966: 18-33, Blok 1969a: 155-170 e 1974, Campbell
1964:224 ss, Davis 1977:132 ss, Cutileiro 1977:271 ss, Tolosana 1979:42, 58 ss. Sobre a América Latina, cf. Wolf 1980:19-39,
Buve 1969:419-432, Huizer 1969:411-418, Galjart 1969:402-419, Migdal 1974:33 ss, Castillo 1989:121 ss. Para o sudeste
asiático, cf. Wertheim 1969a:6 ss, 1971:321 ss, Scott 1976:35 ss, Popkin 1979:72 ss e, em particular, sobre a Índia, cf. Breman
1969:395-402. Para o Japão, cf. Moore 1966:230 ss e, sobre países do leste europeu, a nível dos aparelhos estatais, cf. Ionescu
1977:97-102.
17
Cf. respectivamente Pitt-Rivers 1961:140 ss, Peters 1977:279-280, Eisenstadt e Roniger 1984:15 ss. Se a presença da dimensão
moral e, em especial, a confiança (fides) na relação clientelar é, em regra, inegável, já, porém, uma atribuição de carácter
ontológico e/ou explanatório comporta um certo enviesamento, uma vez que se verificam situações clientelares desprovidas de
fides. Além disso, a fides em contexto patrocinal, mesmo comportando laços de ordem afectiva e moral, não deixa de constituir
uma forma ideológica de submissão eufemizada que Bourdieu define como a demissão ou a despossessão do direito de produção e
de expressão dos desmunidos (1980:217 ss).
18
Importa todavia referir que estas correntes, em particular o configuracionismo e o transaccionalismo, não ignoram certamente os
constrangimentos estruturais. Trata-se antes de relevar os aspectos interactivos e electivos face aos estruturais. Como
representantes das referidas correntes, cf., respectivamente, Elias 1982 I:290-337, 1980:143-145; Goffman 1974:7-85; Barth
1966:1 ss, Blok 1970:226 ss, 1974:9 ss, Boissevain 1966:22 ss, 1978:24 ss, Davis 1977:146 ss. Sobre os limites dos pressupostos
do (inter)accionismo e transaccionalismo, cf. crítica de Alavi 1973:54, Bader et al. 1980:99-113, Cohen 1969:224-225.
70
Constrangimentos e Estratégias

rigidez e a opacidade do modelo estruturalista. Enquanto o estrutural-funcionalismo fixou as relações sociais


sob um modelo estático e de consenso, segundo o qual o homem é concebido como um ser acentuadamente
passivo e obediente ao sistema, com os seus estatutos e papéis prescritos por normas institucionalizadas e
padrões estabelecidos, as referidas novas abordagens, em parte inspiradas na teoria da acção weberiana e no
correlativo «individualismo metodológico (cf. Weber 1978:4 ss), representam um certo avanço sobre o
estrutural-funcionalismo na medida em que, no seu modelo generativo e transformacional, destacam a
função (re)estruturadora e dinâmica dos sujeitos-actores nos processos sociais, concretamente na
organização de redes interactivas. Além disso, os hiatos existentes entre as colectividades locais e as
instituições municipais ou estatais são preenchidos, segundo Wolf (1956:1075), Kenny (1960:17),
Boissevain (1969:380) e Mendras 103 por mediadores (brokers, gatekeepers ou buffers).

Não obstante a crítica ao estruturalismo ser, de certo modo, pertinente, tais concepções sobretudo as
transaccionalistas e interaccionistas enfermam contudo de certo voluntarismo na medida em que as
configurações sociais seriam basicamente resultado das decisões e redes de interacção dos indivíduos,
enquanto «empreendedores sociais», manipuladores e construtores de feixes móveis de papéis em vista da
realização dos seus objectivos estratégicos. Ora, se a estrutura admite certamente modificações levadas a
cabo pelos actores na arena social, estes, na sua (inter)acção, encontram-se todavia limitados pelo tipo e o
grau de recursos que a sua posição, numa dada estrutura, em determinado tempo e lugar, lhes proporciona.
Estes constrangimentos obrigam a questionar a tese transaccionalista ou, pelo menos, a secundarizar o
carácter voluntário da relação clientelar. É certo que partidários do transaccionalismo como Boissevain
(1978:67 ss) referem, isolada ou cumulativamente, o condicionamento da conduta por factores morais,
sócio-ambientais e inclusive físico-biológicos, mas estes surgem de um modo vago e um tanto desgarrados
do todo social e não respondem à questão de saber como, porquê e em que contexto determinados actores
estão em condições de realizar os seus objectivos estratégicos e/ou mudar a sociedade e outros não. Estas
lacunas analíticas remetem-nos para a necessidade não só de superar a clássica dicotomia indivíduo-
sociedade, como também de ter em conta aspectos estruturais concernentes às relações de assimetria e
desigualdade no acesso e no controlo de recursos por parte dos diversos tipos de actores.

Numerosos são os autores19 para quem a diádica ou poliádica transacção patrocinal se encontra imbuída
de relações, ora latentes, ora manifestas, de assimetria e de dominação. É certo que, em situações de
concorrência e de precaridade institucional, são exigidos do mediador, tal como refere Bourdieu (1980:223),
enormes investimentos pessoais (tempo, energia, favores). Todavia e não obstante o facto de o patrono
conceder protecção e prestar alguns jeitos e serviços, retira normalmente do cliente, além do seu
assentimento sócio-político personalizado, maiores vantagens e, eventualmente, uma renda exploradora de
protecção (Shanin 1973:76, Wolf 1983:56, Benschop 1993:264). É justamente este saldo em favor do
patrono, entre os serviços prestados por este e os benefícios materiais ou simbólicos colhidos do cliente o
que imprime à relação patrono--cliente o carácter de negócio lucrativo, podendo mesmo não raro traduzir
um determinado grau de exploração r/ou opressão deste por aquele.
Na sequência de posições defendidas por Polanyi (1957:48 ss), Sahlins (1960:403 ss) e Bourdieu
(1980:209 ss), poder-se-á aplicar ao patrocinato a ideia-chave de que, na base da constituição do próprio
poder político, se situam as dissimetrias na função de redistribuição, designadamente nas sociedades tribais e
outras não capitalistas. Por outro lado, entre a posse de recursos materiais e outros não directamente
materiais (capacidade comunicacional, prestígio, poder) há, como igualmente defendem Bader e Benschop
(1988: 167) uma relação de convertibilidade, mesmo que nem sempre estritamente mensurável nem
imediatamente visível. Nesta óptica, patrocinato, ainda que, conforme salientam Silverman, Mintz e Wolf20,

19
Cf., com maior ou menor acento, Moore 1966:453 ss, Weingrod 1968:380 ss, 1977:41-51, Cohen 1969:215 ss, Wertheim
1969a:8 ss, Huizer 1969:411 ss, 1972:15 ss, Ellemers 1969:433 ss, Blok 1969:103 ss, Bailey 1970:35 ss, Silverman 1970:338,
Alavi 1973:54-56, Gellner 1977:1, Scott 1977:21 ss, C. White 1980:44 ss e, sob forma de competição político-ideológica, Kertzer
1980:4 ss.
20
Silverman 1967:291 ss, Mintz e Wolf 1967:176 ss. Em certas épocas históricas, sobretudo mais recuadas, o alinhamento
clientelar a nível local terá constituído uma das formas possíveis de minimização de riscos e de protecção contra exacções
Problema, Método e Teoria

preencha diferentes funções e valorações de acordo com cada período histórico, configura-se não como a
variável paradigmática, autosuficiente e universalmente válida mas como um princípio geral, a par doutros,
estruturador das relações instrumentais de poder e da própria disparidade social. Tanto a nível paroquial
como municipal, as próprias oscilações de votação eleitoral são, em grande parte, resultantes da variável
postura de diversos mediadores.

Particularmente em colectividades relativamente autónomas, de estratificação difusa e com escasso


volume de capital económico sobretudo monetário, para a determinação dos recursos dos respectivos grupos
sociais devem ser tidos em linha de conta, além dos económicos, outros tais como força física, estatuto e
prestígio, idoneidade comunicacional e poder. Se estes últimos podem aumentar o caudal de riqueza ou
reconverter-se em fontes de poder económico, assim também os recursos económicos são susceptíveis de
metamorfosear-se em «capital simbólico» (Bourdieu 1980:202) sob a forma de reconhecimento e gratidão,
respeito e homenagem. E, nesta visão dinâmica e reversível dos recursos, na prática dilui-se, de certo modo,
a referida distinção defendida por autores como Boissevain (1969:380) entre patronos, enquanto detentores
de recursos de primeira ordem (terra, gado) e mediadores na qualidade de simples agentes e portadores de
recursos de segunda ordem: comunicacionais, estatutários e de poder.
Nesta perspectiva e contrariamente às posições de Causi (1975:72-89) e Gilsenan (1977: 168 ss),
posições patrocinais e correspondentes oportunidades de prestígio não constituem simples expressões
epifenoménicas ou momentos subjectivos ou ideológicos resultantes mecanicamente do lugar estrutural a
nível económico-social, mas condicionam comportamentos e propiciam aos seus protagonistas, senão
ganhos materiais a curto prazo, pelo menos situações de relativo privilégio. Revestindo-se, de facto, sob
formas eufemizadas de dedicação e desinteresse pessoal em benefício do «bem comum» ou do
«desenvolvimento local, regional ou nacional», nem sempre os mediadores convertem imediatamente as
suas actividades em ganhos, podendo dispor, em regra, sobre o conteúdo das contrapartidas, bem como o
momento e o modo de as cobrar21.O não-cumprimento dos requisitos de informação, participação e controlo
da autoridade democrática e sobretudo tradicional (cf. Weber 1978:215 ss), por parte da maioria dos
moradores, pode portanto desvirtuar ou até contradizer a retórica dos objectivos proclamados e inclusive
permitir justamente a instrumentalização dos recursos públicos e organizacionais para fins pessoais, de
familiares e amigos dos líderes ou mediadores locais.
O grau e a extensão do poder local, personificado nas figuras de patronos e mediadores locais depende
estreitamente, por um lado, da raridade e do grau de apropriação ou monopolização de bens ou serviços a
prestar e, por outro, da crise de escassez ou precaridade de recursos e sua importância vital para a
sobrevivência dos respectivos clientes (por exemplo, a concessão de trabalho ou terra). E quanto menores as
alternativas a uma situação assimétrica, maior a probabilidade de o cliente dependente se tornar vulnerável e
submeter «passivamente» ao poder absorvente do senhor ou patrono, demitindo-se de entabular relações
alternativas no exterior.

Mesmo quando dominante, patrocinato não constitui um conceito paradigmático redutoramente


dissociável dos diversos modos de desigualdade social, cuja diminuição reduz aliás a densidade e a
durabilidade das relações clientelares. Daí que Bailey, Boissevain22 e, de modo geral, os transaccionalistas e

excessivas por parte de classes senhoriais ou do Estado. O patrocinato deverá articular-se com outros níveis de análise da
realidade social, em particular com o sistema político. Sobre os limites das virtualidades explicativas do clientelismo e, inclusive,
a inadequacidade da sua aplicação a outros fenómenos, corporações e agrupamentos de tipo horizontal (étnicos, de classe), cf.
Waterbury 1977:334 ss e, sobretudo, Kaufman 1974:288 ss e Lemarchand 1981:8 ss. Este último autor, embora reconheça o
(ab)uso acrítico do conceito de patrocinato no enquadramento teórico funcionalista e organicista, distingue, na esteira de
Silverman (1970:329 ss), a dimensão estrutural da ideológico-legitimadora do statu quo,
21
Cf., a este respeito, Blok 1969b:366 e Boissevain 1969:384. Sobre as diversas formas de dominação, cf. Bourdieu 1980:209-231,
Bader e Benschop 1988:164 ss. E, em particular, sobre as formas directas, informais e personalizadas de dominação, cf. Scott
1990:112 ss. Em Portugal, a coexistência e a interdependência das relações assimétricas a nível comunitário e as formas jurídico-
políticas de dominação estatal têm sido sobremaneira analisadas por Santos (1982:27 ss) que as classifica respectivamente de
poder caósmico e poder cósmico.
22
Cf. Bailey 1971:17 ss, Boissevain 1969:379. Num sentido diametralmente oposto ao de Bailey, Wolf (1955:456 ss), nos seus
estudos sobre as corporativas, fechadas e relativamente niveladas comunidades índias, conclui pela inexistência de patrocinato
72
Constrangimentos e Estratégias

interaccionistas, ao sustentarem a possibilidade, aliás virtual ou temporariamente viável, de ocorrerem


relações patrocinais sem estratificação social, ontologizam contudo o poder quando teórica e
metodologicamente o desagregam das diversas formas e contextos de desigualdade social. Enquanto
expressão das relações assimétricas de poder, o patrocinato pressupõe e reforça a desigualdade de recursos,
ainda que de diversa natureza. É, portanto, um determinado grau na posse e no controlo de bens e serviços,
seja directamente económicos (terra, gado, equipamento, capital-dinheiro e acesso a mercados), seja de
outro tipo (conhecimentos e habilidades, títulos e diplomas, prestígio social e poder, nomeadamente na
esfera administrativa) que subjaz ao poder patrocinal.
A desigualdade constitui, porém, um dado presente em vários tipos de sociedade e, como tal, não é
específica de sociedades ditas subdesenvolvidas. Entendidas em sentido lato, relações patrocinais bem como
obscuros mecanismos de prepotência ou chantagem coexistem, de modo aberto ou dissimulado, igualmente
em sociedades urbano-industriais, presidindo e estruturando, de diversas formas e medidas, as relações
sociais, quer em sociedades de economia de mercado, quer em sociedades de economia planificada. Basta
fixar-se na série diversificada de estratégias particularistas e interessadas dos mediadores da maquinaria
sócio-política não só nas diversas instituições e departamentos estatais como também nas organizações
partidárias, nas associações patronais, sindicais e outras. Ainda que o funcionalismo moderado procure
colmatar este fosso analítico da realidade pelo recurso ao conceito residual de disfunção, tal fenómeno
rebate por si só os pressupostos evolucionistas da rígida dicotomia entre comunidade e sociedade23, segundo
a qual a comunidade tradicional configurar-se-ia como adstritiva, parentelo-clentelar e particularista e a
sociedade urbana moderna como meritocrática, racional-legal e universalista e, como tal, liberta de tais
mecanismos menos transparentes.
Sendo o patrocinato um fenómeno igualmente co-presente nas sociedades urbano-industriais, poder-se-á
questionar acerca da utilidade e da validade heurística do conceito paraexplicar o comportamento sócio-
político dos camponeses. No meu entender, trata-se, porém, duma questão de medida e especificidade
quanto às características e formas de exercício da autoridade e do poder, designadamente o maior grau de
informalidade, discricionaridade e personalização nas relações clientelares, traços aliás que, segundo Weber
(1978:226 ss), caracterizam a autoridade tradicional. Ou seja, enquanto nas sociedades ditas modernas o
patrocinato se articula basicamente com o sistema político-partidário e coexiste com outras instituições
tendentes a manter ou reforçar a desigualdade,nomeadamente através da (pseudo)selecção meritocrática dos
diversos actores concorrentes nos diferentes tipos de mercado, nas sociedades rurais tradicionais as relações
de desigualdade e de dependência são contidas por laços diádicos e personalizados de vinculação parental,
compadria ou hierocrática. Tal como Soiffer e Howe (1982:185) referem, o tradicional sistema ideológico
do patrocinato é «mais baseado nos direitos pessoais que nos direitos contratuais formais». Com efeito, tal
como o assinalaram, entre outros, Ravis-Giordani (1976:179), Balandier (1987:59 ss) e Lewin (1987:9, 127
ss), para deslindar a trama e os núcleos duros do poder local há que indagar a interdependência e a
imbricação das relações parentais e a posição relativa de cada família no xadrez sócio-político da aldeia.
Neste sentido, laços de parentesco podem constituir uma base sólida para o exercício de determinadas
funções para a obtenção de poder tanto económico como político tal como o sublinharam Bouquet e De
Haan (1987:253 ss).

Não sendo exclusivas ou dicotómicas as bases coercitiva e consensual ou legitimada do apoio clientelar
(Swartz et al, 1966:22 ss), este pode envolver, conforme os contextos, uma maior ou menor dose de cada

nessas comunidades.
23
Na moderna sociedade rural-urbana são de referir, entre outros, os fenómenos de violência patronal, clubismo e sindicalismo
mafiosos (a Mafia na Itália, o sindicato de Camionistas e a Associação de Médicos nos Estados Unidos) e a política de clientela e,
eventualmente, de corrupção no seio de facções dos partidos políticos e nas multinacionais, associações ou demais grupos não
corporativos e nos próprios aparelhos administrativo-políticos do Estado: cf. Hutchinson 1966:22 ss, Silverman 1967:286 ss,
Weingrod 1968:381 ss, Stirling 1968:49 ss, Blok 1969:104 ss, Ellemers 1969:436 ss, Wertheim 1969a:9 ss, Galjart 1969:407 ss,
Scott 1969:1145 ss, Schneider et ai, l 972:335 ss, Zuckerman 1977:64 ss, Etienne 1977:300 ss, Lemarchand 1981: 19 ss. Estas
análises viriam assim pôr em causa a rigidez dos pressupostos inerentes à dicotomia comunidade-sociedade defendida desde
Toennies (1953:49-63) até Parsons (1967:333 ss, 1988: 102 ss) e ainda, de certo modo, recentemente retomados, entre outros, por
Abercrombie e Hill 1976:415 ss,
Problema, Método e Teoria

elemento. Na medida em que patrono e cliente partilham, ainda que parcialmente, de orientações cognitivas,
valores e regras comuns, as relações verticais e individualizadas entre ambos são amiúde percebidas como
legítimas e, não raro, acompanhadas de um determinado grau de afectividade e amizade instrumentais,
aspectos focalizados por autores como Pitt-Rivers (1961:140) e Wolf (1980:34). Neste sentido, as acções
dos clientes, ao manifestarem um habitus de identificação deferencial, acabam por legitimar processos
dirigidos à obtenção de prestígio social e, como tal, distinguir-se-iam, segundo Weber24, de outras baseadas
em motivações de classe. Por seu lado, os protagonistas patronos, se bem que para a formação de clientelas
não excluam acções de violência aberta e se organizem em associações ou cliques paralelas, secretas e
conspiratórias tal como no caso da Mafia italiana ou do caciquismo mexicano, em determinadas sociedades
como a portuguesa o modo corrente de operar é aparentemente pacífico, subtil, assumindo ou travestindo-se,
como diz Bourdieu, sob a forma de «violência simbólica, doce, invisível»25. Tais relações, além da ausência
de uma organização colectiva alternativa, têm contribuído para o conformismo clientelar, evitando que
latentes situações de conflito se polarizem e impedindo uma organização de classe em base horizontal. Tal
como referem Huizer (1972:8 ss) e Black (1972:623 ss), respectivamente em relação aos camponeses na
América Latina e aos Luri no Médio Oriente, à aceitação clientelar dos poderes ou hierarquias locais
subjazem ora laços de dependência, ora sentimentos de medo perante possíveis sanções ou represálias.
Neste âmbito, uma cautelosa aplicação do conceito de «clientelismo extenso» adiantado por Powell
(1970:418 ss) pode constituir instrumento analítico fértil. Donde, patrocinato não se limita a uma
disseminada miríade de relações diádicas, mas geralmente pressupõe um encadeamento tentacular e
hierarquizado de díades e políades que, segundo Galjart, Wertheim, Mouzelis e outros 26, favorecem
processos de dominação e integração controlada, persistindo para além de mudanças ou reestruturações
institucionais. Os mecanismos patrocinais, embora em regra revertam em privilégios para as elites
dirigentes, tornam-se eficazes na medida em que, fornecendo vias de mobilidade ascendente a alguns
quadros intermédios e oferecendo algumas vantagens palpáveis aos seguidores, realimentam de modo
duradouro as expectativas dos clientes e, em última instância, o próprio sistema.
As relações clientelares e eventuais alinhamentos faccionais, se bem que não derivem nem sejam
directamente traduzíveis em relações de classe, encontram-se imbricados, mesmo que de modo mediato,
com a estrutura de classes, aspecto aliás raramente analisado27. A questão surge mais propriamente no modo
de articulação das verticais relações patrocinais com a horizontal dimensão das relações de classe. Se a
quebra de incerteza, a relativa prosperidade ou as mudanças estatutárias dos clientes e a concomitante ou
subsequente erosão de valores propiciam alterações significativas no sistema clientelar e no xadrez das
novas configurações políticas, a diferenciação de classes e/ou grupos sociais não tem, em regra,
correspondência, nem a nível de organização, nem a nível doutras variáveis indiciadoras de pertença e
consciência de classe.
Além dos efeitos dos mecanismos da economia de mercado, a natureza do Estado, sua fase de
desenvolvimento e seus arranjos institucionais, quer sob formas monolíticas, quer no regime pluripartidário,
contribuem decisivamente para configurar os processos clientelares. Porém, ao criar novos mediadores ou

24
Cf. Weber 1972:87 ss. Weber, embora distinga «grupos estatutários» e «situações de classe», reconhece todavia que quem
detenha prestígio possui normalmente riqueza, a qual, por sua vez, é dispendida para conservá-lo ou obtê-lo.
25
Bourdieu 1980:219. Sobre formas violentas de caciquismo combinadas ou não com determinado grau de legitimidade baseada
em modos informais, normativo-institucionais ou mesmo legais, cf., por exemplo, sobre o México, Friedrich 1968:247 ss; sobre
Galiza, Durán 1974:247, 261 ss; sobre a Itália, Blok 1974:8 ss, Lemarchand 1981:17 ss; e, sobre o sudeste asiático, Scott 1977:22
ss.
26
Com efeito, a função integradora do clientelismo é relevada por Galjart 1964:4 ss, 1969:404, Wertheim 1969:364, 1971:321,
Mouzelis 1978:477, Weingrod 1968:380 ss, Blok 1969a:159, Ellemers 1969:438 ss, Huizer 1972:17 ss, Shanin 1971:257 ss,
Hobsbawm 1973:8. Incidentalmente, cf. ainda Powell 1970:418 ss, Waterbury 1977:333-334, Attalides 1977:137. Em sentido
inverso, cf. Gilmore (1977:447 ss), para quem o patrocinato, designadamente na Andaluzia, em vez de morigerar, pode justamente
exacerbar os conflitos de classe, o que todavia, em meu entender, não poderá separar-se da conduta mais elitista e/ou absentista
dos patrões-patronos e, sobretudo, da mais recente fase do latifundismo andaluz.
27
Sendo de ressalvar entre outros, além de Soiffer e Howe (1982:176-206), Huizer 1965:130 ss, Wertheim 1969a:11 ss, Flynn
1974: 139 ss, Newby 1975:148 ss, Corbin 1979:108 ss, Lemarchand 1981:12, Bodemann 1982:147 ss, Mouzelis 1978:474 ss e
Benschop 1993:249 ss. Em todo o caso, contrariamente à posição de Hervieu (1976:28), nem sempre todos os tipos de conflitos
sociais (por exemplo, interfamiliares, geracionais, administrativos) fazem parte integrante ou são redutíveis à luta de classes.
74
Constrangimentos e Estratégias

funcionários especializados, o objectivo estratégico de partidos e instituições estatais resume-se em


suplantar, subordinar ou até eclipsar os papéis dos antigos patronos e mediadores locais, processo este que,
contrariamente à visão um tanto estruturalista, por exemplo, de Soiffer e Howe (1982: 176 ss), não se
apresenta unilinearmente faseado, mas conhece diversas modalidades e coexistências, como veremos.
PARTE II

COMUNIDADES E RECURSOS:
CONTINUIDADE E MUDANÇA

76
Uma vez traçado esquematicamente em 2:6.3 o modelo das tradicionais economias e comunidades
camponesas, procurarei agora avaliar até que ponto o funcionamento concreto da economia campesina em
Aguiar e em Lindoso corresponde – ou em que tempo histórico correspondeu – aproximadamente ao
paradigma delineado, o que servirá, em simultâneo, para validá-lo ou eventualmente, a partir das referências
empíricas, refiná-lo. Daí que, tendo em conta o diferenciado nível de análise, interessa neste âmbito apurar
quando, em que medida, como e sob que condições grupos de moradores abandonaram ou não a
predominante economia de subsistência, a mantiveram de modo principal ou complementar com outras
actividades extra-agrícolas. Mais, estando os habitantes, como veremos em 6:1, 6:2 e 12:3, pelo menos
parcialmente, envoltos no sistema da economia de mercado e nas instituições estatais, importa igualmente
saber a que transformações foram sujeitos e de que iniciativas ou estratégias se tornaram protagonistas.
Dado que diversos indicadores apontam no sentido de assistir-se desde 1970 a uma fase de viragem na
reorientação dos moradores de Lindoso e sobretudo de Aguiar, tal exige que me detenha um tanto no
funcionamento relativamente autónomo de ambas as colectividades até então, procurando ao mesmo tempo
perceber como se operaram determinadas transformações a ponto de terem tornado a actual morfologia
sócio-económica de qualquer das duas aldeias uma realidade, senão irreconhecível, pelo menos bem
diferente.
Comparando a divisão do trabalho na economia camponesa antes e depois de 1970, verificam-se
notáveis mudanças no número de braços activos, na cadência do ciclo agrícola e, em particular, com a saída
maciça de homens e jovens, na repartição sexual e geracional das tarefas no seio da família.

Atendendo ao facto de, segundo o senso comum e a tradicional definição de comunidade (2:6.1), Aguiar
e sobretudo Lindoso constituírem colectividades, cuja configuração geográfica e composição social fazem
parte duma região de unidades geo-sociais comunitárias, torna-se pertinente questionar em que medida a
mencionada organização comunitária implica algum tipo de igualdade e até que ponto há efectivamente nos
moradores de Aguiar e, em especial, de Lindoso uma mundividência e uma herança cultural comuns.

Na imbricação da diferenciação social com a dimensão identitária – esta como catalisadora de


estratégias de conservação e resistência à mudança –, também Lindoso e sobretudo Aguiar vêm sofrendo o
impacto da economia e da sociedade envolventes, sendo de destacar o fluxo das trocas a nível económico e,
em particular, a incidência da incipiente modernização e da pluriactividade familiar. Com efeito, os grupos
domésticos outrora dependentes no âmbito comunitário começam, a partir de 1965-70, a libertar-se
relativamente dos constrangimentos internos e a em regra, as suas condições de vida, ao mesmo tempo que,
com o assalariamento na indústria e nos serviços, muda a natureza e o alcance da sua dependência. As
demais casas ou articulam a actividade agro-pastoril ou pecuária com a assalariada em regime de
pluriactividade ou, no caso dos lavradores, deixam de produzir na base da tecnologia manual para iniciar ou
reforçar o processo de mecanização e modernização. Em todos os actores verifica-se uma recente e
polivalente dependência de diversos meios e instâncias de sistemas exteriores à aldeia: salários, meios de
produção e produtos industriais a montante e a jusante do processo agrícola, política estatal, nomeadamente
na esfera dos preços e subsídios.

Um dos moradores de Aguiar, no meio de uma longa conversa sobre a vida acabou por resumir, no seu
entender, o núcleo central das relações interfamiliares: «Aqui só vale quem tem; quem não tem, não vale é
um zero, não conta ... ». Esta simples sentença exprime, ainda que de modo bipolarizado, a realidade
objectiva da desigualdade social, bem como a percepção das suas consequências. De facto, como veremos
em seguida, nem Aguiar nem mesmo Lindoso são colectividades socialmente homogéneas mas internamente
diferenciadas.
Ambas as aldeias apresentam uma estrutura social hierarquizada, cuja apreensão e interiorização por
parte dos diversos actores sociais reforçam as diferenças objectivas, a partir das quais estes se classificam a
si próprios e aos demais moradores, quer face ao exterior, quer sobretudo no seio do universo social local.
Como explicar a desigualdade social e as respectivas representações classificatórias entre as famílias e os
diversos grupos sociais?
Semelhante questão conduzir-nos-ia ao tratamento de um dos mais candentes problemas sociológicos
presentes não apenas nas sociedades camponesas, mas também em diversas formações sociais ao longo da
história e da actualidade. Seguindo de perto Bader e Benschop (1988:55 ss), resultaria unilateral e
inadequada qualquer explicação de tipo monocausal: desde as teorias histórico-causais e teleológicas da
divisão do trabalho e da diferenciação de papéis, passando pelas da apropriação do sobretrabalho e da
apropriação privada da propriedade, até às de tipo político, em base ora coerciva e violenta, ora legitimada
no consenso normativo e valorativo. Por outro lado, tão-pouco se poderão confundir as causas das origens da
desigualdade social com as da sua manutenção, reestruturação e transformação, nas quais o lugar de cada
actor social, a nível já colectivo já individual, como refere Bourdieu (1979:556 ss), é objecto e ocasião de
luta e/ou (re)classificação social. Por fim, ainda segundo Bader e Benschop (1988:57 ss) importa distinguir
causas de desigualdade posicional derivadas da desigual distribuição do poder de disposição sobre recursos e
recompensas e causas sócio-estruturais e históricas da desigualdade atributiva resultante da aplicação de
específicos critérios de inclusão ou exclusão em base ora adstritiva ora meritocrática. Ao analisar em
concreto como é que os recursos são controlados e repartidos pelos diversos grupos sociais, estaremos mais
bem munidos para perceber as relações sociais em ambas as aldeias e desfazer os equívocos acerca da
pretensa igualdade comunitária.

78
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

CAPÍTULO 4
DA RELATIVA AUTARCIA À COEXISTÊNCIA ECONÓMICA

Antes de descrever e analisar a situação sócio-económica actual, importa, ainda que sumariamente, dar
conta, num breve registo, da evolução histórico-demográfica de ambas as aldeias.
Uma total autarcia nem Aguiar nem Lindoso terão conhecido ao longo da sua história local, se
atendermos a que, por muito ténue que fosse, alguma ligação havia com o exterior e suas instituições, já
eclesiásticas, já estatais. Das fontes históricas, em especial dos Livros de Conciliações e dos Assentos de
casamento, se infere, sobretudo para Aguiar, a existência de um determinado grau de circulação de pessoas e
bens no perímetro das aldeias circunvizinhas e das vilas próximas, designadamente pelas redes de alianças
matrimoniais e pelas vias de comunicação em direcção às festas, feiras ou mercados locais. Atendendo
todavia à relativa auto-suficiência local e à ausência ou rareza de meios de locomoção mecânica e
economicamente acessíveis, até aos anos sessenta o horizonte sócio-geográfico da maior parte dos
moradores de ambas as povoações sobretudo de Lindoso não ultrapassava as distâncias das sedes dos
respectivos municípios: «Até 1960 poucas eram as pessoas que saíam de cá. Tudo se fazia aqui e quando se
saía era só de vez em quando para ir ao doutor, ir vender ou fazer compras na feira e ir à vila pagar a
décima que era uma bagatela e que poucos pagavam» (L59).
Dada a predominância das unidades domésticas de subsistência de baixa tecnologia e produtividade, a
minimização de contactos exteriores, articulada com a manutenção de um mínimo de segurança económica,
deveria ter constituído desde finais do século XVIII uma resposta involutiva-adaptativa que, salvaguardando
a sua relativa autonomia, reduziria ao máximo possível a insegurança causada pela crescente interferência de
elementos estranhos e agentes estatais incontroláveis (12:1, 12:2).
Salvo alguns proprietários-lavradores (A33, Le31, L120) – que desde finais do século XIX se faziam
transportar em carros de bois ou carroças puxadas por éguas ou burras –, os demais moradores, sobretudo
mulheres, palmilhavam quinze a trinta quilómetros com os produtos às costas ou à cabeça em direcção às
respectivas feiras. A pé caminhavam igualmente os artesãos, sempre que se deslocavam para trabalhar nas
aldeias circunvizinhas, excepto a partir de 1955-60, quando começaram a adquirir uma bicicleta e, mais
tarde, em 1965-70, uma motorizada. Osúnicos que passaram a usufruir automóvel, aliás então considerado
objecto de luxo, eram, desde 1954, o pároco e o madeireiro de Aguiar e, desde 1962, a lavradeira mais rica
de Lindoso (L37).

Cada freguesia constituía a base geográfica duma unidade política mínima que, embora subordinada a
nível regional e nacional, era delimitada pelas fronteiras de um território gerido pelo conselho de vizinhos
(ajuntamento), pelo regedor e, sobretudo, pela Junta de Freguesia. Acresce que a dependência de bastantes
famílias face às casas mais ricas e o predomínio numérico de pequenos camponeses, por um lado, assim
como a presença fugaz de entidades externas e sobretudo a prática ausência de senhores nobres no seio da
aldeia, por outro, permitiam o reforço da relativa autonomia de ambas as aldeias, patenteando cada uma
80
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

delas uma espécie de «reserva de passagem» a estranhos (por exemplo, os esquifes em trânsito interaldeão
eram transportados por homens de cada uma das unidades territoriais).

Se ainda hoje são bastante deficitárias as infra-estruturas, em particular as de saneamento1, até 1950-60
a inexistência das mesmas (estradas, electricidade, transportes rodoviários)2, assim como a inacessibilidade a
jornais e meios de comunicação audiovisuais (rádio, televisão) eram mais notórios. Por sua vez, se tal
contribuiu para o relativo isolamento geo-social de Aguiar e, sobretudo, de Lindoso, este deve-se contudo ao
facto de cada uma das colectividades, enquanto unidade económico-geográfica, ser (quase) auto-suficiente e
autocentrada. O reduzido intercâmbio de bens e serviços com a cidade e mesmo aldeias circunvizinhas
explica-se pelo facto de os órgãos locais exercerem uma polivalência de funções e os moradores
satisfazerem no interior da família e da aldeia, mesmo que precária e desigualmente, as suas necessidades
materiais e culturais: defesa e segurança, comunicação e autoafirmação, alimentação e habitação, sexo e
reprodução bio-social.

4.1. Breve relance histórico-demográfico

Apesar de tratar-se de duas povoações minhotas impregnadas de elementos sócio-históricos comuns,


dada a específica evolução e a actual idiossincrasia de cada uma, nesta rubrica cada aldeia será tratada à
parte.

4.1.1. Lindoso

Situado a dois quilómetros da raia luso-galaica, Lindoso, sendo uma aldeia do Alto Minho e fazendo
parte integrante da freguesia do Lindoso, constitui uma povoação de montanha que, além de distar vinte e
oito quilómetros da vila de Ponte da Barca, sede do município, situa-se a cerca de sessenta e cinco
quilómetros de Viana do Castelo, sede de distrito (mapa 1).
Encravado a meia encosta da montanha, Lindoso tem as suas casas dispostas com algum declive e em
aglomerado relativamente concentrado. O seu meio físico agreste e montanhoso configurou certamente a
formação do povoado e modelou o modo de vida agro-pastoril das suas gentes, que se sentiram forçadas a
adaptar-se a uma morfologia geofísica relativamente semelhante e constante.
As terras de cultivo desta povoação do interior apresentam uma linha divisória que se situa entre a
encosta de um monte de 468 metros de altitude, pertencente ao complexo serrano do Parque Nacional da
Peneda-Gerês, e a zona ribeirinha do rio Lima. Para cima avistam-se, englobando a aldeia, terrenos
acidentados e pouco férteis, cuja disposição em socalcos torna o seu cultivo extremamente penoso. Tais
patamares, moldados com o fim de suster a terra, são o produto do empenho secular da população local e,
como tal, testemunham o seu ingente esforço no sentido de fazer dos terrenos montanhosos, áridos e incultos
uma área produtiva de culturas forrageiras desde o centeio e o milho aos legumes e à vinha.
Já descendo em direçcão ao rio Lima e atravessando a estrada encontram-se na zona ribeirinha rechãs
que, situadas no sopé das serras, se foram formando de aluviões, dando assim lugar às veigas ou várzeas que
são leiras mais fundas e férteis e com área mais reduzida. Ao longo do rio Lima e de um seu afluente, o rio
Cabril, é de referir a existência de quinze moinhos de rodízio que, sendo herdados e geridos, em regime de

1
Salvo a implementação generalizada da electricidade, as deficiências sanitárias são evidentes tanto em ambas as aldeias como a
nível municipal: por exemplo, em Ponte da Barca, apenas 17,2% dos lugares têm água a domicílio, 0,7% saneamento, 0,7%
recolha de lixo (Mourão e Brito 1983:34).
2
Embora por conveniência da empresa hidroeléctrica Electra del Lima, a freguesia do Lindoso possui estrada até Cidadelhe desde
1928, só completada no início dos anos sessenta até à aldeia de Lindoso e, posteriormente, até à fronteira. Em Aguiar, tal viria a
ter lugar em 1945 por iniciativa governamental e municipal, se bem que amplamente custeada pela própria freguesia. Contudo, os
moradores de Aguiar – que para utilizar o comboio ou a camioneta eram obrigados a caminhar a pé meia hora – só a partir de
1985 viriam a ser servidos por uma camioneta diária. Quanto à electricidade, esta seria implantada em Aguiar em 1958 e em
Lindoso em 1969, apesar de solicitada desde 1962 (cf. AJL 13-5-1962).
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

consortes, por grupos de famílias com mais recursos, são de construção posterior a 1758, visto que as
Memórias Paroquiais referem expressamente não existir então em Lindoso moinhos ou outros engenhos
(MPL 11-3-1758:667).

Como povoação Lindoso parece existir, pelo menos, desde o século VI, atendendo ao relato das actas do
Concílio de Lugo em 569, no qual, a propósito dos planos de reorganização das circunscrições episcopais e
das delimitações geográficas da diocese de Braga face à de Lugo-Orense, se assume como linha divisória o
rio Lima, fazendo-se aí referência a Lindoso3. Posteriores referências poder-se-ão encontrar no Censual de
Braga entre 1084 e 1091 no quadro da divisão eclesiástica relativa à Terra da Nóbrega, correspondendo a
esta a maior parte das paróquias da actual Ponte da Barca.

Lindoso: a povoação (foto l)

3
Lindoso é uma das três aldeias pertencentes à freguesia do Lindoso – de resto só precedido do artigo definido tratando-se da
freguesia –, sendo as outras duas Parada e Cidadelhe. Contrariamente à ideia difundida de que o topónimo Lindoso teria derivado
do adjectivo «lindo» atribuído ao respectivo castelo, A. J. Costa (1959, 1984) sustenta que a designação da paróquia de Lindoso
deriva de «linde» que significa limite ou termo da diocese de Braga, tal como se pode inferir das referências do mencionado
Concílio de Lugo em 569: «a fauce fluminis Limie per ipsum fluvium usque ad Lindosum, inde ad Portellam de Homine» (cfr.
Liber Fidei, does. 552, 554, in A. J. Costa 1959 11:204 e A. J. Costa 1984 «Alcaides-mores do Lindoso» in Notícias da Barca, n.º
160 de 22-24 de Agosto de 1984).
82
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Os espigueiros, Lindoso (foto 2)

Quanto ao cômputo populacional, sendo as Inquirições de 1220 omissas a este respeito, só


posteriormente as Inquirições de 1258 vêm atestar a existência de 14 testemunhas e 10 casais em Lindoso,
dados estes que, segundo Coelho (1990:176), indiciam ou a existência de mais de um fogo por casal ou,
mais provavelmente, a presença de quatro cabaneiros desprovidos ou com insignificantes recursos.
Tal como diversas povoações vizinhas, principalmente de fronteira, Lindoso possui um prestimoso
castelo que teria sido construído em 1261 para objectivos estratégicos de defesa do território conquistado
nas batalhas de separação e independência de Portugal face a Leão e Castela, tal como se inferir das ordens
régias para com os moradores de Lindoso: «Quando lhes vem mandado de guardarem o porto de Cabril e de
Lindoso hão-de guardá-lo três dias» (Inq 1258:413-414 in Coelho 1990:196). Por outro lado, além da
proximidade da fronteira, a distância da comunidade em relação à alta fidalguia permitia aos reis conceder
determinados privilégios aos habitantes de Lindoso, a fim de estes assumirem as funções de defesa perante
eventuais incursões exteriores, alimentando, quando muito e sem excessos, o casteleiro. Esta função,
presente desde a fundação da nacionalidade, não só libertaria, por privilégio Real, os moradores de Lindoso
de fornecer soldados, como isentá-los-ia de pagar mais impostos, encorajando-os mesmo a povoar essas
terras de montanha fronteiriças. Por seu turno, os moradores, alegando, na qualidade de monteiros, custos de
reparação e tarefas de defesa do castelo e de vigilância da serra e das fronteiras, além de conseguir eventuais
isenções ou reduções tributárias, podiam assenhorear-se das presas e demais bens apreendidos inimigo: «E
se prendem uma besta com sela, ficam com a sela para si ou lhe dão por ela um maravedi; e pelo jugo de
bois ou pelo mouro que foge um par de maravedis» (Inq I:413-414 in Coelho 1990:196).
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

Contrariamente a outras povoações, sobretudo do vale, sujeitas a senhorios eclesiásticos e monásticos4,


os moradores de Lindoso entabulavam uma relação directa com o rei, a quem, ainda que ocasionalmente,
forneciam guarida e manutenção nas suas deambulações de montaria e a quem deviam certas obrigações
tributárias. Deste modo, os habitantes de Lindoso podiam eventualmente tirar partido das lutas internas entre
a Coroa e os senhores nobres laicos e eclesiásticos na região, lutas essas registadas, segundo Coelho
(1990:170), desde Afonso II. Mais, no caso de não conhecerem outras hierarquias fora da aldeia a não ser o
rei, não eram afectados, ou então em grau mínimo, pela virtual presença incomodativa ou espoliadora de
senhores nobres. Mais tarde, nomeadamente na vizinha paróquia do Soajo, os nobres, tal como o mostra a
Chancelaria de João I, viriam, por decreto régio de 5-3-1401, a ser proibidos de ali residir: «Que nenhuns
fidalgos morem nem tenham herdamentos em Terra de Soajo nem lhe tomem seus sabujos» (= cães de
guarda) (Li II:170v in Pintor 1977:15).

Não obstante a pressão senhorial nas zonas montanhosas do interior ser menos acentuada ou, como no
Lindoso, quase inexistente, tais povoações não deixavam de ser tributadas. A fim de contribuir para «custear
as despesas da guerra dionisina contra os mouros» (in Coelho 1990: 173). Lindoso e as restantes 27
paróquias da Terra da Nóbrega, além de suportar os gastos da reparação de fortificações e castelos como o
de Lindoso, satisfaziam, conforme as suas posses, um alargado elenco tanto de rendas em espécie como de
encargos tributários em moeda, perfazendo um total de 2548 libras, por exemplo, em 1320: umas mais ricas
como Vade, Bravães, Crasto ou Muia respectivamente com 100, 300, 500 e 700 libras, outras mais pobres
como Barral ou Codesseda com 10, situando-se o Lindoso com uma contribuição intermédia de 60 libras5.
Além destes tributos6, a população do Lindoso ver-se-ia paulatinamente confrontada com a sobrecarga
colectiva de sustentar o casteleiro, cuja função, enquanto delegado do rei, consistia justamente em cobrar da
colectividade uma renda global. A recolha desta pelo casteleiro – contrariamente ao costume inicial de ser
levada a cabo por um mordomo local, rotativamente empossado pelos moradores – viria a constituir um
adicional elemento de discórdia na medida em que, como refere Coelho (1990:187), o exactor do
sobretrabalho dos moradores passou a ser um funcionário estranho. O agravo ou mesmo a fúria popular
intensificar-se-ia sobremaneira quando o casteleiro ou se excedia nas exigências de sua sustentação
(géneros, cabrito), ou cometia outros abusos e atropelias ao ponto de provocar protestos e queixas dos
moradores junto do rei. Este, por seu turno, desagravava e, por vezes, atendia aos pedidos dos moradores de
Lindoso e doutras povoações circunvizinhas de montanha7, principalmente por ocasião das suas
aposentadorias, montarias e as respectivas caçadas e batidas do lobo ou da simples recolha dos tributos in
natura: «quando vai a preito ter ou a monte correr ou o seu pão colher. E isto hão de d'uso» (Inq I:413-414
in Coelho 1990:186).
Segundo o Foral Novo de 5-10-1514, os habitantes do Lindoso tinham que pagar de direitos reais «cem
alqueires de pão terçado, a saber, cem de milho (miúdo) e painço, os quais eram antigamente repartidos
por todos os herdeiros e possuidores da dita terra sem mais se acrescentar ou diminuir, ora sejam muitos,
4
Salvo uma referência em 1643, do sumário das sentenças e dos afora,--nentos referidos nos registos dos mosteiros, em particular
o de Santa Maria de Muia, da extensa e diversificada enumeração das paróquias relacionadas com o convento durante três séculos,
pelo que pude apurar, não consta a de Lindoso. Tal não impede que já em 1220 a Igreja e as Ordens Religiosas superintendessem
sobre 318 casais da Terra de Nóbrega, sendo 79.8% destes propriedade dos mosteiros, com particular relevo para o de S. Martinho
de Crasto e Mosteiro de Rendufe. 12.5% de Ordens Militares e 7.7% da Igreja (Coelho 1990:177).
5
Coelho 1990:173. O total das rendas pagas em 1258 pela Terra de Nóbrega à Coroa somava «612,5 alqueires de pão, 118,5
almudes de vinho, 268 varas e 2 côvados de linho (mais 5 afusais), 1 almude de legumes, 45,25 alqueires de castanhas, 1 cabrito,
4 leitões, 1 leitoa (freama), 7 corazis, 2 espáduas e 3 quarteiros de carne, juntamente com 210 galinhas, 33 frangãos, 17 capões,
1 pata, 707 ovos, 17 soldos portugueses e mais 27 soldos e 6 dinheiros leoneses», tributos estes que corresponderiam aos de uma
terra pobre (Inq I:39, 410 in Coelho 1990:188). Sobre a origem da Terra de Nóbrega, cf. Coelho 1990:171 ss.
6
Cf. foral de Lindoso concedido por D. Manuel I, o qual seria aplicável a «varões encabeçados nos casais» (FN 5-10-1514 in L.
Dias 1969:142). Da lista de tributos cabe referir a censúria: direito ou renda que determinada igreja devia pagar à sede do bispado
(Viterbo 1962:89);fossadeira: tributo militar; lutuosa: direito do senhor a escolher o melhor terreno ou jóia à morte do camponês
ou de sua mulher; gaiosa: encargo ou obséquio para com o senhor por ocasião do casamento dos filhos do camponês-enfiteuta.
7
Embora com o objectivo de ganhar-lhes o apoio ou contrabalançar o poder dos feudos senhoriais, o rei acedia não raramente às
exigências dos moradores contra usurpações ou excessos de senhores nobres, de que a concessão de cartas de aforamento e forais
é uma das expressões. Por exemplo, entre 1143 e 1279 foram atribuídos 18 forais e 50 cartas de aforamento no Minho (G. Barros
1945 IV:48, A. B. Coelho 1981:21, Sampaio 1979:162 ss).
84
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

ora sejam poucos ... » (FN 5-10-1514 inL. Dias 1969:142).

A relativa autonomia do Lindoso viria a conhecer um novo impulso quando, tal como refere o
recenseamento de D. João III em 1530-1531 conhecido por Numeramento, passou de freguesia para
concelho autónomo, «com tribunal de aduana com juiz, escrivão e guardas» (A. Costa 1868:207). Nessa
altura, enquanto a média de fogos por freguesia rondava os 25, Lindoso somava 41 fogos (Coelho 1990: 17
6-177).
Tal autonomia administrativa e judicial– que se reforçará pelo facto de Lindoso se ter constituído como
um dos palcos de combate na guerra de Restauração no século XVII – é igualmente sublinhada pelas
Memórias Paroquiais, segundo as quais Lindoso e seus habitantes, além de não conhecerem «nem honra
nem behetria», «não estão sujeitos a outra justiça nem governo», possuindo órgãos próprios: «juiz
ordinário, de crimes, civil e de órfãos e, por sua Majestade, câmara, procuradores, alguazil, juízes por
repartição, homens e nobreza da terra» (MPL 11-3-1758). Assim, ainda no século XVIII, Lindoso, embora
«não tivesse nem feira nem correio» (MPL 11-3-1758:666), continuava a ser câmara e «terra de El-Rey»
(MPL 11-3-1758:665). Os seus moradores, alegando mais uma vez serviços de defesa do referido castelo,
pagavam em conjunto «cem alqueires de pão e seiscentos e cinquenta reais em dinheiro por montes, fontes e
penas de sangue», tal como referem as Memórias Paroquiais: «Tem esta terra privilégio de não dar
soldados porque dão os moradores brigadas a defender a raia dela…, não pagam por ela nem para pontes
do Reino por ser obrigados as do dito concelho, tudo isto por provisão de Sua Majestade (MPL 11-3-
1758:666).
Não obstante a existência de algumas obrigações tributárias em favor do rei e sua corte, os moradores
do Lindoso, apesar das tentativas centralizadoras de absorção desde o tempo de Marquês de Pombal,
manter-se-iam relativamente autonómos face aos nobres eclesiásticos e sobretudo laicos até ao início do
século XX.

Voltando à época contemporânea,importa agora relevar alguns dados relativos à evolução demográfica
da freguesia do Lindoso, para o que convirá reter o mapa da sua evolução contemporânea com base nos
dados oficiais (gráfico l).
O coeficiente de correlação entre anos observados e população presente, conforme os censos, revela-se
positivo (r=0.49). Todavia, sendo este valor relativamente baixo e calculado sobre treze observações, não é
possível inferir uma correlação positiva extensível a todos os valores da população em longos períodos.
Salvo o do ano de 1911, os demais censos apresentam índices superiores de presença de mulheres
comparativamente aos dos homens, o que se prende com as saídas migratórias destes. Por outro lado,
paralelamente a uma relativa estabilidade e/ou crescimento da desde 1864 até 1960, verificam-se certas
variações no volume da população entre as sucessivas décadas (anexo 1). Porém, é sobretudo desde os anos
setenta deste século que a freguesia de Lindoso tem sofrido notáveis modificações demográficas em sentido
regressivo, denotando um processo de despopulação e até desertificação crítico que se estende até ao
presente, apesar do conjuntural aumento da população presente em 1991 devido ao fluxo de forâneos,
sobretudo homens, para a construção da barragem.
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

GRÁFICO 1: Evolução demográfica de Lindoso (freguesia) (1864-1991)

Fonte: INE. Censos Populacionais de 1864, 1878, 1890, 1900. 19ll, 1920, 1930, 1940, 1950, 1960, 1970, 1981 1991.

4.1.2.Aguiar

Situada no sopé de montes com altitude média, Aguiar constitui, contrariamente a Lindoso, uma aldeia
de vale situada no Baixo Minho a meio caminho entre Barcelos, sede do município, e Viana do Castelo, mas
pertencente ao distrito de Braga, donde dista cerca de trinta e quatro quilómetros (mapa 1).
O facto de Aguiar estar banhada pelo rio Neiva teria permitido aos seus moradores construir também
pequenos moinhos com aproveitamento hidroagrícola, de acordo com as necessidades agro-artesanais da
colectividade e, em particular, dalgumas famílias. Segundo Leal (1873:37) e A. Costa (1868:167), teriam
sido detectadas no cume dos montes de Aguiar ruínas de uma torre e vestígios de muros e fossos de um
vetusto castelo medieval.Este, segundo Fonseca (1948:69), deveria ter servido igualmente de ponto
estratégico durante a Reconquista. Ainda na viragem do século XIX para o XX, haveria, junto às ruínas do
referido castelo e duma torre, resquícios de construções em forma redonda, indiciando moinhos de vento
que, posteriormente, teriam sido arrasados.

A terra de Aguiar do Neiva, conotada na sua designação com nome de família de linhagem nobre, teria
sido doada pelo Conde D. Henrique a D. Gueda, o «velho», seu companheiro de armas, ficando isenta de
tributos, tal como se pode ler nas Inquirições de D. Afonso, de 1220: «Nelas se diz que o rei não é
padroeiro, não tem aqui reguengo algum, não lhe pagam qualquer foro; que os desta freguesia vão ao
castelo e que esta igreja tem sesmarias e oito casais» (in Fonseca 1948:67).

Elevada a vila, Aguiar – à qual D. Afonso III deu foral em 12 de Julho de 1258 –, tornar-se-ia couto de
alguns nobres, no qual «moram homens que se escusam por amádigos8, que têm voz ou coima fora do couto,

8
Amádigo era o lugar, povo, quinta, casal ou herdade que conseguia obter os privilégios de Honra por nele se haver criado ao
peito de alguma mulher casada o filho legítimo de um Rico Homem ou Fidalgo honrado, prática esta presente tanto nas terras de
86
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

que não a pagam nem vão em anúduva» (in Fonseca 1948:68). Com efeito, em Aguiar era usual a prática de
amádigo, que constituía uma forma de adopção ou perfilhação, pela qual o nobre, ao colocar sob a sua tutela
um filho de um camponês-vilão ou herdador de propriedade régia, a usurpava para si. Quer a disseminação
da própria prole do senhor nobre por diversas localidades, quer a permanência temporária da mesma criança
saltitando de casa em casa serviam assim de pretextos para o senhor nobre se apropriar de novas terras
reguengas e, assim, expandir os seus domínios (Viterbo 1962 I:445, Coelho 1990:184 ss).
Embora servindo os interesses estratégicos dos senhores nobres, a instituição de amádigo ia todavia
também ao encontro a certos interesses dos cultivadores na medida em que, sempre que quisessem ficar
livres de tributos, um deles pedia ao senhor de uma honra próxima que desse um filho a criar a sua mulher,
libertando assim da tributação não só esse lavrador, mas também todo o lugar e a respectiva vizinhança.
Como o privilégio de amádigo, enquanto técnica de fuga ao imposto régio, se ia tornando abusivo e lesivo
dos interesses da Fazenda Real, D. Dinis aboliu-o em 1290. No entanto, por volta de 1367, D. Fernando fez
mercê da Terra de Aguiar a Nuno Viegas, o «velho», e D. João I doou-a em 2 de Fevereiro de 1389, em
troca de Aldeia Nova da Beira, a Nuno Viegas, o «moço», que esteve em Aljubarrota, chamando-lhe seu
vassalo. Mais tarde, a oito de Novembro de 1401, tal como muitas outras terras e jurisdições, Aguiar teria
feito parte da doação que D. João I fez a seu filho D. Afonso I, primeiro duque de Bragança e oitavo conde
de Barcelos, para casar com D. Brites Pereira de Alvim, filha do condestável D. Nuno Álvares Pereira
(Fonseca 1948:68-69).

A partir do século XVI, Aguiar irá desempenhar um papel mais preponderante na política fiscal e
judicial local e regional, designadamente a partir da concessão de foral novo porD. Manuel I em 1512 (FN
4-05-1512:104 in Leal 1873:37). Com base nesse foral Aguiar constituir-se-ia em 1527 cabeça de Julgado
pertencente à grande comarca de Barcelos, cabendo-lhe administrar a Justiça e recolher impostos em
dezasseis freguesias circunvizinhas até à nova divisão judicial do país em 21-3-1835. No entanto,
curiosamente o Censo de 1527, além de não referir o número de fogos e habitantes de Aguiar, nem sequer
menciona ou especifica a freguesia de Aguiar, sendo apenas referido que o conjunto das populações
pertencentes ao Julgado de Aguiar somaria 891 moradores. A nível paroquial, só a partir de 1708 é possível
apurar que havia então em Aguiar 70 fogos, passando em 1758 para 73 fogos e 227 moradores, em 1865
para 114 casas e 508 vizinhos e, em 1887, para 102 casas com 176 homens e 223 mulheres (A. Costa
1868:267, MPA 8-4-1758:40lv, DPCB 3-11-1865, Vieira 1886-87 II:186).

Barcelos (Fonseca 1948:68) como nas de Nóbrega (Coelho 1990:182) e outras (Cf. Sampaio 1979 I:162, Mattoso 1985 I:270).
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

Aguiar: a igreja e parte da povoação (foto 3)

88
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

O açude e o moinho, Aguiar-Durrães (foto 4)

Não obstante, a partir do século XVI, ser provável inferir-se uma evolução no sentido de uma menor
dependência dos moradores face aos senhores nobres, a autonomia local de Aguiar era bastante mais relativa
que a de Líndoso. Além disso, Aguiar foi paulatinamente perdendo a sua supremacia sobre as restantes
paróquias circunvizinhas devido não só à perda dos foros como à redução do seu papel judicial, chegando
mesmo a ser suplantada por outras freguesias e, em particular, pela sede do concelho que chamaria cada vez
mais a si as funções tributária, judicial e outras. É, porém, sobretudo a partir dos finais do século XVIII que,
através da subtil aplicação de tributos fiscais, ocorreria a extorsão de colectividades camponesas como
Aguiar. Desde 1788, especialmente em anos de crise, as freguesias eram obrigadas, de acordo com o regime
das terças, a desfazer-se das reservas acumuladas, reservas essas provenientes da terça parte do produto
entregue pelos rendeiros de cada freguesia sob a forma de dízimo. Dos dados extraídos das contribuições
pagas, entre 1813 e 1819, por moradores das freguesias pertencentes ao Julgado de Aguiar foi possível
estabelecer o seguinte quadro de tipos de impostos, quer no concernente ao espaço total do Julgado, quer em
relação a Aguiar:
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

QUADRO 1: Tipos de impostos em Aguiar (1813-1819) (em réis)

Fonte: Livro de Décimas de Aguiar e do Julgado de Aguiar, Arquivo Municipal de Barcelos, 1813-1819.

Uma outra fonte de receita estatal era a originada pelo lançamento de sisas que, no conjunto dos anos
1810, 1811 e 1812, teriam rendido respectivamente 124.000, 311.400, 249.800 réis, ao que corresponderia
uma média de 228.400 réis.
Além das décimas e das sisas, havia ainda a receita proveniente da contribuição extraordinária para a
defesa, a qual, pelo menos em quatro paróquias do Julgado, rendeu 238.781 réis, receita que o juiz de fora
Manuel de Sousa Pires superintendia, embora com o consentimento dos juízes eleitos pelas freguesias do
referido Julgado (LCED, 1-11-1813). Por fim, antes de terminar esta rubrica, importa lançar uma
retrospectiva sobre a evolução demográfica contemporânea de Aguiar mediante o gráfico 2.

Do mesmo modo que em Lindoso, o coeficiente de correlação entre anos observados e população
presente acusa-se positivo (r=0.62). Com este valor é ainda possível extrapolar tal correlação positiva para
um longo período e respectivos valores de população.

GRÁFICO 2: Evolução demográfica de Aguiar (1864-1991)

Fonte: INE, Censos Populacionais de 1864, 1878, 1890, 1900, 1911, 1920, 1930, 1940, 1950, 1960, 1970, 1981 e 1991.

90
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Uma das características marcantes dos índices de densidade populacional em Aguiar é, tal como no
Lindoso, o predomínio, por vezes considerável, do número de mulheres presentes e residentes sobre o dos
homens (anexo 2), o que, pelo menos em parte, se explica pelas diversas vagas migratórias. Cabe, em
particular, referir o último movimento migratório entre 1960 e 1981, em que se verifica uma acentuada
regressão demográfica de residentes, correlativa ao notável surto migratório para os sectores da indústria e
dos serviços, especialmente no estrangeiro. Só na década de 1980-90 se viria a recompor o contingente de
população residente devido não só ao saldo fisiológico positivo como às restrições políticas na imigração
intraeuropeia e aos movimentos de retorno de repatriados e emigrantes desde 1973-75.

4.2. Minifúndio: áreas, culturas e produções

Os dados do Recenseamento Agrícola ao Continente (RAC) de 1979, além de indiciarem que, pelo
menos, 91.3% das explorações de Lindoso e 57.6% das de Aguiar (0.05-2 ha) constituíam economias
domésticas de subsistência, evidenciam que estas labora(va)m cerca de 1/3 de área agrícola e dependiam e
dependem em 2/3 da área florestal (anexo 3). O destino de aproveitamento do solo é relativamente
semelhante, se bem que em Lindoso a parcela de área florestal seja algo superior à de Aguiar: 66.1 % versus
63.5%.
Os terrenos de regadio (hortas, eirados, campos e prados), cultivados pelas casas de Aguiar, abarcam no
perímetro geográfico da freguesia 117.92 hectares, o que representa 44.6% do total de 264.36 hectares (RAC
1979), sem contar os terrenos possuídos fora da freguesia nomeadamente 2.94 hectares de regadio em
Durrães, 16.15 em Quintiães, 6.1 em Cossourado e 0.14 cm Balugães.

No quadro das condicionantes da estrutura minifundiária, há a referir o tendencial regime sucessório da


partilha igual, o qual coestrutura a fragmentação da propriedade não só a nível nacional como a nível
regional e de ambas as aldeias:

QUADRO 2: Distribuição das parcelas por categoria fundiária

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Correlacionando as categorias fundiárias com o número de parcelas em ambas as aldeias constatam-se


os seguintes coeficientes: r=0.95 para Lindoso e r=0.78 para Aguiar, com um valor de prova igual a zero
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

para ambas. Tal significa que existe uma correlação fortemente positiva, de modo que mais elevada a
categoria fundiária maior o número de parcelas possuído.
A elevada pulverização dos terrenos constitui, portanto, uma componente inerente à estrutura
minifundiária de ambas as colectividades, com particular incidência em Lindoso, onde o valor médio das
parcelas com 152 metros quadrados é bastante inferior ao de Aguiar: 3.071 metros quadrados. Enquanto as
casas de Aguiar possuem, em média, 6.6 parcelas e 76.9% das mesmas têm o seu património fundiário
distribuído por menos de 10 parcelas, em Lindoso a referida média sobe a 37.7 parcelas, possuindo 34.7%
das casas menos de 10 e 60% mais de 10 parcelas!

Paralelamente ao rio Lima, os montes e as serras adjacentes a cada um dos agregados populacionais,
além de formarem espaços ecológicos importantes na região, têm constituído fonte integrante e
indispensável dos rendimentos dos grupos domésticos especialmente em Lindoso. Seus tojos e giestas, fetos
e codessos, matos de urze e carqueja têmfornecido, sobretudo até à introdução dos adubos, a base para a
formação de fertilizante orgânico e para a manufactura do carvão. E suas árvores (pinheiros, carvalhos e
freixos, sobreiros, amieiros e vidoeiros) têm servido de matéria-prima para o fabrico de mobílias, aduelas e
alfaias agrícolas tais como temões de arado e cangas, eixos e fueiros dos carros de bois ou vacas.

Representando a pastorícia o principal eixo em que assenta a economia dos moradores de Lindoso, é
sobretudo no aproveitamento da serra para criação de gado bovino e ovino que reside a importância da
mesma através do sistema das vezeiras. Com efeito, Lindoso e aldeias circunvizinhas, situadas no perímetro
duma reserva natural rica em arvoredo e fauna9, fazem parte duma das zonas mais ricas em pastoreação do
concelho de Ponte da Barca, dado este reiterado pelos seus moradores nomeadamente nas suas estratégias
defensivas perante agentes externos: «É o armentio a maior fonte de receita desta freguesia e,
consequentemente, sua condição indispensável de vida e qualquer restrição no regímen das pastagens daria
à sua economia um golpe fatal» (AJL 16-8-1925).
De facto, a economia da freguesia de Lindoso é agro-pastoril, ou seja, ela firma-se na
complementaridade do binómio agricultura e pastorícia, ambas necessárias na economia de subsistência das
referidas 91.3% das unidades domésticas (anexo 3). Que, durante séculos, os moradores do Lindoso tenham
vivido basicamente da agro-pastorícia é-nos confirmado nas Memórias Paroquiais: «Os frutos que os
lavradores desta terra colhem com mais abundância são o milho grosso, o centeio e o vinho para remédio
da terra ...; nesta serra se criam os gados dos lavradoresm grosso e miúdo» (MPL 11-3-1758:666, 667).
Além das referidas culturas cerealíferas tradicionais (milho, centeio), os agregados domésticos têm
produzido, ao longo do tempo e de modo relativamente constante, a batata, o feijão e diversas espécies de
legumes: couve, fava, alface, tomate, cenoura, ervilha10.

A pastorícia, que até à política de reflorestação de 1940-45 sobrelevava a agricultura, tem vindo desde
então a diminuir o seu peso na actividade e no rendimento familiar. Ainda que bastante afectado, persiste o
regime pastoril de acordo com o sistema de vezeiras, o qual, além de favorecer uma acção de defesa perante
as agruras do meio serrano, constitui uma forma de pastoreio racionalizada em economia de tempo e permite
um aproveitamento mais adequado dos recursos colectivos: os montes e as suas pastagens, o chão de
propriedade colectiva para sustento do boi de cobrição – rotativamente a cargo das famílias possuidoras de
gado.

9
Se determinados animais selvagens tais como as águias e os búfalos, as corças e veados, as raposas e os marsacanhos, os pombos
e os trocases, aliás referidos em 1758 nas Memórias Paroquiais (MPL 11-3-1758:667), desapareceram ou foram dizimados, ainda
persistem outros como os lobos e os javalis, as cabras bravas, as perdizes e os coelhos. De resto, se bem que a falta de cálcio e
fósforo trave o crescimento físico-biológico do gado, a contiguidade da serra permite contudo, tal como já o referira R. Brito
(1948:99), a criação de várias raças sobretudo a bragueza entre o bovino, a churra entre o ovino e charnequeira entre o caprino.
10
Além do centeio – introduzido pelos Suevos no século V –, quer o milho alvo ou miúdo, cultivado na Península Ibérica desde a
colonização romana, quer, mais tarde, o importado da América no século XVI (Ribeiro 1987: 115, M.V.Cabral 1974:29-30,
Tolosana 1979: 136) ter-se-iam tornado, desde então e sobretudo desde o século XVII, culturas habituais da dieta alimentar.
Também se pratica anualmente a cultura da batata, sobretudo desde a importação da batata holandesa nos anos trinta e, em
especial, com a progressiva introdução dos adubos.
92
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Conforme a espécie de gado – bovino ou caprino-lanígero, esta última localmente denominada rês – há
dois tipos de vezeira, cada um dos quais possui as suas próprias regras de funcionamento. Na vezeira da rês
– que se mantém durante o ano inteiro – os pastores escalonados, conforme o costume da roda, agregam, por
meio de um grito convencional típico, as cabras e as ovelhas que cada vizinho solta das cortes, subindo do
eido ao monte para pastar e regressando ao fim da tarde.
Se, de Novembro a Março, por razões climatéricas, de maior disponibilidade de tempo e existência de
poulos de erva nos campos e lameiros cercanos do eido, cada família ou subgrupo de famílias cuida
diariamente do seu próprio gado vacum, nos restantes meses tem também lugar a vezeira das vacas e dos
bois. Assim, designadamente nas vésperas das sementeiras, não restando nas redondezas da aldeia pastagens
adequadas e suficientes, o gado bovino, uma vez marcado por cada casa com determinados sinais (fendas,
furos) e contabilizado pela Junta, é transferido de Abril a Outubro para as brandas pastoris, onde permanece,
sendo alternadamente pastoreado pelas famílias, de acordo com o número de cabeças possuído 11. Esta
deslocação poder-se-ia considerar como uma forma atenuada do velho costume de transumância, praticada
em tempos recuados, de que o relato das Memórias Paroquiais nos dá conta: «gado grosso nela dorme no
tempo quente» (MPL 11-3-1758:667).
Em 1977-78 verificou-se uma alteração assinalável nesta prática de pastoreio comunitário. Se até então
os vizinhos ainda se revezavam dois a dois na vigilância do gado por causa dos lobos predadores,
pernoitando quatro numa das cabanas12 existentes, hoje os dois vezeiros(as) sobem e descem no mesmo dia,
desaparecendo assim a vezeira noctuma. Esta mudança de costume, além de indiciar uma relativa menor
importância e contribuição da pastorícia no rendimento familiar, é acompanhada de uma maior interferência
do Estado através da Direcção do Parque Nacional da Peneda-Gerêz que, remodelado em 1971, de acordo
com o Decreto-Lei 187/71 de 8 de Maio, compreende 70.000 hectares e integra 114 aldeamentos. A
Direcção do Parque, ao responsabilizar-se por este e indemnizar as famílias prejudicadas com os estragos
causados pelos lobos, superintende, em contrapartida, na gestão do monte e restringe cada vez mais o espaço
de domínio das próprias populações, evolução esta que é lamentada com amargura e desencanto por alguns
membros mais idosos da comunidade (12:2, 12:3).

Por cada duas cabeças de gado vacum e, na vezeira da rês, por cada dez cabeças, cada unidade doméstica envia por um dia um dos
seus membros, jornaleiros ou criados. Em caso de número de cabeças de gado ímpar, cada vizinho deveria emprumar, dando mais
um dia por cada duas rodas do ciclo de vigilância. A este respeito, cf., para o Gerês, Sousa 1909:36, M. Antunes 1985:18 e, para o
Soajo, R. Brito 1948:95 ss, A vezeira, enquanto prática comunitária, é vista por Brito (1989:316 ss) como uma das múltiplas
formas possíveis do modelo de rotatividade que funcionaria como «princípio estrutural e estruturante» da organização
comunitária.
No início da vezeira, aquando da feitura do rol do gado pelo presidente da Junta, eram cobrados em 1985 440$00 por cabeça que
revertiam para os fundos da Junta, concretamente para a compra de bois procriadores.
12
Cabanas – de que hoje restam algumas – eram edifícios circulares feitos de pedra e torrões apenas com uma pequena abertura
para o exterior, onde se acendia uma fogueira para eventualmente afugentar o lobo. Tais cabanas teriam existido em número
considerável na época da prática corrente das brandas pastoris – termo que, segundo Pintor (1976: 17), seria a pronúncia
estropiada de veranda, de verão, designando o tempo e o local onde a maioria do povo passava, a que se contrapunha a inverneira,
de inverno. Sobre a antiga prática de vigilância noctuma com quatro pastores, cf. Descamps 1935:18.
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

Uma cabana, Alto Minho (foto 5)

Antigo engenho de linho, Aguiar (foto 6)

94
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Tradicionalmente a base económica dos grupos domésticos de Aguiar combina(va) a policultura


agrícola em terreno fértil e irrigado com a pecuária em pequena escala. A irrigação era assegurada não só
por poços e mananciais provenientes do monte como, sobretudo, a partir dos anos cinquenta, por captação,
com o motor, de água do rio Neiva. É, por este motivo, que Aguiar, tal como outras freguesias limítrofes do
rio, conheceu, pelo menos desde o século XVIII, um certo florescimento de actividades tanto agrícolas como
artesanais, das quais sobressaíam, além da pesca, a laboração de moinhos e azenhas, de lagares de azeite e
engenhos de linho e serração, tal como refere o pároco Domingos Vaz, encarregado do relatório para as
Memórias Paroquiais de 1758, ordenadas pelo Marquês de Pombal: «(o rio) corre o seu passo lento, tem
muitos moinhos, algumas azenhas, lagares de azeite, pisões, cria muitas trutas e alguns escalos, enguias e,
no fim, se pescam tainhas e lampreias, é livre quem quiser pescar e usar de suas águas, tem açudes, não é
navegável nem admite senhor particular...» (MPA 8-4-1758:40 v).

Estes moinhos e lagares, ultimamente pertencentes ao proprietário-lavrador Fortuna, conhecerão, a


partir do início da década de setenta, uma fase de progressiva desactivação e abandono. A incúria e a
subsequente degradação e corrosão pela humidade a que este complexo artesanal ficou sujeito dever-se-ia
tanto à inicial desestruturação da economia aldeã e, em particular, ao início da decadência da dita família
Fortuna (7:2.2), como, sobretudo, à concorrência de moinhos e lagares mecanizados.

As principais culturas em Aguiar abrangem o milho juntamente com o feijão, raramente o centeio,
algum azeite, a batata, os legumes, frutas diversas, incluindo a castanha e, em especial, a vinha (anexo 5).
Quanto à produção leiteira, se, em Lindoso, o contingente de vacas garranas, em regra piscas, produz
leite quase em exclusivo para alimento das crias, em Aguiar o efectivo pecuário bovino – basicamente turino
– é possuído sobretudo em função da produção de excedente para o mercado. Mais, salvo para o grupo de
lavradores médios e proprietários – cujo rendimento vinícola supera o do leite –, para a grande parte dos
demais produtores agro-pecuários, a produção leiteira constitui em Aguiar – como aliás a nível municipal –
a sua principal fonte de rendimento. Com base nos dados fornecidos pela Cooperativa Agrícola de Barcelos
foi possível elaborar um gráfico relativo à distribuição de famílias por categorias de produção leiteira entre
1979 e 1991 (gráfico 3).

Dos cálculos estatísticos elaborados sobre os casos apurados entre 1979 e 1991 constatou-se que, a
qualquer nível superior a 1 %, existe una correlação positiva entre a produção leiteira e os períodos
considerados (r=0.18). Segundo informações locais, o número de produtores de leite em Aguiar teria
crescido sobretudo desde 1970 até 1981 No entanto, tal como o gráfico 3 evidencia, apesar de um relativo
reforço da produção entre médios produtores, verifica-se, com efeito, um progressivo abandono da
actividade particularmente entre os pequenos produtores, processo esse a que não serão estranhos o sistema
de quotas e os subsídios a estimular o abandono da produção leiteira.
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

GRÁFICO 3: Famílias e classes de produção leiteira (Aguiar: 1979-91)

Fonte: Registos anuais da produção leiteira, Cooperativa Agrícola de Barcelos, 1979-91; classes de produção: em litros.

Tanto em Lindoso como em Aguiar, logo após as culturas hortícolas, forrageiras e a batata, o milho e,
em menor medida, o centeio, embora forneçam um rendimento cada vez menor ou até comportem prejuízos
em relação aos próprios custos de produção (semente, aluguer de tractor e/ou elevado dispêndio de força de
trabalho), continuam a manter, em 1985, o lugar de principais produções cerealíferas respectivamente em
63.4% e 39.3% das casas de Lindoso e 68.5% e 20.l % das de Aguiar. Salvo algumas casas que vão
abandonando ou, pelo menos, reduzindo a respectiva produção de milho e substituindo-a por outras mais
rentáveis tais como a erva de semente – contribuindo aliás para a tendência geral de decréscimo cerealífero
constatada por Moreira (1986:17) –, a maior parte das famílias continua todavia a semeá-lo não tanto em
consideração do ganho, mas porque, no dizer de uma pequena camponesa, além de constituir um sucedâneo
das rações, «assim temos as coisas de que necessitamos sem ter que as comprar» (A15).
Além do milho – que, segundo o RAC de 1979, ocuparia 87.8% da área cultivada – uma outra cultura
que detém uma posição dominante é a vinha. Se até cerca de 1960 a cultura da vinha em ramada era
praticada apenas por cerca de um terço das casas de Lindoso e dois terços das de Aguiar, ambas as aldeias
têm vindo a conhecer desde então e sobretudo desde 1970 uma relativa expansão mediante a aplicação
crescente de poupanças migratórias no plantio de videiras: pelo menos, respectivamente, 62.9% e 82.8% das
casas cultivavam em 1985 vinha13.
Combinando os produtos derivados da agricultura e da pastorícia e/ou pecuária, os moradores de
Lindoso e de Aguiar, até cerca de 1965-70, podiam autoabastecer-se sem ter de recorrer ao exterior,
fazendo-o, quando muito, mínima e esporadicamente. Cada casa consumia o que produzia mas, no caso de
escassez de um ou outro produto, procedia-se à troca interna com outras casas. De resto, cada aldeia
assegurava a moagem do milho14 e a maioria das famílias, sobretudo de Aguiar, possuía cada uma delas o
seu próprio forno.
Independentemente do seu carácter simétrico ou assimétrico, a entreajuda tem sido igualmente um

13
Já em Aguiar, já sobretudo no Lindoso é reduzida a área agrícola destinada à vinha, geralmente circunscrita às bordas das terras
(anexos 4 e 5). Importa, porém, acrescentar que, tanto em Lindoso e Aguiar como a nível regional, são efectivamente os pequenos
produtores com menos de 10 hectares os que cultivam 85.3% da área dedicada à vinha.
14
Enquanto em Lindoso cada grupo doméstico se encarregava de levar o milho, moê-lo em moinho próprio, de parentes ou
vizinhos e trazer para casa a farinha, em Aguiar, embora o transporte até 1965 fosse feito pelos membros de cada casa, o trabalho
de moer cabia ao moleiro, que para tal cobrava uma maquia, passando desde 1965 a recolher, com um burro, o milho e a devolver
a farinha.
96
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

factor de reforço da autonomia aldeã. Os recursos locais, além de dotar os grupos domésticos de meios
alimentares de base, constituíam fonte de matérias-primas para vestuário (linho, lã). Além disso, os
rendimentos da venda do excedente em cereais, vinho, leite ou animais, ainda que com sacrifício do
autoconsumo, proporcionavam as receitas monetárias necessárias ao pagamento de eventuais contribuições e
à compra dos poucos artigos não produzidos em cada uma das aldeias em foco. Havendo poucas ou
nenhumas reservas monetárias, os géneros comprados na mercearia (sal, açúcar, arroz, massas, tabaco,
fósforos e, esporadicamente, bacalhau), quando não trocados ou compensados com milho, feijão, ovos, uvas
ou vinho, davam lugar, não só em famílias pobres ou remediadas, corno, pelo menos, em cinco casas de
lavradores de Aguiar, à contracção de dívidas a pagar na altura das colheitas.

Em resumo, salvo os não-possidentes dependentes quer da oferta de terra alheia para arrendamento quer
da procura da sua própria força de trabalho, o sistema minifundiário mas policultural de cada uma das
colectividades tem possibilitado à minoria dos economicamente mais providos a sua manutenção e a criação
de excedentes e à maioria, em condições de cultivo não adversas, a sua auto-sustentação, ainda que mínima
e precária.

4.3. Divisão de trabalho e ciclo agrícola

Em Aguiar até cerca de 1965 e, em Lindoso, até 1970 era no quadro da aldeia que praticamente tinham
lugar todas as actividades agro-pastoris e artesanais, as quais, além de fortemente intensivas em trabalho
manual, eram, em grande parte, efectuadas no seio de cada uma das casas. Cada unidade doméstica
(semi)autónoma dedicava-se ao cultivo da terra e cuidava do gado, ora baseando-se predominantemente na
força de trabalho familiar, ora, em particular em Lindoso, fornecendo membros para o pastoreio e outras
actividades, de acordo com os esquemas comunitários.
Se até 1965-1970 a actividade agrícola de cada casa congregava a totalidade ou a maior do número de
pessoas activas – aliás variável de acordo com a quantidade de terra e a mão-de-obra, própria ou alheia,
disponível –, de então para cá tem-se reduzido bastante o volume dos agricolamente ocupados por casa:

QUADRO 3: Pessoas activas por categorias de exploração

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.


Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

Ainda que estatisticamente se verifique uma relação linear entre categorias fundiádas e o número de
pessoas activas na exploração (r=0.32 para Lindoso e r=0.35 para Aguiar), apenas para Lindoso e ao nível
de 2.5% se verifica uma relação de dependência do número de pessoas activas face às categorias fundiárias.
Contradamente a situações anteriores a 1965-70 em que a média de membros activos seria de quatro a
seis por casa, em 1985 – não contabilizando 10 casas em Lindoso e 20 em Aguiar, entre as quais emigrantes
agricolamente inactivos – 64.3% dos grupos domésticos em Lindoso e 61.9% dos de Aguiar assentam o
trabalho principalmente no equivalente a uma ou duas pessoas adultas, dados estes que, além de
confirmarem a fuga maciça de membros excedentes, indirectamente denotam um certo grau de mecanização
em ambas as aldeias.
Numa perspetiva cada vez mais pragmática da economia e da cultura camponesas, em regra, só conta na
casa quem é produtivo e/ou contribui para o rendimento familiar, não obstante o maior ou menor desconto
feito a inválidos e velhos incapazes, considerados todavia, sobretudo na fase terminal, um encargo
suplementar e, por vezes, um estorvo. Por outro lado, um défice nas forças de trabalho domésticas (saída
migratória, serviço militar, investimento escolar, morte prematura do marido ou da mulher ou mesmo de
filho(a) adulto) poderia pôr em perigo o equilíbrio entre a produção e o consumo. Semelhante quebra
obriga(va) os restantes membros da casa a intensificar o seu trabalho, a limitar ainda mais o seu nível de
consumo ou a socorrer-se de criados ou jornaleiros, situações estas que teriam afectado 11.3% dos grupos
domésticos de Lindoso e 13.8% dos de Aguiar.

A colheita do centeio, Aguiar (foto 7)

98
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

A sementeira do milho, Aguiar (foto 8)

Particularmente até 1970, o baixo grau de especialização do trabalho processava-se, a nível de cada
aldeia, numa base de interdependência e complementaridade entre as diversas actividades agro-pastoris ou
pecuárias, artesanais, comerciais e outras levadas a cabo pelo conjunto das casas. A divisão do trabalho
recaía contudo basicamente no seio de cada grupo doméstico, o qual, executando o mesmo tipo de tarefas
que os demais, podia contar com ramificadas ajudas de vizinhos e amigos, sobretudo em Lindoso (5:3).
Dentro de cada unidade doméstica, cada membro, de acordo com o sexo, a idade e as respectivas
capacidades, tinha de levar a cabo, em simbiose quase corporativa mas com certa flexibilidade,
determinadas actividades nas esferas produtiva e reprodutiva. Conotadas simbolicamente e/ou denotativas
do lugar social de cada um na divisão sexual e geracional do trabalho, as correspondentes tarefas atribuídas
eram e são implementadas sobretudo em vista à satisfação das necessidades de consumo familiares.
Certas ocupações, além de exigir dispêndio concentrado e rápido de energias, ou porque fossem mais
descontínuas e mais afastadas da casa ou simplesmente porque nelas os homens por tradição e/ou pelo seu
conhecimento, força ou hábito se especializassem15, eram especificamente por estes executadas: lavrar e
malhar, podar e fazer enxertias, ripar azeitona e cortar árvores, consertar carros e instrumentos, sulfatar e
encubar, entre outras. Além disso, os homens, quando não emigrados, coordenavam, em regra, as
actividades agrícolas, sendo aliás, por vezes, tal função exercida de maneira patriarcal e até autoritária, o que
não raro suscitava uma certa discordância silenciosa ou mesmo a contestação por parte dos subordinados,

15
Para a explicação da assunção de diferentes papéis na divisão sexual do trabalho ressaltam obviamente, entre outros factores, o
facto de que era à mulher que lhe cabia e cabe engravidar, dar à luz e amamentar os filhos. Brown (1970:1073 ss), depois de
afastar as explicações de tipo fisiológico, psicológico, ambiental ou ainda sócio-moral, aponta como razão principal do maior ou
menor grau de participação da mulher nas actividades de subsistência familiar o adequado conhecimento e, sobretudo, a
compatibilidade de tais tarefas com a criação dos filhos ou a possibilidade de substituição das mesmas por outros membros da
família.
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

designadamente os filhos maiores.


Às mulheres, além de colaborarem em grande parte dos diversos labores agrícolas, cabiam-lhes tarefas
repetitivas que, tradicionalmente, como que num «movimento para o interior», em termos de Bourdieu
(1980:357), lhes eram reservadas no espaço físico (peri)doméstico porque menos concentradas ou perigosas
e, sobretudo, mais compatíveis com os cuidados em favor dos demais familiares sobretudo bebés ou
crianças: desde limpar a casa e cozinhar, cozer o pão, lavar e remendar a roupa, passando pelas
preocupações com a alimentação das galinhas e dos coelhos, do porco e sobretudo da(s) vaca(s) – para a(s)
qual(ais), além da palha, eram diariamente cortadas consideráveis quantidades de erva – até à plantação de
batatas e de legumes, à apanha da fruta e da azeitona. Até 1965 algumas das lavradeiras de Aguiar
despendiam ainda uma parcela considerável de tempo com o cultivo e a manufactura do linho, dito mourisco
e galego, dando lugar às espadeladas16. E, em Lindoso, como actividade complementar ou até principal nas
famílias pobres em função da sua sobrevivência, eram predominantemente as mulheres quem se dirigia para
a serra a fim de fabricar o carvão17.
No processo de socialização das crianças, conduzido sob uma forte premência de colaboração e
interdependência dos membros da unidade doméstica, as famílias camponesas, sobretudo até 1970, não
prescindiam, de modo algum, do trabalho infantil, chegando mesmo a considerar mais importante o seu
treino e responsabilidade nas tarefas domésticas que a frequência escolar, aspecto aliás já salientado por
autores como Descamps (1935:478), Silva e Van Toor (1982:180) e Hurra (1990:96 ss). Sob imperativos
tais como «trabalha que para ti é» os adolescentes e inclusivamente as crianças, desde os cinco ou seis anos,
durante o tempo pré-escolar e escolar, colaboravam e colaboram nas lides domésticas, executando, entre
outras, as seguintes tarefas: buscar lenha ao monte, água à fonte ou farinha ao moinho, principalmente no
passado e, hoje como ontem, dar recados e fazer pequenas compras na mercearia, varrer a casa ou lavar a
louça, cuidar dos irmãos/irmãs mais novos, vigiar o gado nas redondezas da casa, apanhar azeitona ou
bagos, pisar uvas.
A maior parte das avós e dos avôs, cuidando normalmente dos netos pequenos, liberta(va)m a força de
trabalho da mulher-filha ou nora e/ou dos netos crescidos. Além disso, presta(va)m-se a levar a cabo ligeiros
afazeres à volta da casa: as mulheres cozinhando ou cosendo roupa, os homens limpando as árvores,
vigiando os campos e dando conselhos nas laborações agrícolas, aliás formas subtis de demonstrar a sua
parcela de poder na casa.

Se a redistribuição fixa da divisão sexual do trabalho e, em particular, conjugal tendia a reproduzir


amiúde o tradicional poder masculino, com o crescendo do fenómeno migratório e o aumento de actividades
extra-agrícolas por parte dos homens, a rigidez sexual na planificação e na execução do trabalho foi-se
pouco a pouco diluindo, facto este também constatado por Rodrigo (1986:651). Deste modo e neste contexto
se foi reestruturando a divisão de tarefas, reestruturação esta que, de acordo com os dados obtidos em 1985,
teria ocorrido em 49.8% das unidades domésticas de Lindoso e 46.1% das de Aguiar, em regra pluriactivas
e/ou com homens emigrados. Nas casas pluriactivas com homens ocupados na região, estes, por norma,
sendo co-residentes, estão presentes nos labores agrícolas de modo esporádico e complementar. A sua
ocupação principal tem lugar contudo fora da agricultura: 10.4% e 1.3% em obras públicas (estradas,
parque, barragem), 4% e 13.2% na construção civil do sector privado, 3.2% e 2% na polícia e no exército,
3.2% e 3.2% nos serviços e no comércio, além de, em Aguiar, 4% na fábrica, 4% nos caminhos de ferro e
2% no funcionalismo e no ensino.
Perante a crescente rarefacção da força de trabalho masculina na aldeia e nas respectivas famílias tem-se
assistido correlativamente desde 1965-70 a um maior índice de feminização não tanto do trabalho agrícola –

16
Uma vez cortado e triturado o linho em engenho artesanal junto do rio Neiva, passava-se à espadelada, uma tarefa grupal e
tradicionalmente feminina que consistia em bater com a espadela no espadeladouro, o qual sustinha as manadas do linho. Durante
este trabalho, ocorrido em regra durante o inverno, havia lugar a contos e à invasão de rapazes mascarados
17
Aberta uma cova no monte, lançavam-se nesta pedaços de urzeira, carqueja e carvalho e pegava-se-lhes fogo. Logo que a lenha
ficava em brasa, cobria-se com terra, ao mesmo tempo que, ao lado da cova, se abria uma ladeira picando com paus compridos o
carvão, a fim de o fazer descer e arrefecer. Recolhido em sacos de sarapilheira ou nos aventais das mulheres-carvoeiras e
transportado para o eido, cada saco era vendido a uma mulher-comerciante, vinda de Ponte da Barca, à razão de 5$00 nos anos
cinquenta, 7$50 nos anos sessenta e 15$00-20$00 nos anos setenta.
100
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

secularmente também feminino18– mas mais das já referidas actividades tradicionalmente adstritas ao
homem. Nestas circunstâncias, a mulher, constituindo-se a principal e polivalente componente dos trabalhos
ao longo do ciclo agrícola, além de desempenhar as lides estritamente caseiras, virá assumir a direcção e
sobrecarregar-se na execução da maior parte das tarefas agrícolas, reforçando assim o lugar central que
ocupava na produção agro-pecuária.
Embora formalmente os homens sejam, em regra, os portadores do denominado poder público local
(conselhos de aldeia, cargos na Junta e na Regedoria), as mulheres mantinham e mantêm um considerável
poder de decisão na gestão da casa, adquirido não só pela sua aportação patrimonial ao casal, mas também
pela sua participação nas esferas de produção e distribuição dos bens. Enquanto responsáveis principais do
orçamento geral da casa, eram – e, embora com menor frequência, ainda são – igualmente as mulheres que,
sempre que se proporcionasse, comercializa(va)m uma maior ou menor porção de legumes, fruta, ovos e
sobretudo as crias de gado e o leite, administrando elas próprias os rendimentos daí resultantes ou criando
uma bolsa paralela à da casa.
Era e, embora em menor medida, é o calendário do ciclo anual de produção agrícola que condiciona(va)
a difusão ou a concentração do trabalho, designadamente o ritmo, a intensidade e a diversidade das
actividades. Assim, na época das sementeiras (Março-Junho) e, em especial, na das colheitas (Setembro-
Outubro), a azáfama dos labores agrícolas não só absorve e sobretudo absorvia todos os braços de
familiares, amigos e vizinhos aliados fora e dentro da aldeia como, eventualmente, obriga(va) a convocar
jornaleiros e artesãos disponíveis. Em contrapartida, os períodos de menor labuta (Novembro-Fevereiro),
considerados os «tempos mortos» do ciclo agrícola, sobretudo até 1965-70, não só costumavam propiciar
mais tempo de convívio, nomeadamente por ocasião da realização da matança do porco19, como também
permitiam a algumas famílias a dedicação a actividades não-agrícolas: por vezes, a caça e/ou a pesca e, com
maior frequência, trabalhos artesanais. Sem dispensar o papel relevante dos especialistas-artesãos, era
particularmente nos serões de inverno que nalgumas casas, enquanto as mulheres bordavam e fiavam,
urdiam e teciam, os homens dedicavam-se, embora de modo rudimentar, a fazer e/ou consertar pipos,
vasilhas e determinadas peças de carros de bois, ancinhos e outras alfaias.
Ainda até ao final da década de sessenta, artesãos e outros moradores mais habilidosos empenhavam-se,
a tempo inteiro, a produzir o seu stock de cadeiras e cestos, tamancos e socos, artigos esses que
periodicamente ou em certas épocas transportavam a pé para os mercados regionais: S. Bartolomeu,
Barroselas, Barcelos, Viana do Castelo, Ponte de Lima e Ponte da Barca.
Se até 1965-70, o volume, o ritmo e a intensidade das actividades agro-pastoris, pecuárias e artesanais
diferiam conforme constituíssem ou não a base, senão exclusiva, pelo menos principal, do rendimento
familiar, a partir de então com a superveniência duma crescente pluriactividade familiar, elas tomam-se cada
vez mais descontínuas e condicionadas pelas díspares actividades extra-agrícolas. Atendendo, porém, aos
condicionamentos ecológicos e climatéricos e ao facto de 78.2% das famílias de Lindoso e 82.2% das de

18
Elucidativo a este respeito é o comentário de A. R. Costa relativamente aos finais do século XVIII: « ...as mulheres cavam, aram
e fazem todo o trabalho da lavoura como os homens» (1789:xix in Brettel 1991:112). Mais recentemente, em relação à sobrecarga
de trabalho que advém para a mulher perante as migrações masculinas, cf. também Rodrigo 1985:643-652. Sobre a feminização
nas modernizadas agriculturas europeias, cf. Grassou e Errington 1993:151, 177 ss.
A introdução de electrodomésticos, a diversificação e a especialização de artigos produzidos no exterior vieram libertar as
mulheres de uma parte considerável das suas tarefas tradicionais: lavar a roupa no lavadouro, cozer o pão, tarefa esta que, por
exemplo, em Aguiar, é apenas praticada em 7.9% das casas.
19
Praticada ainda nos anos oitenta por cerca de 1/3 das casas de Aguiar e 1/2 das de Lindoso, a matança do porco, nomeadamente
em Aguiar, obedece ao seguinte processo:
Retirado da corte, o porco é agarrado e deitado sobre um carro de bois e atado aos fueiros e eixos do mesmo. Seguidamente, o
«matador», geralmente um dos especialistas da aldeia, crava lenta mas certeiramente no porco a faca que não deve atingir de
imediato o coração para que possa escorrer mais sangue para uma bacia. Uma vez morto, o porco é chamuscado com palha,
raspado com facas e pedras e, por fim, lavado. Transportado numa padiola para o interior da casa, é aberto ao meio, sendo-lhe
retirado sucessivamente a ventrucha, as tripas, os rins e o fígado, os bofes e o coração. Finalmente, o porco é pendurado pelas
patas da frente, durante um dia, após o qual corta-se-lhe a cabeça, retiram-se os presuntos e desfaz-se a restante carne em pedaços.
A carne, temperada com alho, sal e vinho, é guardada na salgadeira. As tripas, logo que devidamente lavadas, enchem-se de
pedaços de carne para fazer chouriços que, juntamente com os presuntos, ficam a defumar à lareira. Terminado o trabalho, tem
lugar o almoço ou jantar de sarrabulho.
Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

Aguiar viverem, mesmo que parcialmente, da agro-pastorícia e/ou pecuária, poder-se-lhes-á aplicar, em
maior ou menor medida, a ordem do seguinte mapa do ciclo agrícola:

QUADRO 4: Ciclo agrícola e tradicional divisão de tarefas

Fonte: Observação do trabalho de campo 1984-85; as siglas dos meses começam por O = Outubro e terminam em S = Setembro; a
= predominantemente o homem, b = predominantemente a mulher, c = ambos.

Embora, com a introdução de adubos a substituir o estrume, roçar mato seja cada vez menos frequente,
36.8% das casas em Aguiar e 64.5% das de Lindoso, iam em 1985, respectivamente, ao seu monte próprio
ou comum buscar o mato com que cobriam as cortes do gado produtor de excrementos. Lavradores que
outrora em Lindoso desciam em Setembro, Outubro e Novembro com cerca de quarenta carros de mato,
transportavam em 1985 apenas entre dez a doze ou então quatro a seis «carrada» com o tractor.

102
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

A apanha da batata, Aguiar (foto 9)


Da Relativa Autarcia à Coexistência Económica

A malhada do centeio, Lindoso (foto 10)

É também sobretudo nesta altura que se recolhe a lenha como combustível para o inverso, a qual é
igualmente transportada com o carro de bois e, cada vez mais, com o tractor. No entanto,particularmente em
Lindoso e aldeias contíguas de de Parada e Cidadelhe, vêem-se ainda mulheres, através de fragas e caminhos
por vezes escarpados, carregando à cabeça lenha, por exemplo, achas de canhoto de pinheiro, além de feno,
faúlha e até mato.
De Janeiro a Março, se bem que hoje mais raramente que dantes, os moradores de Lindoso ateam fogo a
tojos e urzes, permitindo não só que uns e outras penetrem no solo, a fim de vivificá-lo para o pasto, como
também que os riscos de propagação dos incêndios de verão diminuam.
Uma vez transportado o estrume para as terras, começa-se a limpar e a cultivar a terra: arrancam-se as
ervas daninhas e, por vezes, as silvas, cava-se ou lavra-se o solo para a eventual plantação ou enxertia de
novas videiras, além de se podar e atar as já existentes.
Constituindo a primavera a estação da germinação vegetativa e do desabrochar animal e humano para o
exterior, é sobretudo a partir de Março que os grupos domésticos se aprestam a semear, além da erva para o
gado, os alhos e as cebolas, as favas e as ervilhas, bem como a plantar as batatas temporãs e os legumes tais
como cenouras, pimentos e couves. Será, porém, entre Abril e Maio que os esforços concentrar-se-ão nas
lavradas e na semeadura do milho temporão – a lanço em Lindoso ou com o semeador em Aguiar –,
seguindo-se respectivamente a picotagem e/ou a gradagem da terra. Passadas três a quatro semanas, sacha-se
o milho: mão em Lindoso e, geralmente com sachador, em Aguiar. Uma vez o milho crescido e quando
basto, tem lugar a monda e, posteriormente, quando nãoguardado para silagem, o corte do designado pondão
na gíria de Aguiar.
Para facilitar a rega ordenada e profíqua das terras, fazem-se regos e guiadoiras delimitadas por bordos.
De acordo com os dados do Recenseamento Agrícola ao Continente de 1979, 84% das explorações
recenseadas em Aguiar e 99.5% das do Lindoso regam as suas terras, das quais respectivamente 79.7% e
99.5% por gravidade, 10% e 0% por motor, situando-se esta última modalidade das médias concelhias: 51.l
% em Barcelos, 6.8% em Ponte da Barca (RAC 1979, Mourão e Brito 1983:46).
A fim de evitar que o míldio e o oídio queimem as vinhas, estas vão sendo sulfatadas enxofradas, a
intervalos regulares de quinze dias a um mês, quase até às víndimas, se bem que algumas casas em Lindoso
não sulfatem ou o façam mais espaçadamente.

Em Junho-Julho, além da apanha da batata temporã e das cebolas em ambas as aldeias, têm lugar em
cerca de 60% das casas de Lindoso as segadas e as malhadas de centeio e que, em Aguiar, ocupam um
residual. Porém, a maior concentração de trabalho ocorrerá todavia em Setembro-Outubro na época das
colheitas dos demais cereais (milho, feijão) e da vindima.

Hoje, dada a presença exígua de homens e, em especial, de jornaleiros, nem as ceifas de centeio nem as
esfolhadas e as malhadas do milho têm o carácter lúdico e lúbrico20, comunitário e de entreajuda mais
alargada como dantes, quer em Lindoso, quer sobretudo em Aguiar. A debulha mecânica, que em Aguiar
começou a ser introduzida em 1964 por seis casas e hoje é praticamente utilizada por quase todas, só desde
1987 se vem generalizando em Lindoso, se bem que ainda cerca de 20% de casas ainda malhem à moda
tradicional com rebolas na eira ou no interior do próprio canastro. Porém, antes do último surto emigratório,
dada a abundância de mão-de-obra, as malhadas primavam por ser freneticamente executadas em duas filas
por quatro a seis homens de cada lado. Estes com os malhos batiam cadenciada e febrilmente nos
calcadoiros compostos de molhos do respectivo cereal (milho, centeio), a cada passo virados e substituídos
pelas mulheres que, por fim, os apuravam com rebolas. Feita a malhada, junta(va)-se o centeio ou o milho

20
Cerca do meio-dia tinha lugar a refeição, cujo grau de abundância era medida da reputada grandeza da família anfitriã. Nos
intervalos e, particularmente no fim do trabalho, a eira animava-se com o baile ao som da concertina e da cantoria. Do mesmo
modo, após a colheita do milho de sequeiro, algumas casas de lavradores organizavam as típicas esfolhadas onde, nos intervalos
ou a par do desfolhar das maçarocas, ressoavam as cantigas de ranchos em coro, entremeadas com os «assaltos» de rapazes
mascarados que, agarrando freneticamente as raparigas, se lançavam sobre a palha e se entregavam a lúdicas brincadeiras e, não
raro, a lúbricas camisadas!
104
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

disperso, criva(va)-se, ensaca(va)-se e armazena(va)-se o grão e arrecada(va)-se em palheiras a palha que,


além de servir para encher colchões, destina(va)-se, juntamente com a erva, a alimento do gado durante o
inverno.
Ainda na trabalhosa época das colheitas têm lugar as vindimas, o seu transporte em dornas, seguindo-se
a pisada e, posteriormente, a encuba do vinho no lagar ou na adega, geralmente situada na parte inferior da
casa21. Uma vez fabricado o vinho, o brolho, feito dos resíduos da uva espremidos, é transportado para o
alambique onde é destilada a aguardente.
Liberta a terra com a ceifa do milho e as vindimas, graças ao elevado índice de pluviosidade e suficiente
irrigação, toma-se possível utilizá-la em seguida, semeando, além do centeio galego (sobretudo em
Lindoso), diversas espécies de erva (molar, castelhana ou ligeira) que irão germinar no inverno dando pasto
para os animais.

*
**

Embora já um tanto afectadas por interferências municipais e estatais e outros elementos exógenos da
economia de mercado, até cerca de 1965-70 ambas as aldeiascaracterizavam-se por um modo de vida
relativamente autárcico e auto-suficiente, visível em particular na produção policultural e no autoconsumo
doméstico. Por outro lado, embora a entreajuda comunitária constituisse, sobretudo até 1970, uma
componente importante das economias aldeãs, a divisão social do trabalho incidia sobretudo a nível familiar
tendo por base, ainda que de modo fluido, os critérios do sexo e da idade. Com efeito, até à década de
sessenta em Aguiar e, até 1975-80, em Lindoso, apesar de algumas produções e tarefas serem transferidas
para actores e entidades externas e a vertente comunitária se esbater gradualmente (5:1, 5:3), manteve-se
todavia, ainda que reestruturada, a divisão do trabalho no seio de cada grupo doméstico. Não obstante o
crescendo de conflitos interfamiliares, como veremos na subsequente publicação, a ajuda mútua intra-aldeã,
já simétrica já assimétrica, por um lado e, por outro, a reprodução do ciclo agrícola e a correlativa divisão do
trabalho e solidariedade no seio da família constituíam, sobretudo até cerca de 1965-70, os factores mais
importantes na manutenção, na resistência, na polivalência e na adaptação dos grupos domésticos de Aguiar
e sobretudo de Lindoso.

21
O fabrico do vinho, que, em regra, tem lugar na adega ou no lagar de cada casa, conhece várias operações desde o esmagar
manual da uva (a pisada) ou mecânico (com a prensa), seguindo-se a fermentação durante uns dias, até à incuba, ou seja, à
transfusão do vinho das domas para as respectivas pipas ou vasilhas. Refira-se, de passagem, que, enquanto em Aguiar a adega
está situada na parte inferior da casa, em Lindoso, devido ao sistema de partilhas, nem sempre se encontra junto da casa de
moradia, mas situado noutra dependência.
Comunitarismo: Identidade e Diferenciação

CAPÍTULO 5

COMUNITARISMO: IDENTIDADE E DIFERENCIAÇÃO

Entre os pioneiros dos estudos sobre o comunitarismo em Portugal contam-se Peixoto (1974), Sousa
(1909), Descamps (1935), Oliveira (1955) e sobretudo Dias (1981, 1984, 1964). Segundo este último autor,
a comunidade definir-se-ia como uma colectividade local autosuficiente, relativamente harmónica e
integrada por pessoas, que partilham um território bem definido, estão ligadas por laços de intimidade e
convívio pessoal e participam de uma homonegeidade cultural (Dias 1961:41 ss, 1964:81, 85). Nos termos
do próprio Dias, dever-se-á entender por comunitarismo «um tipo de organização social em que os direitos
das famílias individuais são regulados em função da propriedade colectiva tradicional que serve de base às
suas economias ... A vida social é considerada como um todo no qual o bem comum é colocado acima dos
interesses individuais» (1964:79-80).

No caso vertente importa salientar que, nos seus trabalhos sobre o comunitarismo em aldeias-tipo
situadas no Alto Minho e em Trás-os-Montes, os autores mencionados reflectem, de maneira implícita ou
explícita, uma visão predominantemente funcional, de tipo naturalista e culturalista. Nesta corrente
sobressai, em particular, Dias que tende a identificar o modo de vida comunitário como idílico e quase
paradisíaco, modo de vida esse que não só radicaria as suas origens em sociedades primitivas relativamente
igualitárias – primeiro nómadas e, depois, sedentarizadas –, como, na sua evolução, teria resistido aos
padrões de apropriação individual dos ocupantes romanos e até reforçado com as tradições dos invasores
germânicos, chegando, não obstante ligeiros ajustamentos, até à recente década de 1950-601.

1
Cf. Dias (1964:90 ss, 1981:80 ss, 1984:19 ss). Embora numa perspectiva algo diferente e reconhecendo a presença de ricos e
pobres, também Guerreiro (1982:274, 66-67) tende a classificar Pitões das Júnias como «sociedade de iguais» caracterizada por
"ausência de classes", ainda que entendidas estas de modo restritivo como grupos radicalmente antagónicos e à imagem urbano-
industrial.
Sem retirar o devido mérito ao trabalho etnográfico pioneiro de Jorge Dias, importa, por outro lado, não omitir as suas premissas
funcionalistas, aliás enquadráveis no tempo e na ideologia então dominantes. De facto, Dias inspira-se, tal como o manifesta na
parte final da sua obra sobre Rio de Onor (1984:21, 315 ss), em autores como Benedict (1934) e apela para certos conceitos
funcionalistas como «personalidade-base» introduzidos e salientados por Kardiner (1961:126 ss) e Linton (1952:83 ss), entre
outros. Embora com algumas diferenças de enfoque em relação às monografias de Dias, também os estudos levados a cabo por
Pitt-Rivers (1961:14 ss), Freeman (1970:27-63) e Erasmus (1968:65-74) – cujo síndroma de «encolhido»aplicado ao camponês
viria a ser pertinentemente criticado por Huizer (1970:303 ss) – apresentam concepções psico-moralizantes e até alguns traços
(neo)funcionalistas. Mais notáveis e surpreendentes são as repercussões e as sobrevivências algo romantizadas acerca da
entreajuda comunitária e do mito igualitário, cuja versão vulgarizada reduz comunitarismo a propriedade explorada em comum:
cf., respectivamente, Marcondes (1948:376 ss) acerca do Mutirão no Brasil e A. Lopes (1984:133) em relação a Rio de Onor e
Vilarinho da Furna assumidas como protótipos de comunitarismo.
Para uma revisão analítica da posição de sociólogos clássicos sobre a comunidade e suas diversas perspectivas teórico-
metodológicas (sociológica, ecológica, organizacional), cf. Bell e Newby (1982:21 ss).
106
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Outros autores como Bennema (1976:21 ss), afastando-se da tese funcionalista, sem deixar de referir os
aspectos sócio-económicos do comunitarismo, colocam contudo o acento tónico da sua análise sobre as
formas de participação e decisão comunitárias através do conselho de vizinhos. Por sua vez, Tolosana
(1973:833) imputa a um determinado síndroma cultural-moral de tensão interdoméstica e, em particular, ao
mecanismo do «mal de inveja» entre vizinhos a virtualidade de transferir determinadas oposições e de
favorecer uma certa coesão na comunidade, posição de certo modo partilhada por Cabral (1989:175 ss)
quando atribui a duas comunidades do Alto Minho «o florescimento da ideologia do igualitarismo»
(1989:186) ou afirma que «a sociedade camponesa está impregnada pela inveja porque se concebe como
igualitária» (1989:211). Ou ainda Bailey (1971: 17 ss) que, no seu modelo político transaccionalista,
considera contudo ser justamente em comunidades não estratificadas nem contaminadas pelo processo de
modernização que imperaria o reino da igualdade. Seria, pois, devido às recíprocas estratégias, interacções
ou mesmo jogos de poder na micropolítica local que mutuamente se anulariam as diferenciações sociais.

As projecções de igualitarismo nas colectividades primitivas, medievais e sobretudo contemporâneas


situadas em espaços regionais da área mediterrânica têm sido desfeitas, ainda que, por vezes, com
reticências ou ligeiras concessões à tese igualitarista, por diversos cientistas sociais designadamente
antropólogos e historiadores2. Segundo alguns destes autores, não se devem considerar os elementos
comunitários das colectividades camponesas como vestígios de um longínquo passado primitivo. A vertente
comunitária, entrelaçando-se com elementos familiares, constituiu, antes de mais, uma progressiva conquista
do campesinato face às classes feudais, aristocráticas e, posteriormente, burguesas. Deste modo, a posse do
pequeno pedaço de terra não resulta de um «desvio» do pretenso «comunismo primitivo», representando
antes, embora cada vez menos, a sua zona delimitada de produção e liberdade.
Não obstante rebaterem o mito igualitário e reconhecerem o fenómeno da desigualdade social inclusive
nas aldeias comunitárias por si estudadas, admitem todavia alguns dos referidos autores existir nessas
comunidades processos de segmentação, complementaridade e rotatividade organizacionais com as
respectivas instituições ou momentos igualitários (trabalhos comunais, velórios, conselhos de aldeia) em que
«a realidade da social é socialmente destruída» (Davis 1977: 111) ou que, ainda que raramente, «em certos
momentos se concretizam ideais de igualdade social», verificando-se uma «suspensão temporária da
desigualdade» (O’Neill, 1984:31, 200).
A crítica mais radical ao cultural-funcionalismo provém contudo do paradigma marxista que, menos na
sua versão ortodoxa, transplanta para a aldeia o princípio da contradição de interesses entre classes e/ou
grupos sociais aí presentes. Os traços comunitários, a subsistir, constituiriam vestígios de comunidades
primitivas ou até derivações da «espontânea», «natural» comunidade tribal, primitiva (Marx 1973:181 ss),
aspecto em que a tradicional visão marxista paradoxalmente converge com uma interpretação geo-cultural
de inspiração funcionalista3. Nesta óptica, as colectividades comunitárias constituiriam uma fase de

2
Entre historiadores, cf., por exemplo, Silbert (1960, 1978 I:340 ss), Godinho (1980:71 ss) e Feijó (1992:205 ss). Entre
antropólogos e sociólogos, cf. Davis (1977:110-127), Iturra (1983:104 ss), Geraldes (1987:71 ss), Pinto (1981:199 ss, 1985:348
ss), Polanah (1985:61 ss, 1990:597 ss), Portela (1986:38 ss), M. Ribeiro (1991:103 ss) e sobretudo O'Neill (1984:91 ss, 145 ss),
cuja tese representou um dos primeiros consistentes estudos que rebatem a mitologia igualitária acerca das colectividades aldeãs
no norte de Portugal. Outra tese na revisitação do comunitarismo em Rio de Onor é a de Brito (1989:93 ss), para quem o conselho,
salvo no período conjuntural do pós 25 de Abril de 1974, conhece uma progressiva redução de casas integrantes no mesmo e os
sistemas de rotatividade na organização social (as rodas) decrescem consideravelmente. O alcance das desigualdades no quadro
da entreajuda comunitária é também assinalado, para a Nova Zelândia e o Canadá, por Hedley (1985:28 ss).
3
Teoricameme sobre esta problemática e, tendo por base outras situações empíricas, nomeadamente na história germânica, cf.
Weber (1961:3 ss), cuja posição se contrapõe à de Marx (1973:181 ss). Alguns actuais marxistas críticos como Bader e Benschop
(1988:55, 292) assumem todavia como mais plausível a tese de Weber. Em Portugal, esta retroprojecção comunitarista, presente
em diversos autores como A. Costa (1868) que designa como «comunismo romanesco», será contudo rebatida por Vieira (1986-
87 I:386 ss), o qual, além de constatar a existência do assalariamento de jornaleiros e a colheita de tipo familiar, explica a
realização comunitária de tarefas por razões geológicas. Também Descamps, referindo-se ao comunitarismo de Lindoso, mesmo
em 1935, dizia: «Como toda a gente se entreajuda, tal dá a ilusão dum regime mais ou menos comunista. Nada disso: o que é
colhido sobre a leira de X, pertence a X» (Descamps 1935:18). Mais detalhada e profundamente, cf., por exemplo, Silbert (1960,
1978 I:365-369) em especial sobre Beira Baixa e, sobre Barcelos, cf. Capela 1989:32.
A visão do geógrafo Ribeiro (1940:416 ss) e do antropólogo Dias (1984:18 ss) vem, neste ponto, a coincidir com a clássica
Comunitarismo: Identidade e Diferenciação

transição das comunidades primitivas para outras em que predomina a propriedade individual e
transaccionável.

Perguntas e respostas sobra a (des)igualdade comunitária respectivamente colocadas e dadas sob forma
delemática, sem distinguir como, onde, em que aspecto e até quando surgem os momentos de identidade e
pertença – que não necessariamente de igualdade – e onde persistem e se reproduzem as formas de
desigualdade social incluindo as envoltas sob formas comunitárias, encaminhar-nos-iam para um beco sem
saída. Ambas as posições acima mencionadas, extremando, de modo redutor, ora a convergência e a
identidade «igualitárias», ora a desigualdade e a contradição sociais, embora recortem aspectos marcantes da
vida comunitária, não colhem adequadamente a realidade observada em Lindoso, toda ela perpassada de
ordem e desordem, de equilíbrio e conflito, de identidade e diferenciação. Com efeito, também no seio das
instituições e práticas comunitárias coexistem e se entrecruzam, não tanto numa base incidental ou de
suspensão temporal mas numa articulação permanente, o território e os demais traços de relativa identidade
geo-social aldeã – portanto afectos, em maior ou menor medida, a todos e a cada um dos moradores – e as
componentes de diferenciação social específicas dos protagonistas pertencentes a determinadas categorias
sociais. O sentido de pertença e afectividade e os respectivos processos de socialização familiar e aldeã não
poderão, por sua vez, ser desligadas das trajectórias de identificação e das representações de apropriação,
por parte dos moradores, do território comum4 com toda a gama de interacções e interdependências daí
decorrentes. Estes factos validam e dão corpo aos sentimentos de identidade entre os seus moradores, não
obstante as assimetrias entre os diferentes agregados domésticos.

Quer em Aguiar, quer sobretudo em Lindoso, a comunidade percebe-se como identidade social não só
enquanto território geograficamente delimitado, mas também enquanto conjunto social que, ainda que
perpassado de contradições, se caracteriza por um modo de vida baseado em idêntico processo e ciclo de
trabalho, por um regular intercâmbio de pessoas e produtos e por vivências, experiências e referências
culturais, ora diversas, ora comuns.
Não obstante a diferenciação entre categorias sociais, aliás manifesta na desigual distribuição de
recursos (7:1), não se poderá daí inferir a existência do conflito de classes segundo o modelo extraído da
análise das sociedades industriais. A versão marxista ortodoxa, sublinhando ou, por vezes, visionando a
dominância sistemática do princípio da contradição e da oposição de interesses de classe, subalterniza e até
menospreza práticas de resistência e elementos de identidade e convergência comunitários que unem
diferentes agregados domésticos e até grupos sociais, sobretudo quando inseridos num território comum
relativamente isolado mas ameaçados na sua existência ou mundividência. Tal sucedia sobremaneira até
1970 e, embora com menor intensidade, ainda hoje sucede, sempre que ocorrem não só ataques físicos ou
afrontas político-simbólicas à colectividade (definição de limites territoriais, imposição fiscal munícipo-
estatal, desrespeito por valores ético-religiosos), como inclusivamente tragédias familiares (incêndio, morte
de pessoa ou animal) que ponham em causa a sobrevivência de um ou vários grupos domésticos. Em tais
situações, embora cada vez em menor grau, os moradores manifestam, em linguagem durkheimiana, laços
de «solidariedade mecânica». Não só urdem mecanismos de defesa e protecção mútuas contra investidas de
agentes externos (guardas, fiscais e demais funcionários)5, como exercem pressões ou ainda, no caso de

posição marxista no sentido de assumir as formas comunitárias como vestígios ou sobrevivências históricas de sociedades
primitivas de tipo comunitário (cf. Castro 1980:64 ss). De resto, enquanto Ribeiro sublinha a importância de factores sócio-
geográficos (tipo de casa, habitat concentrado) e Dias, rejeitando a ideia de «comunismo primitivo», enquadra o comunitarismo
no meio geográfico-ambiental «natural», para os marxistas as configurações dadas como «naturais» são também elas próprias
produtos históricos, aos quais subjazem factores sobretudo de ordem económica. Para uma dissecação analítica do comunitarismo
em Dias, cf. Silva e Van Toor 1982:154 ss, Polanah 1985:61 ss e sobretudo o já referido estudo crítico de Ruivo e Marques (1982:
48 ss).
4
O território aldeão e, particularmente, a casa, enquanto base da afectividade aldeã e familiar, é salientada não só por autores
funcionalistas como Dias (1964:80 ss) como também por Weber (1978:41 ss). Sjoberg (1965:115) corrige e acrescenta à definição
parsoniana de «comunidade» a participação dos actores nas actividades diárias mas vinculadas a determinada área territorial. A
importância co-determinante da localidade, enquanto contexto espacial da interacção social, é também salientada por Giddens
(1984: 117 ss).
5
A chegada ou a intromissão de estranhos costuma ser objecto de pesquisa formal ou informal sobre as suas intenções, sendo
108
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

alguma família ser desfalcada ou atingida por das referidas «desgraças», despegam ondas de solidariedade
através de, por exemplo, trabalho voluntário, colectas de dinheiro pelas casas, compra de carne do animal
acidentado6. Com efeito, ao longo da sua história comunidades como Lindoso e paralelamente às
diferenciadas identidades ,mau.,-,-u foram construindo e sedimentando gradualmente a sua identidade
colectiva, a qual, como refere com justeza Bader : 108), não é naturalmente dado ou imutável mas
construído: tal como se enraiza nas experiências e nos costumes comunitários, também se desintegra por
factores endógenos e exógenos.

Se a presença de elementos de identidade e solidariedade comunitárias, além de divisa simbólica de


interpretações díspares para os contendores, comporta o amortecer ou o atenuar de clivagens internas, tal
não implica, de modo algum, a destruição nem sequer a suspensão das desigualdades sociais, tal como os
dados dos quadros 10, 11, 12 e 13 e dos gráficos 7 e 8 nos revelam. Por isso, as concessões à tese
igualitarista resultam imbuídas de certo eclecticismo. Além das diferenças na posse de recursos materiais,
fenómenos de desigualdade estão presentes nas relações sociais mesmo no seio daquelas instituições ou
momentos comunitários. Assim, não obstante a identidade territorial e afectiva, tanto nas festas e nos
encontros dos grupos de pares como nos velórios e nos funerais, a igualdade é mais aparente que real, na
medida em que tais acontecimentos se encontram perpassados de elementos reais ou simbólicos de
diferenciação, prestígio ou hierarquização social, aliás reconvertíveis em vantagens sócio-económicas, como
teoricamente defendem Bourdieu (1980:202 ss) e, até certo ponto, Bader e Benschop (1988:167 ss). Tal se
toma visível em certos traços distintivos tais como, por exemplo, o papel de destaque do pároco com o
préstito de juízes e mordomos na festa aldeã (11:5), o tipo de comida e bebida distribuídas no mortório,
diferente tipo de caixão e sepultura (com ou sem placa de mármore e/ou capela) e o maior ou o menor
acompanhamento de pessoas no velório e no funeral e, em especial, o número de padres celebrantes na
missa de corpo presente, aspectos estes aliás reconhecidos e referidos por O'Neill (1984:346). Em Aguiar,
por exemplo, a lavradora Joaquina Lourenço recomenda no seu testamento que «seja um funeral com cinco
padres, pelo menos, uma urna de boa qualidade e a Igreja bem adornada» (TA Li 2A:4, 16-6-1961). Sobre
o tratamento socialmente diferenciado no cerimonial do funeral referia-se uma jornaleira: «Quanto mais rico
dá-se-lhe mais um grito, se é pobre arranca-se-lhe o fole» (A100).

Se, de facto, no universo aldeão se verifica aparentemente uma diminuta expressão pública dos
confrontos entre as diversas famílias e sobretudo entre os grupos sociais, tal se deve não só aos imperativos
de reprodução das relações sociais (pre)existentes e ao carácter gradativo e fluido das diferenças económicas
no interior das respectivas freguesias (7:1), como também à complexa combinação de diferentes posições
sociais dos membros de cada grupo doméstico e, sobretudo no passado, às verticais e corporativas relações
clientelares e hierocráticas (Silva e Van Toor 1988:66-75).
Na análise do fenómeno conhecido por comunitarismo, além dos factores sócio-económico e político,
importa introduzir as variáveis espaço e contexto histórico. Se em vizinhas aldeias de montanha do Alto
Minho, em posição de maior isolamento e dificuldade de acesso, têm vigorado mais afincadamente velhos
costumes comunitários, Lindoso – que até há cerca de vinte anos atrás oferecia um panorama comunitário
semelhante – tem sofrido transformações consideráveis devido não só a condicionantes exógenas tal como o
impacto da construção de uma barragem e uma maior circulação de pessoas e bens, como também graças a
algumas modificações internas, visíveis nomeadamente

(i) no sistema de decisão comunitário e, em particular, nos esquemas de

fornecidas informações apenas quando convictos de que o estranho «não vem por mal». Por exemplo, perante a necessidade da
Repartição de Finanças em identificar os proprietários dos espigueiros como «zona de protecção de interesse público», a
população e as respectivas autoridades locais opuseram-se a tal, exigindo, por escrito, garantias de não tributação (CMPB, 10-8-
1983).
6
Por exemplo, por morte de uma vaca (A15) ou incêndio da casa (L72). Não obstante o facto de, inclusivamente nestes casos
trágicos, alguns moradores, sobretudo quando mais desafogados, se sentirem na obrigação de contribuir para não ficar «mal
vistos» na colectividade, há que realçar que efectivamente se assistia e se assiste ainda a acções colectivas de solidariedade.
Comunitarismo: Identidade e Diferenciação

vigilância e de cultivo dos campos em que este já não é colectivamente sincronizado como dantes;
(ii) no sistema de fruição dos montes e das terras comunais e, em especial,
na implementação da vezeira – em que os pastores do gado bovino, tal como foi referido em 4:2,
já não ficam no monte guardando o gado mas descem ao eido;
(iii) nas relações sociais de entreajuda, hoje mais raras e restritas a um
círculo reduzido de parentes e a um ou outro vizinho mais amigo.

5.1. Sistema de decisão: o conselho

Tal como sustentam Santos (1982:17 ss) e Ruivo e Marques (1982:65 ss), as comunidades, na sua
estrutura e dinâmica, apresentam modos específicos de organização e exercício de dominação jurídico-
política (informatização, deslegalização e comunitarização de justiça) que coexistem e se articulam com o
edifício jurídico global sob diversas formas e mediações.
No campo da participação nas decisões respeitantes à colectividade, há a referir, sobretudo em relação
ao Lindoso, os conselhos de aldeia (ajuntamentos) que, enquanto assembleias locais ordinaria ou
extraordinariamente convocadas pelo regedor e/ou presidente da Junta ao toque de uma corneta, exprimiam
e exprimem um momento importante da democracia directa, ainda que restritiva nalguns aspectos e cada vez
menos participada e vigorosa.
Era, com efeito, no conselho onde se decidia o momento e o modo de iniciar as sementeiras e as
colheitas, fazer regos e tapar a veiga, guardar as uveiras, limpar os caminhos ou apelar à solidariedade
comunal na eventualidade de desastre ou contratempo. No entanto, tão pouco neste aspecto o conselho em
Lindoso de modo algum suspendia nem suspende, ainda que temporariamente, a desigualdade inscrita nas
relações entre sexos e entre grupos sociais. De facto, no conselho tinham assento os cabeças de casal, os
quais eram, em regra, homens, intervindo as mulheres só na falta ou na ausência daqueles, facto este que
aponta para o predomínio patricêntrico na representação por família. Por outro lado, pelo menos nas fases
menos recuadas do cornunitarismo, no conselho só contavam os votos dos detentores de recursos agro-
pastoris, estando assim excluídos os jornaleiros(as) e os criados(as), o que revela o carácter acentuadamente
patrimonialista do conselho.
Se, por um lado, nos processos de decisão colectiva, quase todas as casas se envolviam, eram contudo,
por norma, os membros da Junta os que, enquanto representantes e gestores da comunidade, dispunham de
certo poder em assuntos de particular relevância: sistema das culturas e das vezeiras, fruição dos montes
baldios, reparações infra-estruturais, entre outros. Tanto os assuntos e a maneira como eram tratados e
decididos como a composição das sucessivas Juntas reflectem a prevalência dos interesses dos mais
influentes no conselho, no qual mais que a justeza do ponto de vista defendido pontificava o estatuto social
local dos membros intervenientes, nomeadamente dos lavradores-proprietários. Com efeito, era a vontade ou
o «voto consultivo de proprietários dos mais encabeçados» (AJL 6-9-1900) que superiormente determinava
o dia da vindima para os respectivos aldeamentos da freguesia. São ainda de sublinhar os requerimentos e as
queixas dos proprietários e lavradores que, perante irregularidades ou transgressões (por exemplo, o desleixo
do zelador ao deixar o gado caprino e lanígero invadir as propriedades), têm, em diversas actas da Junta de
freguesia, voz pública7.
Mais recentemente e, em especial, desde 1976 a evolução da instituição comunitária do ajuntamento
tem vindo a desvirtuar-se ainda mais no sentido não só de tomar-se hoje um acontecimento praticamente
inexistente em Aguiar e cada vez mais raro em Lindoso, como sobretudo no de abdicar dos seus poderes em
favor do órgão executivo: a Junta. É neste contexto de enfraquecimento da dimensão comunitária que,
apesar da criação legal da Assembleia de Freguesia como o órgão deliberativo máximo a nível local desde

7
Sobre estes aspectos, cf. respectivamente AJL 6-9-1900, 8-9-1906, 6-9-1908, 7-9-1913, aliás em consonância com a postura da
Câmara de 11-8-1888; AJL 3-9-1911, 5-10-1924. O carácter patriarcal de certas práticas comunitárias, mesmo quando nem
sempre reconhecidas como tal, por exemplo, por Freeman (1970:40) e Christian (1972:19 ss), está também presente nos conselhos
de aldeias de Castela, os quais, segundo os referidos autores, seriam contudo perpassados por uma relativa unidade e igualdade
políticas!
110
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

1976, se assiste paradoxalmente à situação de o tratamento de importantes assuntos locais (por exemplo,
expropriação de terrenos particulares e comunais em Lindoso) ser, de modo passivo ou omisso, remetido
para as mãos da Junta de freguesia e outros exteriores a esta8.
Segundo as velhas normas e directrizes comunitárias consignadas nas posturas de Lindoso de 1914, os
moradores eram obrigados a iniciar as tarefas agrícolas no mesmo período de mas na ordem proporcionada
pela topografia das suas respectivas !eiras. Ainda até cerca de 1974, o calendário dos trabalhos, em
particular o seu início, era internamente regulado pela entidade coordenadora (o Conselho ou a Assembleia)
e por esta delegado à Junta e/ou Regedoria. A fim de imprimir maior rapidez, obter um óptimo de eficiência
nas tarefas agrícolas e sobretudo evitar que as pessoas e o gado, irrompendo destempadamente em terrenos
estreitos e acidentados, danificassem as sementeiras ou as colheitas dos vizinhos, cada grupo doméstico
entrava na veiga na sua vez, sendo cominada aos infractores uma multa.

Se algumas normas e assuntos a decidir em conselho salvaguardavam, de facto, o interesse geral da


colectividade, outras(os) relativas a infra-estruturas, fruição de baldios e águas, vigilância de gados e vinhas
havia ou ainda há que, sendo não raro impostas pelos representantes das casas mais folgadas, aproveitam,
em diferente grau, os diversos tipos de beneficiários. Além disso, a aplicação duma multa - hoje
praticamente banida -, na sequência de uma «transgressão», não possuía o mesmo significado para famílias
com diferentes recursos nomeadamente monetários.
Para a montagem de um velho esquema de vigilância diário das poucas latadas ou sebeiros de vinha, dos
cereais nos canastros e ou da farinha nos moinhos e, eventualmente, das árvores de frutos destacavam-se
rotativamente para locais estratégicos «cabos de polícia» e/ou membros das casas dos possuidores de vinha,
ainda que superiormente controlados por órgãos de poder local: zelador, regedor, Junta. Em Aguiar, embora
o esquema de vigilância das latadas e árvores de fruta fosse mais de base familiar, é de referir o seguinte
antídoto, por parte de rapazes, geralmente oriundos das farm1ias mais pobres: a organização de "procissões
de defuntos", em que eles próprios, envoltos em panos brancos, com campainhas, luzes mortiças e vozes
assustadoras, afugentavam os guardadores de vinha e fruta.

Ora, o carácter sancionatório e proibitivo das posturas assim como os sistemas de vigilância - aliás
sintomáticos da desconfiança e do receio dos ricos de serem «roubados» pelos pobres9 - põem a nu o engodo
ideológico da harmonia de interesses entre os moradores. Só a partir da altura em que as situações de miséria
e até de fome de outrora desapareceram e que (quase) todas as casas puderam implementar benfeitorias de
vinha, deixaram de ser necessários eventuais «assaltos» e, consequentemente, perdeu sentido esta espécie de
policiamento.
Tanto os moinhos como os próprios espigueiros de Lindoso - originários dos séculos XVIII-XIX e que,
em certa literatura (pseudo)folclorizante, são apresentados como comunitários - são privados e ajustam-se,
na sua estrutura e volume, às respectivas posses fundiárias de cada família. A partir dos figurinos de
espigueiro, localmente também denominado canastro, poder-se-á inclusive inferir o tipo de casa, se bem que
hoje, dadas as sucessivas divisões por partilha dos próprios espigueiros, tal distinção setome cada vez menos
perceptível. Mais relevante é todavia o facto de, constituindo os espigueiros locais privilegiados de assalto
particularmente em tempos de crise cerealífera, a sua construção em contiguidade e num sítio de certa
elevação topográfica ter obedecido não a qualquer programa de redistribuição comunitária de milho, mas ao
facto de fornecer condições mais propícias ao arejamento e à vigilância dos cereais.
8
Interessantes descrições do enfraquecimento da vida comunitária são-nos dadas também noutros recentes estudos,
designadamente no de Geraldes (1979:84 ss), no de Guerreiro (1982:138 ss, 187 ss), e, em especial, no concernente à progressiva
erosão dos poderes do conselho, no de Brito (1989: 172 ss).
9
Entre casos recentes de «roubo», é de referir o realizado - e também confessado - por um filho de um morador mais modesto o
qual, tendo-se introduzido na casa de um emigrante, ter-lhe-ia furtado 400 dólares (TPB Lil0:28, 26-1-1983).
A norma sancionatória do roubo surge retraduzida, entre outros, no artigo 7 do código de posturas: «É igualmente proibido tirar
ou roubar espigas, feijão, centeio, uvas, palha e, enfim, tudo quanto represente valor». A transgressão desta norma implicava
multa e, em caso de reincidência, eventual pena de prisão. Quanto aos deveres comunitários, algumas casas podiam usufruir de
um tratamento de favor: por exemplo, em Lindoso a família Ferraz, pelo facto de ter subsidiado a reconstrução da igreja, teria
ficado dispensada de colaborar nos trabalhos comunitários.
Comunitarismo: Identidade e Diferenciação

Sem quebrar as velhas regras normativas locais e sem deixar de representar igualmente uma lógica de
defesa da colectividade, proprietários e lavradores têm contudo feito prevalecer os seus interesses
específicos. O sistema de regulamentação colectiva consignado nas posturas e fiscalizado pelo conselho e
outras instituições de carácter representativo - a Junta, o zelador e, posteriormente, o regedor - mais que
pelos interesses colectivos da totalidade dos moradores era, de facto, regido pela força das circunstâncias
adversas do ecossistema local. Tal sistema, a par dalgumas vantagens menores, mínimas ou, por vezes, nulas
para os moradores mais pobres e sem terra, obrigava estes últimos, de acordo com a sua condição, a aceitar,
em maior ou menor medida, as práticas correntes de uma desfavorável entreajuda, como veremos.

5.2. Infra-estruturas, baldios e vezeira

No concernente à implementação de infra-estruturas e fruição de terrenos comunais, a utilização destes


tem sido do interesse geral dos moradores, sendo de referir os proveitos comuns derivados de investimentos
colectivos, bem como da distribuição e da execução de tarefas tais como a reparação de caminhos e
lavadouros, da igreja e do cemitério e, para todos os possuidores de gado e terra, os cuidados alternados com
o boi comunal e o respectivo chão colectivo, a canalização de águas e os sistemas rotativos de irrigação.
Com efeito, tendo em conta a economia agro-pastoril de Lindoso, poder-se-á afirmar que os terrenos
comunais, ao fornecerem lenha, feno e mato, por um lado, e terras ou montes de pastagem para os animais,
por outro, contribuem de modo complementar mas decisivo para a subsistência da maioria dos agregados
domésticos residentes10.

Para avaliar mais adequadamente as vantagens da posse e da gestão colectivas das infra-estruturas e
demais recursos comunais dever-se-á todavia diferenciar a relação de custos-benefícios por tipos de grupos
domésticos. Além dos reflexos negativos nas relações internas, originados pela introdução de determinadas
infra-estruturas (por exemplo, abertura de estrada11), é justamente no diverso grau de utilização destas e
demais bens comunais onde se repercutem situações de desigualdade. Enquanto na reparação de caminhos,
na feitura de poços ou na limpeza de regos para a irrigação, todos eram obrigados a participar, em pé de
igualdade, nas respectivas tarefas, a sua utilização e o respectivo proveito eram relativamente desiguais.
Quem desgastasse mais os caminhos ou recolhesse mais madeira, lenha ou mato, empreendesse mais
agricultura ou detivesse maior número de cabeças de gado nos terrenos de pastagem, dada a menor
contribuição no sistema global de encargos, resultaria mais beneficiado.
Quanto ao sistema de vezeira, é-lhe inerente uma certa correspondência entre os dias de vezeira e o
número de cabeças de gado: na vezeira da rês, por exemplo, um dia por cada dez cabeças de cabras ou
ovelhas. Daí que, na fruição dos montes, segundo o sistema de vezeiras, os custos de vigilância são
colectivamente repartidos na proporção dos efectivos pecuários de cada família – o que implica um
elemento de justiça social equitativa. Entretanto, a visão funcionalista do comunitarismo, além de pressupor
como «natural» a pré-existente posse desigual de gado, obnubila o facto de quanto mais gado uma família
possuir, maior proveito económico retira do património comum.

De acordo com o artigo 3 do aditamento às Posturas Paroquiais de 1905, seriam sujeitos a multa de
1.000 a 2.000 réis os infractores da obrigação de «guardar as vezeiras das vacas, como é de costume
imemorial em todos os lugares da freguesia, quer deitem suas vacas para a vezeira quer não» (AJL 16-7-
1905). É, porém, a preponderância do poder económico que vai permitir a algumas casas (L37, 120), sem

10
Contrariamente à lógica dominante de que se tomava necessária a transformação dos denominados «incultos» pelo arroteamento
em área cultivada – lógica essa expressa, entre outros, por Martins e Moraes (in M. V. Cabral 1974:301-337) –, outros autores
como o Visconde de Coruche salientaram o preenchimento da sua função produtiva. Sobre esta polémica e a interdependência dos
«incultos» em relação à área cultivada pelos grupos domésticos no noroeste português, cf. Castro (1980:67-77) e, mais
detalhadamente, o recente estudo de Nunes e Feijó (1990:45-90).
11
Não obstante constituir um melhoramento infra-estrutural, a abertura da estrada, além de contribuir para a penetração de agentes
externos, viria a permitir mais facilmente a entrada do gado nas leiras dos vizinhos. Tal situação veio, comparativamente ao
período anterior à sua implementação, provocar um aumento do número de rixas entre moradores de Lindoso.
112
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

qualquer penalização comunitária, esquivar-se às regras comunitárias da vezeira e estabelecer um


mecanismo de vigilância paralelo através da contratação de criados-pastores permanentes ou moradores
dependentes. Além disso, o sistema de vezeira pressupõe, no próprio modo de gestão, um elemento de
desigualdade na medida em que todos – dos mais ricos aos mais pobres – eram teoricamente obrigados a
vigiar, mas com diferentes contrapartidas, o gado das demais casas.
Dada a importância do boi de cobrição para a reprodução de crias, também a sua compra e manutenção
colectivas, sob a responsabilidade de três homens designados em conselho, aproveitam a todos os criadores
de gado vacum, mas revestem-se de especial significado para aquelas casas, cujo produto pecuário se destina
mormente a obter, pela venda no mercado, um excedente monetário.

Se, por um lado, uma distribuição proporcionalmente equitativa dos encargos humanos aponta para um
equilibrado balanço entre estes e os correlativas benefícios, tal não pode ocultar o desigual grau de
aproveitamento das facilidades infra-estruturais e dos bens comunais usufruídos através do sistema de
vezeira.

5.3. Entreajuda: simetrias e dissemetrias

Constante nas relações sociais de Aguiar e, sobretudo, de Lindoso tem sido o fenómeno da entreajuda.
Assumido em termos abstractos, o próprio conceito de entreajuda denota um certo eufemismo e uma
conotação ideológica, sugerindo uma reciprocidade positiva e funcional na troca de trabalhos, bens e
serviços. É nesta linha que certos autores tais como Freeman (1970:34 ss) e sobretudo Dias (1984) se
colocam, o último dos quais insiste em conceber a entreajuda como resultante da típica fraternal e
«dionisíaca personalidade-base» dos camponeses (Dias 1984:315), pressuposto funcionalista inverificável e
não provado perante uma multiplicidade de situações psico-socialmente contrastantes.

Os dados recolhidos sobre Aguiar e sobretudo Lindoso permitem sustentar que, sobretudo até aos anos
sessenta, o fenómeno da entreajuda ocorria com mais frequência e intensidade num contexto local em que as
economias camponesas eram ainda pouco monetarizadas e subsistiam com baixos rendimentos, diminuto ou
inexistente grau de mecanização e de força de trabalho assalariada (4:2, 4:3). A diversidade de padrões
cooperativos levou, porém, autores como Erasmus (1956:445 ss) e M. Moore (1975:272, 278) a distinguir o
«trabalho de troca», pressupondo relativa reciprocidade de trabalho, e «trabalho festivo» para a execução do
qual os cooperantes, num enquadramento familiar ou clientelar, acorriam ou eram mobilizados pelo dono-
hóspede em troca de comida, bebida e entretimento «festivo». Se é certo que o "trabalho festivo" tem
constituído para uns a base dum imaginário rural romantizado e para outros o suporte de representação
acerca das suas vidas duras mas "honrosas e dignas", a entreajuda engloba(va), de facto, uma multiplicidade
de transacções sociais em vista da reprodução social e, como tal, não escapa(va) aos motivos de cálculo
económico, aspecto aliás já focado por Weber quando a remetia para uma espécie de ética popular
«primitiva» não sentimental, traduzida no aforismo: «Do ut des (dou para que dês)» (1978:361). Com efeito,
os moradores de Lindoso troca(va)m trabalho ou presta(va)m outros tipos de ajuda pela simples necessidade
de assegurar força de trabalho ou apoio semelhante perante uma situação análoga que eventualmente lhes
bata à porta. Com base nos inquéritos locais, em observações directas e nos dados fornecidos pelos
inquiridos e sobretudo por informantes-chave sobre as práticas de entreajuda prevalecentes em período
recente, por parte de cada casa, foi possível apurar que os resultados evidenciados no quadro 5 denotam a
persistência de formas não só simétricas como assimétricas na entreajuda.
Os resultados dos testes estatísticos (X2=8.1 para Lindoso X2=7.7 para Aguiar, com três graus de
liberdade para ambos) demonstram que, se em Aguiar a nível de 5% ou mais se verifica uma relação de
dependência entre categorias fundiárias e tipo de entreajuda, em Lindoso tal relação só se constata a nivel de
10% ou mais, o que se apresenta como bastante improvável.
Enquanto, respectivamente em Lindoso e em Aguiar, 80.9% e 70.9% dos agregados situados nas
categorias até 2 hectares estabelecem como dominantes trocas relativamente simétricas, nas categorias com
Comunitarismo: Identidade e Diferenciação

2 ou mais hectares, ao lado de 50% e 48.8% de fann1ias que levam a cabo permutas simétricas, outras 50%
e 51.2% fixam trocas prevalenternente assimétricas.
Se bem que as formas de ajuda nem sempre se reduzam à troca de trabalho, esta tem permanecido a
base principal na entreajuda, sendo sobremaneira importante na altura da azáfama das actividades sazonais
como as lavradas e as sementeiras, as segadas e as vindimas, assim como as malhadas e as desfolhadas.

QUADRO 5: Categorias fundiárias e tipo predominante de entreajuda

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985

Além das trocas de força de trabalho, a entreajuda em base simétrica pode ainda manifestar-se de outras
maneiras, sendo de salientar em 11 casas de Aguiar a cedência de gado ou tractor, o empréstimo de dinheiro
sem juros para emigrar, comprar terra casa e/ou (re)construir casa.
O quadro 5 mostra que, ora em base assimétrica, ora sobretudo em base simétrica, é ainda considerável
o volume de casas envolvidas na entreajuda. Esta possui contudo um sentido predominantemente
esporádico, o qual é-nos indiciado pelo facto de 76.8% das famílias de Lindoso e 88.9% das de Aguiar
praticarem, quando muito, entreajuda apenas incidentalmente (anexo 6). A actual fase de relativo declínio da
troca de trabalho permanente e de prático desaparecimento do «trabalho festivo» não será com certeza
estranha a emergência de oportunidades exteriores proporcionadas pelas migrações com os correspondentes
rendimentos extra-agrícolas e a melhoria de condições de vida, a autonomização de estratégias e atitudes e, a
nível endógeno, o processo de monetarização da economia camponesa, além das mudanças nas técnicas de
cultivo sobretudo a mecanização, factores salientados, em maior ou menor grau, por Kimball (1949:38-49),
Erasmus (1956:462 ss), Redclift (1973:2 ss), M. Moore (1975:233 ss), Pinto (1985:138 ss) e Geraldes
(1978:226). Com efeito, também em Lindoso e em Aguiar, com a crescente escassez relativa de braços
devida ao êxodo rural de 1965-70, os pobres começaram por ousar declinar «convites» para «trabalhos por
favor», debilitando assim as práticas de troca desigual, exigindo contrapartidas monetárias ou deixando de
lado os velhos donos da sua força de trabalho, sempre que surgissem outras oportunidades mais
compensadoras. Por outro lado, procurando evitar uma sobrecarga familiar que o sistema tradicional de
permutas entre desiguais acarretava e anulando ou diminuindo, pelas suas poupanças no exterior, a sua
relativa dependência, famílias outrora desprovidas ou com menos recursos técnicos e monetários vêm-se
esforçando por dispensar favores ou outros serviços alheios não pagos. Deste modo, evitam que a
contraparte, sobretudoquando mais dotada, lhes venha a pedir mais que o devido, sentimento já expresso no
velho aforismo popular: «trabalho por favor nunca está pago» ou ainda «favor de gado nunca está pago».
114
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

E, quando não desafiam abertamente moradores mais ricos, fazem-lhes saber que tão pouco sentem a
necessidade de se submeter às antigas regras «comunitárias», não raro impostas justamente pelas casas
económica e politicamente mais influentes.

Ainda que com menor frequência e intensidade, persistem por certo determinadas trocas de trabalhos e
serviços. Todavia, os grupos domésticos, ora se baseiam predominantemente em prévias relações sociais de
parentesco, ora criam um círculo mínimo de vizinhos e amigos, reforçando os laços que lhe permitem e
permitirão assegurar a continuidade do processo de trabalho:

GRÁFICOS 4 e 5: Laço principal na entreajuda

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Tal como se pode ler dos gráficos 4 e 5, a entreajuda reduz-se respectivamente em 66.6% e em 55.6%
das casas a grupos restritos de amigos e parentes próximos e directos, concretamente entre pais/sogros e
filhos/genros ou noras, e mesmo este tipo de ajuda restrita mais para obviar a utilização de força de trabalho
assalariada, rara e cara para as suas economias.
Do mesmo modo, dado que o empréstimo de dinheiro constituía uma outra forma de ajuda, embora
amiúde com repercussões assimétricas e riscos imponderáveis, o recurso ao empréstimo monetário foi
evitado por 71.8% das casas de Lindoso e 57.2% das de Aguiar. Entre 28.2% e 42.8% das famílias que
alguma vez se fizeram auxiliar financeiramente, salvo 7.7% e 9.9% que o obtiveram pela via parental, sem
juros e em base relativamente simétrica, os restantes empréstimos ocorreram, em situações de premência ou
aflição, pela via particular sobretudo pela mão de prestamistas, situados na própria aldeia ou circunvizinhas,
e cujo contrapagamento, além dos juros, se cifrava na oferta de força de trabalho e outras dádivas.
De facto, nas trocas de trabalho entre grupos domésticos com tamanho e posses desiguais, o excedente
de tempo em trabalhos por conta própria e aplicado em favor de outras casas redunda, em regra, em
benefício das explorações que mais força de trabalho exijam, situação igualmente constatada por O'Neill
(1984:176 ss) e Portela (1986:41 ss) em aldeias transmontanas e por Polanah (1985:67) em comunidades de
montanha do Alto Minho. Diferentemente das trocas simétricas, tal relação assimétrica fundamental
assentava e, embora em menor medida, ainda hoje assenta no residual «trabalho por favor» prestado por
jornaleiros e camponeses parciais dependentes de proprietários e lavradores. Tal como o exprime Bourdieu,
o chamado «trabalho por favor» poder-se-á contudo reconduzir a uma forma mitigada de trabalho semi-
Comunitarismo: Identidade e Diferenciação

servil: «ajuda benévola que é também corveia, corveia benévola e ajuda forçada e que pressupõe, se se
permite esta metáfora geométrica, uma dupla semi-rotação, reconduzindo ao ponto de partida, isto é, uma
conversão do capital simbólico, reconvertível ele próprio em capital material» (1980:202).

Considerando globalmente as relações interfamiliares em ambas as aldeias e tendo em contao tipo


dominantede entreajuda prestada, sobretudo até 1965-70, são de registar, em paralelo e em coexistência com
intercâmbios relativamente simétricos, trocas entre famílias com recursos desiguais. A prestação da elástica
mão de obra conhecida por «trabalho por favor» em base simétrica ou assimétrica tinha respectivamente em
Lindoso e em Aguiar como fluidos contraprestações, além da comida, dádivas ou compensações em
produtos agrícolas, a cedência de moinho (em Lindoso), de gado para tracção animal e/ou equipamento
sobretudo tractor, o empréstimo de dinheiro ou a concessão de pequenos jeitos e favores, particularmente no
terreno administrativo-burocrático e em tempo não premente do ciclo agrícola. Os menos providos de
recursos, necessitados de favores e sobretudo de alimentos, sentiam-se na obrigação material e moral de
disponibilizar-se para «trabalhos festivos», exacerbando assim, pela prestação de trabalho não correspondido
e pelo reforço de prestígio ao dono da casa, a dimensão inigualitária das trocas.
Com efeito, numa comunidade carente de infra-estruturas tais como transportes, cuidados de saúde
pública acessíveis, recursos comunicacionais e simbólicos nos contactos com o exterior, quem detivesse tais
meios, habilidades ou conhecimentos podia, se necessitasse, obter a contrapartida vantajosa de dispor de
força de trabalho (quase) gratuita ou em troca da simples alimentação. Cabe referir, por exemplo, no passado
recente de ambas as aldeias, as habilidades de dois peritos em dar injecções e sobretudo os recursos de
lavradores e personalidades influentes ou representantes do poder local (Junta, padre, regedor, comerciantes)
no sentido de mediar ou interceder nas iustâncias oficiais da vila ou cidade (13:2).

Só no sentido de equivalente funcional em face de necessidades diferentemente sentidas poder-se-iam


considerar todas as trocas ocorridas como simétlicas. Rigorosamente, medidas em termos de tempo de
trabalho socialmente útil, tais permutas resultam assimétricas: por exemplo, uma hora despendida com a
cedência do tractor e, sobretudo no passado, a então rara técnica de aplicar uma injecção ou a prestação
deum serviço burocrático é ou era retribuída com um a dois dias de trabalho. Mesmo sem circunscrever nem
avaliar os antigos cálculos da economia tradicional camponesa pela bitola do cálculo objectivo da economia
de mercado, os índices de trocas mencionadas contêm reais e percebidos elementos de desigualdade,
tolerados mas nem sempre internamente aceites. Aliás, só tendo em conta a reciprocidade assimétrica de tais
trocas e a real anulação ou diminuição da dependência através das poupanças migratórias, se pode
compreender como cerca de 80% dos utilizadores de tractor alheio em Aguiar e um crescente número em
Lindoso, em vez de o pedir por favor, prefere alugá-lo, vendo-se assim livres de quaisquer obrigações
sociais interfamiliares ou constrangimentos «comunitários». Neste contexto, quando a troca de força de
trabalho, mesmo que esporádica, não é possível– ou porque a força de trabalho própria se mostra
insuficiente para repor o trabalho dos vizinhos ou simplesmente por não haver braços voluntários
disponíveis –, as casas com mais recursos fundiários são obrigadas a alugar força de trabalho, o que ocorre
todavia em termos percentualmente reduzidos (quadro 7). Em contrapartida, tais casas já não se sentem
obrigadas a auxiliar as famílias em necessidade.

116
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

A entreaiuda, Lindoso (foto 11)

Práticas divergentes das ocorridas no passado são assim indiciadoras não só da perda dos mecanismos
corporativos tradicionais, ainda que de efeito assimétrico, mas também duma relativa alteração de forças
entre os contendores. A tensão existente entre a defesa da velha ordem corporativo-patrimonialista e da sua
racionalidade não capitalista e as práticas de crescente individualização, induzidas por parte quer de
moradores desprovidos, quer de novos detentores de recursos mais abertos à inovação, tem sido resolvida
em favor destes últimos grupos. As estratégias confinam-se, portanto, cada vez menos ao colete de forças
inerente à lógíca corporativa. A menor ocorrência dos pressupostos de outrora faz com que a eventual
descontinuidade ou até mpmra com o vivenciada «ricos» com amargura e desencanto e «pobres»
Comunitarismo: Identidade e Diferenciação

A cozedura do pão, Aguiar (foto 12)

A predominância actual das trocas de tipo simétrico prende-se com a decrescente dependênciae até a
promoção dos moradores mais dependentes de outrora: os ex-criados, ex-jornaleiros e ex-camponeses
pobres. Salvo em casos extremos de emergência tais como doenças e acidentes graves, incêndios ou outras
catástrofes – as quais dão lugar a actos colectivos de defesa e solidariedade –, já deixaram de ser usuais
esquemas de entreajuda que envolvam todos ou a maior dos vizinhos de Lindoso e, muito menos, de Aguiar.

Segundo as premissas de certos autores com uma orientação predominantemente simbólico-cognitivista


(cf. Foster 1965:293 ss, Cabral 1989:175 ss), as diferenças materiais de riqueza e inclusive as práticas
assimétricas de entreajuda não obstariam ao reconhecimento de uma igualdade conceptual de identidade
comunitária, consciente ou não. Por outro lado, entre autores marxistas ortodoxos persiste o preconceito de
que os actores dependentes, na relação assimétrica, não se aperceberiam de tal por estarem imbuídos de
«falsa consciência» e, como tal, acabariam por inconscientemente exaltar a entreajuda. Ora bem, o que foi
possível constatar é que, se os grupos domésticos mais desafogados glorificam com nostalgia a vida do
passado e, em particular, as práticas de (entre)ajuda como «generosas» liberalidades suas, nos actores
dependentes encontra-se bastante enraizada na sua memória e experiência a convicção de que, ressalvando
118
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

eventualmente alguns aspectos positivos da sociabilidade laboral, a entreajuda era perpassada de latentes
tensões e equívocos, tal como confessou, entre outros, um dos ex-jornaleiros: «Antigamente aqui a ajudanão
era de igual para igual, nós os mais íamos trabalhar para os mais ricos ou remediados por necessidade. Em
troca de caldo, pão ou um copo de vinho,tínhamos que dar muitos dias de trabalho» (A121).

Se antes de 1970 os pobres não possuíam nem força numérica e social nem capacidade para impor
alternativas à sua situação de dependência, a partir de então a emigração e a melhoria das suas condições de
vida, a par duma ligeira mecanização agrícola, tornaram mais raro e fluido o sistema da dita entreajuda e até
prescindíveis os mecanismos do clássico «trabalho por favor» entre desiguais. Mais, cerca de 10.5% dos
actuais moradores de Lindoso, com pouca ou nenhuma terra, mostram-se recalcitrantes em sujeitar-se a
«ajudar» famílias mais «ricas», mesmo que o trabalho resulte irregular ou a dieta alimentar nas suas próprias
casas seja mais sóbria. Salvo três (2.4%) casas de jornaleiros em Lindoso e duas (1.3%) em Aguiar e quatro
(3.2%) de camponeses pobres em Lindoso e quatro (2.6%) em Aguiar – que ainda fornecem «trabalho por
favor» e são não raro compensadas com produtos agrícolas –, os (quase) destituídos de recursos fundiários
envidam esforços no sentido de obter trabalho assalariado fora da agricultura ou então, senão comprar,
arrendar terras alheias.

Dos movimentos migratórios, dos melhoramentos infra-estmturais e da atenuação do carácter desigual


da entreajuda não se poderá contudo inferir, tal como Cabral (1989:186) e sobretudo Brandes (1975: 186
ss)defenderam, respectivamente para os casos de duas aldeias minhotas e uma comunidade castelhana, que
estar-se-ia perante a reemergência da ideologia do igualitarismo e novos padrões de solidariedade e
cooperação simétricas. Sintoma de desigualdade constitui, porém, além da desigualposse de recursos (7:1), o
facto de se manterem relações de assalariamento e dependência, ainda que reduzidas, no interior das
colectividades. As relações de assalariamento, deslocando-se, reproduzem-se, porém, cada vez mais e sob
novas formas em sectores não agrícolas não só para os países de acolhimento emigratório, mas também nas
proximidades envolventes das respectivas aldeias: a construção civil e as fábricas para Aguiar e as obras da
barragem para Lindoso.

*
**

Procurando superar perspectivas redutoras acerca do funcionamento de ambas colectividades e, em


particular, de Lindoso e tendo por suporte empírico observações de campo e elementos da história local, foi
possível desvelar a imbricação entre dois pólos das formas comunitárias: identidade e diferenciação, quer
nos sistemas de decisão, quer nas formas de fruição dos recursos comunitários, quer ainda nas relações de
entreajuda interfamiliares.
Se a convergência e a divergência de interesses são evidenciadas no sistema de decisão e no diferente
grau de fruição das infra-estruturas, dos recursos comunais e da economia de vezeira, tal se toma mais
visível nas práticas de entreajuda. Estas, propiciando mecanismos de sobrevivência aos mais desmunidos,
reforçam simultaneamente a dependência destes em relação à oferta de trabalho, terra e outros favores
concedidos pelas famílias económica e politicamente mais dotadas. No quadro da reciprocidade assimétrica,
o costume do «trabalho por favor», que para uns era uma necessidade, foi-se transformando para outros num
«direito» prático. Só com a onda de 1965-70 se alterou consideravelmente a configuração desta
dependência. Reduzidas, sobretudo desde 1965, as suas facetas assimétricas, a entreajuda tem-se praticado e
mantido, em regra, a nível do círculo de parentes e alguns vizinhos e amigos. Por outro lado, o território
comum, os sentimentos de pertença e afectividade à casa e à aldeia, assim como os actos de defesa e
solidariedade colectivas em assuntos de emergência ou interesse comum tomam real e efectivo o eixo de
identidade comunitária. No entanto e não obstante algumas deslocações familiares no xadrez local e as
transformações operadas, mantêm-se e reproduzem-se em Lindoso e sobretudo em Aguiar desigualdades
sócio-económicas e políticas.
Novas Dependências

CAPÍTULO 6

NOVAS DEPENDÊNCIAS

Uma vez radiografada a relativa autonomia aldeã, sobretudo em Lindoso, tornar-se-ia pertinente
questionar por que é que os grupos domésticos de aldeias relativamente autónomas limitavam os seus
contactos com o exterior. Migdal (1974:21 ss) sublinha que tal facto se deve à interiorizada incapacidade,
por parte dos camponeses mais desprovidos, de manipular, para seu benefício, o poderoso aparelho estatal e
o incerto, anónimo e incontrolável mundo do mercado preferindo refugiar-se na economia de subsistência,
posição cujo eco poder-se-ia encontrar no adágio popular recolhido por Dias: «Mais vale magro no mato que
gordo no cu do gato» (1981:172).
A par ou não das atitudes dos próprios camponeses, a evolução da economia e da sociedade envolventes
e, sobretudo, a ingerência munícipo-estatal encarregar-se-iam de quebrar a relativa insularização geo-
económica de ambas as aldeias. Para tal teriam decisivamente contribuído, por um lado, a abertura de uma
estrada e a implementação das obras da primeira barragem na década de 1920-30 e, por outro, a orientação
para o exterior das economias domésticas, o respectivo aumento do volume de trocas e, sobretudo, o sentido
e a direcção dessas trocas, deixando estas de ser cada vez menos directas e personalizadas e cada vez mais
articuladas com elementos da economia de mercado. Deste modo, a mobilidade geográfica, em
consequência do forte êxodo migratório desde 1965, veio também intensificar as relações com o mercado e a
cidade, ampliando-se assim o leque de contactos que anteriormente tinham lugar, de modo restritivo e quase
exclusivo, através de alguns proprietários e lavradores abastados, prestamistas e comerciantes (13:2). Em
consequência, à medida que, a partir de 1970, as famílias de (ex)jomaleiros e camponeses pobres, com os
fluxos das poupanças migratórias, iam resolvendo a crise das suas economias domésticas, distancia(va)m-se
dos vizinhos sobretudo mais «ricos», deixando de praticar a eufemística entreajuda conhecida por «trabalho
por favor» (5:3). Bens, trabalhos e serviços passaram gradualmente a ser pagos em dinheiro, caindo pouco a
pouco em desuso a retribuição em espécie ou trabalho. De resto, para as famílias migrantes e pluriactivas,
além de diminuir o interesse em participar em actividades conjuntas com as demais casas, tomava-se
impraticável a retribuição de trabalho análogo ao eventualmente recebido.
É neste contexto que se verifica um processo de parcial mercantilização da economia local, quer pela
venda de produtos agrícolas, quer pela aquisição de produtos agro-pecuários produzidos ou não localmente
(pão, carne, leite, frutas, legumes), além de um aumento doutros inputs agro-industriais: adubos, pesticidas,
rações, máquinas. As economias domésticas, se internamente mantinham uma relativa auto-suficiência na
produção de alguns produtos básicos, iam-se tornando mais individualizantes, menos dependentes das
demais economias familiares mas cada vez mais condicionadas por rendimentos externos originários da
economia de mercado ou do Estado (salários, remessas, pensões). E é justamente a intensificação das
relações mercantis e subsequente quebra do ciclo de (re)produção autónomo da economia camponesa o que
constitui, segundo H. Bernstein (1977:62 ss), o ponto crucial para a penetração do capital nas colectividades
rurais. Tal implica uma relativa desqualificação dos actores camponeses e artesanais que, para reproduzir-se,
necessitam de socorrer-se de rendimentos monetários exteriores.

O processo de mercantilização e monetarização, embora seja diversamente avaliado pela diferenciada


120
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

dinâmica decisória dos diversos tipos de casas, aponta para uma especialização crescente das tarefas de
produção e distribuição, fornecendo a base de uma posterior competitividade e diferenciação social entre as
famílias. Se bem que limitada, dado o modesto volume de capital-dinheiro acumulado pela maioria das
famílias migrantes, esta competitividade tomar-se-á visível nas estratégias dos diferentes grupos domésticos
não só na esfera agrícola como nas pequenas indústrias de construção, nos serviços e noutras formas de
pluriactividade. Em Lindoso, desde 1978, dois empreiteiros e, em Aguiar, desde 1960, três pequenos
madeireiros e comerciantes de cortiça e, desde 1975, quatro pequenos empreiteiros, substituindo-se a antigos
artesãos, pretendem absorver a procura das indústrias dos seus respectivos ramos, a fim de melhorar a sua
posição interna na aldeia.
A nível da relação com os mercados locais, em especial com as feiras de gado, o relativo controlo pela
via do tradicional regateio entre produtores e compradores torna-se cada vez menos factível. Tendo
desaparecido em 1982-83 a antiga feira de gado de Lindoso – aonce acorriam compradores e vendedores de
aldeia vizinhas, pressionando sobre os respectivos preços –, restava aos produtores locais a possibilidade de
vender a um único comerciante de gado conhecido por regatão. Este, tirando vantagem da ausência de
concorrência local no sector, permite-se oferecer, nas suas periódicas visitas, preços bastante abaixo do valor
venal praticado nas feiras, estas inacessíveis porque longínquas e sujeitas a exigências burocráticas.
Quanto a Aguiar, se bem que surgissem normalmente vários comerciantes – que permitiria uma certa
concorrência –, não é e sobretudo não era inusitado que estes concertassem entre si preços de oferta a partir
do mesmo centro de decisão, utilizando vários agentes com o mesmo objectivo: manter baixo o preço do
gado.
Não só no comércio do gado como no de outros produtos, os mercados locais vão sendo suplantados,
especialmente desde a década de setenta, por intermediários de produtos agro-pecuários a jusante e a
montante pela acção de diversos comerciantes grossistas, padeiros e outros negociantes que vão penetrando
nas respectivas aldeias.

Transporte manual de madeira e lenha (foto 13)


Novas Dependências

Corte de erva por camponesa anciã, Aguiar (foto 14)

Lavrada tradicional, Lindoso (foto 15)

122
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Preparando-se para a lavrada mecânica, Aguiar (foto 16)

6.1. A incipiente modernização

Um critério-chave para medir o grau de dependência das economias locais consiste em avaliar a
disponibilidade e a utilização efectivas, por parte dos grupos domésticos, de capital-dinheiro e outros inputs
tecnológicos agro-industriais, os quais condicionam consideravelmente os seus cálculos e as suas decisões.
É cada vez maior o número de moradores em Lindoso e, sobretudo, em Aguiar que, além de possuir a
maior parte das antigas alfaias necessárias, vem adquirindo e/ou utilizando desde 1970 novos intrumentos
tais como o pulverizador mecânico, o moinho eléctrico, a motoserra e inclusive o tractor (7:1). Todavia,
tradicionalmente até 1970 em Aguiar e 1977 em Lindoso, os instrumentos utilizados pelas famílias
camponesas eram bastante rudimentares, de carácter predominantemente manual: a enxada, a foice, a
forquilha, o ancinho ou engaço, a gadanha, a pá, o mangual. O meio de tracção principal, além do humano,
era constituído pelo carro de bois ou vacas, com o qual se transportavam, além dos matos e das lenhas, os
cereais e as uvas para casa, a azeitona para o lagar, o brolho para o alambique. Até 1975 e 1985,
respectivamente em Aguiar e em Lindoso, cerca de 75% das actividades eram levadas a cabo pela
combinatória quase exclusiva do uso da força de trabalho com a energia animal, derivada mormente do gado
bovino, no qual se sobrepunham aliás as diversas funções de tracção, procriação e, sobretudo em Aguiar,
produção leiteira. Por outro lado, de acordo com as exigências de equilíbrio entre volume de terra, gado e
estrumes na economia camponesa tradicional, até cerca de 1965 em Aguiar e, em Lindoso, até 1978-80,
quase só se aplicava na produção cerealífera o fertilizante orgânico natural – o estrume –, para além da cinza
ou borralha.
Foi a partir dos anos cinquenta e sobretudo sessenta que em Aguiar certos lavradores e emigrantes,
possuindo algumas reservas monetárias, introduziram com alguma precaução os fertilizantes químicos. Após
Novas Dependências

a fase de ensaio, com a obtenção de melhores resultados nas colheitas, a utilização paulatina de adubos,
ainda que reduzida e normalmente combinada com o estrume, tomou-se extensiva a cerca de 80% das
explorações de Lindoso e 87% das de Aguiar, se bem que em doses variáveis consoante as posses
monetárias de cada categoria de produtores.

Quanto ao processo de mecanização, é desde 1970 em Aguiar e 1977 em Lindoso que, devido à
diminuição e ao correlativo encarecimento da força de trabalho alheia disponível, designadamente criados e
jomaleiros(as) – aliás tornados cada vez mais migrantes –, começam a dar entrada os primeiros tractores: em
Aguiar pela mão de um pequeno madeireiro, nove médios e abastados lavradores e três pequenos
camponeses e, em Lindoso, pela de uma média lavradeira, dois pequenos lavradores – um dos quais guarda-
fiscal e outro empregado – e seis emigrantes, cinco dos quais provenientes de famílias de lavradores. O grau
de mecanização da agricultura, pressupondo uma substituição parcial da energia animal e humana pela
mecânica, deve ter em conta não apenas os possuidores de tractor mas também os utilizadores da energia
mecânica, o que nos é dado pelo quadro 6.

QUADRO 6: Explorações e tipo de energia aplicada

Legenda: tipos de energia: h = humana; a = animal; m = mecânica


Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Feitos os cálculos estatísticos, constatam-se os valores de X2=25.7 para Lindoso e de X2=48.1 para
Aguiar (com seis graus de liberdade para ambas as aldeias). Estes valores, extremamente significativos a
qualquer nível considerado, implicam que o uso do tipo de energia depende fortemente das respectivas
categorias fundiárias.
Do quadro 6 se infere que, apesar de em ambas as colectividades se verificar a utilização conjunta da
energia animal e mecânica, o índice de utilização de energia mecânica em 1985, ainda que combinada com a
animal e a humana, é mais elevado em Aguiar (71.2%) que em Lindoso (28.8%)1. A esta baixa utilização de
energia mecânica em Lindoso não devem ser estranhos, além dos constrangimentos da falta de capital-

1
Quer em Aguiar, quer, a um ritmo menos acentuado, em Lindoso verifica-se um progressivo aumento de utilização de mecânica.
Assim, os utilizadores de tractor em Aguiar passam de 66.1 % segundo o RAC de 1979 para 71.2% em 1985 e os de Lindoso,
embora a unidade de comparação seja a freguesia, passam de 16.5% segundo o RAC de 1979 para 28.8% segundo inquérito local.
124
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

dinheiro, o relativo isolamento geográfico, o obstáculo do relevo dos solos e, sobretudo, a excessiva
fragmentação das explorações (quadro 2).
A energia mecânica é cada vez mais utilizada para a lavra das leiras mais acessíveis (cerca de 25% de
terreno em Lindoso e 80% em Aguiar) e especialmente para o transporte de cereais, lenha e mato. Utilizar
mais o gado e menos o tractor ou vice-versa depende tanto do quantitativo de terra arável como do volume
de força de trabalho familiar (quer para dispensar o tractor, quer para trocar «trabalho por favor» por horas
de tractor), como ainda do número de cabeças de gado e, sobretudo, da disponibilidade de meios financeiros
ou então de obrigações resultantes de relações de parentesco e amizade por parte de algum dos possuidores
de tractor face a eventuais interessados.

Não só a progressiva utilização de meios mecânicos, designadamente o tractor, como também a


introdução e a difusão moderada dos fertilizantes químicos e demais inovações nos métodos de cultivo, além
de implicar certas deslocações sociais entre famílias, representam, até certo ponto, uma ruptura com o
tradicional e «natural» modo de funcionamento do ecossistema camponês. Importa entretanto frisar que,
apesar de os métodos de cultivo se terem modificado bastante nas três últimas décadas, as mudanças,
particularmente em Lindoso, não têm sido, pelo menos até 1985, tão radicais nem os efeitos das referidas
inovações tão espectaculares. A utilização de fertilizantes químicos e, em particular, de tecnologia mecânica,
além de recente e combinada com fertilizantes orgânicos e alfaias manuais, tem sido, como verificámos,
lenta e reduzida, com particular incidência em Lindoso. Embora seja incontestável que a aplicação cada vez
mais generalizada dos adubos tenha representado um notável aumento na produção das culturas existentes,
ela não tem sido acompanhada da introdução de correctivos calcários, de herbicidas e, sobretudo, de
sementes seleccionadas ou novas culturas de relevo, quer a nível aldeão, quer a nível municipal (por
exemplo, 0.6% e 0.4% em Ponte da Barca). Apenas desde 1983 tiveram lugar, por parte de filhos ou genros
de três casas de lavradores de Aguiar (A20, 44, 54), esparsas experiências-piloto na inovação de novas
castas de uva e de métodos de cultivo da vinha, da fruta e do feijão, aliás sem elevados riscos e com
resultados satisfatórios.
A nível de especialização agropecuária (estufas, viveiros, pomares, aviários, vacarias), o Recenseamento
Agrícola ao Continente de 1979 regista para Aguiar apenas 2.8% das explorações dedicando-se a culturas
especializadas, nomeadamente na produção animal. Quanto à freguesia do Lindoso, à excepção dalguns
poucos moradores que em 1985 colocaram a hipótese vantajosa de implementar horticultura e/ou aviários,
até 1979 das 218 explorações na freguesia 98.2% não se especializaram em qualquer ramo da produção
agro-pecuária (RAC 1979).
Agrónomos e veterinários, a nível municipal, têm sugerido e apelado com insistência para a necessidade
de incrementar, pela via da inseminação artificial, novas raças animais de qualidade mais apurada para a
produção de carne, leite e, eventualmente, produtos daí derivados como queijos. Se em Aguiar, em 1985,
eram ainda tímidas as práticas e modestos os resultados, em Lindoso nem sequer iniciativas nesse sentido
eram visíveis. Em Aguiar, tendo deixado de funcionar em 1978 um apurado boi procriador disponível numa
das casas (Al 16), começou a praticar-se desde então a inseminação artificial nos locais de recolha do leite;
porém, em Lindoso, em 1985, além de dezoito bois e touros particulares, era ainda o boi comunal quem
cobria e fecundava a grande parte das vacas da aldeia.

Por parte dos destinatários tão-pouco eram perceptíveis, em 1985, atitudes generalizadas de abertura à
inovação tecnológica e cultural, verificando-se, pelo contrário, certa retracção perante inovações, aliás
criteriosamente seleccionadas, inclusive entre algumas famílias de lavradores. Nestes – de quem, de acordo
com as premissas da teoria difusionista, de raiz tecnocrático-modemizadora, seria de esperar uma maior
predisposição à inovação – constatou-se todavia a prevalência de atitudes de resistência ou, quando muito,
de adaptação, sobre as de aceitação, postura igualmente constatada por autores como Carvalho (1984:37 ss)
acerca de alterações na vitivinicultura. Dado que as inovações, sobretudo quando incontroláveis ou de
resultadosincertos, implicam desafiar ou questionar saberes e poderes tradicionais, foi possível ouvir a
alguns velhos lavradores comentários de autodefesa a salientar os malefícios das «novidades»: «Sabe, nem
todas as novidades vêm por bem. O escaravelho da batata apareceu com a importação da semente da
Novas Dependências

batata de fora. O milho híbrido não é bom porque não se podem semear feijões. E, sobre os adubos, nota-se
que, quando se deita muito, as terras ficam cansadas e os produtos não são tão bons, tão naturais» (Al1).

Mais que os lavradores, diversos são os pequenos camponeses que de início se mostraram bastante
relutantes à inovação, sancionando negativamente, por exemplo, a utilização do tractor. Enquanto o preço do
tractor lhes elevava os custos monetários a curto prazo, sem compensatórias contrapartidas de rendimentos
acrescidos, a energia animal e humana constituía ainda um factor elástico. Se todavia hoje já não excluem a
utilização pontual do tractor, alguns servem-se ainda com frequência do gado para transporte e até para a
lavra, justificando assim as suas preferências: «O tractor é muito caro e cá para as minhas poucas e
pequenas terras tem que dar tantas voltas que não faz muito mais numa hora que as minhas vacas piscas em
duas» (A86).

As inovações tecnológicas não são necessariamente sentidas como uma ameaça na medida em que, em
regra, além de permitir uma adaptação selectiva e gradual a combinar com outras modalidades, não são
introduzidas de modo simultâneo, forçado ou colectivizante. Por outro lado, as subtis reservas ou até recusas
à inovação neste domínio, tendo mais por alvo as famílias indutoras de tais «novidades», não se manifestam
de modo concertado mas assumem formas descontínuas ou esporádicas. Assim, eventuais desacordos
perante os novos ingredientes químicos e mecânicos aplicados à velha agricultura, traduziam contudo, de
forma ora oculta ora pública, sentimentos de despeito, inveja ou mesmo oposição por parte de moradores
menos providos face a possuidores de determinados objectos simbólicos de riqueza e prestígio social tais
como o tractor. Se deste equipamento, mesmo que subaproveitado e sem terra que o justificasse, se
ufanavam alguns dos seus detentores para aparentar o seu poder económico ou a sua ascensão social, outros,
designadamente médios e sobretudo pequenos lavradores, sem capacidade de modernização, denotavam, de
forma manifesta ou velada, o seu ressentimento comentando, por exemplo, que o tractor era prejudicial na
medida em que «desfazia marcos e deitava caminhos abaixo» (L59). Ou seja, o despique na inovação
tecnológica conjuga-se assim com a tradicional e recorrente luta pela (re)classificação social2.

Resumidamente poder-se-á dizer que a introdução, mesmo que incipiente, da maquinaria, bem como a
adopção de algumas poucas inovações, por parte dalguns lavradores e (ex)emigrantes com maior capacidade
monetária e maior grau de conhecimentos, instrução e contactos com o exterior, são indicativas do facto de
serem as fann1ias commenor grau de risco, a nível da subsistência, as que podem permitir-se a
experimentação parcial de resultados incertos. Acresce que a tal foram impelidos pela falta de mão-de-obra
familiar e pela impossibilidade de suportar os custos inerentes ao emprego de trabalho assalariado. Para
essas famílias não se trata apenas de aplicar simples e comuns estratégias de subsistência, mas de forjar
esquemas exigidos por uma dinâmica actual ou virtualmente orientada para os métodos e as tecnologias da
economia de mercado. Mesmo tais explorações, sendo excepcionais, dificilmente são susceptíveis de serem
classificadas de modernas empresas agrícolas.
No respeitante à tecnologia agrícola, embora de modo geral, predominem os métodos tradicionais de
cultivo, verifica-se uma ligeira e relativa substituição do factor trabalho manual e do factor terra por capital-
dinheiro incorporado, quer nos fertilizantes, quer nas máquinas (malhadeira, debulhadora e sobretudo
tractor). Tal representa, em especial para os lavradores, uma considerável redução de gastos com o
recrutamento, a manutenção e a supervisão de mão-de-obra. Em Aguiar tal substituição, embora modesta, já
é mais visível que em Lindoso, em que, de longe, predomina em 71.2% das casas a aplicação de energia
humana e animal. Porém, importa sublinhar que a crescente aplicação de capital-dinheiro em recursos
químicos e mecânicos, sendo amiúde resultante de poupanças do trabalho fora do sector agrícola, sobretudo
da emigração, não é adequadamente aproveitada nem maximizada em termos da moderna rendibilidade

2
Despiques e emulações a este respeito deram origem a alguns conflitos: por exemplo, L82 v 89, L59 e 48 v 3 e 78; A13 e 86.
Salvo dois moradores em Lindoso e dois em Aguiar que em 1985 alugavam ou empreendiam trabalhos de empreitada (lavrar,
transportar matos e lenhas) respectivamente ao preço de 500$00-700$00 e l.200$00-1.500$00/hora, os restantes possuidores de
tractor utiliza(va)m-no apenas para os seus próprios trabalhos e, eventualmente, para retribuir «trabalhos por favor» a parentes e
vizinhos.
126
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

empresarial.

6.2. Da policultura à pluriactividade

Embora a pluriactividade não seja um fenómeno recente em colectividades como Lindoso e Aguiar, é
pertinente distinguir, como o faz Lourenço (1991:94), a pluriactividade tradicional da moderna na medida
em que esta adquire novos contornos. Se tradicionalmente, sobretudo até cerca de 1965, as actividades agro-
artesanais, combinadas com o pastoreio e/ou a pecuária, absorviam a maioria dos habitantes de Lindoso e de
Aguiar no âmbito das suas diferenciadas estratégias de reprodução doméstica, hoje o padrão dominante das
ocupações dos grupos domésticos é o da pluriactividade, coestruturada não só pela lógica camponesa, como
também por uma lógica exterior, advinda de e presente nos sectores industrial e de serviços. Com efeito, à
medida que a economia de mercado e o Estado se têm introduzido e diversificado a sua acção em Lindoso e
sobretudo em Aguiar, uma resposta adaptativa e empreendedora por parte dos camponeses se tem
sobreposto: a pluriactividade a nível familiar que, ao evitar concentrar a actividade apenas num dos sectores,
difunde assim os riscos de insolvência e/ou desemprego em simultâneo. Assim, nas famílias pluriactivas, ou
o rendimento agrícola, como fonte principal da receita familiar, é acrescido de rendimentos complementares
obtidos fora do sector agrícola (pequena indústria particularmente no sector da construção civil, pequeno
comércio, funcionalismo, obras públicas e, em especial, trabalho sazonal e/ou migração interna e sobretudo
externa); ou, vice-versa e cada vez mais frequente, o rendimento principal nos referidos sectores extra-
agrícolas é completado com um rendimento suplementar na agricultura.
A concretização ou não de determinadas estratégias familiares para cada um dos descendentes é
dependente da combinação de condições estruturais e conjunturais desde a fase de desenvolvimento de
determinada formação social, passando pela pertença a determinado grupo social, até à incidência da ordem
do nascimento de cada filho em determinada família e/ou à conexão com um patrono ou parente bem
colocado no exterior da aldeia. Mas vejamos, em concreto, e comparemos, na medida do possível, as
actividades e as bases de rendimento dos grupos domésticos em dois períodos: 1960-65 e 1985-90.
Antes de 1965, exceptuando casas de proprietários e lavradores – seis ern Lindoso e treze em Aguiar –
que, em maior ou menor medida, comercializavam parte dos seus produtos agrícolas, as restantes
destinavam a sua produção agrícola basicamente para o autoconsumo, permitindo-se algumas delas vender
algum excedente apenas ocasionalmente e em anos de produção excepcional. As actividades, produções e
fontes de rendimentos agrícolas, de que os diversos tipos de grupos domésticos ou grupos sociais se
socorriam para realizar os seus respectivos objectivos, diferiam conforme os recursos e as oportunidades
disponíveis. Assim, se os jornaleiros, os artesãos e os camponeses pobres não produziam ou não produziam
o suficiente para si próprios e os pequenos camponeses conseguiam pouco mais que cobrir as suas
necessidades de consumo doméstíco, as diversas categorias de lavradores e proprietários, além de se
autoabastecerem, comercializavam porções variáveis de excedentes: gado designadamente crias, leite, vinho,
milho e feijão.
Quanto ao gado, se para cerca de um terço das casas de Aguiar o produto da sua venda representava
uma das componentes regulares do rendimento monetário anual, para cerca de 60% das de Lindoso tal
significava a sua fonte principal: por ano, em média, além de um ou vários leitões, galinhas e coelhos, 1
vitelo por pequeno agricultor, 2 a 4 por lavrador ou proprietário em Aguiar e, em Lindoso, 1 a 2 vitelos e 2 a
4 cabras por pequeno produtor e, pelo menos, 3 a 5 vitelos e 5 a 10 cabras ou ovelhas por lavrador, além dos
rendimentos derivados da lã.
Poucas eram, porém, mesmo em Aguiar, as casas possuidoras de vacas leiteiras. Por ser normalmente
utilizada como tracção animal, cada vaca produzia, em média, apenas 2 a 4 litros diários de leite. Quando
não autoconsumido, o leite ou era localmente vendido ou cedido como contrapagamento de favores ou dias
de trabalho a famílias conterrâneas com bebés, doentes ou idosos, ou destinava-se ao mercado da região.
Neste caso o leite era diariamente recolhido à porta do produtor (2 a 4 litros nos pequenos lavradores e 5 a
10 litros nos médios e abastados), por quatro mulheres de famílias pobres que transportavam à cabeça, em
cântaros de alumínio, para uma fábrica de lacticínios situada a oito quilómetros de distância.
Novas Dependências

Relativamente ao vinho, azeite e cereais, lavradores e proprietários de Aguiar vendiam aos merceeiros
locais ou colocavam no mercado – mais pelos intermediários que pelas adegas e cooperativas– entre 2 a 10
pipas de vinho, 5 a 30 litros de aguardente e 5 a 50 litros de azeite, 2 a 5 carros de pão-milho (1 = 600 kg),
além de variáveis quantidades de batata, feijão e fruta. Deduzidos os custos de produção tais como adubos,
pesticidas e emprego da força de trabalho, acabavam por dispor de algumas reservas monetárias pelo que se
podiam permitir esperar preços mais favoráveis no mercado.

Os pequenos lavradores de Aguiar e, em Lindoso, cerca de 15% dos lavradores – que amiúde tinham
que desfazer-se dos produtos após a colheita, de modo a satisfazer os encargos da casa – disponibilizavam,
em regra, 1/2 a 2 pipas de vinho, 1 a 2 carros de milho e 40 a 60 quilos de feijão e outros legumes.
Em situação mais precária se encontravam os poucos caseiros da época e outros, cujo modo de
subsistência estava dependente ora dos resultados aleatórios das terras arrendadas a meias, ora de (quase)
metade dos ganhos diferenciais da parceria pecuária.
Salvo os médios lavradores e proprietários que estavam em condições de acumular pequenas poupanças
em vista de um aumento do património familiar, os demais grupos domésticos, com o dinheiro obtido das
referidas vendas, podiam liquidar as dívidas contraídas com os merceeiros3, pagar os dízimos, as décimas e
demais impostos, adquirir alguns bens artesanais, um leitão para a ceva e poupar algum dinheiro (pé-de-
meia) para fazer face a qualquer contrariedade imprevisível (doença, má colheita) ou, mais raramente,
comprar gado ou terra.
Os mercados locais eram os principais e quase únicos pontos de ligação com a rede de comércio
regional. Mesmo aí, porém, os camponeses, pelo mecanismo do regateio ou marralhar, tinham uma certa
possibilidade de determinar o preço dos produtos, perante compradores desconhecidos, posição essa que
lhes oferecia alguma protecção contra os estratagemas dos intermediários, nomeadamente dos negociantes
de gado; e, quando não conseguiam obter um preço satisfatório, poderiam voltar para casa com as
mercadorias.

Nem todos os grupos domésticos viviam apenas da agricultura, inclusivamente antes da última
avalancha migratória de 1965-70. Entre outras fontes de subsistência, ora principais e permanentes para uns,
ora suplementares e/ou temporárias para outros, são de referir os proventos do artesanato e do comércio:
quatro artesãos em Lindoso e oito em Aguiar como pedreiros, carpinteiros, ferreiro e alfaiate; quatro
merceeiros em Lindoso e três em Aguiar, um dos quais confessaria que o saldo bruto do total de vendas até à
década de cinquenta regulava diariamente entre trinta e cinquenta escudos!
Em actividades externas à aldeia, sem contar a diversidade de actividades dos poucos emigrantes de
então, 9 «cabeças» de casal de Lindoso e 6 de Aguiar estavam empregados nos serviços (funcionalismo,
forças parapoliciais, transportes rodoviário e ferroviário) e 37 em Lindoso e 18 em Aguiar ocupavam-se na
silvicultura, na construção civil, em minas ou fábricas. Com efeito, é sobretudo a partir de 1955 que
começam a aumentar as migrações saídas dos grupos domésticos menos providos em recursos fundiários em
direcção às cidades do Porto e de Lisboa (L4, 80, 94) ou, no caso de Aguiar, também para as Minas de
Moncorvo e da Panasqueira (A89, 90, 92, 104) (10:2).
Relativamente a Lindoso, importa salientar, além da construção da barragem e da estrada que nos anos
vinte teriam ocupado diversas farrn1ias, uma outra actividade que, de modo exclusivo, predominante ou
suplementar, envolvia membros de mais de 80% das famílias: o fabrico de carvão na floresta. Com efeito, a
floresta, além de recurso colectivo necessário à sobrevivência, constituiu, a partir dos anos quarenta, por um
lado, um sorvedoiro de elementos recrutados para o papel repressivo de vigílância e denúncia (guardas
florestais e rondistas) e, por outro, fonte de receita não só para famílias pobres como também para outras
remediadas que, «basófia» ou «vergonha», escondem hoje do seu trajecto tal actividade por a considerarem
socialmente desclassificatória ou degradante.
Por fim, uma outra actividade estratégica das famílias de Lindoso, situada na zona fronteiriça com

3
Era certamente em espécie que eram pagas ao merceeiro algumas dívidas tais como as contraídas em exclusivo por algumas
mulheres que, sem o marido o saber, compravam na loja-taberna aguardente ou vinho, ou porque este se esgotara na própria casa
ou porque o marido lhes fechara a adega!
128
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Espanha, era o contrabando. Salvo raros casos de alto contrabando em pneus, diamantes e divisas, por parte
de um ou outro morador mais habilidoso em penetrar na rede mediadora de transacções paralelas – aliás em
conivência com os próprios agentes da autoridade –, os restantes deitavam mão de pequenos ganhos
diferenciais derivados do pequeno contrabando e destinados à subsistência ou para ocorrer a situações
difíceis (12:2). Deste modo, homens e sobretudo mulheres, caminhando pelas fragas da serra, levavam de
Portugal para Espanha café, sabão, ovos, vassouras de piassá e, na volta, traziam de Espanha bens essenciais
e/ou mais baratos como azeite, bacalhau, arroz, chocolate, vendendo e comprando amiúde na mesma loja.
Por vezes, algumas mulheres, para serem bem sucedidas no empreendimento, sujeitavam-se a ter relações
sexuais com os guardas que, por seu lado, se aproveitavam da situação de necessidade e dependência
daquelas. Outras levavam contrabando por conta de tenentes e sargentos da Guarda Fiscal, cujos cabos, em
tais ocorrências, «fechavam os olhos»: «Eu passava muitas vezes porque levava contrabando para um
tenente espanhol que era o da Guarda e todos os guardas se retiravam na altura que nós passávamos»
(L51).

A par do arranque industrial e duma certa expansão comercial interna, é, porém, com a avalancha
emígratória das décadas de sessenta e setenta, com a subsequente e tímida mecanização e, sobretudo, com a
mudança política operada em 1974 que o panorama aldeão acima descrito se altera consideravelmente.
Embora apenas 16.4% das casas de Aguiar e 8.9% das de Lindoso possuam tractor, a falta de braços e o seu
subsequente encarecimento veio possibilitar a utilização daquele em troca de favor, oferta de mão-de-obra
ou, simplesmente, pagamento monetário. Tal inovação, além dum aliviar do esforço físico manual ou
animal, representou uma considerável diminuição na utilização de mão-de-obra não familiar, tal como aliás
o demonstram os dados do 7.

Com os valores de X2=22.0 para Lindoso e X2=53.7 para Aguiar apura-se uma significativa relação de
dependência do grau de aluguer da força de trabalho face às categorias fundiárias. Todavia, tal como se
depreende do quadro 7, importa referir que, além de a utilização da força de trabalho assalariada ser
reduzida (16.4% e 28.2%), desta ainda a maior parte é predominantemente «pouca» (15.5% e 23.5%) e
concentrada nas sementeiras e, sobretudo, nas colheitas.
É justamente nesta fase de (proto)industrialização local e mesmo regional, a par da absorção do
excedente de força de trabalho rural pela indústria nacional e internacional, que irrompe o processo de
desestruturação da sociedade camponesa, a que se referem Medick (1976:296 ss) e, em relação a Portugal,
nas últimas décadas, Almeida (1981:250 ss), Pinto (1981:222 ss), Silva e Van Toor (1982:158 ss) e P.
Monteiro (1985:96 ss).
Novas Dependências

QUADRO 7: Aluguer de força de trabalho por categorias fundiárias (horas/ano)

Legenda: ha = hectare, h = hora


Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Os «pobres» e os «ricos», se até então estabeleciam relações vinculativas de mútua dependência, ainda que
na base de trocas assimétricas (trabalho versus salário e cultivo de terra versus renda), a daí passariam a
assumir relações mais soltas, desprendidas e ocasionais. Transferindo-se as suas dependências, de um modo
menos personalizado, para outros sectores, no contexto actual raras seriam as famílias que poderiam auto-
sustentar-se em base exclusivamente agticola. A fim de se obter uma imagem aproximada dos típos de
actividade actuais exercidas de modo exclusivo, principal ou secundário pelos «cabeças» de casal de
Lindoso e de Aguiar, foi elaborado, a partir dos resultados dos inquéritos, o seguinte quadro:

QUADRO 8: Famílias e actividades dos «cabeças» de casal* (horas/ano)

Legenda: * A expressão «cabeça» de casal, hoje jurídica e socialmente insustentável, era a terminologia tradicional
aplicada ao marido ou à mulher, quando gestora solteira ou viúva.
(a) só lavrador/camponês/a; (b) camponês parcial/ caseiro/a; (c) criado, jornaleiro/a; (d) empresário,
negociante; (e) artesão, operário/a; (f) empregado, funcionário, trabalhador qualificado, reformado/a.
Fonte: ILL e ILA, 1984-198

130
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Casa de proprietário, Aguiar (foto 17)

Uma pausa para comer, Lindoso (foto 18)


Novas Dependências

Calculados os valores de X2=27.2 para Lindoso e X2=112.1 para Aguiar (com base em doze graus de
liberdade) constata-se que, em Aguiar a qualquer nível e, em Lindoso, a 1 % ou mais, há uma relação de
dependência entre as actividades dos «cabeças» de casal e as categorias fundiárias. Tal relação, se em
Aguiar é extremamente significativa, em Lindoso, ao nível de 0.5%, deixa de existir.
Dos 124 «cabeças» de casal em Lindoso e 152 em Aguiar só 33.9% e 23.7% respectivamente não
exercem outra actividade a não ser a agro-pastoril ou pecuária. Os restantes, mantendo como actividade
principal uma profissão extra-agrícola, ora exercem como actividade secundária ou complementar a
agricultura, ora dispendem o tempo sobejante em actividades descontínuas ou irregulares, sendo de referir a
construção, o comércio e outras actividades de serviços. Em suma, 66.1 % dos grupos domésticos em
Lindoso e 76.3% em Aguiar combinam rendimentos provenientes de várias fontes. O estatuto dominante das
várias famílias não conhece fronteiras nítidas pelo facto de os membros de cada família se encontrarem
dispersos em actividades de diversos sectores, na mira de acumular os proventos de diversas origens ou,
eventualmente, evitar concomitantes riscos derivados do desemprego e de más colheitas.

Sensivelmente semelhante é o panorama que nos é fornecido pelos resultados do Recenseamento


Agrícola ao Continente de 1979 transcritos nos anexos 8 e 9 e cuja leitura nos permite concluir que só
25.2% das famílias da freguesia do Lindoso e 13.6% das de Aguiar viviam apenas da agricultura,
eventualmente combinada com a pecuária ou pastorícia. Se acrescentarmos as famílias, cujas actividades
eram levadas a cabo, em grande parte, pelo agregado doméstico, a sua soma não ultrapassava 32.1 % das
casas do Lindoso e 28.8% das de Aguiar. Donde, 67.9% das explorações na freguesia de Lindoso e de
71.2% das de Aguiar viviam, em 1979, de rendimentos concomitantemente agrícolas e não agrícolas. Destas
convém ainda notar que respectivamente 42.7% das famílias do Lindoso e 42.4% das de Aguiar, não
obstante realizarem a totalidade dos trabalhos agrícolas, viviam em menos de 50% da exploração agrícola,
ou seja, retiravam doutros sectores a maior parte do seu rendimento, valores aliás aproximados aos
constàtados por Mourão e Brito (1983:38) a nível de Ponte da Barca: 44.3%. Quanto a Barcelos, no conjunto
das freguesias pertencentes a este concelho, das 31.139 pessoas que em 1983 trabalhavam na agricultura, só
23% o faziam a tempo inteiro, enquanto as restantes 77% dedicavam apenas entre três a sete horas por dia à
actividade agrícola, pressupondo-se terem outra actividade como principal ou complementar (DRAEM,
CAB 1983), dados estes que reforçam conclusões de outros estudos sobre a importância reprodutiva da terra,
da agricultura parcial e dos agricultores pluriactivos4.
Convém, entretanto, referir que este tipo de agricultura parcial, a nível familiar, nem sempre o é quando
analisada a divisão do trabalho por sexo e idade. O padrão dominante e que as migrações vieram fortemente
acentuar consiste em a mulher manter-se a tempo inteiro como o elemento exclusivo ou predominante na
agricultura, enquanto o homem trabalha ou no estrangeiro ou na região em sectores não agrícolas (4:3). Por
sua vez, os filhos(as), quando já crescidos ou até ainda menores, são colocados em diversos sectores de
acordo com as possibilidades que se lhes abram: por exemplo, uma fica em casa, o outro(a) trabalha na
construção civil ou numa fabriqueta têxtil semiclandestina e um outro investe estudando.
Estes arranjos agro-industriais, permitindo travar a emigração e reduzir o desemprego, ao mesmo tempo
que fornecem à pequena e à média indústria mão-de-obra flexível e barata, ajustam-se, por outro lado, às
estratégias das casas pluriactivas. Todavia, conforme foi assinalado, tanto a capacidade de acumular capital-
dinheiro como o destino dos membros dos diversos tipos de grupos domésticos diferem consideravelmente.
Assim, proprietários, lavradores e outros moradores influentes, já por mérito próprio ou interconhecimento
familiar, já em troca de gratificações em espécie ou ainda por lealdade política ou religiosa para com
políticos e notáveis municipais, conseguiram para seus filhos e afilhados empregos nas diversas instituições

4
Cf., entre outros, Cavaco 1980:13 ss, 1981:171 ss, Ingerson 1982:1477 ss, M. V. Cabral 1983:216 ss e 1987:328 ss, Almeida
1986:236 ss, Lima 1986:371 ss, Sieber (1986), Hespanha 1987:152 ss, Baptista et al. 1989:19 ss, Passos 1990:336, Lourenço
1991:93 ss, A. Santos 1992:168 ss. Este padrão de duplo trabalho com acentuada mobilidade geográfica inter-regional e sobretudo
intra-regional é igualmente destacado por Lewis e Williams (1986:330 ss) no seu estudo de caso no centro de Portugal. Importa
entretanto sublinhar que a maior parte dos agricultores a tempo parcial em Portugal apresenta características diferentes de
bastantes dos seus congéneres nalguns países europeus nomeadamente na Inglaterra, os quais, segundo Gasson e Errington
(1993:247 ss), conforme as respostas de adaptações aos constrangimentos envolventes, são classificados em três tipos:
profissionalizados, marginalizados e «hobbystas».
132
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

a nível municipal ou regional: funcionário judicial, carteiro, professoras do ensino básico, empregado
bancário, enfermeiro. Estes assalariados no sector de serviços e residentes na aldeia, ocupando-se da
agricultura nos fins-de-semana ou após o horário de trabalho, têm, em termos económicos, vantagem não só
sobre famílias com exíguos recursos fundiários, como igualmente sobre os seus colegas citadinos. Possuindo
casa própria, e, portanto, sem custos de renda de casa, colhem produtos agrícolas que constituem um
complemento apreciável do rendimento principal fora da agricultura, tal como o refere um guarda-fiscal de
Lindoso: «Praticamente tudo o que se ganha fora da lavoura é ganho, pois o pão e a grande parte dos
gastos em comida temo-lo garantido com o rendimento da terra proveniente do trabalho de fim-de-semana»
(L92).
Além disso, algumas das famílias mais bem posicionadas na aldeia tornavam-se mediadoras em
determinados assuntos tais como ser intermediário na compra de tractores, proporcionando uma pequena
margem de ganho; introduzir algumas inovações tais como instalar, nas suas próprias explorações, ordenhas5
como forma de obter da cooperativa AGROS um rendimento suplementar pelo aluguer do local, além de um
pequeno salário pelos cuidados de limpeza, manutenção e recepção das vacas produtoras da aldeia; ser
mediadores em determinadas transacções financeiras, partilhas ou assuntos de emigrantes ou ainda, em
Lindoso, em actividades ou projectos de comércio, habitação e turismo.
A membros de famílias remediadas ou pobres restavam-lhes lugares profissionalmente menos atraentes,
mais duros e pior remunerados como a construção civil. Em 1985, a maior parte das famílias de Lindoso
vivia todavia graças a injecções do exterior, sendo de relevar as remessas de familiares emigrados e as
pensões de invalidez e velhice provindas dos países de emigração, em especial da França.
Quer quanto à redistribuição profissional dos membros dos diversos grupos domésticos, quer quanto às
fontes de obtenção de rendimentos, sobretudo em Aguiar, o panorama em 1985, por comparação aos anos
sessenta, era diferente. A utilização do tractor, substituindo, em grande parte, a função de tracção animal,
havia indirectamente libertado a energia animal para um maior índice de produção leíteira por cabeça. Por
outro lado, as progressivas poupanças foram propiciando o aumento do número e da qualidade de vacas
leiteiras em posse de cada família: uma a duas vacas por pequeno produtor, três a oito por médio e abastado
lavrador (7.1.).

Apesar de, tradicionalmente, não se verificar uma rigorosa contabilidade nas economias domésticas, por
um lado, e, por outro, as questões atinentes aos gastos e sobretudo às receitas familiares constituírem um dos
assuntos mais delicados nos inquéritos, foi contudo possível elaborar, em relação a Aguiar,o seguinte quadro
de despesas e receitas:

5
Concretamente junto das casas Al e 44. Estas ordenhas ditas colectivas pressupõem apenas a utilização comum de uma sala –
geralmente alugada pela Cooperativa –, onde as vacas são ordenhadas. No concelho de Barcelos existiam, em 1981, 187 (65.2%)
ordenhas colectivas, 67 (23.3%) particulares e 33 (11.5%) postos de recolha, modalidades estas que, a nível nacional, se
distribuíam do seguinte modo: 39% de ordenhas, 34% de postos de recolha e 27% de explorações individuais (CAB, DRAEM,
Fragata 1984).
Novas Dependências

QUADRO 9: Receitas e despesas por categorias fundiárias: Aguiar, 1985 (em contos)

Legenda: ha = hectares; * responderam só três, porque um dos quatro moradores sem terra não forneceu dados.
Fonte: ILA, 1984-1985.

O coeficiente de correlação (r=0.48) entre as receitas agrícolas e não agrícolas em Aguiar não permite
extrapolar conclusões a nível geral. Em todo caso, quanto à relação entre categorias fundiárias e os dois
tipos de rendimentos (agrícolas e não agrícolas) foi possível apurar, com sete graus de liberdade, um valor
de X2=18795. Tal resultado revela que os tipos quantitativos de rendimentos dependem, pelo menos em
parte, dos tipos de categorias fundiárias. Do mesmo modo, os valores relativos às despesas (X2=1024), quer
no consumo doméstico, quer na exploração, dependem igualmente das respectivas categorias fundiárias, o
que é aliás comprovado pelo coeficiente de r=0.90. Por fim, quanto à relação entre categorias fundiárias e a
média de receitas assim como a média de gastos por casa, constata-se também uma significativa relação de
dependência de X2=250. Além disso, observa-se um elevado coeficiente de correlação de r=0.94 entre a
média de rendimentos e a média de despesas por casa.

Para além das economias individuais no seio da cada casa, teve-se em conta o rendimento global da
família, somando as contribuições parciais dos membros de cada casa. Do quadro 9 visualiza-se uma média
progressiva de rendimentos familiares por categoria fundiária, sobressaindo receitas muito baixas nos grupos
(quase) despossuídos, exíguas ou razoáveis nos intermédios e relativamente desafogadas nas casas de
lavradores e proprietários. Por outro lado, enquanto os grupos de jornaleiros, operários e pequenos
camponeses, inseridos nas categorias entre 0 e 2 hectares, obtêm as suas receitas mais do exterior que do
interior das explorações, os demais extraem-nas básica ou predominantemente da agricultura.
No concernente aos gastos torna-se igualmente evidente que mais que os lavradores e camponeses auto-
suficientes são os grupos de jornaleiros e camponeses parciais-artesãos e operários os que se abastecem mais
de produtos exteriores para o consumo doméstico usual e, até, devido ao seu grande número, para a
exploração. O dinheiro, que antes de 1965 era raro e preenchia uma função excepcional na troca,
generalizou-se nas permutas ocorridas não só no exterior como no seio de cada aldeia.
Embora as médias de poupanças não discriminem as casas com saldos positivos das que apresentem
saldos negativos, importa contudo sublinhar que, em 1985, avaliadas na sua globalidade, todas as categorias
conseguiram economizar, sobressaindo as do topo com médias superiores de aforro. Sem levar agora em
linha de conta a provável deterioração dos rendimentos agrícolas de vários grupos rurais de 1985 até hoje, o
certo é que, comparando as condições sócio-económicas em 1985 com as anteriores às dos anos sessenta,
predomina(va) nos moradores de ambas as aldeias uma convicção de melhoria generalizada: «Hoje vive-se
melhor que antes. Lavro a terra com menos esforço, há mais coisas e mais dinheiro para as comprar.
Embora pequenas, há pensões para todos. Pior estão os da cidade que têm que comprar tudo,
inclusivamente a água» (A13).

134
Comunidades e Recursos: Continuidade e Mudança

Paralelamente à melhoria de condições de vida, os resultados evidenciam uma subalternização das


actividades e dos rendimentos agro-pecuários em favor das receitas extra-agrícolas (salários, remessas de
emigrantes, pensões), em especial nas categorias com menos recursos fundiários, conclusão igualmente
assinalada por Goldey (1983:1011), Ferrão (1984:225) e Geraldes (1987:154). Por fim, importa referir que
as oportunidades de obter dinheiro e, com este, o abastecimento de novos produtos da economia envolvente
comportam consigo a introdução de novos hábitos e estilos de vida que contrariam a tradicional sobriedade
camponesa.

*
**
Perante as transformações ocorridas nas três últimas décadas, designadamente um aumento de
produtividade fundiária e de trabalho por um acréscimo de capital tecnológico (químico e mecânico), poder-
se-á concluir que, em 1985, os grupos domésticos de Aguiar denotavam, se bem que de modo incipiente,
não só uma maior capacidade de adaptação no seu sistema policultural como um aumento de produção agro-
pecuária ederivados, sobretudo o leite.

Casa de lavrador, Aguiar (foto 19)


Novas Dependências

Uma camponesa e a sua vaca, Aguiar (foto 20)

Quanto aos moradores de Lindoso, dada a redução da criação de gado e o aumento da florestação estatal
(gráfico 32 e anexo 21), eles detinham e detêm não só reduzidas possibilidades de reconversão agrícola
interna como, pelo menos para já, limitadas formas de pluriactividade envolvente numa região do interior.
Ambas as colectividades, embora mantenham como dominante a economia camponesa, apresentam hoje
características resultantes de vários tipos de economia. Se em Aguiar opera uma economia camponesa, que,
na actual fase de transição, assimila ao mesmo tempo que é absorvida por determinados elementos da
economia de mercado, em Lindoso a economia agrícola campesina articula-se com traços de uma economia
pastoril, cada vez mais enlaçada nas malhas do poder camarário e central (12:2, 12:3).

136
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

CAPÍTULO 7

CONTROLO SOBRE RECURSOS E GRUPOS SOCIAIS

Se entre a maior parte dos estudiosos das comunidades agro-camponesas em Portugal a desigualdade
social tem sido reconhecida corno urna evidência de ontem e de hoje, tal não tem sido sempre pacífico,
havendo mesmo quem tenha feito problemáticas projecções históricas de igualitarismo, corno vimos em 5.
Ainda nas últimas décadas tem havido autores que, afirmando a ausência de classes nas colectividades por si
estudadas, associam a origem do fenómeno da incipiente estratificação social ao crescimento demográfico,
ao aumento de riqueza e ao enfraquecimento da família troncal tradicional (cf. Dias 1984:80 ss), evolução
esta que teria provocado a formação de estratos sociais em comunidades anteriormente igualitárias1. Ora,
semelhante tese, além de não contextualizar a passagem para as sociedades estratificadas, não explica como
e por que é que ela surge e se consolida nem tem em conta que os dados históricos relativos a colectividades
agrárias antigas apontam igualmente para a existência de estratificação social e para o predomínio de
famílias nucleares2.
Numa outra perspectiva autores corno Cabral (1989:45, 56 ss) e, de certo modo, Brettel (1991:23 ss, 47
ss) procuram conciliar a diferenciação social com urna relativahomogeneidade cultural a partir de um ethos
ou «protótipo cultural básico» que, como tal, estaria presente em diversos grupos sociais e seria inerente às
variadas interacções fenoménicas e representações simbólicas dos diversos tipos de actores sociais.
Uma abordagem bastante diferente das mencionadas e, em particular, da funcionalista é-nos fornecida,
entre outros, por O'Neill (1984), Pinto (1985), Almeida (1986), Geraldes (1987), Wall (1992)e nós próprios
(Silva e Van Toor 1982, Silva 1987). Desconstruindo a pretensa igualdade comunitária e/ou salientando a
distribuição dos actores sociais nos diferenciados lugares de classe, estes autores analisam as respectivas
colectividades na base dos diversos tipos de famílias, grupos sociais e suas relações de identidade e/ou

1
Também Guerreiro (1982:66, 187 ss), embora não projecte para o passado o chamado igualitarismo social como Dias, salienta
que, por exemplo, em Pitões das Júnias, se, por um lado, se esbatem as diferenças entre pobres e ricos, por outro, acentuam-se as
desigualdades sociais, a par de um crescente espírito individualista, mas, diferentemente da explicação de Dias, devido às
influências do capitalismo.
2
Cada situação deverá ser objecto de análise concreta. A estratificação social não implica, para certos autores como Mendras
(1976:80 ss), a negação absoluta de eventuais traços de homogeneidade cultural. Por seu turno, Geertz (1963:6, 97 ss), no seu
estudo da singular situação de Java, afirma ter constatado uma homogeneidade inclusivamente social para cuja persistência
aduziu, aliás numa perspectiva não funcionalista, a necessidade de sobrevivência por razões de ordem ecológico-cultural. Cf.,
todavia, justamente quanto à sociedade relativamente homogénea de Java segundo Geertz, a crítica de Adas (1981:226) e
sobretudo de J. Alexander e P. Alexander (1982:598 ss). Cf. também crítica de Gilmore (1980:5,51 ss) a autores que tenderam a
acentuar uma homogeneidade sócio-cultural em povoações de Andaluzia e de Castela, entre os quais Pitt-Rivers (1961:76) e
Freeman (1970:5 ss). Sobre o mito da igualdade em sociedades tribais do Médio Oriente, cf. Black 1972:616 ss.
A tese de Dias (1984:80 ss) sobre a evolução da família extensa para a nuclear coincide com os pressupostos de Maine (1880:168,
190 ss). Contrariamente à posição de Dias (1964:90 ss, 1984:19 ss), estudos de diversos antropólogos e sobretudo historiadores
demógrafos testemunham e demonstram, por um lado, a estratificação intracomunitária e, por outro, a persistência e/ou a
reactivação de famílias simples (cf., entre outros, Aries 1988:243 ss e, sobre Portugal, Rowland 1981:231 ss, O'Neill 1984:92 ss.
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

contradição.

Das estratégias dos grupos domésticos de Lindoso e Aguiar ressalta uma preocupação básica, cujo
móbil imperativo se traduz na conservação e/ou no aumento de bens fundiários e demais recursos que lhes
assegurem, ora a sobrevivência e a segurança, ora a melhoria da sua posição no xadrez social da aldeia. Nem
os actores sociais operam todavia no vazio nem os seus objectivos estratégicos se tornam miraculosamente
realizáveis a partir das suas intenções, se bem que a margem da componente cognitivo-volitiva na acção
social não seja, de modo algum, despicienda. O pano de fundo explicativo da acção dos diversos grupos
sociais, bem como da (inter)classificação social de cada família ou indivíduo, em particular, reside na
imbricação dinâmica entre os factores situacionalmente dados e a dimensão interactiva dos sujeitos-actores.
As suas estratégias, ora convergentes, ora divergentes, aferem-se, em última instância, pelo acesso e pelo
grau de controlo sobre os recursos existentes nas diferentes fases do ciclo de vida familiar e do próprio
desenvolvimento das colectividades.
Uma análise sincrónica da desigualdade social em Lindoso e em Aguiar quanto ao poder de disposição e
à repartição dos recursos requer a subsunção das famílias de ambas as colectividades em grupos sociais. Por
outro lado, para perceber que tipo de relações se entabulam entre os diversos grupos domésticos importa,na
medida do possível, recriar analiticamente os processos de (re)produção e de transformação das unidades
domésticas nos diversos lugares sociais da aldeia. As posições dos actores sociais estão indissoluvelmente
ligadas aos processos de conservação-dissolução, de mobilidade ora ascendente ora descendente, processos
esses inerentes ao desenvolvimento articulado dos tipos de economia presentes em determinada formação
social. É a partir desta dinâmica que se toma possível compreender a eficácia ou a ineficácia das diversas
estratégias construídas e aplicadas pelos moradores de ambas as aldeias.
Nesta perspectiva a medida da posse da terra, enquanto principal critério do volume de riqueza material,
tem constituído o elemento nuclear que, na arena das demarcações interfamiliares, condiciona o lugar de
cada casa na pirâmide social das referidas aldeias.
Porém, os grupos sociais distinguem-se não só pelo tipo de casa e pelo quantitativo de terra, como também
pelo desigual grau de controlo directo e/ou indirecto sobre outros recursos, quer materiais (água, gado,
alfaias), quer humano-cognitivos e técnicos (força de trabalho, perícias artesanais, saberes sobre o ritual e o
sagrado, conhecimentos e qualificações traduzidas em diplomas, graus e títulos), quer ainda especificamente
estratégico-organizativos (posição nos sistemas de entreajuda ou no mercado matrimonial, aquisição de
recursos por herança ou emigração ou ainda obtenção de lugares na organização política local ou nos
sistemas simbólicos nomeadamente religiosos3.
A análise de tipo pluricausal aqui advogada, se não se compadece com abordagens de tipo
unidimensional, tão pouco nos deve todavia fazer resvalar para um eclecticismo estéril. Não deixando de
assinalar a relativa autonomia de cada um dos níveis de análise referidos em 2:5 importa, na mira de
estabelecer os critérios delimitativos da diferenciação dos grupos sociais, assumir a seguinte ordem de
prioridade analítica: sócio-estrutural, organizativo e interaccional.
Tendo por base este filão analítico e os referidos critérios daí resultantes, procurarei neste capítulo
oferecer uma imagem da distribuição de recursos materiais (terra, gado, equipamento) por categorias sociais,
fornecendo assim as bases que permitirão compreender tanto a natureza e a dinâmica da competitividade
interfamiliar e sua respectiva (re)classificação social pela via da posse e do controlo de recursos como as
próprias tensões interfamiliares e intradomésticas, como evidenciarei na publicação subsequente.

7.1. Grupos domésticos e distribuição de recursos

3
Cf. Bourdieu 1979: 128 ss. Sobre o conceito de recursos directos e indirectos com uma sistemática e diferenciada classificação
dos mesmos, cf. Bader e Benschop (1988: 129-163). Se o conceito de recursos nestes autores convergem grosso modo com o de
capital utilizado por Bourdieu e aplicado nos diversos ca_mpos (económico, social, político, cultural), Bader e Benschop
(1988:90-91, 304) ampliam, corrigem e refinam contudo a esquemática divisão de Bourdieu, evitando uma concepção demasiado
lata de capitaL
138
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

Segundo Goody (1972:106 ss), Hammel e Laslett (1974:76 ss), entre outros, um grupo doméstico
define-se em de três critérios latamente entendidos: funcional (núcleo de actividades associadas em base
familiar), espacial (co-residêncía) e parental (pela via reprodutiva). Assim, partindo desta definição mínima,
poder-se-à assumir como grupo doméstico todo o agrupamento humano que, habitando sob um tecto
comum, produz e consome no âmbito da economia familiar e provê à sua própria reprodução biológica e/ou
social. Ainda de acordo com os critérios referidos, há, no entanto, que distinguir previamente os diversos
tipos de grupos domésticos em Lindoso e em Aguiar.
Tendo como suporte empírico dados dos Róis da Desobriga e do inquérito local foi possível estabelecer
o gráfico 6 que, embora limitado do ponto de vista do desenvolvimento dos ciclos de vida familiar, nos
fornece uma imagem dos padrões de composição dos agregados familiares radiografados em diferentes
momentos pelo pároco.
Os dados, inseridos mais detalhadamente de acordo com a diversificada gama da classificação transcrita
da tipologia de Laslett (1972:31), apontam para um processo de relativa estabilidade de padrões, bem como
de plasticidade de formas de grupos domésticos (desde a não negligenciável categoria de isolados sobretudo
até 1930, passando pelas díades pai-filho(s) e sobretudo mãe-filho(s), até aos agregados compostos) e, em
especial, para uma elevada taxa de famílias simples: entre 59.6 e 67.8%. No entanto e nasequência de outros
estudos levados a cabo em aldeias do noroeste4, comparando a composição dos lares de Aguiar com as
doutras constelações demográficas de comunidades na Europa central e nórdica, verifica-se também que,
paralelamente ao predomínio das famílias nucleares, é ainda notável o peso das famílias complexas: entre
15.5% em 1880 e 31.6% em 1955, embora baixando a 24.3% em 1985.

GRÁFICO 6: Composição dos grupos domésticos: Aguiar (1880-1985) (em %)

Fonte: *Róis de Desobriga, Registos Paroquiais de Aguiar, e ** ILA, 1984-85.

Quanto a Lindoso, apenas foi possível determinar a seguinte composição dos grupos domésticos em 1985:
7.3% isolados, 0.8% não conjugais, 70.2% simples e 21.7% compostos (anexo 10).

4
Entre os quais os realizados por Rowland (1981:199-242 e 1984:17 ss), J. A. Nunes (1986:48-68) e J. A. Nunes e Feijó
(1986:249-267), Cabral (1989:80 ss), Brettel (1991:167 ss), Wall (1992:163 ss). Para o centro do país, cf. Lourenço (1991:184).
Com um maior peso de agregados compostos (31.6%) e isolados (22%), cf., para a transmontana Fontelas, O' Neíll (1984:291 ss).
O peso da família extensa em Portugal, embora ideologicamente empolado, foi assinalado por Descamps (1935:9 ss) como um dos
tipos mais notórios no Portugal rural, pelo menos até à década de trinta. Para comparação e contraste com os padrões familiares da
Europa do norte e do noroeste, por um lado e, por outro, com os da Europa central e do leste, cf. Laslett 1972, Mitterauer e Sieder
1982:27-32.
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

Os grupos domésticos, constituindo-se em entidades co-residenciais e plurifuncionais, apresentam


todavia diversos graus de estabilidade, a que não serão estranhos os tipos de ocupação dos seus respectivos
membros e o volume dos seus recursos. Ou seja, a composição e a caracterização dos grupos domésticos,
como veremos na publicação suplementar e como já o salientaram Goody (1976:95 ss), Bertaux (1978:68
ss), Crummet (1985:363 ss), Solinas (1987:70) e Wall (1992: 167 ss ), são co-estruturados pela classe social
de origem e/ou de pertença.
Ao avaliar riqueza em freguesias como Aguiar e, particularmente, em aldeias de montanha como
Lindoso não é pertinente nem curial transferir para o seu interior apenas critérios objectivos de
mensurabilidade aplicáveis em unidades macroeconómicas. Se a apreciação e a (inter)classificação
comparativa, por parte dos moradores, quanto à posse de diversos tipos de recursos, não constituir o critério
decisivo para a avaliação da sua posição interna, elas deverão contudo relevar e ser tidas em conta.
Partilhando com Bourdieu (1980:233 ss) do princípio de que a dimensão da percepção (inter)subjetiva
também faz parte da realidade objectiva, afigura-se-me que é na conjugação dos dois modos de medida –
objectivo e subjectivo –que se poderá destilar a via metodológica ajustada de forma a evitar quer um
pseudo-objectivismo, por um lado, quer um ultra-subjectivismo impressionista, por outro. Se, ao longo do
trabalho, são tidos em conta estes dois tipos de critérios, neste capítulo salientar-se-ão sobretudo os factores
de carácter sócio-económico. Mais, no concernente à classificação dos grupos sociais, além do volume de
rendimentos (6:2), será justamente o tipo e o quantitativo de recursos materiais, em especial, o volume de
terra, gado e equipamento, que constituirá o critério fundamental, o que nos permite enumerar cinco
conjuntos sociais: (a) proprietários, (b) lavradores-camponeses, a subdividir, por sua vez, em abastados,
médios e pequenos, (c) camponeses parciais(d) jornaleiros e (e) criados(as).
Em relação a outras categorias sociais, nomeadamente artesãos e merceeiros, operários e empregados,
os correspondentes grupos domésticos, desde que possuidores de recursos fundiários, são, nesta perspectiva,
mormente inseridos entre os camponeses parciais, ainda que sem prejuízo da especificidade e da autonomia
de seus lugares e funções dentro ou fora da aldeia.

Socorrendo-me da metodologia e das fontes de informação referidas em 1:4, em especial as matrizes


prediais5, foi possível apurar os resultados que o quadro 10 evidencia relativamente à distribuição de
recursos fundiários pelas famílias de Lindoso e de Aguiar.
Analisando o coeficiente de correlação entre as categorias fundiárias e o número de hectares possuídos
por categoria, encontrou-se o valor de r=-0.025 para Lindoso e r=0.24 para Aguiar. Se em Lindoso o valor
negativo, ainda que próximo do zero, não permite extrair qualquer relação significativa, já contudo em
Aguiar se vislumbra uma ligeira correlação positiva em que à subida nas categorias fundiárias corresponde
logicamente um aumento de hectares possuídos.
Com efeito, em relação a Lindoso, à primeira vista, mais que de riqueza sobressai uma imagem do que
Geertz (1963:97) denomina uma "pobreza partilhada" na medida em que, salvo um topo mais desafogado
com 37.1 % da terra distribuída por 6.4% das casas, as categorias intermédias da pirâmide (69.4% das casas)
dividem entre si 62% da terra e a base da pirâmide, composta de jornaleiros, operários e outrascamadas
despossuídas, sendo um tanto mais dilatada (24.2%), apenas possui 0.9% do total da terra6.

5
Salvo os processos de partilhas litigiosos e os livremente comunicados pelos herdeiros, os títulos das matrizes estavam,
particularmente em Lindoso, ainda registados em nome dos progenitores ou antepassados dos actuais possuidores, o que obrigou a
uma actualização dos mesmos com base na regra da partilha igual, praticada em Lindoso em base oral, e, amiúde, à margem da
Repartição de Finanças. Para Aguiar, uma vez transcritos e somados os valores das velhas matrizes por proprietário em 1984,
pude contudo socorrer-me da sua posterior actualização por uma equipa técnica da Repartição de Finanças em 1986, cuja cópia
não incorporou contudo pequenas correcções na sequência de eventuais reclamações dos interessados.
6
As categorias (0) e (1) poderão resultar percentualmente sobreavaliadas na medida em que estão nelas incluídos alguns casais
jovens, filhos de lavradores que, embora juridicamente não possuidores actuais, são virtualmente, senão médios, pelos menos
pequenos lavradores-camponeses.
140
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

QUADRO 10: Distribuição de recursos: terra

Legenda: * Abarca área de terrenos fora da aldeia/freguesia; ha = hectares; cat = categoria. Grosso modo, às diversas
categorias fundiárias corresponderiam os seguintes grupos sociais: (0) e (1) jornaleiros, artesãos, operários e afins; (2) e (3)
camponeses parciais, artesãos e merceeiros; (4) pequenos camponeses-lavradores; (5) médios lavradores; (6) abastados
lavradores-proprietários; (7) proprietários.
Fonte: ILL e ILA, 1984-1985, Livros de Matrizes Prediais de Lindoso e de Aguiar, Repartição de Finanças de Ponte da
Barca e de Barcelos, 1986.

Em Aguiar, os estratos intermédios, compostos por pequenos lavradores auto-suficientes e sobretudo


camponeses parciais, embora predominando largamente (71%), retêm 39.3% da área total. Por outro lado, se
a base piramidal, preenchida por jornaleiros e outros moradores ainda não herdeiros (15.1%) e o vértice,
agregando lavradores e proprietários (13.9%), constituem categorias sociais minoritárias, elas detêm todavia
fatias de terra de sinal contrário: os primeiros com 0.2% de terra e os segundos com 60.5%. Daí que,
contrariamente a posições que, argumentando em base ecológica ou cultural-simbólica, tendem a banalizar
ou diluir as diferenças económico-sociais intracornunitárias, tanto em Lindoso como sobretudo em Aguiar, é
inegável, embora de forma gradativa, a desigualdade na posse da terra. Enquanto 93.6% dos grupos
domésticos de Lindoso e 86.1% dos de Aguiar possuem respectivarnente 62.9% e 39.5% de terra, lavradores
e proprietários, somando 6.4% e 13.9% das casas, detêm respectivamente 37.1 % e 60.5%.
Comparando, ainda em base percentual, estes resultados da distribuição da terra em ambas as aldeias
com os dados do Recenseamento Agrícola ao Continente de 1979 e os padrões existentes nos respectivos
concelhos e região7, conclui-se que as médias de1.9 hectares por exploração para Lindoso e de 2.7 para
Aguiar não se afastam e inclusivamente denotam tratar-se de réplicas aproximadas das respectivas médias
concelhias e regional: 2.4 hectares para Barcelos, 1.2 para Ponte da Barca e 1.6 para o Vale do Lima
(Mourão e Brito 1983:42).

Inerente à desigualdade na posse da terra é a distribuição das rotações das águas em que o tempo de
água destinado a cada casa é proporcional à superfície de terra cultivável por cada família. O direito de água
segue o do prédio e, nesse sentido, quem detenha mais prédios ou área usufrui, consequentemente, de mais
água, sendo de registar, em Aguiar, as prerrogativas de algumas casas de proprietários e lavradores

7
Assim, na freguesia do Lindoso, enquanto casas com menos de um hectare, representando 91.3%, detêm 59.9% da área, as
demais explorações com mais de um hectare somam no total 40.1% da área. Em Aguiar, embora de modo não tão extremado,
enquanto casas com menos de dois hectares, constituindo 57.6% do total, possuem 33% da área total, as explorações com mais de
dois hectares, formando 42.4%, detêm 67% da área total (cf. anexo 3). Em Barcelos, 71 % das explorações possuem menos de
dois hectares e, a nível do distrito de Braga, a agricultura familiar abarca 90% das explorações, 82% da área total e 87%do VAB
(valor acrescentado bruto) (Baptista et al. 1989:19). A nível de Entre Douro e Minho, as explorações com menos de dez hectares,
além de contribuir com 81.5% do VAB, compreendem 98.2% do total e dispõem de 85.4% da área agrícola e 84.8% da área
irrigada (RAC 1979).
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

abastados na gestão de certos giros de água (v.g. passal da Igreja, cujo nome coincide aliás com o da
referida casa). Tal diferenciação não é certamente de hoje mas remonta ao passado, tendo sido possível, a
partir de documentos datados da década de trinta, elaborar os seguintes gráficos:

GRÁFICOS 7 e 8: Distribuição de recursos: águas

* carro de terra: unidade de medida fundiária em Lindoso (1 = ± 90 m2). A cada carro de terra são destinados quinze
minutos de água e, portanto, a cada quatro carros de terra corresponde uma hora de água.
Fonte: Livro 6 do Rol de Águas de Lindoso (AJFL), 1938; três listas de regantes de Aguiar cedidas pela casa A49, 1934-36.

A desigualdade pré-estabelecida, a nível da posse da terra, resulta igualmente visível na distribuição da


água. Os dados do Rol de Águas e das referidas listas mostram que, por exemplo, em Aguiar, nos anos trinta,
para além de 15.9% não regantes, 66.6% dos regantes utilizavam 10 horas ou menos de água cada um, 30%
usufruíam entre 11 e 50 e os restantes 3.3% entre 51 e 100 ou mais horas, esquema este que, em grande
parte, se tem reproduzido até ao presente.
Um outro tipo de recursos económicos básicos dos grupos domésticos de Lindoso e de Aguiar consiste
na posse de gado, sobre cuja distribuição o seguinte quadro nos oferece a seguinte imagem:

QUADRO 11: Distribuição de recursos: gado (vacas)

142
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Também no concernente à posse de gado verificam-se determinados graus de desigualdade entre os


diversos grupos de moradores. Calculados os coeficientes de correlação entre as categorias fundiárias e o
número de cabeças de gado bovino apuraram-se, com um valor de prova igual a zero, r=0.59 para Lindoso e
r=0.56 para Aguiar. Em ambos os casos, verifica-se, portanto, uma correlação positiva, ou seja, o número de
cabeças de gado aumenta em consonância com o maior volume de terra possuída.
Se bem que 34.4% e 14.8% das casas, sendo e sem familiares directos que cuidem do gado, não o
possuem mais por impossibilidade física que económica, é vísivel que em Lindoso e em Aguiar, enquanto
42.8% e 62.6% respectivamente das casas com gado possuem, de modo geral, uma ou duas cabeças de gado
bovino, só 15.8% e 5.3% possuem cinco ou mais.
Ainda relativamente ao efectivo de bovino, convém acrescentar que, além das vacas, enquanto entre as
124 casas de Lindoso há cinco, quatro e um moradores que possuem respectivamente um, dois e cinco bois,
em Aguiar, salvo uma casa que cria touros e uma outra que mantém um boi para cobrição, as demais não
possuem bois.
Quanto ao gado caprino e lanígero, se em Aguiar no passado havia vários casais com rebanho de
ovelhas, em 1985 apenas uma jornaleira pobre (A8) possuía três ovelhas. Já, porém, em Lindoso o gado
miúdo caprino e ovino constituía ainda em 1985 uma componente importante de subsistência e/ou ganho
para trinta e cinco casas (29.4%).
Dada a utilidade não tanto em termos de venda como de satisfação de necessidades de autoconsumo,
abstraindo de 1.6% e 2% das casas sem informação, respectivamente em Lindoso e em Aguiar, 54.9% e
38.9% das famílias possuíam em 1985 um e 0.8% e 9.4% dois ou mais porcos. E, quanto a animais de
capoeira, 55.7% e 49.7% possuíam entre uma a dez galinhas, 9% e 34.9% entre onze a cinquenta e, em
Lindoso, 0.8% mais de cinquenta.
Tendo em conta as categorias de explorações e o respectivo contingente pecuário, verifica-se que quem
detém, em termos globais, a maior parte do efectivo pecuário são as (mui) pequenas explorações, aliás
amplamente maioritárias em número. Embora o cálculo da média de cabeças de gado por categorias de
exploração possa distorcer um tanto o número de cabeças de gado efectivamente possuído por cada família,
em proporção são, porém, as explorações familiares relativamente auto-suficientes aquelas que, em termos
médios, mais elevado quantitativo de cabeças de gado detêm: em Lindoso 5.5 de gado bovino, 8 de ovino,
20 de caprino, 2 de suíno e, em Aguiar, desde 2.3 a 4.5 de bovino e 1 a 2 de suíno (RAC, 1979).

A distribuição do volume e do tipo de equipamento agrícola constitui um outro indicador de


desigualdade no controlo de recursos. Se (quase) todas as casas possuíam e possuem, de acordo com as suas
necessidades, os instrumentos mais simples (enxada, foice, ancinho, cestos, baldes), é todavia susceptível de
aferir-se pelo seguinte quadro uma desigual distribuição no tipo e na quantidade de bens de equípamento:
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

QUADRO 12: Equipamento agrícola (Lindoso)

Legenda: (a) arado de madeira e/ou ferro; (b) carro de vacas; (c) grade); (d) tractor; (e) pulverizador mecânico; (f)
espigueiro: (g) lagar/ adega; (h) pulverizador manual; (i) motosserra; (j) moinho eléctrico; (l) prensa; (m) vasilha.
Fonte: 1LA, 1984-1985.

QUADRO 13: Equipamento agrícola (Aguiar)

Legenda: (a) arado de madeira e/ou ferro; (b) carro de vacas; (c) grade); (d) tractor; (e) pulverizador mecânico; (f) espigueiro: (g)
lagar/ adega; (h) pulverizador manual; (i) motosserra; (j) moinho eléctrico; (l) prensa; (m) vasilha.
Fonte: ILA, 1984-1985.

Dos quadros 12 e 13 resulta que, enquanto se verifica um elevado índice de posse em equipamento
tradicionalmente indispensável aos lavores agrícolas, tais como o arado de madeira e/ou ferro (59.7% e
40.1%), o carro de vacas (41.9% e 46.1%) ou outros tais como o pulverizador manual, a adega e o respectivo
vasilhame (respectivamente 55.6%, 62.9% e 68.5% em Lindoso e 36.2%, 51.3% e 78.9% em Aguiar), nos
demais instrumentos, sobretudo mecânicos, a taxa baixa para 36% ou menos. Por outro lado, enquanto nos
escalões inferiores a 2 hectares os índices de posse dos respectivos instrumentos agrícolas oscilam entre 0%
e 30%, tais índices vão aumentando no escalão de 2-5 hectares e, nos superiores a 5 hectares, o índice do
equipamento tradicional e mecânico simples (pulverizador, motosserra) move-se entre 70 a 100%. Quanto
ao tractor, enquanto só 4.5% das casas com menos de 2 hectares possuem tractor, com área superior

144
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

possuem-no 36.5%. Debulhadoras e motobombas são exclusivo apanágio de uma minoria de lavradores-
proprietários na proporção de 0.8% e 3.9% quanto às primeiras e 0.8% e 11.2% quanto às segundas.

Uma vez que à titularidade jurídica sobre a terra nem sempre corresponde correlativamente a posse e a
utilização efectivas, convém, ainda que sumariamente, dar conta das formas de exploração da terra: própria,
arrendada ou mista. Se, em regra, a forma cada vez mais corrente é a da exploração própria e directa, a
indirecta pela via do arrendamento, combinado ou não com a própria, tem constituído e ainda constitui para
uma porção não desprezível de casas uma das fontes condicionantes de sobrevivência:

QUADRO 14: Terras arrendadas por categorias fundiárias

Legenda: * 1 carro de terra = ± 90 m2; ha = hectares; ct = carro de terra; t = terras.


Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

O coeficiente de correlação entre categorias fundiárias e carros de terra ou número de terras arrendadas
acusa um valor de r=-0.18 para Lindoso e r=-0.17 para Aguiar, com um valor de prova respectivamente de
5.5% e 3.7%. Há, portanto, uma relação negativa,ou seja, quanto menos elevada seja a categoria fundiária,
mais carros de terra ou terras são tomadas de arrendamento e viceversa.
Do quadro 14 se infere que, embora sob modalidades e motivações diversas, 23.6% dos grupos
domésticos apurados em Lindoso e 41.1 % dos de Aguiar, além de terreno próprio, tomam de arrendamento
ou cultivam terra de outras casas, conforme as suas necessidades ou as ofertas de senhorios e parentes,
índices um pouco superiores aos declarados oficialmente em relação à freguesia de Lindoso (10.7%) e algo
inferiores aos de Aguiar (44%). Correlativamente são, em regra, lavradores ou emigrantes sem familiares
directos residentes em sua casa que, por não possuírem mão-de-obra familiar suficiente e/ou capaz, dão total
ou parcialmente em arrendamento as suas terras: uns cedendo-as a um só caseiro, outros distribuindo-as por
diversos.
Quanto a terreno bravio, se, em Aguiar, o contrato ou acordo verbal inclui, em regra, a possibilidade de
roçar mato em monte do senhorio, em Lindoso, dada a existência de monte baldio, não se torna premente
arrendá-lo, tal acontecendo apenas em 4.2% das casas e em pequenas quantidades, nomeadamente entre 5 e
30 carros de mato. E vice-versa, do total de casas só 11.6% deram monte em arrendamento.
Ainda de acordo com o inquérito local, ao lado de terrenos gratuitamente cedidos em arrendamento por
baixo preço entre familiares sobretudo por de emigrantes em Lindoso e 40.4% em Aguiar), 48.3% e 43.3%
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

dos contratos, aliás por norma verbais, verificam-se entre não-familiares, ora residentes ora emigrantes.

Antes de 1970, a margem de negociação sobre o montante da renda, por parte dos caseiros, era mínima
ou inexistente na medida em que, sendo escassa a oferta e abundante a procura da terra, os rendeiros eram
coagidos a aceitar as condições impostas, sob pena de serem despejados e substituídos por outros
candidatos. O surto emigratório, com o subsequente excedente de terreno vago, viria mitigar, de certo modo,
a desigualdade no usufruto da terra e permitir alterar, em favor dos caseiros, a natureza e o montante da
renda. Assim, em Aguiar, a renda, além de, em regra, ser paga em dinheiro, passaria de 2/3 em vinho e
azeite e 1/2 em cereal para respectivamente 1/2 e 1/3 ou 1/4 e, em Lindoso, sobretudo nos terrenos menos
férteis, os caseiros ficariam dispensados de pagar renda.
Apresentados os resultados sobre a distribuição de determinados recursos (terra, gado, equipamento
agrícola) entre as famílias de Lindoso e de Aguiar, poder-se-á dizer, em termos gerais, que o padrão
dominante em ambas as colectividades, sobretudo em Aguiar, é o de casas com um mínimo de recursos
agro-pastoris ou pecuários, acima do qual se erguem as de alguns lavradores abastados e proprietários e
abaixo do qual as poucas desprovidas desse mínimo retiram da agricultura pouco ou nenhum rendimento.

7.2. Grupos sociais

Embora os diversos grupos sociais se venham definindo pela posse e pela distribuição dos recursos
existentes, convém, porém, precisar os contomos desta configuração com o fim de caracterizá-los e tornar
mais perceptíveis os padrões das relações sociais entre si e para o exterior.

7.2.1. Proprietários

Em sentido lato e jurídico, o conceito de proprietário abrangeria a maior parte dos habitantes.
Definindo, porém, por proprietários fundiários os que, não trabalhando directamente a terra, auferem desta
rendimentos, quer pelo arrendamento, quer pela exploração directa da força de trabalho alheia, verifica-se
que nesta acepção não existem em Lindoso proprietários e, em Aguiar, existem apenas dois.
Embora recém deslocado para uma freguesia vizinha, o primeiro proprietário originário de Aguiar é
Félix, um dos descendentes da família Campela, que, em 1980, se tornara o sucessor principal do irmão, o
padre Bento Campela. O património deste compreendia 12.7 hectares de terreno regadio e 15.1 hectares de
bravio, totalizando 27.8 hectares, dos quais cerca de três quartos nas freguesias confinantes de Quintiães,
Aborim e sobretudo Cossourado, onde se situava a sua quinta da Gândara com seis hectares de regadio. A
sucessão desta valiosa herança pelo padre Bento Campela fora já ela própria o resultado duma velha
estratégia por parte da referida família Campela que, fazendo ordenar como sacerdote, em 1955, um dos
seus filhos, habilitá-lo-ia automaticamente à herança do tio-padre Arcanjo, aliás de acordo com uma
convenção estabelecida por tradição.
Além de mobilizar esporadicamente membros de grupos domésticos de pequenos lavradores de Aguiar
para determinadas empreitadas ou tarefas específicas como, por exemplo, a poda, o eminente proprietário
padre Campela recrutava força de trabalho de mais de duas dezenas de famílias de Aguiar nomeadamente
camponeses pobres e artesãos, por um lado, e, sobretudo, jornaleiros eventuais, por outro. Se a prestação
espontânea e «gratuita» de trabalho, por parte dos primeiros, era realizada em troca de determinados favores
ou num contexto de promoção familiar por conexão eclesiástica, o alistamento dos segundos constituía para
estes uma das poucas fontes de sobrevivência com algum grau de segurança. Mais, a casa Campela era, em
regra, objecto de cuidada estima e preferência sobre as demais casas graças a uma série de circunstâncias:
além de padre e, eventualmente, patrono em casuais vicissitudes ou dificuldades das suas vidas, o padre
Bento oferecia mais esmolas e dias de trabalho, pagava tanto ou mais que os demais proprietários-
lavradores, a que acrescia o facto de a comida, comparada com a de outras casas anfitriãs, ser sensivelmente
melhorada, tal decorrendo do e correspondendo ao seu mais elevado prestígio local.

146
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

Com a súbita morte do padre Bento Campela em 1980, por acidente de viação, dada a desistência da
carreira sacerdotal por parte de um seu sobrinho e potencial candidato à herança, inicia-se um conturbado
processo de sucessão. Seu irmão mais novo, Félix, embora sem conseguir apoderar-se da totalidade da
herança devido à oposição de um outro irmão casado, manter-se-á contudo à frente da quinta, possuindo
hoje no total 21.8 hectares. Com a activa participação da filha e do genro e a colaboração dalguns irmãos, o
novo sucessor-proprietário tem vindo a mecanizar e modernizar a exploração, ao ponto de, salvo no período
de sementeiras e colheitas, não necessitar normalmente de mais que um a dois assalariados.
O titular jurídico da segunda casa proprietária é a Igreja com um passal de cerca de 16 hectares de
terra8, cujo usufrutuário é o pároco. Para os moradores de Aguiar e, em especial para os caseiros do passal,
mais que a superior hierarquia eclesiástica, é todavia o pároco quem detém e sobretudo detinha o poder de
gestão sobre este património. Além da possibilidade de dispensar do pagamento de primícias e redistribuir
certos bens de carácter material ou simbólico, era ao pároco quem competia seleccionar diversas famílias
para caseiros. Embora nas últimas três décadas alguns dos caseiros tenham sido, por decisão unilateral do
pároco ou por acordo bilateral, substituídos, na composição do elenco de oito caseiros em 1959 foram
indicados para tal pelo pároco de então, o padre Vaz, seis famílias de jornaleiros e duas de pequenos
camponeses-artesãos. Dos relatos de moradores, mormente caseiros, se infere que, para serem
contemplados, além das devidas deferências e de um estrito cumprimento dos deveres religiosos9, teriam de
ser parentes, compadres e comadres do padre ou da mediadora criada-governanta. Numa época em que a
pressão sobre a escassa terra arrendável era elevadíssima, dispor da prerrogativa de dar em arrendamento
grande parte do referido terreno conferia ao pároco uma supremacia considerável, a reforçar uma outra que
lhe advinha da sua função simbólico-religiosa (11:4).

7.2.2.Lavradores-camponeses

O termo lavrador, originário de laborare (laborar), abrange a categoria de agentes sócio-económicos


com uma relativa auto-suficiência em recursos materiais, nomeadamente fundiários. Os lavradores, sendo
também proprietários no sentido económico e jurídico, diferem todavia da classe dos proprietários na
medida em que produzem e vivem, quando não exclusiva, pelo menos, predominantemente da força de
trabalho familiar.
Embora os lavradores possam ser compreendidos no conceito de camponeses em sentido lato, é contudo
pertinente distinguir e caracterizar as já referidas três categorias: pequenos, médios e abastados lavradores.
Começando pelos lavradores abastados (> 10 ha), são de destacar em Aguiar descendentes de duas famílias
– Fortuna e Campela –, as quais têm sobressaído pela sua supremacia económica e política, tendo a segunda
inclusivamente marcado com o seu nome a toponímia de um lugar da paróquia. Três dos cinco abastados
lavradores são provenientes da rica casa Fortuna, podendo ser englobados na categoria mista de
proprietários-lavradores, uma vez que, além do trabalho próprio, têm vivido de rendas fundiárias e do
trabalho de criados e jornaleiros. Possuindo no conjunto um total de cerca de 38 hectares (12.3%),
dispunham de quatro casas, dois moinhos e um lagar de azeite, dos quais extraíam, até inícios da década de
setenta, alguns ganhos complementares à actividade agrícola: 1/10 por cada rasa (1 = 13 kg) de milho moído
e 1 litro por cada almude (1 = 20l) de azeite fabricado.
Com a morte do proprietário-lavrador Manuel Fortuna a 23-5-1954 e a subsequente partilha entre os três
filhos Abel, Ilídio e Filipe e uma neta nascida de uma quarta filha – que entretanto falecera –, os novos
componentes da família Fortuna, embora mantendo-se com o estatuto de proprietários-lavradores abastados,
vêem desde então fragmentado por quatro casas o património fundiário respectivamente em 12.3, 10.5, 10 e
5.2 hectares. Este facto, aliado à falta de capacidade de adaptação e inovação bem como à não-acumulação

8
Noutro documento paroquial registam-se no total 10.1 hectares. Antigamente o passal da Igreja pertencia aos Barbosas, fidalgos
da casa de Aborim, sepultados na igreja paroquial de Aguiar (D. Maciel 1982:356).
9
Salvo o rendeiro Luís (Ae129), simultaneamente artesão e pequeno lavrador – que, por não depender apenas das terras
arrendadas, permitia-se contestar o pároco e até alinhar pela facção opositora comandada pelo seu mestre-de-obras Severino (Ae7)
, – os demais sete caseiros das terras do passal não manifestaram, pelo menos até ao pós 25 de Abril de 1974, qualquer atitude de
discordância pública perante os "direitos" da Igreja e do seu representante local – o pároco.
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

de capital-dinheiro de procedência externa, entre as décadas de sessenta e oitenta, provocaria uma relativa
quebra de poder económico e sobretudo político em favor de alguns médios lavradores: Fontes, Subtil,
Fonseca, Brasão e Veloso.

Uma outra casa de lavradores abastados é constituída por um outro descendente da família Campela,
Aníbal, que, após ter herdado de um irmão-padre e acumulado a parte herdada da sua irmã solteira e co-
residente Olinda, se transformou num dos grupos domésticos mais providos com 18.8 hectares. Se juntarmos
a estes e aos 21.8 hectares do já referido proprietário Félix os cerca de 19 hectares possuídos por David, um
outro irmão residente na Argentina, a família Campela contaria no conjunto um total de 59.6 hectares
(19.4%), incluindo terrenos fora da freguesia.
Somando a área dos proprietários e lavradores descendentes das famílias Fortuna e Campela, estas duas
famílias troncais possuiriam cerca de 97.6 hectares, o que equivale a 31.6% do total da área possuída pelos
moradores.

Na categoria de médios lavradores (5-10 ha), relativamente a Lindoso, há a registar a presença da média
lavradora Ferraz com 5.8 hectares. Se uma parte menor da terra se encontra abandonada e/ou gratuitamente
cedida sem contrapartida de renda, a mais fértil e acessível é trabalhada com energia manual e mecânica,
para o que, além dos reduzidos braços familiares, se mobilizam jornaleiros praticamente só na altura das
colheitas. Porém, sobretudo até 1970, Ferraz dispunha, pelo menos, de um criado permanente, de jornaleiros
eventuais e, no afã das sementeiras e das colheitas, de «trabalho por favor» por parte de moradores,
especialmente dos mais dependentes.
Quanto a Aguiar, entre as quinze casas de médios lavradores, sete têm-se reproduzido e até florescido
graças aos respectivos casamentos e à agregação de heranças, às poupanças de membros emigrados,
acrescendo, em três casas, os ganhos advenientes dos juros de empréstimos dum bem raro até 1965-70: o
dinheiro.
Na acepção local, além dos proprietários e abastados lavradores, também os médios lavradores eram
reputados de ricos porque, em termos comparativos e, por contraposição aos pobres, eram os que, de facto,
logo após os primeiros, não só possuíam mais terra e gado como se encontravam mais bem situados na
hierarquia social da aldeia. Porém, contrariamente aos proprietários e abastados lavradores, reproduziam-se
principalmente, como foi referido, com base na força de trabalho familiar. Se perante o exterior, e em
particular face a estranhos, os lavradores, sobretudo em Lindoso,comentavam serem ali «todos iguais»,
dissimulavam a sua riqueza e/ou subestimavam os seus rendimentos, no interior da aldeia demarcavam-se
todavia nitidamente entre si pela posse diferenciada de recursos materiais e simbólicos. Não obstante a
realidade crua do quotidiano de trabalho familiar, a (auto)representação de superioridade por parte dalguns
proprietários-lavradores, recriada a partir da sociabilidade familiar e aldeã, induzia-os, com efeito, a apelar
ou a evocar, mais nas suas íntimas conversas domésticas que no domínio público, a sua distintiva
ascendência familiar e, por vezes, a sua origem dita (semi)«nobre». Porém, esse sentido de magnificência,
que desde a década de setenta se tem esbatido e relativizado, era até então acentuado, tal como o exprimiu
com pertinência Álvaro, um dos merceeiros de Lindoso: «Os ricos matavam um ou dois porcos por ano,
mas nem por por isso podiam deixar de trabalhar nem viviam assim tão fartamente. O que tinham era um
caganço que ninguém podia com eles ... » (L98).

De modo análogo aos proprietários, um dos momentos de manifestação algo aparatosa de riqueza, por
parte dos lavradores, consistia em prover aos cooperantes, nas segadas e nas malhadas do milho, abundante
e melhorada comida. À excepção deste e doutros sinais distintivos, os velhos lavradores, em regra,
comungavam no quotidiano, pelo menos em parte, de idêntico modo de vida sóbrio e frugal que os demais
possidentes, visível nomeadamente no tipo de vestuário e mesmo na dieta alimentar, fenómeno aliás
constatado por outros estudiosos em Portugal e noutras regiões da Península Ibérica (Ribeiro 1987: 114,
Geraldes 1987:336, Christian 1972: 19). Sem que tal obnubile as diferenças de classe, o seu comportamento
contrasta, em todo o caso, com o dalguns dos actuais sucessores e novos gestores, já impregnados de um
maior sentido de rentabilidade ou ganho na exploração fundiária. Com efeito, pelo menos, cinco casas de
antigos lavradores, ainda que sob contrapartidas vantajosas, apoiavam todavia, num quadro normativo
148
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

paternalista, famílias pobres e destituídas, sobretudo quando caseiros seus, a quem, por vezes, em caso de
má colheita, reduziam a da renda em espécie.
A partir de 1965-70 começou por certo a ser relativizado o padrão dominante de riqueza dos médios
lavradores não só por comparação com a dos actores sociais exteriores à aldeía como também, como
veremos, por efeito de novos desafios internos levados a cabo por moradores detentores doutros tipos de
recursos: monetários, escolares ou outros. No entanto, sobretudo até então, quem possuísse, pelo menos,
cerca de cinco hectares de terra e uma junta de bois ou vacas era considerado um «bom lavrador». Os seus
haveres, vistos na perspectiva local e em relação a outros mais carentes, constituíam base e motivo de uma
relativa segurança e liberdade.

Ainda no seio da classe de lavradores mas num escalão inferior, encontra-se a camada dos pequenos
lavradores-camponeses (2-5 há), relativamente autossuficiente, a qual em Lindoso abrange sete famílias e,
em Aguiar, vinte e cuja relativa autossuficiência agrícola, nas últimas décadas, se vem tomando
problemática. Se, sobretudo até 1965, a dimensão fundiária das suas explorações garantia, ainda que de
modo tangencial, ascondições da sua reprodução, sem ter que recorrer a trabalhos fora do sector agro-
pecuário ou pastoril, hoje poucas destas explorações conseguem sobreviver apenas na base do rendimento
extraído da exploração agrícola. A crescente inserção de um ou vários membros dos agregados domésticos
noutros sectores de actividade no país ou no estrangeiro torna-se cada vez mais corrente e até preferível, já
que o salário constitui uma fonte de receita mais certa e segura perante os constrangimentos locais.

Antes do surto migratório dos anos sessenta e setenta, as casas de proprietários e lavradores, dada a
necessidade ou precaridade das famílias pobres, podiam, além de contratar eventualmente caseiros nas
condições favoráveis já assinaladas, albergar um ou vários criados e dispor de um largo contingente de
dóceis jomaleiros(as) e outros pobres «voluntários» originários de 26 casas de Lindoso e 29 de Aguiar. Sem
a prestação da força de trabalho destes, não podiam os abastados proprietários e lavradores, tal como refere
Mintz (1973:95 ss), ser compreendidos nem definidos. Se aos camponeses pobres, sobretudo caseiros, os
proprietários e os lavradores recompensavam o «trabalho por favor» com a cedência de alfaias e gado para
aqueles poderem lavrar os seus bocados de terra próprios ou arrendados, aos criados e jornaleiros
costumavam «gratificar» com dádivas de géneros, combinadas ou não com o pagamento de soldadas e
salários.
O maior ou menor recurso, por parte dos lavradores-camponeses, à força de trabalho alheia,
nomeadamente de criados, a par da eventual cedência de terras em arrendamento, dependia todavia da
ausência ou da presença de braços familiares nas diversas fases do ciclo de vida, tomando-se sobremaneira
premente nas seguintes circunstâncias: não ter filhos ou, tendo-os, estarem estes numa fase de crescimento
ou formação (seminário, colégio) ou trabalharem em sectores não agrícolas principalmente no estrangeiro.
As saídas em massa, designadamente de jornaleiros e criados, teriam provocado junto de, pelo menos,
três casas de lavradores em Lindoso e sete em Aguiar uma relativa crise em relação à oferta de força de
trabalho, cada vez mais rara e mais cara e, como tal, insustentável de pagar em base permanente.
Sintomático de tal evolução é, além dos resultados do quadro 7, o facto de, segundo o Recenseamento
Agrícola ao Continente de 1979, entre 219 explorações agrícolas na freguesia do Lindoso e 68 em Aguiar só
15.5% e 39% respectivamente alugarem trabalhadores eventuais e só uma casa em Aguiar e nenhuma no
Lindoso empregar força de trabalho permanente.
Tendo perdido implicitamente parte da força negocial no concernente à imposição de condições de
arrendamento outrora bastante vantajosas, lavradores e actuais emigrantes de ambas as aldeias, cientes dos
elevados custos de exploração directa por recurso a mão-de-obra não familiar, acabariam por ser forçados,
sob pena de deixar as terras de montulo, a dá-las total ou parcialmente em arrendamento por baixa renda ou
mesmo a título gratuito. Uma tal solução constituiria todavia um mal menor na medida em que, pelo menos,
as terras manter-se-iam cultivadas e susceptíveis de serem retomadas a cada momento por herdeiros e
familiares regressados. De qualquer modo, sintomáticas da diminuição relativa de poder negocial dos
lavradores são as queixas e as lamentações sobre as desmesuradas exigências dos caseiros: «Hoje os
caseiros, além de terem as terras de graça, tratam de sacar o máximo rendimento no menor tempo possível
e, ainda por cima, exigem do senhorio casa e o pagamento dos gastos com as culturas!» (L95).
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

A relativa quebra de poder e prestígio por parte dos lavradores é contudo de certo modo compensada
por posições preponderantes que, recentemente, alguns dos seus filhos, através de investimento escolar ou
dos contactos das suas famílias com personalidades da vila ou cidade, adquiriram, absorvendo alguns
empregos disponíveis em empresas privadas e sobretudo no sector público: nos aparelhos administrativo-
judicial e educativo, nos correios, nas instituições militar e policial nomeadamente na PSP, na GNR e na
Guarda Fiscal (6:2)10. É, porém, sobretudo a partir dalgumas casas de lavradores e ex-emigrantes que
começa também a emergir o perfil do agricultor moderno.

7.2.3. Camponeses parciais-artesãos-operários

Tal como Almeida (1986:235) registara para Fonte Arcada o predomínio de camponeses parciais em
51.9%, também em Lindoso e em Aguiar este tipo de grupo doméstico é maioritário: respectivamente 69.4%
e 58.3%. Além de dedicar-se à criação de uma a duas cabeça(s) de gado bovino e, em Lindoso, de cinco a
dez cabeças de gado caprino, os camponeses parciais, cultivando entre 0.05 e 2 hectares de terra própria e/ou
arrendada, constituem unidades domésticas com membros dispersos por diversos sectores económicos
aquém e além fronteiras. Os camponeses parciais, não obstante a sua dupla pertença de classe, a sua
mobilidade intersectorial e a sua suposta «localização contraditória» (Wright 1978:61), mantêm contudo
como quadro de referência estratégico prevalecente o camponês.
Do total das casas inseridas nas categorias de camponeses parciais importa sublinhar os caseiros, os
quais, por norma, cultivam terras de conterrâneos ou familiares ausentes. O acesso ao lugar de caseiro, se
hoje se obtém ou se abandona mais facilmente, sobretudo até 1970 era objecto de despiques cerrados em
relação à oferta da renda, facto este também constatado na Correlhã por Geraldes (1987:243-244).
Os rendeiros formavam e formam unidades domésticas, nas quais, em regra, a mulher e eventualmente
um(a) ou mais filhos(as) se dedicam à agricultura a tempo inteiro. A sua estratégia nuclear consiste em
prover à subsistência familiar e evitar a proletarização, aliás um objectivo central detectado já no começo
deste século por Telles (1903:15, 145 ss), por parte tanto de jornaleiros e artesãos como caseiros e outros
«proprietários minúsculos» situados na área de Barcelos. Dos actuais caseiros de Lindoso e Aguiar, pelo
menos nove (32.1%) e doze (19.6%), respectivamente, foram seleccionados por proprietários e lavradores,
ou na sequência de uma antiga relação de dependência na esfera produtiva (criado, jornaleiro), ou por
vínculo parental ou religioso-simbólico (filho, sobrinho, afilhado, sacristão) de algum dos membros do novo
grupo doméstico tornado caseiro.

Não obstante o facto de um ou vários membros do agregado serem, a título principal, artesãos, operários
ou merceeiros, poder-se-ão, tal como foi referido em 7:1, incluir na categoria de camponeses parciais os
grupos domésticos que, destinando alguns dos seus membros ao cultivo de terra própria e/ou arrendada,
façam da actividade agro-pastoril ou pecuária uma componente produtiva integrante e imprescindível à sua
subsistência. Entre as casas com braços sobreabundantes em relação ao quantitativo de terra possuída são de
referir sete grupos domésticos em Lindoso e vinte e dois em Aguiar que dividiam e/ou dividem globalmente
a força de trabalho familiar por diversos sectores. Enquanto as mulheres e respectivas filhas ocupa(va)m-se
excepcionalmente como jornaleiras e, em regra, como pequenas camponesas do cultivo de leiras próprias
e/ou arrendadas, os homens e os filhos mais crescidos saíam ou eram enviados para o exterior como artesãos
ou aprendizes, jornaleiros ou criados e, em particular a partir dos anos sessenta, como operários: em Aguiar,
para a construção e para as fábricas de serração e de madeira em Balugães, de têxteis em Barcelos e
arredores e, em Lindoso, para a construção civil, a produção de carvão no monte ou, ultimamente, para as
obras da barragem. Por outro lado, sem excluir a sua participação nas actividades agrícolas nas horas vagas e
sobretudo nas épocas de sementeiras e colheitas, três artesãos em Lindoso e oito em Aguiar, de modo
complementar, levavam basicamente a cabo tarefas artesanais em função das actividades e necessidades dos

10
Na administração pública e no sector judicial, cf. respectivamente L29, 36, 65, 78, 95, 109; Al2, 20, 24, e37, 53, 101; no sistema
educativo: L24, A53; nos correios: Al 1, 44; nas instituições (para)militares: LI, 2, 26, e41, 76, 86, 92, 124; Aell, e36, 37, 51, 52,
133, 134. Cf. para a região do Oeste, M. V. Cabral 1987:331.
150
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

produtores agrícolas no âmbito da colectividade e das aldeias circunvizinhas.


Embora os artesãos, sendo na sua maioria também possuidores de terra, tenham sido correctamente
inseridos na categoria de camponeses parciais, alguns (L69, A117) poderiam ser mais adequadamente
arrumados no grupo de assalariados, sobretudo quando às suas mulheres lhes restava apenas tornar-se
jornaleiras. Sem terra ou possuindo menos de 500 metros quadrados partiam os artesãos pobres com os seus
instrumentos à procura de trabalho pelas aldeias das redondezas e até da região. Do mesmo modo, mas num
sentido centrípeto, provindos de freguesias circunvizinhas e da região percorriam e, por vezes, ficavam
«alojados» em palheiros das casas empregadoras respectivamente de Lindoso, Aguiar e freguesias vizinhas
artesãos ambulantes tais como alfaiates, amoladores e latoeiros ou então especialistas no fabrico de pipos e
móveis e na extracção de sarro das vasilhas.

A partir de 1965alterações na estrutura ocupacional devido à concorrência de produtos manufacturados


– que os mercados da indústria nacional e internacional iam tornando acessíveis – iriam também repercutir-
se numa drástica diminuição do volume de artesãos e na desvalorização das suas habilidades, do seu papel e
prestígio locais. As novas técnicas e o material de construção e reparação de casas, bem como o fabrico
industrial de móveis, alfaias agrícolas, calçado e vestuário, fariam desaparecerpaulatinamente os velhos
artesãos (pedreiros, carpinteiros, sapateiro, alfaiate e costureiras) à medida que iam falecendo sem serem
substituídos na mesma função e qualidade. Em sua vez surgiam profissões sucedâneas ou novas como as de
serralheiro, electricista, mecânico, trolha e outras categorias de operários(as) na construção civil, nas
indústrias têxtil e de calçado. Salvo quatro moradores em Aguiar desde 1970 e quatro em Lindoso desde
1978, em regra ex-emigrantes e filhos de artesãos ou operários que iniciaram pequenas empresas de
construção, parte ou até a totalidade dos membros excedentes de 36.3% famílias em Lindoso e 35.5% em
Aguiar têm sido todavia cada vez mais forçados a tornar-se camponeses-operários ou mesmo a
(re)converter-se em assalariados na construção civil, nas fábricas e nas obras públicas.

Paralelamente aos artesãos na esfera produtiva, convém assinalar, na esfera da circulação, a presença de
três mercearias em Aguiar e três em Lindoso, além de um café-retaurante, casas estas que combinavam a sua
actividade comercial com a agrícola exercida pela mulher e pelos filhos(as), sendo de salientar em Aguiar a
circunstância de a vaca de um dos merceeiros-camponeses, para ir pastar, ter de atravessar a própria loja.
Além da sua função principal de venda de bens não produzidos na aldeia, as mercearias, sobretudo até 1965-
70, serviam simultaneamente de entreposto de escoamento de alguns produtos agrícolas: ovos, vinho e até
cereais. Tais produtos funcionavam, por vezes, como equivalente de troca para compras efectuadas junto das
referidas lojas, as quais eram também uma das fontes de informação e pontes de contacto com o exterior,
nomeadamente com os mercados ou as feiras circundantes.
Enquanto locais de encontro e convívio sobretudo para os homens, as mercearias e adjacentes tabernas
e/ou cafés, embora sejam indistintamente frequentadas ou visitadas pela maioria dos moradores, constituíam
e constituem núcleos polarizadores de alinhamentos, ora parentais, ora políticos, os quais se reforçam por
motivos de vizinhança, amizade ou proximidade por parte de clientes fixos e afectos a cada uma das lojas11.
Quanto ao relacionamento entre merceeiros, é de salientar que, em especial no passado, um certo despique
ou concorrência interna, se bem que mais acentuada em Aguiar que em Lindoso. Há todavia a salientar que,
enquanto os merceeiros geograficamente próximos evita(va)m falar-se, os situados nas duas extremidades de
ambas as aldeias tendiam a relacionar-se e até fazer jeitos mútuos na troca de produtos para venda.

11
Através de observações próprias e informações directas e indirectas foi possível contabilizar o número aproximado de clientes
mais frequentadores e até exclusivos de cada loja. Assim, em Lindoso, além de largas dezenas de clientes do referido café-
restaurante (L24), cerca de 12 famílias são, simultaneamente, clientes de Adérito-Luísa (L3) e de Amadeu-Rosa (L100), 32
gastam quase exclusivamente de Adérito-Luísa e 21 de Amadeu-Rosa, restando para o merceeiro Álvaro (L98) 13 das casas
vizinhas do seu aglomerado, além de cerca de 15 clientes parciais e outros forâneos (operários da barragem e turistas), dada a sua
posição estratégica junto da estrada que liga à fronteira. Do mesmo modo, em Aguiar, enquanto Jorge (Ae118) podia contar, além
de 6 clientes da vizinha paróquia de Durrães, com 26 clientes exclusivos na própria aldeia, Gomes (A22) retinha para si 22 e
Simões (A l 07) 32; de resto, cerca de 10 clientes repartiam-se por Jorge e Gomes e 12 por Gomes e Simões. Quer em Lindoso,
quer sobretudo em Aguiar, um crescente número de casas abastece-se cada vez mais em supermercados em Ponte da Barca e em
Barcelos respectivamente.
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

Ultimamente, os donos das tabernas e mercearias, por constrangimentos administrativos e económicos,


vêem-se impelidos a reestruturar os seus estabelecimentos sob pena de serem forçados a encerrar ou a
ficarem ainda mais vulneráveis à forte concorrência dos supermercados.
Ainda no âmbito do comércio mas já ambulante acresce ainda registar as periódicas visitas de
vendedores de crivos, peneiras, ratoeiras e alfaias agrícolas, bem como as caminhadas a pé de galinheiras e
sardinheiras, que pouco a pouco esobretudo desde 1975, ou se reconverteram, ou foram substituídos(as) por
novos comerciantes utilizadores de carrinhas e furgonetas.

O ferreiro e sua mulher, Aguiar (foto 21)

152
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

O merceeiro, sua mulher e clientes (foto 22)

7.2.4. Jornaleiros(as)

Reduzidos de maneira significativa desde 1965, passando de vinte e quatro para cinco (4%) em Lindoso
e de quarenta e um para dez (6.5%) em Aguiar, localmente considerados próximos do escalão ínfimo dos
criados, os jomaleiros(as) constituíam no passado e, embora em menor medida, ainda constituem um grupo
social que apenas possuía casa e, eventualmente adjunta, uma horta ou quintalejo com menos de 500 metros
quadrados, além de poucos utensílios agrícolas, entre os quais os seus intrumentos de trabalho: a enxada e a
foice.
No seio dos jornaleiros há ainda a distinguir os que forma(va)m grupo doméstico próprio, decoroso e,
como tal, respeitado, daqueles que, sem habitação própria ou até «sem eira nembeira», se mantinham numa
situação socialmente marginal ou degradada. Enquanto os primeiros, além de constituir unidade doméstica,
possuíam casa e horta e tinham, em regra, filhos legítimos, os segundos, denotando uma considerável
mobilidade geográfica e sem laços de família própria, davam lugar a situações de mancebia e de proliferação
de filhos ilegítimos12. Em colectividades predominantemente camponesas como Lindoso e sobretudo
Aguiar, cujo ideal dominante implicava, pelo menos, a posse de um mínimo de recursos, também os
jornaleiros se esforçavam por ser reputados de «sérios» e viver «livres de vergonhas», a fim de adquirir o
que Scott designa de «composturas culturais mínimas» (1985:237) ou, retendo uma preliminar
honorabilidade moral, desempenhar na colectividade um papel digno e decente. Só assim ser-lhes-ia
possível ganhar a confiança e ser preferenciais pretendidos para criados, jornaleiros, caseiros ou parceiros;
doutro modo, não conseguindo obter esse limiar de credibilidade e sustento ou, pelo menos, casa e trabalho

12
Também constatado por O'Neill (1984:264 ss) e Cabral (1989:81 ss). Ainda nos anos cinquenta e sessenta, mais em Lindoso
que em Aguiar, os párocos diligenciavam pela regularização de algumas situações de mancebia e ilegitimidade de jornaleiros
pobres.
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

regular, eram pejorativamente classificados de «miseráveis» e «desgraçados», «cabaneiros» e


«vagabundos», tomando-se, na imagem local, numa espécie de «ralé» social.
Figuras numericamente não desprezíveis e assinaladas nos registos paroquiais e noutros documentos
históricos sobretudo do século XIX13, os «pobres» e «mendigos»,mais «coisas» que sujeitos de direitos, não
só eram socialmente menosprezados e excluídos do conselho da aldeia como se tornavam objecto ora de
chacota, ora de comiseração, por parte da maioria dos membros do corpo colectivo. Entre alguns casos
conhecidos, é de referir o do jornaleiro ex-forâneo Delfim que, abandonado pela mulhere votado a um certo
ostracismo em Aguiar, viria a falecer em 1977 em condições degradantes: «Coitado, entre trabalhar ao
jornal para o madeireiro Coelho e apanhar pielas lá passava os seus dias. Sem eira nem beira,ficava nos
cobertos e, por fim, nem isso, porque temiam que com a borracheira pegasse fogo ... Dormia nas palhas
duma antiga corte de porco, pois ninguém se preocupava com ele ...» (Al 18).

Jornaleiros eventuais disponíveis representavam o sustentáculo, em mão-de-obra, de antecessores ou


actuais habitantes de onze casas de lavradores-proprietários em Lindoso e dezoito em Aguiar, sobre os quais
aqueles exerciam certa pressão sob o idioma da moral da partilha, designadamente católica. Embora o
sobretrabalho não pago a camponeses pobres e sobretudo a criados e jornaleiros acabasse por repercutir-se
em ganhos do produto excedentário em favor dos proprietários e lavradores, a sobreabundância de tal força
de trabalho não representava necessariamente um sintoma de penetração do capitalismo. Pelo contrário, tais
dados eram mais indício da persistência das relações (semi)servis não capitalistas, onde ainda não se teria
verificado a libertação e o consequente mercado livre da força de trabalho. Com efeito, em semelhante
processo de forte dependência estiveram envolvidos os predecessores ou mesmo actuais moradores de
20.2% de casas de Lindoso e 26.3% de Aguiar. Estes, formando uma sobrepopulação relativa, colocavam à
disposição, por qualquer preço, a sua força de trabalho a proprietários e lavradores sob forma de «trabalho
por favor», jornas ou empreitadas tais como roçar mato, rachar lenha, cuidar do gado. Mais, não tendo com
que alimentar os filhos, os jornaleiros ofereciam ainda, em troca da comida, a força de trabalho suplementar
da mulher e dos filhos, a qual era ocasionalmente compensada em espécie por uma mão de géneros (milho,
feijão, batata) e uma garrafa ou um garrafão de água-pé e, por vezes, vinho, tal como narra Alberto, um dos
ex-jornaleiros: «O único que, além da comida, recebíamos eram dois litros de vinho pelo Natal. Ficávamos
todos contentes. Mas, para recebermos essa oferta, tínhamos que dar muitos dias de serviço» (L5).

Dada a inexistência ou insuficiência de terras próprias ou arrendáveis e a sobrepopulação relativa


perante sucessivas crises de trabalho, pelo menos vinte e uma famílias pobres de Lindoso, sobretudo
jornaleiros, deitavam mão de outras fontes de subsistência: a mendicidade, o pequeno contrabando e, em
particular, como foi referido, o fabrico de carvão numa das serras adjacentes incluindo a galega.
Embora circunscritos às limitações impostas pela e à sua condição, os jornaleiros aplicavam, em dose
suportável e de modo disfarçado, as suas próprias estratégias de dissidência prática. Quando outros meios
lhes eram negados e a fome espreitava as suas casas, engenhavam, em última instância, certos expedientes
tais como desviar feijão e sobretudo milho da arca ou do espigueiro, deixar sob o seu olho nos campos um
braçado de milho e, mais tarde, recolhê-lo, ou então, pela calada da noite, retirar dos campos de moradores
possuidores uma porção de milho, legumes ou fruta14.

13
Nomeadamente nos assentos de óbito, nos quais os jornaleiros são referidos como «pobres» ou «pobres miseráveis» (v.g. AOA
10-10-1884). Os pobres eram localmente designados por cabaneiros não só por serem desprovidos de terra e viverem numa
cabana ou choupana como também por funcionarem corno portadores das coscuvilhices da aldeia e até, por vezes, como
transmissores de segredos de casas alheias (Silva e Van Toor 1982:296, Geraldes 1987: 122 ss). Já presentes na própria Idade
Média (Castro 1981 II:79), os cabaneiros constituíam até aos inícios e mesmo até meados do século XX uma parte considerável
da população rural (cf. Telles 1903: 13, 132 ss, Ribeiro 1987:114). Sobre a abundância de cabaneiros-jomaleiros em Barcelos, cf.
Descamps (1935:79) e recuando ao Antigo Regime, cf. para várias das suas paróquias, Capela (1989:28-33), segundo o qual o seu
quantitativo oscilava entre 5.4% e 33.3% e, em freguesias do Julgado do Neiva, próximas de Aguiar, a sua média era de 25%.
14
Práticas como o pequeno roubo teriam ocorrido também no passado nomeadamente no século XIX. Refira-se, a título ilustrativo,
o caso de um morador de paróquia vizinha ao queixar-se de outro por este lhe ter «roubado um bocado de carne de porco»
(LCNC:llv, 31-10-1836), facto posteriormente confessado pelo próprio réu perante o Juiz de Paz.
Sobre estratégias de pressão dos jomaleiros é de referir, por exemplo, a de Matos que, denotando um certo grau de confiança com
154
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

Referindo-se à situação dos jornaleiros na área de Barcelos, no início do século XX, Telles (1903:13)
notava que estes constituíam a classe mais desprotegida, dado o seu salário ser «exíguo e irregular»,
situação esta que se manteria até finais dos anos sessenta. Por isso e a fim de alcançar maior segurança no
posto de trabalho, os jornaleiros(as) acorriam todavia mais depressa e voluntariosamente para as casas mais
ricas da zona, cuja preferência sobre as de pequenos lavradores assentava no facto de as primeiras
oferecerem um maior número de jomas e, por consequência, um menor grau de insegurança. Por outro lado,
como foi referido em 7:2.1., as casas mais abastadas forneciam mais bebida e mais abundante comida, opção
aliás bem expressa no refrão «vinho na canastra e sardinha na ponta da vergasta» ou na tradicional quadra
poética ouvida da jornaleira Canária: «Minha sacholinha/ para onde irá sachar/ p' ra onde roncar porco/ e
cantar lagar» (Al00).

Dada a sua dependência económica e política e desprovidos como grupo social de capacidade negocial,
os jornaleiros deveriam, em regra, aceitar agradecidos a oferta de trabalho bem como o seu preço que
regulava entre 100 e 200 réis no início do século, 2$50 a 5$00 entre 1930 e 1950, subindo paulatinamente
para 7$50-10$00 entre 1950 e 1960 e 15$00 a 25$00 entre 1960 e 1970. Só com a rarefacção da mão de obra
causada pelo êxodo rural das décadas de sessenta e setenta e com a subsequente deslocação de bastantes
jornaleiros para a condição social de operários, os jomaleiros(as) residentes na aldeia puderam exigir
melhores jornas e obrigar a um tratamento menos arrogante por parte de proprietários e lavradores que
passariam a bater à porta dos primeiros para contratar a sua força de trabalho.

7.2.5. Criadas/os

Se, em 1985, quatro (3.2%) casas em Lindoso e onze (7.2%) em Aguiar persistem em fornecer para as
cidades circunvizinhas ou para a Galiza criadas(os) – hoje denominadas empregadas domésticas – por conta
de empregados, funcionários ou membros de profissões liberais ou, excepcionalmente, de vizinhos
emigrantes, a figura social do antigo «criado(a) de servir», tal como era designado oralmente e em
documentos paroquiais é, em Lindoso, praticamente inexistente e, em Aguiar, bastante rara, sendo apenas
temporariamente presente em quatro casas de lavradores-proprietários. Todavia, até ao despontar da vaga
emigratória de 1965-70, os criados(as) constituíam um grupo social bem definido, cujos membros eram
amiúde recrutados entre as famílias pobres do lugar onde residiam os proprietários e lavradores15. De facto,
os criados formavam uma componente integrante de (quase) todas as casas de proprietários, lavradores
abastados e médios ou até, conjunturalmente, de cinco pequenos lavradores-camponeses quando, sobretudo
na fase inicial de crescimento do ciclo de vida doméstico, a própria força de trabalho familiar estava ausente
ou era insuficiente.
Entre as actuais casas alguma vez fornecedoras de criados, se três (2.4%) em Lindoso e dezassete
(11.2%) em Aguiar provinham de famílias de artesãos e pequenos camponeses com terra própria e/ou
arrendada, catorze (11.3%) em Lindoso e vinte e três (15.1 %) em Aguiar eram contudo originárias de
famílias de jornaleiros e camponeses-caseiros pobres.
Dado que, em situação de penúria, albergar-se ou ser seleccionado para criado(a) de uma das casas ricas
locais era sinal de especial preferência e eventual fonte de favores, as famílias pobres diligenciavam e até
emulavam para que o respectivo lugar ou simples período de aprendizagem de vida fosse ocupado por um
dos seus próprios filhos(as). Neste contexto, tornavam-se raros os gestos de solidariedade positiva entre
criados(as), bem como destes para com os jornaleiros(as). Pelo contrário, primavam ligeiras rivalidades e

o seu patrão Gonçalo, narra, passados quinze anos, na presença deste a seguinte peripécia: «Quando andava trabalhar aqui para o
Tio Gonçalo, ele prometeu-me por duas vezes umas botas por causa das regas e das chuvas no inverno. Como não me comprava
as botas, pedi-lhe cem escudos quando a minha mulher adoeceu e ainda não lhos paguei até hoje, porque dois pares de botas a
57$00 cada um valem mais que os cem escudos!»
15
Por exemplo, em Aguiar., excepto Lima e sobretudo Fontes que, sendo respectivamente tesoureiro e presidente da Junta,
recebiam criadas de casas pertencentes a vários lugares da freguesia (Ae40, e59, 146), cf., por exemplo, Campela que recrutou
criadas das casas Ae82, 120, 78, 94, 37, todas do próprio lugar ou lugar contíguo; Fortuna das casas Ae39 e el41, também do
mesmo lugar, assim como Paula de Al32.
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

tendências de hierarquização interna em função da casa onde serviam, sendo inclusivamente constatados
alguns casos de recíprocas denúncias perante os patrões. Das histórias de vida das ex-criadas(os) se infere
pesar sobremaneira a pressão familiar, o que, dado o grau de insegurança quanto à obtenção de trabalho, as
incitava a devotar-se e a defender o bom nome do seu amo. Doutro modo, em caso de despedimento, seriam
objecto de repressão física por parte dos próprios pais, tal como conta Telo: «A minha mãe dizia que mais
valia bater-me que ser despedido. Um dia em que me pus a brincar em vez de olhar pelos bois e trazer lenha
do monte, a minha mãe, na frente da patroa, deu-me uma valente coça que até me deixou marcas no
corpo...» (L80).

Nalgumas casas (A28, 33, 53) as criadas funcionavam como o braço direito das estratégias de
poupanças destinadas a obter um reequilíbrio financeiro, tal como relatou a ex-criada governanta Cristina:
«Pus o peito à bala pela família Fortuna que antes da minha entrada era farta em terra mas nem dinheiro
tinha para pagar a décima!» (A42).
Para as atitudes dedicadas dalgumas criadas(os) contribuiria por certo, além da situação de necessidade
e do receio da sanção familiar, a proximidade quase familiar com o correspondente tratamento afectivo na
partilha do trabalho, do mesmo tipo e local das refeições, dos (poucos) momentos de diversão ou de festa e,
eventualmente, a clandestina ligação sexual da criada com o patrão ou, ainda que raramente, do criado com a
patroa16. Por outro lado, e não obstante o facto de esta relação afectiva e/ousexual resultar em maior proveito
dos amos, o certo é que estes, nas horas de necessidade ou aflição das criadas(os) e suas famílias (fome,
doenças, acidentes), se prontificavam a acudir, sendo de mencionar, neste contexto, as dádivas de pão,
amiúde sem conhecimento dos maridos, ou vice-versa, das esposas (A11, 27, 28, 93, 53, 75).
Os candidatos excluídos da possibilidade de serem criados numa das casas mais ricas da aldeia ou
aceitavam lugares de casas mais modestas ou então, dada a precaridade das condições de vida das suas
famílias de origem, eram forçados a mover-se para fora da aldeia. Tornando-se numa espécie de párias
errantes, o seu percurso, implicando operações de elevado risco de sobrevivência, podê-los-ia conduzir ora a
afundar-se mais ora a sair ilesos e até a superar a sua condição inicial.

A situação de indigência e, não raro, de fome até à década de setenta em, pelo menos, oito (6.5%) casas
modestas ou pobres de Lindoso e vinte e quatro (15.8%) de Aguiar impelia os próprios pais a aceitar a saída
ou até a «despachar-se» de seus filhos(as) desde os sete anos e inseri-los(as), por vezes compulsivamente,
como aprendizes de artesãos ou como criados(as) em casas de lavradores, a fim de aliviar os seus encargos
familiares, tal como conta Maria, hoje mulher do pequeno merceeiro Simões: «Naquele tempo de muita
fominha comemos bem o pão que o diabo amassou. Na nossa casa tivemos que comer batatas greladas e até
ervas, sopa de saramago e bolos de telha feitos na brasa. Chegámos mesmo a comer caganatos. Algumas
vezes dizia o meu pai para a minha mãe e para nós: «Quereis pão, não é? Eu também mas não tenho»
(Al07).

Pelo seu trabalho recebiam as criadas de soldada anual cerca de 100$00 a 200$00 nas décadas de trinta
e cinquenta, 600$00 a 2000$00 na de sessenta, 2 a 5.000$00 entre 1970 e 1974, só conhecendo um salto
considerável de 1974 a 1985: entre 8.000$00 a 30.000$00. Além da soldada anual, os patrões forneciam
dormida, comida, vestuário (roupa de cotim e um vestido ou fato por ano), tamancos, botas e, por vezes,
comparticipação nos ganhos de criação de uma toura. De acordo com o seu próprio relato, cinco ex-criadas
nem sequer chegaram a receber dos respectivos patrões a soldada combinada e/ou (apenas) lhes foram
oferecidos, no final, alguns presentes: por exemplo, a Emília (A 78), com nove anos de serviço na casa
Fontes, uma toura, um pequeno fio de ouro e o arrendamento de uma terra; a Rosália, após três anos na
mesma casa, uma saia, um peru e um par de coelhos; e a Cristina (A42), decorridos dez anos de serviço na

16
Embora excepcional, poder-se-á referir, de Lindoso, o caso – narrado aliás deliciosamente por alguns informantes aldeãos
sobretudo por um ex-criado e jornaleiro – da lavradora Maria, casada, que manteve uma relação sexual com o seu ex-criado
Aleixo, da qual teria nascido uma filha. Tal facto proporcionaria a Aleixo uma protecção especial por parte de Maria ao ponto de,
mais tarde, quando já emigrado, lhe ter sido oferecido pela sua ex-amante uma de suas filhas em casamento, ajudando-o assim a
superar a ansiedade que o dominava, sempre que pretendia pedir ao seu ex-patrão e futuro sogro a sua filha em casamento.
156
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

casa Fortuna, uma terra. Neste contexto, dadas as inexistentes ou baixas soldadas até 1970, por vezes as
criadas adoptavam as suas próprias tácticas compensatórias tal como fornecer clandestinamente géneros ou
comida a familiares e, subrepticiamente, por exemplo, levar para a feira, em vez de uma, duas rasas de milho
e entregar ao patrão o dinheiro de uma17.
Relembrada a situação à distância, algumas ex-criadas queixam-se hoje que, além de terem sido objecto
de uso e/ou abuso sexual, funcionavam como complemento e atésubstituto de animal de carga, eram amiúde
discriminadas, desprezadas e, por vezes, fisicamente maltratadas. Joaquina (A92) desabafa que «como
criada não só guardava as vacas como servia de vaca para o filho do patrão». Emília refere «ter carregado
pesados molhos de erva quando havia na casa do patrão cinco vacas que podiam acarrejar a erva no
carro». Anastásia (A92) revela «ter passado fome e apanhado porrada» do patrão, um médico da Casa do
Povo, o qual «não teve vergonha de me dar como consoada de Natal uma mão de biscoitos». Por fim,
Albertino, deficiente-motor desde os catorze anos e hoje co-residente na casa do irmão, conta que «o patrão
às vezes dava-me com uma vara e picava-me como se eu fosse um boi. Quando um dia carreguei um molho
de erva muito pesado e não quis, por medo, dar parte de fraco, torci as pernas e fiquei inutilizado para toda
a minha vida, de modo que assim nenhuma mulher me quis» (All7).

Se alguns confessam como, no seu estado de raiva perante a fome e os maus tratos infligidos, se
«desforravam» batendo nos animais, outros só mais tarde, com os novos tempos de rarefacção de mão de
obra, a melhoria de condições de vida e um reexame da situação, viriam ora a exprimir uma certa acrimónia,
recriminando os seus ex-patrões de «exploradores» ora, ainda que excepcionalmente, a demandá-los em
tribunal por altura do inventário de herança por não pagamento de soldadas devidas18.Uma das entrevistadas,
ao fazer a retrospectiva da sua história de vida, relembraria uma máxima popular sobre as exigências do
patrão face à criada(o): «Quatro coisas quer o amo/ do criado que o serve/ deitar tarde, levantar cedo/ comer
pouco e ser alegre» (Al00).
A conduta de aberta contestação não é todavia generalizada e as atitudes das (ex)criadas face aos seus
(ex)patrões são frequentemente ambíguas ou, pelo menos, dificilmente exteriorizáveis, quando
desfavoráveis. De entre dez ex-criadas entrevistadas, se algumas fizeram transparecer alguma indignação,
sempre que foram tratadas como «trapos», pelo menos seis não denotaram nem denotam ressentimento, ódio
ou revolta para com os antigos patrões locais e seus filhos, com os quais se socializaram e ainda mantêm
boas relações de vizinhança. Quando hoje interrogadas sobre o seu passado, se bem que conscientes de ser
mal remuneradas pelo seu penoso e quase ininterrupto trabalho, racionalizam a sua atitude resignada com o
sentido pragmático de a tal as ter obrigado a «miséria», a «necessidade», a falta de alternativa.
O clima de dependência económico-moral-afectiva, por parte das criadas, ficaria ainda mais marcado e
reforçado quando, na fase terminal de serviço, eram os seus amos que pagavam as despesas do seu próprio
casamento (A38,59,78), legitimando estes assim o seu estatuto de protectores. Por outro lado, além da
eventual soldada anual, os presentes finais tinham todavia a função simbólica de os distinguir negativamente
dos herdeiros da casa de acolhimento. Não obstante a já referida relativa proximidade afectiva, a cada
momento podiam ser despedidas(os) e, salvo casos excepcionais por interferência doutros factores tais como
relações sexuais, estavam-lhes, em princípio e convencionalmente, vedados alguns direitos próprios dos
herdeiros.

17
Prática aliás bem antiga, tal como me foi referido em relação a um criado que, quando surpreendido em flagrante, teria
respondido: «Uma rasa é para os seus gastos e a outra é para os meus».
18
Por exemplo, o criado João (A132) denuncia que dois patrões (A148 e um outro, forâneo) ficaram a dever-lhe 130.000$00 e
100.000$00 respectivamente. Um outro criado, Adelino, conseguiu do Tribunal de Trabalho que Subtil, sucessor e responsável
pelo inventário de seu falecido irmão Ismael, pagasse, em nome deste, 9.500$00 de soldadas em atraso (IOA 36173 Li 36:34,
1973).
Controlo sobre Recursos e Grupos Sociais

Uma mendiga em Aguiar (foto 23)

158
Comunidade e Recursos: Continuidade e Mudança

Uma casa pobre, Lindoso (foto 24)

*
**

A estrutura social de Lindoso e, em particular, de Aguiar não é fácil de analisar atendendo à


pluriactividade de bastantes famílias e, sobretudo, tendo em conta que os grupos sociais não podem ser
(pre)concebidos como realidades fixas ou categorias sociológicas apenas com base no critério da
propriedade e demais recursos económicos. Em todo o caso, do exposto se conclui como o diverso grau de
controlo de recursos é decisivo para explicar o comportamento diferenciado dos respectivos actores sociais,
pertencentes aos diferentes grupos sociais. Porém, não obstante o facto de o grau de controlo de recursos e a
correlativa pertença de classe constituir uma das condicionantes estruturantes das (inter)acções dos
moradores, estas não são suficiente nem unicamente analisáveis através de um conceito unidimensional de
classe na medida em que as eventuais situações de confronto intergrupal são agravadas, recortadas ou
amortecidas por outras experiências, designadamente as relações de vizinhança e parentesco natural ou
ritual, por alinhamentos políticos ou representações simbólicas, como veremos.

Os constrangimentos estruturais de desigualdade social são, em ambas as aldeias, condicionantes das


constatadas percepções de dominação e dependência – mais frouxas em Lindoso que em Aguiar. Em
qualquer dos casos subsiste no universo mental dos moradores a concepção dominante da prevalência de
quem tem sobre quem não tem, ou seja, cada um é socialmente valorizado ou invejado na medida em que
detém recursos. Todavia, enquanto em Lindoso a estratificação e a desigualdade sociais assumem formas
fluidas e menos visíveis, em Aguiar elas são mais marcantes. As assimetrias sociais intracomunitárias não
são, porém, tão acentuadas como noutras freguesias do norte como, por exemplo, as estudadas por O'Neill
(1984), Pinto (1985) ou Almeida (1986), nem tão abissais como noutras analisadas no sul, nomeadamente no
Alentejo ou no Ribatejo, por Cutileiro (1977), Barros (1986), Silva e Van Toor (1978). De qualquer modo, a
diversa composição social de ambas as povoações, em termos quantitativos e qualitativos, não deixa de
repercutir-se nos parâmetros normativos e valorativos dos respectivos grupos sociais.
PARTE III

ESTRATÉGIAS
E MODOS DE REPRODUÇAO
E TRANSFORMAÇÃO

160
A reprodução social não se dá ao acaso nem as suas formas se mantêm invariáveis através do tempo,
configurando-se, portanto, diversamente consoante a época histórica e o tipo de economia e sociedade
dominantes. Porém, se é imprescindível ter presente o desenvolvimento global de determinada formação
social1 e as respectivas políticaseconómicas, a nível nacional, a fim de avaliar os seus efeitos a nível local,
também, por sua vez, só é possível perceber cabalmente aquele, desde que se conheçam os mecanismos
concretos de estruturação, reprodução e transformação da realidade local e as estratégias dos diversos grupos
sociais não só dominantes como também dominados designadamente dos camponeses2.
Uma vez que a reprodução e a mobilidade sociais incluem lógicas diferenciadas e manifestam formas
moldadas pelo específico contexto histórico de cada freguesia, importa deslindar as condições sociais que
têm permitido aos diversos actores ora ocupar uma posição relativamente estável, ora sofrer um declínio ou

1
A formação social portuguesa era, até 1950-60, predominantemente agrária e protoindustrial ou, pelo menos, debilmente
industrializada, onde os sistemas sociais locais conheciam um considerável grau de relativa autonomia. Não sendo aqui possível
oferecer previamente uma panorâmica da mesma, cf. algumas das obras e ensaios mais representativos desta tese para os séculos
XIX e XX: Godinho 1980:141 ss, Pinto 1985:73 ss, Justino 1987 II:239 ss, Pedreira 1987:563-596, Ferraz 1975:456 ss, Mónica
1978:69 ss e nós próprios (Silva e Van Toor 1982: 115-157, Silva 1989: 111 ss). Em todo o caso, são de referir alguns indicadores
indirectos e directos que a sustentam, designadamente na esfera agrícola:
- a deficiência de infra-estruturas agrárias: em 1952-54 das 808.000 «empresas» agrícolas só 1% dispunha de silos para
cereais e forragens, 12% de electricidade, 32% de animais de carga (J. S. Martins «Prefácio» in Cunhal 1976 I:4);
- a baixa capitalização da agricultura, traduzível, entre outros índices, num baixo grau de investimento de capital na
agricultura (v.g., entre 1970-1973, 6% do total), no aumento anual de apenas 0.5% de terra irrigada entre 1951 e 1968 (H.
Barros 1972:43), assim como na baixa contribuição das agro-indústrias para o abastecimento alimentar por comparação
com a agricultura não capitalista, cuja relação seria de 25:75 (Lima 1983:472);
- a elevada percentagem de utilização de energia animal e humana, particularmente em empresas até cinco hectares:
cerca de 75% e 24% respectivamente em 1952-54 e de 29% e 40% em 1968 (cf. Inquéritos Agrícolas de 1952-54 e 1968,
INE);
- a considerável quantidade de unidades domésticas produzindo para autoconsumo: 581.720 (71 %) das 811.656
empresas agrícolas, das quais 78% são constituídas por «empresas» entre 0.5 e 4 hectares (H. Barros 1972:40, M. Pereira
1974:80-81, Cavaco 1980:31);
- a ausência e/ou o atraso dos processos de fertilização química e de mecanização até aos anos sessenta e setenta: em
1952-54, das 808.000 empresas só havia 3.963 tractores (nos distritos do norte: 536) e, em 1968, 17.163; mas, entre as
631.482 empresas com menos de quatro hectares, havia apenas 3.378 (0.6%) tractores (Freitas et ai. 1976:96-97);
- o baixo grau de educação e formação agrícolas: em 1968, apenas em 11.327 (1.4%) das 811.656 empresas agrícolas os
seus coordenadores possuíam alguma formação agrícola, 450.120 (55.3%) não sabiam ler nem escrever e, destes, 352.062
(43%) eram estatisticamente analfabetos (H. Barros 1972:41, M. Pereira 1974:86).
Como indicadores mais directos da baixa integração da agricultura no modo de produção capitalista contam-se o considerável
volume e até o aumento de agentes ligados à agricultura entre 1930 e 1968 e, particularmente, à agricultura não capitalista, sendo
os camponeses em 1935 calculados em 929.960 e ultrapassando, em 1968, o milhão; a persistência das formas comunitárias, ainda
que perpassadas de desigualdade, até recente data; e a elementar e fluida divisão do trabalho no seio da família (4:3).
2
Sobre a importância da articulação da análise a nível macro e micro, cf. Giddens 1984:139 ss, Bader 1991:375. Por outro lado, há
que ter em conta a imbricação entre as formas agrícolas não capitalistas e capitalistas (cf. Servolin 1972:52 ss). Sobre classes e
formas de produção tradicionalmente dadas como (neo)feudais mas com estratégias de acumulação e modernização agrárias,
nomeadamente no Chile, cf. Carriere 1981 :22 ss.
ainda a ruína socio-económica, ora ainda, pelo contrário, ascender progressivamente a melhores posições em
cada uma das aldeias ou fora delas, temática esta que, tendo sido tratada num dos capítulos da tese, será
contudo objecto de publicação separada. Em todo o caso é no quadro dos processos de reprodução e
transformação sociais que, tal como foi referido no início, serão destacados três tipos de estratégias
centradas no casamento, na herança e nas migrações. Sem confinar a história local de qualquer uma das duas
aldeias a simples mini-histórias de carácter interaccional, importa todavia, nesta óptica, «descer» ao nível
microsociológico e antropológico, articulando in loco os constrangimentos estruturais com a perspectiva dos
actores sociais. As diversas estratégias dos grupos domésticos ora confluem, ora se entrechocam num
constante processo de reprodução, adaptação e transformação não só ao longo das gerações, como,também
no próprio ciclo de vida de cada grupo doméstico.

162
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

CAPÍTULO 8

O CASAMENTO

De entre as estratégias básicas cabe destacar, em primeiro lugar, o agir racional e teleológico nos
arranjos dos casamentos, o qual, embora não específico dos camponeses, exprime também a lógica, ora de
sobrevivência, ora de melhoria social, inerente aos processos de reprodução e transformação social1.
Em Lindoso 91.1 % e, em Aguiar, 90.9% das unidades domésticas, encabeçadas respectivamente por 96
e 116 casais e 17 e 22 viúvos(as), reproduziram-se e/ou reproduzem-se pela via do casamento. Das restantes,
salvo três (2.4%) casas em Lindoso e três (1.9%) em Aguiar com mulheres-coordenadoras separadas ou
divorciadas, apenas 6.5% e 7.2% dos(as) chefes domésticos(as), respectivamente, se encontram no estado de
célibes definitivos, parte dos quais oriundos de famílias pobres sobretudo jornaleiras.
Não só pelo seu próprio estado como nos seus dizeres e representações2, a maioria dos moradores de
ambas as aldeias atribui uma importância fulcral à função biológica reprodutiva. Ressalvando o celibato
eclesiasticamente «vocacionado» ou o assumido por razões patrimoniais e, como tal, localmente valorizado
pelas suas virtudes, poderes e liberdades, a condição de celibatário(a) não é socialmente apreciada, sempre
que propicie desvios nos padrões de relacionamento sexual e sobretudo implique dependência sócio-
económica. Do estatuto de procriadora advém para a mulher um prestígio, devendo mesmo sacrificar a sua
sexualidade em função desse estatuto, aliás em consonância e por reforço da doutrina tradicional católica,
oficialmente expressa nalguns escritos dos padres da Igreja e nas encíclicas papais, em especial a Casti
Conubií3, segundo as quais a espiritualidade contrapor-se-ia à sexualidade.

Além de catalisador da coesão no grupo doméstico, o casamento, enquanto «oficina de reprodução


social» (Fortes 1971:86), é o principal laboratório de herdeiros e pressupõe, em regra, um ritual, cuja
«finalidade comum é a produção de produtores» Iturra (1985:63). Mais, para Iturra (1985:62 ss) o
casamento constitui um dos modos de aquisição de recursos e o mecanismo básico de acesso à terra: «A

1
Sobre esta temática e eventuais mudanças nas estratégias casamenteiras, cf., entre outros, Bourdieu 1972:1107 ss, 1980:251 ss,
Goody 1976:101 ss, 1983:7,129 ss, Cassia 1982:652 ss, O'Neill 1984:234 ss, Iturra 1985:59 ss, Polanah 1987:61 ss, Geraldes
1987:382 ss, Argemir 1987:263 ss.
2
Condenando práticas homossexuais porque não reprodutivas, os moradores subestimam ou inclusivamente desvalorizam o
estatuto de célibe definitivo designado pejorativamente por «solteirão» ou «solteirona». Sob forma de gracejo, dizia uma das
moradoras de Lindoso: «O mundo tem que ser formado. Há que criar filhos. As mulheres sem filhos não têm entrada nem no céu
nem no inferno!» (L54).
3
Na óptica eclesiástica, o casamento representava, em última instância, um mal menor contra a concupiscência, remedium
concupiscentiae, tal como aliás referia o cânone 1065 do Código do Direito Canónico: «A propriedade essencial do casamento é
a unicidade e indissolubilidade. O objectivo principal do casamento é a procriação e a educação dos filhos, sendo a ajuda mútua
e a satisfação da concupiscência meramente secundárias. Estes objectivos secundários estão totalmente submetidos ao primeiro»
(CDC, 1917). Se a sexualidade e a função procriadora se têm progressivamente autonomizado ao ponto de hoje ser cada uma delas
revalorizada na sua própria esfera, a doutrina oficial da Igreja supeditava a sexualidade à procriação. A este respeito, cf, entre
outros, Mítterauer e Sieder 1982:120 ss, Goody 1983:190 ss, Burguiêre 1972:1131 ss.
O casamento

estratégia dos grupos domésticos para obter terra baseia-se numa relação matrimonial, que possibilita uma
divisão do trabalho entre os membros do grupo doméstico» (Iturra 1985:77).

Tal afirmação, se grosso modocorresponde também à realidade observada em Aguiar e em Lindoso,


para maior precisão ela deve ser, num segundo momento, matizada atendendo aos variados tipos de famílias
pertencentes aos diversos grupos sociais. Se o empreendimento matrimonial, por parte de filhos(as) de
famílias com recursos fundiários e outros, convergindo com estratégias patrimoniais dos grupos domésticos
envolvidos, introduz virtualmente aqueles no mundo dos possidentes, tal não acontece amiúde com
membros originários dos grupos despossuídos ou pobres. Não obstante a ocorrência de um índice
relativamente mais elevado de nupcialidade, nomeadamente entre assalariados, em regiões de latifúndio no
sul do país (Bacci 1971:42 ss), por comparação aos jornaleiros nortenhos, o simples facto de casar não gerou
em seu favor, ao longo de gerações, acesso a riqueza patrimonial.
Objectar-se-á que a riqueza do jornaleiro(a) consistirá simplesmente na produção de filhos como força
de trabalho. Entretanto, porém, convirá a contrario relembrar que, além de o casamento, no passado, não ter
proporcionado forçosamente acesso à posse de terra, o celibato não tem constituído para diversas das
(ex)jomaleiras e outras pobres obstáculo para obterem terra e outros recursos. Por conseguinte, não é tanto a
virtualidade ou a (in)capacidade individual de casar-se mas mais a configuração sócio-económica e política
em que tal ocorre que permite ou não aos pobres e, em particular, aos seus descendentes relativamente
autonomizar-se e/ou libertar-se da sua condição originária. Estas observações remetem-nos para a
necessidade de contextualizar historicamente a relação dos pobres perante a instituição matrimonial, em
particular em relação aos detentores da riqueza material e simbólica, não só na sociedade envolvente como,
sobretudo, nas respectivas aldeias. De acordo, por exemplo, com as antigas prescrições das Constituições
Synodaesordenadas pelo arcebispo de Braga, Noronha (1697:150 ss), a membros socialmente
marginalizados (vagabundos, estrangeiros não conhecidos) era-lhes dificultado casar, do mesmo modo que
as proibições de casar a grupos indigentes constituíram um fenómeno que, segundo Mitterauer e Sieder
(1982: 123), perduraria em vários países europeus até ao século XVIII. Só a partir de então, a relativa
escassez de criados e jornaleiros – absorvidos em parte pelos modernos processos de industrialização e
urbanização e inerentes inovações tecnológicas – veio possibilitar a sua relativa emancipação das peias
locais e respectivas formas de (semi)servidão e criadagem e, subsequentemente, banir as restrições
eclesiástico-estatais e, assim, facilitar a contracção de matrimónio.
Em Portugal, dado o seu considerável atraso agro-industrial (Godinho 1980: 141 ss, Silva 1989: 112-
125), semelhante processo ter-se-ia verificado bastante mais tardiamente e com efeito retardado. A nível das
duas colectividades em estudo, os dados extraídos dos assentos de casamento, registam, por parte de
jornaleiros e de criados, uma maior ocorrência de casamentos a partir dos anos trinta, não raro para legitimar
uniões de facto. Se a fuga para o ambiente heterogéneo e anónimo da cidade liberta o pobre do dever de
apresentar a cada passo uma espécie de cartão de garantia sobre a sua condição social de origem, o
casamento, não obstante os constrangimentos sociais locais, pode funcionar como uma das vias de um
mínimo de estabilidade e, por vezes, de mobilidade social ascendente. Não é, porém, a instituição
matrimonial como tal e o correspondente estatuto de casado que confere automaticamente o acesso à terra,
mas um determinado grau de desenvolvimento do modo de produção capitalista (ou socialista) que favorece
contextos propícios à emancipação da velha servidão material e mental dos pobres, proporcionando uma
protecção legal, por exemplo, dos filhos ilegítimos e condições sócio-económicas mais propícias ao
casamento.

Centrado na lógica da reprodução e da transformação sociais, o casamento configura-se como uma


matriz nuclear de estratégias onde se entrecruzam alianças e se entrechocam ou amortecem conflitos não só
pessoais como também de classe. Diversificados são, porém, os factores que, cumulativamente ou não,
presidem às escolhas matrimoniais a partir dos parceiros(as) conhecidos(as) no âmbito dos contactos
estabelecidos: a idade e a saúde, os predicados físicos e o charme, a capacidade de trabalho, o prestígio ou a
popularidade local, o grau de escolaridade e, sobretudo, o volume de bens materiais.

164
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

8.1. Interconhedmento e endogamia

Não obstante as rivalidades interaldeãs, a contiguidade ou proximidade geográfica proporcionava, a


partir dos locais habituais de residência e trabalho (campos, serras, feiras e, em Lindoso, a zona fronteiriça),
a ocorrência regular de contactos e interconhecimentos entre rapazes e raparigas casadoiras, os quais não
raro desembocavam em namoros e casamentos. Estes forjavam-se, assim, não só no perímetro da respectiva
freguesia como de freguesias circunvizinhas, particularmente nos seus lugares confinantes, de que 33.3%
dos casais (incluídos os actuais viúvos) registados em Aguiar e 16.8% em Lindoso representam exemplos
significativos.
Como ocasiões adicionais de interconhecimento e sociabilidade aldeãs são ainda de registar, além dos
dominicais encontros e passeios, as bodas, os velórios e, sobretudo em Lindoso, os bailes das festas da
aldeia e arredores. Estes, se bem que sejam predominante ou exclusivamente frequentados por jovens, eram
por tradição presenciados pelos pais e sobremaneira pelas mães, que costumavam orientar e/ou controlar os
movimentos das filhas e, por vezes, dar-lhes sinais para uma discreta aproximação aos candidatos
matrimoniavelmente mais desejados.
Na área das freguesias limítrofes e, ultimamente, da própria vila ou cidade, são ainda de salientar as
redes de sociabilidade interaldeã e até regional construídas a partir das feiras e, sobretudo, das festas e
romarias mais imponentes tais como a Senhora da Peneda para os moradores do Lindoso, a da Senhora
Aparecida para os de Aguiar e a de S. Bento da Porta Aberta para os de ambas as freguesias. As caminhadas,
as paragens nas aldeias de trânsito e, em particular, as estadas nos locais da romaria com bailes espontâneos
ao toque da concertina dão e, em especial no passado, davam lugar não só a interacções de carácter ritual,
mas também a interdependências de amizade, a trocas de bens materiais e simbólicos nomeadamente ao
intercâmbio de homens e mulheres. Não obstante um maior grau de permissividade erótico-sexual –
expressa no ditado corrente «namoro de romaria, é para aquele dia» –, sob a «moral da honra» não eram de
excluir reencontros e desafios entre conterrâneos e sobretudo entre estes e forâneos concorrentes às mulheres
da própria aldeia.
A competição entre raparigas assumia e assume formas várias, sendo de salientar, entre outras, o tipo de
vestido – que aliás funciona como modo classificatório de grupos de concorrentes matrimoniais –, o
despique na sedução de rapazes os quais suscitavam, em regra, um alinhamento preferencial das moças, em
competições desportivas com os residentes.
Aparentemente fortuitas ou recorrentes, encobertas ou transparentes, diversas são as ocasiões propícias
ao pedido da mão da noiva(o), evitando todavia perder a face, na eventualidade de se gorarem as diligências.
Por exemplo, o canto das janeiras e dos reis magos, embora detendo a tradicional função convivial de
encontro e diversão mais alargada, nas últimas décadas, além de representar um acto de homenagem às
famílias visitadas (membros da Junta, lavradores, emigrantes bem sucedidos), surge também como pretexto
para um pretendente a noivo fazer uma aproximação inicial à rapariga cortejada ou para esta e sua família
assentir, de modo implícito, à proposta de noivado4.

Na concepção corrente, o casamento representa o estádio de maturação em que um homem e uma


mulher, tendo acumulado ou sendo-lhes oferecidas condições mínimas capazes de reproduzirem uma nova
unidade doméstica, decidem unir-se, processo este que obedece a um determinado ritual, também ele
perpassado de elementos de conservação e mudança.
Saindo cada um dos nubentes da respectiva casa paterna ou materna, o casar corresponde, com efeito,
ao último rito da sua permanência na casa e, simultaneamente, ao acto inicial de uma nova, o que é vivido
pelos pais do noivo(a), em particular pela mãe, com um misto de saudade afectiva e de alívio, sobretudo
quando a pressão doutros filhos se faz sentir. Porém, até o compromisso formal do casamento ser

4
Por exemplo, em 1985, pude constatar em Aguiar o modo como pelas janeiras um pretendente, filho de um médio lavrador,
convocou os pares do seu grupo etário para fazer ronda à casa da cortejada, filha de pequeno lavrador em ascensão. Em resposta, a
família desta mobilizou parentes e vizinhos para cantar os reis à casa do pretendido como primeiro sinal público de assentimento
ao pedido do moço.
O casamento

publicamente assumido na Igreja na qualidade de depositária preferencial e detentora oficial do


ritualcatólico, precedem várias fases de preparação desde o derriço ou fase de encontros secretos, passando
pelo namoro mais publicitado, até à altura das mútuas promessas de casamento no noivado.

Uma boda: a cerimónia religiosa, Aguiar (foto 25)

166
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Uma boda: os convidados, Lindoso (foto 26)

Se o simples namoro – caracterizado, sobretudo no passado, pela frequência de conversas à porta de casa
dos pais da namorada – não representa necessariamente ainda um compromisso definitivo, já a fase pré-
matrimonial do noivado implica uma maior maturação das condições prévias de reprodução da projectada
unidade doméstica. Um tal comprometimento é não raro mantido em segredo para obviar a contra-
estratégias destrutivas, por parte de terceiros concorrentes, face ao casamento em vista, tal como já o
salientaram, a respeito doutras situações, Willems (1963:70), Loizos (1975:514), Vernier (1977:52),
Tolosana (1979:77), Cassia (1982:655) e Polanah (1987:87).
A vigilância paterna do namoro tem por função, primeiro, evitar macular a honra e, em seguida, obstar a
que haja desvios na marcha de um casamento desejado ou, em caso contrário, dificultar o processo
conducente a tal. Neste contexto são realçadas ora as qualidades, ora os defeitos, de acordo com o objectivo
em vista: selar ou não a aliança matrimonial com tudo o que ela envolve nas estratégias de junção de pessoas
e bens. As posições das respectivas famílias tomam-se decisivas, particularmente no caso de a moça
engravidar antes do casamento, seja no sentido corrente de consumar o mais rápido possível o casamento,
seja excepcionalmente no de recusá-lo.
Deste interactivo e concorrencial jogo faziam e ainda fazem parte estratégias tendentes a desvendar o
eventual interesse doutrem em relação a um dos seus filhos(as), aparentando indiferença ou até simulando a
intenção de casar com uma outra(o), a fim de não ter que rebaixar-se a pedir a determinada família a mão
do(a) verdadeiro(a) pretendente. E, na eventualidade de determinadas estratégias de aproximação
matrimonial falharem, poder-se-iam levantar despeitadamente calúnias, ora denegrindo a integridade
virginal da pretendida, ora pondo em causa a honestidade do pretendido, por exemplo, com o apodo de
«vadio» ou «ladrão», de modo a dificultar-lhe o casamento na aldeia. Estes e outros estratagemas de
aparente desvalorização deste ou daquele candidato matrimonial através de rumores, fundados ou não, eram
sobretudo visíveis quando os concorridos eram homens emigrantes regressados, sobre os quais se insinuava,
por exemplo, que estariam economicamente tesos ou teriam filhos doutras mulheres no estrangeiro. A tais
O casamento

rumores ou boatos podia estar todavia subjacente a contra-estratégia de desvalorizar ou afastar a pretendida
do pretendente, aliás em consonância com a velha máxima popular de que «quem desdenha, quer casar».
Um casamento pode frustrar-se até ao momento preparatório do mesmo, quando já os enxovais estão
prontos, os vestidos ou fatos comprados, os convites feitos e as estratégias lançadas. Ainda que a título
excepcional, é de sublinhar, por exemplo, um caso passado em Lindoso (Le103), no qual a noiva, no
momento da própria cerimónia, quando questionada se «queria o noivo de livre vontade», dá meia volta e
retira-se da igreja. Também hoje a recusa é sentida como uma pesada afronta ao valor do partido rejeitado, o
qual, se repetida a desfeita, ver-se-á, em regra, forçado a tentar encontrar parceiro fora da aldeia: por
exemplo, ainda em 1983, Mafalda (L94) é rejeitada por João (L69) e, em 1985, por José (L20) que, a três
dias do planeado casamento, desiste e foge numa aventura amorosa com uma moça galega.

O padrão comum e dominante de casamento, em particular em Aguiar, era e, embora em menor medida,
continua sendo predominantemente endogâmico, tal como se depreende dos resultados dos registos de
casamentos:

GRÁFICO 9: Endogamia geográfica em Aguiar: 1780-1979 (em%)

Fonte: Assentos de casamento de Aguiar: 1780-1979, ADB, CRCB e RPA.

De acordo com os resultados registados no anexo 11, em 468 casamentos efectuados em Aguiar de 1780
a 1979 as mulheres apresentam, em termos globais, uma taxa de endogamia bastante mais elevada que os
homens, geográfica e socialmente mais móveis: 87.6% das mulheres e 59.8% dos homens, respectivamente,
são oriundos da própria freguesia; ou 97.2% das mulheres e 90.8% dos homens, se incluirmos as paróquias
vizinhas. No pólo oposto, contabilizando o número de cruzamentos matrimoniais com parceiros(as)
regionais e distantes, a sua concretização, salvo sobretudo a partir da década de sessenta e certamente por
impacto das saídas migratórias, é, em termos globais, reduzido ou insignificante: 9.2% dos homens e 2.8%
das mulheres. Só, portanto, na sequência do mais acentuado movimento migratório a partir de 1960 diminui
consideravelmente a percentagem de homens casados e naturais de Aguiar, em contraste com o aumento de
homens vindos de paróquias vizinhas, da região e distantes: 46.9% em 1960-69 e 56.8% em 1970-79.
Os gráficos 10 e 11 mostram que dos casamentos saídos das actuais casas – incluindo os de
protagonistas actualmente não residentes – 78.1 % dos homens e 87.7% das mulheres eram respectivamente
originários de Lindoso, subindo a 83.9% e 88.9% respectivamente, se incluirmos as outras aldeias da
freguesia.

A fronteira de inclusão-exclusão para que alguém se constitua ou não virtualmente candidato em

168
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

determinado grupo matrimoniável não é contudo tanto função da distância ou da proximidade geográfica
mas social, englobando não só a dimensão de prestígio ou poder local como também e sobretudo os recursos
nomeadamente fundiários das famílias dos candidatos matrimoniáveis. A endogamia geográfica, se por certo
evita uma dispersão de afectividades, mais que da «necessidade de integração», como sustenta Cabral
(1991:151) resulta da maior probabilidade de segurança pela avaliação dos recursos e da conduta do
candidato.

GRÁFICOS 10 e 11: Endogamia: naturalidade dos noivos (Lindoso)

Fonte: ILL, 1984-85. Inclui casados, divorciados e viúvos(as) residentes e/ou originários de Lindoso.

É aliás nesta perspectiva que a escolha do partido matrimonial adquire relevância sociológica, em termos
não tanto de casar dentro ou fora da aldeia, mas mais de casar dentro, abaixo ou acima do grupo social a que
originariamente se pertence. Daí que nos casamentos, quer endogâmicos, quer exogâmicos mas relacionados
com parceiros de freguesias circunvizinhas, na óptica dos casantes e suas famílias sobretudo possidentes,
torna-se possível o que é previamente imprescindível para encontrar um partido de «boa cepa»:
prospeccionar e obter um conhecimento concreto e minucioso da situação económica da contraparte e sua
família, da sua reputação social, do número de filhos e respectivas posições, bem como do comportamento
sócio-moral do futuro parceiro conjugal.
Exceptuando os raros casamentos exogâmicos de excepcional prestígio, positivamente avaliados e, por
isso invejados, por tradição a procura de parceiros estranhos à aldeia não encontra(va) receptividade por
parte dos moradores e, em especial, dos familiares, sendo tais ocorrências, por vezes, objecto de clara
reprovação, sobretudo quanto tal representasse abandono dos respectivos testadores. O casamento com um
parceiro geograficamente distante é sentido com certa ansiedade pela família do nubente na medida em que
a evolução e o resultado de tal empreendimento se tornam incertos, motivo que aliás deve estar na origem do
aforismo popular de que «quem casa longe, ou engana ou é enganado». Ora, tratando-se de casamentos
projectados com membros provenientes, já da própria freguesia, já de freguesias vizinhas, o risco de «mau
casamento» é limitado pelo conhecimento do candidato(a) e, sobretudo, pelo controlo do volume de bens e
demais elementos fulcrais que presidem às decisões de escolhas matrimoniais. Estes critérios, já salientados
por Thomas e Znaniecki (1971:26 ss), apelam não só ao alargamento do conceito de endogamia para além
da aldeia, como ao seu enriquecimento pelo de homogamia.
Além dos, já referidos, raros casamentos de prestígio com parceiros geo-socialmente distantes, tanto os
O casamento

casamentos ocorridos entre parceiros da própria freguesia, como de freguesias limítrofes tornam-se
compreensíveis quando inseridos na lógica de preservação e, se possível, de aumento do património familiar
original. Dados os interesses socialmente endogâmicos presentes em cada aldeia, as tentativas de namoro e
casamento por parte de pretendentes forâneos eram, em regra, vistas como ameaça aos interesses, em
especial patrimoniais, dos candidatos da própria aldeia. Daí os moços não permitirem que estranhos lhes
viessem «roubar» as moças conterrâneas, sobretudo as mais solicitadas ou «cobiçadas».
Se bem que forâneos não fossem formalmente excluídos ou proibidos de encetar uma relação afectiva,
quer em Lindoso, quer em Aguiar, eram não raro «desfeiteados» ou até sovados e corridos à pedrada. Tanto
ex-namorados e hoje casados com moças de fora (A41,79) como ex-forâneos actualmente residentes (L59,
Al18) relatam que, para se verem livres das arremetidas dos seus concorrentes, foram forçados a procurar
aliados na aldeia visitada ou a trazer a sua própria claque e, mesmo assim, por vezes, «armar-se de pistola»
(L59). A situação só amainava, quando o pretendente pedia a mão da rapariga aos pais desta, os quais, se o
casamento lhes agradava, preocupavam-se em anunciar, logo que possível, os banhos na Igreja, de modo a
evitar manobras de desvalorização matrimonial por parte de famílias concorrentes. O estranho neófito, uma
vez aceite, era obrigado, em gesto de submissão ao domínio territorial dos demais concorrentes da terra, a
pagar-lhes, a título de compensação simbólica, umas rodadas de vinho.
A mobilidade geográfico-social, quer em sentido centrífugo pela saída de homens quer, sobretudo em
Lindoso, igualmente em sentido centrípeto pela vinda de homens para a construção da barragem, veio,
respectivamente, ora propiciar alguns casos de separação e divórcio, em particular em famílias migrantes,
ora aumentar a oferta de concorridos e promissores noivos forasteiros, abrindo assim mais o leque de
possibilidades de enlaces matrimoniais para as moças autóctones casadoiras. Estas, desejosas de trocar o
árduo e pouco rentável trabalho da terra por outra ocupação e/ou segurança de um emprego do marido em
sectores não agrícolas, sobretudo no estrangeiro, apresentam-se mais disponíveis para sair da aldeia e casar
exogamicamente mesmo com consortes distantes, o que aliás ocorreu desde o início dos anos setenta em
6.4% das casas de Lindoso e 9.8% das de Aguiar. Por seu turno, os filhos-varões, sobretudo quando pela via
emigratória detêm recursos próprios, especialmente capital-dinheiro, estão menos sujeitos a pressões
familiares nas opções matrimoniais.
Apesar do peso ainda considerável da família e das suas tradicionais estratégias casamenteiras,
começam a desfazer-se um tanto, se bem que subrepticia e ligeiramente, os padrões de casamento
(peri)endogâmico, assim como algumas práticas de controlo do mercado matrimonial interno.

8.2. Interesse e paixão: a condição social

Sendo tradicionalmente os casamentos, no dizer de Bourdieu (1962:56) e Vernier (1977:32), um assunto


de cada grupo doméstico, a filha ou o filho deveria, no interesse da própria família, ser leal às directrizes
desta no tocante às regras de namoro e à escolha do parceiro(a) matrimonial de entre os potenciais
candidatos inseridos num círculo igual ou superior ao próprio. Subjacente a determinada opção familiar
encontrava-se, misturada com a afeição ao filho(a), a preocupação da preservação e da continuidade da casa,
do nome e, como refere Bourdieu, «o amor do próprio destino social»: «O amor socialmente aprovado e,
por isso, predisposto ao sucesso, não é outra coisa senão este amor pelo seu próprio destino social, que
reune os parceiros socialmente predestinados pelas vias aparentemente fortuitas e arbitrárias duma escolha
livre» (1980:269).

Particularmente quando o filho(a) não possuía recursos alternativos de subsistência, os pais detinham,
com a posse de terra ou gado, um trunfo decisivo para encaminhá-lo(a) na preferência por determinada(o)
pretendente. Se excepcionalmente poderiam ser aplicados métodos extremos de chantagens e ameaças de
deserdação, em regra, porém, os meios utilizados pelos pais, como nos mostram as convenções antenupciais
em Aguiar desde o século XIX, consistiam na concessão compensatória de dotes pré-matrimoniais na
condição de se realizar o casamento pretendido, sobretudo quando a contraparte nubente já era herdeira e o
projectado casamento era visto com agrado. No entanto, ainda aqui era bem nítido, sob a perícia do notário
nas respectivas escrituras antenupciais, o cálculo racionalizado dos doadores e respectivos nubentes – aliás
respaldado pela própria lei. Assim, conforme o casal se mantivesse indissolúvel e com descendência ou se
170
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

viesse a separar judicialmente por pessoas e bens e/ou não tivesse filhos à morte de qualquer um dos
cônjuges, adaptar-se-ia em tais pactos o correlativo regime matrimonial: o regime de comunhão geral de
bens para a primeira eventualidade ou o da separação ou simples comunhão de adquiridos a título oneroso
para a segunda5.
Actualmente e nas últimas décadas, salvo, por vezes, nalguns casamentos prestigiantes entre lavradores
médios e abastados (A33-53, 44-93, 27 e 28 versus forâneos), não tem lugar, entre as famílias dos noivos,
uma troca generalizada de dotes, sendo apenas a família da noiva obrigada, por regra, a prover o enxoval e a
custear o grosso das despesas de casamento. Quando muito e independentemente da categoria social, pode a
família da noiva ou do noivo ou até ambas, de acordo com as suas posses, ceder aos noivos uma terra para
cultivo, uma casa ou um pedaço de terreno para construção, móveis para o arranque do novo grupo
doméstico ou outras ajudas. Estes adiantamentos ou dádivas, também constatados noutra freguesia minhota
por Geraldes (1987:237 ss), não acarretando para os beneficiados exclusão na futura herança, representam
mais uma espécie de contraprestações ou compensações pelo trabalho exercido para a casa.
Em Lindoso, para além da maior exiguidade de recursos, o facto de a partilha ocorrer em vida dos pais
e, em regra, por altura do casamento de um dos filhos – geralmente o primeiro – dotava os novos casais de
condições mínimas de subsistência, dispensando os pais de conceder as referidas doações como em Aguiar.

Mesmo não consciente nem publicamente assumida, amiúde conjugada e, por vezes, até encoberta sob
valores afectivos, a escolha de parceiros de famílias dotadas tem por objectivo a recuperação e/ou a junção
de patrimónios familiares e doutros recursos estratégicos tais como dinheiro, títulos, profissões bem
remuneradas, conexões, meios esses que assegurem a posição adquirida e/ou expandam a nova casa.
Embora nas escolhas matrimoniais confluam várias condicionantes, o volume de bens, em especial a
terra, e o correlativo lugar na hierarquia local tem constituído um factor decisivo que aponta para a
existência de padrões de casamento não só (peri)endogâmicos como tendencialmente homogâmicos,
Analisando retrospectivamente os cruzamentos matrimoniais de ambas as freguesias e diferenciando-os
por grupo ou conjunto de grupos sociais equivalentes, poder-se-á dizer que, embora até 1920-30 os assentos
de casamentos dos registos paroquiais6 sejamnão raro omissos ou inespecíficos quanto à determinação da
categoria social dos pais do(a) nubente, os dados recolhidos desta fonte e de informações orais relativas
últimas décadas sobre as profissões dos noivos evidenciam que a globalidade dos cruzamentos matrimoniais
efectuados entre 1780 e 1979 obedecia a uma lógica de homogamia social.
Os cálculos estatísticos mostram que, entre as profissões dos noivos e as das noivas, há uma relação de
dependência nítida, a todos os níveís, tanto para a freguesia do Lindoso como para a de Aguiar
(respectivamente X2=367.2 e X2=186.6, com nove graus de liberdade).
Abstraindo dos casos sem profissão registada– cuja distribuição por sexo aliás se aproxima (30.9%
versus 33.3% no Lindoso e 25.4% versus 20.1% em Aguiar) – o rácio global de lavradores, artesãos,
empregados e funcionários versus as suas homólogas contrapartes traduz-se em l:1.08 para a freguesia do
Lindoso e 1:0.95 para a de Aguiar. Por sua vez, se é certo que no Lindoso 36 jornaleiros conseguiram casar
com pequenas lavradoras – sendo mais raro o contrário –, caseiros, jornaleiros e criados casaram com
mulheres de condição similar na proporção de 1:0.67 na freguesia de Lindoso e 1:1.34 na de Aguiar.

5
Cf. respectivamente arts. 1108 a 1125, 1133 e 1198 do Código Civil de 1867. Entre outros, são de referir, em Aguiar, os
seguintes dotes por escritura notarial e convenções antenupciais: EAA 22-4-1882 in NTB Li25:107v; CAA 26-4-1882 in NTB
Li15:30v, EAA de 3-1-1893 in NTVP; CAA 30-7-1900 in Li2A:23v; EAA 8-2-1909 in NTC.
Não sendo hoje usuais os dotes, verificam-se todavia, particularmente entre filhos(as) de lavradores, casos de derrogação da
regra de casamento com comunhão de adquiridos pela comunhão geral de bens (CAA 63/76 17-9-1969 II C; CAA 47D 21-4-1980
I C; CAA 78B/31v-II C, 3-1-1972); ou ainda, por vezes, pequenas doações por ocasião do casamento dos filhos(as): por exemplo,
A44, A129 e A2 (P40 in NTB Li93C:52). A este respeito, cf. também, para a Extremadura, Riegelhaupt (1967:116) e para a Beira
Baixa, A. Santos (1992:192 ss).
6
Os critérios, por vezes subjectivos, de classificação de profissões, por parte do pároco, merecem alguns reparos na medida em
que a sua atribuição nem sempre se centra na profissão do noivo(a) no momento do casamento, mas, por vezes, em função do seu
processo de promoção sonal, sobretudo quando ligado àquele(a) por laços de parentesco, amizade ou compadrio: cf., entre outros,
o de Regina (A95), sobrinha do padre Vaz (ACA 29-1-1955), Óscar (ACA 27-4-1961) e Matos (ACA 18-5-1946). Do mesmo
modo, a irmã do proprietário padre Roberto foi por este classificada de «profissão nobre».
O casamento

QUADRO 15: Distribuição de noivos(as) por categorias sociais (1780-1979)

Legenda: (1) proprietário, lavrador/a; (2) pequena lavradora, doméstica; (3) jornaleiro/caseiro, criado(a); (4) operário(a);
(5) empregado, funcionário(a); (6) sem informação.
Fonte: Assentos de Casamento do Lindoso e de Aguiar, 1780-1979, ADVC, ADB, CRCB, CRCPB, RPL e RPA.

Especificando os resultados por grupo social verificamos que, no Lindoso, do conjunto de 334
lavradoras, 88.3% casaram com lavradoras, distribuindo-se as demaispor pequenos funcionários e artesãos e,
só excepcionalmente em 1.5%, com jornaleiros ou criados. Entre 168 pequenas lavradoras, geralmente dadas
como domésticas, salvo 27.3% que casaram com lavradores-proprietários ou então empregados e
funcionários, 51.2% aliaram-se a pequenos lavradores, artesãos ou operários e 21.4% contraíram matrimónio
com jornaleiros ou criados.
Do mesmo modo, em Aguiar, entre 139 lavradoras, 82% casaram com proprietários e lavradores, 16.5%
com funcionários, artesãos ou pequenos camponeses e só 1.4% com jornaleiros ou criados. Das 133
pequenas lavradoras-domésticas e 11 artesãs, salvo 3.5% que casaram abaixo da sua condição com
jornaleiros, 29.8% conseguiram casar hipergamicamente com lavradores e 63.l % fizeram-no com pequenos
lavradores e sobretudo artesãos. Por sua vez, 55.9% das 59 jornaleiras seduziram para partidos de casamento
caseiros, artesãos, operários e mesmo lavradores. Estes dados permitem-nos inferir que, em regra, as
alianças matrimoniais têm-se reproduzido entre membros de famílias de idêntica ou semelhante categoria
social vulgarmente traduzida na expressão com a mesma «forma de pé». Neste sentido, todos os casamentos
– e não só o do herdeiro principal da casa, como refere para Trás-os-Montes O'Neill (1984:251), – são
estratégicos, mesmo quando traduzam estratégias diferenciadas por parte dos respectivos actores sociais.
Enquanto membros dos grupos domésticos estabelecidos e mais abastados, não raro oriundos do mesmo
tronco familiar, tendiam a casar entre si e a permanecer na aldeia ou numa das vizinhas, aos menos dotados
economicamente restava-lhes procurar os seus parceiros no mercado matrimonial entre os filhos(as) de
artesãos, pequenos camponeses, operários e, por vezes, jornaleiros(as), alguns dos quais não chegaram a
unir-se em casamento, mantendo-se em relações concubinas, já efémeras, já permanentes. E, por fim,
membros dos grupos domésticos sem recursos que os ligassem à aldeia, quando não casavam nesta, eram
forçados a sair e a disseminar-se, casando-se eventualmente com quem as vicissitudes de sua vida ambulante
e, com frequência, instável lhes deparassem.
Era, portanto, na mira de maximizar ganhos materiais e simbólicos que os parceiros de casamento eram
meticulosamente escolhidos, no dizer de um morador de Lindoso, como «espigas da semente». Para que o
empreendimento matrimonial fosse coroado de êxito eram levadas a cabo ora diligências directas e
indirectas ora estratagemas mais refinados entre de ambas as famílias ou, quando emigrados, entre futuro
sogro e genro, em que, por vezes, de modo patriarcal e à margem ou até contra a vontade das filhas eram
literalmente arranjados casamentos. Era, porém, após o seu regresso, que a ex-emigrantes, tilintando
dinheiro e, ultimamente, também munidos de escolar, no espaço de uma a duas semanas, lhes eram

172
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

oferecidas como noivas filhas de lavradores7.


Nesta lógica de casamentos de conveniência ou mesmo arranjados sem atender ao consentimento e à
sensibilidade do(a) nubente, sobressaem alguns casos de levirato e sororato em que o cunhado(a) solteiro(a)
casa com a(o) cunhada(o) viúva(o) com a intenção de cuidar da prole do irmão/irmã falecido(a) ou para
afastar ameaça de não-descendência. Digno de registo é, por exemplo, em Aguiar, o caso de uma oferta
matrimonial, aliás aceite, por parte da sogra ao genro viúvo no próprio dia do funeral da filha: «Não te
aflijas, José, que eu tenho mais três moças e ainda podes escolher uma delas» (Ae131). Ou, recuando
bastante mais no tempo, segundo um testamento em Lindoso, a testadora deixaria os seus bens a «seu
marido e cunhado Valente» (LTL:14, 29-1-1742).
Quando a abordagem se torna delicada, são enviados especiais mensageiros tácticos vulgarmente
denominados casamenteiros(as) (Le41, A44), para que façam de ponte e estabeleçam as condições prévias
do negócio matrimonial. Os atributos do(a) pretendente e, sobretudo, os bens da sua família são
expressamente sobrevalorizados como táctica de persuasão junto da família da(o) pretendida(o).
Particularmente quando os pretendentes são emigrados e os meios de controlo são menos acessíveis,
costumam estes ou seus medianeiros aplicar estratégias de bluff, empolando os seus bens, ganhos ou
salários. Neste contexto, é de referir o caso exemplar de Barnabé (Ael03), um ex-«brasileiro» sem sucesso
em Aguiar que, no intuito de impressionar a rica morgada Inês (A46), mostra-lhe à mão 100.000$00
emprestados dum credor de freguesia vizinha e, para criar imagem de «brasileiro» endinheirado e «causar
inveja» nos conterrâneos, esbanja conspicuamente, organizando jantaradas e borgas como sinal de casa farta.
Ou então, em Lindoso, por sugestão do medianeiro Raposo, o emigrante Ferraz persuade em 1962 a noiva,
comprando-lhe um Mercedes.

Considerações estratégicas de natureza fundiária não implicam necessariamente a exclusão de paixão ou


de sentimentos de afecto entre os nubentes. Só que, sobretudo até à desestruturação aldeã das últimas
décadas e na ausência de alternativas no exterior da mesma, as disposições afectivas e morais dos casantes
eram modeladas de acordo com os imperativos económicos veiculados e invocados pelos principais
protagonistas da geração mais velha: os pais. Neste contexto, aliás, as preferências dos filhos(as) iam ao
encontro das sugestões ou imposições dos pais. Se eventualmente um filho(a) contrariasse a vontade paterna,
pretendendo uma outra candidata(o) de posses inferiores, o namoro era amiúde recusado, sendo objecto de
anátemas morais, pressões e chantagens psicológicas, represálias e sanções materiais ou simbólicas tais
como denegar o enxoval, não colaborar nem comparecer ao casamento, forjar uma declaração de
diminuído(a) mental para o respectivo filho(a), investir outro filho(a) que não o «rebelde» na função de
herdeiro principal, retardar-lhe a transmissão de bens e/ou lançar sobre ele uma maldição, tal como Narcisa à
sua filha Maria (Ll19): «Ainda tu tenhas tantos filhos e cornos como todas as cabras juntas na vezeira».
Semelhantes recusas só se iam esmorecendo ao longo dos anos à medída que o filho(a) e a respectiva
nora/genro fossem conseguindo demover os pais/sogros das suas posições através de atitudes de atenção,
dedicação ao trabalho e poupança.

Dados os padrões de casamento, em regra endogâmicos e homogâmicos, são de assinalar as alianças e


as tensões entre famílias de posição económica e prestígio social semelhante, cuja aversão à divisão do
património originário teria ocasionado, embora excepcionalmente, a separação temporal de facto entre
marido e mulher (Ae33, L37).
Se normalmente as lutas de concorrência ou despique matrimonial se continham nos limites do
razoável, por vezes, ultrapassavam-nos e desembocavam em assaltos e confrontos físicos violentos, em
crimes passionais ou desenlaces dramáticos. Por exemplo, no início dos anos quarenta – um período de forte
pressão sobre a terra, exígua em relação à procura –, Gonçalves (Ae90) pungido de ciúmes por ser preterido
por Rosa em favor do emigrante Sequeira (Ae55), dispara, na própria noite de núpcias, para o interior do
quarto dos noivos recém-casados um tiro que só por erro de cálculo não atingira o alvo. Ou, viceversa,

7
Respectivamente A83 e 93, 90 e 91, 44 e vizinho de Quintiães; Le41; Ae54, 69, 83, 151, 12. De referir sobre este tipo de
casamento a seguinte estrofe de um velho artesão: «Porque elas são tão loucas de sentido que, logo que aparece um burro com
chapéu (="brasileiro"), querem-no logo para marido» (A117).
O casamento

fracassada a estratégia do referido emigrante Barnabé no sentido de casar com a rica e bela morgada Inês
mas retendo ele um anel desta, é literalmente assaltado por uma claque comandada pelo seu próprio irmão
José – desfavorecido na herança– e reforçada pelo presidente da Junta Severino e alguns ex-concorrentes. O
objectivo estratégico final destes – aliás conseguido – era forçar Barnabé a emigrar e a vender os bens. Foi
ainda num contexto anterior de disputa de pretendentes pela referida Inês que, em 1937, num regresso de
festa, em plena algazarra, Filipe, filho da abastada família Fortuna, ameaçado de estrangulamento, esfaqueia
e mata Fernando, filho do médio lavrador Martins (Ae54).
Na racionalidade reprodutiva e expansiva do património familiar mediada pelo casamento se enquadram
igualmente várias alianças matrimoniais interfamiliares em que filhos e/ou filhas da família X casam
respectivamente com filhas e/ou filhos da família Y, reproduzindo-se algumas delas ao longo de diversas
gerações. Este tipo de endogamia interfamiliar com a respectiva troca de mulheres e homens originários de
duas famílias, além de se coadunar com representações ideais da unidade do tronco genealógico comum,
vem de encontro às estratégias de não fragmentação excessiva dos patrimónios familiares originais, estreita
relações entre irmãos e favorece fusões, trocas ou concessões mútuas intrafamiliares nas partilhas e demais
transacções fundiárias.

Ainda inseridos na referida lógica de restabelecimento e/ou junção dos patrimónios familiares originais
são de notar, em particular, os casamentos consanguíneos entre primos nomeadamente entre segundos e
terceiros primos, casamentos esses restituíveis a partir das dispensas eclesiásticas que, por exemplo, em
Aguiar, entre 1905 e 1974, perfizeram 14% do total de 198 casamentos, fenómeno constatado também por
Iturra (1983:102), Cabral (1984:276) e Brettel (1991:141). Mais, tal como Augustins (1982:54 ss) já
observara em relação à Bretanha, o casamento entre primos ocorre em economias pouco monetarizadas, com
modo de sucessão fragmentada e herança tendencialmente igualitária, na mira de atenuar os seus
inconvenientes e, ao mesmo tempo, reforçar a coesão de parentelas locais.
O funcionamento da lógica de preservação do património e de hostilidade à sua divisão pode ainda
aferir-se pelas reacções aos casamentos em segundas núpcias, os quais ocasionam amiúde tensões e, por
vezes, litígios entre familiares do cônjuge falecido e a do cônjuge sobrevivo com o seu novo parceiro
conjugal, sempre e na medida em que tal transacção envolva repartição de bens, pagamento de dívidas ou
obrigatoriedade de inventário orfanológico (v.g. IOA 6-11-1879; A69 v e33).
Estrategicamente, como foi referido, cada família procura casar o seu filho(a) com um partido com
iguais e, se possível, superiores posses que o próprio, não se questionando ou até despreocupando-se se os
impulsos erótico-afectivos confluem ou não com as estratégias designadamente fundiárias. Por vezes, nem
os casos de gravidez involuntária demovem as famílias das suas estratégias de interesse, acabando raramente
por ceder, contrariamente ao constatado e generalizado por Brandes (1976:212-213) para Becedas, aos
factos consumados por motivo de honra. Pelo menos, em quatro casos relatados em Lindoso e nove em
Aguiar, a honra não constituíu motivo suficiente para legitimar publicamente pelo casamento
enamoramentos passionais havidos entre filhos de lavradores, solteiros ou casados, e suas respectivas
criadas ou jornaleiras, filhas de famílias pobres – de que, na maior parte, resultaram filhos ilegítimos. Tais
relações amorosas, ocorridas em função, ora do poder daqueles, ora da beleza destas, eram todavia
abandonadas face aos programados enlaces matrimoniais, tendo em vista o restabelecimento ou a de
patrimónios familiares.
Se os casamentos arranjados nem sempre excluem relações afectuosas ou mesmo amorosas, não é raro,
porém, assistir a relações pragmáticas, rotineiras e até instrumentais no seio de diversos casais. Em tais
casos, a componente do amor está ausente ou permanece uma incógnita, surgindo a preservação e a
transmissão-apropriação do património familiar como móbil central da acção familiar, vindo à superfície em
especial na fase de velhice de pais/sogros (semi)abandonados, nos momentos de sucessão e, sobretudo, de
tragédia8. Em tais tipos de casamento, se não são perceptíveis grandes solavancos nem traumas ou rupturas

8
Sobretudo por ocasião de heranças (Al 1, 75) ou em amores não correspondidos em casamentos de conveniência, sendo de
destacar, ainda que raramente, o fim trágico do suicídio. Por exemplo, um médio lavrador (Le31), menosprezado por sua mulher,
acabaria por enforcar-se, acontecimento perante o qual a mulher, Ana, ter-se-ia mostrado imperturbável, não se associando aos
demais familiares nem no próprio momento do funeral.
174
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

afectivas, prevalecem contudo relações de indiferença e até de frieza para o interior da casa, às quais se
contrapõem por vezes comportamentos prazenteiros e de afirmação para o exterior, designadamente por
parte dos maridos, o que leva Araújo, filho ilegítimo, casado e hoje polícia reformado, a comentar:
«Bastantes casais nesta terra não se amam, toleram-se. Os filhos aparecem, tornam-se empecilhos e alguns
são até indesejados. Os filhos sentem que há que preservar a memória dos falecidos, além de haver muitos
respeitos humanos. As pessoas levam duas espécies de vidas: uma no palco público e outra dentro de casa»
(A24).

Para a mulher dependente, passionalmente desejada mas rejeitada para casamento apenas por
considerações patrimoniais, o «desfloramento», particularmente quando seguido de gravidez sem o esperado
casamento, era o início do seu sofrimento material e psico-moral, das suas «horas de pranto». Salvo casos
excepcionais de acolhimento, em casa do patrão, com a subsequente educação do filho(a) ilegítimo tal como,
por exemplo, um ocorrido aliás em freguesia vizinha de Aguiar, emocionantes relatos de jornaleiras e
criadas, feitas mães solteiras, dão conta de como, goradas as suas tentativas de acasalamento com os
respectivos patrões, eram simplesmente expulsas das casas pelas respectivas patroas e/ou abandonadas pelos
seus amantes e pais de seus filhos, os quais, após as terem «carnalmente conhecido», não se assumiam
publicamente como tal9.
Algumas destas aventuras amorosas, por vezes consumadas sob falaciosas promessas de casamento,
comportavam todavia custos processuais e materiais para a família do galanteador no caso de a moça
«desvirgindada» ser menor: por exemplo, em Aguiar, a criada Antónia, filha do pequeno camponês-caseiro
Piçarra, por parte de Moisés, filho do médio lavrador Martins10. Uma tal indemnização pelo denominado
«namoro» sem subsequente casamento entre um lavrador e uma criada, jornaleira ou camponesa pobre,
representava não só a reparação material e simbólica do dano moral causado pela recusa do casamento,
como proporcionava à filha «desflorada» a primeira pedra dum dote material que, de certo modo, a
compensasse da «ofensa da honra» e funcionasse como contrapeso pela perda de eventuais oportunidades de
casamento.
Tratando-se de uma relação amorosa extramatrimonial, enquanto esta não fosse descoberta ou
publicitada, tão-pouco os amantes a suspendiam, marcando encontros secretos nos campos ou nos
esconderijos do monte, tal como, por exemplo, a jornaleira Teresa com o lavrador casado Ferreira (Lell0), de
quem teve seis filhos e aos quais dizia: «Mesmo depois da mulher do vosso pai morrer, a família dela e dele
não quis que nós nos casássemos ou então, se quiséssemos, que o fizéssemos com separação de bens. Mas
assim eu não quis. Lá por eu e o vosso pai não termos ido receber as bençãos na Igreja, nem por isso
gostávamos menos um do outro».
Não raro as mulheres, cujos maridos tinham relações extraconjugais com jornaleiras e sobretudo
criadas, mais cedo ou mais tarde apercebiam-se de tal, dando lugar a desavenças conjugais. Todavia, embora
distanciando-se das respectivas amantes dos seus maridos, elas mantinham geralmente, a este respeito, um
longo e intrigante silêncio, evitando qualquer «escândalo público», salvo se tal afectasse a estabilidade
familiar ou pusesse em causa o seu poder de disposição sobre a casa e respectivos bens. Nesse caso não
eram de excluir rixas e duelos com as concorrentes ao ponto de se baterem e puxarem pelos cabelos uma à
outra11.

Se bem que mesmo nas categorias sociais com menos posses sejam igualmente medidos e calculados os
recursos de cada parceiro em face do casamento, é possível assinalar, em relação às casas ricas, uma

9
V.g., respectivamente, Ae123 v e21, 123 v e67, 46 v e67.
10
Além das diligências da «ultrajada» família Piçarra que denunciaria o sucedido ao próprio pároco, também este pressionaria para
que o filho do lavrador Martins reparasse a honra da menor «desflorada», dizendo-lhe: «Ah,fizeste o mal, agora tens que casar
com ela». Todavia, o máximo que o pai da menor conseguiu como compensação foi o valor equivalente de uma terra, ou seja,
11.000$00, achincalhadamente pagos pelo pai do «prevaricador»: «Ao meu filho, aquele bom peixinho saiu-lhe caro, mas soube-
lhe bem».
11
De referir, entre casos de «silêncio» público, os de Lel10 versus Teresa; entre os de duelo ou confronto, os de A46 v e67, Ael23
v 21; L78 v 16. E, entre casos de expulsão de criadas engravidadas, de referir A21 por Ae53, Ae22 por Ae20 (TB P3404:4v
M329. Li20:96, 7-1-1957).
O casamento

diferença considerável quanto ao desenrolar do processo da nova unidade doméstica. Enquanto, num novo
casal com poucas ou nenhumas posses, a lógica da reprodução da própria unidade doméstica vai-se
sobrepondo à lógica de reprodução de cada uma das casas donde cada partido matrimonial é originário, nas
famílias com bastantes bens prevalece e permanece durante muito tempo e, por vezes, até à fase terminal da
vida do casal, esta última. Mais, nalguns casamentos de proprietários-lavradores, foram detectadas tentativas
de açambarcamento, por parte do marido, dos bens da esposa, através de extracção de procurações relativas
à disposição e à administração dos bens desta, chegando um deles (A33) mesmo a exprimir, em público, o
desejo de sobreviver ao cônjuge por intuitos sucessórios.
Neste tipo de casamentos não são inusitadas posteriores lamentações da decisão matrimonial por parte
do parceiro que se reputa desfavorecido, tal como a rica lavradora Joana que, sobre a motivação do seu
marido, comentava: «Ele não casou comigo mas com os campos que eu tinha» (Ae20).

A diferente posição social dos grupos domésticos tem-se reflectido também no próprio cerimonial da
celebração do casamento, particularmente até à década de setenta. Até então, enquanto o casamento das
famílias de médios e abastados lavradores dava lugar a um opíparo jantar com toda a pompa e circunstância
própria do meio da época – para o qual raramente eram convidados membros de famílias pobres –, a festa de
casamento de famílias modestas, designadamente no Alto Minho, consistia num simples pequeno almoço
com pão de trigo e/ou num almoço melhorado para os membros das duas casas dos noivos, além de parentes
e amigos mais achegados, tal como relata R. Brito (1948:151). Porém, tratando-se de jornaleiras(os) com
filhos ilegítimos e/ou viúvos(as), o casamento realizava-se a altas horas da madrugada, porque não convinha
que o facto se tornasse notório, sobretudo quando os nubentes viviam em concubinato ou se tornava
perceptível uma avançada gravidez (Le80; Ae141, e118).
Hoje, porém, ao mesmo tempo que se incorporam no ritual mais elementos modernos, vão-se também
diluindo certas distâncias sociais entre as bodas de ricos e as de remediados. As marcas de distinção e até de
ostentação relativas ao cerimonial, à gastronomia e ao perfil de convidados, têm vindo, de certo modo, a
esbater-se pelo simples facto de as famílias outrora e mesmo actualmente modestas, tendo melhorado as suas
condições de vida e pretendendo (auto)promover o seu capital simbólico, reclamarem idêntico estatuto de
dignidade cerimonial e, por vezes, se apropriarem de elementos de magnificência característicos das casas
«ricanhas». No entanto, verifica-se ainda que, enquanto as bodas de membros de famílias real ou
presumidamente ricas se prezam em convidar inúmeros conterrâneos e «ilustres» personalidades citadinas,
bem como de realizar o ritual do casamento na municipal igreja matriz e organizar um lauto almoço em local
distinto (Franqueira, Bom Jesus, Sameiro), as famílias com menos recursos, além de endereçar menos
convites, organizam o cerimonial na própria igreja paroquial e o almoço no Centro Social da freguesia ou,
quando muito, num modesto restaurante de Ponte da Barca ou de Barcelos respectivamente.
Entre os convidados há a distinguir os que o são por obrigação parental de outros por razões de lealdade
e/ou exibição política, sendo de mencionar, em especial, a presença de famílias com poder económico,
influência e/ou posse de objectos simbólicos de prestígio (automóvel, título escolar). Este tipo de convites,
além de traduzir ora uma expressão de agradecimento por favores já prestados ora uma forma de garantir
outros no futuro, assegura para o acto uma série de valiosos presentes aos noivos – em regra traduzidos, em
1985, em envelopes com 3.000$00 a 10.000$00. Estas ofertas, contrabalançando os avultados gastos da
boda, contribuem para que os noivos possam fazer face aos primeiros dispêndios na casa.
Além de momento estratégico inconfessado para actuais ou virtuais aproximações casamenteiras entre
jovens ainda solteiros – que o tinir de colheres pedindo um tanteante beijo não só entre membros de cada
casal mas também entre namorados simboliza –, o cerimonial de cada casamento, particularmente em
famílias com mais poder local, exprime também uma determinada fase no permanente encadeamento das
estratégias políticas de facções no seio da aldeia12, sendo por vezes aproveitado o acontecimento por um dos
notáveis para, com fervor ideológico e até partidário, brilhar oratoriamente, afirmar-se como grupo e lançar
invectivas aos adversários.

12
Constatado em bastantes dos casamentos a que assisti: por exemplo, Ll10 e 27, 75 e Milheiro de Parada; em Aguiar, A27 e 37,
36 e 37, 59 e 117, 46 e 124, 66 e 23; A134 e forâneo, 44 e forâneo, 54 e 1, 134 e 116.
176
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Se, como veremos de seguida, sobretudo nas últimas décadas, outros critérios que não os estritamente
fundiários se introduzem e um novo reequilíbrio entre os grupos sociais se desenha de modo visível no
cerimonial do casamento, aos encontros e arranjos matrimoniais subjaz ainda a lógica de preservação,
reprodução e, se possível, expansão dos patrimónios familiares de cada uma das famílias donde cada
nubente é originário.

8.3. Paixão e interesse: a idade nupcial

O critério do quantitativo de bens fundiários, não obstante constituir uma das principais condicionantes
das alianças matrimoniais nas respectivas aldeias, não deve ser encarado de maneira isolada, mecânica e
estática, dado actuarem, neste campo, igualmente outras componentes de índole físico-biológica, erótico-
estética e educativo-cultural: a idade, a paixão, a beleza, o «feitio» ou o capital escolar. A presença
dalgum(s) destes factores pode compensar a inexistência ou o défice de bens patrimoniais, tendo-se tomado
decisiva, por exemplo, a idade em três e cinco cruzamentos matrimoniais respectivamente em Lindoso e em
Aguiar13.
A idade de casamento representa um indicador importante do valor de cada parceiro no mercado
matrimonial, se bem que tal factor, sendo variável de período a período e diferentemente avaliado por sexo e
categoria social, exige ser analisado em articulação com os factores referenciados em 8:2. Fixando-nos, para
já, nos resultados dos inquéritos locais, as idades dos casamentos saídos das actuais casas de Lindoso e de
Aguiar, incluindo membros casados, viúvos e divorciados mas já não residentes, distribuem-se pelos
escalões da pirâmide etária representados no gráfico seguinte:

GRÁFICO 12: Nupcialidade: idade

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

13
Entre outros, em Lindoso, Rosa (L111), de 18 anos, naturalizada espanhola com viúvo lavrador espanhol, de 70 anos; António
(L109), de 25 anos, com viúva rica citadina, de 60 anos; Maria, de 35 anos, com ex-emigrante reformado de 65 anos (L96). Em
Aguiar, a criada Maria, de 29 anos, com lavrador António Cunha de 51 anos; Maria (Ae69), de 17 anos, com o rico lavrador
Domingos (Ae53), de 65 anos; Adriana (Ae54), de 25 anos, com «brasileiro» José (Al51), de 37 anos; Joana (A93), de 27 anos e
Lima (A83), de 39 anos. E, mais recentemente, Rosa, menor de 17 anos (A66), a qual, após convénio da cunhada do pretendente
Amaral (Ae54), de 41 anos, com a mãe da pretendida, foi «entregue» a Amaral, possuidor de razoável capital fundiário e escolar.
O casamento

Contando apenas os casais vivos até 1985, a média geral do total de casados ligados a Lindoso e a
Aguiar é respectivamente de 24.7 e 25.8 anos. O gráfico 12 evidencia ainda que o escalão de idade mais
frequente da nupcialidade masculína é de 26-30 anos e o da feminina de 21-25, se bem que, em Aguiar, a
nupcialidade feminina no escalão 26-30 seja ainda considerável: 33.5%. De qualquer modo, torna-se
manifesto que as mulheres casam mais cedo, sendo a média etária, para os homens de 28.3 e 30.2 e, para as
mulheres, de 25.1 e 28.2 anos, respectivamente em Lindoso e em Aguiar (anexo 12). Particularmente nas
famílias mais modestas (artesãos, caseiros) havia a preocupação de casar os filhos e sobretudo as filhas o
mais cedo possível, de modo a não desperdiçar ocasiões, evitar elevar custos materiais ou simbólicos dum
tardio ou incerto contrato matrimonial ou ainda, simplesmente, obviar os riscos de gravidez pré-matrimonial,
receios expressos em Aguiar no seguinte refrão: «Todo o pai que tiver filhas/ e dote para lhes dar/ ou as
meta num convento/ ou as trate de casar». Ou um outro: «Ó minha mãe, minha mãe, não se pode ser
mulher/ se é bonita, ganha fama/ se é feia, ninguém a quer».
Embora, de acordo com os costumes locais, as primeiras expectativas de casamento se centrem nas
filhas ou nos filhos mais velhos, não é dada, contrariamente a regras vigentes noutros países como a Grécia
(cf. Vernier 1977:41), qualquer prioridade casamenteira ao primogénito(a), dependendo a sequência de
casamentos na casa das estratégias concretas de cada família, da habilidade de cada candidato ou de
ocorrências imponderáveis tais como a prenhez pré-matrimonial.

Se deficiências físicas ou mentais, a idade avançada ou a «desonra» de filhas de famílias providas


podem provocar-lhes uma desvalorização ao ponto de constituir-se partidos matrimoniáveis para filhos
originários de famílias modestas ou até pobres, estes, por seu lado, tendem a realçar a sua capacidade de
trabalho, os seus atributos físicos de juventude, beleza e/ou força física, a fim de cativarem parceiras(os)
solteiras ou viúvas que, mesmo quando portadores de um considerável diferencialde idade, estejam
apetrechadas(os) de recursos fundiários, títulos escolares e/ou elevados rendimentos fixos. Deste modo,
embora excepcionalmente e não sem atribulações, algumas famílias pobres14, actuando como um corpo
unido e firmando-se nas mencionadas qualidades estéticas, eróticas ou produtivas, conseguiram com
habilidade vencer a resistência de famílias economicamente mais dotadas e casar nestas algum dos
filhos(as). De uma tal estratégia pragmática dá conta o jovem Manuel, hoje taxista, que com os seus 25 anos
casara com uma mulher de 60, desabafando na intimidade: «Custa um pouco aturar a velha, mas com o
dinheiro e os campos dela conquisto uma nova» (Lel09) ou um outro: «O que possa fazer na cama, não o
faço trabalhando com o costado».

Que a diferença da média da idade nupcial por sexo não é apenas de hoje, mas resulta ser um dado
recorrente, pode igualmente comprovar-se numa panorâmica retrospectiva a ambas as freguesias,
abrangendo os casamentos aí realizados entre 1860 e 1985:

14
Entre outras L111, A39. Por exemplo, Cristina (Ae39), irmã de Óscar, pretendente de Eva, e, simultaneamente, criada na casa
de Filipe Fortuna, tio da pretendida Eva e principal opositor ao casamento de Óscar com esta, chegou a arranhar-se
completamente para poder escutar, na calada da noite, as conversas a este respeito e prevenir o irmão nas tácticas a adoptar para
assim neutralizar concorrentes e levar a bom termo a estratégia matrimonial.
178
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

GRÁFICO 13: Idade média de casamento (1860-1985)

Fonte: Assentos de casamento do Lindoso e de Aguiar, 1860-1985, CRCB, CRCPB, RPL e RPA.

Mediante a construção de intervalos de confiança para as diferenças de médias com observações


emparelhadas ao longo das décadas registadas, foi possível provar, a todos os níveis para Lindoso e a 0.25%
ou mais para Aguiar, que a média geral da idade nupcial masculina é ligeiramente superior à feminina em
3.2 anos no Lindoso e 2 em Aguiar. Se excepcionalmente a mulher se apresentasse desvalorizada por uma
idade bastante superior à do marido e, por vezes, por baixa reputação simbólica, tal poderia ler-se, como se
observou, como um indício de compensação económica (terra, dinheiro, prédios) por parte dela perante um
homem mais jovem mas pobre, ao qual se entregava ora por atracção física, ora sobretudo, dado o receio de
gorar-se a oportunidade de casar com um partido da sua condição, por estratégia de fecundidade: «Se
quiseres casar comigo, está bem, pois eu para namorar não tenho tempo» (L53).
Ressalvando a aproximada média de idade nupcial para ambos os sexos nas décadas de 1870-79, 1940-
49 e 1970-79 em Aguiar, o diferencial etário por sexo varia também por década, situando-se por norma entre
um a três e, excepcionalmente, entre um a quatro ou mais anos (anexo 12). Estes resultados, não obstante
apresentarem um diferencial etário por sexo ligeiramente maior ou, por vezes, inverso ao constatado
porBrettel (1991:119 ss), convergem com as conclusões de estudos histórico-demográficos e antropológicos,
relativos a diversos períodos históricos, tais como o de Bacci (1971:48), Amorim (1987:110 ss) e Geraldes
(1987:418). Em relação a Lindoso e a Aguiar, verifica-se, em termos de prazo, uma evolução no sentido do
seu progressivo encurtamento sobretudo desde as décadas de vinte e trinta e, mais incisivamente, desde
1960.
Para a diferença de idades de casamento por sexo dever-se-á também ter em linha de conta, além da
maior frequência de recasamento por parte de homens viúvos, a idade mais avançada de homens-emigrantes
regressados que, independentemente de encontrarem ou não mulheres da sua coorte, podiam permitir-se,
quando bem sucedidos, casar com mulheres mais novas que eles. Este facto não deixava de suscitar, por
parte de coortes concorrentes e alguns vizinhos mais, determinadas reacções de repúdio manifestas
sobretudo no ritual da assuada, localmente também designado de chocalhada, funilada ou cornetada, no
qual se faziam rondas e se emitiam ruídos e sons cacofónicos com panelas, funis, búzios ou cornos de bois à
volta da casa dos nubentes15.

15
Por exemplo, Al2, Ae67. Este fenómeno, mais do que exprimir uma crise comunitária generalizada ou, como defende Oliveira
(1984:345), a reprovação de toda a comunidade acerca de «atitudes de desintegração social ou cultural», serve para canalizar ou
O casamento

Diferentemente de conclusões de outros estudos sobre sociedades europeias que apresentam uma
descida da média da idade de casamento no início do século XX, subsiste, em especial até 1950-1960, uma
média mais elevada de casamentos tardios, constatada não só em Lindoso e sobretudo em Aguiar, como
noutras aldeias do noroeste e do mediterrâneo16, mais por parte dos homens que das mulheres. A partir da
década de sessenta a média de idade nupcial começa a diminuir, coincidindo aliás tal facto com a
emergência de nova configuração sócio-económica e o início de melhoria de condições de vida devido
particularmente às migrações. Poder-se-á todavia reduzir a persistência do casamento tardio ao factor
económico?
Para explicar o casamento tardio, Burguière (1972: 1137 ss)aduz um argumento de tipo freudiano, a que
associa paralelamente um raciocínio de inspiração weberiana. Assim como o espírito do protestantismo teria
propiciado condições para o eclodir do tipo de empresário capitalista, assim também o sacrifício ascético
e/ou a sublimação do eros pelo casamento tardio redundaria, em termos freudianos, em benefício do
princípio da realidade, permitindo disponibilidade de mão-de-obra barata e uma gestão mais racional quanto
à preservação da casa e do seu estatuto.
Mais pertinente será a linha interpretativa que (cor)relaciona o casamento tardio, ora com a composição
do agregado familiar, a degradação das condições sócio-económicas e o fenómeno emigratório, ora com
estratégias defensivas, por parte dos (futuros) testadores, no sentido de reter a força de trabalho e/ou parte do
rendimentodos filhos e assim diferir ao máximo a transmissão do património familiar, tal como o
salientaram respectivamente Mitterauer e Sieder (1982:38), Geraldes (1987:421) e Brettel (1991:128, 145
ss). Sendo a posse da terra, na sociedade rural minhota, a condição de autonomização do novo grupo
doméstico, o facto de a sua divisão e transmissão ocorrerem, em regra, por morte dos testadores, viria
retardar a idade do casamento dos filhos. É este mecanismo, subjacente ao sistema de herança, que,
consequentemente, contribui para as famílias assumirem a estratégia – aliás nem sempre consciente a nível
individual – de «evitar prole numerosa», como exprime Dias (1984:80). Por sua vez, o factor demográfico
não pode deixar de interligar-se com a tardia transferência do poder doméstico dos pais para os filhos,
sobretudo em Aguiar, e com a prática inexistência de arranjos de aposentação da geração mais velha. Por
outro lado, sendo o presumível herdeiro-mor emigrante, sobretudo transatlântico, a concretização das suas
estratégias exigia e exige tempo que lhe permita acumular o capital-dinheiro necessário para pagar legados
para além da legítima e/ou compensar em tornas os irmãos. Acresce ainda que, tratando-se de emigrante
pertencente a um dos grupos desprovidos ou com reduzido património familiar originário, a expectativa de
obter casa e demais condições de regresso poderiam obrigá-lo igualmente a protelar o casamento.
Do mesmo modo, a evolução, sobretudo desde 1960, no sentido não só de uma baixa na média de idade
nupcial e no seu diferencial por sexo, assim corno a tendência generalizada à contracção de casamento por
parte da (quase) totalidade dos filhos de cada casa não devem ser lidas separadamente da superveniência de
alternativas de sobrevivência e melhoria económica dentro e sobretudo fora do âmbito agrícola. Tal
evolução, além de constituir um sintoma da desestruturação da tradicional racionalidade e economia
camponesas, tem como corolário uma menor dependência dos noivos perante o património parental e, por
consequência, uma relativa perda de controlo dos pais designadamente nas escolhas matrimoniais dos filhos.
Correlativamente, emerge, por parte dos jovens migrantes, a aquisição de um maior grau de autonomia
económica e capacidade de decisão individual, o que lhes possibilita casar e (re)criar mais precocemente a
sua residência neolocal, tendência aliás confirmada em Lindoso e em Aguiar17. Se a mais elevada média de
casamento até 1950-60, aliada a uma mais baixa esperança de vida, fazia com que a duração daquele fosse

manifestar rivalidades interfamiliares e respectivas coortes ou, em caso de nubentes viúvos, das famílias afectadas em eventuais
processos sucessórios. O ritual charivari ou de assuada tem sido igualmente estudado noutros contextos e países: cf, por exemplo,
para a Galiza, Tolosana (1979:81 ss), para França, Segalen (1983:43-47, 195) e, para a América Latina, Foster (1965:305).
16
No mesmo sentido, cf. Brettel (1991:120 ss), o que induz alguns autores a afirmar tratar-se de um modelo europeu ocidental
(Hajnal 1965:101 ss) ou, mais especificamente, mediterrânico (Wrigley 1982:161-205).
17
Aspectos também referidos por Cabral (I989:96) e Brettel (1991:146 ss) para o Minho, por Iturra (1983:97 ss) para a Galiza e
por A. Santos (1992:161 ss), tratando-se de casamentos endolocais, para a Beira Baixa. Em 1984-85 52.4% e 54% das casas
respectivamente de Lindoso e de Aguiar possuiam residência neolocal, ainda que, em grande parte, adjunta à casa
paterna/materna.
180
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

menor, a partir daí a descida da média, aumentando a duração do casamento, virá repercutir-se numa fase
mais prolongada de «ninho vazio» do casal progenitor.

As médias da idade nupcial, quando não especificadas por grupos sociais nem contextualizadas nos
diferentes períodos, resultam todavia pouco eloquentes. O diferencial na idade média de casamento e, por
contraposição, o próprio fenómeno do celibato por grupo social têm sido explicados por factores
demográficos, sócio-económicos, culturais ou ainda pelo sistema de sucessão.

Segundo Dixon (1971:228), seria a limitação de recursos que forçaria os mais pobres a casar mais tarde.
Ainda que, relativamente a Lindoso e a Aguiar, não sejam de excluir casos deste tipo sobretudo antes de
1960, os dados disponíveis dos inquéritos locais, convergindo com conclusões de estudos já referidos,
revelam uma maior frequência de casamentos tardios entre membros de casas mais providas:

QUADRO 16: Categorias de possuidores e idade de casamento (Lindoso)

Legenda: ha = hectares; h = homem; m = mulher; * além dos casados, incluídos divorciados e viúvos(as).
Fonte: ILL, 1984-85.

QUADRO 17: Categorias de possuidores e idade de casamento (Aguiar)

Legenda: ha = hectares; h = homem; m = mulher; s/ = sem; * além dos casados, incluídos divorciados e viúvos(as).
Fonte: ILA, 1984-85.
O casamento

Tomando a idade de trinta anos como linha divisória, verifica-se que, salvo em Lindoso (por haver só
uma média lavradora que casou com mais de trinta anos), em Aguiar 79% dos filhos(as) de médios e
abastados lavradores casavam-se com menos de trinta anos. Já entre os pequenos lavradores a taxa de
casados com idade nupcial inferior a trinta anos subia a 91.2% em Lindoso e 83.6% em Aguiar e, entre
camponeses parciais, operários e jornaleiros, a 89% em Lindoso e a 90.9% em Aguiar. A tendência destes
últimos grupos para casarem mais cedo residia justamente na necessidade de,dada a prévia inexistência ou
insuficiência de recursos, juntarem, sob o modo de vida conjugal, recursos nomeadamente pecúlios. Por seu
lado, os filhos(as) de lavradores, sobretudo até 1965, tendiam a casar tardiamente pelas razões acima
apontadas, se bem que as diferenças a partir de então se tenham esbatido, o que se torna aliás visível na
proximidade das médias dos diferentes grupos.

Se, na articulação do interesse com a paixão, a medida de um e de outra difere de caso para caso,
nenhum grupo social e, por inclusão, nenhum dos actores se encontra(va) imune no sentido de ser mais ou
menos condicionado por cada um dos pólos deste intrincado binómio. Efectivamente, se para as famílias
providas, sem excluir a componente amorosa, importa(va) sobretudo casar os seus filhos(as) com partidos de
idênticas ou superiores posses, para os filhos de famílias sem recursos o casamento com o melhor
parceiro(a) possível, mesmo que física ou mentalmente deficiente ou de idade avançada, era encarado como
uma estratégia que contribuísse para sair da situação de penúria e, deste modo, escapar ao «destino» social
de deserdados e/ou de mães solteiras (re)produtoras de novos criados e jomaleiros(as). Neste contexto não
estavam excluídas as tentativas calculadas de enamoramento por parte de criadas(os) relativamente aos seus
amos ou filhos(as) destes,provocando inclusive a gravidez pré ou extra-matrimonial. E, de facto, embora
raros, também alguns criados, seduzindo a patroa, tornaram-se seus protegidos, conseguindo posteriormente,
como contrapartida da sua força de trabalho permanente, ser beneficiados com um legado18, suceder e/ou
passar de criados a patrões, casando com uma das filhas de sua dona amante. Tratando-se de sedução da
patroa pelo criado, tal implicava contudo uma afronta às relações patriarcais na família ou, como diz
Bourdieu, a transgressão do «princípio da presença masculina» (1980: 266). Por isso, para famílias no
limite da subsistência agro-pastoril ou artesanal, as estratégias de hipergamia constituíam uma importante
forma de obter segurança e/ou promoção social, reparando assim, de algum modo, a desigualdade social
inscrita nas relações sociais da comunidade, tal como se exprimia normativamente Pessoa, ferreiro e pai de
Óscar, pretendente da filha da casa rica Gonçalo-Fortuna: «Uma rapariga rica devia casar com um rapaz
pobre e um rapaz rico devia casar com uma rapariga pobre. Assim o mundo seria melhor, mais igual»
(A39).

Uma vez que o casamento entre desiguais implicava a drenagem de recursos de uma casa para outra,
para famílias com mais recursos, afeitas a casamentos distintos, um casamento hipogâmico representava
uma perda, uma degradação ou, simplesmente, uma alteração inadmissível à ordem hierárquica vigente.
Assim o denotava, por exemplo, o abastado lavrador Filipe Fortuna a respeito das inaceitáveis pretensões da
«intrusa» família do ferreiro Pessoa – sobre a qual circulava na aldeia o rumor de dois de seus filhos e uma
das suas filhas «invadirem», pela via do casamento, a rica casa Fortuna: «A minha sobrinha Eva é nova,
trabalhadora, filha de pai rico e, por isso, tem direito a arranjar um homem rico, da sua igualha. Quem é
esse Óscar, filho dum ferreiro? Ele não faz nada, só come rebuçados na venda do meu cunhado Gonçalo»
(A33).

Salvo estes excepcionais e dificilmente tolerados cruzamentos matrimoniais intergrupais, os


jornaleiros(as) e sobretudo criados(as) estavam, por norma, virtual e efectivamente excluídos do círculo
matrimonial dos ricos, como verificámos. Dadas as exíguas oportunidades de casamento com parceiros(as)

18
Entre outros exemplos de criação de sucessores mediante casamentos de parentes com criados pelo apadrinhamento ou pela
habilitação de filhos próprios dados como ilegítimos, cf. ACA 11-1-1890, 20-11-1906; em Lindoso, o criado Rafael (L66) com
sobrinha de lavradores sem filhos; Pedro (L71), filho ilegítimo e criado com a filha do patrão e sobrinha do pai biológico de
Pedro; e Aleixo (L6), emigrante e ex-criado que viria a casar com uma das filhas da patroa.
182
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

possuidores(as) de terra, os filhos dos jornaleiros, em idade adolescente ou jovem, ou deambulavam de casa
em casa, ou então saíam da aldeia por não haver nela nem condições de habitação nem meios de
subsistência.
Prefigurada como um salto no vazio, foi justamente a «aventura» compulsiva de partir para a cidade e,
eventualmente mais tarde, para o estrangeiro, que acabou por constituir contudo para a grande parte dos
filhos de camadas sociais pobres o ponto de partida e a válvula de escape da sua situação, mesmo
sacrificando o amor que poderiam sentir por um conterrâneo(a), tal como refere a ex-criada Maria: «Eu que
gostava do Manel com quem já namorava há bastante tempo, deixei-me levar por um outro Manel,
emigrante em França que, com seis dias de namoro, me convidou a sair daquele meio, onde me sentia
desgostosa. Aceitei logo e até calhou bem. Tenho uma boa casa, vivo duma loja de flores e de aluguer de
apartamentos. Ainda hoje me pergunto como é que isto foi possível!» (Ae59).

Foram, com efeito, as mudanças sócio-económicas operadas e, sobretudo, o êxodo rural,


particularmente a partir da década de sessenta – aliás acompanhado de uma inflexão de valores político-
culturais tradicionais (11:4) – que atenuaram a rigidez na medição dos bens patrimoniais, reajustando ou até
alterando a tradicional relação de forças no mercado matrinionial. Rapazes (L109,A37), que antes da sua
partida não eram olhados como eventuais parceiros, pela sua capacidade de trabalho e poupança,
valorizaram-se como candidatos matrimoniáveis ao ponto de serem cada vez mais procurados por filhas de
pequenos e até médios lavradores: «A minha sorte foi não ter uma leira a que agarrar-me, senão não saía
da cepa torta. Antes de emigrar, as raparigas não me ligavam nenhum. Hoje que já comprei uns campos,
ando bem vestido e tenho umas coroas no banco, já não me faltam pretendentes, mesmo lavradeiras»
(Ae37).

Embora a posse de terra e gado continue sendo o principal referencial da medida de riqueza e,
concomitantemente, do lugar e do prestígio de cada família na escala social hierárquica da colectividade,
nomeadamente para fins de casamento, das respostas aos inquéritos e de comentários informais é possível
registar, sobretudo desde os anos oitenta, um relativo declínio do valor-terra como parâmetro exclusivo ou
prevalecente para a avaliação do candidato(a) matrimoniável. A obtenção de recursos escolares (diplomas,
títulos) com o subsequente emprego bem remunerado e seguro e, sobretudo, a aquisição de somas de capital-
dinheiro e/ou a posse de estatuto social condizente com modos de vida relativamente autónomos
(proprietário de café, restaurante, supermercado ou oficina) começam a ser vistos como atraentes moedas de
troca complementares do capital-fundiário. Tais recursos tornam-se assim valiosas contrapartidas
«invejadas», tanto pelas vantagens remuneratórias e prestigiantes fora do âmbito agrícola, como inclusive
por resolverem o eventual défice de capital-dinheiro para recuperar, adquirir ou desipotecar bens ou ainda
pagar tornas aos irmãos. Além da posse de títulos e qualificações, enquanto fontes de acesso a funções e
conexões nos meios urbanos, a própria condição de filho(a) de emigrante constitui elemento decisivo de
estratégias matrimoniais por parte de filhas(os) de lavradores que o consideram útil trampolim para emigrar
e «enriquecer»19.
Este fenómeno relaciona-se com a melhoria ou mesmo a ascensão social resultante das poupanças
migratórias, da promoção escolar, bem como da maior dignificação profissional noutros ramos de actividade
não-agrícolas desde há três décadas. Filhos e mesmo filhas tanto de operários e camponeses como
inclusivamente de lavradores pretendem emancipar-se da tutela paternal mas sem ficar subalternizadas
perante o domínio do sogro ou da sogra, preferindo cada vez mais casar e sair da aldeia para escapar ao duro
e sujo trabalho do campo, cuja libertação fez, por exemplo, exclamar uma moça em vésperas da sua partida:
«Hoje parti o rabo à enxada» (L66). Neste sentido, pelo menos em 13.7% das casas de Lindoso e 13.2% das

19
Entre outros, filhas de L52, 108, 88, 31 e 86 respectivamente com filhos de L119, 24, 120, 94 e 75; A27, 40, 114, 116, 129. A
mudança de estratégias e padrões matrimoniais, articulados com fenómenos tais como industrialização, migrações definitivas,
recursos educacionais e outras fontes de rendimento extra-agrícolas é também sublinhada, em relação a Chipre, por Cassia
(1982:653 ss) e, em relação a aldeias dos Pirinéus, quer por Redclift (1973:3 ss), quer por Argemir (1987:273 ss), para quem a
atitude de bastantes mulheres no sentido de preferirem casar fora da aldeia, bem como o próprio celibato – que na articulação
tradicional entre casamento e herança indivisa constituía um factor de reprodução social da casa – passaram a constituir factores
de crise na reprodução social das casas agro-pastoris.
O casamento

de Aguiar, tem-se verificado uma menor rigidez e uma maior circunspecção nas pressões familiares sobre os
filhos(as) quanto à escolha do parceiro(a) de casamento. Têm-se banalizado trocas matrimoniais que até ao
início da década de setenta, de acordo com os imperativos tradicionais de selecção matrimonial, seriam,
senão impensáveis, pelo menos improváveis e até «chocantes». Dos 45 casamentos ocorridos em Aguiar
entre 1974 e 1984, pelo menos oito (17.7%) realizaram-se entre filhos(as) de médios e abastados lavradores
e filhos(as) de ex-jornaleiors-caseiros e artesãos. De entre estes, são de mencionar, em especial, os de um
filho e uma filha da segunda casa mais rica de Aguiar (A27) repectivamente com uma filha e um filho da
família de um artesão pobre e jornaleira-caseira (A37), os quais, já como emigrantes, já como pequenos
empresários na construção civil, habilitar-se-iam a casar hipergamicamente.

Resumindo, se até à década de setenta constituíam excepção e (quase) inconcebível surpresa os


casamentos intergrupais, com o relativo declínio do critério de riqueza fundiária e a emergência doutro tipo
de recursos (capital-dinheiro, escolar), foram-se diluindo um tanto os critérios das escolhas matrimoniais,
sem todavia invalidar a pertinência de estratégias patrimoniais no sentido de preservar e expandir as
posições dos respectivos grupos domésticos.

8.4. Os excluídos: celibatários e bastardos

Em sociedades camponesas com recursos limitados e a presença do sistema de herança indivisível ou


avantajada, sem alternativas exteriores proporcionadas pelo desenvolvimento agro-industrial, o celibato, de
modo geral, tem constituído uma prática complementar da necessidade de regular o acesso à propriedade, a
fim de manter a exploração familiar integral e viável. Diversas variantes da herança, ora indivisa, ora
avantajada, têm sido constatadas por diversos autores, designadamente nos Pirinéus por Bourdieu (1962:55
ss) e Argemir (1987:264 ss), na Galiza por Tolosana (1979:173 ss), em Trás-os-Montes por O'Neill
(1984:204, 361 ss) e na Beira Interior por Iturra (1987:95 ss).
A explicação corrente não só de um elevado número de celibatários como de filhos ilegítimos residiria
no sistema de herança, ora indiviso, ora avantajado, sendo esta última modalidade conhecida na Galiza por
millora. Em tal mecanismo sucessório os celibatários excluídos ou subalternizados na posse e na gestão da
casa, participando na execução de tarefas produtivas a troco de alimentação e alojamento, contribuiriam
assim para a manutenção indivisível do património na posse do irmão(ã) casado(a). Exclusões forçadas de
casamento e contingências de «romances amorosos» falhados, especialmente das filhas celibatárias, seriam
efeitos do referido sistema de herança indiviso ou avantajado, do mesmo modo que tomar-se-ia inevitável a
produção de filhos ilegítimos por parte dos celibatários nas suas relações sexuais com jornaleiras e criadas.

Se o sistema de herança indivisível, em regra, acarreta uma elevada taxa de celibatários definitivos e de
filhos ilegítimos, poder-se-á inferir deste raciocínio a contrario que um sistema de herança divisível
proporcionaria uma baixa taxa de celibatários e de filhos ilegítimos? Será possível enquadrar num destes
tipos-ideais os casos de Lindoso e de Aguiar?
Resultados dos estudos acima referidos, entre outros, indicam que os índices de nupcialidade e de
celibato apresentam um peso diferente conforme as diversas situações temporal e espacialmente
configuradas e, em particular, de acordo com os diferenciados padrões de distribuição da terra, tal como
aliás já o salientara Bacci (1971:41 ss). Para se entender adequadamente o fenómeno do celibato e da
ilegitimidade como peças essenciais do processo geral de reprodução social dever-se-á, portanto, ter em
conta não só o contexto histórico espacio-temporal das diversas fases de desenvolvimento de cada uma das
colectividades, como também os diversos sistemas de articulação do casamento dalgum(s) filho(s) com
alternativas celibatárias para os restantes: abraçar uma ordem religiosa ou o sacerdócio diocesano, empregar-
se nos sectores não agrícolas no país ou no estrangeiro.
Em relação a Lindoso e sobretudo a Aguiar, os dados disponíveis sugerem que as práticas não
obedecem a nenhum dos tipos-ideais, verificando-se antes a imbricação de elementos de dois sistemas de
herança: divisível e avantajada. Não é possível sustentar nem uma relação inversamente proporcional entre
taxa de nupcialidade e índice de celibato nem uma relação de dependência destas taxas de respectivo modo
de herança, uma vez que consideráveis índices de celibato feminino não se verificam apenas nosistema de
184
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

herança indivisível mas vão também de par com um sistema de herança tendencialmente divisível e/ou
avantajada, justamente as modalidades prevalecentes em Lindoso e em Aguiar.
Com efeito, como veremos em 9:1, a análise dos testamentos e das práticas de herança relativas ao
século XIX e à primeira metade do século XX aponta no sentido de o padrão dominante, em ambas as
aldeias ser o da divisão do património pelos diversos herdeiros: mais estrita em Lindoso, mais flexível em
Aguiar, em que a prática de favorecer um dos herdeiros constituía um fenómeno frequente. Se, por um lado
e em teoria, não existia nenhum veto paternal à contracção de casamento a qualquer dos filhos, na prática a
exiguidade de recursos aconselhava, por razão de sobrevivência e/ou não descida social por espartilhamento
do património, o casamento apenas dalgum ou, quando muito, dalguns filhos mas não de todos. É em função
dos elementos do sistema de herança geradores de desigualdades que o celibato, além de resultado de
desencontros estratégicos entre pretendentes e pretendidas(os), tem sido efeito directo de inibições paternas,
handicaps físicos ou mentais e dependências emocionais, do medo do risco de casar e inclusive de
desarranjos ou obstáculos postos por irmãos e, sobretudo, cunhados ao casamento do(s) celibatário(s) (9:3).
Particularmente nos grupos sociais desprovidos, o celibato feminino era reforçado, sempre que conjunturas
com elevada taxa de homens emigrados adicionassem às razões de ordem social um desequilíbrio
demográfico no rácio de sexos, tal como também o salientou no seu estudo Brettel (1991:149 ss).
Ser ou não celibatário não era, por conseguinte, resultado de qualquer destino ínsito na ordem de
nascimento, dependendo certamente e não raro do número de irmãos e, sobretudo, do volume de recursos.
Tais condições não só marcavam o tipo de celibatário e diferenciavam a probabilidade do celibato por grupo
social como possibilitavam ou não a diversificação de saídas profissionais. Por isso, nem todos os
celibatários eram ou são fruto da exclusão social derivada do sistema de herança. Quando assumido como
uma modalidade diferente de suceder e uma forma mais racional de gerir os interesses patrimoniais e a
própria vida sexual, o celibato não só proporciona(va) direcção autónoma, única e não controversa no poder
de disposição doméstico, como também permitia e permite, eventualmente, uma variedade de contactos
sexuais concubinos com criadas(os), jornaleiras(os) ou outros considerados mais requintados. Se lavradores
e proprietários detinham meios materiais e contactos para alguns dos seus filhos(as) serem distintamente
ordenados de padres ou religiosas, seguirem a carreira política, diplomática ou militar e/ou casarem-se com
base em mútuas compensações ou dotes, aos filhos de famílias pobres restava-lhes normalmente, como foi
referido, manter-se solteiros como criados e/ou jornaleiros em casas dos lavradores da freguesia ou da região
(7:2.4, 7:2.5). Enquanto para os primeiros o celibato funciona(va) como pré-requisito de reprodução do
património e de obtenção de proeminente lugar hierárquico na família e na sociedade, para os segundos a
condição celibatária dificultava a reunião de forças e demais recursos que propiciassem senão o início de sua
relativa libertação, pelo menos a melhoria das suas condições de vida.
Salvo, portanto, os casos excepcionais de celibato conscientemente assumido – cujas vantagens são
também, segundo Brettel (1991:157), celebradas e exaltadas emcerto imaginário popular –, hoje e cada vez
mais o casar-se toma-se um fenómeno generalizado a (quase) todos os filhos(as). Assim, no panorama da
situação actual, o celibato, obedecendo ou não à supramencionada lógica de exclusão ou subordinação,
constitui um fenómeno regressivo, marginal. Quando constatado, embora incida mais em famílias com
menos recursos, atravessa outros grupos sociais. Neste sentido, se os actores sociais casados e com filhos
denotam, em regra, um comportamento virado para a reprodução e a expansão da casa, o celibato, sobretudo
quando não desejado, sem descendência e resultante de exclusões, frustrações ou insucessos estratégicos,
favorece actividades compensatórias (catequese, limpeza da igreja), comportamentos disruptivos tais como a
bebida excessiva de vinho ou mesmo o esbanjamento de bens patrimoniais, tal como tem sucedido
respectivamente em vários casos em Aguiar e em Lindoso (Ae39, Ae27, L11).

Um outro fenómeno presente na sociedade rural minhota e que vulgarmente é considerado desviante em
relação às práticas vigentes e dominantes de reprodução pela via do casamento é a bastardia, a qual,
justamente pelo seu contraste com a dominância da moral católica, tem intrigado observadores e estudiosos.
Dos estudos levados a cabo por historiadores, demógrafos e sobretudo antropólogos no norte do país
ressalta, comparativamente a outras regiões e países, uma notável taxa de ilegitimidade – mais elevada em
Trás-os-Montes (O'Neill 1984:366 ss) que no Minho (Amorim 1987:230 ss, Cabral 1989:81 ss, Brettel
1991:234-235) –, aliás também verificada em Aguiar e, sobretudo, em Lindoso:
O casamento

GRÁFICO 14: Ilegitimidade: Lindoso e Aguiar (1870-1979)α

Legenda: α =rácio de ilegítimos/ total; * dados apenas relativos a Lindoso; ** desde 1912 para a freguesia do Lindoso.
Fonte: Assentos de Baptismo de Lindoso e de Aguiar, 1870-1979, CRCB, CRCPB, RPL e RPA.

Do gráfico 14 e do anexo 13 se evidencia que, até à década de cinquenta, a taxa de ilegitimidade era
considerável, regulando em Aguiar entre 6.3% e 21.7% e elevando-se em Lindoso a 26%. Acresce que as
taxas de ilegitimidade apresentadas no anexo 13 estão subestimadas na medida em que não são
contabilizados os casos ocultos de ilegitimidade tais como os que, sendo fruto de relações extraconjugais de
mulheres casadas, são publicamente assumidos como filhos de seus maridos. Estes, sabendo-o ou não,
assumem a paternidade de tais filhos ilegítimos para evitarem a vergonha social e o vexame inerente ao
epíteto de «carnudo» ou «cabrão»20.
Uma outra conclusão relevante a inferir do gráfico 14 e do anexo 13 é a diminuição da taxa de
ilegitimidade a partir da década de cinquenta, o que é aliás corroborado pelos inquéritos locais: enquanto o
índice de ilegítimos entre indivíduos com mais de cinquenta anos e originários e/ou ligados a Lindoso e a
Aguiar regula respectivamente entre os 13.2% e 17.4% e os 7.1% e 9.6%, nos de idade inferior a 50 anos
baixa para menos de 5.4% e 5.7% (anexo 14). Constatada esta evolução, como explicar não só a elevada
taxa de ilegitimidade até 1960 como, desde então, a relativamente abrupta redução da mesma?

20
Sendo de referir, pelo menos, um caso em Lindoso e dois em Aguiar, estes aliás apenas desconhecidos de estranhos ou visitantes
distraídos. Ao contrário de Pitt-Rivers (1961:111 ss) e Peristiany (1988:4 ss) que interpretam predominantemente os códigos de
honra e vergonha em termos morais-culturais, autores como J. Schneider (1971:20-22) e Davis (1977:91 ss) consideram com mais
justeza que tais códigos se relacionavam ou inclusivamente tinham por função preservar os interesses patriarcais e patrimoniais da
família. Por isso, a mulher é objecto de vigilância, porque a sua eventual infidelidade sexual representaria uma traição à casa e
uma afronta à reputação do marido. O homem, cuja mulher cometeu adultério, era e, embora em menor medida, ainda é motivo de
troça por não ter sabido defendê-la como território seu. Puseram-lhe os «cornos» e, por isso, chamam-lhe cornudo, cuco ou
cabrão, sendo este último termo usado figurativamente para indicar o bode que no rebanho tolera concorrentes, contrariamente ao
carneiro que combaterá duramente todos os rivais (Pitt-Rivers 1961:116, Blok 1981:431 ss, Santo 1980:108 ss).
Em Portugal, o binómio cultural honra-vergonha foi primeiramente abordado por Cutileiro (1977, 1988:ix ss) – que o
relacionou com a necessidade de manutenção do prestígio social do homem e a posição material da família – e, seguidamente, por
Cabral (1989:119 ss) que, sem menosprezar elementos sócio-económicos, destaca mais a mundividência cultural como definidora
das condutas sexuais. A esta visão dita culturalista opõe-se radicalmente Cole (1991:77 ss) que, salientando a condição da mulher
como trabalhadora e gestora dos recursos domésticos, em contexto piscatório, considera as referidas elaborações conceptuais
como resultantes dos processos de socialização e partes integrantes da ideologia católica conservadora e de regimes totalitários
como o salazarista, servindo assim para controlar a fertilidade e a sexualidade femininas.
186
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Certos autores como Shorter (1976:79 ss), partindo de uma concepção evolucionista um tanto linear,
constatam, em termos macrodemográficos, ter havido, entre 1750 e 1850, um explosivo aumento de
ilegitimidade, seguido, sobretudo nos finais do século XIX e, em especial, desde 1960, de uma diminuição
da filiação ilegítima e dum correlativo aumento de filiação legítima, fenómenos estes que seriam explicáveis
pela prática da contracepção e pelo movimento de emancipação feminina, por uma individualização das
relações sociais libertas dos constrangimentos e pressões comunitárias, numa palavra, por uma moderna
«revolução sexual», pela qual ter-se-ia passado do sexo «manipulador» ao sexo «expressivo». Esta tese viria
a ser contestada por L. Tilly e outras (1976:470 ss) que consideram a ilegitimidade justamente resultante dos
processos de industrialização e urbanização, interpretação esta que tão pouco colhe a totalidade do
fenómeno, também presente e com elevados índices em povoações pré-industriais.

Uma pista mais adequada parece ser a avançada por Laslett (1980:5 ss), segundo o qual a taxa de
ilegitimidade é mais baixa nos grupos domésticos com um maior grau de controlo paterno em função da
sucessão legítima e, consequentemente, da conservação da propriedade na família. Por outro lado, à
diminuição da taxa de ilegitimidade sobretudo desde 1960 não serão com certeza estranhos o progressivo
acesso à propriedade, a perda de vigor das práticas de herança avantajada presentes sobretudo em Aguiar e,
correlativamente, o reforço das práticas de partilha tendencialmente igual, escudadas na própria legislação
do direito sucessório de inspiração liberal. Porém, a via explicativa para o fenómeno da ilegitimidade e suas
variações deverá todavia ser prolongada no sentido da dinâmica da paixão e do interesse dos diversos
protagonistas, focalizando-a como fruto predominante, ainda que não exclusivo, das relações sociais de
dominação por parte de homens pertencentes a grupos sociais mais providos sobre mulheres
economicamente (quase) desprovidas, em especial criadas e jornaleiras. A maior ou menor força do binómio
cultural «honra-vergonha», além de dependente do carácter público ou privado da transgressão, é
indissociável do lugar de cada família na escala hierárquica e articula-se com a medida de recursos
possuídos. Ou seja, quanto mais baixo o escalão em que se situe a mulher, menor a vigilância paterna e
maior a tolerância social e inclusivamente a expectativa e a permissividade dum comportamento sexual ou
promíscuo. Já, porém, quanto mais elevado o escalão social de poder económico e simbólico da mulher e de
sua família, maior a probabilidade de esta sentir-se impregnada de «vergonha» e de evitar a prevaricação,
uma vez que esta afectaria a sua reputação simbólica e o seu valor no mercado matrimonial.

Dados extraídos dos inquéritos locais mas relativos a um período anterior a 1965 evidenciam que entre
as profissões passadas de filhos ilegítimos residentes ou originários de Lindoso e de Aguiar predominavam
largamente as de criadas( os) e/ou jomaleiros(as ), tal como se pode ler no quadro seguinte:

QUADRO 18: Ilegitimidade por profissões (< 1965)


O casamento

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Com efeito, dentre os indivíduos presentes em 1965 e/ou originários e ligados respectivamente a
Lindoso e a Aguiar por relação de parentesco, 11.1% e 4% eram respectivamente filhos ilegítimos, cuja
profissão era predominantemente a de operários e, sobretudo, de criados e/ou jornaleiros(as) (66% e 71%) A
ilegitimidade, se bem que também resultante de relações sexuais entre homens e mulheres de igual ou
análoga condição social, deriva sobretudo, como foi referido, de dependências e assimetrias sociais entre
mulheres (quase)desprovidas de recursos materiais e homens oriundos de grupos domésticos possuidores de
recursos, conclusão coincidente com a tese assumida e comprovada por O'Neill (1984:368), Iturra
(1987:103), Geraldes (1987:440 ss) e Cabral (1989:81-82).
A tutela paterna e a maior (auto)contenção sexual e extraconjugal por parte de mulheres ricas e suas
filhas, comparativamente à das pobres, é ainda susceptível de aferir-se a contrario pelo facto de as
lavradoras de Lindoso e de Aguiar, senão na sua totalidade, pelo menos, na sua grande maioria, não estarem,
de modo algum, implicadas em situações de ilegitimidade, nem tão pouco constar terem mantido relações
extra-conjugais. Ora, estes dados sugerem uma correlação entre a posse de capital fundiário, associada à
prática de casamento prestigioso, e os inerentes valores de honra e virgindade, o que reforça as conclusões
doutros autores21a este respeito. Nesta perspectiva, a ilegitimidade e, em particular, o seu maior índice em
Lindoso que em Aguiar vai de par com a menor pressão social e o pouco sentido que, para as mulheres
despossuídas, tinha a preservação da virgindade como valor simbólico. Procurando antes assentar nos seus
dotes físicos a força de sedução e persuasão perante os seus galanteadores, protectores ou até eventuais
candidatos a casamento, era devido justamente ao seu maior grau de permissividade sexual que eram amiúde
classificadas como «mulheres sem vergonha».
Desta relativa maior facilidade de contacto sexual, denotativa dum colete mais folgado perante a moral
instituída, não se pode todavia inferir, como se representam retrospectivamente, em relação a Galiza, autoras
como Aalten (1982:8, 13 ss) que, em regra, os filhos ilegítimos de mães solteiras teriam sido frutos de uma
qualquer atitude voluntária de liberdade sexual e de domínio sobre o próprio corpo. Pelo contrário, os filhos
bastardos – denominados em Lindoso «filhos da cascalheira» ou «filhos da pátria» – são e, sobretudo,
eram, em regra, produtos da necessidade e da dependência das mães (ex)criadas e (ex)jomaleiras, cuja
relação sexual, designadamente com homens de recursos económicos e/ou político-administrativos, fazia
parte das suas estratégias de sobrevivência: por exemplo, granjear trabalho ou terra de arrendamento, suprir
carências de alimentação junto dos lavradores (pão, unto, carne), conseguir géneros alimentícios junto do
merceeiro ou dinheiro junto de empregados e operários com rendimento fixo, obter perdão em eventuais

21
Bourdieu 1980:204 ss, J. Schneider 1971:2 ss,Vernier 1977:36 ss, Cutileiro 1988:xviii, Blok 1981:433 ss, O'Neill 1984:317,
Segalen 1983:21 ss.
188
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

multas ou até a conivência no pequeno contrabando, por parte de guardas florestais e fiscais22.

Não podendo competir no mercado matrimonial com recursos económicos próprios, impressionadas
pela força persuasora do poder económico-político e/ou da atracção física foi possível constatar, por
testemunhos directos e indirectos, como mulheres pobres de dez casas de Lindoso e três de Aguiar,
transgredindo mais facilmente os tabus morais, se deixaram envolver em relações sexuais susceptíveis não
só de obter o necessário apoio económico mas também prender, de algum modo, o sedutor-macho e, se
possível, pela gravidez, implicá-lo nas consequências da relação passional. Mais, dada a forte dependência
económica e a vulnerabilidade afectiva e social, acoitavam-se por qualquer preço sob qualquer homem com
algumas posses, por poucas que fossem, tal como refere o velho «solteirão» Martinho de sessenta e dois
anos: «Por uma mão de géneros, um quilo de arroz ou por 1$50, conforme o que cada um tivesse, as
mulheres "sem boi certo" iam logo para a cama e dali nasciam filhos de que nem sempre se sabia quem era
o pai, pois eram vários os homens em fila ...» (L58).

Contrariamente ao sugerido de maneira implícita por O'Neill (1984:372 ss) em relação a Fontelas, em
Aguiar e sobretudo em Lindoso a procriação de filhos bastardos não era, em regra, produto de uma
estratégia consciente de proprietários e lavradores, de modo a manter indiviso o património e obter para sua
casa mão-de-obra gratuita ou barata. Tal construção resultaria um tanto forçada, não só porque ao tempo
abundava suficiente «trabalho por favor», como também porque, eventualmente, um implícito
reconhecimento da relação ilegítima, além de representar a negação da ética oficial inerente ao estatuto de
casado, poderia comportar algumas consequências materiais desconfortáveis para o transgressor. Além disso
e como o pr6prio O'Neill reconhece (1984:372), embora raros, alguns dos filhos ilegítimos foram fruto de
relações concubinas, cujos protagonistas, uns mais pobres, outros mais remediados, detinham todavia entre
si posições sociais relativamente simétricas23.
Nascidos de relações sexuais «ilegítimas», muitos dos filhos ilegítimos constituem hoje para as suas
mães um ponto de honra: «Fazê-los foi uma vergonha, mas criá-los é uma honra» (L56). Mais, para as
idosas mães solteiras de hoje eles representam uma forma de segurança social, tal como o confessaram
algumas (L117, 80) e o lamentaram outras sem filhos pelos irremediáveis «desmanchos» outrora feitos:
«Quem me dera ter agoraum filho que fosse o amparo da minha vida» (L26). Esta vantagem não invalida
contudo que as mães solteiras não tenham interiorizado os vexames sociais e morais a que foram sujeitas e
os tenham retransmitido, sob forma de censura e até expulsão de casa, às suas próprias filhas com
comportamentos semelhantes (Le20). Sintomático do estado de saturação e insegurança a que este tipo de
relações e seus frutos «ilegítimos» as conduziam é, por exemplo, o visualizar retrospectivo de Josefina:
«Ninguém sabia que eu ia ter um filho. Como tinha vergonha, estive vinte e quatro dias fechada no palheiro
e foi ali que eu, sozinha, tive o meu Telo. Os únicos que sabiam eram o padre e a criada que só me
ajudaram a baptizá-lo. Eu é que já estava farta e chateada de ter filhos no palheiro como se fossem gatos»
(L80).

Dado um maior número de mulheres pobres e a menor pressão sócio-moral em Lindoso que em Aguiar
acerca do referido ideal de virgindade, os desvios à conformidade com as normas oficiais eram, sobretudo
antes de 1960, mais frequentes e tolerados em Lindoso que em Aguiar. Nesta última, à excepção de um ou
outro familiar mais achegado que não deixava de acolher a mãe-solteira, exercia-se uma maior pressão
social e moral que, reforçada pelas prescrições católicas veiculadas pelo padre, levava bastantes moradores a
marginalizar, menosprezar ou mesmo ostracizar as «polutas» mães solteíras. Estas, por seu turno, imbuídas
dum sentimento de insegurança e vergonha, para esconder a gravidez e escapar à censura ou segregação
social, apertavam a cinta ou andavam derreadas – não raro com consequências fatais para si e para o feto.

22
De referir, por exemplo, o caso de uma criada na casa de Filipe Fortuna para manter trabalho e outros apoios à família; de Rosa e
Diana (L116) versus merceeiro Urbano (Le24) para obter géneros alimentícios. Tais situações são também constatadas no sul por
Cutileiro (1977:320-325) e, no norte, por Guerreiro (1982:196), Silva e Van Toor (1982:213) e Cabral (1989:82).
23
Entre mulheres e/ou mães solteiras que utilizaram como estratégia o envolvimento sexual com homens com mais recursos,
refiram-se, por exemplo, Ae104, e109; Le80, 56, e20, 16, 40, 117, 116; e com homens de condição social semelhante à sua, por
exemplo, A146, 132; Le20, 116.
O casamento

Por vezes, a pressão social induzia-as, senão a abortar fetos de três a seis meses, a depositar os recém-
nascidos naroda, na gateira,à porta da casa do respectivo progenitor biológico e, ainda que incidentalmente,
dada a recusa de perfilhação, a praticar o infanticídio por asfixia ou afogamento24.
Se a maioria conseguiu suportar sacrifícios e humilhações para criar os filhos, por vezes, casos extremos
de desespero teriam conduzido à propria imolação, tal como Joaquina (Le6), mãe de cinco filhos bastardos,
que, perante o abandono e o desprezodos seus velhos amantes, a 9-9-1950, suicidou-se, acção dramática que
viria obrigar alguns dos pais a assumir a paternidade de seu respectivo filho «ilegítimo», até então ignorado
(IOL P54/50 M4, 4, Li6:9v).
Nascendo e salvando-se, como forma de denúncia pública era o padre quem, indiferente à vontade da
mãe, designava para o filho ilegítimo um nome bíblico ou o nome do Santo coincidente com o seu dia de
nascimento. Sendo a bastardia fruto de uma filiação não vinculada (Iturra 1987:104), os filhos ilegítimos,
além de, amiúde, não serem reconhecidos nem herdarem do respectivo pai biológico, eram outrora desde o
primeiro momento simbolicamente marcados na colectividade pelo facto de o seu baptismo não ser
anunciado no sino da igreja com o convencional toque de festa, comum aos legítimos, dado este também
assinalado por Cabral (1989:142).
Dada a prática inexistência de efeitos gravosos pelas suas «aventuras amorosas» e o baixo grau de
pressão social sobre os pais biológicos no sentido da adopção, estes e suas famílias permitiam-se, salvo
casos excepcionais e por vontade própria, negar o seu envolvimento e, eventualmente, as suas promessas de
casamento. Mais, sobretudo em casos-limite de processo de investigação de paternidade, além de não raro
acusar ou reputar como provável pai algum inimigo seu, os pais biológicos costumavam eximir-se à
responsabilidade, imputando à sua «amante» o qualificativo de «mulher fácil»,«puta» e forjando ou
orquestrando contra esta, a troco de favores e recompensas, «provas» testemunhais ou documentais25. Das
consequências neutras para o homem e negativas para a mulher dá conta a seguinte quadra popular ouvida
em Aguiar: «Não me ponha o pé na saia/ de longe diga o que quer/ não perde o senhor que é homem/ perco
eu que sou mulher» (A117).

Se a respectiva baixa da ilegitimidade é resultante da melhoria das condições de vida, a estas não serão
alheias as estratégias e as pressões dos actores locais desfavorecidos, ainda que não necessariamente
resignados com a sua sorte social. A presença de elementos celibatários na casa ia-se tornando não só
desnecessária como até onerosa à medida que a terra era paradoxalmente fragmentada pela crescente prática
da partilha igual e pouco a pouco sujeita a processos de laboração mecânica.
A perspectiva acima delineada, além de incluir a situação dos celibatários desprovidos no sistema de
herança indivisível, minuciosamente retratados por O'Neill (1984:374 ss), abarca contudo na sua análise
todos os indivíduos praticamente excluídos de casar e herdar, seja qual for a modalidade da herança. Não
sendo, porém, estáticas as configurações delineadas, o acesso, por parte de membros de grupos sociais
originariamente pobres, pela via migratória, a capital-dinheiro, escolar e mesmo fundiário veio permitir-lhes,
desde a década de sessenta, encontrar mais facilmente candidatos matrimoniáveis e casar mais cedo,
aumentando assim o respectivo índice de nupcialidade e reduzindo pouco a pouco a fecundidade
extraconjugal. Além disso, a recente mas progressiva introdução dos modernos métodos anticonceptivos,
também nas relações pré e extramatrimoniais, tem obstado a nascimentos de filhos ilegítimos que, para as
mães solteiras e suas famílias, implicavam, além do estigma sócio-moral, uma pesada sobrecarga
económica.

24
Sobre o depósito de filhos ilegítimos junto da casa do progenitor, cf., v.g., ABA 14-l-1815. Sobre casos de infanticídio foram-
me referidos quatro em Lindoso e dois em Aguiar, entre os quais o descrito num processo de divórcio (TB P3/76 Ml023 Lil:142,
2-1-1976). Numa freguesia vizinha de Lindoso uma mãe-solteira «envergonhada» teria enterrado, consecutivamente, no esterco
dois filhos ilegítimos recém-nascidos. Sobre a evolução do abandono anónimo de crianças e a assistência institucional à infância
nomeadamente no Porto nos séculos XIX e XX, Sá e Cortes 1992:180 ss.
25
Respectivamente Ae123 v e21, 123 v e67 e 46 v e67, A141 v 75, A125 v forâneo; A33 v e39, Ae20 v 22 in TB 3404, Li20:96,
1957; Al v 114 in TB P24n8 M1082 Li28:19, 6-3-1978 e TRP 7-02-1980; L73 v 80, TB P3n6 M1023 Lil:142, 12-1-1976.
190
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

**

Se o estatuto de casado, enquanto ponto de partida na conjugação de esforços do casal e dos filhos,
coadjuva certamente na via da sua relativa emancipação familiar e, por vezes, da sua ascensão social, a
transição da condição de criado ou jornaleiro para a de camponês ou outra relativamente autónoma depende,
em regra, do contexto histórico e passa pela combinação das diversas estratégias analisadas ou apenas
esboçadas nas partes III e IV.
Tal como o demonstram os indicadores relativos ao ritual do namoro e à celebração da boda, à
endogamia geográfica e sobretudo à homogamia social, o casamento constitui uma instância onde se
materializam e reproduzem, se exacerbam ou atenuam as diferenças e clivagens de classe, acompanhadas de
maior ou menor grau de emoção e paixão.

No processo de reprodução e/ou mobilidade sociais confluem e articulam-se diversos factores de ordem
sócio-económica com outros de tipo etário, escolar, físico-sexual, erótico ou estético, os quais nem sempre
obedecem a opções ou acções intencionais. Tal se torna bem evidente não só no casamento como sobretudo
no fenómeno da bastardia, a qual é produto tanto de eventuais motivações de mútua atracção física e
satisfação sexual como, sobretudo, de prévias relações assimétricas, em termos económicos e políticos, entre
os seus intervenientes.
Enquanto as mulheres dotadas de recursos económicos, a fim de se valorizar simbolicamente e/ou
manter-se disponíveis para o melhor parceiro possível do ponto de vista económico, eram obrigadas a
impor-se a si próprias uma fidelidade conjugal e/ou o virginal sacrifício duma forte disciplina de abstinência
sexual pré-matrimonial, os homens providos, casados ou não, e seus irmãos e filhos, enquanto amantes e
procriadores biológicos de filhos ilegítimos, eram, até às recentes modificações do direito sucessório em
1976, praticamente dispensados de assumir qualquer responsabilidade. Quanto às mulheres sem recursos
económicos, se a sua origem social lhes restringia as oportunidades de (bom) casamento no mercado
matrimonial, a sua iterativa permissividade agravava-lhes, embora involuntariamente, o grau de
(auto)exclusão do círculo dos parceiros casáveis, reproduzindo-se pela transgressão da abstinência
celibatária.
Herdar, Poupar, Educar

CAPÍTULO 9

HERDAR, POUPAR E EDUCAR

O sistema de herança, dando continuidade à reaquisição e à posse da terra e doutros recursos pelos
herdeiros, constitui o principal mecanismo de reprodução social. Deste modo, sendo os herdeiros os garantes
da continuação da casa, cada geração propriamente usufrui a terra e transmite-a à geração seguinte através
da herança, quer divisa, quer indivisa.
Na sociedade tradicional camponesa, embora persistam obviamente polaridades individuais, é mais a
casa a entidade que emerge como portadora de direitos e deveres. Já, porém, numa sociedade moderna
impregnada de ideologia liberal relevam mais os indivíduos como sujeitos de direitos designadamente
sucessórios1. Por isso, ao mesmo tempo que importa destrinçar das normas jurídicas as próprias práticas dos
protagonistas torna-se necessário distinguir diversos sistemas de exploração agrícola, bem como os
condicionalismos demográficos e os diferentes espaços sociais em que os processos sucessórios têm lugar,
assim como as mudanças que estes sofreram ao longo do tempo, sem deixar de os relacionar com as próprias
estratégias matrimoniais às quais estão estreitamente associados. Foi aliás tendo em conta esta estreita
articulação que Habakkuk (1955:5 ss) estabeleceu uma relação entre os sistemas de herança e os modos de
nupcialidade, emigração e celibato. Enquanto o sistema de herança divisível, ao implicar a fragmentação do
património, forneceria a base económica para cada um dos filhos casar, dando assim lugar a uma elevada
nupcialidade de famílias nucleares, ao sistema de herança indivisível corresponderia o modelo de casamento
do filho(a) primogénito ou outro favorecido e, portanto, a formação de famílias extensas, baixa nupcialidade
e elevada taxa de emigração, correlações estas e sobretudo a última salientada por autores como Bourdieu
(1962:54 ss), Goody (1976a:3 ss), Argemir (1987:266 ss) e, apenas quanto à última correlação, por Brettel
(1991:148 ss), para quem a herança divisível no noroeste português não exclui contudo fortes índices de
emigração e uma considerável taxa de celibato definitivo sobretudo feminino.
Partindo destes pressupostos, alguns autores extraem como corolário da correlação entre herança
indivisível e/ou avantajada e baixa nupcialidade acentuados índices de celibato e de bastardia, corolário que
o estudo de O'Neill (1984:366 ss) também evidenciou para Trás-os-Montes. Porém, se a inferência de uma
elevada taxa de ilegitimidade no contexto do instituto da primogenitura se tornou inegável, até que ponto
poder-se-á, a partir desta correlação, concluir que o sistema de herança indivisível e/ou avantajada será
factor suficiente para explicar a elevada taxa de ilegitimidade, tal como parece sustentar O'Neill (1984:256,
281, 365 ss) no seu estudo sobre Fontelas? Como explicar que Lindoso, com um sistema de herança
predominantemente divisível e de partilha igual, tenha conhecido também uma alta taxa de ilegitimidade?

1
Por exemplo, a lei prescrevia a divisão da herança do de cujus no nome dos menores ou o pagamento de tornas, por parte do
viúvo ou do herdeiro principal, aos filhos ou demais irmãos, sem atender às circunstâncias concretas de cada casa, sobretudo
quando era esta que sustentava os seus membros menores e maiores, situação que teria dado lugar a alguns pedidos, por parte de
viúvos, para os dispensar do respectivo pagamento (v.g. IOA 334:38, 14-7-1870).
192
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Como explanar,especialmente em Lindoso, o elevado índice de filhos bastardos procriados não tanto por
celibatários não herdeiros, mas mais por homens herdeiros e casados, nas suas relações extramatrimoniais
com camponesas pobres e sobretudo criadas e jornaleiras?

Perante tais factos (8:4, 9:3), não é pertinente nem consistente cingir à esfera do sistema de herança
indivisível o problema e a dimensão da bastardia nem circunscrever a desigualdade social apenas a este
sistema de herança. O fenómeno da ilegitimidade e as variações na sua taxa, mesmo quando reforçado e
directamente correlacionado com o sistema de herança indivisível e suas vicissitudes, não é exclusivamente
causado por este. Como tal, para a ilegitimidade ser adequadamente explicada, torna-se necessário recorrer a
outras categorias mais abrangentes que, operando implícita ou explicitamente também no próprio sistema de
herança, de lhe são constitutiva e heurísticamente anteriores. O facto de a ilegitimidade ocorrer tanto na
herança indivisa como na divisa obriga-nos a recolocar o problema em termos diferentes, mais amplos e
estruturais.
O'Neill, aduzindo recorrentes provas empíricas e relevantes referências genealógicas à reprodução da
desigualdade social pelo sistema de herança indivisível, relaciona com justeza a ilegitimidade com «as
tensões estruturais internas» (1984:33) entre os diferentes grupos sociais. No entanto, ao procurar explicar a
ilegitimidade, desvaloriza quer as «causas económicas e políticas» aduzidas pelos pobres, quer os «aspectos
morais» referidos pelos ricos e conclui que «o problema (da ilegitimidade) é enformado, à partida, por um
modo específico de herança» (1984:372). Nesta óptica, O'Neill acaba por não desenvolver suficientemente
no seu argumento o principal factor explicativo que subjaz a diversos sistemas de herança e não apenas ao
indivisível ou avantajado: a ausência ou a presença, por parte dos protagonistas das relações ditas ilegítimas
e suas famílias, de determinado grau de controlo sobre os recursos directos e indirectos (7:1). A elevada
presença de bastardos pobres não é apenas nem directamente explicável, como sustenta O'Neill (1984:281),
a partir duma «forma específica de herança», uma vez que qualquer sistema de herança, desde que assente
na apropriação privada e ilimitada de recursos, é susceptível de gerar e reproduzir a diversa gama de grupos
mais ou menos providos e desprovidos. É, portanto, na apropriação classista e, eventualmente, patriarcal de
recursos que radicam os diversificados mecanismos endógenos e constitutivos de desigualdade social, os
quais são co-(re)estruturados ou reforçados mediante os aparelhos de dominação político-jurídica.

9.1. Modos de herdeiros

Constituindo a usual investidura na posse da terra pela herança uma das condições da reprodução
camponesa, também em Lindoso e em Aguiar é visível este mecanismo que faz da transmissão dos bens a
principal fonte de acesso à terra por parte dos respectivos grupos domésticos:
Herdar, Poupar, Educar

GRÁFICOS 15 E 16: Famílias e origem da terra

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

Tal como se pode inferir dos gráficos 15 e 16, a aquisição da terra por herança, eventualmente
combinada com a poupança derivada das migrações, constitui, em 88.2% e 82.5% das casas detentoras de
terra, a principal base da sua reprodução social enquanto unidades agrícolas a tempo, já integral, já parcial.
Do estudo documental, dos relatos orais e, sobretudo da análise do direito e das práticas
consuetudinárias de ambas as aldeias, infere·-se que os próprios actores envolvidos nas suas interacções não
obedecem rigidamente a qualquer dos tiposideais acima delineados mas articulam, adaptam e fazem
coexistir em simbiose elementos de diversos modelos, tal como anota Brettel (1991:165) relativamente a
Santa Eulália, uma outra freguesia minhota. Também Tolosana (1979:201 ss), embora distinga basicamente
dois modelos de herança – a partilha igualitária e a atribuição do terço ou mais a um dos filhos (millora) e a
divisão do restante pelos demais –, constata a variedade e o sincretismo nas práticas de herança na vizinha
Galiza. A simbiótica associação de elementos diversos, também verificada no Minho, não obsta todavia que,
da análise dos testamentos, dos inventários orfanológicos ocorridos em Lindoso entre 1918 e 1986 e
sobretudo em Aguiar entre 1860 e 1985,se revelem diferentes modalidades lógicas de herança e que,
diacronicamente, das mudanças registadas se desfile determinada tensão subjacente entre a estratégia de
transmissão indivisa do património familiar e a tendência para a dispersão do património pelo casamento dos
herdeiros, tensão aliás já observada por diversos autores, entre os quais Bourdieu (1962:58 ss) e O'Neill
(1984:203 ss).
Dos referidos documentos e das nanatívas orais se depreende que as práticas dominantes da herança em
Aguiar, freguesia situada no Baixo Minho, diferem relativamente das vigentes na montanhosa e comunitária
aldeia de Lindoso no Alto Minho. Enquanto, nesta última, tem predominado desde longa data a prática da
partilha igual e, em consequência, um grau mais acentuado de fragmentação fundiária (4:2), em Aguiar a
instituição da herança avantajada, pela doação do terço ou mais, foi prática corrente ainda até começos do
século XX, estendendo-se mesmo até à década de cinquenta. Abundam, com efeito, para Aguiar,
documentos de doações não só por conta da legítima como também por conta da quota disponível, práticas
estas vigentes sobretudo nas casas de proprietários e lavradores (A27, 33).
Também quanto ao momento da partilha, Lindoso se diferenciava de Aguiar. Enquanto em Lindoso,
segundo o padrão tradicional da partilha, esta ocorria predominantemente em vida dos testadores (inter
vivos), em Aguiar a divisão do património familiar era, em regra, postergada para além da morte do testador
(post mortem):

194
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

GRÁFICOS 17 e 18: Famílias e partilha em vida

Fonte: ILL e ILA 1984-85.

Dos inquéritos evidencia-se que ainda é elevada a percentagem das unidades domésticas que não
executam a partilha em vida pelo simples facto de os cabeças de casal se encontrarem em idade activa ou
sem filhos casados ou por casar – 66% em Lindoso e 58.6% em Aguiar. Dos casos conhecidos e
representados nos gráficos 17 e 18 é de relevar que, enquanto em Aguiar 83.6% se recusaram a fazer partilha
em vida, em Lindoso, pelo menos 50% fizeram-no por escrito ou em base verbal. O processamento deste
acordo – que tem a vantagemde permitir a cada filho cultivar o seu quinhão e fazer benfeitorias – ocorre, em
regra, por alturado casamento de um dosfilhos(as), nomeadamente quando os demais irmãos ou irmãs estão
casadoiros(as) e os pais já não se encontram em condições de cultivar as terras e liderar a unidade
doméstica.
A regra da partilha oral em Lindoso resulta de uma longeva prática local – a partilha por sorteio – que
em Aguiar apenas excepcionalmente e outrora ter-se-ia praticado e por ordem do Juiz2. Tradicionalmente,
em Lindoso, sempre que a partilha tinha lugar em vida e na presença dos pais, esta realizava-se de modo
bastante transparente à roda da lareira. A fim de evitar eventuais pagamentos de direitos de sucessão, tal
processo ocorria não raro à margem e sem conhecimento da Repartição de Finanças, cujo contacto era, em
princípio, evitado, o que teria dado lugar a diversas autuações. Mais, por altura dos processos de óbito, os
herdeiros não registavam, por norma, as sortes nas conservatórias prediais, omitiam aos funcionários fiscais
as deixas ou os legados do testador (de cujus) e, quanto às contribuições rústicas, localmente denominadas
décimas, a existirem, continuavam a ser pagas em nome de ascendentes, por vezes, bastante afastados.
Para efeitos de avaliação dos recursos patrimoniais, eram (e ainda são) chamados dois louvados da
confiança de todos os herdeiros, os quais, após a avaliação dos bens móveis e imóveis, instituíam tantos
quinhões quantos os herdeiros. Na formação dos quinhões, fixados em cartas de formal, os terrenos da
herança eram divididos por igual nos seus diversos tipos, qualidade e grau de produtividade (vinha, horta,
veiga, monte), o que complexificava o processo de divisão. Em seguida, se todos estivessem de acordo,
passava-se ao sorteio; doutro modo, reavaliavam-se os quinhões e, uma vez obtido o consenso, cada um
comprometia-se a acatar o resultado do sorteio, o que, salvo casos excepcionais, tem constituído prática

2
Por exemplo, IOA 340 M351, 1877 e IOA 273 M614:271, 1886. Também no Livro de Testamentos de Lindoso entre 1741 e 1768
encontram-se alguns casos de favorecimento dalgum(ns) herdeiro(s), sendo-lbe(s) atribuído, por vezes, o terço, sobretudo no caso
de os demais herdeiros não respeitarem prévias disposições testamentárias (v.g. LTL 1741-1768:1 I3, 129, 131, 136v, 140, 143v).
Porém, a regra era tradicionalmente a da partilha igual, ocorrendo transferência de bens por altura do casamento de um dos
filhos(as), situação também constatada por Tolosana (1979:307) na Galiza.
Herdar, Poupar, Educar

habitual até ao presente.

Em Aguiar, não se fazendo, em regra, a partilha em vida dos pais, a morte destes ou, mais precisamente,
a de um deles constitui(a) o momento em que os filhos acedem em plenitude a uma parte ou à totalidade do
património, passando a dispor das terras eventualmente já em seu uso e posse.
A dominante prática sucessorial postmortem, indissociavelmente à necessidade de segurança perante as
incertezas da devolução em vida, vem todavia perdendo o seu vigor nas duas últimas décadas. O cônjuge
sobrevivo, embora legalmente tenha hoje direito a metade da herança e a uma parte igual a de cada um dos
filhos (D.L. 496/77 de 25-11), retém, de modo geral, apenas a casa, a horta e uma ou outra cabeça de gado,
cedendo os restantes bens aos filhos e sobretudo às filhas casadas e/ou residentes na aldeia, retribuindo-lhes
estas com uma detenninada quantia de cereais, vinho e demais produtos. Além disso, com as actuais fontes
extra-agrícolas de rendimentos (pensões, juros de poupanças, remessas migratórias), subsístindo uma
elevada dose de confiança dos pais nos filhos e destes entre si quanto ao amparo daqueles na velhice, alguns
casais, sobretudo lavradores (A44, 53, 90), têm possibilitado processos amigáveis de partilha em vida.
Porém, perante a realidade de rendimentos baixos e/ou situações incertas, a atitude dominante, não só e
sobretudo no passado mas ainda hoje, tem sido de reticência ou mesmo de recusa em desprender-se
totalmente dos bens em vida: «Se as minhas filhas às vezes me tratam mal agora que os bens ainda estão em
meu nome, se eu os repartir, como é que me tratarão?» (A92). Por isso, mesmo quando procedem a doações
em vida especialmente a filhas casadas e, de preferência, solteiras, os pais são ciosos de dispor, pelo menos
parcialmente, da casa e do respectivo património como base segura para a sua autonomia e segurança
presentes e futuras. Mais, ao reterem o direito de nomear herdeiro(s) ou donatários até à morte, visam não só
mantê-los junto de si como medida preventiva para o não abandono, como também evitar serem destituídos
da sua capacidade de decisão nos destinos da casa ou tornarem-se simples marionetas entre as casas dos
filhos. Teria sido com certeza pela prefiguração dramática implicada no fenómeno da devolução e pelas
conhecidas experiências de (semi)abandono da geração mais velha – e actualmente visíveis nalguns casos –
que, por exemplo, o velho proprietário-lavrador Abel Fortuna reproduzia, em tom gerontocrático, a
consagrada máxima popular: «Quem parte antes que morra, merece cachaporra» (Al 1).

A relativa diferença de padrões sucessórios em Lindoso, comparativamente a Aguiar e mesmo a outras


aldeias do Alto Minho – entre as quais a soterrada Vilarinho da Furna –, requer uma explicação. A regra da
partilha igual não é fruto do capricho ou da índole mais igualitária dos moradores de Lindoso em relação aos
de Vilarinho ou mesmo aos de Aguiar, mas antes produto da mais generalizada carência ou precaridade de
recursos monetários que, tal como Bourdieu assinala (1980:253), impossibilita o pagamento de tornas aos
irmãos e obriga à partilha igual. Tal é, aliás, confirmado pelos depoimentos de alguns moradores mais
idosos (L13, 64), para quem as práticas de herança indivisa ou avantajada em casas da vizinha Vilarinho
dever-se-iam ao facto de, além de estas dependerem basicamente da agricultura, haver aí «muita senhoria»,
ao contrário de Lindoso. Nesta, devido cumulativamente ao relativo isolamento geográfico, à fraca
produtividade fundiária e à exiguidade de recursos sobretudo monetários, a maior parte das casas, sendo
pobres ou remediadas, compensava a insuficiência de rendimentos agrícolas com outras fontes de
subsistência complementares: o pastoreio, o carvão, o contrabando e sobretudo a migração.

Das escrituras de doações, testamentos e inventários orfanológicos poder-se-á concluir, porém, que, em
Aguiar, eram, com frequência, preferidos como sucessores os primogénitos filhos-varões ou filhas, sendo
assim o atributo sexual relegado para segundo plano3. Nem sempre o herdeiro-mor era necessariamente o
mais velho, podendo ser até o mais novo, o mais querido, coincidindo amiúde com aquele que mais
tivessecontribuído com o seu trabalho para a manutenção da casa e/ou mais cuidados tivesse tido com os
pais idosos, facto de que é sintomático o seguinte adágio popular: «Quem é o teu herdeiro? Quem te limpa o

3
Durães (1988:49-50) no seu estudo sobre 520 testamentos, 159 dotes e 62 doações na freguesia de Adaúfe chegou à seguinte
conclusão: a selecção do herdeiro principal recaía em 90% de filhos primogénitos e 86% de filhas primogénitas e, tendo em conta
apenas o critério do sexo, 57% dos herdeiros principais eram varões e 43% mulheres. Sobre os diferentes padrões de herança
noutros países europeus, cf. Gasson e Errington 1993:194 ss.
196
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

traseiro».
O sistema de herança indivisível ou mesmo avantajada, além de revelar uma contradição, em termos
abstractos, entre a lógica patrimonial e matrimonial, exprime com mais precisão uma forma de desigualdade
e de subsequente tensão entre os pais transmissores, eventualmente em sintonia ou conivência com o(a)
filho(a) favorecido(a) casado ou casável e herdeiro-mor, e os filhos(as) excluídos do casamento e/ou
desfavorecidos na herança. Se é certo que a casa paterna e, seguidamente, do irmão/irmã herdeiro-mor, em
regra, proporcionava aos irmãos e irmãs celibatárias o direito de uso dos bens, uma relativa participação nos
afazeres da casa e, sobretudo, as condições mínimas de segurança, o preço de uma tal factura era bastante
elevado na medida em que eram destituídos do poder de dispor sobre uma fracção dos bens e,
consequentemente, de condições para casar. Contrariamente à idealização de Le Play (1982:261, 275 ss)
sobre «a quietude do celibato» no quadro da família composta, ajustada se afigura a interpretação de
Bourdieu (1972:1123), para quem os irmãos celibatários excluídos da sucessão no poder doméstico
constituem objectivamente, sob a capa das representações idílico-mistificadoras das relações paternais ou
fraternais, as «vítimas estruturais» do sistema de herança indivisível ou até avantajada. Com efeito, neste
sistema de partilha, os filhos não-herdeiros vão sendo socializados no sentido de aceitar como facto
inelutável a sua exclusão do património a herdar. Em tais circunstâncias, os laços familiares funcionam,
ainda que sob o manto protector e afectivo da casa, como correias que silenciosamente aprisionam ou
domesticam a potencial rebeldia dos irmãos desfavorecidos. Embora com bastante menor frequência e
intensidade em Lindoso que em Aguiar, foi todavia possível detectar destes casos (L70; A27, 28, e33), de
que é sintomático, por exemplo, o amargo e ressentido comentário de dois irmãos celibatários co-residentes
na casa da irmã herdeira-mor: «Não temos mulher porque as mulheres lá em casa não o quiseram.
Passamos a vida trabalhar mas sem gosto, pois trabalhamos para os outros e de nosso não temos nada»
(L70).

Apesar da introdução de mecanismos tendentes à divisibilidade da herança desde o Código Civil de


1867 e, sobretudo, o de 1966, subsistem ainda elementos do sistema de herança avantajada, designadamente
a possibilidade legal de os ou testadores disporem da quota disponível. Esta, que, de acordo com o Código
Civil de 1966, se cifra num terço da herança, pode, não obstante as declarações perante os representantes
legais, ficar-se, na realidade aquém ou ultrapassar o referido terço. A não obrigatoriedade dos inventários e,
sobretudo, a própria consagração legal da fórmula jurídica da quota parte disponível, paralelamente ao
princípio da partilha igual dos dois terços do património englobados na legítima, deve ser interpretada como
um compromisso da tensão acima referida4, permitindo, na prática, que, em casas com dois a quatro filhos, o
favorecido retenha 50% ou mais do património.

As partilhas verbais ou por escrito e as doações, constituindo os modos habituais de fazer herdeiros,
além de exprimir o já referido drama da devolução da geração mais velha para a mais nova, revelam uma
mútua mas tensa dependência entre ambas as gerações. Se, em regra, a mais nova está interessada que a
transferência do património se verifique o mais rápido possível, a mais velha não abdica, tal como foi
referido, do seu poder patrimonial como forma de reter, juntamente com os bens, pelo menos algum dos
filhos(as) junto de si, objectivo por vezes não alcançado por pais sem bens para transmitir: «Os filhos não
cuidam de mim, porque estão casados ou emigrados e porque não tenho nada para deixar-lhes» (Al02).
As doações por conta da quota disponível consubstanciavam-se, ora numa escritura de doação, ora num
testamento, particularmente quando não havia filhos. Na análise de 26 escrituras de doação em vida5, foi

4
Entre os artigos que permitem ao de cujus dispor de um terço da herança, cf. artigos 1790, 1791, 1796 do Código Civil de 1867 e
artigos 2179 e seguintes do Código Civil de 1966; e, entre os que taxativamenteprescrevem a partilha igual dos restantes dois
terços designados por legítima, cf. artigos 1784 e 1786 do Código Civil de 1867 e 2157 e 2159 do Código Civil de 1966.
Um dos fenómenos em que a referida tensão entre a componente patrimonial e a matrimonial se manifestava e manifesta diz
respeito às práticas de partilha de bens após uma ruptura conjugal por separação ou divórcio ou por morte de um dos cônjuges sem
descendência. Cada cônjuge e respectiva família tendia a ficar com a parte que lhe coubera originariamente sem atender se tal, em
regime de comunhão de bens, representava ou não a metade legal da totalidade do património conjugal.
5
Para 1930-39: ED 274A:95v-97 in NTB CM; ED 3-6-1931. Para 1940-49: ED 5-9-1940 e 14-7-1942, Lil05:29-30v; ED 15-12-
1941; ED 27-7-1949 in NTB Li463:35; TA 1-7-1949 Li69:41. Para 1950-59: ED 17-4-1952 in NTB GFA Li495:50; ED 22-1-
Herdar, Poupar, Educar

possível apurar que cerca de 70% foram feitas por conta da quota disponível dos futuros testadores, sendo de
referir ainda que grande parte das atribuídas por conta da legítima ocorreu nas décadas de setenta e oitenta,
época de uma maior vigilância e exigência de tratamento igual por parte dos demais filhos-herdeiros.
Às doações levadas a cabo em convenção antenupcial dos donatários (8:2) e sobretudo aos testamentos
instituidores de herdeiro-mor presidia e preside, além de uma estratégia de perpetuação da casa, da
identidade e do nome dos doadores, a preocupação destes para que os donatários providenciem e os assistam
na doença e na velhice. Doutro modo e/ou perante a não realização doutras condições (por exemplo,
inexistência de descendentes), tais doações ficavam sem efeito e revertiam para os doadores ou para a sua
família de origem6, tal como se poderá ilustrar, por exemplo, mediante a leitura da escritura de doação de
Manuel Vicente a seu filho e futura nora Maria da Cunha, em 1893, que impunha a condição de «os futuros
esposados viverem na casa e companhia dele doador, tratando tanto na saúde como na doença com todo o
amor, respeitoe carinho; e se assim o não fizerem e saírem sem que ele doador os mande ou para isso lhes
dê maus tratos, ficará esta doação de nenhum efeito; porém, se ele doador os mandar sair ou para isso lhe
dê causa,ficará esta doação em seu pleno vigor» (ED 3-1-1893 in NTVP).

Do mesmo modo, os testamentos em favor de determinado(s) herdeiro(s), perante o insuficiente ou


inexistente amparo na doença e na velhice do testador, poderiam ser alterados ou mesmo revogados. Com
efeito, não raro o tratamento preferencial dos pais para com um dos filhos(as) surge na sequência de atitudes
mais atenciosas e solícitas por parte deste(a) ou, por contraposição, como compensação de doações doutros
parentes a outros co-herdeiros (Ae73 v 66) ou, ainda, como resultado de comportamentos de indelicadeza,
senão mesmo de indiferença e até abandono por parte dos demais filhos(as), genros ou noras. Por exemplo,
em Lindoso, António Rodrigues Perna dispunha que «tudo o que deixava a seu filho o deixava por obras e
serviços que recebeu e espera receber» (LTL:131, 146, 6-2-1768) e, em Aguiar, Maria Pereira da Silva doa
à filha Joaquina «desejando mostrar-se grata no amor e carinho que tem recebido» (ED 29-12-1897). Em
1949, Brandão (Ae126) – que, segundo informantes, projectava inicialmente partilhar por igual os bens às
suas três filhas – acabaria por favorecer Marcela (A118 ED 27-7-1949 in NTB Li463:35), em virtude de um
outro seu genro, Veiga, forâneo, no próprio almoço da boda, instado por um conterrâneo a tratar bem os seus
sogros, ter respondido, de modo inoportuno e pouco diplomático, «deixar-lhes as sobras que houver» depois
de cuidar da mulher e dos filhos.
Actualmente, bastante mais amiúde em Aguiar do que em Lindoso, uma das formas expeditas de
favorecer um dos filhos, com ou sem cobertura legal da quota parte disponível, tem contudo lugar, já não
tanto pelo instrumento jurídico das doações manifestas, mas mais mediante dádivas em dinheiro ou pelo
mecanismo de vendas simuladas, em que os pais-vendedores, reservando-se o usufruto dos bens vendidos,
declaram ficticiamente ter recebido do filho(a) o preço corrente por bens de facto doados (CVA in NTB I,
LiB38:144). Deste modo, reproduz-se, com efeito, uma forma de desigualdade, se bem que, na prática, mais
mitigada que outrora na medida em que as respectivas doações a determinado(s) herdeiro(s),

1953 in NTB LF LV498:99v; ED 9-9-1955 in NTB Li529:59-60; ED 28-6-1956 in NTB Li537:29-30v. Para 1960-69: ED 3-6-
1960 in NTB CM 279A:63-65; Ae54 in NTB II 64B: 23, ED 11-4-1961 in NTB 60; ED 4-6-1965 in NTB II 35B:72v; ED 1-7-
1966. Para 1970-79: ED 11-2-1971 e B58/91 in NTB IVMJ; ED 27-11-1970 e 19-4-1971 in NTB LiA70:79-80v; ED 20-8-1975 in
NTB II D9-40v; ED 7-10-1975 in NTB II BL 238, n.o 94.009 D 10-34; ED 28-9-1978 in NTB II LB175, n.o 69.146 e 89B/100 e
67D:20v; ED 15-12-1978 in NTB C35:~5-96; ED in NTB II D19:8v. Para 1980-89: ED 9-5-1980 in NTB I VMJ 47C:50-51; ED
1-9-1980 in NTB LF 157, n.o 62.138; ED 29-8-1980 in NTB Li46C:37; ED 20-1-1982 in NTB II 62C:19; ED 24-5-1982 in NTB
65C:44.
São ainda de referir doações por conta da quota disponível: Ae66 Li40:38, 1870; Ael09 TA 10-11-1886 in NTVP; Ae17 ED
25-9-1890; TA 20-12-1861. Já neste século, Ae83 Li6:43 a 6-10-1931; Ae45 TA 9:37-38 de 15-7-1935; Ae43 15-12-1941; Ae66;
Ae92 a 16-4-1942 Li4/6:9 BL; Ae126 TA 1-7-1949 in Li69:41-42; ED 27-7-1949; Ae129 a 25-4-1951; Ae13; A90 22-1-1953
Li498:99v, Ae27 n.o 68.657 in NTB LF; Ae33 Li279A:63-65 in NTB CM; ED 1-9-1955 in Li529:59-60v de NTB GFA; ED 28-6-
1956 Li537:19-20 in NTB GFA; D19:8v in NTB II 1975; ED 7-10-1975 in NTB II D-10-34; ED 20-8-1975 in NTB II D9:40v;
Aell9 a 9-4-1971; ED 28-9-1978 in LF 175 n.o 69.146 e LF 89-90:lOOv in NTB II 67D-20v; ED 9-5-1980 in NTB I VMJ 47C:
50-51; ED 16-7-1968 in NTB I:71v; A129 a 150 (ED Li49D:93-94 in NTB I VMJ, 3-9-1980).
6
De referir, por exemplo, o facto de ter sido pedida anulação judicial duma doação ocorrida em 1898 (ED Li168:45v, 15-3-1898 e
TB Li4:5v, 20-6-1902). A habitação e a alimentação, assim como a preocupação assistencial na velhice e na doença, patente no
articulado dos testamentos, têm sido salientadas por diversos autores, entre os quais Goody (1976:87 ss), Vermette (1986:508 ss),
Durães (1988:54 ss) e Brettel (1991:63).
198
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

circunscrevendo-se por norma a um valor bastante inferior ao terço, se traduzem em disponibilizar-lhe(s)


parte de juros ou outros rendimentos do testador, a facilitar-lhe(s) a devolução da casa, a ceder-lhe(s) terreno
para cultura ou para construção de casa, conforme as respectivas posses, necessidades ou projectos. Além
disso, os herdeiros não sucessores da casa são não raro compensados doutros modos tais como o ser-lhes
atribuídos aforros do testador e/ou custeada a sua formação escolar.

Se, em regra, os herdeiros prejudicados guardavam para si os seus ressentimentos, respeitando para o
exterior, sob um discurso de unidade familiar, a memória dos pais e sogros falecidos, por vezes não se
inibiam todavia de manifestar, em sinal de protesto, o seu agravo através de gestos ofensivos tais como
passear-se ostensiva e regozijadamente em público, tocar bombo e vestir-se de vermelho no dia da morte ou
do funeral do pai, da mãe ou do sogro(a) (respectivamente Ae101 v 69, 66 v 73 e el26v e118).

Relativamente aos testamentos, se o seu núcleo principal visava a transmissão e a eventual divisão dos
bens pelos respectivos herdeiros, o seu preâmbulo, em regra, iniciava-se manifestando o de cujus a sua fé e
«encomendando a sua alma a Deus». Logo de seguida, o testador fixava-se na negociação calculada da sua
salvação através da compra de bens religiosos, apelando à intervenção medianeira da Virgem e dos santos
como advogados na sua caminhada espiritual. Assim, exprimindo as suas últimas vontades, o testador
adstringia, em benefício do seu corpo falecido e da sua alrna7, uma série de bens materiais e simbólicos no
concernente ao local do enterro, tipo de caixão e vestimenta (v.g. túnica de São Francisco ou de Santa
Teresa), número de padres oficiantes, quantitativo de ofícios e missas anuais por sua alma e as de seus
parentes próximos.
Na esfera temporal, além de fazer menção de eventuais dívidas ou créditos, o testador passava à
detalhada distribuição a parentes, afilhados e, por vezes, criados, de legados e outras dádivas tais como
dinheiro ou cordões de ouro – quando os havia –, animais, alfaias e demais bens móveis, roupas e objectos
diversos e, sobretudo, a instituição de herdeiro universal no remanescente, abrangendo a casa, campos
próprios e aforados, em regra com reserva de usufruto para o cônjuge sobrevivo. Além disso, sendo o
testamento, igualmente, um instrumento de prevenir ou dirimir potenciais conflitos, o testador, por vezes,
ora exortava à concórdia, ora apelava aos tribunais civis e eclesiásticos e cominava cada um dos herdeiros
faltosos, no caso de incumprimento dalguma das cláusulas prescritas8.
Dos testamentos a que tive acesso desde 1810 para Aguiar e desde 1841 para Lindoso, foi possível
estabelecer um quadro revelador da profissão e da idade dos testadores e, por acréscimo, para Lindoso, do
estado civil do testador e do parentesco do sucessor para com este. Com efeito dos quadros 19 e 20 se infere
que o testamento, como forma de criar herdeiros, era normal prerrogativa e (quase) exclusivo instrumento
utilizado por proprietários ou lavradores: 91.2% em Lindoso e 72.1 % em Aguiar. Obviamente os pobres,
dada a exiguidade dos seus haveres, não se socorriam,em regra, do mecanismo de fazer testamento, tal como
referem alguns assentos de óbito, como, por exemplo, no século XIX,o do ex-«brasileiro» Domingos Meira:
«não testamento porser pobre»(AOA 4-7-1869). De resto, o acto disposição – amiúde verbal até ao início do
século XX e, posteriormente, por escrito perante o tabelião e, mais tarde, o notário – tinha lugar na presença
dalguns parentes e vizinhos e, sobretudo, com a assistência do pároco à cabeceira daquele quando doente ou
moribundo.

7
De referir, por exemplo, a aplicação entre 1.500 a 12.000 réis para «gastos alma» (TL 8-11-1858, Li6, 92; TL 15-1-1857 Li5,
56:129-132v) ou a atribuição de dádivas aos afilhados (TL 11-6-1879, Li26, 7:20-24v; TL 2-3-1881, Li26, 4:l2v) e de «esmolas à
porta: de 20 réis para os grandes (adultos, MCS) e 10 para os pequenos» (TL 27-2-1876, Li25, 1:1 v), ou que «no fim da missa
do sétimo dia será distribuída esmola em dinheiro correspondente a três medidas de milho para os pobres da paróquia que
assistam à missa» (TA 11-10-1908). Ou ainda a deixa de legados pios (v.g. 41 em Aguiar, entre 1906 e 1924), destinados,
maioritariamente, a pagamento de missas.
8
Cf., entre outros, TA 24-4-1876, TA 22-11-1890; e, em Lindoso, diversos testamentos entre 1741 e 1773.
Herdar, Poupar, Educar

QUADRO 19: Estado civil e profissão dos testadores: Lindoso (1841-1985)

Legenda: Estado civil do testador:(a) solteiro; (b) casado, com filhos; (c) viúvo com filhos; (d) casado, viúvo sem filhos;
Profissão do testador:(1) padre, empregado, funcionário(a); (2) proprietário; (3) lavrador(a);Parentesco do sucessor:(A)
filho(a), cônjuge; (B) irmão, cunhado, sobrinhos, netos, afilhados; (C) outros parentes+não parentes; *rácio sobre o total de
testamentos (em %).
Fonte: Testamentos de Lindoso, 1841-1985, Arquivo Distrital de Viana do Castelo e de Ponte da Barca.

200
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

QUADRO 20: Profissão e idade dos testadores: Aguiar (1810-1989)

Legenda: Profissão do testador:(1) padre, empregado, funcionário(a); (2) proprietário(a); (3) lavrador(a);(4) camponês
parcial, caseiro, jornaleiro/ criado(a); Idade:i=ignorada; * sem dados completos ou específicos sobre a profissão ou a
idade; ** sem dados entre 1911 e 1930.∞ = taxa de testamentos por conta da legítima; β = taxa de testamentos por conta da
quota disponível.
Fonte: Testamentos de Aguiar, 1810-1989, Arquivo Distrital de Braga e Notariado de Barcelos.

Quanto ao estado civil, os dados extraídos dos testamentos evidenciam que os testadores detinham em
68.6% dos casos de Lindoso o estado de solteiros, casados ou viúvos mas sem filhos ou herdeiros forçosos.
Nem por isso, todavia, deixavam de estabelecer sucessores que, ainda que de modo supletivo, assegurassem
a reprodução material da casa e fossem o repositório moral e afectivo da mesma, garantindo assim a
memória do testador. Mais, é justamente em tais casos, perante o virtual e indefinido leque de sucessíveis,
que os testamentos clarificam a repaitição dos bens, seleccionando herdeiros entre membros da família
troncal, por norma entre colaterais (irmão/ã, sobrinho/a) ou outros parentes. Com efeito, relativamente a
Lindoso, em 86.3% dos casos os bens foram doados ou ao filho e/ou cônjuge sobrevivo ou a irmãos,
cunhados, netos, sobrinhos(as) e afilhados. Por outro lado, enquanto em Lindoso apenas 25.5% dos
testadores cederam a quota disponível em favor de um dos herdeiros, em Aguiar, entre 1930 e 1989, dentre
os casos conhecidos 56.5% assumiram explicitamente tal fórmula.
As diferenças de padrões sucessórios entre Lindoso e Aguiar são todavia menos patentes, se se recuar
no tempo, por exemplo, ao período de 1741-1771 (anexo 15). A pressão da Igreja e a preocupação dos
crentes pelos «gastos de alma» faziam do testamento um instrumento predominante mas não exclusivo dos
proprietários-lavradores, sendo também utilizado por outros grupos de moradores, nomeadamente em
Lindoso. Além disso, esta fonte documental indica-nos também alguns casos de favorecimento por parte do
testador ao destinar a reserva do remanescente no terço a um dos herdeiros, sobretudo quando este tenha
assistido ao de cujus na velhice (LTL 1741-177l:29, 113, 131, 136v, 140, 143v).

Analisados os modos mais correntes de «fabricar» herdeiros, já pela via matrimonial e da descendência
Herdar, Poupar, Educar

própria e directa, já pela designação testamentária de herdeiro em caso de não descendência, cabe referir
ainda outros menos usuais mas não menos importantes em vista da reprodução social da casa.
Ressalvando casos excepcionais em que os sucessores são procriados pela intervenção sexual de um
parente ou vizinho9, são de salientar alguns recorrentes casos de apadrinhamento de jovens, parentes e não
parentes, na expectativa do exercício da função sacerdotal. Quando estes cenários ou não se verifiquem ou
por vontade expressa do testador sejam afastados, os herdeiros ou legatários são então recriados a partir das
relações de amizade (Al5) ou parentesco ritual (compadrio, apadrinhamento), não sendo de excluir, embora
excepcionalmente, a adopção de criado(a) para herdeiro(a),acompanhada ou não de acasalamento do
adoptado com algum(a) parente. É de referir em Lindoso o caso típico de Rafael que, tendo vindo «servir»
como criado aos nove anos para um casal de lavradores sem filhos, uma vez testado o seu apego à casa e
demonstrada a sua capacidade de trabalho, jamais receberia uma soldada mas, em contrapartida, ao aceitar a
proposta dos patrões-padrinhos de casar com uma sobrinha sua, viria a ser por estes investido como herdeiro
da casa.
Se, como veremos em 9:3, a atitude de deserdar ou ignorar sucessorialmente os filhos ilegítimos tenha
constituído a regra, constata-se, por vezes, da parte do pai biológico uma intenção velada ou até manifesta de
fazer um legado ao filho(a) «natural». Para tal, ou lhe é, por exemplo, oferecido, em casamento, uma
sobrinha(o) – o que permite manter o património na família socialmente reconhecida – ou lhe são doados
bens, senão de modo directo, por venda simulada a interposta pessoa encarregada de os retransmitir
gratuitamente ao beneficiado10.

9.2. Competir pela sucessão

Sempre que os co-herdeiros, residentes ou não, exijam compensações ou tenham direito a tornas, o
sistema de partilha igual não só ocasiona dívidas – que, por vezes, se transmitem de geração em geração –
como provoca não raro tensões e até disputas entre irmãos/irmãs.
As contendas relativas à divisão da herança, sendo frequentes, eram todavia, em regra, solucionadas ou
por mediação duma personalidade localmente reputada ou, simplesmente, por recurso ao Juiz de Paz. A
título ilustrativo, entre 1897 e 1926, de 23 conflitos registados em Aguiar e postos à mediação do Juiz de
Paz de uma freguesia vizinha, dezoito (78%) referiam-se a heranças – 83% das quais de tipo intrafamiliar –,
os quais se saldaram por conciliação entre as partes (LCDPQ Li 71-85, 1987-1926).
Uma das soluções transitórias de compromisso, que o direito foi incorporando, consistia em dividir a
casa, o eirado e os terrenos adjacentes em tantas quotas-partes quantos os filhos, mantendo a indivisibilidade
do património, nomeadamente quando, em inventário orfanológico, os herdeiros eram menores, até que a
situação e o futuro de cada filho se clarificassem. Tão pouco esta moratória estava isenta de virtuais
dissensões entre os irmãos sobre qual deles viria a suceder como principal herdeiro na casa. Um dos
exemplos históricos relevantes e só judicialmente resolvidos foi o ocorrido em Aguiar, em 1911, entre
quatro irmãos consortes e comproprietários (Ael29), em que um deles,

Domingos, um ex-«brasileiro» com meios económicos para fazer valer o seu legal direito de preferência, uma vez
obtida a cedência da quota parte da irmã Lúcia para efeitos judiciais, alia-se a Rosa, uma outra sua irmã, e ambos
instauram um processo ao irmão mais velho Manuel – que, estabelecido em Vila do Conde e atingida a maior
idade, vendera ao conterrâneo Parente a sua quota-parte por contrato a 4-11-1895 – no sentido de anular o
referido contrato do irmão e, desencravar o prédio.
Não tendo Manuel contestado a acção, Domingos, apesar da impugnação por parte do comprador, alcançará o

9
Por exemplo, no Lindoso, António, conhecido por chochinho, dada a sua alegada infertilidade, teria dito publicamente: «eu dou
uma junta de bois a quem fizer um filho à minha mulher». Tal viria, de facto, a suceder por obra do vizinho Alexandre, sobre cuja
união comentaria a filha, quando adulta: «Tenho três pais: o do céu, o pai António e o pai Alexandre».
10
Por exemplo, L110 «vende» terreno a Le41 em favor do filho bastardo António (SIL 239/58 e SIL 228/61). Sobre os modos de
produzir herdeiros para além do limitado círculo de parentes consanguíneos, importa referir o papel ambíguo da Igreja, tanto no
sentido de restringir a liberdade dos testadores a herdeiros da família conjugal, como no de permitir e estimular a transmissão de
legados às suas próprias instituições por parte de viúvas(os), solteiras(os) especialmente freiras ou frades, mesmo que em
detrimento de membros da família (Goody 1983:95 ss).
202
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

seu objectivo na medida em que o juiz viria a declarar nulo o contrato de venda por, não podendo Manuel dispor
da coisa comum e indivisível, não haver nesse contrato objecto possível (TB Pl986 M785 Li25 :90 ss, 27-1-
1911).

Se emigrantes como Domingos estavam em condições de recuperar e açambarcar a parte de leão da


herança, importa também referir pactos de parentes residentes em relação a ausentes, nomeadamente na
partilha dos bens por inventário orfanológico. Não raro os residentes delineavam estratagemas combinados
no sentido de retardar ou até recusar aos ausentes o pagamento de tornas, sobreavaliar-lhes os prédios ou
simplesmente requerer ao conselho de família e/ou ao juiz para, senão anular, pelo menos reduzir-lhes o
quinhão por motivo, por exemplo, de gastos de viagem, estudos ou outras despesas extraordinárias11. Por
outro lado, os procuradores de ausentes, além de, por vezes, tirarem proveito ou favorecerem familiares e
conterrâneos em transacções de compra e venda de prédios ou cessões de direito e acção, incorriam em
negligência ou administravam mal os bens dos seus representados. Segundo queixas indiciadas em vários
documentos12, os inventariantes (parentes, tutores e procuradores) eram intimados a prestar contas – as
quais, aliás, nem sempre eram aprovadas pelo juiz e conselho de família –ou porque não pagavam as tornas
ou empolavam os gastos ou porque ou subavaliavam ou até sonegavam os rendimentos dos respectivos
prédios e/ou juros de capital-dinheiro.
Nas relações de bens dos inventários, alguns cabeças de casal e inventariantes, por vezes
inadvertidamente, em regra de modo deliberado, não obstante a obrigatorieda de, no juramento dos Santos
Evangelhos, declarar a verdade perante o juiz, omitiam declarar um ou outro prédio, negavam possuir
determinados bens móveis e sobretudo objectos de ouro13, além de reivindicar dos herdeiros o pagamento de
custos ou eventuais legados. Se tais práticas ou declarações prestadas14 eram, por vezes, impugnadas pelos
demais consortes, mormente quando não-residentes, em regra, a nível local, os seus autores não eram
judicialmente processados, ficando-se por simples protestos intrafamiliares. Acresce ainda que, em situações
de relação instrumental com os co-herdeiros ausentes, alguns residentes, a fim de diminuir o quinhão
daqueles, forjavam no passivo da herança, com ou sem a conivência de parentes próximos e credores reais
ou fictícios, dívidas ou despesas no intuito de extrair dividendos na partilha do bolo patrimonial15.

Ainda no quadro da herança é relevante considerar que, em regra, as últimas vontades e disposições
testamentárias eram escrupulosamente respeitadas. No entanto, ao tempo em que o testamento era elaborado
na presença do pároco ou a sua leitura a este confiada, foi possível inferir da leitura de alguns assentos de
óbito do século XIX que os herdeiros, frustradas as suas expectativas, podiam chegar ao ponto de manipular
ou contestar a interpretação deste ou daquele testamento ou, em caso desfavorável, até retê-lo. Por exemplo,
à morte de Josefa Cancela, mãe solteira, os herdeiros legais recusaram mostrar ao pároco o testamento ou, à
morte de José Ferreira de Carvalho, logo que o padre procedera à leitura do testamento, os herdeiros
ripostaram que aquela não teria sido a «sua última vontade» (AOA 8-3-1834); ou ainda, por morte de
António José Barbosa, uma vez lido o testamento pelo padre, os herdeiros levaram-no imediatamente «com
o pretexto de disposições contidas nele para o seu funeral» (AOA 12-10-1831).
Embora raros, há igualmente casos, em que um dos irmãos consegue de modo hábil atribuir-se o grosso

11
Para exemplos de descontos por viagens, concretamente em 50$400 e em 100$000 réis, cf., respectivamente, IOA Li5:183 de
18-11-1902 e TA 20-12-1861) e/ou de convénio de irmãos em relação a outros, sobretudo quando ausentes, cf. IOA Pl95 M8, 23-
4-1872; IOA, 1,4:94 ss, 1880; IOA M302, 1886; IOA M28, 11, 911, 1883; IOA P6:25, M31, 6-11-1885; IOA 16-2-1887; IOA 16-
-8-1887; IOA P26:l-50v I,1209, í889; IOA M633, 18-8-1903.
12
Por exemplo, a referência à omissão, pelo tutor, do pagamento de 6748 réis concernentes aos rendimentos do ano de 1884 ou o
exagero do registo de 900 réis de gastos de deslocação à vila de Barcelos; cf. ainda IOA 70:87 ss, 25-2-1887.
13
Cf., entre outros, o do cabeça-de-casal que, «devendo inventariar todos os bens do casal, passou a sonegar os bens que constam
na relação que se junta» (LCNC Li10:92v, 14-1-1837); Francisca de Castro quando questionada pelo inventariante Miguel José
de Castro (IOA 191, 1872); António José de Sousa e Rosa de Sousa, neta por óbito de Maria Pereira da Silva (M122, 1922);
Ael26 à morte do sogro (Ael 18) em 1949.
14
Cf., por exemplo, IOA 191, M337, 29-2-1872. Em sentido reivindicativo, por parte dos testamentários ou inventariantes perante
os herdeiros, cf. TB P62 M494 Li2:2-3, 9-1-193l.
15
Estratagemas estes levados a cabo nos seguintes processos sucessórios: IOA 30 M372, 12-12-1890; IOA 36n3 Li26, M991:34;
IOA 1950, M903:31, TB P13/70 M977, Li24:158),
Herdar, Poupar, Educar

da herança, ora alegando ora até forjando, com a ajuda de testemunhas, um processo, cuja sentença judicial,
ao declarar este ou aquele co-herdeiro diminuído mental ou interdito, faz reverter para o herdeiro-mor, além
da quota disponível, eventuais benfeitorias e outros bens, a gestão da respectiva quota-parte do parente
interdito (v.g. A28, TB Ml044, 19-1-1976).

O predominante sistema consuetudinário de partilha igual em Lindoso não tem permitido tanta margem
de manobra para instituir, com ou sem cobertura da lei, práticas de doação do terço ou para além do terço.
Contudo, também em tempo recente nesta aldeia, notoriamente em quatro casas, se verificaram práticas e
estratégias que, visando favorecer, ainda que ligeiramente, um dos filhos(as), implicaram uma parcial
derrogação da regra da partilha igual. Mais frequentes, porém, são pequenas doações ou reservas de bens na
herança em recompensa de cuidados na velhice do doador ou de cumplicidades com a conduta «ilícita»,
nomeadamente sexual, deste, conduzindo por vezes a discriminações para com os demais filhos, sobretudo
na sequência de casamentos não desejados16.
A menor ocorrência de casos de favorecimento de herdeiros em Lindoso faz com que a intensidade
conflitual entre irmãos seja menor que em Aguiar, mas não a elimina.Por outro lado, a competitividade
sucessória com os seus inerentes conflitos e até rixas não só afecta, como pretende Bourdieu (1980:257), as
casas de lavradores mas estende-se também, ainda que temporariamente, às de moradores pobres ou com
parcos recursos17. Com efeito, dado que o processo pressupõe mexer com o próprio poder de disposição
sobre a casa e outros recursos, mesmo que de pouca monta, a sua transferência e distribuição implicam
emulações, fricções ou até conflitos. Mais, sempre que o processo sucessório tenha suscitado controvérsia
ocasionada por jogos de bastidores em termos de preferência, a montagem de um esquema de espionagem
das conversas noctumas, rondando a casa dos pais e do filho(a) preferido(a), não era, sobretudo até à
implementação da luz eléctrica, invulgar. Entre outros, é de salientar a disputa entre Vítor e sua irmã Joana e
cunhado, em que a superior força física daquele contribuiu decisivamente para que acabasse por suceder na
casa: «Eu ia escutar pela calada da noite no eirado à volta da casa as conversas que minha irmã Joana e
seu marido Raul tinham com o pai: “Pai, não deixe entrar aqui o Vítor, que nós tratamos melhor de você”.
De repente, enchi-me de coragem e chamei pelo pai, que me diz para entrar. Entrei e, logo de seguida,
disse para minha irmã e cunhado: "Podem continuar com a conversa que estavam a ter com o pai". Raul
corou e, tocado pelo medo, atreveu-se a pôr-me as mãos no colarinho da camisa. Então eu peguei no meu
cunhado e na minha irmã um em cada mão e pus-me a batê-los um contra o outro, até que o pai, chocado
com aquela cena, me disse que podia ficar na casa» (A92).

A partir do Código Civil de 1966 e das práticas cada vez mais correntes de partilha igual, nas últimas
décadas há cada vez menos casos de favoritismo de filhos na herança. Nalgumas casas todavia é
precisamente à volta da disposição do terço a favor de um dos filhos, sobrinhos ou outros herdeiros que se
verifica a preferência do de cujus e a correlativa emulação sucessória. Não obstante acabarem por
prevalecer, em regra, soluções consensuais através de louvados ou personalidades respeitadas por todos os
herdeiros, as situações de partilha têm constituído amiúde momentos de tensão, em que os latentes conflitos
intrafamiliares entre irmãos e/ou cunhados, pais-filhos(as), sogros-genros ou noras e demais sucessíveis
costumam vir à tona da água, começando justamente pela dificuldade de encontrar mediador a contento de

16
Cf. respectivamente Le41, L65. Do mesmo modo, a não cumplicidade do(s) herdeiro(s) com o testador prevaricante pode
penalizar o filho(a) que denuncie ou se oponha à situação. Por exemplo, em Aguiar, em 1970, Maria, ao reprovar a união de facto
do pai-viúvo com uma jornaleira, acabaria por mover uma acção contra o pai, a fim de assegurar a doação que a mãe lhe fizera da
casa, invocando para tal 31.123$00 de gastos com dívidas e doença da mãe. Por sua vez, o pai e um irmão uterino de Maria,
conjugando esforços, instauraram outra acção para reclamar as benfeitorias realizadas na casa e, assim, elevar a licitação desta de
16.500$00 para 30.000$00 (TB P13nO M977, Li24:158).
17
Bem visível não só em duas casas de lavradores de Lindoso e onze de Aguiar, mas também em modestas casas como a de Elisa
(L117), em que um dos filhos, José, ao comprar e reconstruir uma pequena casa até então alugada pela mãe, despertou a emulação
dos demais irmãos porque a mãe teria destinado a casa em favor de José. Na publicação subsequente darei conta deste tipo de
conflitualidade intradoméstica e das tensões subjacentes entre irmãos e, eventualmente, entre sogros(as) e noras/genros nas
partilhas. A conclusões semelhantes chegaram Bourdieu (1962:38 ss, 1980:320 ss), Douglas (1971: 1112) e Collomp (1984:147
ss) num sistema de herança indivisível e Segalen (1984:131 ss) num sistema de herança divisível, concretamente na Bretanha
francesa do século XIX.
204
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

todos.
Liberalidades por parte dos pais a um dos filhos(as), sem o assentimento dos demais, para recompensar
atenções ou até empréstimos monetários desse filho(a), podem suscitar, além de um mal-estar entre irmãos,
um movimento dos restantes no sentido de serem repostos tais empréstimos de forma a manter-se íntegro o
património paterno até às partilhas (A46). Mantendo-se as doações a um dos filhos(as), em especial depois
docasamento deste, elas constituem, sobretudo desde a década de setenta, uma espécie de partilhas parciais
antecipadas que, ainda que avaliadas abaixo do valor venal corrente, são posteriormente descontadas no
processo de partilha por conta da legítima. Porém, enquanto o filho(a) contemplado, receando uma posterior
sobrevalorização do terreno devido a construções ou benfeitorias suas, insiste com os pais-doadores para lhe
assegurarem por escrito o terreno em causa e seu respectivo valor, uma tal exigência de documento escrito
gera não raro uma certa animosidade nos demais irmãos, susceptibilizados pelo facto de tal representar uma
falta de confiança nos paos e neles próprios. Obtendo-se acordo, o herdeiro beneficiado raramente
demonstrará aos demais satisfação na partilha, a fim de evitar da parte destes novas exigências.
Se, pela via de compensações e transigências mútuas ou mesmo ameaças de inventário judicial, não
acalmar a tensão nem for obtido o assentimento a tais doações, na iminência das partilhas paira sobre o
donatário, sob forma de chantagem ou retaliação, o espectro da elevação do preço do terreno outrora cedido
por altura do casamento ou outra circunstância. E, mesmo tendo sido feitas partilhas orais amigáveis, nada
impede que, particularmente à morte de um deles, se voltem a recolocar bizarras questões de partilha,
susceptíveis de tomar-se conflituosas e até litigiosas18.

Gilberto e sua esposa Rosa, emigrantes, após a conferência de partilha dos bens do sogro/pai, vêm, em 1978,
na sequência de um conflito de vizinhança com a irmã Lina e marido, requerer emenda de partilha em nova
conferência. Alegando que o desmembramento de 618 metros quadrados reivindicados por Lina – que esta
obtivera do pai em 19-1-1971, por conta da quota disponível, como doação para a construção de uma casa – viria
a afectar a unidade do seu pequeno eirado, Gilberto e Rosa veriam a sua exigência satisfeita pelo juiz (IOA
P105/78 Li2:680), sentença que obrigaria Lina e marido a vender a casa recém-construída e a edificar uma outra
noutro lugar!

Não obstante as ligações afectivas e a presença do discurso da unidade familiar, semelhantes situações
de despique e concorrência à volta da herança suscitam conflitos e, por vezes, litígios particularmente
marcantes. Tal polarização exacerba-se ainda mais quando têm lugar partilhas na sequência de separação ou
divórcio em casamentos com comunhão de bens mas sem descendência ou de segundas núpcias do cônjuge
sobrevivo mas com filhos do primeiro matrimónio19.
Se, nalguns casos, as referidas dádivas ou a própria doação do terço ao filho(a) que providencia pelos
pais na velhice são aceites de bom grado pelos demais, noutros elas fazer surgir a tensão ou até redobrar a
animosidade entre irmãos, designadamente quando se verifiquem casos de discriminação por conivência
(dalgum) dos pais com determinado filho(a). Ao lado de pais que encorajam ou se prestam espontaneamente
a tais arranjos na partilha dos bens, outros acabam por ser persuadidos ou mesmo psicologicamente
pressionados por este ou aquele filho, seus parentes e amigos. Em ocasiões aparentemente inocentes
(passeio, consulta médica), sob qualquer motivo ou pretexto (afeição a um dos netos/as) mas sem prévia
consulta e discussão com os demais irmãos, o herdeiro interessado no terço sorrateiramente induz ou até
conduz o pai ou a mãe ao notário, sobretudo quando já viúvo(a) e na fase terminal de sua vida, a fim de este
lhe fazer doações pela quota disponível. Típico e digno de menção é um caso relativamente recente que,
além de reflectir o entrosamento de velhas práticas de herança avantajada com as novas exigências do direito
e da prática da partilha igual, denota os sintomas de divisão e disputa pela transferência de haveres e poderes
familiares associados à herança:

18
Além xxx são de referir, outros, L108 79, Al45 v 86, o último dos pelo facto de Antónia se ter recusado a partilhar com a im1ã
Joaquina os benefícios dum direito de nn,te,1,·P.nr.o~ na compra de um campo contíguo.
19
Sobre a primeira possibilidade, cf., por exemplo, L26 e 1.13; sobre a segunda, de referir LCNC 18 de IOA 23 M474 de 16-
5··1879 entre outros recentes, por exemplo A69 v 33, 107 148, Por fim, um outro elemento de eventual polarização conjugal pode
ser o originado nos processos de envolvimento nos de ilegitimidade, o que leria notoriamente ocorrido, nas décadas de quarenta a
sessenta, em três casos em Aguiar e quatro Lindoso.
Herdar, Poupar, Educar

Por influência do filho-padre Bento, o proprietário-lavrador António Campela (Ae27) ter-se-ia prestado, cerca
de 1970, a dispor, por escritura notarial, do terço do património em favor do filho mais novo, Félix, casado e co-
residente. Passados, porém, alguns anos, perante o incumprimento, por Félix, de certas condições da doação e
dadas as perspectivas de casamento da criada do padre com José, sobrinho deste e filho de Aníbal, o padre Bento
diligenciaria junto do pai para revogar o testamento, o que lhe provocaria certo distanciamento e inimizade por
parte de Félix.
Um abrupto acidente, vitimando o padre Bento em 1980, viria abrir a luta pela herança paterna e pela sucessão
da quinta da Gândara e demais bens herdados pelo padre Bento de um tio padre. Félix – que se encontrava
bastante doente – saltou logo da cama e, no intuito de liderar o processo como herdeiro-mor, procurou
imediatamente, por mediação do seu compadre Boavides, contentar os demais irmãos celibatários com
500.000$00 cada um, em troca de uma procuração com todos os poderes. Se os irmãos co-residentes João e Rosa,
ambos celibatários, secundaram logo os objectivos de Félix, Aníbal, casado, opôs-se. Este, obtendo apoio de um
terceiro irmão casado, David, e outros dois celibatários – Alberto e Olinda, mãe solteira – levaria a questão a
tribunal e ganhá-la-ia. Os irmãos formariam duas facções e, embora Félix ficasse favorecido, a herança acabaria
por ficar dividida em duas grandes metades.

Se neste, como, aliás, noutros casos, os ressentimentos acumulados se manifestam, quando muito, em
verbais ameaças de morte, não está incidentalmente excluído o uso da violência física extrema, tal como
numa freguesia do concelho de Barcelos, em que um dos irmãos, em permanente conflito de vizinhança por
sentir-se preterido nas partilhas, mata a tiro, por acção mediada do filho menor de dezassete anos, o irmão
(TB P1507, 19-20-1982). Ou ainda, em Lindoso,

o velho casal Seia, sem filhos, prometeu doar grande parte das 87 parcelas a um seminarista da família Delfim-
Soares. Porém, o não-preenchimento da condição de habilitação ao património – a ordenação sacerdotal –
recolocou a questão sucessória que, além de dar aso a novo testamento com a atribuição de vários legados e
divisão da herança por três herdeiros (TL in NTPB Li2A:3-5, 16-6-1961), ocasionou a concorrência de novos
pretendentes, dando lugar a ameaças e cenas violentas ao ponto de Delfim Soares ter sido alvejado numa perna
por um disparo do concorrente Avelino.

Para além destes casos mais espectaculares, rixas internas no seio da família e, em especial, o mau
entendimento entre os filhos, desembocando eventualmente na alienação de prédios herdados ou comprados
pelos pais com bastante sacrifício, podem provocar nestes um forte abalo psicológico e um subsequente
desgosto susceptível de contribuir para apressar a morte na fase terminal da sua vida.
Quase nunca abertos e explícitos, os conflitos e/ou os processos de negociação em torno da herança
emergem contudo de modo subtil em questões aparentemente banais. Nesta luta nem sempre nem
exclusivamente está em causa o valor material da herança mas uma mistura de razões patrimoniais com
variadas doses de afectividade, afirmação ou honra domésticas. Subsumidos no capital simbólico, em termos
de Bourdieu (1980:206), são, com efeito, estes últimos valores que, por vezes, fazem subir
desproporcionalmente, à morte dos testadores, a avaliação de bens materiais, móveis ou imóveis. Estas
razões manifestam-se, ora nas diferentes interpretações das projecções e desejos do de cujus, ora no apego
competitivo, por parte dos sucessores, a certos objectos, os quais, mesmo que de valor diminuto, são
simbolicamente portadores de um sentido de liderança familiar ou de uma carga afectiva20.
Para a eclosão de conflitos sucessórios contribuem as interferências ou até pressões das famílias das
noras ou genros que, quando movidas mais por sentido de interesse que de afecto, acicatam, por sua vez, os
respectivos herdeiros no sentido de procurar obter o melhor quinhão ou disputar determinado terreno, tal
como se verificou em diversos casos21.

Por exemplo, Rita (Ae54), após a morte do marido, procurou compensar a sua filha Elvira e genro Luís,

20
Cf., v.g. IOA 60, 11-4-1961, TPB P70/80:74 Li8:74, 21-3-1980, TPB P86/80:76 Li4:179, 11-4-1980.
21
Por exemplo, Ae90 a 22-1-1953 (M498:99v), Ae54 a 129, A68, A21, AllO, Alll, A46 a 62 e 4 (NTB47C:50-51 I C BL 157,
62:138), Al29 a 60 e a 70 (M65:44 e 62C:19, II C24-5-1982 e 20-1-1982), Ae78 a.5-1-1967 (B35-57 I C), A67 a28-9-1978 (BL
175, 69146 e 89B lOOIIC e 67D-20v IIC) eA2 (P40 Li93C:52).
206
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

oferecendo-lhe um pedaço de terreno num local bem situado, óptimo para construção e, eventualmente, comércio.
Entretanto, Ana (A66), irmã de Luís – que conseguira estrategicamente casar a sua própria filha Rosa com o
irmão da contemplada Elvira – mostrar-se-ia, juntamente com o novo genro Amaral, interessada naquele terreno
doado, aliás confinante com a sua própria casa.
O embate dos pretendentes ao referido terreno viria a provocar pancadaria e ameaças de morte entre Luís e seu
cunhado Correia, marido de Ana. Não obstante o terreno em questão acabar por ser atribuído a Elvira e a seu
primogénito Afonso, tal facto e outros seriam posteriormente salientados por Amaral para, à morte de sua mãe
Rita, fazer valer as suas pretensões aos melhores campos que ainda restavam, mais uma vez, no dizer das famílias
de Elvira e de uma outra irmã, Adriana, em prejuízo destas.

Sendo exígua a terra a partilhar, os sucessores estrategicamente menos bem colocados ou ocupados
noutras esferas de actividade, além de lhes serem deduzidos eventuais gastos com enxoval, estudos ou
viagens migratórias, são por vezes constrangidos a ceder ao irmão residente na casa a sua quota parte, senão
(quase) gratuitamente, pelo menos a um preço «amigo», «fraterno». Não sendo os bens a partilhar avaliados
em função dos preços correntes no mercado fundiário nem actualizados de acordo com a curva inflacionária,
a subavaliação patrimonial e as respectivas tornas pagas em dinheiro tendem a penalizar os não-residentes e
a favorecer os resídentes e herdeiros da terra. Estes, sobretudo quando detentores de poupanças externas pela
via migratória, poderão assim reconstituir, revalorizar e até expandir o património fundiário original22.
Resumindo, a competição pela posse de recursos estende-se ao capítulo sucessório em que, a par de
casos com solução relativamente consensual, se têm verificado ao longo do tempo, quer em famílias de
modestos recursos, quer em casas de lavradores sobretudo com bastantes filhos, atritos, conflitos e, por
vezes, litígios marcantes.

9.3. Alguns estratagemas mais

Desenhadas algumas das estratégias correntes dos potenciais sucessores, importa ainda adicionar alguns
métodos por estes aplicados, a fim de, com ou sem reciprocidade afectiva, se habilitarem a heranças de
testadores sem descendência directa, além de assinalar simultaneamente os correlativos estratagemas destes
para (des)fazer herdeiros. Antes, porém, convém relevar o quadro jurídico que alguns dos referidos actores
têm em conta e sobre o qual se movem activamente ou por arrastamento reagem.
Antes da promulgação do Código Civil de 1867, o respectivo pai biológico oferecia menos objecções
em assumir, embora de modo transfigurado, o seu papel, adoptando na sua casa como «criado» o seu filho
ilegítimo. Todavia, a partir do momento que este, de acordo com o Código Civil de 1867, passou a adquirir
direitos sucessórios, mesmo que restritos, a qualidade de progenitor paterno tende publicamente a
desvanecer-se, ocultando-se, quando muito, sob a figura de padrinho ou arranjando para o filho, para efeitos
adoptivos, um padrinho, tal como já o sustentara Iturra (1986:150, 1987:102) e como eu próprio constatei
nalguns casos, nomeadamente num processo de paternidade em que «foi o próprio investigado que escolheu
padrinho à autora» (TB P3404:4v, M329 Li20:96, 7-1-1957). Deste modo, ao mesmo tempo que ao filho
bastardo lhe era directa ou indirectamente feito um legado e/ou oferecida uma protecção espiritual e material
mínimas, acautelava-se a transmissão (quase) integral dos bens em favor do(s) filho/a(s) legítimo/a(s), o que
aliás nem sempre era conseguido, tal como o evidencia o resultado do seguinte litígio:

Não obstante a recusa e os subsequentes recursos para os Tribunais de Relação e do Supremo por parte do rico
lavrador José Aquilino, Rosa Carvalho, mãe solteira, verá confirmada a sentença do tribunal de primeira instância
de 26-3-1920, que força o referido lavrador a reconhecer os seus três filhos ilegítimos: Ismael, Etelvina e Subtil.

Apesar do avaço legal e dalguns esporádicos sucessos judiciais para os direitos de filhos ilegítimos,
manteve-se até 1976 um tratamento discriminatório por parte da lei entre filhos legítimos e ilegítimos. Na
prática, tal se acentuava na medida em que ospais biológicos e/ou sucessores legítimos, pela sua supremacia
de recursos e pela dependência dos filhos «ilegítimos» e suas mães, logravam contentar amigavelmente os
co-herdeiros (ilegítimos) e suas mães com uma terra (A46 v 120) ou uma «gorgeta» em dinheiro, afastando-

22
Cf.v.g., lOA 3-6-1931, 521:43v de 26-11-1954, IOA 26-3-1976, NTB J D16-39.
Herdar, Poupar, Educar

os assim do bolo da herança:

Falecido a 18-1-1956 o lavrador Pinto (Ae20), viúvo, e tendo deixado uma filha «ilegítima», Luísa,
concebida de uma relação com a sua jornaleira Rosa, foi reivindicada pela família desta a paternidade de Luísa.
Os sobrinhos de Pinto, Horácio e Ana – que, ainda em vida do tio «fizeram diligências por intermédio de pessoas
de destaque social no sentido de ele lhes passar em vida os seus bens, ao que o mesmo se recusou»–, logo após o
falecimento, teriam acorrido à casa do falecido a cortar e a vender pinheiros por 15.000$00, a anunciar a venda de
terrenos, a recolher os cereais e o vinho, a pedir ao padre para este não publicitar as missas mandadas celebrar por
Luísa, além de, nos bastidores, tentar apaziguar esta com a cessão de uma terra (TB P3404:5v ss, Li20:96, 7-1-
1957).
Não obstante as probabilidades de êxito para a autora, a posterior intervenção astuta do mediador financeiro
Subtil – ele próprio filho «ilegítimo» judicialmente perfilhado – lograria que Luísa, perante a oferta de
50.000$00, resignasse dos seus direitos sucessórios.

Se neste ou em casos análogos tinha lugar uma compensação mínima, na maioria dos casos, perante a
existência de filhos legítimos e dada a baixa pressão social sobre os pais biológicos, nem sequer tal
compensação se verificava. Vários filhos «ilegítimos», designadamente em Lindoso, narraram como os seus
pais biológicos não os reconheceram, se desinteressaram da sua sorte e da das suas mães justamente no
início ou nos momentos mais duros das suas vidas ou apenas mostraram algum interesse em legar-lhes algo
quando, já crescidos e/ou com melhor posição económica, o que viria por uns a ser aceite e por outros
radicalmente recusado: «Quando eu e a minha mãe necessitámos do meu pai, ele abandonou-nos. Agora já
não preciso dele nem do queé dele» (L51).
Com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, a revisão do Direito de Família na sequência da
Constituição de 1976 e o subsequente reconhecimento da igualdade de direitos sucessórios para os filhos
legítimos e «ilegítimos» – o Código ignora inclusivamente esta tradicional distinção –, hoje bastantes filhos
«ilegítimos» e seus parentes, dada a maior capacidade de reinvindicação dos seus direitos, já não têm
«vergonha» em habilitar-se à herança, apresentando-se, por vezes, no próprio dia do funeral do seu pai
biológico (A141 v 75, 125 versus forâneo). Já, porém, os filhos que, nascidos duma relação ilegítima
anterior ou na pendência de determinado casamento, forem socialmente reconhecidos como próprios pelo
marido, mesmo quando juridicamente lhes assistam direitos de sucessão, não costumam questionar as
partilhas à hora da morte do seu pai biológico.
Havendo filhos «ilegítimos» e não podendo tal situação ser socialmente negada, a fim de escapar ao
veredito legal e partilha de bens por igual aos legítimos e «ilegítimos», procuram os testadores,
eventualmente em conluio com os herdeiros legítimos, encobrir, quando positivo, o saldo patrimonial e
monetário real. Sempre que possível, não raro costumam doar aos legítimos, sob a cobertura da quota
disponível, grande parte dos bens ou ainda vendê-los discreta e simuladamente para, em seguida, repartir por
estes o capital-dinheiro apurado e, deste modo, senão deserdar, limitar o mais possível o acesso dos filhos
ditos ilegítimos ao património familiar23.

Relativamente às técnicas mais utilizadas pelos potenciais herdeiros para com o testador, uma delas
consiste em bajulá-lo, designadamente quando este é solteiro, viúvo ou casado mas sem filhos, através de
frequentes visitas, ofertas de presentes e/ou passeios. Se as estratégias sucessórias se malogram, as
emulações entre sucessíveis concorrentes podem desembocar em litígios, alguns deles de certo impacto
local24.

23
Tal como o fez, por exemplo, o rico proprietário-lavrador Ilídio Fortuna que, para evitar a habilitação dos «ilegítimos», doa a seu
filho legítimo Manuel terrenos pelo valor matricial de 56.200$00 (ED 15-121978 in NTB I VMJ C 35:95-96) com valor real de
25.000.000$00 e vende outros, cujo dinheiro seria depositado num banco fora de Barcelos.
24
Entre outros casos de legados particularmente a afilhados, cf. TL 11-6-1879 Li26, 7:20-24v, TL 2-3-1881 Li26,4:12v. Entre
outros casos de emulação e não raro de conflito, são de referir, em Lindoso, sobrinhos de Seia e de Raposo e, em Aguiar,
sobrinhos ou parentes de Ae20, de Ae 114, de A51, de A49, de A33 e de A69 (in NTB II D 9-40v a 20-8-1975). Entre não
parentes são de salientar, por exemplo, as habilidosas tácticas por parte do prestamista-menor Subtil, na herança duma parte dos
bens dum prestamista-mor de Capareiros. Sobre relevantes casos judiciais ocorridos em freguesias vizinhas, concretamente em
208
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Quando o tipo de vínculo o permite, por iniciativa, quer do testador(a), quer do virtual beneficiário, quer
ainda por interposta pessoa, é por vezes utilizada a táctica de (fazer) entreter com aquele relações sexuais.
Neste contexto são conhecidos em Aguiar e aldeias circunvizinhas alguns casos, se bem que raros, de
proprietários celibatários (Ae27), que, encontrando-se sexualmente carentes, afectivamente vulneráveis e/ou
alcoólicos, tornam-se, por vezes, objecto de estratagemas menos transparentes por parte de (pseudo)
protectores que, em troca de alimento ou vestuário, serviços domésticos, passeios «gratuitos» ou
inclusivamente ofertas de mulheres, conseguem extrair-lhes procuração para dispor dos seus bens. Por seu
turno, constataram-se também alguns casos de criadas(os) que, graças à sua lealdade e/ou relacionamento
sexual com os seus patrões solteiros, conseguiram obter comparticipação no domínio da casa como
governantas e, mais tarde, herdar parte do seu património.
Registando, pela via documental e informação oral, alguns factos históricos locais, é possível afirmar
que é já velha esta táctica de aproveitamento de heranças de solteiros, viúvos ou casados sem filhos. Ao lado
de casos em que um dos membros do casal idoso, perante a inexistência de filhos, é aconselhado a divorciar-
se (L86), outros há em que aparentes expressões de afeição ou amizade formam o véu sob o qual se
escondem tácticas de apropriação de heranças:

Em 1870, em Aguiar, a velha lavradora, Antónia Maria de Sousa –cujo filho padre falecera antes dela –,
propôs-se doar por testamento todos os seus bens e rendimentos ao minorista José Luís com «a obrigação de ele
a tratar com amor e carinho até à hora da sua morte» (TA 20-7-1870).
O beneficiado, logo que de posse dos bens legados, não só negaria à doadora o usufruto dos bens mas
inclusivamente faltar-lhe-ia com o preciso alimento, injuriá-la-ia e maltratá-la-ia com empurrões e pancadas, com
trancas e objectos contundentes, o que, demonstrado em tribunal por prova testemunhal, veio revogar a doação no
valor de 100.000 réis (TB P13:5-6 M761, 20-7-1871).

Outra táctica perante a herança por parte de eventuais herdeiros, com ou sem a conivência dos pais
interessados em manter junto de si uma filha(o) solteira ou viúva, consiste em dissuadir, obstruir ou protelar,
por via burocrática ou outra, processos de emancipação casamenteira das irmãs/irmãos ou cunhadas(os) mais
novos e/ou de recasamento de parentes sobretudo quando viúvos e sem filhos, de modo que a porção de
herança reverta a favor dos sobrinhos/as ou seja, dos próprios filhos(as)25 Cabe, neste contexto, referir o
caso, aparentemente anedótico mas real, de

o genro Brasão, na mira de evitar o segundo casamento da sogra, presta-se ele próprio a receber o pretendente, Bernardino
(Ae55), convidado por aquela para um jantar. Porém, em vez de levar o convidado à mesa, «enfiou-o» no estábulo da égua,
onde o manteve ali fechado, forjando simultaneamente à sogra um pretenso recado, por parte do seu pretendido «noivo», que
não pudera comparecer por motivo de desinterite estomacal! Logo que a família jantou e a sogra se retirou para o seu quarto,
Brasão «libertou» o cativo pretendente não sem lhe dar um «raspanete» e ameaçá-lo, se porventura algum dia tentasse
esposar a sua sogra (D. Maciel 1982:297-298).

A estratagemas de dissuasão de casamento, por parte de sucessíveis, relativamente a familiares solteiros


ou viúvos com bens patrimoniais contrapõem-se, em sentido diametralmente oposto, estratégias doutros
protagonistas no sentido de acasalar tais solteiros ou viúvos com parentes próximos e reintegrar junto destes
os bens daqueles.

Inês (A46) em vez de encobrir as relações sexuais clandestinas de seu tio co-residente, o lavrador viúvo
Joaquim, com a jornaleira Laura (Ae55), censurava-o (semi)publicamente de badalhoco. A lavradora Ana (A53),
sabendo isto, instiga Joaquim, em 1948, a casar com a sua co-residente sogra Maria, também viúva, a qual,
pressionada, acabaria por aceder ao convite que Joaquim lhe fizera: «Ó Maria, queres vir comigo daí e arrumar
essa roupa preta?».
Se o casamento de Joaquim e Maria, em regime de separação e com convenção antenupcial, acautelava que os
bens de Maria ficassem na casa de Ana (CAA 28-2-1948 Li451:2), o testamento de Joaquim, em 1953, ao

Fragoso, cf. Fonseca 1948:248.


25
Entre outros L86, Ae21 versus cunhada, Ae30 v A49, Ael26 v 118, A79 v Ana (NTB II D 10-34 LB 238 n.o 940009, 7-10-
1975); A28 versus irmão, pressionando o presidente da Junta vizinha – donde a pretendente era oriunda – para dificultar os
trâmites do casamento.
Herdar, Poupar, Educar

instituir Ana e marido como «únicos herdeiros dos bens remanescentes», afasta da herança os demais sobrinhos –
que apenas receberam pequenos legados – e faz reverter para Ana o cordão de ouro e as terras inicialmente
destinados a Inês (TA 79:14v-16 in NTB I D 23-10, 11-2-1953).

Não obstante a incorporação legal de elementos patriarcais restritivos da capacidade jurídica da mulher
antes de 1974 e, sobretudo, antes do Código Civil de 196626, porestes e outros exemplos (Ae20) se pode
inferir que, relativamente à inibição ou não das viúvas(os) em contrair segundas núpcias, mais que o factor
moral-jurídico é a ponderação das razões patrimoniais que se torna decisiva. Do mesmo modo, o juízo
positivo ou negativo sobre o recasamento de viúvo e, sobretudo, de viúva dependerá mais do grau de
dissuasão pelo lado da família do ex-cônjuge falecido e da eventual pressão de novos concorrentes e doutros
actores que, em função das suas próprias estratégias, aprovem ou não o acontecimento.
Ainda no quadro das estratégias de habilitação à herança, é de registar, perante a iminência da morte do
de cujus, o chamamento primeiro do pároco e, a partir dos anos trinta e quarenta, do notário e testemunhas
idóneas, não só para a feitura de testamentos, como também para a perfilhação de filhos «ilegítimos» ou até
para a realização de casamentos in extremis, cujos intuitos sucessórios eram evidentes27.

Quando, em Lindoso, o médio lavrador Rocha, pai solteiro de dois filhos «ilegítimos», Manuel (L26) e José
(L62), se encontrava «moribundo», foi requerida a presença do padre para celebrar o seu casamento com a mãe-
solteira Maria. Perante a pergunta do padre se ele desejava contrair livremente o matrimónio, os presentes
abanaram a cabeça do «noivo», já morto, passando a mãe-solteira instantaneamente a mãe-viúva!

Voltando à ilegitimidade em Aguiar e, em particular, em Lindoso, sem descuidar o nível interactivo e


estratégico a este respeito, o que, em última instância, explica o grau de ilegitimidade não é tanto nem
sobretudo o sistema de herança isoladamente analisado ou perspectivado como variável independente mas,
tal como foi referido em 2:5, 7. e 8:4, a desigualdade e a consequente assimetria no grau de controlo e
gestão entre os detentores de poder económico, político-administrativo ou policial e os desprovidos de tal.
Esta linha argumentativa é corroborada por dados estatísticos relativos tanto à profissão dos filhos
«ilegítimos», como o evidencia o quadro 18, como à patente e predominante desigualdade entre as
profissões de suas mães e as de seus pais biológicos. Do estudo de uma pequena amostra de casos apurados
por via de histórias de vida e dados complementares de informantes, foi possível estabelecer para Lindoso o
gráfico 19.

26
Enquanto que, à luz da lei e da moral dominantes, o casamento, em segundas núpcias, não inibia o homem na sua capacidade de
administrar e velar pelos interesses dos filhos menores, já, porém, para a mulher tal implicava a demissão de funções de tutela dos
menores e de administração dos bens do primeiro casamento em favor do conselho de família. Para ver restabelecidos os seus
direitos de administração dos seus bens e de tutela sobre os seus filhos, a mulher dependia do parecer do conselho de família, o
qual só seria positivo após alguns anos de zelo demonstrado (v.g. IOA Li70, 1887)
27
Na elaboração, entre outros, dos seguintes testamentos: TA 24-9-1876, TA 22-11-1890, TA 24-2-1917. Entre casos de
perfilhação, é de referir, por exemplo, o de Francisco José Ferreira que reconhece como filho António Rodrigues da Graça a 5-5-
1909, filho de Maria Teresa. Noutras situações verifica-se a recusa do de cujus em deserdar seu(s) filho(s) ilegítimo(s) como, por
exemplo, o proprietário-lavrador Pinto (Ae20) que, pressionado, na iminência da morte, para vender os bens de modo a excluir da
herança uma filha «ilegítima», ter-se-ia oposto, dizendo: «Tenho por aí uma filha… depois que se avenham» (TB P3404:47
Li20:96, 7-1-1957).
210
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

GRÁFICO 19: Profissões de pais e mães de filhos ilegítimos (Lindoso)

Legenda: (a) abastado ou médio lavrador(a)/guarda; (b) pequeno camponês(a)/guarda; (c) artesão/pequeno empresário; (d)
camponês(a) parcial; (e) caseiro/ jornaleiro(a); (f) jornaleiro/ carvoeiro/criado(a); (g)sem informação.
Fonte: História oral dos próprios actores sociais e outros informantes.

Não será certamente obra do acaso que, ressalvando os casos de profissão desconhecida, vinte e nove
(72.5%) entre 40 dos pais biológicos de filhos «ilegítimos» eram homens originários de famílias detentoras,
se bem que em termos microcósmicos da aldeia, de um maior ou menor grau de recursos fundiários e
alimentares (lavradores, merceeiros), monetários (funcionários ou operários com rendimentos fixos) e
sobretudo policiais (guardas florestais, fiscais e da GNR). Por seu turno, trinta e um (63.2%) – outrinta e sete
(75,5%) incluindo caseiras e camponesas parciais – entre 49 mães-solteiras eram criadas, jornaleiras,
carvoeiras ou de condição semelhante. Assim, mulheres sem recursos económícos a preservar e menos
constrangidas que as suas consortes ricas a pautar-se por prementes normas de abstinência sexual pré-
matrimonial tendem a formar grupos domésticos com componente matrifocal e reproduzem para a geração
seguinte os seus próprios filhos «ilegítimos» e, particularmente, as filhas que, em análogas condições,
voltarão a ser mães-solteiras. A reprodução iterativa destas últimas, além de indiciada no 18 e no anexo 13,
justifica a inclusão de Lindoso entre o que Laslett designa como «sociedade com propensão para a
bastardia» (1980a:217 ss).

Esta relação de assimetria sócio-sexual ser ilustrada face a sistemas de herança diferenciados e
específicos como o primogenitural, tal como registou O'Neill (1984) para Fontelas, o da cedência do terço a
um dos filhos(as) em Aguiar, como ainda o da vigência formal ou real do princípio de partilha igual, já em
Aguiar, já sobretudo, em Lindoso. Não há, portanto, relação de causalidade unilinear e suficiente entre o
sistema de herança indivisível e ilegitimidade, uma vez que o primeiro pode manter-se e a taxa de
ilegitimidade diminuir. E, vice-versa, podem verificar--se elevadas taxas de ilegitimidade onde não seja
usual o instituto de primogenitura, mas persista a reprodução doutras formas de desigualdade social: de
classe, étnica, sexual. O'Neill (1984:256 ss) oferece assim uma explicação restritiva e acomodatícia da
ilegitimidade de acordo com os casos empiricamente constatados sem dar suficiente destaque aos factores
erótico, político-sexual e, em especial, ao prévio denominador comum que possibilita, em diversos sistemas
de herança, a maior das ocorrências de ilegitimidade: o diferenciado grau de controlo de recursos materiais e
simbólicos entre os protagonistas da relação ilegítima. Os dados do quadro 18 e do gráfico 19 indicam que
Herdar, Poupar, Educar

os casos de bastardia em Aguiar e, em particular, em Lindoso não se relacionam apenas com o excedente de
homens celibatários excluídos da herança, mas são consequência ora de enamoramentos entre homens e
mulheres (quase) desprovidos ou de posição social similar, ora de seduções e, sobretudo, de relações de
dependência de criadas e jornaleiras solteiras face a homens solteiros e sobretudo casados, desde que
dotados de algum poder económico, político-administrativo e/ou simbólico. Por conseguinte, tal como o
fizeram notar para Correlhã Geraldes (1987:439 ss) e para Santa Eulália Brettel (1991:274), tão-pouco é
curial apelar ao sistema de herança indivisível para explicar a ilegitimidade, uma vez que, não tendo
prevalecido em Lindoso tal modalidade, verificou-se aí todavia até aos anos cinquenta uma, relativamente,
elevada taxa de filhos ilegítimos (gráfico 14 e anexo 13).
Impelidos ou não por mútua atracção físico-sexual, os intervenientes em cada relação ilegítima aplicam
as respectivas estratégias de acordo com as motivações e as necessidades impostas pela sua própria condição
social e pela fase do seu ciclo de vida. Se os homens com poder económico e/ou administrativo-político se
aproveitaram da situação de carência e dependência das mulheres criadas e jornaleiras, estas, ora se
sujeitaram indefesamente àqueles, ora os seduziram na mira de se libertarem da situação de miséria, ora
ainda se envolveram em novas relações sexuais ilegítimas para criar os bastados já nascidos, tal como Joana,
jornaleira e reincidente mãe-solteira, o resumiu numa frase lapidar: «A miséria era tanta que para criar e
alimentar os filhos já nascidos via-me obrigada a fazer outros» (L56).
É justamente tendo em conta a atenuação da referida relação de assimetria e dependência que se poderá
compreender a diminuição da taxa de ilegitimidade a partir da década de cinquenta (anexo 13), cujo factor
decisivo se prende com a emergência de oportunidades e meios de subsistência alternativos exteriores à
aldeia para os grupos despossuídos (criadas/os, jornaleiros/as e camponeses pobres). Por outro lado, é
precisamente pela progressiva mudança da correlação de forças entre os protagonistas das relações
ilegítimas que a igualdade de tratamento jurídico dos filhos legítimos e «ilegítimos», além de consagrada na
lei, começa a ser reivindicada na prática por mães solteiras, seus filhos ou familiares28. Accionam-se assim,
com mais frequência, os respectivos mecanismos legais em vista da perfilhação, designadamente quando os
seus procriadores eram (são) lavradores ou indivíduos com recursos: umas vezes com sucesso, outras,
devido a interferências locais ou a mediações exteriores, debalde.
Embora sejam, portanto, admissíveis diversas variáveis que, de modo imediato e directo, dão conta do
fenómeno da ilegitimidade, elas reconduzem-se ao referido denominador comum que permite explicar a
presença de índices de (i)legitimidade semelhantes em diferenciadas modalidades de herança como a de
Fontelas, a de Aguiar e a de Lindoso.

9.4. Poupar e comprar para deixar

Com o fenómeno da herança importa articular, tal como o fizeram Argemir (1987:264) e Besteman
(1989:138), o carácter e o montante de transacções fundiárias. Os tipos de estratégias dependentes do
quantitativo de terra herdada têm repercussões sobre a necessidade ou oportunidade da compra-venda de
terra: enquanto os grupos domésticos auto-suficientes, se compram terra, fazem-no num sentido de expansão
e os com pouca terra tendem a ser pluriactivos, os desprovidos de terra esforçam-se e aforram para possuir
algum (s) pedaço(s).
Se a herança, enquanto principal mecanismo de acesso ou de aumento do património dos protagonistas-
herdeiros, constitui simultaneamente um factor ora de reprodução ora de desintegração das casas dos
testadores, com este mecanismo se interligam e, não raramente em função dele, ocorrem outros fenómenos

28
Num sentido diametralmente oposto, há também a referir um ou outro caso isolado de mãe-solteira que, aproveitando o facto
público e notório de ter tido relações sexuais com determinado lavrador, pretende imputar-lhe a paternidade de determinado filho
seu, sem que necessariamente o seja.
A respeito da distinção entre filhos «legítimos» e «ilegítimos» importa referir que, se a abolição de tal distinção operada pelo
actual Código Civil representa hoje um avanço legal de protecção aos filhos «ilegítimos» e suas mães, a sua inicial
implementação, desde a Idade Antiga, teria constituído, segundo Weber (1978:372 ss), um campo de luta e de progressivo
enfraquecimento da ilimitada discricionaridade do poder patriarcal, passando assim a mulher a ser olhada não como um simples
bem móvel mas como sujeito dalguns direitos (v.g. dote e devolução de dote em caso de divórcio) e os seus filhos «legítimos»
como sujeitos de direitos sucessórios.
212
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

como o da poupança e/ou da acumulação monetária, em maior ou menor grau, em vista de determinados
objectivos, entre os quais a compra de terra. Ao expressivo indicador da capacidade de reprodução e
eventual expansão da própria casa preside um elevado grau de sacrifício e autodenegação. E que as
poupanças efectuadas, seja a partir dos rendimentos agrícolas, seja através da injecção de receitas extra-
agrícolas, tinham em vista o reforço da casa, poder-se-á verificar pelo destino das poupanças dos grupos
domésticos:

QUADRO 21: Aplicação de poupanças por categoria fundiária

Legenda: (a) pagar dívidas + fazer depósitos bancários; (b) (re)construir casa; (c) (re)construir casa e comprar terra; (d)
comprar terra e fazer depósitos bancários; (e) investir em equipamento maior/gado; (f) nada de relevante; s/ = sem.
Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

A respeito da eventual relação entre a aplicação de poupanças e as categorias fundiárias, os cálculos


estatísticos mostram que, enquanto em Aguiar, a qualquer nível, há entre ambas variáveis uma relação de
dependência (X2=34.1, com seis graus de Liberdade), em Lindoso (X2=9.0, com seis graus de liberdade), ao
nível de 10% ou menos, verifica-se entre ambas uma relação de independência. Tais dados permitem inferir
que as poupanças dos grupos domésticos de Aguiar, dependendo, pelo menos em parte, das explorações
agrícolas, são mais direccionadas para o investimento fundiário que em Lindoso. Em todo o caso,
exceptuando 22.4% das famílias em Lindoso e 20% em Aguiar, que não conseguiram obter disponibilidades
monetárias, fundiárias ou outras, constitui um dado notável que 77.6% e 80% das casas respectivamente, em
maior ou menor grau, tenham logrado, se bem que com sacrifício de consumos, obter poupanças. Estas
permitiram-lhes, conforme os seus objectivos estratégicos, assegurar a subsistência futura, (re)cosntruir a
casa, comprar terra e/ou equipamento agrícola e, sempre que possível, fazer depósitos bancários, de modo a
acumular capital-dinheiro ou, simplesmente, cobrar juros como rendimento monetário suplementar. Além
dos casos em que o aforro constitui propriamente uma forma de autoconsumo diferido ou de simples reserva
para enfrentar eventuais contratempos (doença, má colheita), 45.8% das casas de Lindoso e 58.7% das de
Aguiar, uma vez cobertas as necessidades de subsistência basicamente com rendimentos de origem agrícola
(6:2), destacam-se, em maior ou menor medida, pela sua capacidade de poupança e investimento na compra
de terra, seja como meio de subsistência, seja como reforço do património possuído. Deste modo os grupos
domésticos de Lindoso e de Aguiar mostram que, mediante um sistemático aforro aplicado ao longo de anos
e da própria vida – amiúde com o intuito de transmitir o património adquirido à geração vindoura –, é
possível melhorar a sua posição.
As transacções fundiárias constituem, de facto, um dos mais sintomáticos indicadores de estabilidade,
Herdar, Poupar, Educar

mobilidade social ascendente ou descendente ou ainda de simples melhoria ou retrocesso dos respectivos
grupos domésticos e, cuja primeira aproximação nos é subministrada pelos resultados dos inquéritos locais:

QUADRO 22: Terras compradas e vendidas por categoria fundiária

Legenda: *4 em Lindoso e 7 em Aguiar venderam também casa e/ou gado. Categorias em ha = hectares: (0) 0; (1) 0.01-
0.05; (2) 0.05-1; (3) 1.01-2; (4) 2.01-5; (5) 5.01-10; (6) 10.01-20; (7) > 20.
Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Dos cálculos estatísticos é possível concluir que a relação entre categorias fundiárias e o número de
terras compradas é positiva, tanto em Lindoso (r=0.31) como em Aguiar (r=0.37), ou seja, quanto mais
elevada a categoria fundiária, maior o número de terras compradas. Tomando por base a relação entre
categorias fundiárias e terras vendidas, o coeficiente de correlação em Lindoso situa-se cerca do zero (r= -
0.0002), o que permite inferir a ausência de correlação linear entre ambas variáveis, No entanto, no
concernente a Aguiar, o coeficente de correlação é positivo (r=0.24), com um valor de prova igual a zero, o
que denota também terem sido casas de categorias mais elevadas as que venderam mais.
Da diferença de valores entre os referidos coeficientes de correlação pode concluir-se que o saldo das
compras é superior ao das vendas. O que ressalta de imediato do quadro 22 é que, além de 50% e 38.8% das
casas de Lindoso e de Aguiar respectivamente não terem comprado qualquer parcela de terra, entre os
residentes há mais compradores que vendedores da mesma: 7.7:1 para Lindoso e 5.2:l para Aguiar.
Paralelamente a processos fragmentação fundiária e de endividamento dalgumas casas, tal
diferençapoder-se-á, pelo menos em parte, explicar tendo em conta a cedência ou venda das terras por parte
de herdeiros parentes ou conterrâneos migrantes, definitivamente ausentes ou residentes em paróquias
circunvizinhas. Além disso e de acordo com o quadro 22, verifica-se um maior grau de mobilidade fundiária
em Aguiar que em Lindoso: enquanto na primeira 61.6% das casas alguma vez compraram e 11.8%
venderam terra, na segunda tal teria ocorrido respectivamente em 50% e 6.4% das casas.

Do volume das transacções fundiárias, importa, por outro lado, deslindar a natureza e o motivo
subjacente das mesmas, uma vez que a venda por si só, desligada do seu contexto, nem sempre constitui
adequado ou relevante critério para medir o grau de mobilidade social descendente. Com efeito, das casas
que procederam a alguma venda patrimonial, enquanto, como veremos de seguida, determinadas vendas
registadas são indicativas duma descida social, outras fazem parte de negócios com vista à obtenção de
vantagens diferenciais (v.g. A24, 44). Além disso, três casas em Lindoso e sete em Aguiar procederam a
simples transacções recíprocas devidas ao facto de um dos cônjuges ser oriundo duma freguesia vizinha e os
terrenos aí herdados estarem fora de mão para cultivo; ou, vice-versa, porque um dos cônjuges,
acompanhado do consorte para fora da respectiva aldeia de origem ou residência, aliena os terrenos aí
214
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

situados e efectua equivalentes compras na freguesia de residência. Acresce ainda que nem sempre são
denotativas de declínio social certas transferências fundiárias a nível intrafamiliar, as quais, embora
notarialmente registadas, obedecem a esquemas de permuta interna sem aumento ou diminuição do
património fundiário de cada uma das partes.
Salvos estes tipos de vendas, que de modo algum afectam o estatuto sócio-económico da família, o
fenómeno da compra e venda de terrenos reveste-se todavia, em geral, de uma importância crucial na
posição relativa de cada família na pirâmide aldeã. Sendo a compra de terrenos sinal de prosperidade
familiar, a sua venda representa, aos olhos dos vizinhos, o sintoma mais flagrante de decadência e/ou de
«vergonha social», mesmo quando a família vendedora não desemboque necessariamente na ruína. Se,
nalguns casos, as atitudes de reticência ou até de recusa em alienar terra têm em vista travarprocessos de
insolvência e proletarização e manter condições mínimas de subsistência, noutros subjaz a motívação
adicional mas sobredeterminante da conservação da terra como símbolo do elevado estatuto e prestígio
locais. Não obstante, por vezes, motivos de força maior (doença, necessidade de melhor alimentação,
desafogo monetário) aconselharem a venda, esta é taxativamente recusada, tal como o exprimiu a anciã e
doente lavradora Paula: «O quê, nós vender uma terra? Isso seria uma vergonha para a família. Nós que
tanto nos sacrificámos para conservar e comprar terras, vamos agora desfazer-nos delas? Elas devem ficar
na família, para os filhos!» (Al 48).

Apesar dos esforços no sentido de evitar o espectro da proletarização, ou de manter uma boa imagem da
casa na aldeia, o certo é que 2.4% das actuais casas em Lindoso e 9.2 % em Aguiar declararam ter-se
prestado ou sido forçadas a desapropriar-se de terrenos em condições desfavoráveis por razão de
subsistência e/ou na sequência de contracção de dívidas por custos de emigração ou outros. Além disso e do
mesmo modo, também em Lindoso, diversos moradores, além de terra, venderam parte ou a totalidade do
seu contingente pecuário, embora preferissem fazê-lo secretamente a regatões por preço inferior que em
venda pública, uma vez que esta era considerada um sinal de debilidade monetária e fracasso social.

Pela consulta das matrizes da Repartição de Finanças de 1930 a 1985 e dos registos de escrituras
efectuados nos notários de Barcelos foi possível elaborar resultados denotativos do movimento dos saldos
globais das compras e vendas de terras por decénio, com a vantagem adicional de informantes locais nos
terem identificado, no tempo, a categoria social dos outorgantes das respectivas escrituras:
Herdar, Poupar, Educar

GRÁFICO 20: Saldos de compras fundiárias: Aguiar (1930-85) (em ares)

Fonte: Livros de Matrizes Prediais de Aguiar, Repartição de Finanças, Barcelos, 1985; categorias em hectares.

Do gráfico 20 e do anexo 16 sobressai o facto de a procura e o maior saldo de transferências fundiárias


terem ocorrido nas décadas de quarenta e cinquenta. Os seus compradores principais foram lavradores e
proprietários por um lado e, por outro, alguns ex-emigrantes regressados do Brasil e da Argentina em
detrimento de migrantes definitivamente ausentes, residentes de freguesias circunvizinhas e residentes em
apuros monetários ou sem herdeiros directos ou forçados. As transacções fundiárias – que nos anos sessenta
conhecem um relativo afrouxamento – retomarão e intensificar-se-ão na década de setenta, mas os seus
principais aquisidores já não serão tanto velhos lavradores mas antes membros de categorias mais modestas
e, em particular, os (ex)emigrantes da última vaga dos anos sessenta e setenta, decididos a tomar para si as
parcelas de ausentes definitivos e de alguns lavradores necessitados de capital-dinheiro. A conclusão de o
saldo global das transacções, sobretudo a partir dos anos setenta, se ter realizado em favor de grupos sociais
originariamente menos providos parece sair reforçada pelos resultados dos registos das escrituras efectuadas
no notário de Barcelos (anexo 17). Enquanto nas categorias de lavradores e proprietários ter-se-ia verificado,
em termos globais, uma relativa estabilidade na medida em que 22 vendas de uma ou várias parcelas teriam
sido compensadas por equivalentes 24 compras, já os ex-criados e ex-jornaleiros, camponeses parciais,
artesãos e merceeiros teriam realizado mais compras que vendas: 80 versus 39. Donde, é plausível inferir
que, em última instância, são estes últimos grupos os principais e mais recentes compradores beneficiários
das parcelas vendidas.

Dado o facto de, no interior da aldeia e inclusivamente no seio do mesmo grupo social, haver moradores
apenas vendedores e outros apenas compradores, poder-se-ia, à primeira vista e numa perspectiva entrópica,
concluir com Foster (1965:297) que, para o universo cognitivo dos camponeses, determinados grupos
domésticos subiriam socialmente à custa dos demais. Tal afirmação recobre em parte a realidade na medida
em que as perdas de uns, mesmo quando reconduzíveis à má gestão, contratempos ou vicissitudes
desfavoráveis, representam ganhos aproveitados por outros. No entanto, tal raciocínio só parcialmente é
plausível e até é susceptível de ser infirmado pelo simples facto de o saldo positivo e correlativo sucesso
dalguns moradores outrora mais desprovidos ser tributário da incorporação de recursos exteriores obtidos
216
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

por auto-sacrifício e forte empenho pelo aforro.

9.5. Educar herdeiros

Entre as estratégias de melhoria e/ou mobilidade social ascendente releva a da educação escolar que,
tradicionalmente em aldeias como Lindoso e Aguiar, se confinava ao âmbito religioso e era accionada
através das redes eclesiásticas. Se algumas famílias detinham contactos e, sobretudo, recursos materiais para
colocar um ou vários filhos na carreira eclesiástica ou civil, para outras, mais modestas, tal se tornava
impraticável atendendo à falta de condições económico-financeiras e à inexistência de transportes acessíveis
e económicos para frequentar os liceus e demais escolas urbanas. A eventual promoção educacional pós-
básica dos filhos destas últimas, sob a linguagem místico-religiosa da «vocação», passava quase
exclusivamente pelas portas eclesiástico-religiosasque, por sua vez, permitiam aos «vocacionados» escapar
ou minorar as condições do duro trabalho infantil.
Não obstante as infra-estruturas educacionais no âmbito rural, comparativamente aos meios e às
categorias sociais urbanas mais escolarizadas, denotarem deficiências mais acentuadas, os seminários e
colégios religiosos, recrutando e filtrando «vocações» do interior de colectividades como Lindoso e Aguiar,
constituíam eventualmente canais de ascensão social, ainda que diferenciados conforme a capacidade
financeira das suas famílias ou protectores. Com efeito, se cinco famílias de proprietários e lavradores em
Aguiar e três em Lindoso reuniram condições para suportar as mais elevadas despesas da carreira sacerdotal
em seminários diocesanos, três em Lindoso e nove em Aguiar, sobretudo de posses mais modestas, foram
forçadas a um mais baixo investimento em seminários e congregações religiosas: os rapazes para padres-
frades ou irmãos maristas, as raparigas para freiras. Enquanto o investimento dos primeiros, além de
habilitar os «escolhidos,>, sobretudo no fim do tirocínio, a contrapartidas mais lisonjeiras(acumular bens
materiais, herdar, maior liberdade de movimento, estima), constituía escada de acesso a lugares prestigiantes
no aparelho eclesiástico e nos diversos tipos de instituições civis, o dos segundos, salvo uma certa auréola de
dignidade moral e civil, oferecia reduzidas vantagens económicas, em termos pessoais ou familiares.
Particularmente nestes casos, as respectivas famílias gizavam estratagemas de amizade instrumental e de
relacionamento patrocinal com membros da Junta e, sobretudo, com figuras eclesiásticas designadamente o
pároco.Estas conexões tornavam-se cruciais, sempre que fossem necessárias declarações de real ou fictícia
pobreza e de «bom comportamento» do candidato que, se não os isentasse, pelo menos, lhes proporcionasse
abatimentos ao pagamento de mensalidades de alojamento e alimentação ou permitisse obter apoios, tanto
de parentes e compadres, como, sobretudo, de mecenas individuais externos («padrinhos» e «madrinhas»).
Mesmo quando interrompidos ou abandonados os estudos eclesiásticos em determinada fase do
percurso, os correspondentes investimentos, em regra, não resultavam improfícuos, possibilitando o acesso,
na sociedade circundante, a empregos no funcionalismo e no sector terciário, a prossecução de estudos na
esfera civil e, por vezes, a conclusão de cursos superiores29. Com efeito, num contexto em que a crescente
procura, por parte da economia portuguesa, de mão de obra alfabeta e qualificada indiciava, nas décadas de
sessenta e setenta, o despontar da sociedade moderna e industrial em Portugal, também a nível de
colectividades como Lindoso e Aguiar se reflectia e se tornava sintomática e convergente com tais
mudanças macroeconómicas a acentuada deslocação das estratégias educativas de formação de
índoleeclesiástica para uma outra de cariz mais laico-civil, aliás na sequência da correspondente crise e do
abandono de «vocações» religiosas e sacerdotais, com visíveis impactos locais.

Os moradores de ambas as aldeias, perante os detentores de bens culturais escolares, sentiam e até
manifestavam, em regra e aparentemente, os efeitos de eventuais distâncias sociais. No concernente à
educação, as perspectivas desenhadas pelas famílias para os seus filhos apresenta(va)m-se diferenciadas,
29
Respectivarneme L24, 120, A13, 143; L120, A118. Se antes de 1968 o lobby do arcebispado português, para evitar uma
debandada das «vocações» eclesiásticas, conseguiu impedir a equivalência dos estudos eclesiásticos às escolas laicas, a pastir daí
as exigências de modernização e industrialização do país não só desbloqueariam tais obstáculos como impulsionariam uma
notável explosão quantitativa da escolaridade, especialmente com a reforma de Veiga Simão e, sobretudo, no pós-25 de Abril de
1974.
Herdar, Poupar, Educar

dependendo de diversas variáveis: posses financeiras e económicas designadamente fundiárias, respectivo


número de filhos, necessidade de controlar a trajectória educacional, grau de aproveitamento escolar e, em
particular, o tipo de pressões de cada tempo histórico e as estratégias delineadas de acordo com a posição de
cada grupo social. Uns, especialmente os grupos domésticos com pouco ou nenhum património fundiário,
sem capacidade de obter e/ou perceber a centralidade dos recursos escolares, carecem e, sobretudo, careciam
dos filhos como mão-de-obra pelos ganhos imediatos extraídos dos rendimentos do trabalho agrícola, do
pastoreio, da construção civil ou da fábrica. Outros, porém, opõem-se e sobretudo opunham-se à promoção
escolar dos filhos, não tanto por necessidade imediata, como pela preocupação de não perder sucessor(es)
que desse(m) continuidade à exploração familiar, especialmente quando monoactiva e com filho(a) único:
«Quem tem terras, faz uma asneira pôr os filhos a estudar» (L81) ou «Se tivesse mais irmãos, uns
estudavam e outrosficavam na terra, mas como é sozinho, ainda bem que desistiu de estudar!» (L37).
Esta visão de carácter mais defensivo, além de reflectir tentativas no sentido de desvalorizar os recursos
educacionais face aos patrimoniais e de limitar as interferências de instâncias extrafamiliares na função
socializadora dos herdeiros, vem contudo tornando-se, senão obsoleta, cada vez mais rara. A aplicação do
investimento educacional tornou-se cada vez mais um modo complementar ou mesmo concorrencial de
reprodução económico-social, tal como o notara para França Salitot-Dion (1977:31). Com efeito, para as
famílias sobretudo modestas de Lindoso e Aguiar, o investimento escolar revela uma forma de compensar o
seu défice fundiário e melhorar, no futuro, as suas condições de vida, mesmo que tal implique desprender-se
temporária ou definitivamente da terra. Quanto às velhas famílias de lavradores, estas fazem-no no sentido
ora de ampliar o capital fundiário ora de o articular com os recursos educacionais com um sentido de
continuidade intergeracional. Perante os modernos padrões de remuneração e reclassificação sociais, torna-
se assim visível como várias famílias de diversa origem social vão «investindo» parte das suas poupanças na
educação secundária, média ou até superior dos filhos como a mais adequada maneira de obterem
estabilidade económica e prestigioso estatuto social, sobretudo fora da aldeia, situação de que os dados
relativos a um momento da actual dinâmica escolar nos oferecem a imagem do quadro 23.

QUADRO 23: Escolaridade: Lindoso e Aguiar (1985)

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

218
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Comparando os dados relativos a membros residentes ou originários de Lindoso e de Aguiar com outros
referentes a 1960, constata-se, em ambas as aldeias, não obstante os baixos índices iniciais em termos
absolutos, uma relativa expansão escolar sobretudo desde os anos setenta. Assim, enquanto em 1948 o
analfabetismo se calculava em, pelomenos, 82% (Fonseca 1948:73) e, em 1960, cerca de 70%, os únicos
estudantes na escolaridade pós-básica, eram, em 1960, três seminaristas em Lindoso e quatro em Aguiar,
além de alguns maristas. Em 1985 o índice de analfabetos sobre a população com mais de sete anos e saída
dos grupos domésticos de Lindoso e Aguiar baixou respectivamente para 17.4% e 17.3%, os estudantes no
secundário passaram para 18.7% em Lindoso e 18.3% em Aguiar e os indivíduos com formação média e
superior, embora mantendo expressão percentual mínima (1% e 1.3%), perfaziam cinco em Lindoso e dez
em Aguiar.
Analisando o nível de formação educacional por sexo em 1985 em Lindoso e em Aguiar, se, por um
lado, o analfabetismo feminino se mantém bastante superior ao masculino, respectivamente num rácio de
3.5:1 e 3.2:1, por outro, só tendo em conta a confluência das repercussões locais das reformas educativas
com o desenhar de novas estratégias dos grupos domésticos a partir do início dos anos setenta, poder-se-á
compreender e explicar uma considerável diminuição no fosso e inclusivamente uma relativa aproximação
dos índices de escolaridade por sexo no universo juvenil. Com efeito, é atendendo ao decrescente peso da
propriedade fundiária na balança de recursos e à sua menor contribuição nos orçamentos domésticos que vai
ganhando terreno a estratégia, por parte de famílias de lavradores, de colocar alguns dos seus filhos, com
maior ou menor qualificação, em lugares disponíveis no sector de serviços e, sobretudo, nas instituições
municipais e estatais, designadamente nas instituições militares e paramilitares (6:2, 7:2.2)30. Deste modo,
além de evitar um excessivo espartilhamento do património fundiário, amortecem o relativo declínio social
na medida emque, em contrabalanço do desprestígio ocasionado pelo arrendamento ou venda de algumas
parcelas, conseguem lateralmente para um ou vários filhos, nos referidos sectores, emprego e estatuto
prestigiantes fora da aldeia, ainda que geralmente na própria área municipal.
As alterações registadas a nível escolar vieram todavia não tanto compensar as famílias de lavradores
mas antes algumas casas, cujos recursos fundiários eram ou são exíguos e cujos pais, pela estadia urbana
e/ou através das poupanças migratórias, conseguiram proporcionar aos filhos estudos secundários e
superiores. Assim, no processo de promoção educacional, além da diminuição de analfabetos em todas as
categorias sociais, há a referir o facto de, quer pela via de canais patrocinais ou apoios comunitários, quer
por mérito próprio, membros de modestas nove casas de Lindoso e quinze de Aguiar se terem mediana ou
superiormente qualificado, acedendo seguidamente a postos de relativo destaque nas esferas administrativo-
policial, da saúde e do ensino31.

Se bem que os valores de referência à terra como base principal, já de sobrevivência, já de prestígio
social, não deixem de estar bem presentes em bastantes grupos domésticos de Aguiar e sobretudo de
Lindoso, constata-se, não obstante os sucessos limitados, uma crescente atenção e sentido de apropriação de
recursos educacionais, os quais, minando os valores tradicionais locais, se repercutem designadamente nos
padrões do próprio mercado matrimonial32. Assim, comparando as estratégias actuais de diversas famílias
com as levadas a cabo há trinta anos, é perceptível a tendência no sentido de, senão acumular, pelo menos
substituir parcialmente o capital fundiário pelo escolar na mira de, a médio prazo, restabelecer ou reforçar o
próprio capital económico. Mesmo quando nalguns dos casos referidos se tenham verificado cadeias de
solidariedade parental ou comunitária na obtenção da respectiva qualificação, a posse de capital escolar
30
Entre outros um polícia (A11), um enfenneiro no exército (Al34), dois funcionários (Ae27, e53), três empregados nos correios
(A11, 44, 53), uma professora no ensino básico (A53) e dois no secundário (A12, 54).
31
Concretamente, em Lindoso, sete membros da PSP, Guarda Florestal ou Guarda Fiscal (Ll, 2, 26, e41, 76, 86, 92), uma
educadora de infância (L118), uma médica (L95); em Aguiar, oito no terciário-administrativo (Al, 39, 43, 55, 82, 93, 101, 113),
cinco na GNR, PSP e afins (A34, 36, 51, 52, 133), uma enfermeira e, posteriormente, bióloga (A118), um licenciado em direito e
sociólogo (A118), um linguísta e professor no ensino secundário (A39), um engenheiro agrónomo (Al 18), um arquitecto
paisagista (A59).
32
Cf., a este respeito, Champagne 1975:53. A relativa explosão escolar não implica necessariamente êxito na escola secundária e,
muito menos, a superação das barreiras do numerus clausus a nível superior, a cujos resultados – bastante limitados – não são
estranhos a origem social, a sobrecarga do trabalho infantil nas horas extra-escolares, a falta de motivação e de acompanhamento
familiar.
Herdar, Poupar, Educar

funciona como factor, senão impositivo, pelo menos impressivo duma incisiva influência. Os seus efeitos
podem visualizar-se no tratamento preferencial, quando não deferencial, para com os detentores de diplomas
por parte de conterrâneos e familiares e, por vezes, correlativamente discriminatório face a outros moradores
e parentes, ainda que igualmente filhos(as)/noras, genros, irmãos e cunhados.
Ainda que, nem sempre, nem de modo pleno, os grupos domésticos concretizem determinadas
aspirações, torna-se importante perscrutá-las, a fim de se obter uma ideia aproximada do seu universo
mental no concernente aos desejos dominantes quanto ao futuro próximo de todos ou dalguns dos seus
filhos. Dos resultados do anexo 18 se infere que, em 34.6% das casas de Lindoso e 54% das de Aguiar, os
pais aspiram inserir os filhosem qualquer dos sectores não agrícolas desde que fornecedores de um salário
ou rendimento, disseminando os riscos de uma monoactividade familiar. Seguem-se 22.4% para quem seria
desejável que, pelo menos, alguns dos filhos lograssem tornar-se empregados, funcionários ou obter uma
profissão qualificada. Comparativamente a épocas recuadas é ainda sintomática a mudança no sentido de só
24.3% e 10.9% terem manifestado o empenho de que os filhos retomem o cultivo das terras. Por fim, que as
ambições dos pais, relativamente aos filhos, se circunscrevem a níveis baixos ou médios de escolaridade
mostra-o o facto de apenas 4.7% dos entrevistados em Lindoso e 2.2% em Aguiar aspirem a que seus filhos
frequentem um curso de formação superior, se bem que respectivamente 14% e 12.4%, sem o excluir,
centrem, para já, as suas preocupações na obtenção da escolaridade secundária.

Se compararmos estas respostas de opinião com as declarações que foi possível obter dalguns dos
filhos, obteremos uma imagem sensivelmente diferente. Embora uma parte considerável de jovens não
possua uma ideia definida a este respeito e outra não tenha sido possível abordá-la, é de salientar, para além
de 34.5% e 20.4% que pretendem levar a bom termo a escolaridade secundária ou superior e/ou obter uma
profissão qualificada, a forte aspiração, em 48.2% e 67.9% dos jovens inquiridos, de arranjar um emprego
nos sectores não agrícolas ou sair para o estrangeiro (anexo 19). Em suma, tudo indica estarmos perante
novas expectativas e padrões de comportamento perante a educação e outras saídas profissionais que não a
agrícola.

*
**

A jeito de conclusão, poder-se-á dizer que, em relação a Lindoso, se, sobretudo até cerca de 1970, se
praticava predominantemente a partilha igual em vida dos testadores, têm-se desde então desenhado, com
certa nitidez, alguns casos de favorecimento do filho(a) que se mantenha junto dos pais. Por seu turno, em
Aguiar, não obstante a prática tradicional de favorecer, designadamente pela doação do terço, um dos
filhos(as) que assuma, perante a casa e os testadores, a função providente na doença e na velhice, verifica-se
um crescente sentido de partilha igual, mesmo quando a maior parte dos herdeiros opte por não residir na
terra. Constituindo a partilha, como diz Bourdieu, uma «solução de desespero» (1980:252), também em
Aguiar ela representa para os pais idosos um momento dramático de claudicação do poder de disposição que
importa, compreensivelmente adiar o máximo possível.
A bastardia, fazendo parte do sistema de reprodução social da aldeia, deve situar-se no seu contexto
histórico-temporal e correspondente estádio de desenvolvimento. Sendo correlacionável com diversas
variáveis presentes na sociedade camponesa de determinado tempo e lugar (direito consuetudinário ou
escrito sobre a herança, tipo de família, migrações,ideias morais e religiosas, medida de uso ou não de
modernos métodos anticonceptivos), deverá ser entendida e enquadrada a partir de prévias coordenadas de
desigualdade estrutural sócio-económica, política e sexual.

220
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Três gerações na colheita do milho, Lindoso (foto 27)

Uma camponesa, o seu filho e os seus animais (foto 28)


Herdar, Poupar, Educar

Os actores sociais concorrem e encetam estratégias em vista da obtenção de mais e melhores quinhões
de herança. Se, em época pré-industrial, a qualificação educacional era subestimada em função de
necessidades mais prementes de subsistência ou então, de preferência, entendida como estratégia de
promoção eclesiástico-civil de alguns proprietários e lavradores, a partir dos anos cinquenta e sessenta
começam não só famílias mais providas como outras mais modestas a investir na educação escolar dos seus
filhos como base de saída profissional e escada de prestígio social.

222
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

CAPÍTULO 10

MIGRAÇÕES

O estudo das migrações campesinas poder-se-ia enquadrar com justeza no âmbito da pluriactividade
familiar, independentemente de esta se efectivar aquém ou além fronteiras. No entanto, tendo em conta a
problemática explanada em 3:1 e dada a dimensão do fenómeno emigratório, este merece um tratamento
específico, perspectivado não tanto a partir das necessidades e (des)ajustamentos do sistema social
dominante nos países de acolhimento mas mais das causas do contingente migratório no país de origem e,
em especial, do contexto social de Lindoso e de Aguiar, assim como das estratégias e trajectórias dos grupos
domésticos1. Uma tal perspectiva, contextualizada no tempo e no espaço, sendo inseparável dos processos
reprodutivos e/ou transformadores da estrutura social local, obriga a equacionar e a avaliar a controversa
questão de saber até que ponto o fenómeno migratório constitui um factor de mudança ou de conservação do
statu quo. Enquanto certos autores como Redclift (1973:5), Amaro (1984:203), P. Monteiro (1985:15 ss),
Polanah (1987:63 ss), sem negar aspectos de permanência estrutural, assumem e evidenciam que a
emigração comporta, no seu processo e nos seus efeitos, elementos de mudança capazes de alterar a
configuração social da aldeia (instituições familiares, padrões de casamento, mobilidade social, normas e
valores), outros como Goldey (1981:125 ss), Brettel (1983:178 ss) e sobretudo Godinho (1978:30),
reconhecendo embora algumas mudanças, acentuam mais o efeito de continuidade e conservação, adaptação
e/ou reforço das estruturas aos níveis familiar comunitário e nacional.

Da análise dos dados estatísticos, das histórias de vida dos próprios emigrantes de ambas as aldeias,
além das próprias observações, nã.o é possível estabelecer respostas de carácter unidireccional, dicotómico
ou atemporal. O predomínio da vertente de conservação ou de mudança depende da rigidez ou flexibilidade
e, sobretudo, da fase de (sub)desenvolvimento da estrutura social global e local, como refere Iszaevich
(1975:293). Goldey (1982:55), pressupondo e constatando no fenómeno emigratório aspectos de mudança,
considera todavia aparentemente paradoxal a continuidade de padrões económicos e morais camponeses,
bem como a co-presença de ambas as vertentes na realidade camponesa. De facto, se se tomam visíveis
efeitos de mudança (por exemplo, alguns casos de mobilidade circular ascendente e sobretudo horizontal em
termos intersectoriais, de alargamento ou reconsideração crítica do horizonte político-simbólico tradicional),
torna-se também indesmentível que os eventuais desafios dos emigrantes às mundividências e aos poderes
localmente estabelecidos não visam, de modo geral, qualquer transformação radical dos arreigados padrões
de vida. Com o envio de remessas, as periódicas visitas abrilhantadas com sinais de promoção social
(compra de casa, carro e outros bens de consumo) e, sobretudo, o retomar das actividades agrícola,
comercial ou outra em base autónoma, os emigrantes têm estrategicamente em vista reclassificar-se, firmar o
reconhecimento social e, eventualmente, desalojar os velhos líderes para (re)ocupar os lugares mais
proeminentes no quadro da hierarquia aldeã, aproveitando para tal as ocasiões de disputas políticas ou
celebrações festivas, como veremos em 13:2, 13:3 e 11:5. Por conseguinte, a emigração, sem deixar de
provocar mudanças e até rupturas, responde a estratégias de conservação, as quais podem, quando muito,
destacar-se e autonomizar-se por família face aos demais grupos domésticos e à própria colectividade. Em
todo o caso, para contribuir a elucidar esta questão torna-se não só relevante como imprescindível, uma vez
oferecido um breve panorama das migrações nacionais desde o século XIX até ao presente, «descer», numa
óptica microeconómica e sociológica, à análise das respectivas colectividades e seus agregados familiares.

1
O estudo da emigração portuguesa, numa perspectiva microsocial e local, enquanto estratégia reprodutiva ao mesmo tempo que
transformadora, enquadra-se e reforça abordagens defendidas em trabalhos levados a cabo por Trindade (1976:983-997), Goldey
(1981: 111-127, 1982:533-553, 1983:995-1023), Wall (1984:53-63), Reis e Nave (1986:67-90), Gonçalves (1987:7-30, 1989:125-
153), Brettel (1991:87, 281 ss) e Leandro (1992:380 ss).
Migrações

Importa contudo referir que, enquanto as migrações anteriores a 1960, eram assumidas como adaptações a
incidentais situações de crise sem questionar as estruturas locais, com o êxodo dos anos sessenta e setenta,
verifica-se uma mudança e um corte mais profundos. Sem perder de vista o respectivo constexto histórico-
estrutural, analisar-se-ão ainda o trajecto migratório dos emigrantes, suas motivações na partida, seus
problemas de adaptação, trabalho e habitação durante a sua estadia e suas estratégias de regresso com os
correspondentes efeitos nos espaços local e regional.

10.1. Fluxos migratórios: uma constante em Portugal

Dado o diferente carácter das migrações antes do século XIX2, fixar-me-ei brevemente na evolução das
correntes migratórias desde meados do século passado.
Num país falho de um processo de industrialização auto-sustentado e generalizado, como referem, entre
outros, Godinho (1978:23 ss) e Justino (1987 I:38 ss)3, a pressão social e demográfica sobre um factor
inelástico – a terra – daria origem, desde meados e, sobretudo, finais do século XIX, a novos fluxos
migratórios, os quais reforçar-se-iam com determinados factores conjunturais: internamente, primeiro, as
perseguições absolutistas e, mais tarde, a superveniente crise da filoxera na agricultura portuguesa e,
externamente, a necessidade, por parte do Brasil, de compensar o défice de mão-de-obra com a abolição da
escravatura em 1888.

Entre 1855 e 1973 saíram mais de quatro milhões de indivíduos: cerca de 3.100.000 legais – dos quais mais de
40% rurais sobretudo de camponesa e artesanal – e mais de 1.000.0000 de ilegais, sobretudo no período de 1966
a 1973 (Serrão 1977: 129 ss, Godinho 1978:7, Arroteia 1985:437).
Salvo durante a I Guerra Mundial, entre 1881 e 1930 a média anual de emigrantes será de 37.289, descendo,
posteriormente, durante a II Guerra Mundial, por razões externas inerentes aos países de acolhimento (Brasil e
Estados Unidos), a uma média de 6.7264. Por seu turno, os países europeus industrializados, servindo-se do
próprio excedente de mão-de-obra rural, tendiam, em regra,a fechar-se perante movimentos vindos de fora. Neste
contexto e dadas as afinidades linguísticas e culturais, a avalancha emigratória portuguesa continuaria a dirigir-se
para o Brasil. As carências de mão-de-obra neste país, especialmente na cultura do café e nas infra-estruturas, são
colmatadas com a partida cada vez mais maciça de emigrantes portugueses. Mais de dois terços da emigração
portuguesa entre 1900 e 1913 ter-se-iam encaminhado para o Brasil a uma média de 40.982 contra 25.266 entre
1886 e 1899 (Arroteia 1985:436).
Não obstante a crise económica de 1929 e, sobretudo, a eclosão da II Guerra Mundial terem provocado
considerável quebra migratória na década de trinta, a corrente migratória portuguesa não só se manteria nesse
período, perfazendo um total de 222.639 saídas a uma média de 11.131 por ano como, entre 1946 e
1950,retomaria e renovaria o seu ritmo de saídas, a uma média anual de 14.214, em direcção ao Brasil, à
Venezuela, à Argentina, aos Estados Unidos e ao Canadá.
Um outro aspecto relevante a indagar será a procedência geográfica dos movimentos migratórios e a origem
social seus actores, nomeadamente a nível regional e distrital, tal como o fez, para Viana do Castelo, Benis
(1979:85ss). Por exemplo, no período de 1866 a 1889 teriam emigrado para o Brasil 309.574 portugueses, dos
quais cerca de 108.280 eram provenientes da região minhota (Goldey 1983:996) e, na maioria, lavradores (Feijó
1992:90).
No início dos anos cinquenta, perante o imperativode recuperação e expansão das economias industriais da
Europa central e nórdica e a consequente intensa procura de mão-de-obra provinda de países mediterrânicos
como Portugal, o Brasil deixa de ser o principal destino dos emigrantes portugueses, vindo a ser substituído pelo

2
Cf. Serrão 1977:49 ss e, para a comparação com vaga recente, cf. Cónim (1984:27-48). Sobre os fluxos migratórios entre 1500 e
1760, Godinho (1978:9) fornece, por períodos, os seguintes dados: 1500-1580: 280.000; 1580-1640: 360.000; 1640-1700:
150.000; 1700-1760: 600.000. Para o ponto de viragem no século XVIII contribuíram não só situações de penúria como também
estratégias de reprodução e de mobilidade social, por parte dos seus protagonistas, designadamente, com a descoberta de ouro e
diamantes no Brasil, a ânsia de «enriquecer».
3
A correlação entre emigração e subdesenvolvimento industrial já tinha sido apontada por Manuel Severim de Faria (1655) no seu
trabalho Remédios para a falta de gente (in Sérgio 1974:117-163) e porDuarte Ribeiro de Macedo (1675) nos seus discursos
Sobre a Introdução das Artes no Reino (in Sérgio 1974:165-229).
4
Godinho 1978:11-12, Trindade e Arroteia 1986:1-3. Para mais detalhes, cf. Cepeda 1988:209-237, Brettel 1991:104 ss.
224
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

de países europeus. Se, na década de cinquenta, 82,3% dos emigrantes se dirigiam para a América do Sul,
sobretudo o Brasil, 8% para a América do Norte e, quando muito, apenas 7,6% para a Europa, entre 1960 e 1969
verifica-se uma inversão considerável nos destinos da emigração portuguesa: 17,4% para a América do Sul,
18,2% para os Estados Unidos e o Canadá e 61,8% para a Europa, dos quais 50,8% para a França (Godinho
1978:17). Tal movimento deu lugar, neste século, à maior «sangria» de emigrantes com particular destaque em
direcção à Alemanha com 131.150 entre 1964 e 1974 e, sobretudo, a caminho da França com um contingente de
423.000 entre 1955 e 1974. Estes, somados a mais de 450.000 clandestinos, perfarão um exército laboral de
aproximadamente um milhão5, o que corresponderia a 10% da população total e cerca de 25% da população
activa.
A partir de 1975 começa a diminuir a avalancha emigratória. Enquanto entre 1961 e 1965 a média anual era de
60.000 e entre 1966 e 1970 de 126.000, entre 1971 e 1975 fixa-se em 99.000 para, entre 1976 e 1980, baixar para
26.0000 (Cónim 1983/84:78). Esta redução, mais uma vez, não se deveu tanto a razões internas ao país de origem
mas antes ao fechamento e ao controlo cada vez mais apertado dos países receptores, sobretudo na Europa
Ocidental, os quais, uma vez preenchidas as necessidades conjunturais, procuraram travar a afluência imigratória
e evitar as suas consequências nefastas para uma economia que voltava a dar sinais de nova recessão no início da
década de setenta.
Num processo de crescimento e com as novas perspectivas de integração económico-monetária e política de
Portugal na União Europeia, o movimento migratório tenderá, em princípio, a diminuir, pelo que resultará um
tanto excessivo considerar a migração portuguesa como um fenómeno inelutavelmente «endémico», tal como o
faz Goldey (1982:549).

Constatado o fenómeno migratório como uma constante ao longo dos séculos XIX e XX, importará,
num primeiro momento, abordar este fenómeno, na sua permanência e variabilidade, a nível microcósmico
das comunidades em estudo: Lindoso e Aguiar.

10.2. Destinos e pontes migratórias

Uma das vias que permite resolver parcial e/ou conjunturalmente a inadequação entre a desigual
distribuição de recursos e a população presente em cada casa e, por extensão, em cada aldeia, é, com efeito,
a transferência de força do trabalho para o exterior, solução esta que, segundo Iszaevich (1975:292), se
apresenta como um dos equivalentes funcionais de mecanismos demográficos tais como o controlo de
fertilidade, de modo a manter estável uma determinada estrutura social.
Não só em Lindoso e em Aguiar como noutras aldeias minhotas, tal como o verificaram Goldey
(1981:118 ss) e Brettel (1991:133 ss), os fluxos migratórios, ainda que dependentes de condicionamentos
externos e/ou ocasionados pela oferta conjuntural de trabalho, não são de recente data mas representam,
desde meados e sobretudo dos finais do século XIX, uma constante nas respectivas histórias locais. Até à
última vaga de 1960-70 as saídas emigratórias, se ocasionaram algum sobressalto na relativa autarcia aldeã,
não puseram em causa a estrutura económica, política e simbólica de colectividades como Lindoso e Aguiar,
mesmo quando gerassem e/ou reforçassem a diferenciação social. Só com a maciça debandada dos sem-terra
e demais sujeitos dependentes nas décadas de sessenta e setenta, ao mesmo tempo que as aspirações destes
se iam realizando por incorporação de recursos extra-agrícolas, é que as referidas aldeias se foram
desestruturando. Antes, porém, de avançar na análise da situação actual e dos efeitos resultantes das
emigrações, a nível das duas aldeias, importa todavia reconstruir, na medida do possível, a história das suas
migrações internas, particularmente antes de 1960.
Nas histórias de vida das famílias com membros emigrantes, a saída para o estrangeiro conheceu, em
regra, como que uma espécie de etapa prévia ou intermédia na migração interna para Lisboa, Porto ou uma
cidade da região. Outros, porém, não transpuseram as fronteiras nas suas saídas, geralmente de carácter
temporário ou sazonal, fenómeno este que, presente desde o primeiro quartel do século XX e intensificando-
se nos anos cinquenta e sessenta, declinaria no final da década de sessenta para ser suplantado pela onda
emigratória. Questionados, em 1985, os grupos domésticos sobre quantos os membros saídos do seu seio
para fora da aldeia e para que local mas dentro do país, foi possível apurar os seguintes resultados:
5
Cf. Boletim Anual de Emigração, 1961-70 (1973), Cepeda 1988:117.
Migrações

GRÁFICO 21: Famílias, migrantes e local de migração interna

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

Tendo por base a casa como unidade de análise dos movimentos migratórios, o gráfico 21 evidencia que o
índice global de migrações internas por grupo doméstico em Aguiar é mais elevado que em Lindoso (67.7%
versus 42.1%) e, entre os alguma vez migrantes, com maior incidência no âmbito regional: 82.6% versus
60.6%. Tais migrações, sendo mormente de carácter pendular e de retomo6, poder-se-ão, em parte, explicar
por uma maior capacidade de absorção da indústria e dos serviços nas cidades circunvizinhas de Alto
Minho. Tomando em consideração o universo da população de ambas as aldeias, especificando por sexo,
verifica-se que o rácio de homens-mulheres no movimento migratório é, respectivamente, de 1:0.47 para
Lindoso e 1:0.55 para Aguiar.

Num contexto relativamente fechado como o das aldeias em estudo, sobretudo até ao início dos anos
sessenta, também nas estratégias migratórias o acionar de conexões parentais ou redes clientelares no
exterior da aldeia, pela via da recomendação ou da cunha (13:2), representava um instrumento-chave para
obter um trabalho num dos centros urbanos circundantes ou longínquos e, deste modo, possibilitar uma
melhoria ou mesmo um salto qualitativo na posição da respectiva família na aldeia. O parente ou mediador
funcionava como uma espécie de padrinho social do neófito-migrante, não só angariando-lhe trabalho e
proporcionando-lhe alojamento, como orientando-o nos primeiros passos de citadino desenraizado, de modo
a integrá-lo nas velhas ou novas redes sociais e nos códigos da sociabilidade urbana.
As migrações, sem desligar totalmente os seus protagonistas do ciclo agrícola e não raroda sua
residência aldeã, ter-lhes-iam permitido obter pequenas poupanças destinadas ora a preencher necessidades
básicas (alimentação, vestuário), ora a pagar dívidas, ora ainda a fazer pequenos investimentos na compra de

6
Sobre o conceito e a realidade das migrações de tipo pendular, concretamente em Fonte Arcada, cf. Pinto 1985:102 ss e Almeida
1984:590 ss, 1986:187 ss.
226
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

gado,alfaias ou mesmo terra. Além disso, saindo para o exterior, os migrantes e seus familiares evitavam
degradar-se aos olhos dos vizinhos pelo assalariamento local, o que, de facto, representava um modo de
resistir à iminente desclassificação social na colectividade.
Se para bastantes moradores de ambas as aldeias as migrações internas em direcção à cidade
significavam o começo da reprodução da sua força de trabalho e da sua fixação em território urbano
nacional, para outros tal constituía adicionalmente uma espécie de ponte, a partir da qual, com contactos e
poupanças, se organizava a saída ou a fuga para o estrangeiro, tal como conta o emigrante ex-criado Telo,
que não se deixara intimidar por ameaças sancionatórias da patroa perante uma eventual migração falhada:
«Trabalhei como criado até aos dezasseis anos na casa da Eugénia, onde passei fome e apanhei porrada.
Cheio de raiva, chateei-me tanto com a situação que, certo dia, ajudado pelo tio Manuel Lemos, saí de casa
da patroa e fui para Lisboa. Ali aprendi a arte de cozinheiro num hotel onde trabalhei dez anos. Como a
vida me corria melhor, consegui casar com a Rosa dos Cunhas. Depois, meti-me a salto para a França
onde trabalhei na construção de 1962 até 1972 e, a seguir, aventurei-me a ir para os Estados Unidos como
“turista” onde me legalizei» (L80).
Mas, para que sectores se dirigia o contabilizado contingente de migrantes? O gráfico 22, elaborado a
partir dos inquéritos locais, oferece-nos uma imagem dos sectores para onde se encaminhavam os migrantes.
Deste gráfico pode inferir-se que, enquanto em Aguiar foi o sector secundário designadamente da pequena e
da média indústria que absorveu membros de 57.4% das famílias migrantes, em Lindoso membros de 51%
das famílias foram recrutados para o sector de serviços e, em particular, o funcionalismo, do qual se
salientam 28% em funções policiais, de vigilância fiscal e florestal.

GRÁFICO 22: Sector de migração interna

Legenda: * Engloba o total de indivíduos migrantes.


Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

Em regra, porém, onde a partilha igual tende a prevalecer, a emigração de moradores-herdeiros, tal como já
o frisaram para outras situações autores como Habakkuk (1955:7), Wolf e Cole (1962:1-14) ou Queiroz
(1973:27 ss), não era encarada como fuga definitiva mas como etapa estratégica e condição de melhoria das
suas condições propiciadoras do regresso à comunidade de origem para aí herdar e residir.Já, porém, para os
sem-terra, que, em geral assumiram a partida como definitiva pelo facto de, numa terra mais madrasta que
Migrações

mãe, (quase) nada deixarem nem virem a herdar, as perspectivas tornam-se diferentes. Em qualquer caso, tal
como o evidenciaram, em estudos sobre comunidades migrantes em Portugal, Trindade (1976:984,
1986:326), Goldey (1982:538), Costa (1984:10) e A. Almeida (1985:17), também nas migrações de Lindoso
e de Aguiar se tornaram relevantes as relações instrumentais de interconhecimento local e, como foi
referido, de mediação com o exterior7. Estes mecanismos, embora cada vez mais diluídos, contribuem para
compreender não só as relações de adaptação-acomodação-(re)identificação dos actores rurais em meio
urbano como, sobretudo, o curioso fenómeno da confluência de migrantes originários de determinada aldeia
e região para determinada cidade e inclusivamente bairro com a consequente concentração e especialização
de ofícios e empregos. Não é por acaso que, enquanto os pioneiros migrantes, por exemplo, de Arganil,
Soajo ou Pitões se foram especializando no mercado de trabalho olissiponense, respectivamente, como
padeiros (Trindade 1986:327, Menezes 1987:315) ou como cortadores e salsicheiros (Guerreiro 1982:147),
Lindoso primou pelo fornecimento dum caudal de cozinheiros e pasteleiros ao sector da hotelaria. O
mercado de trabalho urbano mantinha assim impresso o selo das relações fortemente personalizadas da
comunidade de origem. Na cadeia das solidariedades e (inter)dependências familiares ou vicinais, uns
chamavam os outros, inserindo-os na rede dos seus conhecimentos no respectivo ramo, chegando não raro
alguns empregados mais influentes a controlar e, por vezes, em certas franjas do correspondente mercado de
trabalho, a explorar paternalisticamente os recém-chegados.

Antes da década de sessenta saíam da aldeia basicamente dois tipos de actores sociais. Um primeiro era
constituído por filhos de famílias pobres que, desprovidos de terra e trabalho e não possuindo outros
recursos para sobreviver, se prestavam ora a tornar-se criados, ora a assalariar-se como jornaleiros errantes
e/ou como operários eventuais. Nesta última condição há a referir, em particular nos anos quarenta e
cinquenta, alguns moradores (A89, 92, e90, e104) que partiram como assalariados para a exploração de
minério nos filões subterrâneos das minas da Borralha e da Panasqueira, onde, à custa de depauperar a sua
saúde, economizaram alguns, ainda que poucos, milhares de escudos.
Uma segunda categoria era composta por filhos de lavradores que migravam, ou por não serem
prováveis sucessores, ou porque tinham em vista obter reservas monetárias, de modo a pagar tornas aos
irmãos e, assim, assegurar e/ou expandir a própria casa pela compra de terrenos. Enquanto, por norma, os
mais pobres se moviam internamente no raio geográfico regional ou, quando muito, para Porto e Lisboa, os
remediados e mais providos tinham por destino principal, senão o estrangeiro, o sector de comércio e demais
serviços ou o funcionalismo. Deste grupo destacam-se onze indivíduos em Lindoso e oito em Aguiar que
conseguiram colocar-se na função pública, no exército, na PSP ou na GNR, funções estas que,
particularmente até 1974, por implicarem uma sujeição administrativo-política mais apurada, exigiam a
interferência de um patrono mais influente e melhor colocado nas instituições civis e estatais.
Tal como Almeida (1984:592), Geraldes (1987:319 ss) e M. V. Cabral (1987:324 ss) já anotaram
respectivamente para Fonte Arcada, Correlhã e região do Oeste, mais que os emigrantes, foram os
camponeses parciais e/ou migrantes internos que, obtendo eles ou seus filhos um mais elevado nível escolar
e mantendo um contacto regular com seus familiares e conterrâneos, se constituiram em elementos
propulsores da incipiente modernização e de mudanças de atitudes.

10.3. Partida e «salto»: sonho e escape

Tendo presente que o movimento migratório converge e, em certa medida, obedece a estratégias de
reprodução e, por vezes, de mobilidade social ascendente, para os grupos domésticos de Lindoso e de
Aguiar a combinatória do trabalho fora e dentro decasa tem tido lugar, em regra, pelo predomínio da
emigração masculina designadamente até 1970:

7
Este aspecto já tinha sido destacado, na sua obra clássica sobre os emigrantes polacos na Europa e na América, por Thomas e
Znaniecki (1971:23-29) e, mais tarde, em relação a Itália e a França, por J. McDonald e L. D. McDonald (1964:82 ss) e por E.
Weber (1976:282) respectivamente.
228
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

QUADRO 24: Emigração: estado civil e sexo (1920-1984)

~
Legenda: (a) casados + divorciados + viúvos/as; (b) solteiros/as; sbt = subtotal; h/m = homem/mulher.
Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Atendendo aos resultados expressos no quadro 24 importa referir que, após um pequeno surto
emigratório legal e clandestino em 1920-30 não só para o Brasil como também para Espanha e França –
seguido de uma pausa nos anos 1936-48 –, o contingente de saídas, devido ora à redução do pastoreio, ora
simplesmente à falta de terra e/ou trabalho, com a consequente relativa sobrepopulação, é retomado nos anos
cinquenta, atinge o seu auge nos anos 1968-74 para, a partir daí, por razões apontadas em 10:1, afrouxar
consideravelmente.
Dados localmente recolhidos reforçam a ideia de, sobretudo em Aguiar, tratar-se de uma emigração
predominantemente masculina e estrategicamente voltada para o regresso, ainda que, em relação aos
emigrantes transoceânicos, amiúde falhada quanto ao retorno efectivo. Com efeito, registos de ambas as
aldeias mostram que dos emigrados para a América do Sul, nomeadamente para o Brasil e a Argentina, e
para as ex-colónias portuguesas em África partiam sobretudo homens que, por vicissitudes várias, deixaram
de dar notícias, obrigando os restantes membros da família a um redobrado esforço no cultivo da terra, na
criação dos filhos e/ou irmãos mais novos e, eventualmente, no pagamento de dívidas: «Fui vendido como
criado e depois como operário a fazer poços para pagar as dívidas que o meu pai fez quando foi para o
Brasil, onde acabou por falecer devido à pneumónica» (A105).

Não obstante o movimento migratório em direcção à Europa, em especial a partir dos anos setenta,
colher indiscriminadamente elementos de ambos os sexos sobretudo solteiros, se considerarmos as actuais
populações de Lindoso e de Aguiar por estado civil e por sexo, verificamos que, entre 1920 e 1985,
incluídos todos os membros familiares de ambos os sexos, 59.3% e 65.2% dos alguma vez residentes no
estrangeiro e origináriosde Lindoso e de Aguiar respectivamente eram (são) homens e 40.7% e 34.8%
mulheres, entre as quais filhas de emigrantes residentes no estrangeiro8.

A saída de emigrantes sobretudo clandestinos que, no figurino organicista e legal doregime


corporativo9seriam seres degenerativos da «sanidade familiar e pátria» ou, como Gonçalves (1989:127)

8
A nível nacional, o índice de saídas oficiais por sexo, entre 1950 e 1969, em direcção a França seria de 65.5% de homens versus
34.5% de mulheres. Tendo, contudo, em conta os dados proporcionados pelas Statistiques d' Immigration relativos a 1967-69 e
que incluem a emigração clandestina, tai índice aumentaria para, respectivamente, 85.3% e 14.7% (Antunes 1973:59-60).
9
Com efeito, até 1966 a fuga clandestina – dando, por vezes, lugar a disparos fronteiriços pelas forças paramilitares – era para o
Migrações

sublinha em metáfora sociológica, portadores de um «vírus» ou «pathos contaminador», passaria, com a


nova vaga dos anos sessenta e setenta, de desviante a prática normal, corrente. Com efeito, do total dos
membros pertencentes às actuais famílias de Lindoso e de Aguiar, respectivamente 73% e 42.7% estiveram
envolvidos em processos emigratórios (quadro 25).
Se, como veremos, a emigração transatlântica levava no seu seio sobretudo filhos de lavradores, na
última leva emigratória para a Europa, as saídas, embora abrangendo e arrastando membros de diversas
categorias sociais, tiveram maior incidência em grupos menos providos de recursos fundiários, tal como o
evidencia o seguinte quadro:

QUADRO 25: Categorias fundiárias e emigração

Legenda: (a) foi ou é emigrante; (b) jamais emigrou; (y) sem informação.
Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Estatisticamente, a qualquer nível em Lindoso e a 5% ou menos em Aguiar, é possível verificar, em


termos globais, uma relação de independência entre as categorias fundiárias e o ter ou não emigrado (X2=3.7
para Lindoso e X2=7.6 para Aguiar, ambos com três graus de liberdade). Praticamente emigraram membros
de (quase) todas as categorias fundiárias. No entanto, em termos de frequência relativa condicionada,
ressalta do quadro 25 uma elevada taxa de não-emigrantes por parte de dois tipos de actores sociais: por um
lado, os ainda não herdeiros e os (quase) totalmente desprovidos de recursos fundiários (<0.05 ha) sobretudo
de Aguiar: 39.3% e 76.2%; por outro, ressalvando o marido da média lavradora Eugénia de Lindoso, os
proprietários abastados e lavradores (>5 ha), sendo tal sobremaneira visível nos escalões fundiários
superiores de Aguiar: 76.2%. Se estes últimos, por razões económicas e de prestígio, não necessitavam de
«degradar-se» migrando nem de assumir o risco da «aventura» emigratória, sobretudo quando a «salto»,
aqueles nem garantias fundiárias ou outros meios designadamente monetários possuíam que lhes permitisse
fazer face aos custos e às incertezas da emigração. De qualquer modo, se, por um lado, antes de 1960, a
maioria dos emigrantes transatlânticos era originária de casas de lavradores, a partir de então e sobretudo
desde 1965, tal como se evidencia no quadro 25, a avalancha emigratória, embora abrangendo membros de
casas de Lindoso e de Aguiar com mais de dois hectares, provinha predominantemente de famílias modestas
e pobres inseridas nas categorias fundiárias com menos de dois hectares, somando 94% e 78% dos
emigrantes respectivamente de Lindoso e de Aguiar.

governo salazarista considerada crime, passando posteriormente a ser considerada simples transgressão legal (Poinard e Roux
1977:39). Embora raros, foram não obstante constatados alguns processos judiciais com aplicação de multa e mandato de captura
por segunda fuga clandestina para Espanha (v.g. TPB Li8:27, 21-2-1979).
230
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

De conversas informais e sobretudo dos resultados dos inquéritos se infere que os emigrantes seguiam,
de modo geral, o destino de países com emigrantes parentes ou conterrâneos e cujo mercado de trabalho e
condições remuneratórias se apresentassem mais aliciantes_ Procurando saber para onde se dirigiram, nas
diversas vagas de mobilidade geográfica, os 67.7% e os 42.l % dos actuais «cabeças» de casal das unidades
domésticas, respectivamente de Lindoso e de Aguiar, constatamos os seguintes resultados:

GRÁFICO 23: Emigrantes por país de destino

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

Estes índices emigratórios exigem, porém, um esclarecimento diacrónico. Se, particularmente até 1965,
o destino emigratório principal mantinha-se o Brasil, a Argentina, os Estados Unidos e o Canadá, a partir
daí, para Aguiar releva a Alemanha e, para ambas as aldeias, sobressai de longe a França como principal
país receptor do caudal de emigrantes: 64.3% dos de Lindoso e 57.8% dos de Aguiar, taxas que aliás
convergem aproximadamente com as médias municipais e superam ligeiramente a nacional (10:1).
Ao contrário da anterior emigração transoceânica, para encetar estas saídas migratórias intraeuropeias
contribuiram, além das razões atrás apontadas, a relativa proximidade geográfica dos países de imigração
europeus, o conhecimento dos meandros fronteiriços designadamente para os «foragidos» de Lindoso e,
sobretudo, um menor grau de constrangimento financeiro. Ainda que com sacrifício e risco, tais condições
possibilitaram o empreendimento da fuga e o correspondente pagamento ao passador não só a membros de
categorias sociais mais desafogadas, mas também a famílias remediadas e sobretudo carenciadas.
Comparando os emigrantes transatlânticos com os emigrados dos anos sessenta e setenta para o noroeste
e o norte da Europa, constatamos ainda mais algumas diferenças assinaláveis. Enquanto as casas dos
primeiros era pressuposto possuírem meios monetários ou garantias fundiárias suficientes para pedidos de
empréstimos a fim de fazer face aos elevados custos de passaporte, viagem10 e, eventualmente, fiança
militar, as dos segundos, detendo, em regra, menos recursos designadamente fundiários, economizavam
previamente ou, quando muito, recorriam, para menores montantes monetários, a um credor particular, de

10
Tal como refere Brettel (1991:108), entre 1850 e 1860, uma passagem de barco, em companhias inglesas, era de 144$000,
117$000 e 38$000 e, em companhias nacionais, de 72$000, 60$000 e 33$000 réis respectivarnente em primeira, segunda e
terceira classes, o que representava os (quase) impossíveis rendimentos líquidos de um jornaleiro durante 165 dias.
Migrações

preferência parente. Por outro lado, enquanto na tradicional emigração para o Brasil, até à eclosão das
guerras coloniais em África em 1961, o mecanismo da fiança, da cunha ou inclusive do suborno a
engajadores e mediadores ocasionais possibilitava aos mancebos de 14-21 anos obter o adiamento ou a
isenção do serviço militar, a partir de então os obstáculos burocráticos tornavam a saída legal senão
impossível, cada vez mais difícil e rara11. Acresce que, para emigrar para países transatlânticos e para as ex-
colónias, nomeadamente até 1960, pelo menos em duas casas de Lindoso e em dez de Aguiar tornou-se
relevante e até decisivo o acesso à rede de conhecimentos regional ou nacional acerca dos lugares vagos
nesses países. Para além da «carta de chamada» ou do contacto directo pela mão de um parente, padrinho ou
conterrâneo, semelhante informação, inicialmente detida nos meandros administrativo-políticos das elites
urbanas, constituía segredo dalguns, o qual, quando muito, era veiculado para as respectivas aldeias através
de notáveis locais. Além disso, sob o «Estado Novo», era necessário o prévio consentimento político não só
da administração municipal e central mas da própria Junta, do regedor e doutras figuras locais como o
pároco, cujo parecer sobre o comportamento do candidato era tão decisivo quanto discricionário (13:2).
Assim, enquanto relativamente a filhos, parentes ou aliados de famílias mais influentes e fiéis ao regime
eram dadas garantias fiduciárias e informações positivas, a outros foram-lhes sonegados ou «congelados»
contratos de trabalho, tornando-se-lhes a saída um escolho dificilmente superável12.

Diferentemente da emigração transatlântica – que não raro podia contar com os canais de apoio das
redes de mediação parental ou patrocinal –, para a maioria dos protagonistas da nova vaga de 1960-74 a
forma predominante da saída foi a fuga clandestina, tal como o mostra o gráfico seguinte:

GRÁFICO 24: Forma de emigração

Legenda: * Engloba a totalidade de indivíduos emigrados.


Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

11
A distinção entre os dois tipos de emigração foi apontada por vários autores, entre os quais Arroteia (1983:20 ss), Leite
(1987:463-480) e Cepeda (1988:211 ss). Entre as condições, funcionando igualmente como obstáculos emigratórios, são de referir
o atestado de saúde e vigor físico, a instrução primária, o serviço militar cumprido, o certificado de civismo e bom
comportamento, a «carta de chamada» ou o contrato de trabalho e, sobretudo, a emissão de passaporte e, se de turismo, com
caução e prova de rendimentos.
12
Entre famílias com sucesso na obtenção de passaporte e/ou contrato nos contactos oficiais, refiram-se, por exemplo, onze em
Lindoso (Le24, 31, 37, 44, 66, 70, 73, 89, 95, 102, 124) e quatro em Aguiar (A28, 53, 93, 95). A outras, porém, designadament e a
duas em Lindoso (L67, 83) e duas em Aguiar (A49,118), sobretudo por terem manifestado simpatias por grupos da oposição,
eram-lhes sistematicamente coarctadas as possibilidades de saída legal.
232
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

A nível dos grupos domésticos, de parte 32% e 57.9% dos casos que respectivamente em Lindoso e em
Aguiar não emigraram ou aos quais a pergunta não lhes era aplicável, no cômputo global das formas
emigratórias desde 1920 só 13.1% e 6.3% obtiveram previamente contrato de trabalho, 11.9% e 10.9%
conseguiram sair legalmente sob o subterfúgio do passaporte de «turista», restando aos demais 75% e
82.8%, respectivamente, a fuga clandestina conhecida por salto. Apesar do boomindustrial europeu de 1960
a 1973, aos indocumentados moradores, sem contactos nos insterstícios do poder local, só o saltopermitia
tornear ou ultrapassar os diversos obstáculos, tal corno refere Paz, um dos primeiros fugitivos de Aguiar:
«Eu que via o meu cunhado Vitalino, sobrinho do padre, emigrante na Alemanha, todo bem vestido e
engravatado, queia também papéis para sair. A mulher dele dizia-me para falar ao padre. Mas como o
padre não gostava de mim por me considerar um "terrorista", uma ovelha tresmalhada, não tive outro meio
senão pedir 7.000$00 e dar o salto» (A78).

Além das barreiras locais, em parte devidas à necessidade económica e política dos proprietários e
lavradores em reter jornaleiros, os entraves burocráticos na obtenção de contratos e passaportes, os motivos
de premência económica acumulados com outros de ordem militar e política, designadamente a guerra
colonial, assim como as proibições e restrições, por parte do governo salazarista, à emigração de
trabalhadores agrícolas e operários especializados obrigaram assim à (quase) desesperada fuga clandestina.
Além dos gastos, com o passador em cerca de 5 a 20.000$00 e outros relativos à alimentação inicial, o
que, de resto, se exigia a cada potencial candidato à fuga era um espírito espartano para aguentar as
dificuldades e as incertezas do salto no desconhecido com uma viagem atribulada: pé, de carro, de comboio
e/ou, em regra, de camião. Com efeito, as saídas clandestinas dos emigrantes estão repletas de peripécias
desde as caminhadas pelos montes, durante oito a trinta dias ou mais, passando pelo transporte em camiões-
cisterna com dezenas e centenas de homens, os quais não raro passavam fome e frio, sendo, por vezes,
perseguidos, detidos ou abandonados nas imediações fronteiriças e até objecto de assaltos, roubos ou maus
tratos. Não sendo possível aqui descrever histórias particulares desta hemorragia populacional, é contudo de
destacar um caso ilustrativo narrado por Telo, um dos «trânsfugas» de Lindoso: «Saímos de noite e
procurámos dormir na serra. De manhã acordámos gelados com os assobios de outros rapazes vindos da
aldeia vizinha que, organizados pelo passador, partiriam connosco. Começámos a andar a pé até passar a
fronteira. Depois juntaram-se a nós mais 91 homens e meteram-nos como ovelhas, como durante dez dias,
num camião até Hendaye.
O encarregado da comida nem sequer se atrevia a distribuí-la mas punha-a no chão para cada um a
apanhar, tanta era a "fominha"! E, quando chegámos a Paris, abandonaram-nos junto ao aeroporto de
Orly…» (L80).

No concernente às motivações dos protagonistas emigrantes, das conversas informais com idosos ex-
emigrantes transatlânticos e do leque de respostas aos inquéritos locais e, em particular, a um semi-
estruturado inquérito suplementar a actuais emigrantes, foi possível apurar a distribuição das motivações
principais da sua partida (quadro 26).
Migrações

QUADRO 26: Motivo de emigração por categorias fundiárias

Legenda: (a) falta de trabalho e/ou condições de vida; (b) miséria/sobrevivência; (c) fazer casa e comprar terra; (d)
melhorar/estabelecer-se/enriquecer; (e) pagar dívidas; (f) outro; ha = hectares.
Fonte: ILL e ILA, 1984-1985

Como se pode depreender das respostas por família, as motivações das saídas dos respectivos homens e
mulheres orientadores dos agregados domésticos, embora articulando-se umas com as outras, centravam-se
contudo em obviar situações de carência sobretudo económica (59.5% e 57.8%). Seguia-se o desejo
expresso, em 25% e 37.5% dos casos, de (re)construir casa e, eventualmente, comprar terra ou superar
apuros económico-financeiros tais como o pagamento de dívidas ou o cancelamento de hipotecas contraídas
justamente na sequência de gastos com a casa, a compra de terra ou ainda de acidentes (v.g. TPB Li11:45,
4/77, 1977).

Dada a diversidade da composição social dos protagonistas emigrantes, a diferença de contextos é


acompanhada por cargas motivacionais de diverso grau de intensidade e, não raramente, de diferente índole.
Assim, enquanto, sobretudo até aos anos setenta, os emigrantes, quando não afastados do processo de
herança, protagonizavam estratégias de reconstituição, reestruturação e expansão da casa originária, a partir
daí, no acto de emigrar, começaram a sobrepor-se e a multiplicar-se outras estratégias impregnadas de
interesses familiares de tipo nuclear ou inclusivamente individuais e que, por vezes, implicavam uma ruptura
com o statu quo. Assim, exceptuando alguns casos de repulsão da casa e/ou desfavorecimento na herança,
na partida da maior parte dos emigrantes transoceânicos presidiam, amiúde, fortes motivações de primária
concorrência no mercado matrimonial local e sobretudo de «melhorar, estabelecer-se ou enriquecer»13– por
vezes perpassadas de miragens do eldorado. De facto, quer para os «brasileiros», quer para os filhos de
lavradores da leva dos anos sessenta e setenta, emigrar equivalia à possibílidade de aumentarem as suas
posses e reforçarem, consequentemente, os seus lugares cimeiros, de modo a não se deixarem ultrapassar

13
Sendo de referir, em particular, três casos em Lindoso e quatro em Aguiar. A «ambição de voltar ricos à pátria» era a resposta
mais frequente nos vários informes oficiais, nomeadamente no Primeiro Inquérito Parlamentar sobre a Emigração Portuguesa,
Lisboa, 1873:23 (in Serrão 1985:1000). Estas respostas indiciam estratégias de emigração temporária e de regresso centradas,
como refere Habakkuk (1955:7) não «em adquirir uma nova ocupação numa sociedade diferente, mas em melhorar a sua posição
na velha sociedade (camponesa)». Esta faceta, de resto também presente na pluriactividade tradicional e nas migrações sazonais, é
igualmente salientada por Medick (1976:296 ss) e E. Weber (1976:182) a propósito das estratégias camponesas em contextos de
protoindustrialização.
234
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

pelos recém-chegados de baixo, tal como também concluíram outros autores, nomeadamente Reis e Nave
(1986:74).

Do leque de respostas da grande maioria dos emigrantes saídos entre 1960 e 1985 destila-se todavia,
paralelamente à necessidade de acumular capital-dinheiro necessário à manutenção e/ou ao alargamento da
exploração familiar, a premência de fazer face a problemas relacionados com o limiar da sobrevivência e a
melhoria das suas precárias condições de vida. O maciço êxodo rnral, assumindo um carácter compulsivo,
generalizado e duradouro, além de revelar mais para o exterior as respectivas freguesias, contribuiu,
internamente, para aliviar a até então asfixiante pressão sócio-demográfica na procura de trabalho e de terra
e, externamente, para amortecer e morigerar as reivindicações salariais dos trabalhadores dos países de
acolhimento.
Se antes de 1960 as situações de crise alimentar e de trabalho foram sendo suportadas a expensas dos
desprovidos de recursos para (e)migrar, nas décadas de sessenta e setenta, a combinação de factores internos
(crise agrícola, projectos de arranque industrial, pressão demográfica e social, guerra colonial, temporária
diminuição da vigilância policial sobretudo com o marcelismo) e externos (em especial, o boom industrial
europeu), constituiu para os seus protagonistas um enorme desafio de promoção interna na aldeia. Assim se
iniciava a mais importante alteração social nas últimas décadas, possibilitando o desbloqueamento do círculo
vicioso de carências e dependências vinculadas. Com efeito, para criados, jornaleiros e camponeses pobres
de então demandar outras paragens ou emigrar representou uma válvula de escape para um ambiente cada
vez mais tenso a nível local, evitando ter que «trabalhar para os ricos por esmolas. Naquela altura os ricos
davam-se ao luxo de fazer pouco dos pobres. Quem não saísse aqui de Lindoso para fora, estava perdido»
(L51).
Foi, de facto, através de duas ou, pelo menos, uma das duas estratégias – emigrar e/ou casar
hipergamicamente – que membros de onze casas de ex-criados e ex-jornaleiros em Lindoso e quinze em
Aguiar declararam ter conseguido sair da situação de penúria e ter um «modo de vida menos duro». Aqueles
poucos ex-criados e ex-jornaleiros que não tivessem tido oportunidade ou deitado mão duma destas
estratégias teriam social e economicamente estagnado, senão mesmo relativamente regredido: «Ando para
aqui sem mulher. Mas o meu mal maior foi não ter saído da terra. Nem à tropa fui. Se eu tivesse ido para a
tropa, talvez não tivesse voltado à terra, tinha-me desenrascado e hoje estaria melhor do que estou» (L22).

As saídas emigratórias, clandestinas, já legais, sobretudo até 1978, não eram de modo algum definitivas
e obedeciam geralmente a estratégias de obtenção de pequenas poupanças e subsequente regresso à aldeia e
à família, como veremos em 10:5.

10.4. Com o cordão telúrico

A casa, além de referência afectiva e de ligação telúrica, constitui(a) o produto do sacrifício dos
antepassados que, como tal, importa(va) preservar, particularmente no momento de arranque do ciclo de
vida doméstica, através de estratégias de disseminação de riscos. Por isso, se, por um lado, decidir emigrar
implica(va) sempre assumir um risco, este resulta(va) atenuado na medida em que o camponês-migrante não
abandona(va) totalmente a terra e, ao partir, tem e, sobretudo, tinha o propósito e a percepção de, a todo o
momento, poder regressar. É justamente a ligação ao torrão natal e, em especial, às suas próprias courelas
que explica, pelo menos na fase inicial, o predomínio da emigração do marido sem a mulher e os filhos:
Migrações

GRÁFICOS 25 e 26: Famílias e modalidade de emigração

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

Embora, como veremos de seguida, seja pertinente distinguir, nos resultados, as especificidades da
migração transoceânica, do total de famílias com emigrantes 71.4% e 67.2% respectivamente em Lindoso e
em Aguiar assumiram como padrão emigratório a saída do marido e a gestão, pela mulher e pelos filhos, do
património fundiário herdado ou a herdar, taxas estas um tanto superiores a médias obtidas noutros
estudos14. Se, nas famílias com reduzidas parcelas, a mulher e, eventualmente, seus filhos, parentes e amigos
conseguiam prosseguir o seu cultivo, já nas casas com mais posses, tornava-se necessário dar terras em
arrendamento, deixar subaproveitados ou mesmo abandonados os terrenos menos férteis e/ou pouco
acessíveis.
Mesmo que as remessas dos parentes emigrados superem de longe o rendimento agrícola, a modalidade
estratégica do marido emigrado e da mulher ocupada na agricultura implica contudo fazer desta o eixo
central da actividade e identificação familiares. Nesta óptica, a emigração só tem sentido desde que o marido
tenha no horizonte temporal das suas realizações a expectativa do regresso à terra-mãe e ao lar doméstico.
Mais, a estadia no estrangeiro releva na medida em que a poupança líquida não só contribui à auto-
sustentação familiar como fornece a base de acumulação para a reprodução ou a expansão da casa.

Contrariamente às motivações e aos comportamentos inerentes ao padrão dominante, é de assinalar o


novo facto – de modo algum irrelevante em Lindoso, sobretudo desde 1980 – de haver casais sobretudo
jovens, cujas mulheres e, eventualmente, filhos ou se desligaram da terra ou, por não a possuirem, se
reagruparam aos respectivos maridos/pais no país de acolhimento. Com efeito, tal decisão, se, por um lado, é
virtualmente sintomática de novas atitudes e valores orientados para uma fixação urbana, por outro,
pressupõe, perante os baixos rendimentos das explorações agrícolas, o predomínio duma estratégia de
poupança maximalista, baseada nas vantagens comparativas das receitas derivadas dos salários e das demais
horas suplementares (ganchos) ora do marido, ora da mulher, ora ainda dos filhos. Neste último caso trata-se
mais de um temporário e aparente desprendimento da terra e dos respectivos valores simbólicos na fase de
arranque do grupo doméstico. Com efeito, além de o padrão dominante ser o de o marido emigrar só, nos
restantes 21.4% e 29.7% dos casos em que se verificou reagrupamento familiar, nove mulheres de Lindoso e
nove de Aguiar fizeram-no porque (ainda) não tinham herdado, oito e seis porque puderam ceder a parentes

14
Poinard (1983:43), analisando 1700 processos relativos a regressos de emigrantes portugueses em França, originários de cinco
diferentes zonas geográficas, concluiu que 45% das famílias teriam adoptado como padrão dominante a permanência da mulher e
dos filhos na aldeia.
236
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

a terra para cultivo e uma e quatro porque simplesmente as arrendaram a conterrâneos não familiares. Ora a
cessão ou o arrendamento de leiras a parentes e vizinhos permite justamente, de modo geral, que as famílias,
de uma ou outra forma, não se desenraízem da terra, a qual persistirá como ponto de referência simbólico e,
eventualmente, como base coadjuvante da reprodução familiar no período após o regresso. Mesmo quando,
desde inícios dos anos setenta e sobretudo desde 1976, o marido leve consigo a esposa ou esta se reagrupe
àquele, tais arranjos, além de ir ao encontro da necessidade de companhia e satisfação conjugal, enquadram-
se não tanto, ou então raramente, em função de uma integração no país receptor, mas mais e amiúde na
perspectiva do regresso e com o objectivo de revigorar estratégias de reprodução ou reconversão social.
Ainda que igualmente não qualificado e barato, o trabalho da mulher no estrangeiro contribui para amealhar
mais dinheiro no mais breve tempo possível, tal como o referiu igualmente Wall (1984:56 ss).
O padrão emigratório dominante, provocando, em consequência, elevadas taxas de feminização do
trabalho agrícola e reforçando o papel da mulher na divisão social do trabalho no campo, proporciona,
embora apenas conjunturalmente, uma acrescida responsabilidade e correspondente parcela de poder da
mulher na gestão da exploração familiar. Quer na corrente migratória para a América do Sul, a África do Sul
e as ex-colónias portuguesas (1880-1940/50) quer, em menor medida, na recente vaga para a Europa, a
grande maioria das mulheres camponesas de Lindoso e de Aguiar não tem abandonado o torrão natal ou de
residência, convergindo com a conclusão de Besteman (1989:134) de a actividade extra-agrícola masculina
propiciar ofuncionamento das «explorações em base feminina». Não obstante as insistências de alguns dos
maridos para que as suas mulheres se reagrupassem, pelo menos por uns anos, estas apenas visitaram,
quando muito, alguma(s) vez(es) os seus maridos nos países de emigração europeia.

Vários motivos motivos subjazem à permanência da mulher na terra quando o marido emigra. Antes de
mais e particularmente em tempos mais recuados, o cultivo da terra afasta(va) o espectro da fome na
eventualidade de um percalço emigratório (por exemplo, o desemprego), mantendo-se a mulher como
reserva e contraponto seguro de uma eventual emigração falhada. Em segundo lugar, uma casa que pretenda
subsistir e, se possível, prosperar, deverá, na óptica dos moradores, constituir um microcosmos que, aberto
ao exterior sobretudo pela mão do homem, tome contudo como seu pilar de identidade e segurança principal
a mulher, enquanto procriadora, educadora dos filhos e guardiã dos segredos íntimos da gestão da casa,
aspecto aliás também frisado por Cabral (1989: 110). Mais, especialmente para casais originários de famílias
de lavradores, a permanência da mulher na aldeia constitui o sinal real e simbólico de não desclassificação
social, revalorizando o capital fundiário e simbólico de ambas as famílias de origem. Donde, atendendo ao
papel preponderante da mulher camponesa na economia doméstica e à sua ligação à comunidade local,
poder-se-á sustentar que tem sido ela a principal portadora e transmissora dos valores familiares e da própria
cultura camponesa aos vindouros, começando pelos próprios filhos com reflexos em diversas dimensões da
realidade, designadamente a religiosa.
Numa fase posterior do ciclo de vida do novo grupo doméstico, a (re)construção da casa e a herança ou
a compra de terras, por um lado e, por outro, a educação escolar dos filhos são ainda para 28.2% dos casos
de Lindoso e 25% dos de Aguiar factores adicionais mas decisivos na retenção da mulher na aldeia. Acresce
ainda que, no caso de não haver irmãs solteiras em casa, o dever moral de amparar ou prestar auxílio aos
pais e/ou sogros, se bem que impossibilita a mulher de acompanhar o marido, tem a vantagem de fortalecer
estratégias de aproximação aos futuros testadores, tal como foi possível verificar em dois casos de Lindoso e
seis de Aguiar.

Voltando ao trajecto do emigrante clandestino dos anos sessenta e setenta, passadas as dificuldades e as
ansiedades da viagem, colocavam-se outras questões como a obtenção de trabalho e alojamento. Salvo
alguns casos com contactos prévios assegurados pelosistema de vínculos parentais ou conterrâneos, uma
parte considerável dos emigrantes diligenciavain loco e obtinha trabalho na base de conhecimentos
ocasionais, o que, aliás, na conjuntura favorável do mercado de trabalho de então, era relativamente fácil. O
gráfico 27 dá conta da distribuição da força de trabalho emigrante de Lindoso e de Aguiar por sectores de
actividade, destacando-se de longe a construção civil.
Migrações

GRÁFICO 27: Ocupação principal na emigração

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

Exceptuando alguns casos de emigração, cujos protagonistas puderam comprar casa, criar pequenas
empresas e qualificar os filhos, a afectação de camponeses-emigrantes a lugares assalariados no país
receptor representa, em regra, uma reconversão profissional ou mesmo uma temporária desqualificação
intrageracional. Esta não é, porém,definitiva, nem ao nível das representações, nem ao da progressiva
realização dos objectivos estratégicos de reassunção camponesa ou outra que implique a todo o momento
uma reconversão ocupacional relativamente autonónoma. Em todo o caso, tornam-se relevantes e
susceptíveis de comparação as efectivas estratégias ocupacionais e os correlativos estatutos entre os
emigrantes transatlânticos e os da última vaga para a Europa industrializada. Enquanto a força de trabalho
destes últimos era absorvida, em grande parte, pela indústria designadamente pela construção civil, a dos
emigrantes para o Brasil e a Argentina destinava-se a antigas profissões artesanais ou industriais (pedreiro,
carvoeiro) e sobretudo de serviços (cozinheiro, padeiro), procurando, tal como Cepeda (1988:210) já
assinalara, estabelecer-se ou «fazer sociedade», logo que possível: «Quem se estabelecesse no Brasil
ganhava muito dinheiro. Primeiro, fui ajudante de cozinha, mas isso não dava nada. O que me valeu foi
que, a partir de certa altura, comprei uma carrinha de mão e fui fazer carretos por minha conta e foi aí que
eu ganhei umas coroas» (L64).

Na pendência do período emigratório para a América do Sul, diversos emigrantes, tirando vantagem não
só da relativa facilidade de adaptação, como sobretudo da sua estada em cidades de países periféricos com
forte componente mercantil e exigências infra-estruturais, tomaram determinadas iniciativas tais como criar
pequenas empresas oficinais, industriais ou comerciais, empreitadas de obras (estradas, construção). Por
vezes, alguns mais expeditos, além do próprio esforço laboral, aplicariam engenhosos estratagemas tais
como, por exemplo, o de assalariar por sua conta conterrâneos e até familiares ou, ainda que raramente, o de
simular falências, permitindo-lhes assim, uma vez regressados, aceder em Portugal a um estatuto autónomo.

No quadro do mais avançado capitalismo europeu estratégias de autonomização empresarial tornam-se

238
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

mais raras e difíceis, constituindo o sector da construção civil aquele para o qual foram absorvidos como
assalariados, geralmente não qualificados, 83.3% e 70.3% dos emigrantes de Lindoso e de Aguiar
respectivamente. Nos demais ramos do sector secundário a presença dos emigrantes é diminuta, salvo
grande parte dos 21.8% que de Aguiar se dirigiram para a Alemanha, cuja política, mais restritiva e exigente
do perfil escolar do emigrante que, por exemplo, a francesa, os encaminhava menos para a construção civil e
mais para a fábrica e os serviços. Tal como já o salientaram outros estudos monográficos (Reis e Nave
1986:77-80), a inserção no sector da construção permitia a trabalhadores não qualificados e não raro
analfabetos uma mais rápida adaptação e, comparativamente ao trabalho fabril ou de serviços, uma mais
elevada remuneração. Por outro lado, o assalariamento na construção civil não só se coadunava com as
conveniências dos pequenos e médios patrões, interessados em ter trabalhadores sazonais geograficamente
móveis e flexíveis, social e politicamente dóceis, como ia de encontro às estratégias «camponesas» dos
«espartanos» emigrantes, mais orientados para a sua terra e família em Portugal. Sobretudo na conjuntura
favorável do mercado de trabalho entre 1965 e 1973, os emigrantes, além de obter do patrão alojamento
aparentemente (quase) gratuito, podiam, em regra, permanecer no vaivém migratório, conjugando as obras
na construção com as suas periódicas deslocações a Portugal, de acordo com os tempos de trabalho mais
intensivo do ciclo agrícola ou as vicissitudes de (re)construção da sua casa. Acresce que o tipo de trabalho
na construção ajustava-se ou, pelo menos, violentava psicologicamente menos o seu anterior modo de ser e
trabalhar agrícola que o autómato, cadenciado e repetitivo ritmo fabril. Por fim, para o emigrante,
determinado a ganhar o máximo possível no menor período de estada possível, as relações de trabalho no
sector da construção e, eventualmente, no dos serviços de limpeza e análogos permitiam acumular horas
extraordinárias, além de biscates suplementares em casas particulares dos patrões, chefes e outros
conhecidos. Habituados a um modo de vida austero e frugal no passado, o aumento da duração e da
intensificação do trabalho, sobretudo pela aplicação de horas extraordinárias, comportava um considerável
aumento de rendimentos.

Incidindo agora a análise na duração da emigração, é de relevar que, ressalvando casos de ausência
prolongada, as estadias emigratórias, sobretudo na Europa, tendem a ser predominantemente de curta ou
média duração, tal como se pode ler do gráfico 28. Deste gráfico resulta que a duração média das estadas
emigratórias é de cerca de dez anos para os emigrantes de ambas as aldeias, o que não deixa de ser relevante
para se analisarse se trata de emigração temporária e de retorno ou definitiva e apreender os seus reflexos
nos respectivos modos de estar. A referida duração temporal média no estrangeiro indicia o firme propósito
de não abandonar a família, as lides agrícolas e a própria aldeia. Os laços afectivos tornam-se visíveis
quando se observa a frequente correspondência trocada e a quase ritual espera da mesma pelos residentes,
sobretudo de Lindoso, ou quando se presenciam sofridas cenas de choro por altura de rupturas, despedidas
anuais, acidentes ou mortes de familiares migrantes.
Migrações

GRÁFICO 28: Duração da emigração

Fonte: lLL e ILA, 1984-85.

Sem ser desprezível o número dos emigrantes de longo prazo, em particular com mais de quinze anos, e
mesmo admitindo, tal como referi, uma inflexão no padrão dominante e um ligeiro movimento de casos de
reagrupamento familiar definitivo, trata-se todavia, predominantemente e pelo menos até 1985, de uma
emigração de curto e médio prazo, a qual, em regra, mesmo quando adiou o regresso em função de novos
objectivos, encerrou ou está em vias de encerrar por sua própria contaociclo emigratório.
Igualmente, quanto a outras condições de vida nomeadamente habitação, é de referir que os
protagonistas emigrantes conheceram, sobretudo numa primeira fase, além de situações de subalimentação e
mesmo de fome, condições habitacionais precárias e desconfortáveis. Com efeito, nos primórdios da
avalancha migratória, já por falta de meios económicos, já por falta de contactos e sobretudo pela ânsia de
poupança, 72.6% dos emigrantes saídos de Lindoso e 53.1 % dos de Aguiar acomodavam-se em bairros de
lata improvisados e abarracamentos cedidos pelo patrão junto da própria obra (anexo 20). Esta situação de
alojamento precário só mudaria de figura no decorrer dos anos, invertendo-se o rácio em favor de quartos e
casas alugadas e, até nalguns casos, próprias em 90.5% e 90.6% dos emigrantes de Lindoso e de Aguiar,
respectivamente. A melhoria das condições de alojamento prende-se com a maior capacidade financeira e a
estabilidade familiar do emigrante, em particular quando este decide reagrupar a mulher e, eventualmente,
os filhos. Mais ainda, quando se dilui, se questiona ou prorroga a decisão do regresso e os filhos começam
ou prossegem a escolaridade no país de acolhimento, aumenta a probabilidade de mudança de objectivos no
decorrer emigratório e, subsequentemente, duma progressiva assimilação de normas e valores da
sociedadeonde os filhos estão inseridos e crescem. Ora tais casos, ainda que até hoje minoritários, não
deixam de aumentar, ao mesmo tempo que se adiam ou tornam problemáticos os sonhos do regresso.
Emigrantes aculturados e totalmente integrados no país de acolhimento ou ainda casais desfeitos por
longas separações não constituíam, nas migrações intraeuropeias dos anos sessenta e setenta, a regra. Pelo
contrário, mantendo-se como dominante o padrão de uma emigração masculina, os emigrantes de Lindoso e
sobretudo de Aguiar, sem sofrerem um real processo de aculturação, permaneciam e, em grande medida,
permanecem nostálgicos da sua velha aldeia, de suas normas, tradições e ligações afectivas.
Pragmaticamente deixa(va)m-se concerteza envolver por um processo de adaptação mínima ao novo lugar
urbano, mas, em regra, de modo algum permitiam que se operasse uma ruptura com o seu passado aldeão,
denotando mesmo, embora com algum custo, uma atitude de relativo fechamento numa «dialéctica de
revelação e camuflagem» (A. Rodrigues 1979:43) perante a sociedade envolvente, fechamento esse,
portanto, directamente proporcional ao grau de (pre)disposição de (re)apropriação, simbólica quando não
real, do local de origem, dos seus valores e desejos: a terra, a casa, a família. As suas redes de contacto e

240
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

sociabilidade, enquadradas por estratégias defensivas, ora de solidariedade, ora de emulação entre
conterrâneos, limita(va)m-se basicamente a compatriotas do seu círculo de origem, trabalho e habitação. Do
mesmo modo, os seus locais públicos de (re)conhecimento, entreajuda e convívio – aliás relativamente
opacos para o exterior - circunscreviam-se, quando muito, a determinados centros ou associações15. Estas,
além de locais de recrutamento de parceiros(as) para casamentos de suas filhas(os), funciona(va)m como
pontos de recriação sócio-cultural originária ou de reactualização compensatória de suas velhas experiências
personalizadas da aldeia.

Ainda que temporária ou definitivamente proletários, o quadro representativo de pertença e de


referência económico-cultural dos moradores (e)migrantes continua(va) sendo amiúde a manutenção ou a
restauração da velha casa campesina e/ou a ascensão a um modo de vida autónomo nomeadamente no
comércio. Mesmo quando, eventualmente com as suas respectivas famílias, tenham adoptado como local
permanente de residência e trabalho uma cidade do país ou até do estrangeiro, os (e)migrantes de Lindoso e
sobretudo de Aguiar não têm absorvido, pelo menos até 1985, os padrões de vivência urbanos, dando não
raro lugar ao que Bourdieu (1979:158) denomina «histerese de hábitos» caracterizada, neste caso, por
resistências, ambiguidades e desfasamentos entre os hábitos pré-migratórios e as pressões das novas
condições de vida citadina. Pouco permeáveis às solicitações da sociedade de acolhimento, fazem e
sobretudo faziam perdurar a ligação à aldeia e, em especial, à família, procurando combinar as férias anuais
não só, como foi referido, com certas tarefas agrícolas da época e/ou a(re)construção da casa, mas também
com o tempo socialmente intensivo em transacções e festas, em baptizados e casamentos de familiares. De
resto, mesmo que ausentes, não dispensa(va)m a passagem da visita pascal e, em Lindoso, a da imagem da
«Sagrada Família» pela sua casa, mediada pela presença da mulher, dos pais ou outros familiares que se
encarrega(va)m de os representar. Por outro lado, contribuíam e ainda contribuem, em regra,
voluntariamente para obras de interesse local: reparação de igreja e residências paroquiais, Centro Social
(em Aguiar), melhoramentos infra-estruturais, organização de festas. E, quando do regresso anual ao país de
emigração, leva(va)m consigo, na medida do possível, frutos e símbolos duma relação quase umbilical com
o gado e a terra: os presuntos, os chouriços, a aguardente, o garrafão de vinho e, por vezes, legumes e
cereais.
Estes e análogos factos, sendo propícios a realentar material e simbolicamente e, por vezes, com
apurado sentido criativo, a identidade familiar e aldeã, vêm de encontro à intensa necessidade de superar
incertezas e ansiedades, ultrapassar ambiguidades perante a sociedade de origem e a de acolhimento. Pela
participação, recriação e inclusivamente apropriação, mesmo que imaginária, da sua função eufórica, o
longínquo toma-se próximo e o ausente presente, tal como o têm assinalado diversos autores tais como
Trindade (1976:987), Rodrigues (1979:43), Antunes (1981:24) e Gonçalves (1987:25).
Concluindo, poder-se-á dizer que, com as estratégias de regresso constantemente presentes no seu agir,
querer e pensar (10:5), os emigrantes de Lindoso e Aguiar, pelo menos até inícios dos anos oitenta, não só
mantêm, em regra, hábitos e comportamentos de adaptação mínima e/ou fechamento ao exterior, como, à
excepção do convívio associativo nas suas respectivas diásporas, são marginalizados ou se (auto)segregam
da vida social e sobretudo sindical dos países de acolhimento.

10.5. O regresso: reprodução e reconversão

As estratégias de regresso, enquadráveis nos processos de reprodução e, eventualmente, de mobilidade


social ascendente, dependem de vários factores, entre os quais o volume de poupanças, a possibilidade e a
disponibilidade de o próprio emigrante ou algum dos filhos assumir a direcção da exploração ou doutro
empreendimento autónomo, as alternativas de educação e formação dos filhos, as possíveis saídas

15
Não obstante o ligeiro enfraquecimento das associações sócio-culturais (cf. Expresso de 16-6-1990:6R), os entrevistados
emigrantes salientam todavia a sua importância e relativa vitalidade, traço este igualmente sublinhado por Trindade (1986:327-
328). Também nas migrações internas M. V. Cabral (1983:220 ss) e A. Almeida (1985:11 ss) constatam a reprodução de
estratégias de raiz rural em meio urbano.
Migrações

profissionais e, em particular, a idade. Questionados os próprios protagonistas-emigrantes e/ou suas famílias


sobre o regresso ou não daqueles e, em especial, sobre os motivos de regresso, foi possível apurar os
resultados constantes no quadro 27.

QUADRO 27: Regresso e motivo de regresso por categorias fundiárias

Legenda: (a) = casa (re)construída e voltar à agricultura; (b) = suficiente reserva de capital-dinheiro e estudos dos filhos;
(c) = discriminação/saudades; (d) = desemprego/contratempo (doença/acidente); emprego/ empreendimento em Portugal;
(f) = reforma + prémio de retorno; (g) = saudade/ amparo dos pais/ cultivo das terras; Categorias fundiárias (em ha): (0) =
0; (1) = 0.01-0.05; (2) = 0.051-1; (3) = 1.01-2; (4) = 2.01-5; (5) = 5.01-10.
Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Do total dos «cabeças»-de-casal emigrantes 54.7% em Lindoso e 64.6% em Aguiar já regressaram


efectivamente e dos restantes ainda emigrantes cerca de 81.6% e 92% manifestaram explícita ou
implicitamente a intenção de regressar, aguardando ora reformas de invalidez ou velhice, ora outras
condições nomeadamente de acessibilidade, assistência social e médica e de condições de investimento local
para os seus projectos. De resto, se bem que ligeiramente superiores, os índices de regressados não se
afastam das médias a nível nacional16. Também a este respeito importa todavia distinguir o processo
migratório para o Brasil e a Argentina do mais recente em direcção à Europa industrializada.
Pelas referências recolhidas de alguns escritos e, particularmente, dos relatos dos moradores mais
idosos, foi possível inferir um considerável número de não regressados nas primeiras vagas de emigração
transoceânica. Para o não-regresso de alguns teriam contribuído, além da deterioração do estatuto do
português no Brasil desde o século XIX, como referem Serrão (1977:53) e Pereira (1981:30 ss), os riscos
inerentes a engajamentos fraudulentos e vicissitudes várias tais como situações de fome, surtos de febres
tropicais e epidemias17, como, por exemplo, a pneumónica em 1918. Outros mal sucedidos teriam desistido,
por «vergonha social», de regressar à sua aldeia de origem sem o esperado estatuto, evitando assim a
sancionatória ridicularização ou até o humilhante estigma de «falhado» ou «inútil», de «preguiçoso» ou
«malandro».

16
A nível nacional, atendendo a que dos 1.200.000 emigrados portugueses para a Europa até 1980 teriam regressado 500.000 e
que, segundo as previsões da Secretaria de Estado da e das Comunidades Portuguesas, regressariam entre 1980 e 1990 cerca de
400.000, o contingente de regressados representaria aproximadamente 75% dos emigrantes, cálculo este que, à luz da mais lenta
evolução verificada, teria sido algo exagerado.
17
Carqueja (1916:416-417), além de referir que 30% dos regressados de América do Norte o fizeram por motivo de saúde,
constata que dos 73.831 regressados entre 1890 e 1899 4.734 (6.4%) estavam doentes, dos quais 672 com tuberculose.
242
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Deste tipo de não regressados importa diferenciar aqueles que, integrados e assimilados nos países de
acolhimento, viriam a fixar-se definitivamente como assalariados, empregados ou mesmo pequenos
empresários na indústria e sobretudo no comércio. Para uma opção, mais que as distâncias transcontinentais
e os altos custos de viagem, tornaram-se decisivos, além da identidade de língua, factores como o
desfavorecimento nas partilhas, a emancipação individual de constrangimentos comunitários, a proximidade
cultural e sobretudo a conquista de uma posição relevante nos países de acolhimento, com a inerente
comparação de ganhos e perdas entre o retomar do tradicional modo de vida camponês e o novo padrão
adquirido. Acresce que tanto para homens solteiros como para (recém)casados a dificuldade de resistir a
uma prova de separação tão prolongada induzi-los-ia a ficar enleados em relações amorosas e afectivas
duradouras com mulheres brasileiras, argentinas ou outras que os desvinculariam progressivamente da
família de origem, da aldeia e de Portugal18. Sem que tal, por vezes, implicasse abdicar de eventuais direitos
sucessórias na sua terra natal, os novos rumos de vida representavam, de facto, a par duma integração sócio-
cultural no país de acolhimento, o efectivo abandono dos seus propósitos ou estratégias de regresso e,
consequentemente, o fim das aspirações de encabeçamento na reprodução ou revalorização da casa de
origem. Quando muito, só no caso de ocorrerem revezes na vida ou se reavivarem as velhas
«saudades»,poderiam regressar décadas depois ou já nos últimos anos de vida19.

Mesmo quando o emigrante não abandonasse de vez a família e a aldeia, acontecia não raramente que as
mulheres dos emigrantes no Brasil e, mais tarde, no Canadá e nos Estados Unidos, só entre cinco e dez anos
ou mais tinham oportunidade de relacionar-se com os seus respectivos maridos e, mesmo assim, mais para
procriar um novo filho(a), enquanto os já nascidos geralmente não (re)conheciam o pai. De certo modo,
marido tinha «morrido» para a mulher e a restante família, sendo neste contexto frequente denominar de
«casadas-viúvas» ou «viúvas de vivos» as mulheres cujos maridos mantinham longas estadas no estrangeiro.
Estas prolongadas ausências, se, por um lado, reduziam a probabilidade de ocorrências de fertilidade
conjugal, proporcionavam, já por parte de algumas mulheres, já sobretudo, por parte dos maridos, não só o
(re)encetar de relações sexuais clandestinas com eventual descendência ilegítima, como inclusivamente,
pelo menos em quatro casos em Líndoso e três em Aguiar, o início da sua desagregação enquanto casal.
Tal como também o atesta, por exemplo, Cepeda (1988:348), contrariamente ao frequente não regresso
e abandono efectivo por parte de velhos emigrantes transoceânicos– aliás não tanto por intencionalidade
inicial dos seus actores mas mais por imponderados factores supervenientes –, o movimento migratório
intraeuropeu é estratégica e efectivamente mais orientado para o regresso, o que, entre outros aspectos
referidos, é susceptível de aferir-se pelo predomínio da migração de curta e média duração (gráfico 28). É
aliás, neste contexto, que os emigrantes, em particular quando em situação vulnerável, tendem a evitar a sua
participação nos movimentos sindicais e a assumir posições extremamente defensivas, refugiando-se em
casa ou reactualizando, sob formas associativas pouco politizadas, as relações de sociabilidade para-aldeã,
designadamente através de jogos de cartas, competições desportivas, festas. Tais expressões, reflectindo uma
espécie de nostalgia pelo «ritmo natural» do tempo agrícola face ao disciplinado sob o capitalismo(cf.
Thompson 1967:57 ss), procuram reinventar a sua identidade passada e, deste modo, resistir, ora utópica, ora
realisticamente, a deixar-se submergir no tempo industrial.
Tal como as respostas dos grupos domésticos inquiridos sobre o motivo do regresso evidenciam (quadro
27) as trajectórias emigratórias eram e são bastante condicionadas pelo retomo à terra. Com efeito, para
52.2% dos inquiridos de Lindoso e 62% dos de Aguiar o regresso foi decidido ou por ter (re)construído a

18
Este seria um dos motivos das periódicas admoestações e desincentivos à emigração por parte de responsáveis do exército e da
Igreja. Os padres chegavam, por vezes, a receber pedidos de informação sobre o estado civil e/ou o comportamento moral deste ou
daquele emigrante pretendido, pormenor este já salientado sobre a paróquia vizinha de na década de quarenta por R. S. Brito
(1948:151).
19
Entre outros, antepassados de L37, 31, e 44, o último dos quais teria declinado os insistentes pedidos familiares de regresso a
Portugal. Quando uma das netas retomou com o avô o contacto por carta, este ter-lhe-ia respondido que teria «ainda direito a uma
parte dos bens na posse da irmã», ao que a família residente em Lindoso teria replicado que cada um ficasse com o possuído por
si no respectívo local de residência. A «vergonha» social duma emigração falhada é bem retratada na figura de Manuel da Bouça
em «Emigrantes» de F. de Castro (1949:234 ss).
Migrações

casa, comprado terreno, aforrado o necessário e/ou ter em perspectiva a obtenção de um emprego, ou a
(re)assunção da actividade agrícola e/ou doutros projectos a levar a cabo no âmbito familiar e aldeão. Por
outro lado, salvo 17.4% e 11.9% dos casos, cujo motivo de regresso forçado dever-se-ia a inesperados
contratempos (desemprego, acidente, doença ou desgaste físico-psíquico, morte de familiar), 21.7% em
Lindoso e 35.7% em Aguiar aduziram como condicionante do regresso os fortes vínculos à família, à
lavoura e à terra, à qual o emigrante se sente ligado por ali ter nascido e/ou crescido e, geralmente, casado,
aspecto traduzido sob o termo saudades. De facto, o emigrante sem família e sem mulher junto de si não só
é colhido pelas saudades como se torna muito mais frágil e desprotegido em caso de doença, despedimento
ou outro contratempo. Dalgumas destas situações deram conta, com certa tristeza e desencanto, algumas
narrativas de histórias de vida, segundo as quais a «solidão» ou as «saudades», a «má sorte» ou «o destino»
seriam responsáveis da abrupta ruptura no corrente ciclo migratório.

Um outro aspecto relevante reside no facto de os regressos não obedecerem tanto a causas conjunturais
económico-políticas da sociedade de acolhimento ou de origem (o Maio de 1968 em França, o 25 de Abril
1974 em Portugal) mas antes constituírem o fim de um ciclo migratório estrategicamente voltado para o
retorno. Com efeito, decisivas nas opções de regresso foram não tanto nem sobretudo razões de ordem
macroeconómica ou estímulos governamentais dos países de acolhimento, o que confirma aliás conclusões
de outros autores (Poinard 1983:33, Pisco e Seruya 1984:68, Reis e Nave 1986:76, Cepeda 1988:296); pelo
contrário, em grande parte, foram os emigrantes já previamente decididos ao regresso que teriam
aproveitado, por exemplo na sequência da circular Stoleru em França, os conjunturais prémios de retorno,
combinados ou não com a percepção da reforma por invalidez ou velhice. Sobrelevam assim, em grande
medida, as estratégias familiares que Poinard denomina como «a quota-parte das determinações
individuais» (1983:39). Desta pertinente constatação seria todavia incorrecto resvalarpara uma interpretação
voluntarista acerca do regresso na medida em que as decisões estratégicas dos emigrantes-camponeses terão
de ser balizadas nos parâmetros do contexto de origem, da economia e da racionalidade (para)camponesas e
dos respectivos meios envolventes.
Se bem que a estada como emigrantes se prolongue amiúde mais que o inicialmente projectado, não só a
já referida duração média de dez anos como sobretudo o local de regresso denotam como as estratégias de
reprodução e/ou reconversão no espaço rural de origem surgem impregnadas de uma identidade enraizada e
de uma orientação afectivo-cultural que, ainda que não directamente económica, acompanha estratégias
económicas ou se reconverte em prestígio e poder locais. Assim, retemperando a interpretação de Cepeda
(1988:381) que liminarmente exclui da esfera económica a afectividade expressa nas «saudades», com estas
se imbricam ou entrevêem estratégias, senão de comando da aldeia, pelo menos de afirmação social, de
modo a reinserir-se e reproduzir, sob fórmulas novas, velhos esquemas de despique traduzidos no tipo de
casa e automóvel, no investimento cerimonial ou no alinhamento em determinada facção política local
(11:5, 13:2). É no quadro desta lógica de inclusão e ascensão social local que quer o motivo de saída, quer o
do regresso se articulam com o local do regresso

244
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

GRÁFICOS 29 e 30: Emigrantes e local de regresso

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Duma leitura dos gráficos 29 e 30 infere-se, para ambas as aldeias, não se verificar uma ruptura dos
emigrantes com o seu local de origem, ocorrendo quando muito uma reorientação (peri)urbana mas próxima
da aldeia, a qual, num contexto de urbanização primária, proporciona um contacto regular com as suas raízes
geo-espaciais. Enquanto apenas urna minoria de 9.5% e 1.6% dos regressados, respectivamente originários
de Lindoso e de Aguiar, parecem, de certo modo, apostar em ganhos económicos e de prestígio na sociedade
envolvente da vila ou cidade, respectivamente 90.5% e 98.5%, em regra destituídos de suficiente capital
económico e sobretudo escolar queos revalorizem na cidade, orientam-se no sentido de reinstalar-se na
própria aldeia. Esta, além de ser o único lugar onde o emigrante pode mais visivelmente afirmar o seu
sucesso e realizar os seus sonhos iniciais, constitui a base de segurança que contrabalançará as inseguranças,
hostilidades ou exclusões vivenciadas no país para onde emigrou mas não se integrou. O seu comportamento
de ostentação nos tipos de carro e nas casas de cores garridas, por vezes com modelos semi-importados,
representa uma compensação do modo anómico, sóbrio e lúgubre da sua vida no período emigratório.
Mais que com as remessas ou as visitas periódicas à aldeia e a sua eventual participação nas festas
aldeãs, é com a (re)construção da casa na aldeia e, sobretudo, com o acto de retorno definitivo que os recém-
regressados, não sem acrescido esforço de readaptação, retomam e redefinem o seu lugar na própria
comunidade, onde os demais conterrâneos lhes reconhecem eventualmente a «façanha», ainda que sob a
forma de inveja. A predominância do regresso à terra natal ou de residência é, já por si, um indicativo de
como a orientação afectiva-emocional da racionalidade tradicional camponesa pesa ainda sobremaneira nas
estratégias fundiárias dos (ex)camponeses regressados: «É a terra que acorrenta a mulher a ficar cá e agora
é a terra que me puxa a voltar depois de anos de suor na França. É ainda a terra que nos vai matar depois
de trabalharmos tanto para a conseguir» (A78).

Independentemente das respostas relativas ao motivo e ao local de regresso, um outro indicador dum
forte apego e identificação com o valor da terra e dos demais bens no quadro da comunidade de origem é o
facto de a posse da terra ter sido adquirida graças às poupanças migratórias: 7.3% e 9.8% de modo exclusivo
e 24.6% e 51.7% concomitantemente com a herança (gráficos 15 e 16). Esta vertente, sobretudo por parte
dos moradores outrora não possidentes, deve ser entendida no processo de transição do seu anterior estatuto
dependente na porfia por uma (re)classificação e uma autonomia sociais, particularmente face aos seus
antigos patronos-patrões, como já o observaram alguns autores, entre os quais Antunes (1981:20 ss), Silva
(1987:436) e Gonçalves (1989:126 ss).
Salvo casos excepcionais, esta reclassificação social dos antigos moradores pobres tem com certeza os
Migrações

seus limites no sentido ascendente. Desprovidos de instrução escolar, com reduzido capital e, não raro, com
idade bastante avançada por altura do retorno, dificilmente poder-se-iam permitir a aventura de um
investimento de alto risco, cingindo-se a (re)tomar a tradicional condição camponesa. A realização do seu
sonho restringe-se predominantemente à (re)construção da casa, ao acesso ou aumento de bens fundiários e à
aquisição de determinados bens de produção e de consumo, se bem que, para maior justeza, importa
diferenciar mais uma vez as trajectórias dos «brasileiros» e dos «franceses». Se, em relação aos primeiros o
seu regresso era, em regra, sinal de sucesso, sobre os segundos torna-se pertinente questionar até que ponto e
em que condições as estratégias de reconstituição, reconversão e mobilidade social ascendente se têm
tornado possíveis. Tal exige uma análise da idade de regresso, do volume de capital fundiário e/ou
monetário e, eventualmene, da compra de gado e equipamento, da implementação de benfeitorias e,
sobretudo, do investimento escolar com os filhos. Começando pela idade dos regressados e correlacionando-
a com o tipo de actividade exercida após o regresso, foram obtidos os seguintes resultados:

QUADRO 28: Idade e actividade após o regresso

Legenda: (a) agricultura tradicional; (b) comércio; (c) assalariado no sector secundário; (d) funcionário/ empregado nos serviços;
(e) (pequeno) empresário.
Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Em termos globais, dos casos constatados, os escalões na pirâmide de idade dos regressados de Lindoso
apresentam uma configuração algo distinta da de Aguiar: enquanto em Lindoso 53.2% dos «cabeças» de
casal regressaram com menos de 50 anos, até esta idade em Aguiar tinham-no feito 92.5% dos regressados.
Se os regressados com mais de 50 anos dificilmente aspirarão realizar projectos em moldes diferentes da
policultura agrícola tradicional, os de idade inferior, situando-se ainda em período de vida activa, poderiam
ainda, pelo menos teoricamente, tornar-se pequenos empreendedores e assim reanimar a vida económica
local. Todavia, salvo casos excepcionais, a sua realização acaba por ser embaraçada, não só por factores
inerentes à sua específica racionalidade, designadamente a minimização de risco empresarial, como
sobretudo pela ausência de projectos de desenvolvimento regional e incentivos governamentais ou
autárquicos. Terá sido aliás este último factor, juntamente com outros (algum grau de integração,
qualificação ou melhor remuneração no país de acolhimento), que tem pesado na decisão de alguns no
sentido de «aguardar» ou «ficar» e (ainda) não regressar.
Fixando-nos especificamente no tipo de actividades exercidas pelos ex-emigrantes e coordenadores de
suas casas, do quadro 28 se infere, em primeiro lugar, que respectívamente em Lindoso e em Aguiar 76.6%
e 60%, retomando a actividade agrícola e/ou pastoril, gerem, em regra, de modo tradicional, a terra herdada
e/ou comprada, introduzindo quando muito pequenas inovações e benfeitorias e utilizando a máquina em
vez da energia animal. Além de alguns ex-emigrantes idosos – os quais, além de viver de pensões de
invalidez ou velhice e, eventualmente, de juros de poupanças, se limitam a cultivar umas leiras em moldes
tradicionais –, respectivamente 10.6% e 17.5%, sendo assalariados em sectores não agrícolas, combinam

246
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

com a sua actividade principal uma efectiva, ainda que parcial, ocupação agrícola. Dos restantes, 12.8%
e22.5% reconverteram-se, em novos moldes, a um estatuto de pequenos empresários no comércio, na
construção ou na indústria têxtil20.
A realização destas estratégias, além de compensar de certo modo os sofrimentos e as eventuais
vivências de exclusão social nos países de emigração, tem o condão de, numa lógica de inclusão
comunitária, mostrar a sua ascensão social e, consequentemente, redefinir o seu lugar para cima,
retraduzindo-o tanto em aspectos materiais como em gestos de prestígio e posições de domínio tais como ser
«benemérito» da paróquia, ser festeiro, possuir na igreja uma determinada cadeira com almofada de veludo,
ocupar um posto na chefia aldeã.
Se mentalmente nem todos os «franceses» regressavam com esquemas de hierarquização, os
«brasileiros», uma vez retornados, sobretudo quando originários da classe dos lavradores, denotavam, pelo
menos, na última fase do percurso emigratório, uma certa atitude de desafio no sentido de (re)ocupar social e
politicamente os primeiros lugares na aldeia. Foi graças ao relativo sucesso no Brasil, na Argentina e/ou
posteriormente nos Estados Unidos ou no Canadá que sete regressados de Lindoso e dez de Aguiar se
reproduziram ou alcandoraram a posições cimeiras locais como lavradores-proprietários ou, ainda, se
reconverteram a merceeiros, comerciantes ou prestamistas locais. Para aquém das miragens, os, ainda que
raros mas palpáveis, exemplos de sucesso tornavam-se contagiantes e causavam impacto, reforçando a auto-
imagem dos seus protagonistas e constituindo para os demais moradores um acicate para imitar a «proeza».
Não presenciando a sorte dos emigrantes que, no país receptor, morriam ou ficavam na penúria, os
conterrâneos, admirando e representando-se mais as «odisseias» dos que regressavam21, invejavam e
fixavam-se sobretudo nas casas que construíam, nas terras que compravam, no dinheiro que emprestavam e
nos garridos fatos claros que vestiam.
Salvo alguns casos excepcionais (A141), os emigrantes ex-criados, ex-jornaleiros, pequenos
camponeses e seus respectivos filhos, mais em Lindoso que em Aguiar, coarctadas as possibilidades de
investimento produtivo maior, tão pouco têm denotado expectativas muito além da sua condição, a não ser
aspirar, sem grandes voos nem ilusões, a uma vida mais desafogada e, se possível, subir a um escalão
imediatamente superior ao possuído. Para tais limites, segundo o relato dalguns reformados por idade e
regressados na década de setenta, teriam contribuído não só os baixos salários de então e, sobretudo, uma
menor cotação da moeda estrangeira face ao escudo até 1974, como também a idade e, por vezes, os
«desvarios» de emigrantes ciosos de ciosos de compensar um tanto os sofrimentos do passado: «Eu não
enriqueci pois achava que também devia de viver a vida. Metia-me muito com as gajas lá na França e,
claro, nunca dava para juntar muito. Mas felizmente consegui trazer uma pequena reforma de Franca que
me dá para viver» (L48).
Já, porém, emigrantes filhos de lavradores autosuficientes, especialmente três em Lindoso e sete em
Aguiar, levaram em princípio vantagem sobre outros quando, não necessitando investir as suas poupanças
para construir casa ou comprar o mínimo de terra para se auto-reproduzirem, libertaram as suas poupanças
para adicionais transacções fundiárias ou outros pequenos empreendimentos: agrícolas, industriais,
sobretudo de construção civil, e comerciais.
O facto de os emigrantes originariamente possuidores de casa e demais recursos fundiários deterem
sobre os destituídos de tal algumas vantagens não significa todavia haver, em termos de realizações práticas,
uma necessária linearidade entre a origem de classe e a magnitude de projectos ou investimentos. Alguns ex-
criados e ex-jornaleiros não herdeiros, forçados a abandonar a aldeia, mormente quando sobre eles pesavam
os estigmas da ilegitimidade e da baixa «consideração» social, têm denotado espírito de iniciativa e
empreendimento por vezes superior ao dos seus congéneres camponeses detentores de terra, tal como o
exprimiu um dos seus protagonistas em Aguiar: «Hoje considero-me satisfeito por os meus pais, sendo
pobres, não me terem deixado nada. Se tivesse tido duas leiras, teria ficado agarrado à terra e não teria

20
De referir, entre os empre,ernledlon:sde familiar, as casas: A136 e 141 na agro-pecuária, All l e 112 no negócio de gado, L3, 109
e A46, 83, 140 no comércio não agrícola, genro de Al48 em garagem e oficina de carros, A22 e 114 na indústria de madeira, Ll2,
13, 109 e A41, 60, 122, sucessores de A19 e 68 na construção civil e, ultimamente, na indústria têxtil, estes últimos assalariando,
de modo irregular e, por vezes, sem êxito empresarial, três a quatro operários quase a título de companheiros de trabalho.
21
Para o século XIX, nível nacional., Pereira (l 981:33) aponta, para o período de 1864 a J 872, entre 30 a 40% de regressados,
embora nesta taxa se incluam não só os casos de sucesso mas também os de insucesso.
Migrações

saído da "cepa torta". Tive que sair e foi deste modo que consegui "safar-me" na vida» (Ae39).

Questão pertinente e por certo relacionada com o já referido motivo de retorno e o tipo de actividade
após o regresso é a relativa ao destino das poupanças, sendo neste aspecto relevante saber em que medida e
até que ponto, pelo menos, alguns ex-emigrantes poderão tornar-se agentes de pólos de desenvolvimento
agro-pecuário e industrial:

QUADRO 29: Destino predominante das poupanças

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

O facto de ter aplicado (mais) poupanças numa vertente não implica o não investimento noutras. O
destino das poupanças segue normalmente uma lógica de prioridades: em primeiro lugar, trabalha(va)-se e
poupa(va)-se em função das necessidades imediatas da casa, tornando premente o eventual pagamento de
dívidas e, minimamente, o próprio sustento familiar, embora este ficasse mais a cargo da esposa.
Seguidamente, se oemigrante «brasileiro», sobretudo quando herdeiro de casa, orientara o aforro mais no
sentido de comprar terra, o «francês», em regra, sem descurar a compra de terra, gado e equipamento,
procura(va) (re)construira casa e obter alguns ganhos de juros derivados de depósitos a prazo. Com efeito,
do total de «cabeças» de casal emigrantes, ressalvando 5.6% em Lindoso preocupados com o pagamento de
dívidas contraídas na sequência da compra de casa e/ou terras, 79.8% em Lindoso e 85.9% em Aguiar, além
de fazer alguns depósitos bancários, destinaram as poupanças, por um lado, a objectivos não reprodutivos
tais como (re)construir casa e/ou comprar outros bens de consumo (automóvel, electrodomésticos) e, por
outro, comprar terra incluindo nesta rubrica o pagamento de tornas a irmãos ou ainda a aquisição de
quinhões de heranças doutros vizinhos, igualmente emigrados. Por fim, uma parte considerável de
emigrantes tem dedicado uma porção das suas economias à realização de benfeitorias (vinha, ramadas,
poços) e, sobretudo, à compra de gado e equipamento simples ou mecânico. Por exemplo, seis dos oito
tractores existentes, em 1985, em Lindoso e dez dos vinte em Aguiar foram comprados por emigrantes. Por
conseguinte, os emigrantes se, por um lado, têm coadjuvado à inflação dos preços de certos produtos e, em
especial, da terra22, por outro, apesar de impossibilitados, em regra, de acumular elevados volumes de
capitais e transformar-se em agentes de investimentos directamente produtivos, têm contribuído, a seu

22
A «sede» de terra por parte de emigrantes, além de implicar uma monetarização da economia agrícola, acarretou um aumento da
procura e, consequentemente, uma elevação do preço da mesma, fenómeno visível, em particular, para o recente período em
ambas as aldeias. Por exemplo, entre 1975 e 1985, enquanto o índice de inflação anual oscilava entre 25 e 30%, o preço da terra
passaria de 60 a 70$00 o metro quadrado em 1975 para 400 a 500$00 em 1985, ou seja, subiria a uma média de 66 a 71 % ao ano.
248
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

modo, para revitalizar as suas explorações e tornar a sua aldeia e as suas famílias mais prósperas (quadro
31).
À excepção dos referidos pequenos empreendimentos nos ramos da construção civil, da indústria têxtil
e sobretudo da agro-pecuária – aliás nem sempre optimizados em termos empresariais modernos –, no
horizonte estratégico dos ex-emigrantes têm sido praticamente inexistentes projectos de investimento agro-
pecuário ou industrial de relevo, para o que terão contribuído a falta de incentivos oficiais e/ou a situação de
relativo isolamento geográfico. Se há famílias que, investindo as suas modestas poupanças sobretudo em
gado, equipamento e terra, se apropriam, reforçam ou reestruturam as respectivas economias camponesas ou
artesanais, outras, com mais recursos monetários, canalizam parte ou a totalidade do capital-dinheiro para a
compra não tanto de terras de lavradio, mas antes de pequenas quintas, comércios ou prédios urbanos com
intuitos negociais (L24; A83, e46, e48).
Se, na óptica dalguns grupos domésticos outrora desprovidos, designadamente de Lindoso, os seus
emigrantes intraeuropeus têm «mostrado» mais obra na terra que os transatlânticos, importa entretanto ter
presente que, além da polarização entre emigrantes e não emigrantes, subjaz uma latente emulação ou até
um manifesto despique entre os dois tipos de emigrantes. Enquanto os primeiros, com menor volume de
poupança e qualificação, orientam as suas estratégias de regresso em função do trabalho e dum melhor lugar
a (re)ocupar na aldeia, alguns dos transatlânticos, originariamente mais providos, não encontrando condições
de investimento óptimas, evitam hoje retomar o modo de vida agrícola pouco ou nada rentável. Por isso, não
raro estes últimos, ora tencionam permanecer nos países receptores, reconvertendo-se alguns em pequenos
empresários de construção (L24, 121) e transporte (L109), ora projectam, ainda que de modo embrionário,
(re)lançar-se em empreendimentos de maior envergadura e com melhores condições de investimento em
cidades mais próximas do litoral ou em grandes centros urbanos em Portugal, o que igualmente os liberta de
constantes obrigações morais para com familiares e conterrâneos.
Os moradores designadamente migrantes, evitando comprometer-se com projectos de certo risco, fazem
e, sobretudo até 1985, faziam dos depósitos bancários o eixo seguro e multiplicador das suas poupanças.
Além das realizações corpóreas e visíveis, foi feita, na medida do possível, uma sondagem relativamente ao
montante dos depósitos bancários, informação esta fornecida pelas próprias famílias ou obtida, por via
indirecta, de informantes locais:

QUADRO 30: Famílias e depósitos bancários

Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Se bem que o número de casas em Lindoso sobre as quais não foi possível obter informações no
delicado aspecto da sua situação financeira seja bastante elevado (74,2%), dos casos apurados se infere que,
respectivamente em Lindoso e em Aguiar até 1985, 65.6% e 64.9% conseguiram fazer poupança bancária e,
Migrações

de entre estes, 90,5% e 53.l % eram emigrantes, dos quais 84.2% e 90.2% depositaram, pelo menos, entre
101 a 2.000 contos e 15.8% e 3.9% entre 2.001 e 10.000 contos.
Com efeito, as estratégias camponesas centradas na emigração desdobram-se numa dupla vertente:
emigrar para juntar dinheiro mas simultaneamente com objectivo bem claro de regressar. Por um lado,
28.5% de emigrantes de Lindoso e 15.6% de Aguiar procuraram manter-se legais no estrangeiro, de modo a
que, através da «carta de chamada» ou na base do mecanismo do reagrupamento familiar, pudessem a todo
momento gerar sucessores-emigrantes a partir das relações de parentesco, dando assim continuidade ao
sistema de poupança familiar. Por outro lado, tornando-se imprescindível velar pela continuidade da casa e
pela transmissão do património familiar, urgia e urge todavia, nomeadamente para a mulher, que a
emigração do marido não se transformeem abandono definitivo da família e da terra. Em caso de existirem
apenas filhos menores no estrangeiro, são bem comuns as tentativas de preparar o regresso definitivo, de
forma a evitar que os filhos e sobretudo as filhas, casando com estrangeiros, se desvinculem do país de
origem, fiquem afectiva e culturalmente presos ao país de acolhimento, acabando por não os assistir na
velhice em Portugal.
Se, no trajecto emigratório, os próprios pais-emigrantes, escolarmente, pouco ou nada progrediram, já a
respeito dos filhos uma tal preocupação é hoje bastante mais acentuada, sobretudo quando há vários filhos e
a terra passível de herança não é abundante nem susceptível de tornar viáveis diversas explorações. Havendo
dois e, particularmente, um único filho, a promoção educacional deste(s) pode justamente significar o vazio
da casa ou o abandono da exploração, facto que alguns dos entrevistados revelaram temer.
Nas famílias em que a educação escolar dos filhos funcione como estratégia, senão básica, pelo menos,
complementar das poupanças migratórias, torna-se imperioso que, estando também os filhos emigrados,
estes retomem de preferência na companhia da mãe ou familiares, a partir dos 12-16 anos, os seus estudos
secundários e/ou superiores no próprio país de origem. No caso de os filhos, qualificados ou não, se
manterem no estrangeiro, importa que, tal como se observou, economizem ao máximo no menor tempo
possível para posteriormente, casados ou não, regressarem a Portugal.
Nem sempre nem totalmente as perspectivas dos pais coincidem com as dos filhos, em particular
quando estes, já crescidos e socializados e, não raro, nascidos no país receptor, ignoram o anterior modo de
vida dos pais e, ao habituarem-se a novos padrões de vida e enraizarem algumas amizades nomeadamente
nos círculos escolares, denotam uma maior (pre)disposição à integração que os pais. Abstraindo de 68.5% e
67% das casas que ou não emigraram ou não possuem filhos em idade crítica de regresso, de breves
conversas informais com jovens emigrados, além da opinião de familiares nos inquéritos locais, foi possível
apurar que, entre os filhos de 39 famílias emigradas de Lindoso e 50 de Aguiar, 64.1 % e 68%
respectivamente secundam as expectativas de regresso presentes nos pais. Os restantes 35.9% e 32%,
enleados em determinados contactos e amizades de infância e juventude ou seduzidos pelas condições de
vida envolventes, sobretudo quando a sua formação profissional lhes garante melhores possibilidades de
trabalho e promoção, preferem manter-se indefinidamente no país de acolhimento.
Se os modos de vida das novas gerações saídas da vaga emigratória dos anos setenta e oitenta,
particularmente casais jovens, traduzem um processo de «descamponização» (Sayad 1977:65), os filhos dos
primeiros emigrantes chegados a França, à Alemanha e a outros países europeus, denotando um titubeante
mas crescente grau de desenraizamento, encontram-se emocionalmente entalados e divididos entre a cultura
dominante dos países receptores e as tradições e os valores veiculados pelos pais23.
Dado que os sistemas de disposição juvenis originados no contexto sócio-cultural dos países de
acolhimento não os impelem a regressar e, menos ainda, a assumir o perfilde agricultor, é justamente neste
ponto que poderão sofrer o seu maior abalo e ameaça as estratégias de reprodução por parte dos pais. Jovens
emigrantes, por um lado, emancipando-se ou distanciando-se dos constrangimentos da tradicional
comunidade de origem, apenas visitam e, não raro, de fugida as aldeias de seus pais; por outro,
desenraizados da comunidade, diversificam os seus contactos, assumem diferentes critérios de selecção
matrimonial e, por vezes, operam um certo corte com o modo de vida e a mentalidade dos pais. Por sua vez,

23
As tentativas programáticas dos países de emigração no sentido de instaurar uma política de «interculturalismo» e do «direito à
diferença» como etapas transitórias da integração das minorias nacionais de emigrantes vêm sendo diagnosticadas com algum
êxito e múltiplos fracassos (cf. Trindade e Arroteia 1986:23 ss).
250
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

os pais, vivendo, como refere Trindade (1976:983) «em situação dipolar», vêem-se, perante as estratégias
dos próprios filhos, obrigados a reconfigurar os seus projectos iniciais e, senão a eliminar, pelo menos a
suspender, adiar ou reajustar as suas estratégias de regresso, chegando este a tornar-se incerto, obsessivo
mas não definitivo. Mantendo-se como preocupação principal um melhor futuro para os filhos, apesar de
deslocados e até, por vezes, discriminados, bastantes dos pais-emigrantes, não obtendo nem um modo de
vida relativamente autónomo nem a compensação de uma profissão com menor esforço físico, ou enviam os
filhos para junto de familiares para prosseguir os estudos em Portugal ou aguardam que os seus filhos/as,
com os menores custos possíveis, se formem no estrangeiro para profissões mediana ou superiormente
qualificadas que os afastem de trabalhos árduos e pior remunerados.

De modo geral, e para além de se terem verificado alguns poucos casos de mobilidade social ascendente
no seio da estrutura social, é sobretudo de realçar o facto de ter sido graças às poupanças migratórias que
algumas situações de extrema pobreza visíveis até à década de sessenta abrandaram e que a disparidade no
acesso a certos bens de consumo (electrodomésticos, rádios, televisões) entre rurais e citadinos em parte se
atenuou. As famílias de emigrantes inquiridas têm assim conhecido novos padrões de consumo e, de modo
geral e comparativamente ao passado, um relativo bem-estar sócio-económico, tal como o confirmaram nas
suas respostas.

QUADRO 31: Famílias: emigração e condições de vida

Legenda: (a) melhorou; (b) estagnou; (c) piorou; ha = hectares.


Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

Do quadro 31 se lê que, em termos globais, respectivamente em Lindoso e em Aguiar 60.5% e 74.2%


das famílias teriam melhorado as suas condições de vida. Porém, diferenciadas as posições de emigrante e
não emigrante, verifica-se que, enquanto entre os emigrantes tal percentagem de melhoria se eleva a 70.9% e
90.6%, entre os não emigrantes ela reduz-se respectivamente para 33.3% e 62.1 %.
Destes índices de respostas e comentários sobre os seus trajectos migratórios poder-se-á inferir que a
maioria dos emigrantes, não obstante os sacrifícios passados, mostra um relativo grau de satisfação com a
decisão de ter partido e regressado. Quer em Aguiar, quer em Lindoso era frequente ouvir de emigrantes,
nomeadamente já regressados, comentários que dão conta da mudança de sua posição relativa na aldeia: «O
que nos valeu e ainda vale é o dinheirinho que tem vindo de fora. Se não fosse a emigração, comíamo-nos
uns aos outros, morríamos de fome ou continuaríamos escravinhos...» (L48).
Migrações

Embora mantendo-se uma certa desigualdade nas posses fundiárias, foi graças às remessas e poupanças
da (e)migração obtidas por esforços suplementares que os não possidentes de outrora conseguiram uma
razoável melhoria social, não só em termos de alimentação e vestuário, aquisição de casa, carro e outros
bens de consumo, como inclusive de formação profissional e de educação escolar dos filhos. Estas melhorias
provocam, de modo muito mais acentuado que nos anteriores regressos dos «brasileiros», uma relativa
desestabilização de lugares em várias famílias de médios e abastados lavradores. Sob a linguagem da inveja,
diversos moradores não emigrantes, sobretudo lavradores, tendem ora a questionar a capacidade
empreendedora dos regressados, ora a· censurar alguns «desvios» comportamentais dos emigrantes e de seus
filhos perante os padrões tradicionais, designadamente nas suas atitudes em relação ao trabalho e ao lazer,
nos modos de estar e relacionar-se nos locais públicos (igreja, café), nos estilos de vestir, nos gostos da dieta
alimentar e, sobretudo, no que é localmente assumido como extravagância e esbanjamento: «Hoje os
emigrantes vivem à grande e à francesa. Na taberna já não bebem vinho cá da terra. Só querem cerveja,
vinho do Porto ou whisky» (A102).
É, em consequência da relativa melhoria, do reforço ou até da ascensão da sua posição social, que se
torna visível, nos indivíduos mais necessitados de outrora, um determinado pundonor e autonomia perante
os seus antigos patronos, a qual é por estes publicitada como atitude de «basófia» ou «vaidade». Sem
pretender questionar ou eliminar as raízes do velho quadro de exploração e opressão locais, os objectivos
dos ex-criados e ex-jornaleiros migrantes centram-se, senão em desalojar, pelo menos em ser cooptados para
os escalões mais elevados da hierarquia local. O facto de nem sempre serem «respeitados» e, por vezes,
sentirem-se até «discriminados» no seu próprio país ou aldeia, como referem, não se deve tanto a ser «alvos
predilectos da baixa política local», como qualifica Cepeda (1988:365) nem às suas manifestações «anti-
sociais» de riqueza, como sugere Cabral (1989: 177), mas mais, tal como o sublinharam Poinard
(1983a:282), Silva e Van Toor (1982:227), M. V. Cabral (1983:220) e Gonçalves (1989:140), ao facto de as
suas novas posições de relativo sucesso desafiarem hoje as dos demais grupos sociais nomeadamente os
antigos e instalados lavradores-proprietários. Estes, já não conseguindo dominar aqueles, apresentam-nos
com espanto e admiração como exemplos de sucesso, mas no fundo procuram denegri-los ou, tal como o
exprime o ex-criado e emigrante bem-sucedido Telo, «mordê--los» pela calada: «Ontem era desprezado,
hoje sou invejado. Antes era um pobre diabo, agora sou um vaidoso. Alguns cá da terra ficariam bem
satisfeitos se o avião que amanhã me leva de volta aos Estados Unidos se despenhasse (L80).

Em suma, a emigração, designadamente intraeuropeia, vulgarizando-se, representou uma melhoria


generalizada das condições de vida das famílias emigrantes e contribuiu decisivamente para imprimir novos
hábitos na esfera do consumo, verificando-se, em ambas as aldeias, mais um processo inicial de
modernização e monetarização que de desenvolvimento auto-sustentado.

*
**

Se bem que causado por factores exógenos e endógenos da estrutura social local, o êxodo rural, pelo seu
carácter e pela sua dimensão maciça, repercutiu também sobre aquela efeitos positivos ou negativos,
conforme a perspectiva dos actores em causa. Independentemente do facto de os grupos domésticos mais
necessitados e dependentes de outrora terem conseguido ou não, pela emigração, ascender socialmente ao
estatuto de camponeses autónomos ou outro congénere, importa salientar que o fenómeno emigratório
representou, na sua linguagem, a sua «salvação», ou seja, a libertação da miséria e a melhoria das suas
condições de vida. Consequentemente, a mobilidade geográfica dos mais desprovidos, ao contribuir para a
desintegração das estruturas tradicionais, acabou por favorecê-los em termos sociais, quebrando um tanto a
inamovibilidade e a rigidez das barreiras hierárquicas e diminuindo de certo modo o poder de outrora
incontestável dos patronos e, em geral, dos médios e abastados lavradores. Os poderes estabelecidos
perderam grande parte do controlo sobre os moradores subordinados em favor de sectores e instituições não
agrícolas, tal como se confirmará em 12:2 e 12:3.
252
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação

Entre os regressados poder-se-ão distinguir dois tipos: os que, além de eventualmente reconstituir a
forma de vida camponesa, combinam esta com o «gozo» das pensões de reforma por invalidez ou velhice e
os que pretendem alterar o seu anterior e tradicional modo de vida rural e, na medida do possível, recomeçar
novo tipo de vida em Portugal. Há, no entanto, a sublinhar que, sobretudo a partir dos finais dos anos
oitenta, um número crescente de emigrantes adia o regresso e não troca o seu relativo conforto no
estrangeiro por condições de vida incertas e/ou precárias em Portugal.
Se a emigração representou para a maioria dos seus actores uma alternativa à situação de penúria e
precaridade e, como tal, uma fuga conjunta a situações de dominação, ela significou também um obstáculo à
acção colectiva. Agindo cada um dos moradores dependentes em conformidade com as suas estratégias de
sobrevivência e melhoria de condições de vida, a emigração teria como efeito amortecer as
crescentestensões sociais tanto a nível local, como, dados os efeitos multiplicadores do êxodo, a nível
regional e nacional.Ao avantajar-se economicamente em capital-dinheiro sobre algumas famílias de
lavradores, alguns dos emigrantes viriam a conquistar na aldeia uma posição «invejada» por aqueles que, na
sua atitude simbólica de não se rebaixarem emigrando nem terem investido escolarmente com os filhos,
vêem o seu poder e prestígio locais, senão derrubados, pelo menos abalados. Se há lavradores que têm
acumulado fundos e implementado inovações ou melhoramentos nos métodos de cultivo, outros pautam-se
por hábitos e padrões de vida antigos, mostram-se fortemente reactivos e susceptíveis perante a ascensão
social dalguns dos seus servidores e clientes.
Migrações

Casa de emigrante, Lindoso (foto 29)

Podando a vinha, Aguiar (foto 30)


254
Estratégias e Modos de Reprodução e Transformação
PARTE IV

CAMPONESES, IGREJA E ESTADO:


OS MEDIADORES

256
Tendo sido a Igreja a primeira e a mais duradoura ocupante das aldeias lusitanas desde a Baixa Idade
Média, a sua acção e doutrina religiosas só poderão ser devidamente interpretadas à luz da estreita relação
entre a religiosidade pré-eclesiástica e a oficial católica e de ambas face aos poderes políticos
designadamente locais.
Também em Lindoso e em Aguiar, a religião vivida pelos seus habitantes, apesar de tratar-se de uma
realidade incorporada, poderá, enquanto quadro co-estruturante do seu lugar e da sua acção na sociedade,
contribuir para desfazer equívocos e ser-lhe reconhecida a sua especificidade e valor próprios. Todavia,
enquadrada a religiosidade popular pela doutrina eclesiástica oficial e respectivo aparelho administrativo, a
relação entre ambas caracteriza-se por convergência, dissidência ou mesmo contestação, elementos estes de
incidência política.
A política local, não obstante encerrar uma dinâmica própria interna, reage e/ou sofre contudo
igualmente a evolução e o impacto da macropolítica regional ou nacional, ora (re)adaptando-se aos
respectivos blocos de poder externos e suas pressões e influências. Daí, além duma breve panorâmica
histórica do patrocinato em Portugal, a necessidade de dar conta das vicissitudes do poder local e da sua
relação com as instituições municipais e estatais.
Transpondo-nos para o Portugal contemporâneo – sobre o qual aliás escasseiam estudos sobre o
clientelismo1– e tendo em conta o processo de formação e centralização do Estado-Nação, empiricamente
evidente é o facto de ambas as aldeias, embora lentamente, terem sofrido determinadas mudanças na sua
configuração, bem como no seu relacionamento com o exterior, o que nos remete para a seguinte questão:
que vias e métodos tornaram possível a intromissão das instituições camarárias e estatais, que actores
internos se aliaram ou se prestaram a colaborar com as forças exteriores interessadas nos referidos processos
de mudança e submissão?

Uma outra dimensão do poder local prende-se com o modo de construção de redes conducentes ao
exercício do poder clientelar desde a sua enxertia nas relações parentais, passando pelas funções de
providência social, até às de mediação face à sociedade e aos poderes envolventes. Só por ingenuidade pia
se poderia aventar a hipótese de tais funções serem exercidas num quadro de generosidade gratuita,

1
Em Portugal as relações clientelares têm sido pouco focalizadas como objecto de estudo, sendo todavia de mencionar, entre
breves referências e alguns artigos, Cutileiro (1977:271 ss), Riegelhaupt (1979:519 ss), Sobral e P. Almeida (1982:649 ss); Pinto
(1985:395-400), Almeida (1986:363 ss), F, Lopes (1991:127-137) e nós próprios (Silva e Van Toor 1982:212 ss, 1988:66-70,
Silva 1987:437-445).
caritativa ou filantrópica, o que exigirá determo-nos nos dividendos destas operações medianeiras.

A prédica e o êxtase, Aguiar-Balugães (foto 31)

258
A devoção a Santa Madalena, Lindoso (foto 32
Crença e Poder

CAPÍTULO 11

CRENÇA E PODER

Aguiar e sobretudo Lindoso, sendo colectividades com uma diferenciação social relativamente fluida,
constituem também universos religiosos, cujos actores vivem e, em especial até aos anos setenta, viviam
com intensidade práticas religiosas colectivas de cunho predominantemente católico.
Dependentes da natureza e das vicissitudes climatéricas, os moradores de Lindoso e de Aguiar
exprimiam e, em bastante menor medida que, por exemplo, há trinta anos atrás, exprimem a profunda
convicção de que uma força anímica e sobrenatural os domina, assim como todos os acontecimentos
cósmicos, entre os quais os fenómenos meteorológicos.
Particularmente até cerca de 1970, assistia à missa dominical a (quase) totalidade dos residentes de
Lindoso e de Aguiar, dos quais cerca de 25% e 33% respectivamente participavam ainda no terço vespertino
na igreja. Era frequente os camponeses orarem, ao atardecer, por uns momentos, às Trindades, durante as
azáfamas do campo e, à noite, em casa, a reza do terço por mais de 60% das famílias de Aguiar e 40% das
de Lindoso era indefectível, prática esta reduzida em 1985 respectivamente a cerca de 10% e de 5% das
casas. Além disso, entre trinta a quarenta pessoas em Aguiar e dez a vinte em Lindoso, sobretudo mulheres,
assistiam, umas regular, outras esporadicamente, às missas celebradas pelas almas dos seus parentes e
conterrâneos falecidos. De resto, pelo menos até 1977, (quase) todos os casamentos em Lindoso e em
Aguiar tinham lugar segundo o ritual católico, seguindo de perto a prática a nível concelhio: 95.9% em
Ponte da Barca e 98,5% em Barcelos (França 1980: 108, 95).

Periodicamente, uma vez por ano, realizavam-se, sob o estrito controlo do padre, tríduos e novenas,
comportando jornadas intensivas respectivamente de três e nove dias, devotadas à meditação, acompanhada
de pregações, confissão e rezas, assim como de orações colectivas para obter favores e graças da Virgem,
dos santos ou directamente de Deus. Neste sentido, levavam-se também a cabo clamores e preces, ladaínhas
e procissões propiciatórias do bom resultado das colheitas, em especial quando os campos necessitavam
prementemente da benfazeja chuva.

Romarias e peregrinações a pé determinados lugares «sagrados» como, por exemplo, os referidos em


8:1constituíam e constituem, no universo religioso regional, acontecimentos física e socialmente
regenerativos. Além de festas anuais como o Natal e a Páscoa, são, porém, as dos santos padroeiros da
freguesia aquelas que representam as expressões máximas de vivência religiosa colectiva: Santa Madalena
no Lindoso e S. José em Aguiar.

Embora desde os anos setenta tenham afrouxado as práticas religiosas, estas apresentam todavia um
índice elevado, tal como se pode inferir do seguinte gráfico:

260
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

GRÁFICO 31: Prática da missa dominical e confissão pascal (desobriga)

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

Das pessoas apuradas com mais de sete anos, residentes e/ou originárias de Lindoso e de Aguiar,
respectivamente 53.4% e 76.6% assistiam ou diziam assistir regularmente à missa dominical, 45.5% e
19.7% de modo irregular e apenas 1.1 % e 3.7% não o faziam de modo algum. Quanto à desobrigaanual, foi
possível saber que em Aguiar cumpriam-na 89.4%. Se, por um lado, o termo desobriga e a diminuição do
seu cumprimento constituíam indícios de esta e outras práticas religiosas estarem imbuídas de um elemento
coercivo, os índices bastante elevados de observância religiosa, denotam que os moradores de ambas as
aldeias eram e são gradamente católicos praticantes, dedicando uma parte considerável do seu tempo aos
costumes, rituais e festas religiosas.

11.1. A Igreja católica: «civilizar» e legitimar

Para além da maior ou menor dosagem de elementos, já religiosos, já profanos, nas relações entre o
poder eclesiástico e o secular nos diferentes períodos da história de Portugal nomeadamente na época
contemporânea (cf. F. Almeida 1970 III:225-336), releva o facto de a religião católica e, em particular, a
Igreja, enquanto instituição, através da acção pastoral, ter desempenhado uma função hegemónica de
regulação social e de inculcação ideológica (M. S. Costa 1985:11 ss), associada a um papel de liderança, já
religioso, já parapolítico. Na trajectória histórica portuguesa, tal tem servido desde a Idade Média para
legitimar e (co)exercer o que Weber denomina a «autoridade tradicional» (1978:226).
O elevado grau de adesão afectiva às práticas religiosas católicas, por um lado, assim como a
persistência de doutrinas e práticas desviantes, por parte de moradores de colectividades como Lindoso e
Aguiar, não podem por certo ser vistos separadamente do papel primordial e aparentemente ambíguo da
Igreja ao longo do seu percurso histórico institucionalizado: protector-dominador, civilizacional mas
domesticador e perante o qual os paroquianos têm balançado entre a submissão e a rebeldia, entre a
aceitação e a dissidência, embora com predomínio da primeira. Se a figura distintiva do sacerdote em
Crença e Poder

relação aos camponeses remonta à formação e ao desenvolvimento das sociedades agrárias pré-românicas,
relativamente ao espaço conhecido por Lusitânia, a implantação do poder eclesiástico católico verificou-se
nos séculos V e VI pela acção da hierarquia episcopal e, em cada freguesia ou aglomerado, através do
respectivo pároco (cf. M. Oliveira 1950:35-63).
A função civilizacional da Igreja seria induzida graças a três ordens de razões e estratégias levadas a
cabo com diferentes tácticas conforme os tempos e os lugares (cf. Goudsblom 1986:17 ss). Uma primeira
residiria na própria presença física, pela qual a Igreja, tendo-se tomado o primeiro visitante-ocupante após a
colonização romana, apresentava os seus discípulos como novos guias que serviriam de modelos exemplares
e correctores dos «perversos» e «degenerados» costumes pagãos. É, aliás, no sentido de converter os
camponeses dados como intratáveis «pagãos» ou «cristãos de ordem inferior» (cf. Weber 1978:471) que,
em regiões de expansão cristã como a Lusitânia e, em particular, a diocese bracarense, bispos e párocos
empreenderam, sobretudo a partir do I Concílio de Braga em 561, enormes esforços doutrinários e pastorais
(desde o tratado De correctione rusticorum do bispo S. Martinho de Dume até às diversas formulações
medievais, nomeadamente a tomista) contra as crenças camponesas consideradas suspeitas: por exemplo, a
bruxaria, o culto do diabo, o reconhecimento de santos não oficialmente canonizados. Se algumas heresias,
encerradas na torre de marfim da exegese teológica, não se impregnaram nas colectividades camponesas,
outras tais como o priscilianismo maniqueísta não teriam sido com certeza alheias às dissidências, às
resistências ou aos levantamentos camponeses das respectivas épocas e localidades. É no quadro da
«vocação universalista» e monopolizadora da Igreja, que a confissão e os demais sacramentos se tornam
imprescindíveis para a «salvação», que as actividades não aprovadas pelo foro eclesiástico são dadas como
heterodoxas e, contemporaneamente, que as doutrinas iluministas, socialistas e comunistas são declaradas
como «blasfemas» e «sacrílegas», «anormais» e «desorganizadas»1.

Um segundo factor em que o representante da Igreja, a nível local, assentava a sua influência consistia
na sua capacidade não só de contribuir à defesa externa de cada colectividade – aliás vulnerável perante
eventuais invasores ou assaltantes de colheitas e reservas cerealíferas –, como de reorganizar o trabalho
camponês, gerir problemas do seu quotidiano e fazer face a crises agrícolas tais como secas, más colheitas,
pragas de bichos ou parasitas. Em semelhantes casos cabia ao padre não só moderar as ambições dos mais
afortunados e refrear os seus ímpetos de acumulação desmesurada, apelando à função de redistribuição na
colectividade, como racionar e sublimar, pela contenção ou proibição, os exíguos recursos alimentares, o
que explicaria, segundo Harris (1990:181 ss, 204 ss), a implementação de certos tabus de interdição e
renúncia, designadamente os preceitos de jejum e abstinência quaresmais. A estas funções de gestão e
conservação acrescia a da sua disponibilidade não só em aplicar parte dos seus rendimentos nas próprias
colectividades, mas também, sobretudo, em informar e transmitir o seu caudal de conhecimentos práticos
das culturas agrícolas e, em especial, desvendar, em proveito da colectividade, alguns segredos medicinais.
Por fim, intimamente associada às demais, uma terceira estratégia basear-se-ia na função sacerdotal, da
qual emergia a figura do padre-pastor que, enquanto difusor de uma doutrina e administrador dos bens da
alma via ritual e sacramental, hierarquizava os espaços sociais e religiosos (por exemplo, as sepulturas dos
fiéis defuntos), dirimia eventuais conflitos e modelava as práticas locais pelo quadro normativo católico. Por
outro lado, como regulador dos afectos dos paroquianos, inculcava-lhes sentimentos de medo, culpa ou
vergonha e, como veículo de socialização, assumia a implementação de iniciativas de carácter pastoral e
social: ensino do catecismo, criação de confrarias e misericórdias e, mais tarde, colégios e escolas. O crédito
obtido pela esfera simbólica não deixaria de repercutir-se na esfera temporar, constituindo, em termos de
Bourdieu (1980:220), a «forma eufemizada» sob a qual se reveste e opera o capital económico.
Este controlo proibitivo-permissivo e supervisor por parte da Igreja não se circunscrevia ao foro moral e
religiosamente normativo, mas incidia de modo interessado no mundo temporar, incorporando-se nas
1
Acerca da secular influência das diversas correntes religiosas em Portugal, cf. J. S. Dias, 1960:8 ss. Ainda até à década de setenta,
para os porta-vozes da Igreja católica portuguesa e, em particular, para os seus tradutores locais como os párocos de Lindoso e
Aguiar, os ateus e os comunistas, sendo a personificaçãodo mal e da criminalidade, do diabo e do Anti-Cristo, estavam automática
e irremediavelmente feridos de excomunhão, como referia o Aviso Sacro, segundo o Decreto do Santo Ofício de 28-7-1949. O
próprio termo comunismo, constituindo por si uma «blasfémia», seria sinónimo de «barbárie» e «libertinagem»! Cada domingo
rezava-se na igreja de Aguiar pela «conversão da Rússia comunista»…
262
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

práticasreprodutivas fundamentais dos grupos domésticos tais como o casamento e a herança em vista da
apropriação e da transmissão da terra. Tal como Goody (1983:205 ss) acentua, foi a Igreja a instituição por
excelência que, desde os finais do século IV, foi configurando a passagem da predominância dos laços de
consanguinidade para os da conjugalidade, colocando o acento tónico nesta última mas condescendendo
com a força imperativa das relações de parentela que, apesar de tudo, persistiria até aos nossos dias. Deste
modo, desde a Idade Média até à época contemporânea, ainda de acordo com Goody (1983:39, 48 ss), tem a
Igreja, através dos mecanismos de dispensas, licenças e proibições, regulado fenómenos tais como
casamentos entre primos, o levirato e o sororato, processos de adopção, separação e/ou divórcio, incesto,
concubinato e bastardia e, sobretudo, processos de doações e testamentos. Relativamente a Portugal,
Rodrigues e Durães (1989:817-831) mostramcomo, até à laicização dos testamentos operada por força da
Lei Testamentária de 9-9-1769 sob o Marquês de Pombal e sobretudo à legislação liberal produzida por
Mouzinho da Silveira a 4-4-1832, a Igreja conseguiu ditar as condições de doar e testar. Ora tal medida,
além de possibilitar aos clérigos reservar uma porção significativa de bens do testador em detrimento de
familiares próximos, representa, com efeito, uma interferência eclesiástica no domínio do doméstico.
Relativamente aos poderes locais ou regionais, em particular os eclesiásticos, importa referir que,
enquanto no Lindoso, dada a mais débil presença de patronos de base económica, as esporádicas mediações
eram mais de tipo administrativo, em Aguiar acresciam marcantes laços de patrocinato regional ou local.
Com efeito, segundo o relato das Memórias Paroquiais relativas ao Lindoso, «não há memória que
florescessem nesta terra homens insignes em virtudes, letras ou armas, é rústica e de montanha» (MPL 11-
3-1758:666). Em contrapartida, quanto a Aguiar, sendo abadia da Casa de Aborim (A. Costa 1868:267),
cabe realçar a influência dalgumas casas mais ricas e, em particular, a sobreposição do poder económico e
religioso-político do mosteiro beneditino de Santa Maria, que emprazava as terras sob o seu domínio a
determinados casais. Com uma relativa autonomia local coexistia, portanto, uma forma de «agradecida
dependência» dos cultivadores colonos ou caseiros, sobre os quais pendiam, além de obrigações de renda,
lutuosas, laudémios e outras tais2, como as impostas aos foreiros Manuel Afonso e sua esposa Joana, os
quais «não procurarão nem aceitarão procurações contra o dito Mosteiro e Religiosos dele aos quais serão
sempre gratos, obedientes e bem mandados, reconhecendo-os por seus directos senhorios…» (EE:10v, 11-
4-1799).

Tem sido, porém, na esfera da crença que a Igreja tem procurado purificar osvestígios animistas e
pagãos da religiosidade popular, a qual se manifestava particularmente no culto e na devoção dos santos
padroeiros. Esta, enquanto prática «utilitária» ou «instrumental» do sobrenatural (cf. Wolf 1966:99, Almeida
1987:232), é já bem antiga em ambas as aldeias, corporizando-se, em regra, numa ermida ou capela de um
santo(a). Sobre a freguesia do Lindoso escrevia o vigário António Ribeiro Fernandes em 1758 que, embora
não houvesse romagens, aí «se costuma festejar o dia dos seus oragos com a assistência dos moradores
desta freguesia» (MPL 11-3-1758:666). E, sobre Aguiar, o seu abade de então, Domingos Vaz, na resposta
ao inquérito, respondia que «...em dia de S. Braz, a três de Fevereiro, vêm a este santo de romaria as
freguesias de Santa Maria de Quintiães e a de Santiago de Cossourado com as suas luzes e guiões, dão três
voltas de redor da Igreja e se recolhem dentro cantando a ladainha dos santos» (MPA 8-4-1758:401).
Seria todavia na época contemporânea que a Igreja, abalada e até não raro acossada pela emergência de
teorias e doutrinas iluministas, liberais, socialistas e comunistas, ver-se-ia na necessidade de reafirmar o seu
papel civilizacional e legitimar a sua autoridade moral e parapolítica nos assuntos terrenos, em particular na
esfera social.

2
Os caseiros podiam, por morte, nomear um filho ou, em caso de não descendência directa, outra pessoa em terceira vida; porém,
o senhorio directo, por receio de eventuais pretendentes ou concorrentes às terras emprazadas, determinava algumas restrições nas
condições de transmissão, nomeadamente quanto à qualidade da pessoa sucessora: «Contanto que esta não seja de maior
condição que eles caseiros emprazados nem das defesas em Direito…» (EE:9 ss, 11-4-1799). Por fim, no caso de
desentendimento ou litígio surgido entre os senhorios e os caseiros a respeito das rendas ou outras causas, estes deverão «...
renunciar a todos os Juízos ou Justiça do seu foro, a todos os privilégios e liberdades a seu favor, poderão ser citados diante do
Juízo do Couto de Tibães, diante do corregedor do Porto ou da vila de Guimarães», onde certamente os senhorios melhor
poderiam mover as suas influências junto das instâncias da Justiça.
Crença e Poder

11.2. Pela vigilância de costumes

Em Portugal, será a Igreja, com interesses patrimoniais e político-ideologicamente implantada na


sociedade rural, a instituição que, pelo menos, desde os finais do século XVIII, com mais força se oporá ao
emergente processo de secularização e de modernização económica e política e, em particular, ao processo
de formação e centralização do Estado-Nação, designadamente quando liberal e republicano, burguês e
moderno (cf. Silva 1987:424 ss). Um tal processo, comportando a ascensão de novos protagonistas e
concorrentes na esfera não só económica mas também política, representaria uma ameaça ao predomínio
tendencialmente monopolizador da aristocracia eclesiástica local. É neste contexto que, quer a nível
nacional, quer a nível local designadamente em Lindoso e em Aguiar, ao longo dos séculos XIX e XX, a
Igreja tem-se configurado como o principal pilar da reemergência e da consolidação do bloco conservador –
mais aristocrático que burguês –, evidenciando o seu papel na orientação não só religiosa como sociopolítica
dos crentes. O posicionamento da Igreja, ora mais fundamentalista e inflexível, ora mais acomodatício e
transigente, dependeu, em larga medida, do contexto político-religioso global e da correlação de forças
locais.

Com a suspensão pelas Cortes Constituintes em 1821 das colações de todos os benefícios e
correspondentes bens paroquiais (censos, foros, passais) e a extinção dos dízimos (primícias, sanjoaneiras)
em 1832 pelo Decreto de 30 de Julho gerou-se, com efeito, para o clero sobretudo beneficiado, como
referem Capela (1984:69 ss) para Barcelos e M. J. Santos (1984:9) para Ponte da Barca, uma situação
financeira aflitiva, aliás reconhecida no posterior Decreto de 19/9/1836. Por exemplo, na Ponte da Barca, do
rendimento total de 2.944.692 réis em 1845 e 3.179.045 em 1872 distribuídos por 25 padres, cada um
recebia em média respectivamente uma côngrua de 117.787 e 127.161 réis, um pouco abaixo da média
estabelecida para o continente: 159.458 réis (M. J. Santos 1984:10, RLCD 1872). Quanto ao pároco de
Aguiar, embora tivesse a vantagem de possuir o segundo passal mais rico do concelho, rendendo 200.000
réis, teria sido igualmente afectado no seu rendimento, dado que um século antes rondava os 300.000 réis
(MPA 8-4-1758:40lv). Torna-se, deste modo, compreensível que a diminuição crescente de rendimentos
auferidos, confinando a Igreja à sua função espiritual (cf. Brandão e Feijó 1979:285), fazia, em regra, de
cada pároco– em particular daqueles para quem o arbitramento das côngruas não tinha reposto a anterior
situação económica – um potencial inimigo do Estado liberal. Como tal, dificilmente se poderá sustentar de
modo linear e categórico que o clero secular se tenha transformado em «clientela dócil dos grupos
dirigentes», como sugere Marques (1981-85 III:117), e, muito menos, tenha constituído, em bloco, um
aliado das classes dominantes sob o Estado Liberal, como sustenta Cabral (1989:227). Os políticos liberais
irão não só afectar as prerrogativas do corpo eclesiástico e tributar, em meia décima, os seus membros
receptores de côngruas (entre 5 a 10$068 réis), como punir eventuais contra-acções dos párocos tais como,
por exemplo, as atitudes permissivas destes em relação aos enterramentos dos mortos nas igrejas em vez dos
cemitérios (cf. arts. 73 e 185 do D.L. de 18-9-1844).

Salvo alguns raros escritos pró-liberais, designadamente os libelos anti-legitimistas de Manuel Leite,
desembargador do Tribunal de Relação, e que deveriam servir de orientação aos visitadores pastorais das
paróquias de Ponte da Barca (CL:33 ss, 18-6-1826), a maior parte da hierarquia eclesiástica era favorável à
velha ordem legitimista. E foi justamente devido à hostilidade de grande parte da hierarquia eclesiástica face
ao Estado Liberal que legisladores como Mouzinho da Silveira e subsequentes políticos tentaram neutralizar
a oposição do baixo clero, procurando, pela concessão de salários, distanciá-lo dos seus próprios superiores
hierárquicos, integrá-lo e gratificá-lo em recompensa da sua colaboração no recenseamento eleitoral, na
tributação fiscal e, sobretudo, pelo seu papel mediador e apaziguador perante as populações. Todavia, uma
parte considerável dos párocos se, por um lado, não alinhava com o poder liberal, por outro, tão pouco
obedecia à sua própria hierarquia. Esta, reconhecendo e lamentando que «muitos eclesiásticos com injurioso
desprezo dos preceitos da Religião de Jesus Cristo contribuiram poderosamente para a usurpação da
Coroa e a destruição da Carta Constitucional da Monarquia» (CL:21, 24-5-1834), via-se obrigada a
suspender «os eclesiásticos que tenham alistado, uniformado e tomado armas em favor da Usurpação,
264
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

contra o Governo e a Legitimidade» (CL:22v, 10-6-1834).


A origem social não burguesa e o periférico de bastantes padres relativamente ao Estado central e, por
vezes, à propria hierarquia eclesiástica, bem como também o próprio engajamento de diversos clérigos nas
revoltas populares de Maria da Fonte e daPatuleia e outras de menor alcance impedem, portanto, a inclusão
generalizada dos mesmos na classe burguesa. Pelo contrário, a sua reacção testemunha uma forte oposição à
ascendência da burguesia urbana e à solidificação do moderno Estado central, oposição que se manifestaria,
tal como referem os seus superiores hierárquicos, num alinhamento ao lado das forças anti-liberais:
«Abandonando as Igrejas e Casas Regulares, seguem as tropas rebeldes de terra em terra, de província em
província, tentando por todos os meios ao seu alcance perpetuar a usurpação e a guerra civil» (CL:22, 23-
5-1834).

Não obstante os abalos sofridos com a emergência do liberalismo, os abades de Aguiar conseguiram,
por comparação com os haveres e rendimentos dos demais contribuintes da colectividade, manter a sua
supremacia patrimonial na medida em que, por exemplo, em 1821, enquanto as colectas ordinárias dos
abades do Julgado de Aguiar oscilavam à volta de 1600 réis, a maior parte das demais casas tributadas
situava-se nos escalões de 1-100 ou 100-200 réis (LDA 1821:13-l 7v). Por outro lado, a Igreja conseguia
supervisionar os assuntos relativos à conservação e à reparação dos seus bens, embora exigindo sacrifícios
aos paroquianos e, em particular, aos juízes das festas, a quem, em caso de incúria ou incompetência na
manutenção da igreja, eram aplicadas multas pecuniárias de dois a três mil réis (LVD 13-8-1824, Li562:6v,
10v). Tais desleixos eram, porém, sinais de certa resistência passiva às directrizes da hierarquiaepiscopal.
Não obstante a ordem de restauração da igreja de Aguiar na sua visita de 13-8-1824, o mestre Escolado
verifica, numa segunda visita a 12-8-1831, não terem sido reparados o tecto e o telhado da igreja «sendo até
escandaloso o pouco cuidado que tem havido de reparar a casa de Deus» (LVD 12-8-1831, Li562:10-10v).

Relativamente a Lindoso, também o visitador Francisco de Araújo, na sua visita de 2 de Maio de 1825,
constatando «o lastimoso estado em que se acha a Igreja e a Residência no que muito se mostra o desleixo e
o desmazelo do (pároco) antecessor»3, não só fazia recair sobre os moradores as despesas das reparações,
como cominava sobre estes multas em caso de incumprimento ou desvio dos dinheiros das esmolas.
Não obstante o esforço missionário nas respectivas aldeias, ainda no século XIX a autoridade moral da
Igreja nem sempre se encontrava totalmente firmada, sendo por vezes ameaçada pelos avanços de «tantos
males que o inferno tem vomitado nos passados tempos pelo infame órgão das sociedades secretas da
maçonaria» (CL:13 ss, 13-3-1825). Neste contexto também, a nível local, se repercutiam as directrizes
religiosas e ideológicas no sentido de «abjurar das doutrinas erróneas e imorais de qualquer sociedade
reprovada sob pena de incorrer na pena de excomunhão e de denunciar todos aqueles que souberem que
estão alistados nas sobreditas sociedades proscritas» (CL:13-14, 13-3-1825). Por exemplo, o vigário
capitular Manuel Ramos de Sá, considerando, na sua circular «o clero como sentinela vigilante da casa do
Senhor», recomenda-lhe para«unir a si o povo inocente»e alerta-o de não se deixar afectar pelo «epicurismo
das sociedades secretas, pela irreligião e pela imoralidade» (CL:16, 28-2-1829).
Paralelamente aos ataques às modernas sociedades secretas, importava, por outro lado, na óptica da
hierarquia eclesiástica, denunciar e corrigir os desvios doutrinários e disciplinares dos povos. Assim,
pretendendo purgar, na medida do possível, as práticas religiosas dos crentes dos «restos de paganismo»,
não só eram proibidos adivinhos, encantadores e feiticeiros(as), assim como não era permitido celebrar
missas ao ar livre ou cometer outros abusos tais como «a superstição e o sacrílego abuso de expor, no fim
dos sermões, a imagem do Divino Redentor à vista do povo, girando-a de diversas maneiras, cercando-a de
indivíduos com aspecto de judeus em acção de flagelar de diferentes modos a sagrada Imagem» (CL:32, 1-
2-1859). Além disso, se no Inquérito Paroquial de 1845 era referida a «irreverência» de moradores para
com o Santíssimo (in M. J. Santos 1984:6), nas décadas posteriores o arcebispo ordenava aos párocos,

3
Em 1829 serão novamente ordenadas ao pároco de Lindoso «algumas reparações na residência» (CL:18v-20, 28-2-1829). No
seu estudo sobre o Inquérito Paroquial de 1845, M. J. Santos (1984: 11) refere o estado lastimoso da igreja do Lindoso, o qual
seria contudo um caso excepcional, uma vez que a manutenção das mesmas nas restantes vinte e três paróquias de Ponte da Barca
seria razoável.
Crença e Poder

concretamente ao do Lindoso, que, nas procissões, não consentissem as velhas práticas de adorno das cruzes
e das sagradas imagens dos santos com flores, jóias de ouro ou prata, em especial as usadas pelas mulheres.
Do mesmo modo anatemizava-se o «supersticioso abuso» de, sob o «pretexto de pedir esmolas», deslocar e
fazer circular as imagens fora dos templos, transportando-as em bestas «juntamente com outros objectos
indecentes» e colocando-as em frente das tabernas com o risco de «sujeitar-se a sacrílegas profanações ou
ser mutiladas» (PTL:38v-39, 16-8-1862; cf. ainda CL 4-6-1872 eCL:42v-43, 24-9-1872). Por isso, o
arcebispo ordenava que «nenhuma procissão ou romaria possa ser feita sem que previamente nos apresente
o programa das festividades e obtenha a nossa aprovação e licença por escrito» (CL:34, 19-5-1859).

Nas esferas ética e disciplinar, além da vigilância ordinária da conduta moral dos paroquianos pela
presença permanente do baixo clero, os moradores eram todavia sujeitos a fiscalizações morais
extraordinárias levadas a cabo pelos já referidos mestres e visitadores episcopais. Diversas circulares,
igualmente aplicáveis aos moradores de Lindoso e de Aguiar «conforme a sua classe» (CL:18, 28-2-1829),
dão conta das práticas desviantes, para o que se tornavam necessários processos de controlo eclesiástico dos
costumes e da observância dos deveres religiosos, uns de carácter preventivo, outros de tipo repressivo. Por
exemplo, nas suas visitas entre 1824 e 1831, o mestre Escolado ora admoestava alguns paroquianos por
«má-língua», ora censurava outros «por trabalhar aos domingos e dias festivos» (VPA 12-8-1931). Quanto
a Lindoso, o visitador Francisco Mexia, além de determinar que se evitassem «fiações, espadilhadas e
esfolhadas que tão nocivas são aos bons costumes», proibia «adjuntos nocturnos de ambos os sexos» e
recomendava aos pais de família que «por princípio algum deixem ir suas filhas pernoitar aos moinhos e às
cabanas montanhosas, onde de ordinário acontecem os maiores escândalos» (VPL:20v-21, 11-1-1830).
Perante o não cumprimento de determinados tabus e proibições, a autoridade eclesiástica apresentava-se
algo flexível quanto a infracções à abstinência quaresmal ou a relações concubinas. Assim, por exemplo,
além de tolerar «comer ovos e lacticínios apenas nesta quaresma» (CL:23v, 16-2-1836), facultava a todos
os confessores aprovados poder de «absolver todos os casos para os quais a bula de Cruzada lhes dava
jurisdição» (CL:23v, 4-3-1836).
De modo análogo, as prescrições eclesiásticas, possibilitando a reparação de situações irregulares,
particularmente as relações concubinas, dispensavam, caso a caso e por pedido expresso e exposição de cada
pároco, o pagamento dos gastos matrimoniais a «pobres miseráveis que não cheguem a ter de seu dez mil
réis» (CL:33, 3-4-1859). Além disso, embora, por um lado, o pároco não pudesse assistir aos matrimónios
dos paroquianos sem a licença episcopal do Juiz dos Casamentos (CL:28v, 3-12-1853), por outro, os noivos
poderiam ser dispensados de certos impedimentos nomeadamente por razões de parentesco, excepto em
primeiro ou em segundo grau de consanguinidade e em primeiro por afinidade (CL:33-33v, 5-5-1859). As
dispensas de impedimentos eram contudo objecto de longo e burocrático processo. Por exemplo, o pedido
dos jornaleiros Domingos Lourenço e Lucrécia Meira foi primeiramente indeferido por tratar-se de uma
relação sexual clandestina; só quando esta se tornou pública, foi emitida a dispensa devido à «fragilidade
humana» e porque, doutro modo, «haverá grande escândalo no povo, ela impetrante, sem casar, ficará
gravemente deformada e, casando, cessará o escândalo» (LDMA:l0v, 16-11-1815).

Com frequência, por denúncia de co-residentes e sobretudo do pároco, os autores de relações de


mancebia ou concubinato, ora adulterino, ora incestuoso, eram publicamente identificados como
prevaricadores, casos esses, que a respeito de Aguiar designadamenteno século XIX, nos chegaram ao
conhecimento mediante as visitas do mestre Escolado4. Por exemplo, a 12-8-1831, os lavradores Domingos
Fernandes Lima, Domingos António, João Gonçalves, Domingos José de Castro, jurando como testemunhas
perante os Santos Evangelhos, denunciam a sua conterrânea Josefa Maria que, não obstante ser casada,

4
De referir, entre outros, alguns casos mais de relações concubinas e/ou adulterinas:
– em 1824, o mestre Escolado censura e regista os casos de relações concubinas de António João, casado com Maria Gomes,
com a viúva Maria; de Manuel Alves com Custódia P. e de Domingos Gonçalves Lanhezes com Luísa Ferroa;
– os lavradores Domingos Meira, Francisco Martins Meira, Francisco Luís Torres e Bento José da Silva declaram a relação de
mancebia que Joana, solteira, filha de Teresa Leandra, mantém com Domingos de Oliveira, casado, da paróquia de Cossourado, de
quem teve filhos (LVD 12-8-1824). Para algumas conclusões de síntese sobre as visitações pastorais na Arquidiocese de Braga
nomeadamente nos séculos XVI e XVII, cf. Soares (1993:37-55).
266
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

aproveitava «a ausência do marido António José de Araújo, para viver amancebada com Manuel Caraça,
também casado e de vizinha» (LVD 12-8-1831:22v-23v). Digno de realce é o facto de um dos denunciantes,
Domingos José de Castro, lavrador e casado, ser, por sua vez, acusado por outros quatro lavradores de
Aguiar de praticar em casa e em lugares ocultos «concubinato incestuoso com Josefa Barbosa, solteira,
prima carnal da mulher dele» (LVD Li567, 12-8-1831:25-25v, 26v).
Uma vez denunciados, cada um dos concubinos apresentava-se aparte– aliás em aldeias circunvizinhas
onde se encontrava o visitador – e ali confessava a sua culpa. O visitador, após admoestação, além de impor-
lhes total incomunicabilidade5, aplicava-lhes a pena pecuniária conforme o seu escalão social, indo de 520
réis para o muito pobre, 880 para o pobre e 1000 réis para o remediado, multas estas com as quais eram
geralmente cobertas as despesas das visitas (utilização de bestas e de moços, livros, papel, penas e tinta)
(LVD Li566, 15 a 20-8-1831:7, 11, 14v, 29-29v).

Estas directrizes episcopais, constituindo uma forma de orientação doutrinária e controlo disciplinar,
eram, na prática, total ou parcialmente derrogadas pelo pároco local que, confrontado com as crenças e
práticas locais desviantes, não só se mostrava mais transigente que os seus superiores como inclusivamente,
por vezes, ele próprio denotava uma conduta irregular e «repreensível» perante a própria disciplina
eclesiástica. Por isso, tanto os paroquianos como o próprio pároco eram regularmente objecto de inspecção
hierárquica. Em 1851, o arcebispo condiciona a leitura dos exorcismos pelos párocos à posse de uma licença
episcopal (CL 3-11-1851) mas, em 1853, revoga as licenças concedidas e, salvo especial licença, proíbe aos
sacerdotes tais práticas, «sob pena de excomunhão maior» (CL:31v, 3-7-1853). Ainda assim, alerta que
«continuam a ser praticadas por alguns sacerdotes os intoleráveis abusos proibidos nas constituições e
prescritos como supersticiosos e tendentes a fomentar a credulidade e a ignorância dos fiéis tão
prejudiciais ao desenvolvimento das verdades católicas» (CL:31v, 13-7-1857).

Segundo diversos documentos redigidos na sequência de visitas de arcebispos, arciprestes, vigários e


abades eram efectuados inventários dos ornamentos e paramentos. De modo recorrente constava «ser
infelizmente certo que muitas igrejas deste arcebispado se encontravam sem a necessária segurança,
limpeza e asseio», o que aliás «não sucedia tanto pela pobreza dos paroquianos como pela omissão dos
reverendos párocos» (CL:28, 3-12-1853).
Não obstante as prescrições relativas à decência dos vestidos ou hábitos clericais, assim como as
proibições de uso de socos ou de «calças largas por cima das botas» (CL:16v, 28-2-1829), os clérigos
chegavam inclusive a exercer «as funções eclesiásticas sem vestidos talares, calçados indecentemente, sem
cabeção nem tonsura» (CL:24, 2912-1836). A cada passo os párocos, concretamente o de Lindoso, eram
admoestados por «olvidar-se da obrigação que contraíram de vestir com a decência clerical e a gravidade
própria de seu estado» (CL:29, 27-3-1853; cf. ainda VPL 11-1-1830, 23-1-1837, CL:34v-35, 27-4-1861).

Além destas e doutras faltas tais como fumar na sacristia (CL:34v, 8-5-1861), os clérigos detractores
dos seus deveres eram ainda repreendidos por não colaborar «nos árduos trabalhos pastorais» (missa,
catecismo, reza do terço), por dedicar-se «como mercenários a actividades lucrativas», actos que os
superiores hierárquicos costumavam cominar com pena de suspensão. O respectivo arcipreste, supervisor
dos párocos de Ponte da Barca, entre os quais o de Lindoso, além de recomendar-lhes o cumprimento do
devido registo dos assentos de baptismos, casamentos e óbitos, insurgia-se contra o abandono em que muitos
párocos deixavam os bens patrimoniais de suas igrejas, sobretudo os emprazados. Sobre o pároco de
Lindoso constava especificamente que ele fazia «contratos e distratas sobre bens patrimoniais sem licença
superior» (CL:27, 3-4-1851; cf. CL:30, 16-5-1857).
As transgressões clericais são igualmente confirmadas no referido Inquérito Paroquial de 1845,
segundo o qual «alguns dos padres andavam amancebados, três gostavam de vinho e negociavam em

5
Tal corno se pode ler do veredito: «que de todo se aparte do trato e da comunicação ilícita, mais com ela não fale nem em
público nem em particular, não vá a casa dela, nem na sua a consinta, nem lhe mande recados ou dádivas, nem dela os aceite e
de todo faça cessar o escândalo que tem dado com a sua mancebia, com a cominação de, sendo outra vez apreendido, ser mais
asperamente castigado» (LVD 15-8-1831, Li566:7).
Crença e Poder

contrabando de gado, um tratava mal o pai e outro era da oposição»6.


Eram, porém, as ocasiões de tentação e os actos de efectivo desregramento sexual dos párocos que eram
objecto de cuidada fiscalização do arcipreste e dos enviados episcopais. De modo ilustrativo e em relação ao
século XVIII, poder-se-iam inferir tais práticas, por exemplo, do testamento do pároco de Lindoso,
Francisco Gonçalves, o qual reconhece explicitamente a sua prole, declarando que «deixava a seus filhos
Manuel, Domingos, Maria e João, todos por igual, os bens que ele, testador, recebera de seus pais e cujos
bens os deixava por soldadas e assistências que deles havia recebido» (LTL:129, 18-12-1767). Todavia,
além dos referidos Livros de Visitações e Devassas onde se constatam algumas trangressões, é nas circulares
pastorais onde sepodem ler invectivas e proibições dirigidas aos párocos. Estes, por exemplo, são proibidos,
sob pena de excomunhão, de «confessarem pessoas de sexo feminino nas ermidas, coros, sacristia, de noite»
(CL:32, 1-2-1859), sendo tal permitido «tão só nas igrejas e nos confessionários de madeira com tábuas no
meio e que separem o confessor das penitentes, com grades estreitas ou ralos, devendo colocar-se em lugar
que possam ser vistos pelas pessoas que entrem na Igreja» (CL:30v-31, 25-6-1857).

No âmbito temporal, o papel coordenador e dominante da Igreja era, em grande parte, facilitado pelo
facto de, até 1911 em Lindoso e, ainda mais tarde, em Aguiar, se verificar uma fusão do poder civil com o
eclesiástico na pessoa do pároco, o qual condicionava fortemente a vida social da colectividade em função
de suas próprias estratégias e dos objectivos de domínio eclesiástico. Com efeito, atendendo à sua
«qualidade de Presidentes das Juntas das Paróquias», os párocos eram obrigados pelos seus superiores
hierárquicos a incluir, sob pena de admoestação, no orçamento paroquial «tudo o que as igrejas necessitam»
(CL:28, 3-12-1853). Deste modo, o papel de pároco e de presidente da Junta da paróquia tornava-se
preponderante na medida em que era ele quem nomeava o juiz da igreja, os mordomos e lampadeiros,
lançava impostos locais tais como a côngrua e as derramas, além de poder gerir contribuições directas pagas
ao Estado para ocorrer a despesas de manutenção da simbologia religiosa: véus, paramentos, lanternas (AJL
16-4-1905, 6-6-1909; arts. 4, 6 e 12 LUA, 1920).
Em ambas as colectividades, perpassadas pela centralidade e pela hierarquia do sistema de valores
religiosos e, sobretudo em Aguiar, activamente dominada pela Igreja, possuir capelas e nichos ou adquirir
outros bens religiosos, ordenar um padre, reparar igrejas e cemitérios, legar bens ou doar ostentosamente
para o culto objectos sagrados (imagens e estandartes, cruzes e sinos, paramentos, relicários, cordões e
outros objectos de ouro e prata) constituíam meios de acumular capital simbólico. Era a autoridade
tradicional da Igreja que legitimava e assinava a honorabilidade de determinada família na qualidade de
doadora de um bem sagrado, sendo-lhe assim mais fácil aceder a lugares de prestígio na hierarquia
eclesiástica e/ou civil: Confrarias, Regedoria, Junta. Aos doadores de tais «objectos de subido valor» – entre
os quais se contam as famílias mais ricas e, em especial, os emigrantes «brasileiros» – eram dados votos de
louvor, passando a ser considerados «ilustres cidadãos beneméritos» da colectividade, tal como referem
diversas actas da Junta sobretudo em Lindoso (AJL 7-3-1909, 6-6-1909). Em Aguiar, pode ler-se na
ombreira da capela de Santo António: «Esta obra foi mandada fazer pelo devoto João Jozé de Souza,
rezidente no Brazil, 1879», cuja família teria também cedido terreno para o cemitério. Mais recentemente, a
restauração da igreja pela família mais rica do Lindoso seria simbolicamente compensada com a inscrição
gravada em lápide na parte lateral esquerda da igreja: «Em homenagem ao Senhor Manuel Gonçalves,
grande benfeitor desta igreja, 1956»7.

6
Sobre a caracterização etária, de formação, naturalidade e conduta dos padres, cf. Inquérito Paroquial de 1845:739 in M. J.
Santos 1984:10. Sendo Lindoso uma aldeia fronteiriça poder-se-á presumir que a referência a actividades lucrativas incluía a do
contrabando, o que é igualmente aflorado no Inquérito Paroquial de 1845 (in M. J. Santos 1984:10-11). Sobre a prática lassa e
libertina dos párocos, cf. também Brettel 1991:78-79.
7
Cf. AJL 15-11-1959 e 30-12-1959, em que é dado um voto de louvor ao patrocinador da restauração da igreja. Também a nível
municipal, designadamente na Ponte da Barca e desde o início do século XX, as actas registam elogios e inclusivamente a
atribuição de lápides a «beneméritos» pelos seus «gestos generosos» de ofertas – por vezes recolhidas, por seu turno, de secretas
doações no exterior –: soalho para a igreja, equipamento e manutenção de escola primária na vila por parte de emigrante
«brasileiro», o legado doConde de Folgosa para o Hospital e para a fundação de um Asilo para inválidos ou, por fim, as
influências dum notável no poder central para implantação da luz eléctrica (cf., respectivamente, APB 6-7-1907, APBE 6-6-1923
e 16-2-1925).
268
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

Nem estas ofertas eram simples expressões de caridade ou filantropia, nem as declarações de louvor
eram desprovidas de significados e efeitos. Tais gestos prestigiantes, transformando-se em adiantamentos de
rendas de tipo patrocinal, representavam uma forma de (auto)promoção social, dividendos económico-
sociais reverteriam em favor do «benemérito» em questão. Com efeito, para a casa deste não só se
mobilizavam pessoas e, em especial, mão-de-obra (quase) gratuita, como se abriam portas, quer para casar
prestigiosamente os seus filhos, quer para ocupar lugares no poder local, regional e, por vezes, nacional.

11.3. Polarização e coexistência

Com a implantação da I República a Igreja e o Estado redobraram o seu potencial competitivo,


multiplicando-se os conflitos, designadamente por instigação de facções do Partido Republicano.Ao mesmo
tempo que a Igreja procurou adaptar-se ao laico poder republicano, posições de hostilidade, por parte deste,
fizeram com que os crentes se apegassem ainda mais aos seus chefes e guias eclesiásticos. A nível local,
importa, contudo, referir que, enquanto em Aguiar a corrente dominante parece ter sido a de apoio
tradicional aos párocos, em Lindoso relatos orais e actas da Junta indiciam que existiu uma profunda divisão
na população e um predomínio da facção pró-republicana, detectável tanto na demissão do pároco em 1911
como no assentimento local à separação de funções civis em relação às cultuais (AJL 16-2-1913, 20-3-
1917).
Enquanto instituição corporativo-religiosa de carácter compulsivo, a Igreja – que através de cada pároco
tem mantido com os seus crentes relações de dominação hierocrática – teve um singular e decisivo papel
parapolítico e ideológico não só na destruição do regime republicano pela eclosão do golpe militar de 28 de
Maio de 1926, como na legitimação e na realimentação do «Estado Novo»8 através do reforço de relações
patrocinais com artesãos e camponeses. Consagrando a superveniência de Salazar como «obra da
Providência», a hierarquia eclesiástica, em compensação, veria a religião católica, de acordo com o artigo
46 da Constituição de 1933, privilegiada a nível do Estado. Foi neste contexto que, institucionalmente, a
Igreja foi adquirindo cada vez mais poder nos aparelhos de Estado, gozando, em consequência, de
detenninadas prerrogativas: isenção de censura, de pagamento de impostos e de prestação do serviço militar
e, através da concordata, poder de incursão no direito de família, em particular no impedimento do divórcio
aos casados catolicamente, possibilidade de reaver alguns bens eclesiásticos. Por exemplo, a nível de
Aguiar, os bens eclesiásticos alistados no tempo da I República (a igreja, o cruzeiro, objectos de culto e
residência paroquial com terrenos e águas) viriam a ser, por intermédio da Câmara, devolvidos e entregues
ao pároco, enquanto presidente da Comissão Fabriqueira, na sequência deum despacho do Ministro da
Justiça a 2-11-1931 (CA 782, CMB 11-11-1931, art. 43 do DL 30615 de 25-7-1941).

Um dos modos mais eficazes de, directa ou indirectamente, resistir ao processo de secularização e
legitimar a ordem e a hierarquia conservadoras foi – paralela ou independentemente das genuínas crenças
dos peregrinos – a aplicação de técnicas psicológicas na instrumentalização político-ideológica das maciças
romagens e impressionantes peregrinações não só nacionais como Fátima, mas também de base regional.
Entre estas avulta(va)m para os moradores de Aguiar a da Senhora Aparecida e para os de Lindoso a da
Senhora da Peneda, comemorando aparições da Virgem Maria: a primeira, remontada a 1702, a um menino
pastor chamado João «Mudo» – o qual, segundo a lenda, passaria a falar –, a segunda com datas e contornos
imprecisos, mas cujo santuário e devoção ter-se-iam incrementado sobretudo desde o início do século
XVIII9.

8
Ver, a este respeito e sob diversos ângulos críticos, designadamente sobre a função ideológica da Igreja Católica sob o «Estado
Novo», Cerqueira 1973:473-514, Tavares 1976:2234 ss, M. B. Cruz 1980:15-47, M. S. Costa 1985:253 ss. e M. L Martins
1990:51 ss.
9
Sobre a Senhora Aparecida, cf. B. Ribeiro (1935), sobre a Senhora da Peneda, cf. Pintor (1976: 15 ss). É de referir ainda uma
outra «aparição» da Virgem Maria, em 1917, ao pastor Severino Alves, no Barral, em Vila Chã, no concelho de Ponte da Barca,
cujo processo de gestação tem sido construído por parte da população e animado pelo padre Avelino de Jesus da Costa. Acerca
deste fenómeno a Igreja costuma(va) adoptar inicialmente uma posição ambígua, acabando, conforme a correlação de forças, ou
por desaconselhar os seus propulsores ou por reconhecer a respectiva aparição. A este respeito e a propósito duma aparição em
Crença e Poder

A Igreja que, durante a I República tinha aceitado tacticamente alguns aspectos profanos em romarias
como a da Senhora Aparecida, viria, nos anos trinta, a reivindicar como sagrado tal território e a controlá-lo,
propondo-se «escorraçar do terreiro da Senhora os romeiros folgazões e correr com os crentes pagãos,
para dar lugar aos peregrinos devotos, aos crentes cristãos...» (B. Ribeiro 1935:38). Esta renhida batalha
contra o que a hierarquia eclesiástica considerava a «profanação do sagrado» foi enfaticamente descrita por
um dos seus combatentes: «Os inimigos do milagre de Balugães, conscientemente uns, por ignorância
outros,fizeram a anti-propaganda por meios opostos àqueles: noitada de fogo, duas bandas de música,
grande e vistoso arraial no terreno da Senhora, atolhado de pipas de vinho, barracas de doces, tremoços,
refrescos, rodas de dança, ranchos de mocetões e mocetonas descantando ao som das harmónicas, dos
pandeiros e dos ferrinhos – uma bonita romaria, como lhes chamam os cristãos foliões... O terreno da
Senhora Aparecida foi transformado no terreno do diabo...» (B. Ribeiro 1935:38).

Ainda no quadro rural e em consonância com o espírito corporativo e paternalista da ideologia


conservadora católica – assumida posteriormente pelo «Estado Novo», por exemplo, nas Casas do Povo– a
acção de beneficência, em busca de maior prestígio, por parte dos mais providos em favor da colectividade,
bem como a voluntária assunção de uma função de socorro para com os mais pobres, não só eram passíveis
de reconverter-se em vantagens económicas para os beneméritos, como constituíam, além de amortecedores
políticos das contradições sociais locais, importantes peças do processo de reprodução do statu quo.

Para minorar situações de carência extrema, fornecer supletivamente crédito e outras ajudas tais como
acompanhar e, para membros mais pobres, custear o funeral, foram, com efeito, criadas diversas confrarias e
instituições mediadoras. Em Aguiar relevava a Confraria de S. José 10 e sobretudo a de S. Vicente de Paulo
que, embora criada a 2-2-1913 por iniciativa do pároco e de representantes exteriores oriundos de Vila de
Punhe e do Porto, contava com a participação de oito confrades laicos, todos eles lavradores da freguesia.
Constituído um fundo monetário de cerca de 3.000 réis, eram avaliados nas reuniões periódicas semanais,
após a missa de domingo, quais os pobres a ser contemplados com vales de géneros no valor de 100 réis. Da
leitura atenta das actas da confraria de 9-2-1913 a 1-3-1917 se infere, com efeito, que o confrade visitador
era sempre um dos homens-lavradores e que os pobres seleccionados para as visitas somavam nove
jornaleiros e vinte e duas jornaleiras.

Sobretudo até aos anos sessenta, a Igreja, além de constituir praticamente o único canal de mobilidade
social ascendente para algumas casas modestas de Lindoso e de Aguiar (9:5), tem permanecido como a
instituição por excelência de preservação de posições e privilégios, designadamente através do recrutamento
para o sacerdócio de membros de casas económica e politicamente mais influentes. Nesse sentido era
inculcada, no processo de socialização de um ou vários filhos-sobrinhos dessas casas, a ideia da vocação
sacerdotal, cumprindo assim – independentemente dos objectivos da retórica eclesiástica – a condição
indispensável ao usufruto do passalparoquial ou à habilitação a heranças de tios-padres. Não sendo
permitido aos padres, pelo menos por imperativo eclesiástico, reproduzir biologicamente descendentes por
linha directa, a sua reprodução social tendia e tende a incorporar sucessores procedentes da linha reprodutora
do irmão(ã). E, uma vez que ser sacerdote constituía condição indispensável e convencionalmente
estabelecida para ser usufrutuário ou herdeiro, a associação do património familiar ao cargo sacerdotal,
implicando uma fusão de ambas as esferas, ocultava assim, sob o estatuto eclesiástico a estratégia de

Garabandal (Espanha) em 1961, cf. Christian (1973:107 ss), para quem os traços constitutivos da aparição seriam a fundação dum
santuário local e uma visão apocalíptica do mundo.
10
Além da do Santíssimo Sacramento – associada à freguesia vizinha de Quintiães de 2-8-1552 a 1696 e, a partir daí,
autonomizada –, a da Senhora do Rosário, a de Jesus Crucificado e a de Santo António, cada uma delas com o seu respectivo altar
(IARA 30-4-1959). Além de organizar o ritual eclesiástico e prestar apoio creditício, tal como se infere da leitura de diversos
inventários orfanológicos (v.g. IOA 2-12-1907, M245 Li7:146v), outra função da Confraria de S. José consistia em levantar os
féretros dos associados de Aguiar e paróquias circunvizinhas a troco de contribuições voluntárias trazidas pelo recoveiro. Esta
função cairia em desuso na década de setenta pelo facto de, estando os responsáveis inseridos como assalariados no mercado de
trabalho extra-aldeão, isso obrigaria a confraria a ter que compensar a perda de um dia de trabalho com o insustentável gasto de 20
a 30$00 a atribuir a cada um dos acompanhantes que se deslocavam para o funeral dum devoto forâneo.
270
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

preservação e reprodução do predomínio económico e de obtenção de prestígio social, por parte de


determinadas casas de lavradores e proprietários: Duarte, Milheiro e Soares na do Lindoso e Vicente,
Coelho, Fontes e, em especial, Campela em Aguiar.
O êxito das referidas estratégias de reprodução clerical, além de contribuir para manutenção do
património familiar, recriava condições adicionais de dominação clientelar local e assegurava pontes de
conexão com o poder eclesiástico episcopal, as quais, por diversos canais, se prolongavam no campo civil-
político11. Além de veículos de informação, a partir do altar, para assuntos de cariz civil (décimas, vacinas
de gado), os padres constituíam decisivos mediadores na condução de processos burocráticos de seus
parentes e conterrâneos aliados e afilhados, na obtenção de empregos e na ingerência no foro judicial ou
ainda na liderança e no apadrinhamento dessas famílias na política local (13:1). Mas desçamos, tal como o
fez Almeida (1987:236 ss) para Fonte de Arcada, ao papel e ao relacionamento concreto dos sucessivos
párocos de Lindoso e de Aguiar com os respectivos moradores.

Lindoso

Dos padres «dados à luz» no Lindoso e que viriam a paroquiar esta freguesia cabe referir, entre 1882 e
1897, o vigário João Lourenço – cuja família aliar-se-ia por casamento aos Soares – e, a partir de 1918, dois
padres dos Milheiros: Adélio e José, do lugar de Parada.
Intercalados entre estes, registam-se, entre 1897 e 1911, os padres José Rebelo (1897-1909) e José
Domingues (1909-1911), ambos originários de freguesias vizinhas. No rescaldo do derrube da monarquia
em 1910, o padre Domingues ver-se-ia forçado a abandonar a paróquia na sequência de um aceso debate no
ajuntamento do povo a 14-1-1911, no qual é descoberto um desfalque de 100.500 réis do «cofre das almas»
sob a administração do próprio pároco e, simultaneamente, presidente da Junta da Paróquia: «Sobre este
assunto falaram com eloquência todos os vogais e o respectivo regedor desta freguesia, lamentando a forma
incorrecta deste pároco e a inconsciência como têm sido administrados os legítimos haveres do povo a ele
confiados» (AJL 2-4-1911).

Numa carta enviada ao tesoureiro, o pároco, desresponsabilizando-se como presidente da Junta e


administrador do «cofre das almas» e apelando ao segredo de confissão, replica, de forma evasiva, que
«como director das consciências tinha que satisfazer a quantia mencionada» (AJL 2-4-1911). Apesar da
reposição da respectiva quantia de dinheiro, de acordo com o relato actual dum sobrinho do padre por
afinidade, moradores de Lindoso, liderados pela numerosa família Soares, não só lhe fecharam a porta da
igreja como o ameaçaram de «porrada» e até de morte: «Viva a República, morra o padre Zé» (L13).
Receando mais retaliações, o pároco abandona a paróquia a 28-6-1911 e, com a ajuda de um irmão e alguns
conterrâneos pró-monárquicos12, foge para Espanha. Se ao arcebispo a Junta pedia um novo pároco porque o
padre Domingues tinha abandonado a paróquia «sem motivo justificado» (AJL 17-8-1911), no
ajuntamentode 15-10-1911 apenas doze moradores se pronunciaram a favor do seu regresso, gritando os
restantes: «Fora, queremos outro padre, fora com os traidores! Morram os ratos de sacristia! Viva a
República!» (AJL 22-10-1911). Destes ajustes de contas, dirigidos tanto ao padre Domingues como aos
próprios padres Milheiros e aos quais não seria estranha a mudança política com a implantação da
República, dá igualmente conta o actual testemunho da idosa moradora Maria Milheiro, irmã dos referidos
padres: «Nasci na Monarquia e presenciei coisas horríveis quando veio a República. Chegou a haver
porrada. Os republicanos obrigaram os padres a beijar as letras que lhes punham à frente. Os meus irmãos
padres Adélio e José tiveram que fugir para Espanha e o nosso paichegou a morrer de desgosto».

11
É a fusão da esfera terrena e da sacerdotal que permite compreender e explicar não só as funções de mediação mas também os
processos de dominação, bem como as correlativas atitudes anticlericais constatadas, entre outros, por Riegelhaupt (1982:1217
ss), Cabral (1989:236) e Bastos (1987:107 ss). Em relação à origem (semi)nobre ou proprietária de diversos abades e bispos de
paróquias circunvizinhas de Aguiar, cf. Fonseca (1948:296, 318).
12
Os monárquicos locais, provavelmente em contacto com outros a nível regional, teriam ainda, segundo um morador idoso (Ll3),
tentado realizar uma conspiração sob a palavra de ordem: «Abaixo essa bandeira, fica esta até ao amanhecer».
Crença e Poder

A este período de turbulência política, espelhada nas próprias actas da Junta, em que o arcebispo recusa
prover a paróquia de um novo pároco (AJL 6-4-1913), seguir-se-ia um outro de relativa acalmia e
reconciliação entre a Junta e a hierarquia eclesiástica justamente pela mediação do padre nativo Adélio
Milheiro, regressado de Espanha.
Se entre 1932 e 1945 – uma época conturbada na fronteiriça Espanha e, aliás, no mundo – Lindoso
conhecerá como pároco diversos padres, será sobretudo sob o comando do referido padre Adélio que, uma
vez consolidado o «Estado Novo», criar-se-ão condições favoráveis ao reforço local da Igreja. Ao padre
Adélio sucedem, consecutivamente, os padres Morávia (1945-52), Dário (1852-56) e Teixeira (1956-63), os
quais, para além da sua ascendência social, personificavam o clássico «pastor de almas», ensinando o
catecismo, distribuindo bençãos às crianças e acompanhando atormentadamente intimidades e problemas,
virtudes e fraquezas dos «seus» paroquianos.
Com a transferência do padreTeixeira em 1963, o Lindoso terá como novo pároco o padre Sobrinho
(1963-69), cuja figura é recordada pela sua desmedida ambição pelo dinheiro, pelo seu papel mediador de
«assistente social» mas interesseiro13 e, sobretudo, pela sua conivência pró-situacionista e até denúncia de
paroquianos rebeldes a agentes político-repressivos do «Estado Novo». Pretendendo casar e desistir da
carreira sacerdotal, o padre Sobrinho seria substituído em 1969 pelo jovem, voluntarioso e moderno padre
Nuno, igualmente oriundo da região. A sua disponibilidade e generosidade no apoio social aos paroquianos
viria, pouco a pouco, a afrouxar por, no seu dizer, «sentir um certo cansaço e desalento perante a ineficácia
da sua pastoral de libertação», ainda que entendida em sentido predominantemente espiritual. Por outro
lado, a sua transigência, sociabilidade e convivência no café e, por vezes, o seu fair-play com moças da terra
não se compadece, de facto, com a imagem tradicional do «zelador de almas» de tipo patriarcal e, menos
ainda, autocrático. Se há moradores que o estimam e advertem de «não se colocar no seu lugar» e «dar
demasiada confiança a gente que depois lhe pode faltar ao respeito», outros sobretudo idosos, além de
imputar-lhe reais ou imaginárias relações com amantes, interpretam as suas atitudes na esfera ritual como de
abandono, desleixo e até displicência: «Este padre veio acabar com a religião. Acabou com o terço, com as
via-sacras e com os clamores. Não prepara as crianças para a comunhão. Chega atrasado à missa do
domingo e, durante a semana, não se pode assistir à missa pela alma dos parentes defuntos porque só
celebra missa quando lhe apetece. Não consente que ninguém mande nele, tal como já o disse publicamente
do altar» (L48).

Diversos incidentes, ocorridos no pós 25 de Abril de 1974 – um contexto mais favorável aos grupos de
oposição – têm manifestado o potencial de conflitualidade entre o poder clerical, personalizado no padre e o
poder civil, simbolizado na Junta ou, mais precisamente, na facção anti-padre sobretudo quando revestida de
poder laico, dando lugar a mútuas recriminações, boicotes e exclusões. Cabe referir, entre outros, o
diferendo acerca da gestão dos dinheiros no processo de reconstrução da capela de Santa Madalena. O
pároco, considerando tratar-se de uma obra de âmbito religioso e reivindicando dos paroquianos e, em
especial, da Junta um acto de confiança na sua seriedade e competência para ele próprio gerir os 600.000$00
de ofertas, não obteve contudo a anuência dos membros da Junta, que exigiam a aposição de duas
assinaturas para qualquer movimentação de dinheiros. Tal diferendo viria a abrir marcantes polarizações:
enquanto o padre pretendia restaurar a secular capela, a Junta preferiu demoli-la e destruir um projectado
altar ao ar livre mas, uma vez terminada a construção da capela sob a gestão da Junta, o pároco acabaria por
fazer «greve» à celebração da missa na nova capela.
Além deste, outros confrontos foram relatados tais como o surgido em 1975, em plena homilia, em que
o padre, ao invectivar os opositores de «vermelhos», seria publicamente desafiado na igreja e no adro por
um dos líderes visados (L29); o conflito aberto, desde 1982, entre os defensores de reconstrução da velha
residência e o padre e seus apoiantes organizados na Comissão Paroquial, os quais, além de terem
estipulado 5.000$00 por família independentemente dos recursos de cada uma, visavam edificar, a par da
residência, um salão paroquial. O impasse em tomo do projecto levou o padre a desistir do mesmo e a

13
Segundo testemunhas locais, pelo facto de conduzir no seu carro paroquianos para irem consultar o médico ou serem operados, o
padre Sobrinho pedia ao respectivo médico um desconto de 50% «por serem pobres», embolsando-se, porém, ele próprio a
respectiva diferença (± 5,000$00 em cada operação)!
272
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

construir à beira da estrada uma nova casa de tipo «moderno», aliás condizente com o seu estilo14.
No decurso destes e doutros conflitos, ora abertos, ora latentes, os líderes da facção antipároco, além de
fazerem circular um abaixo-assinado para pressionar o bispo a demiti-lo, escreveram em graffiti nos muros
da estrada: «Queremos padre, não este mas outro ...», objectivo este que, apesar das pressões e
movimentações, viria a gorar-se por ocorrência de um acidente de viação numa das viagens dos opositores
do pároco rumo ao arcebispado de Braga, acidente esse atribuído pela facção pró-pároco a castigo divino!
As manifestações dos contestatários do padre, se constituíam uma válvula de escape dos sentimentos de
oposição ao poder concreto do pároco, apelavam à reconciliação comunitária mas sob o seu próprio
comando anticlerical.

Aguiar

Também, desde meados do século XIX, os párocos de Aguiar foram «produzidos», em grande parte, a
partir das famílias de proprietários e lavradores de Aguiar ou paróquias circunvizinhas, sendo a sua acção
diversamente valorizada pelos moradores. Assim, sendo em 1842 pároco de Aguiar o padre Rozendo
Vasconcelos, contra ele se insurgiam alguns paroquianos quanto ao pagamento de primícias. Além disso,
regista-se um processo accionado pelo presidente da Junta, Manuel Carvalho Amorim, pelo facto de o
pároco, sem licença daquele como tutor de sua irmã Maria, demente, a ter levado para a sua residência
durante quatro anos, não lhe ter pago as soldadas, ter-se aproveitado sexualmente dela e tê-la engravidado,
fazendo-lhe «várias promessas para que lhe fizesse a vontade, como inteiramente lha fez». Ela, mesmo
depois de sair da casa do padre, dado o «grande amor que tinha pelo reverendo», ia-o visitar e «comprazer
nos seus gostos»(LCNC 10:97v-98, 5-9-1837). A esta acusação responderá o abade com outro processo,
considerando uma injúria o facto de ter-lhe sido imputada pelo presidente da Junta com «escandalosa
falsidade a prenhez» de Maria (LCNC 10:100v, 23-9-1937). Deste processo – que acabaria por não ser
conciliado pelo Juiz de Paz – poder-se-á inferir que o pároco teria abandonado a freguesia, dado que foi
substituído precisamente em 1842 pelo abade João Roberto Maciel, filho dum proprietário da paróquia
vizinha e duma proprietáría barcelense.
A ascendência fundiária do padre João Roberto permitir-lhe-ia, na sua longa estada de 1842 a 1882, não
só estabelecer relações estreitas com os poderes camarários – donde lhe advieram benefícios e privilégios
(13:4) –, como também, além de ver reconhecido para as suas duas co-residentes irmãs solteiras o estatuto
de «profissão nobre», ascender ao estatuto hierárquico de cónego da Sé de Braga e de cavaleiro das Ordens
de Cristo e da Conceição.
A este padre um tanto «aristocrata» seguir-se-ia um outro originário de família de lavradores, Manuel
Vicente (1882-1887), o qual, dada a relativa sobreabundância de «vocações» sacerdotais, era coadjuvado por
outros ou substituído em certas funções por encomendados, nomeadamente pelo conterrâneo padre
Lourenço. Seguidamente, Aguiar seria marcada por um longo consulado de padres oriundos duma família de
lavradores da vizinha freguesia de Durrães, ainda que com ramificações parentais em Aguiar (A46):
primeiramente, de 1887 a 1913 a cargo do abade e arcipreste Manuel Maciel, ao qual sucederia, entre 1913 e
1925, o sobrinho padre João Maciel e, posteriormente, um irmão deste e sobrinho daquele, o padre António
Maciel (1925-41). Moradores idosos, em regra, retêm destes padres boas recordações, fazendo-lhes copiosos
elogios sobre o modo relativamente pacífico e consensual de gerir a paróquia: «eram bons, não exigiam as
primícias, ajudavam e davam esmola aos pobres».
Já, porém, a entrada e a respectiva nomeação episcopal do padre Vaz em 1941 para novo pároco de
Aguiar foi assinalada por uma intensa disputa pelo lugar, o qual era também pretendido pelos recém-
formados padres Correia (Ae59) e Coelho (Ae85). Com efeito, as respectivas famílias – a primeira na Junta
e a segunda na Regedoria de então –, na mira de usufruir o rico passal e aumentar o seu respectivo prestígio
14
Em conselho decorrido em 1985, (quase) todos os presentes aduziram que, para a (re)construção da residência paroquial, não
deveriam sobrecarregar-se financeiramente as famílias, mas antes aplicar-se as reservas de 6.000 contos, obtidas com a alienação
de baldios para a barragem (4.000.000$00) e com a venda de pinheiros (2.000.000$00), o que, em todo o caso, representaria a
reafectação de recursos da freguesia ao património eclesiástico! Dada a divisão interna a este respeito, o padre viria a construir,
por sua própria conta, a sua casa de habitação.
Crença e Poder

local, esforçavam-se por mobilizar parentes e aliados dependentes forâneos ou conterrâneospara trazer para
pároco o «seu» padre parente. Contestando frontalmente a autoridade do padre Vaz (1941-76), filho de uma
sardinheira de freguesia vizinha, os adversários deste não só o desafiavam com acinto para a porrada– o
que obrigava o padre Vaz a munir-se de pistola sob a sotaina –, como lhe armavam ciladas tais como, por
exemplo, fazer buracos numa ponte, de modo a provocar-lhe uma queda no rio ou, num forte gesto
simbólico, colocar-lhe à porta da residência colmo, uma faca, um alguidar com pimenta e alho, como se de
um porco na iminência de ser morto se tratasse. Entre outros incidentes é de referir ainda que:

Quando o padre Vaz, no início da sua pastoral, determinou dispensar os paroquianosda frequência das lições
de catecismo mediante o pagamento de 2$50, o jornaleiro João (Ae55), instrumentalizado pelo presidente da
Junta Severino, negar-se-ia ora a frequentar a catequese, ora a pagar 2$50, o que provocou de tal modo as iras do
pároco que este acabaria por desferir-lhe uma leve bofetada.
Apesar das tentativas de conciliação por intermédio de Subtil que procurava, a pedido do padre, apaziguar
João com a oferta de um fato novo, este, mais uma vez ainda acicatado por Severino, processaria o pároco que,
tendo de comparecer como réu em tribunal, sentir-se-ia humilhado perante os moradores, em especial quando
publicamente admoestado pelo Juiz! (A44).

A batalha do pároco contra a Junta e, em particular, o seu presidente só seria ganha na sequência de
desentendimentos no seio daquela (12:2) e sobretudo com a partida definitiva do ex-presidente da Junta
Severino para a Argentina em 1948 – cuja posterior morte por doença também seria atribuída pela facção
pró-pároco a castigo divino! Com o apoio do secretário da Junta (Ae148) e do tesoureiro (Ae46) – que se
prestou a mendigar de porta em porta as primícias para o padre –, conseguiu o padre Vaz firmar a sua
autoridade e construir o seu próprio séquito de clientes, nomeadamente os caseiros dopassal (7:2.1).
Passado este período de luta renhida, seguir-se-ia um longo período (1955-74) em que o pároco
conheceria, salvo pequenos incidentes, uma atitude colaborante por parte da Junta comandada pelos médios
lavradores Fontes, Subtil e Lima. No entanto, apesar deste duradoiro pacto, o padre Vaz, embora
razoavelmente aceite, jamais se tornaria um padre benquisto, porque, excepto a parentes seus ou da criada,
«não perdoava as primícias mesmo aos mais pobres». Poroutro lado, além de discriminar os pobres, por
exemplo, na distribuição do leite da Caritas americana, o padre Vaz «era vingativo e ganancioso por
dinheiro ao ponto de vender ao desbarato cruzes, imagens de santos e outros objectos de valor» (A49).

Ao resignar o padre Vaz por razões de idade e de saúde em 1976, é pressionado a assumir a chefia da
paróquia de Aguiar o proprietário padre Bento Campela. Apesar de, pelo seu estatuto e rendimento agrícola,
estar até então dispensado de paroquiar qualquer freguesia, acabaria, antes de ser episcopalmente nomeado,
por aceitar o informal convite para pároco de Aguiar endereçado pelo seu irmão Aníbal e pelo seu primo e
emergente mediador Donato. Contrariamente ao seu antecessor, o abastado proprietário padre Campela
(1978-80), além de se mostrar socialmentemagnânimo e activo na construção de um Centro Social liderado
pelo seu primo Donato (12:3), isentava do pagamento de primícias os pobres e, em particular, os seus
(ex)jornaleiros e outros cooperantes porque – como discretamente reconhecia – «nada mais fazia que
descontar velhas dívidas contraídas para com eles».
Vitimado por um mortal acidente de viação em 1980, os moradores, na sua maioria, choraram a sua
perda, vindo a ser substituído pelo padre Mateus, pároco da aldeia contígua de Quintiães. O facto de este não
aceder aos objectivos de Donato – que se empenhava em obter uma licença eclesiástica «para vender parte
do passal, fazer lotes de terreno e vendê-los para a construção de casas para os pobres da freguesia» (A20)
– valer-lhe-ia a oposição de Donato que, em diversos momentos e vicissitudes (festas, casamentos e
sobretudo as visitas pascais de 1983 e 1984), mobilizaria a freguesia para pedir junto do bispo a demissão
daquele. Tal não viria todavia a suceder por erro táctico de um elemento do grupo pró-Donato que, no
momento de pressionar o padre a demitir-se, ter-lhe-ia dado um pontapé no «traseiro», o que, segundo
Donato, «estragou tudo, quando já o bispo estava disposto a substituí-lo por um padre da nossa confiança»
(A20). Com efeito, tal cenário, provocando na população um sentimento generalizado de compaixão pela
figura do idoso pároco, teria igualmente um efeito contraproducente junto do bispo. Mais, o malogro da
estratégia de Donato viria permitir uma contra-ofensiva da facção rival liderada por Serafim e um

274
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

temporário reforço do próprio padre Mateus, com o qual solidarizar-se-iam os párocos das freguesias
vizinhas, designadamente o de Durrães: «Chegue-lhe duro a esse Donato, ó Mateus, porque, numa freguesia
pode mandar mais que o padre!».
Apesar deste ligeiro e conjuntural revés da facção Donato, tão-pouco o padre Mateus se tornaria um
pároco estimado na medida em que não se ocupava nem social nem espiritualmente da colectividade. Além
de não «prestar atenção à juventude nem ensinar catequese às crianças», era também, tal como o padre
Vaz, «chupista e interesseiro», «procurava enriquecer à custa do povo» sobretudo dos caseiros e,
literalmente, «não dava nada em troca, nem sequer as sobras das rendas ou o troco de primícias quando
pagas em dinheiro!».

Concluindo, poder-se-á dizer que, não obstante as fusões ou os longos pactos entre a autoridade
eclesiástica local personalizada no pároco e a autoridade civil, designadamente a Junta, as atitudes por
partedos moradores para com o pároco não têm sido, de modo algum, unânimes. Elas diferem
consideravelmente conforme a época, a posição de cada protagonista no xadrez da aldeia, a origem e o lugar
social da família do pároco, bem como a verticalidade do seu comportamento moral e, sobretudo, a sua
maior ou menor exigência de pagamento das primícias e, em Aguiar, das rendas dos caseiros. Enquanto
certos padres, por serem fiéis a princípios de «entrega» (Morávia, Dário, Teixeira) e/ou por serem oriundos
de famílias de lavradores e proprietários (Maciéis, Campela, Milheiros), eram ou permitiam-se «ser
generosos» para com os moradores pobres, obtendo daí um maior grau de prestígio e/ou vantagens
económicas («trabalho por favor»), outros, originários de grupos sociais modestos mas ambiciosos (Vaz,
Sobrinho), transformavam as suas imediatas exigências e desejos de «enriquecer» em objectivos
simbolicamente contraproducentes a longo prazo. Por outro lado, salvo opadre Campela em Aguiar e
sobretudo o padre Nuno no Lindoso – cujo perfil tendia a ser moderno –, os demais padres eram respeitados
ou temidos, enquadrando-se no tipo de padre «antiquado»15.
Paralelamente aos longos períodos consensuais e de pacífica coexistência, a presença e a acção dalguns
padres tem-se tornado objecto de entrechoques, pomo de discórdias e, por vezes, de contestação intensa,
umas vezes por minoria(s), outras pela maioria dos moradores16. Para além da «má-língua» do dia a dia, a
ocorrência dalguns incidentes e confrontos físicos, ainda que episódicos ou conjunturais (1910-13, 1941-48,
1975-85), é sintomática não só das fricções acumuladas entre as facções rivais, como das tensões latentes e
mesmo dum certo sentimento anti-clerical das populações face aos representantes do poder clerical,
sentimento que um dos moradores de Aguiar traduziu na virulenta diatribe: «A religião dos padres começou
com eles e há-de acabar com eles» (A66).

11.4. «Pontos» e «contrapontos» (1960-85)

Dado que as crenças e as acções dos camponeses se afastam, por vezes consideravelmente, da moral e
da religião oficiais, com justeza tem sido feita a distinção entre religião oficial católica e religiosidade
popular. Tal como vários autores o frisaram17, enquanto a primeira doutrinariamente se baseia em
determinados dogmas e aponta para o deus inacessível, transcendente, a crença popular, nomeadamente

15
Sobre a caracterização dos diversos tipos de padres, cf. Christian 1972: 180 ss, Almeida 1986:328-336 e sobretudo Cabral
(1989:224 ss) que, de acordo com a sua tipologia, distingue o padre bruxo, o padre antiquado e o padre moderno.
16
Um informante-chave de freguesia vizinha caracterizou graciosamente a figura do pároco:
«Se o pároco fala mais de dez minutos na igreja, é um chato!
Se visita os paroquianos, nunca se encontra em casa!
Se é pacífico, a paróquia está morta!
Se dirige só, é um ditador, um sargento!
Se é jovem, é inexperiente!
Se é velho, que o reformem!
Se morreu...Era tão bom1 Quem poderá substituí-lo?»
17
Temática e aspectos já focados por Weber 1978:468 ss, Mannheim 1976:35, Redfield 1961:41 ss, Lanternari 1963:311, 321,
Wolf 1966:99 ss, Bourdieu 1971:321 ss, Scott 1977a:5 ss e, em Portugal, Riegelhaupt 1973:835 ss, Santo 1980:155 ss, 1984:197
ss, Sanchis 1983:83-136, Pinto 1985:143 ss, Almeida 1986:320 ss, Esteves 1986:68 ss, Cabral 1989: 229 ss.
Crença e Poder

campesina, manifesta formas de religiosidade de carácter animista e antropomórfico, além de instrumental.


A religião oficial e a religiosidade popular articulam-se e realimentam-se reciprocamente na base duma
permanente tensão dialéctica ou, em termos de Ginzburg (1980:xii ss), duma «relação circular» entre a
cultura dominante e a cultura dominada, não devendo, portanto, como refere Badone (1990:6), ser vistas
dicotomicamente como duas entidades monolíticas e imutáveis. Por exemplo, traços actuais da religiosidade
popular, assim como da «pequena tradição», radicam na religião oficial ou resultam da sua interacção com
esta, dando não raro lugar a processos de negociação entre os protagonistas de ambos os tipos de
religiosidade. Com efeito, também na conduta passadae actual dos moradores de Lindoso e de Aguiar
verificam-se todavia crenças e práticas sincréticas18, sendo, por isso, difícil traçar uma fronteira nítida entre
as da religião oficial católica e as da religião popular. Por um lado, as populações ou foram espontaneamente
assimilando ou foram-lhes paulatinamente sendo inculcadas ou até impostas práticas e normas da religião
oficial. Por outro lado, o catolicismo, contrariamente ao iconoclasta calvinismo, tem evidenciado uma
enorme capacidade de adaptação e transigência perante certos «desvios» doutrinais, seleccionando e
integrando elementos animistas e antropomórficos da chamada religião pagã-popular-campesina tais como a
atribuição de valor e eficácia a determinados ritos e preces não ortodoxas, as procissões e seus ornamentos e,
sobretudo, o culto dos santos padroeiros com todo o seu acervo de imagens e ex-votos, estampas, rosários e
outros objectos sagrados.

Os ritos, já de origem pagã-popular, de origem cristã e, em particular, os relativos ao nascimento, ao


casamento e à morte, (re)criando, especialmente nos grupos de pares, sentimentos de identidade grupal no
quadro corporativo da paróquia, têm sido, sobretudo no passado, perpassados de afectividade, porque
ligados a processos de socialização e partilha de vivências colectivas, umas espontâneas, outras
programadas. Entre os diversos ritos relativos, por exemplo, à entrada na comunidade, à puberdade, à
adultez ou à despedida da comunidade, são de referir respectivamente o ser baptizado na mesma pia,
celebrar a comunhão solene, participar em magustos e rusgas nomeadamente por ocasião da inspecção
militar, envolver-se na cerimónia do casamento ou ainda organizar grupos musicais que, pelas festas,
romarias e especialmente pelas janeiras e pelos reis magos, se dispunham a cantar pelas casas dos
conterrâneos ou, por fim, o render a última homenagem a um conterrâneo falecido expressa no tradicional
ritual da obrada19.
Os elementos locais, derivados da não ortodoxa religiosidade popular-camponesa, têm sido certamente
reapropriados e incorporados Igreja Católica, ainda que sob tensão perante o corpo doutrinário e disciplinar
desta. Por seu turno, também as formas e práticas religiosas de cunho católico, originariamente instiladas
pelo pároco e pela rede de colaboradores directos (seminaristas, catequistas), se têm enxertado e até
sobreposto com relativo sucesso aos chamados ritos e práticas populares, devido às razões apontadas
designadamente a racionalização do referido poder hierocrático da Igrejacomo entidade administradora dos
ritos e do calendário litúrgico e, em última instância, como instância reguladora e legitimadora da ordem e
do statu quo. Assim, detendo a Igreja o (quase) monopólio da celebração dos sacramentos e ritos, as
representações que o padre, enquanto seu porta-voz e celebrante, oferece à assembleia dos moradores,
conferem-lhe um «poder mágico» que é, por sua vez, dependente da confiança que os crentes nele
depositam. Sendo a assembleia dominical um dos locais privilegiados do exercício do poder eclesiástico,
sem contestação aparente, é na aceitação da palavra sacramental do padre que inerentemente se situa uma
18
Entre outras, o culto da água benta, a benção dos ramos de loureiro e oliveira contra a queda de faíscas de trovão. Sobre as
formas sincréticas de religiosidade, cf. Maldonado 1989:32 ss. A pragmática permissividade moderna para com práticas
heterodoxas de religiosidade popular tem sido sublinhada não só em relação ao Ocidente católico (cf. Weber 1978:471 ss), mas
também ao Islamismo (cf. Bourdieu 1971:327). Ainda que de modo assimétrico, algo de análogo tem ocorrido a respeito das
mútuas influências culturais entre os países colonizadores e os colonizados, onde permaneceram vestígios daqueles no vestuário,
na cerâmica ou ainda na instituição do compadrio (Scott 1977a: 12 ss).
19
Obrada: termo originário de oblata que em latim significa oferenda. Antigamente, a família enlutada suportava os gastos duma
farta refeição aos acompanhantes e visitantes do defunto. Por sua vez, familiares e representantes de cada casa, acompanhando o
enterro encabeçado por uma mulher vestida de negro e transportando à cabeça um açafate, além de orar, entregavam as suas
oferendas, as quais, sendo posteriormente feitas na missa do sétimo dia, eram destinadas ao pároco para celebrar missas pela alma
do defunto. Para mais detalhes sobre a obrada, cf. Maciel 1979:42-44. Sobre práticas semelhantes no Barroso e suas
transformações, cf. M. Ribeiro 199l:109 ss.
276
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

pragmática atitude de fé.


As expectativas messiânicas de salvação futura a que Weber alude sob a expressão de «processo
escatológico» (1978:519), a crença no poder miraculoso de Cristo, da Virgem Maria e dos santos padroeiros,
ao mesmo tempo que contribuem a legitimar a autoridade e o discurso do clero, serviam e, embora em
menor medida, servem para os crentes, sobretudo os pobres, suportarem, em nome duma salvação futura, as
contrariedades da vida ou o mal do seu «destino» social. Cabe estrategicamente ao padre, neste quadro, não
só transferir para uma ordem transcendental divina os ritos de passagem e as festas anuais ligadas ao ciclo
produtivo agrícola, mas também interpretar e sublimar no universo simbólico cristão a origem, a posição e o
destino da vida dos «seus» paroquianos20. Deste modo, a religiosidade «natural» ou a velha «solidariedade
mecânica» sublinhada por Durkheim (1977 I:87 ss) é e sobretudo era recriada não só duma maneira negativa
mediante tabus, medos ou sentimentos de culpa, mas igualmente, de modo positivo, pela consagração
«mágica» de actos místicos tais como a comunhão ou a participação orgânica no corpo eclesiástico e o
consolo dum futuro paraíso! Tais apelos e promessas, se constituíam, segundo Foster (1972:179), uma forma
de minorar as diferenças estatutárias e, assim, reduzir ou suavizar as percepções de inveja, traduzem também
expressões simbólicas no sentido de inverter ou suprimir as actuais relações de dominação.

Que a relativa aquiescência da doutrina e da disciplina eclesiásticas junto dos moradores era real e
efectiva poder-se-á aferir pelo facto de os actos de transgressão, além de, por norma, serem percebidos como
tal pelos seus autores, implicarem não só manifestações de reprovação ou, por vezes, de ostracismo por
grande parte dos conterrâneos, como também sanções, algumas das quais regulamentarmente consignadas
(art. 20 LUA 1920:12). Neste contexto, sobretudo em Aguiar e, em especial, até aos anos sessenta, mostrou-
se particularmente forte e eficaz a pressão do normativismo católico, cuja incorporação na figura do padre
fazia deste, no dizer de Suaud (1978:131), «o elemento estruturante central da comunidade aldeã».

Particularmente antes das inovações litúrgicas do Concílio Vaticano II (1962-65)21, também no Lindoso
e em Aguiar a formalização cerimonial da religião na missa, a retórica performativa das homilias e sermões
com o dramatismo do gesto e a entoação emocionante numa linguagem carregada de termos esotéricos e,
não raro, salpicada de sentenças latinas, o acompanhamento musical do ritual com o canto gregoriano ou
outros colectivamente participados, favoreciam comportamentos gregários e emotivos que facilitavam o
legitimar do que Weber tipifica de «dominação tradicional»22. É, contudo, no processo de socialização tanto
familiar e, eventualmente, escolar, como eclesiástico, onde com as relações de dominação se imbrica(va)m
determinadas concepções e práticas pedagogicamente veiculadas pelo pároco na catequese e na confissão, na
homilia e no tríduo e, em especial, na criação de determinadas organizações sectoriais, nomeadamente em

20
Tal como explícita ou implicitamente o denotam certos textos doutrinários, encíclicas papais e outros documentos eclesiásticos
mais cristocêntricos como os do Concílio Vaticano II. À luz da doutrina católica, o baptismo, enquanto entrada nas relações
sociais da comunidade, toma-se o pré-requisito para ser incorporado na Igreja dos crentes; o casamento, enquanto instância de
união de pessoas e bens eventualmente em vista da procriação, assume o estatuto de aliança sacramental; e a morte, enquanto
separação do grupo doméstico e da comunidade, passa a ser entendida como a passagem para a vida eterna. Sobre a sublimação
sacramental e transcendental dos ritos de passagem e seu significado na vida comunitária e no ciclo de vida do indivíduo, cf., entre
outros, Wolf (1966:101), Pinto (1980:17, 33), Iturra (1986:143 ss), Silva e Van Toor (1988:72) e Bader (1991:176 ss).
21
Sintomático do espírito de acomodação da Igreja é o facto de, ainda nos anos sessenta e setenta, a sua hierarquia e o grosso do
seu corpo clerical – sem dúvida acompanhado pela inércia das populações na esfera ritual – rejeitarem ou refrearem medidas de
actualização eclesiástica inspiradas no Concílio Vaticano II tais como a tradução da missa do latim para o vernáculo e a
simplificação dos ritos.
22
Weber 1978:226 ss. Além de Lenski (1966:257 ss), tem sido sobretudo Bourdieu (1971:316 ss) quem, na esteira de Weber, tem
contextualizado o papel do clero e as crenças no quadro das relações de poder e autoridade. É este enquadramento que mais
adequadamente pode explicar, por exemplo, fenómenos de conversão colectíva tais como o caso referido por Vilaça (1986:4)
acerca da população católica de Assento, no Gerês, convertida ao metodismo.
Torn-se aparentemente paradoxal o facto de povoações rurais, em regra avessas a discursos abstractos e não conformes com os
seus parâmetros mentais, aceitarem e até se extasiarem perante a imponente eloquência do discurso teológico-pastoral de um
pregador. Verrips (1983:357 ss), ao estudar o comportamento não habitual dos crentes durante o ritual, refere, baseando-se em
estudos biogenéticos relativos aos instrumentos utilizados, os efeitos dos estímulos rítmicos e musicais no sistema nervoso central
e, em especial, no sistema autónomo, marcando assim fortemente as correlativas experiências cognitivas e emocionais tais como a
alucinação ou o transe.
Crença e Poder

Aguiar (Acção Católica, JAC, irmandade «Filhas de Maria»). Ao mesmo que os elementos da vida
quotidiana eram integrados na esfera do sagrado, do transcendente e do misterioso, o cumprimento (quase)
compulsivo dos sucessivos rituais era materialmente avaliado, moralmente sancionado e rigorosamente
fiscalizado. Se, por um lado, o pároco se permitia esperar dos crentes um assentimento às suas sentenças
morais ou até ordens, por outro, era igualmente ele quem ratificava o comportamento diário dos moradores
ou «chicoteava» moralmente, na sua homilia dominical, os «prevaricadores»: «ele metia-se demasiado na
vida das pessoas» (A100). Com efeito, o controlo moral e institucional, pela sua mão, era patente na medida
em que, sobretudo até aos anos setenta, conseguia suscitar nos paroquianos medo perante as representações
horroríferas do inferno, induzi-los à compra de bulas papais de isenção da abstinência quaresmal23 e
persuadi-los a «desobrigar-se» pela prática da confissão e da comunhão anuais, considerada por alguns
padres como uma «vergastada colectiva». Além de controlar as suas práticas religiosas e até não se inibir de
apontar em público os ausentes à missa dominical e os não casados catolicamente, censurava ou lamentava
desvios morais no tocante a relações sexuais pré ou extramatrimoniais: «Ai, se essas esfolhadas e esses
caminhos, ai, se esses campos e esses montes falassem, o que eles não diriam!» (A95). Eram, porém, as
mães solteiras e as mulheres divorciadas ou «amantizadas» que constituiriam o alvo preferencial das suas
setas moralistas, ao (re)declará-las publicamente «mulheres sem vergonha» Se bem que Lindoso, como
aldeia de montanha, tenha conhecido, sobretudo com o actual pároco, urna maior transigência perante
comportamentos «desviantes», o juízo negativo do pároco tem coadjuvado a que as referidas mulheres,
inseridas em relações de desigualdade social local, tenham carregado, ao longo das sucessivas gerações,
estigmas sociais marcantes.
Pequenos furtos de cereais, legumes ou fruta, por parte de moradores necessitados – considerados na
concepção dominante como «uma falta de respeito pela propriedade alheia» –, eram moralmente
verberados nas admoestações dominicais do pároco e, por exemplo, num escrito de um boletim paroquial
como sendo «obra de selvagens» (JA 1:15). Os recalcitrantes ao pagamento de primícias em atraso, de
antigos foros ou dívidas anuais devidas, por exemplo, a uma confraria (A49), bem como os raros
concubinos(as), sobretudo quando pobres, sofriam retaliações real e simbolicamente violentas tais como ser-
lhes respectivamente requerida a excomunhão junto do bispo, negada a eucaristia, recusada a visita pascal
ou o levantamento do féretro, penas aliás já consignadas nas posturas paroquiais desde 1920 (art. 20 LUA,
1920:1-5).

Conjugando métodos psico-moralmente coercivos com outros de carácter persuasivo, os párocos de


Lindoso e de Aguiar, a inferir do seu próprio relato, eram, por vezes, exímios a exortar e aplicar subtis
processos de integração. Assim, a fim de converter ou trazer à esfera da influência eclesiástica moradores
não praticantes da «desobriga» e até adversários político-religiosos, ou ofereciam-lhes géneros alimentares e
vestuário, sendo pobres e amancebados, ou reservavam-lhes um lugar numa confraria ou comissão
paroquial, tratando-se de ex-emigrantes e outros membros prestigiados. Além disso, na esfera político-
partidária, por sua iniciativa ou seguindo superiores instruções episcopais, os párocos de ambas as aldeias,
sobretudo o de Aguiar, têm amiúde interferido e inclusivamente dado indicações nas homilias dominicais
sobre o «necessário» sentido de voto. Tal ocorreu não só, em 1958, na disputa presidencial entre Tomás,
candidato do regime salazarista, e Delgado pela oposição, mas também, no pós-25 de Abril de 1974,
mediante o apelo, conforme os contextos políticos, ora à mobilização de rua (por exemplo, em 1975, contra
o governo de Vasco Gonçalves), ora à abstenção eleitoral em 1976, ora ainda à votação maciça na Aliança
Democrática (AD) em 1980.

O factor que todavia permite explicar a aceitação não só do discurso normativo como da própria
autoridade eclesiástica consiste na permeável persistência das relações patrocinais de tipo diádico, vertical e
assimétrico que, nesta esfera, são reforçadas por corporativos «laços hierocráticos». Sendo, em regra, o
padre uma figura saída normalmente do meio rural e originário de casas de lavradores e funcionando amiúde

23
Além das bulas, que abriam excepções às regras do jejum e da abstinência quaresmais, algumas circulares, emitidas no sécuío
XIX, davam conta das dispensas ou suspensões de normas proibitivas, por exemplo, a relativa à possibilidade de comer ovos e
lacticínios (CL 16-2-1836, 4-3-1836).
278
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

como o patrono visível e o líder «natural» da comunidade, sobretudo até à década de setenta, ele tem
constituído um aglutinador das mensagens do senso comum e um retransmissor de significados religiosos.
De facto, o pároco representava assim o que Mannheim (1976:38) denomina de «intérprete intelectual e
moral» dentro e fora da aldeia eGramsci (1976:32 ss) classifica de «intelectual orgânico», cujos conselhos
os moradores seguiam e cuja imponente oratória, quando pregador, extaticamente escutavam.

O grau de conformidade ao normativismo eclesiástico difere todavia de grupo para grupo social e,
dentro de cada um destes, de família para família, conforme a maior ou menor necessidade de o assumir, ora
como investimento simbólico de prestígio e dominação – por parte de proprietários e lavradores –, ora como
estratégia de escape à culpa e à vergonha perante a colectividade – por parte de criados, jornaleiros e
moradores pobres ou desprotegidos. Tendo sobretudo presente que para estes últimos a subsistência
doméstica constituía o supremo bem a preservar, poder-se-á inferir a necessidade de tais famílias se
pautarem ou ajustarem às normas religiosas dominantes e inclusivamente acederem ao arbítrio discricionário
do próprio pároco. No corporativo e compulsivo quadro eclesiástico, as atitudes desviantes eram, como tem
sido referido, penalizadas através da negação dos sacramentos e demais serviços religiosos e, sobretudo,
mediante a denúncia pública. Tais sanções repercutiam-se na subsequente (re)classificação social do
«arguido», cuja posição, na sequência de um tal incidente, resultaria ora desvalorizada, ora condenada ao
desprezo e até à exclusão ou ao ostracismo24.
Embora se lhe escapassem recantos da esfera privada de certas famílias e, por vezes, algumas mordazes
críticas ocorridas em certos lugares públicos de «má língua» (por exemplo, o lavadouro para as mulheres e
as tabernas para os homens), o pároco, quer confissão, quer pela informação das coscuvilheiras(os) da
aldeia, nomeadamente a criada-governanta, controlava grande parte do comportamento dos moradores,
sobretudo no espaço público, desde o nascimento ao casamento e à sepultura.

A Igreja Católica, apesar de constituir um dos expoentes da «grande tradição» e dispor de instrumentos
materiais e simbólicos poderosos e eficazes, conhece também fissuras internas e concorrências externas ao
ponto de paulatinamente deixar de ser a entidade (quase) monolítica na esfera simbólica. Se jamais dominou
totalmente elementos de dissenção inseridos nas práticas dos protagonistas da religiosidade popular, ela tem
sofrido, graças à crescente ascendência de elementos secularizados nas últimas décadas, uma forte
diminuição no seu predomínio simbólico-ideológico.
Embora sob a batuta das relações patrocinais assimétricas e sem alinhamentos de base classista,
misturando-se ou ocultando-se sob fenómenos de rivalidade faccionária ou interfamiliar, são, com efeito,
igualmente detectáveis nas arenas de Lindoso e de Aguiar dissidências ou reinterpretações religioso-
culturais contra-hegemónicas e práticas desviantes do poder eclesiástico a que Wertheim (1971:155) e
Huizer (1972:10) denominam de «contrapontos».
É certo que os moradores de Lindoso e de Aguiar, pouco propensos a distinções doutrinárias,
apresentam formas simbióticas e sincréticas de religiosidade e, porque destituídos de instrumentos
organizativos próprios, denotam reduzido grau de eficácia política. No entanto, o facto de assumirem como
alvo dos seus «contrapontos» a visível pessoa do pároco e nem sempre a instituição que o sustém não lhes

24
Tais sanções, tendo sido estipuladas no art. 20 do Livro d' Usos de Aguiar, elaborado em 1920, eram ainda aplicadas em inícios
dos anos setenta. No Alto Minho nomeadamente em Lindoso, como aliás noutras regiões (cf.. sobre o Algarve, Bastos 1987: 111
ss), as – aliás frequentes – situações de mancebia não eram objecto de processos de estigmatização tão acentuados como em
Aguiar. De resto, desde os anos setenta uma parte considerável dos moradores não toma a sério, como anteriormente, as eventuais
sanções. Por exemplo, perante a ameaça de não levantamento do féretro do sogro (ex)concubino, o morador Abílio teria replicado:
«Se o senhor abade quiser levantar o caixão, ele irá, seja como for... Se o meu sogro tinha uma mulher na casa dele, o senhor
abade também tem uma como criada ... » (A141).
Que tais sanções eram aplicadas já desde a Idade Média, cf. Mattoso 1985 I:403-404. Em relação a Aguiar e para o século XIX
registam-se diversos casos, cujas «vítimas» eram, em geral, «pobres», sendo de referir a negação da eucaristia a Vicente Luís,
criado, amancebado com Maria Alves (AOA 20-12-1861). Do mesmo modo, foram negados os últimos sacramentos, alegando
tratar-se de «dementes», a Maria Rosa, jornaleira (AOA 16-3-1861), a Domingos Castro, de 36 anos, lavrador concubino, o qual
foi encontrado morto na cama de «uma casa não numerada» e não recebeu os sacramentos por «andar louco» (AOA 20-3-1864),
a Maria Amorim, forânea e mãe solteira (AOA 5-3-1873), a Susana, solteira (AOA 25-9-1890) e a Manuel, de 28 anos, filho
ilegítimo, por ser «demente a nativitate» (AOA 29-10-1877).
Crença e Poder

retira, contrariamente ao que defende Cabral (1989:236), nem validade nem força contestatária face à Igreja.
Mais, um dos modos mais incisivos e corrosivos de os sujeitos dependentes exprimirem a sua
(cripto)dissidência perante a ortodoxa orgânica das elites dominantes consiste, como refere Scott (1977a:14-
15, 1985:235 ss, 1990:138 ss), em assumir como texto social e ajuizar, pela letra ou pelo espírito da própria
norma oficial, o comportamento duplo ou incoerente dos protagonistas da hierarquia do aparelho
eclesiástico. Mas ilustremos esta afirmação com alguns «contrapontos».
Hoje, como ontem, o pagamento da côngrua anual não tem suscitado fortes objecções entre grande parte
das casas, chegando mesmo algumas a considerar como um dever indeclinável o pagamento dos direitos à
Igreja. Nem sempre, porém, esta obrigação se apresentou pacífica, sendo de salientar que, no século XIX,
ela constituiu um dos conflitos correntes em Aguiar ao ponto de o pároco preferir enviar o seu criado a
cobrar as primícias devidas e ser forçado a recorrer ao Juiz de Paz contra alguns «devedores de primícias e
direitos de estola» (LCNC 10:29v, 24-12-1836), aliás com pouco sucesso. Ainda hoje se verifica uma
renitência latente e, por vezes, uma discordância aberta por parte dalgumas famílias que, além de se recusar
a pagar, tecem comentários depreciativos e mordazes, ora sobre o «parasitismo», ora sobre a «avareza» do
padre: «Não pago. Se quiser vinho, que o venha vindimar. Não admito que ninguém se arme em esperto»
(L98). Outros, embora concordando como o pagamento deste tributo eclesiástico, consideram-no, em
comparação com os serviços prestados, exagerado, irrazoável ou até injusto. Por exemplo, segundo um
morador de Aguiar, «quem doou o passalfê-lo para que os paroquianos, sobretudo pobres, não ficassem
sobrecarregados com primícias, pois o passal, bem administrado, dá rendimento suficiente» (A109) e,
segundo um outro de Lindoso, «se hoje o passal é pequeno, é porque os padres e os ricos, que controlavam
as confrarias, se apoderaram dalgumas parcelas» (L65).

Nos campos doutrinário e moral, entre as diversas manifestações de dissonância entre o normativismo
católico-clerical e a religiosidade popular é de salientar a marcante devoção a «corpos incorruptos» ou
santos locais nem sempre oficialmente canonizados25, o recurso terapêutico ao poder mediático da bruxa
branca – pelos moradores denominada«mulher entendida ou de virtude»26 –, as crenças nas deslocações
delobisomens e nas aparições de «corpos abertos» ou almas de antepassados defuntos. Dado que tais crenças
representam, em termos de doutrina teológica, claros «desvios» aos dogmas da transcendência e da
omnipotência divinas, os párocos e especialmente os bispos, nas suas visitas pastorais (por exemplo, em
Aguiar em 1959, 1968 e 1986), tentam afastar da mente dos moradores as referidas crenças. Estas, porém,
formando um contrapeso à doutrina oficial, funcionam precisamente como instrumento de luta simbólica
contra as versões oficiais da Igreja e de seu representante local. A pervasiva e operatória «presença» dos
espíritos dos parentes falecidos, actuando com recados concretos no quotidiano da maioria dos habitantes
crentes, faz parte do seu mundo vivencial, afectivo e está intimamente relacionada com enredos intra ou
interfamiliares e correlativos problemas pendentes e não resolvidos. Por diversas mulheres, e
designadamente em Aguiar, foram narrados casos de como elas, na escuridão da noite, costumavam ouvir,
nos caminhos e nas encruzilhadas, nos campos e junto das suas casas, batidas regulares, com pedras ou paus,
atribuíveis às almas de seu pai ou mãe, sogro ou sogra. O vaguear destes espíritos causar-lhes-ia sustos e
sobressaltos e não as deixaria em paz até que, por exemplo, se reconciliassem com os demais herdeiros nas
partilhas, repusessem a exigência dum direito a um parente ou vizinho ou satisfizessem determinadas
promessas tais como colocar velas ou azeite nas lamparinas ou mandar celebrar missas pela alma do
respectivo defunto(a).

25
Sobre os cultos devocionais, suas pré-condições e consequências, nomeadamente em Portugal, cf. Cabral 1986:258 ss e
sobretudo Vissers 1993:272-290.
26
Como remédios para estes outros contratempos (o trejugo de vacas, o mau olhado) a vítima deve munir-se com uma figa, fazer
uma oração ou, no caso do lobisomem, picá-lo com um aguilhão, condição indispensável para que aquele retome a figura humana.
A consulta da bruxa(o), sendo expressão dos problemas e das tensões internas, era particularmente eficaz em certas doenças
designadas como erisipela, engaranho, espinhela e outras. Pelo ritual da defumação e pela receita de ervas ou plantas, o agressor
era identificado e, seguidamente, expulso ou transferido.
Estas crenças «mágicas» são, quando não interditas, desvalorizadas pela religião oficial. Autores como Durkheim (1991:101)
considera as relações resultantes dos procedimentos e rituais mágicos como individuais ou domésticas, isoladas e clientelares, não
duradouras e não eclesiásticas.
280
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

Acerca da referida devoção aos santos, poder-se-á dizer que, se a partir de 1965 foram caindo em
desuso as tradicionais ladaínhas propiciatórias de chuva, bem como as procissões com animais à volta da
capela de Santo António em Aguiar, são ainda frequentes as promessas aos santos e à Virgem, de quem
imploram ajuda ou com quem, em tempos de incerteza ou risco (doença, acidente, operação, migração)
negoceiam, de preferência ao deus inacessível e transcendente: «Tenho mais fée devoção na Virgem ou num
santo ou santa que em Deus, porque este não nos ouve e os santos ouvem-nos» (A100).
Uns por convicção, outros por receio das iras do santo, evitavam negociar com os padres a comutação
das suas promessas e, por isso, em regra, cumpriam e, embora em contagem decrescente, ainda cumprem
indefectivelmente as suas promessas: ofertas de géneros, caminhar em romagem amortalhados a pão e água
e/ou em silêncio até avistar o santuário da Senhora ou do respectivo santo, dar voltas, de pé ou de joelhos,
em redor do respectivo santuário ou capela e/ou aí jejuar durante uma novena ou meia novena.
O recurso instrumental à Virgem ou aos santos exigia e ainda exige todavia a prova de eficácia da
intervenção sobrenatural: cumprem-se as promessas, desde que os santos também satisfaçam os respectivos
pedidos e condições. Doutro modo, a promessa nãoera cumprida e, por vezes, dada a proximidade da
imagem e do corpo esculpido à maneira humana, tornava-se o próprio santo objecto de pressão ou retaliação,
escárnio ou mau trato, fenómeno aliás já observado por Durkheim (1991:94-95), Dias (1984:167), Sanchis
(1983:57) e Santo (1984: 136-137). Relativamente a Aguiar, consta que à imagem de S. Bento lhe falta um
braço devido ao facto de o santo não ter respondido ao pedido de um transeunte devoto e, em freguesia de
concelho vizinho, perante o não atendimento às súplicas de chuva, os moradores embrulharam o santo em
bosta e retorquiram-lhe: «Agora se quiseres limpar-te, manda vir chuva e lava-te!».
Semelhantes crenças e, em particular, a prática das promessas – cujo objectivo negocial, analogamente
ao que ocorre no patrocinato civil27, se cifra na prevenção do mal e na obtenção duma segurança mínima nos
afazeres terrenos – têm induzido alguns sociólogos da religião a sublinhar o espírito pragmático dos
camponeses, cuja acção, além de instrumental (11:1), é designada com propriedade como «profanação»
(Scott 1977a:29) ou como «manipulação profana e profanadora do sagrado» (Bourdieu, 1971:308), aliás no
seguimento da análise weberiana a este respeito: «Por regra geral, o campesinato mantinha-se
primariamente envolto com o tempo mágico e a magia ou o ritualismo animista; porém, à medida que se
desenvolvia uma espécie de religião ética, o foco deslocava-se para uma ética puramente formal, assente na
regra«dou para que dês» e isto quer em relação a Deus, quer em relação aos padres» (Weber, 1978:470).

A concepção utilitária da crença manifesta-se ainda no facto de, sempre que a contrapartida da promessa
não seja alcançada ou o infortúnio se torne irreversível, os membros das famílias afectadas, quando não
interpretam o revés como simples «castigo divino», atribuem tal contratempo à acção de um «inimigo» ou
vizinho malquerente, o qual, por sua vez, poderá ter feito um pacto com a bruxa ou até com o diabo. É neste
pressuposto que, na medida em que a acção da Virgem, do santo (ou do médico, em caso de doença) não
resulte eficaz, então recorrem, simultânea ou sucessivamente, ao curandeiro e à bruxa(o), de modo a
esconjurar o mal ou, pelo menos, difundir o risco da «desgraça». Dentre 119 casas em Aguiar e 90 em
Lindoso, directa ou indirectarnente observadas, a bruxa seria visitada por cerca de 60% e 80% das famílias
respectivamente, índices estes bastante elevados. Porém, como explicar o recurso tão frequente à bruxa?
Operando para crentes de colectividades relativamente autárcicas como Aguiar e sobretudo Lindoso, a
bruxa, sob o idioma e a acção de transferência ou expulsão dos (maus) espíritos, ocupa-se justamente de
problemas concretos, de polaridadesinterpessoais e hostilidades interfamiliares. Nestas quase clandestinas
diligências e transacções sobressaem as mulheres não só como clientes mas também como operadoras, cuja
actividade constitui mais um dos aspectos onde a oposição sexual manifesta uma homóloga oposição entre a
religião oficial controlada pelo sacerdote-homem e a privada gerida, em regra, por uma bruxa-mulher, ou
seja, «uma especificação da oposição entre a extraversão da política ou da religião pública e a introversão
da magia privada, arma envergonhada e secreta dos dominados, feita essencialmente de ritos que visam
domesticar os homens» (Bourdieu 1980:133).

27
Contrariamente ao que sustentam Davis (1977:149) e Cabral (1989:187) e tal como com justeza apontam Campbell (1964:342),
Boissevain (1966:30-31) e Cutileiro (1977:360 ss).
Crença e Poder

As suspeitas ou acusações de bruxaria, ao mesmo tempo que reforçam hostilidades interfamiliares, são
canalizadas contra alguns bodes expiatórios, em regra indefinidos, representando tal mecanismo mais um
paliativo que uma solução aos desajustamentos e às contradições sociais locais.
Tais crenças e rituais de protecção, acompanhadas de actividades semi-secretas, intensamente vividas e
indicativas do poder exorcizante das «benzedeiras» e «feiticeiras», impelem alguns padres a pactuar, a
colaborar ou, pelo menos como o de Lindoso, a contemporizar, demonstrando uma considerável
flexibilídade e compreensão perante as práticas «supersticiosas» dos paroquianos e correlativas actividades
das bruxas tais como a defumação e a benzedura de ervas amargas, as receitas de plantinhas, sapos e
salamandras, a leitura do livro de S. Cipriano e a posse de certos talismãs ou objectos-feitiche (ferradura na
canga do carro de vacas, cruz, signo-saimão, chifres nas portas)28.
Além destas, outras formas de dissidência e crítica– umas algo dissimuladas, outras mais patentes –, são
igualmente detectáveis no fazer e no dizer de moradores de ambas as aldeias e doutras limítrofes quanto à
dupla moral dos padres ou à discrepância entre o discurso e a prática desviante. Semelhantes críticas e
práticas, representando brechas na autoridade moral da Igreja, têm-se tornado visíveis mormente quando
determinados padres tendem a condenar «deslizes» pré ou extramatrimoniais de paroquianos e a «esquecer»
as suas secretas escapadelas sobretudo quando com mulheres da aldeia onde residem; quando pregam a
pobreza evangélica e evidenciam ambição ou ganância na exigência do pagamento rigoroso das primícias
mesmo aos mais pobres; quando apelam à tolerância e ao perdão cristãos e eles próprios se deixam conduzir
por espírito de vingança29 para com o infractor, o que induz moradores a colocar ironicamente na boca do
padre: «Olhem para o que eu digo, não olhem para o que eu faço».

Por regra e em tempo normal, a Igreja e seus representantes, apelando à sua «vocação» transcendente à
esfera profana, aos conhecimentos especiais do seu múnus ou à monopolização e à pureza da doutrina (cf.
Weber 1978:425-426, Mannheim 1976:39), dissimulam a sua função sócio-política e ideológica sob a forma
simbólico-religiosa, através do processo de absolutização do relativo e legitimação do arbitrário, a que alude
Bourdieu (1971:310). Assim, a fim de legitimarem o seu papel de zeladores e juízes morais e, deste modo,
acumularem crédito social e espiritual nas suas respectivas freguesias, ostradicionais párocos de Lindoso,
Aguiar e freguesias circunvizinhas procuravam criar uma imagem isenta de sentimentos baixos de despeito,
propósitos de vingança ou actos «imorais» na esfera sexual, evitando ser responsabilizados em público e
pretendendo actuar como se estivessem acima dos assuntos «mundanos». De facto, porém, contrariamente
ao que Tolosana (1979:86 ss) sugere para a Galiza, nem sempre os párocos eram autoridade reconhecida ou
se comporta(va)m como figuras imparciais. Se apaziguavam determinados conflitos entre famílias,
caucionavam ou incitavam outros sem contudo o assumirem publicamente30. Sob um manto supramundano,
tomavam amiúde partido não só em questões políticas, como foi referido, mas inclusivamente em diversas
contendas interfamiliares, desvanecendo-se assim em determinadas situações a mencionada dissimulação.
Alguns párocos tais como o padre Vaz em Aguiar discriminavam as famílias de acordo com o seu grau de
lealdade político-religiosa, a sua relação de parentesco e/ou posição social – aliás visível, por exemplo, na
denúncia ou não de relações de mancebia, no tratamento e no tempo dedicado a cada casa na visita pascal.

28
Já referido por Fontes (1974- 1:32 ss) e Guerreiro (1982:220 ss). Quanto menos acessíveis forem ao pároco as alavancas do
poder eclesiástico ou civil e quanto mais ele estiver ligado às populações, maior a probabilidade de o padre tolerar a acção da
bruxa e ceder às pressões dos paroquianos, tal como ocorre em Lindoso, aspecto este já realçado por Callier-Boisvert (1966:272
ss) e Cabral (1989:225).
Sobre a distinção entre a «bruxa branca» e a «bruxa exorcista», cf. Baroja 1968:280 ss, Pitt-Rivers 1961:195 ss, Christian
1972:192 ss, Tolosana 1987:63 ss, 14-9 ss.
29
Entre outras expressões de retaliação, é de referir o facto de o padre Mateus, no próprio dia de todos os defuntos a 2-1 l-l 984,
declarar publicamente que só celebraria missa apenas pelas almas daqueles, cujas famílias tivessem pago as primícias!
30
Por exemplo, o falecido padre Vaz, enquanto, perante um caso de relações pré-matrimoniais nos anos cinquenta pressionara
moralmente o prevaricador no sentido de reparar a honra da ofendida casando com ela, no caso de um sobrinho seu, alegadamente
implicado numa gravidez de moça considerada mais modesta (TB P24-25/78 M1082 Li28:19, 6-3-1978), opor-se-ia frontalmente
à consumação do casamento. De modo análogo, o mesmo padre, enquanto silenciava relações concubinas ou outros «desvios»
morais por parte de membros de famílias mais providas, a jornaleiros (A56) não se inibiria de afrontá-los ou censurá-los
publicamente, recusando-lhes, por exemplo, a hóstia eucarística.
282
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

Entre os indicadores de novos pontos de fractura dos residentes e/ou originários de Lindoso e de Aguiar
com o domínio eclesiástico conta-se hoje um maior grau de incumprimento de certos preceitos eclesiásticos
que no passado, como tem sido referido. Assim, embora mantendo-se um elevado índice de assistência à
missa e sobretudo de cumprimento da «desobriga», verifica-se, em particular por parte de membros de
grupos sociais não agricolamente ocupados, uma prática irregular ou mesmo de incumprimento, associado
não raro a uma votação política mais à esquerda31. Entre outros sintomas tradicionais mas denotativos de um
posicionamento não seguidista, crítico e, por vezes, mordaz, por parte dalguns paroquianos sobretudo
artesãos, operários ou empregados, são de referir a desvalorização da figura do sacerdote – de que a
sarcástica enumeração dos específicos «mandamentos dos padres para os padres»32é ilustrativa –, a
circulação de boatos, a desobediência a certas prescrições eclesiásticas (v.g. execução de certos trabalhos ao
domingo), os reparos à falta de pontualidade do pároco de Lindoso ou os comentários depreciativos sobre a
inabilidade ou os handicaps do recém-falecido de Aguiar com as suas missas demasiado longas, as frases
feitas, a gaguez33.
Estas críticas tinham geralmente lugar nas tabernas que constituíam alvos preferidos da virulência de
padres antiquados como o de Aguiar que as considerava «antros de vícios» frequentados por uma «clientela
baixa»!34 Com efeito, era na taberna e hoje no café onde, além de se relativizarem pela anedota
determinados dogmas católicos sobre a existência e as representações do céu e do inferno, mais se
pronunciavam as afrontosas «blasfémias» e «palavrões», cuja função de válvula de escape parece ser
evidente.
Provavelmente devido à persistência tardia de formas comunitárias fora do âmbito eclesiástico, a
população de Lindoso evidencia, além de um menor grau de assistência regular à missa (53.4%) que em
Aguiar (76.6%), uma mais forte tradição anticlerical. Entre marcas vivas desta tradição de grande impacto e
participação popular relevam as celebrações da festa do Carnaval35, organizadas pela facção opositora do
pároco à margem deste e da Igreja. Exprimindo uma real mas (quase) inofensiva libertação do colete dos
habituais tabus morais e, eventualmente, até uma relativa inversão das normas e hierarquias estabelecidas, o
itinerário do irreverente cortejo carnavalesco, com os seus carros alegóricos, figuras mascaradas e «orgia»
pública nocturna, teve designadamente em 1986 como um dos alvos principais de mordaz crítica o pároco,
sobre o qual foi parodiado um julgamento e salmodiado umrequiem.

31
Sobre a correlação entre prática religiosa e comportamento político, bem como sobre eventuais dissonâncias entre confissão e
práticas religiosas, cf. Lenski 1963:134-211, Isambert 1972:14 ss, Almeida 1986:386 ss, Bennema 1992:179 ss. Este último autor,
negando ou desvalorizando a articulação das práticas religiosas com outras variáveis designadamente sócio-económicas e
políticas, tende contudo a reificar a prática religiosa como o factor explicativo do diferenciado comportamento entre trabalhadores
assalariados do Alentejo e jornaleiros da região do Alto Douro (cf. Bennema 1992:175, 189 ss).
32
Os quais, segundo um artesão de Aguiar, rezariam assim: «primeiro, amar a deus por dinheiro; segundo, roubar a deus e a todo
o mundo; terceiro, comer carne de carneiro; quarto, jejuar depois de farto; quinto, vinho: branco e tinto; sexto, mulheres: velhas
e novas, todas a eito; sétimo, não roubar mó do moinho nem pedras do lagar por não as poder arrastar; oitavo, viúvas e casadas;
nono, a mulher só faz o homem corno; décimo, por isso matar o corpo e a mulher depois» (A66). Sobre outras formas de
contestação de aldeões aos padres, cf. também Riegelhaupt (1982:1218 ss). Sobre o menor grau de conformismo dos artesãos, em
comparação aos lavradores, cf. Geraldes (1989:116), posicionamento este igualmente observável em Lindoso e em Aguiar.
Formas de anticlericalismo popular na católica França rural são excelentemente descritas por E. Weber (1976:357 ss).
33
Quanto ao seu papel de guardião-mor da moral tradicional, travando e até proibindo o namoro por parte de moças associadas na
irmandade «Filhas de Maria», o padre ameaçava-as com a expulsão, dizendo: «Eu já cortei a da Grila e a da Pila, qualquer dia
corto o resto e acabo com a irmandade!...» episódio e termos referentes a apelidos de família que, pela sua ambiguidade e
conotação sexual, teriam dado ocasião a alguns sarcásticos e hilariantes comentários na aldeia e nas aldeias circunvizinhas.
34
Cf. P1021 CR/CTT, Braga, 1981. Sobre as tabernas, enquanto locais de difusão profana, podia ler-se, numa circular episcopal
no século XIX, «os nefastos contágios que deixaram atrás de si as tabernas de diferentes cidades do Reino» (CL 15:15, 28-2-
1819). Sobre a taberna, enquanto local de dissidência e «subversão» e de expressão da cultura popular, cf. Thompson 1982:51 ss,
Scott 1990:121 ss.
35
As pessoas, mascaradas de diversas personagens locais (o padre, o cabo-polícia) e acompanhando os respectivos carros-de-bois
(de «ervas», de «palhaço» ou «pai-velho») adornados de mimosas, giestas e bruxos, percorrem descontraidamente a aldeia
cantando, ao som do acordeão, dos ferrinhos e doutros instrumentos, diversas canções locais tais corno a cana verde e a chula. O
ponto alto deste ritual espontâneo e transgressivo ocorre à meia-noite quando o «corpo» do «pai velho» é queimado, a que se
segue a leitura do testamento onde são recitados os respectivos legados e deixas de herança do «defunto». Sobre o Carnaval
noutras localidades em Portugal, cf. E. Oliveira 1984:51 ss.
Crença e Poder

Resumindo, poder-se-á concluir que a simbiose da proximidade vivencial e, amiúde, da própria


ascendência sócio-cultural camponesa dos padres, por um lado, e da sua distância e inacessibilidade devido
à sua função sacerdotal, por outro, tem tornado por vezes arriscada mas normalmente eficaz, ao longo das
gerações, a acção de dominação da Igreja. De nenhum modo, porém, poder-se-á caracterizar a função do
pároco como comunitariamente profilática e contrapô-la, em termos dicotómicos, à acção terapêutica dita
«familista» e/ou «anti-social» da bruxa. As formas de dissidência e crítica dos moradores aos padres
pressupõem a assunção de determinadas normas e valores que,além de articuláveis com os seus interesses
materiais (Scott 1985:235, 305 ss), constituem o seu texto social de crítica a práticas clericais indiciadoras
de uma moral dupla ou incoerente com a doutrina proclamada.

A festa da Peneda (foto 33)

284
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

A visita pascal, Aguiar (.foto 34)

11.5. A festa: competir e integrar

Tal como Boissevain (1983: 17 ss) assinalara a respeito de Malta, não obstante a relativa quebra das
práticas religiosas oficiais, também Lindoso, Aguiar e freguesias vizinhas parecem conhecer uma intensa
reviviscência da festa que, no pós 25 de Abril de 1974, além dos motivos tradicionais de interconhecimento
e diversão, surge articulada com objectivos políticos locais. No entanto, o recrudescimento ou a
multiplicação das festas já se vinha tornando visível ora no aumento de despesas, ora no retomar dalgumas
abandonadas a partir de finais dos anos sessenta (por exemplo, S. Sebastião em Aguiar), ora ainda, por
pressão ou conveniência dos emigrantes, na transferência de outras para o verão (por exemplo, S.
Sacramento em Lindoso).
As festas são rotativamente organizadas por um juiz e mordomos36– dois em Aguiar e cinco na
freguesia do Lindoso (dois de Lindoso-aldeia) – os quais, rivalizando amiúde com os festeiros anteriores, se
responsabilizam pelos preparativos relativos a aspectos tais como a compra de foguetes e o fogo de artifício,
a encomenda de andores e bandas de música, a preparação de arcos com buxos e flores de papel, a
contratação do pregador e demais padres para as cerimónias religiosas ou ainda a confecção do jantar.
Nas festas mobilizam-se as qualidades organizativas, investem-se recursos económicos resultantes de
uma parte quer do excedente agrícola, quer das poupanças da emigração, sendo de referir um aumento de
gastos, tal como o denota a pequena amostragem relativa à festa de S. José em Aguiar: 1.580$00 em 1956,
3.413$90 em 1965, cerca de 5.600$00 em 1975 e 50.000$00 em 1985. Para este aumento dever-se-á ter em
conta, além do crescendo da inflação desde 1974, a geral melhoria das condições de vida e um maior suporte
monetário por parte dos mordomos, em especial quando emigrantes.

36
Ao juiz ou a um dos mordomos cabe-lhe automaticamente ser o Juiz da Cruz da visita pascal e responsável pela manutenção
infra-estrutural das actividades religiosas, além de competir-lhe designar a família organizadora da festa para o ano seguinte.
Crença e Poder

A fim de cobrir os gastos ou reduzir eventuais défices, a colaboração – outrora e até aos anos setenta
predominantemente em espécie e, desde então, cada vez mais monetária – por parte da (quase) totalidade das
casas, não deixa todavia de continuar a fazer-se. Assim, os mordomos, assistidos por parentes e jovens,
recolhiam e recolhem fundos através de voluntárias colectas porta a porta, cuja acumulação, além de aliviar
os encargos dos mordomos, reverte em seu prestígio. Não raro os mordomos e seus auxiliares
pressiona(va)m, sob formas ora graciosas ora grosseiras, os moradores mais reticentes ou relutantes. No
passado era, porém, sobretudo o pároco que estipulava as respectivas contribuições mínimas para certas
festas, as quais eram consideradas exageradas por parte dalgumas casas sobretudo das mais desprovidas.
Também em Lindoso e em Aguiar e demais freguesias circunvizinhas, a festa tem conhecido, ao longo
do tempo, duas facetas convencionalmente designadas de sagradoe de profano, cuja articulação se tem
caracterizado por simbiose e tensão, equilíbrio e desequilíbrio, integração e ruptura. Porém, esta «dialéctica»
durkheimiana não se desenrola num vazio social, mas é protagonizada por actores e grupos sociais que, ora
se movem, (con)fundem e integram, ora se destacam, diferenciam ou até se antagonizam. Neste sentido, se a
festa detém uma função de troca e circulação de bens, de regeneração e catarse identitárias e representa, de
certo modo, momento colectivo lúdico e afectivo dos moradores que ocupam o espaço geo-social central da
aldeia, de modo algum a festa funciona, tal como alguns autores pretendem37, como um mecanismo de
nivelamento social, nem sequer de temporária igualdade. Por outro lado, não só por altura da festa principal
mas nas mais diversas celebrações simbólicas, designadamente no Carnaval e na visita pascal, a festa nem
sempre é um «rito de integração», como pretende Cabral (1989:163 ss), nem tão-pouco detém apenas, como
defende Freeman (1970:113), a função de «manutenção da ordem», sendo susceptível de assumir, tal como
já o referiram Arellano (1959:189 ss) e Scott (1990:185 ss), uma função de desintegração sócio-cultural e
não raro converte-se num catalisador de confronto ou mesmo de rebelião38. Nem sequer algumas das suas
componentes como sejam as procissões e as arrematações representam o que O’Neill (1984: 166) projecta
como excepcionais «exemplos de acontecimentos que colocam os moradores em pé de igualdade», se bem
que posteriormente o próprio O’Neill (1990:513 ss), ao estudar a matança do porco, venha, reforçado aliás
no estudo de C. Cerqueira (1987: 147 ss), a rectificar a sua posição no sentido de articular os trabalhos
lúdicos com a procura de prestígio e poder. Com efeito, também em Lindoso e em Aguiar, se a festa
aproxima, atenua clivagens e as transfigura, também constitui o ensejo em que não só se afirmam as
tendências de acomodação, de hierarquização de papéis e de hegemonização do espaço religioso e profano
(igreja, procissões e, em especial, comissões de festas, leilões), por parte dos seus protagonistas tradicionais,
como também emergem fenómenos de competição interdoméstica e contestação político-religiosa – não raro
associados a situações de mobilidade e reclassificação sociais das famílias na pirâmide aldeã e, em especial,
a momentos de confronto entre facções ou caciques locais. Tal se torna visível no traje e noutros objectos
simbólicos designadamente no meio de transporte – no passado, o cavalo ou a égua, hoje o moderno e

37
Cf., entre outros, Foster 1967:213-218, Freeman 1970:96 ss, Nash 1971:173 ss, Eijken 1983:74, 78, e, em Portugal, P. Monteiro
(1985:78 ss) e, de certo modo, J. Leal 1994:158 ss, J. Costa (1990:16 ss), tentanto rebater a tese da reversibilidade de recursos
defendida por Bourdieu (1980:209 ss), assume que os gastos ostentatórios da festa, efectuados por emigrantes do Alto Minho,
exprimem uma simples reivindicação de status ou prestígio e asseguram uma função de coesão e integração da comunidade, em
termos durkheimianos. Sendo certamente pertinente sublinhar a reivindicação estatutária ou de prestígio na festa, já, porém,
pressupor as economias da dádiva e da dissipação como desinteressadas, gratuitas e, sobretudo, sem repercussões de interesse
económico e/ou legitimação política, além de teoricamente discutível (3:2.2), é refutável perante a evidência empírica constatada
em Lindoso e em Aguiar (10:5, 11:5, 13:1, 13:2 e 13:4), bem como em aldeias do nordeste transmontano na Serra do Barroso tais
como Negrões e Lama Chã estudadas por C. Cerqueira (1987) a propósito da matança do porco.
38
Também Gluckman (1962), admitindo que os rituais festivos comportem efeitos de desordem e rebelião, sublinha todavia a
função dos mesmos no sentido da reintegração institucional. Em relação a Aguiar, o padre Mateus que, além desta, paroquiava a
vizinha freguesia de Quintiães, teria prometido publicamente alternar anualmente a visita pascal ao domingo, de modo que cada
uma das freguesias por si administradas a tivesse bienalmente ao domingo, promessa que afinal não viria a ser cumprida para com
os moradores de Aguiar. Defraudadas as expectativas, esta falta viria a ser aproveitada pelo mediador Donato que, convidando em
1983 um marista conterrâneo e, em 1984, um padre sem paróquia, organizaria sem a presença do pároco a visita pascal. Os folares
reverteram respectivamente para as obras do Centro Social e para o pároco «visitante», atitude que lhe valeu a Donato e ao
presidente da Junta o qualificativo de «ladrões», lançado do altar pelo pároco. Para mais exemplos de despiques à volta da festa e,
eventualmente, da estratégia clerical de disciplinar, moderar ou regular a festa popular, cf. Serrador 1983:208-214, Almeida
1986:292 ss, Geraldes 1987:312 e J. Leal 1994:272 ss, interpretando este último autor as relações entre o clero e o povo sob forma
de coexistência. Sobre os diferentes sentidos dados à festa num contexto de luta político-ideológica, cf. Brass 1986:47 ss.
286
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

vistoso (tipo de) carro –, no quantitativo das ofertas e, sobretudo, na confirmação, na contestação ou na
reestruturação da liderança local pela via faccionária ou partidária. Por isso, mais que um mecanismo de
redistribuição ou restauração do equilíbrio, como sugerem Wolf (1959:216) e sobretudo Foster (1965:305) e
Freeman (1970: 100), o consumo extravagante, principalmente na comida, na bebida ou noutros aspectos
como a demonstração de fogo de artifício, representa uma forma de investir para, mais tarde, recolher
dividendos de prestígio, políticos e, eventualmente, económicos.
Ressalvando alguns momentos mais atribulados do domínio eclesiástico local, aliás já referidos, os
padres sob a umbrela da doutrina e das representações simbólico-religiosas, têm detido posições de
distinção, ascendência e poder sobre os paroquianos não só no seu quotidiano como, em particular, nas
festas. Além de presidir à comissão de festas e influenciar juízes e mordomos, por tradição era o pároco
quem, em regra, determinava o programa da festa ou, em alternativa, podia vetar algum dos seus
componentes profanos, pontificava com a sua presença ornamentada pelos símbolos cerimoniais e se
destacava no núcleo central da procissão. Nesta, além do pároco, distinguiam-se, com certa pompa, os
portadores dos andores e estandartes e, sobretudo, o préstito dos mordomos, seminaristas e demais
colaboradores, ora agarrando o pálio, ora seguindo-o de perto.
Na competição interfamiliar detectam-se igualmente comportamentos de não colaboração e mesmo de
oposição a determinada festa. A divisão faccional faz com que, enquanto famílias outrora beneméritas, ou
porque tenham sido postergadas por novos promotores das festas e doutras ou porque estas sejam lideradas
por protagonistas da facção rival, recusam-se a contribuir financeiramente ou, quando muito, fazem-no de
modo parco e para serem poupados à «má-língua».
Mais que nas procissões e demais solenidades religiosas, manifesta-se a hierarquia do poder económico-
político local nos cortejos, no leilão dos andores em Lindoso ou nas arrematações das ofertas em Aguiar.
Transportando os ofertantes, nomeadamente as mordomas, produtos agrícolas em cestos à cabeça ou
pendurando dinheiro no andor ou no chapéu – como o fez em 1979 o proprietário padre Campela com a sua
oferta de 10.000$00 para o Centro Social –, ali não só contrasta a abundância festiva face à sobriedade
quotidiana, como transparece claramente a emulação, a diferenciação e/ou a mobilidade social das famílias,
simbolizada no valor das dádivas e arrematações. Estas, designadamente em Lindoso, são anunciadas em
público, de modo a validar ou (re)definir as respectivas posições dos contribuintes no corpo hierárquico
aldeão. Destinados, em regra, a recolher ofertas e fundos monetários para subsidiar a festa ou outros
projectos locais, os cortejos e os leilões constituem igualmente momentos, para as famílias mais
endinheiradas, não só de ostentarem a beleza das suas mordomas com as respectivas jóias e colares, mas
também de exibirem a sua ascensão sócio-económica. Na óptica de cada arrematante, portanto, não
desvalorizar e, se possível revalorizar, numa competitividade económico-afectiva, determinada oferta e o
inerente capital simbólico da própria mordoma que a transporta, tal como o salientaram para o Alto Minho
Araújo (1967:10), J. Costa (1990:12) e, em particular, Brettel (1983:192) e Geraldes (1987:338). Neste
campo sobressaem, em especial, os emigrantes, para quem o assíduo papel de festeiros, com os seus
avultados investimentos, não só funciona como fuga compensatória ao ambiente frio, anónimo e até hostil
nos países de emígração, como serve de ocasião para competir ou inserir, por vezes a contragosto do pároco,
novos elementos profanos na festa ou para mostrar um sucesso que lhes permitia (re)integrar-se e subir na
hierarquia da aldeia, aspecto este também sublinhado por Almeida (1986:290), Geraldes (1987:312) e
Brettel (1991:98).
O despique, por vezes subtil, na organização da festa não é de hoje, como verificámos em 11:2. Já as
famílias mais providas e, em especial, os velhos ex-emigrantes transatlânticos prezavam-se de fazer recair
sobre si a manutenção do simbólico. Além de custear e rivalizar pela melhor organização da festa, são de
referir em Aguiar as ofertas à Igreja, a cedência de terreno para o cemitério e a reconstrução da capela de
Santo António pela família Fortuna; em Lindoso, a restauração da igreja por Ferraz, cuja dádiva de
220.000$00 (13:2), demonstrativa do forte património fundiário da família, induziria a filha a «pavonear-se»
com certo ar de magnificência sobretudo com o seu novo Mercedes: «Cá vai a ricaça de Lindoso».

Relativamente à iniciativa e ao carácter da festa é todavia de destacar uma notável diferença entre a
festa realizada antes de 1965 ou mesmo de 1974 e a actual. Hoje a festa é menos localista e corporativa,
Crença e Poder

mais profana, monetarizada e estandardizada pela importação de forâneos elementos modernos39, o que
implica uma desvalorização do espaço aldeão e, sobretudo, dos seus tradicionais protagonistas e elementos
religiosos. Enquanto antes de 1974 mesmo as iniciativas de foro civil necessitavam dofiat da Igreja e, em
particular, do seu pároco (por exemplo, o leilão no adro, a implementação do altifalante), actualmente, num
contexto menos hegemonizado pela Igreja, nem sempre é sob a alçada desta que tais iniciativas com a
respectiva recolha de fundos são apadrinhadas. Por outro lado, ser investido com uma capa para figurar na
procissão ou inculcar-se como confidente do pároco não são funções tão aneladas e valorizadas como
dantes. Além disso, os respectivos líderes laicos da Associação Recreativa em Lindoso e do Centro Social
em Aguiar constituem hoje, a gosto ou a contragosto do pároco, pólos alternativos de acção grupal (festas,
encontros) e aglutinadores de outras iniciativas extraparoquiais e discursos mais laicizados. Por isso,
residentes e emigrantes, sobretudo não lavradores, tendem a exibir as suas capacidades organizativas ou a
canalizar as suas ofertas não só nem principalmente através do eixo eclesiástico mas aproveitando outras
oportunidades como, por exemplo, a festa do emigrante em Aguiar, organizada pelo mediador Donato sem o
patrocínio do pároco ou a festa do Carnaval em Lindoso à margem da Igreja. Mais, em 1987, o facto de um
dos mordomos da grande festa anual em Lindoso ser precisamente o líder da facção anti-padre e o pároco se
recusar a celebrar a missa da festa alegando outro compromisso em Cidadelhe não impediu que a festa,
animada pela banda e liderada pelos mordamos, tivesse lugar e que grande parte da população estivesse
presente, participasse e contribuísse monetariamente. Entretanto, um pequeno folheto circulava «procura-se
padre, paga-se: um tiro».
Por fim, sempre que as relações de comando na aldeia não estejam definidas e/ou se intensifiquem as
lutas internas entre a facção aliada ao pároco e a(s) da oposição, a festa da Páscoa e a respectiva visita pascal
– com a intensidade pletórica de encontro e alegria que a caracteriza – constitui o momento de confronto
entre os respectivos caciques ou líderes, servindo, sem ser assumido como tal, de teste das relações de força
locais,conforme o alinhamento das casas em abrir ou não a porta ao pároco e seu séquito. Se em Lindoso
antes de 1976 e, em Aguiar, antes de 1980, raras eram as casas que o pároco se recusava visitar ou que lhe
negavam a entrada, a partir a daí o aumento de tensões anti-padre e o recrudescimento de lutas faccionais
veio permitir que a facção dominante, em colaboração com o pároco (e, em Aguiar, à sua revelia em 1983-
84) organizasse a visita pascal, restando à facção subordinada ou ao crescente número de dissidentes recusar
a entrada ao pároco e à sua comitiva.

*
**

Resumindo, as crenças e práticas religiosas, em particular as festivas, por parte das populações de
Lindoso e de Aguiar, genuinamente suas ou induzidas de fora, se manifestam convergência ou fusão com a
religiãocatólica, apresentam todavia face a esta e, sobretudo, ao seu aparelho orgânico e seus representantes
visíveis, pontos de dissidência, divergência e até contestação frontal. Infracções ou desvios praticados pelo
padre perante a doutrina proclamada têm por efeito relativizar dogmas e desprestigiar os seus arautos. Se os
«pontos» dos discursos e das práticas da Igreja e da religião católica se mantêm dominantes, os
«contrapontos» de dissidência, contestação e resistência, designadamente os veiculados pela religião
popular, para com os representantes do aparelho eclesiástico, embora se encontrem, em larga medida,
«incorporados» no quadro católico, não são, de modo algum, desprezíveis e assumem expressões visíveis
entre habitantes de ambas as aldeias. Neste contexto, são de salientar os desacordos, mais em matéria
temporal e disciplinar que doutrinária, entre o poder centrado no pároco e seus auxiliares, eventualmente
inseridos nas Confrarias ou na Comissão Fabriqueira e o local laico, simbolizado na Junta de Freguesia e,
por vezes, nos juízes e mordomos. Tais divergências manifestam-se, por exemplo, na administração dos

39
Cf., a este respeito, Champagne 1977:74 ss, Boissevain 1983:20 ss e, em Portugal, Sanchis 1983:96, Polanah 1987:79, 89 ss e J.
Costa 1990:12. Relativamente a Aguiar e sobretudo Lindoso, entre outras manifestações da transição da festa antiga para a
modernaé de referir a substituição dos foguetes de mortalha pelos de artifício, a crescente rarefacção dos antigos bailes ao som da
clássica concertina e a correlativa multiplicação de bailes com os modernos conjuntos munidos de guitarra eléctrica e bateria.
288
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

dinheiros da paróquia, de capelas de santos e, eventualmente, em intempestivas interferências do pároco, sob


a forma de censura ou freio, nos devaneios e nas extravagâncias espontâneas no acontecimento social por
excelência: a festa.
As situações de dissidência e contestação ocorrem particularmente quando estão em jogo interesses
«familistas» concorrentes. Com efeito, quer em Lindoso, quer em Aguiar, cada uma das facções, reunidas
em torno das famílias mais influentes da aldeia, tem procurado disputar em seu favor a anuência, a
colaboração ou inclusive a cumplicidade do pároco para seus próprios objectivos estratégicos. Se o padre se
compromete com uma das facções, terá, em regra, a declaração de guerra da facção rival.
A Igreja e, em particular o seu representante, o pároco, que até inícios dos anos setenta constituía uma
peça-chave no provimento da organização comunitária, vem sofrendo sobretudo desde então, senão uma
erosão, pelo menos uma notável redução do seu poder que o torna apenas mais um entre os demais
contendores do poder local. Nas lutas do poder local a festa representa um dos elementos privilegiados onde
não só têm lugar a comparação e a emulação sobre os haveres como se reflecte uma permanente mas móbil
hierarquização dos lugares cimeiros na aldeia.

A medida de assentimento ou contestação depende do jogo cruzado e competitivo entre famílias


preponderantes, dos seus despiques e, sobretudo, das alianças que cada padre faça a nível local, sendo, por
conseguinte, o seu grau de aceitação, antes, função da ausência ou concorrência de patronos e mediadores
laicos e da respectiva correlação de forças. Condição de êxito da acção pastoral constitui o facto de o pároco
não se deixar instrumentalizar como joguete da política interna de facções, ou fazendo-o, opte pela facção
localmente mais forte e legitimada.
Tradicionalmente a orientação moral-religiosa que, sugerida ou imposta pelos párocos em tempos mais
recuados, teria uma função reguladora dos conflitos e, por vezes, de ajuda humanitária-cristã aos mais
fracos, tem conhecido, a par de uma recorrente polaridade face aos moradores da colectividade, uma
progressiva deterioração, correspondente ao que Weber (1974:117 ss) denominava «desencantamento» do
mundo religioso. A tal não será estranha a crescente incidência da economia de mercado em ambas as
aldeias a partir dos anos 70, acompanhada de elementos profanos de modernização e secularização (rádio,
televisão) e o impacto do pluralismo político articulado com a disseminação de saberes, a emergência de
mundividências alternativas e líderes concorrentes que, com as suas respectivas redes de mediação,
debilitaram os tradicionais e hegemonizantes poderes eclesiásticos.
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

CAPÍTULO 12

ENTRE A ALDEIA E O ESTADO: O MEDIADOR

Embora em contextos e sob formas diferentes, o sistema patrocinal, sem constituir um fenómeno
universal, tem sido co-presente a diferentes tipos de sociedades desde as patrimonialistas de ordenação
patrícia, passando pelas feudais-aristocráticas e colonizadas, até às actuais formas com diversos graus de
dependência: mais acentuadas nos sistemas de latifúndio, menos visíveis e marcantes nas sociedades
agrário-camponesas de minifúndio ou ainda nas sociedades industriais modernas1.
Em relação à Idade Média, diversos historiadores têm sublinhado as relações de dependência sob a
forma de homenagem e vassalagem. Convém entretanto referir que já na época da colonização romana
aplicavam os colonizadores uma táctica de integração clientelar, em que os velhos chefes tribais nativos
eram promovidos a uma espécie de aristocracia romanizada, possuidora de terra, com estatuto equivalente ao
dos patrícios romanos, sob condição de manterem sob controlo os seus súbditos2.

No âmbito da formação do moderno Estado-Nação, o patrocinato não se afirma apenas de modo formal
ou informal nas instituições locais, mas atravessa os aparelhos estatais intermédios e centrais e, tal como o
sublinham Vidigal (1988:20 ss) e P. Almeida (1991:33 ss), o próprio sistema eleitoral português nos séculos
XIX e XX. O caciquismo, enquanto fenómeno de exercício de poder, caracteriza-se por estar situado no
reino da discricionaridade, ou seja, nos antípodas da democracia e da liberdade, tal como o fizeram notar
Joaquín Costa (1984:20, 22) e Romero-Maura (1977:57 ss) quanto à evolução política da Espanha
contemporânea, particularmente na sequência da revolução de 1868.
Em Portugal, durante e após as lutas políticas entre a facção miguelista e a liberal no século XIX, o
fenómeno do alinhamento em base clientelar levaria Sérgio (1972:137) a comentar que a guerra civil entre
legitimistas e liberais seria «a guerra dos empregos públicos», situação que já tinha sido objecto de
referências por parte de Martins (1982 II:36 ss). De facto, o próprio recrutamento de funcionários e a
consequente expansão dos serviços públicos, fomentando a centralização e a burocratização estatais, tinha
por leitmotiv e efeito colateral o reforço de cada uma das principais facções políticas nos aparelhos do
Estado.
Se há um certo consenso quanto à constatação de relações clientelares sob a I República, já, porém,
quanto ao «Estado Novo» tem sido afirmado amiúde, não só pela elite salazarista mas também por

1
Sobre o nexo entre a casa grega (oikos) e patrimonialismo, cf. Weber 1978:231 ss, 381 ss, Sobre o patrocinato no sistema de
latifúndio, cf., entre outros, Blok 1969:103 ss, 1969a:155 ss; nas sociedades colonizadas, cf. Worsley 1964:44 ss e,
especificamente sobre Java, cf. Wertheim 1969a:6 ss.
2
Acerca das relações de dependência na Idade Média, cf. Marc Bloch 1968:212 ss e, particularmente em Portugal, cf. Castro
(1980: 15-104, 1981:45 ss) e sobretudo Mattoso (1985 I:82 ss, 1985a: 135 ss), para quem tais relações não eram tão vinculativas
como noutros países. Por exemplo, sobre a relativa autonomia de Lindoso, ao tempo da formação da nacionalidade, confirmam-na
as Inquirições: «A paróquia de Lindoso, com os seus dez casais, não conhecia outro senhor senão EI-Rei» (Inq I:413-414 in
Coelho 1990:182). Acerca do clientelismo na Idade Antiga e, particularmente, sob o domínio romano, cf. Coulanges 1870:100 ss
e Hutchinson 1966:9.
290
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

estudiosos como Cutileiro (1977:271) e Riegelhaupt (1979:520), que o clientelismo teria sido
respectivamente varrido ou despolitizado pela via administrativa. Ora bem, se é certo que o caciquismo de
feição partidária desaparecera e o espaço de rnanobra dos mediadores se reduzira, permaneceram ainda os
mecanismos de patrocinato local. Estes, sem excluir uma certa hierarquia e uma concorrência interna entre
facções ou notáveis sob o mesmo credo político e no seio das instituições corporativas (por exemplo,
asCasas do Povo), eram tendencialmente monopolizados pelos servidores locais do regime e tornavam-se
maís eficazes para a integração dascolectividades locais e para a manutenção do statu quo que os próprios
aparelhos de repressão do Estado central.

Com o derrube da ditadura a 25 de Abril de 1974, com a implantação do sistema pluripartidário e,


sobretudo, com a devolução de consideráveis recursos aos poderes autárquicos criaram-se, gradualmente,
férteis condições políticas para o revivescer do clientelismo, de base partidária É justamente e uma vez mais
o controlo da maior parte das comunidades rurais, por parte de patronos e caciques conservadores de há
longa data implantados, o factor que, entre outros, co-explica a relativa ineficácia das campanhas de
dinamização cultural do Movimento das Forças Armadas(MFA), das medidas do governo pró-comunista de
Vasco Gonçalves e da acção dos partidos de esquerda.
Se é certo que, por outro lado, havia camponeses não informados do decorrer dos acontecimentos
políticos, das leis sobre o crédito agrícola e o arrendamento rural, assim como técnicos «passivos» na
aplicação destas, importa, por outro, sublinhar o facto de diversos caseiros de Lindoso, Aguiar e arredores
afirmarem correr menor risco no tradicional sistema de parceria ou arrendamento na base da confiança
pessoal do que eventualmente exigir dos senhorios contrato escrito. Uma atitude de frontalidade e,
sobretudo, de afronta com o senhorio, além de determinados gastos e perda de tempo em tribunal, custar-
lhes-ia provavelmente ter de sofrer represálias tais como a rescisão unilateral do contrato oral com a
consequente expulsão da terra.
Acrescente-se ainda que vários dos novos e escassos líderes surgidos sob a designação de
«democratas», «socialistas» ou «comunistas» ou retomavam velhos métodos de actuação clientelar ou eram
intelectuais e sindicalistas de origem urbana que tão-só faziam visitas esporádicas às aldeias. É de relevar,
neste contexto, o comentário de vizinhos pobres de uma outra aldeia aos oficiais do MFA durante as
campanhas de dinamização cultural: «O que aqui se decide é, em si mesmo, óptimo, mas dentro de alguns
dias vocês vão-se embora. Os patrões ficam e nós não temos ninguém que nos possa proteger. Além disso,
quem nos poderá dar trabalho?» (Alves 1976:101).

No curto período de 1974-75, salvo acções incidentais da 5.ª Divisão do MFA, pouco de concreto foi
feito em prol dos camponeses. Pelo contrário, os aumentos de preços das sementes sobretudo da batata, dos
adubos e das rações constituiram, juntamente com a diminuição do preço do vinho, da cortiça, da madeira e
dos lacticínios, uma sensível bofetada para os pequenos produtores sobretudo mercantis. Do estudo de
Mendes (1983:433) resulta ter sido precisamente em 1974-75 que se verificou uma alteração desfavorável
aos produtores agrícolas no rácio entre os índices da compra de produtos não agrícolas e os de venda de
produtos agrícolas, situação mais gravosa quando comparada com a relativa estabilidade dos preços
agrícolas durante o «Estado Novo», reforçada, na fase final, com a introdução de pequenos subsídios de
velhice e invalidez por Caetano.
Os esforços das forças políticas de esquerda, bem como as medidas do governo provisório de Vasco
Gonçalves, situando-se num campo demasiado jurídico-político a nível central, pouco visíveis a curto prazo
e insuficientemente adaptadas à situação e às estratégias dos camponeses, revelaram-se impotentes para
fazer desmoronar a velha estrutura conservadora, embebida nas relações de patrocinato local. Os partidos
políticos de esquerda despertaram apenas no «verão quente» de 1975. Era, porém, demasiado tarde. «E,
como sempre, a esquerda portuguesa lançava uma olhadela para o último paralelismo político francês,
conhecendo muito melhor a menor discussão parisiense que as «misteriosas» e algo desagradáveis coisas
de Trás-os-Montes ou Portalegre» (Maxwell in NYRB de 17-4-1975:33 in Gallagher 1977:6).

Passado o turbulento período de 1974-75, a par do processo de integração administrativa, o patrocinato


tradicional dará de novo lugar a formas mais subtis de clientelismo político-partidário. Mas procuremos
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

delinear as fases e as formas de patrocinato nas duas aldeias.


Perante as incursões do Estado, dos respectivos municípios e seus representantes, as respostas de
colectividades como Aguiar e, em especial, Lindoso têm-se apresentado diferenciadas, designadamente
desde o fim do Antigo Regime até aos dias de hoje. Por seu turno, o empreendimento da mediação não é
nem pacífico, nem estático, comportando justamente uma dinâmica competitiva numa arena de rivalidades e
despiques, sobretudo em regimes pluripartidários. Assim, de acordo com o papel assumido pelos mediadores
locais e sem que à delimitação cronológica corresponda uma esquematização conceptual pura, distinguirei as
seguintes fases: (i) uma primeira, de defesa da autonomia aldeã, em que os patronos e mediadores locais,
embora conjunturalmente possam servir de elos de contacto com as instituições camarárias e centrais,
funcionam amiúde como contrapontos catalisadores de resistência por parte de colectividades relativamente
isoladas (1850-1940); (ii) uma fase intermédia, em que algumas famílias mais influentes e, em particular, os
representantes do poder local, amortecendo as queixas ou os protestos locais mas sem eliminar tensões que
justifiquem a sua acção, assumem o papel relevante de mediar, regular e controlar comunidades socialmente
segmentadas (1940-74); (iii) e, por fim, uma terceira fase, a da relativa incorporação, em que os pequenos
mediadores, digladiando-se pelo controlo da gestão dos recursos públicos, funcionam mais como simples
agentes ou delegadosdas entidades eclesiásticas, camarárias e partidárias que os recrutam ou reconhecem
(1974-90).

12.1. O mediador como catalisador de resistência (1850-1940)

É precisamente nos processos de centralização do moderno Estado-Nação nos séculos XVIII e,


sobretudo, XIX, que se detectam os primeiros sinais de resistência camponesa à penetração dos agentes
burocráticos da Câmara e do Estado Central, sejam eles internos ou externos às respectivas aldeias. Até
então, as freguesias formavam territorial e administrativamente pequenos enclaves controlados pelas
famílias locais mais poderosas. Estas, por sua vez, mantinham contactos e/ou reforçavam os interesses de
elites urbanas (aristocracia, burguesia nascente, funcionalismo), as quais, concretamente em Barcelos,
conforme as conclusões de Capela (1989:266 ss), obtinham privilégios e isenções de pagamento de
impostos.
Dados os interesses económicos e políticos inerentes à lógica de centralização do Estado, este ir-se-ia
implantando com base em oportunidades, razões e pretextos vários. Assim, na esfera administrativa-policial,
não sendo invulgar a prática de certos delitos (mortes violentas, roubos, incêndios, contrabando,
«vagabundagem» de estrangeiros, mendigos e malfeitores), eram encorajados, como refere Capela (1989:91
ss), alguns processos de centralização em detrimento de oligarquias aristocráticas municipais (criação de
juízes de fora, aprovação régia dos procuradores municipais, abolição de donatários particulares em 1790).
Neste objectivo de controlo centralizado poder-se-á igualmente compreender a emissão, a 20-8-1798, dum
código de lnstrucções e duma circular dirigida aos zeladores de polícia por parte do Comissário Geral da
Polícia de Barcelos, João Nepomuceno, em cumprimento de ordens superiores do Intendente Pina de
Manique. Declarando como objectivo «a paz e o sossego público, a extirpação pronta dos roubos,
assassinatos e delitos capitais e a coacção da ociosidade e da libertinagem», o referido código, através da
vigilância policial de zeladores nas vilas e paróquias, tinha por objectivo centralizar os meios repressivos e
controlar, na medida do possível, a fonte de subsistência, a residência e a circulação de «salteadores,
contrabandistas e ciganos», «homens suspeitosos e perturbadores da sociedade», «estrangeiros»,
«viandantes e romeiros», «pedidores de esmolas», «mendicantes, vadios e ociosos» (in Capela 1989:137-
139), figuras estas susceptíveis de ameaçar a ordem pública.

Além dos interesses aristocráticos instalados a nível municipal, são, porém, deregistar, em especial no
século XIX, alguns sinais de contestação e oposição à centralização burocrático-estatal: os levantamentos
populares como o de 1808 ou, mais tarde, o daMaria da Fonte e o daPatuleia (1846-50) e, sobretudo, o
fenómeno social do banditismo. Enquanto primeira e excepcional expressão de desagregação da hierarquia
local e de contrapoder à ordem estabelecida municipal e central, em particular ao seu bloco dominante – o
cabralismo –, também na região minhota se destacou o banditismo social. É conhecido, por prova
documental e memória popular, o bando liderado pela figura do Zé do Telhado, o qual, com a sua rede de
292
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

apoios de influentes, teria operado nos arredores de Aguiar. Sendo, por um lado, um elemento de soberania
local e, em última instância, uma resposta dissuasora a um poder estatal absorvente, o bandido Zé do
Telhado configura(va)-se como um «fora de lei» e um protector de grupos sociais mais pobres. O seu tipo de
acção era e ainda hoje é socialmente caracterizado de modo ambivalente, designadamente em Lindoso e em
Aguiar: enquanto pelos pobres a sua memória é revivida em termos de herói e sobretudo benemérito
popular, projectando um misto de receio e admiração em expressões tais como «roubava aos ricos para dar
aos pobres», «pedia resgates pelos raptos», pelos lavradores e proprietários a sua acção era lida no sentido
pejorativo de «malfeitor», «assaltante»3. Em recente compilação etnográfica sobre o Vale do Neiva,
Mesquita, um dos notáveis duma paróquia vizinha, relata o modo como o assalto à casa rica dos Torrelhas,
por parte da «quadrilha de ladrões e malfeitores» comandada pelo Zé do Telhado, teria fracassado graças ao
contra-ataque desferido pelos moradores que, ao repique do sino por um criado, acudiram a defender a
referida casa, apedrejando o referido bando: «Ao outro dia, as pedras da poça da Rigueira tinham sobre elas
o testemunho de sangue, ainda quente, dos gatunos e burros. Aquela cambada do Zé do Telhado esteve ali a
lavar as feridas…»(Mesquita 1982:251).
Embora admitindo, em termos de Hobsbawm (1974:12 ss), que a acção de bandidos como Zé do
Telhado exprimisse uma forma primária de resistência camponesa à emergência do capitalismo, importa
referir contudo que os bandidos agiam nos interstícios do poder central e regional não só como mediadores
de camponeses e outros grupos sociais, mas também como operadores, por vezes protegidos, em função de
suas próprias estratégias e objectivos de domínio, susceptíveis de desmobilizar ou até obstruir movimentos
camponeses de libertação, tal como o destaca Blok (1972:496 ss, 1974:11 ss).
O modo corrente de operar dos eventuais representantes do poder local não assumia contudo o carácter
de rebelião, mas articulava-se com a estrutura hierárquca vigente. Em configurações de fragmentação de
poderes numa sociedade como a portuguesa, predominantemente agrária e protoindustrial até meados do
século XX (Silva 1989:112 ss), a dimensão clientelar permite-nos compreender como o sistema central e, a
um nível intermédio, a Câmara pode, por cálculo estratégico ou pressão social, manter, ceder ou
(re)distribuir aos autarcas o domínio e a gestão da colectividade local. Nesta perspectiva, o localismo não é
forçosamente incompatível, nem com o municipalismo, nem com determinado grau de centralismo estatal,
em particular de tipo bonapartista. Com este coexistir aquele, podendo até desempenhar um papel de
complementaridade, desde que ambas as partes – o autocrata, a oligarquia, a elite municipal ou o governo
central, por um lado e o patrono, o bandido, o cacique ou simplesmente a autoridade local, por outro –
deleguem, ajustem ou convencionem o respectivo espaço de domínio. Neste contexto, também em relação a
Lindoso e a Aguiar, os dirigentes camarários, além de defenderem ocasionalmente determinados interesses
corporativosdas respectivas colectividades e até cooptarem algumas personalidades aldeãs para exercerem
funções administrativas de zelador ou vereador, não só solicitavam, a respeito de requerimentos individuais
a deferir aos munícipes, o parecer das Juntas de paróquia sobre se «causaprejuízo ao público», como
determinavam enviar-lhes o articulado de suas actas sobre disposições que afectassem as colectividades
locais (por exemplo, aforamentos, taxas, impostos), a fim de estas «informarem o que tiverem por
conveniente» ou «darem ou negarem o seu referendum»4.

3
Cf. Mesquita 1982:250 ss. Informantes locais referem também a existência, até recente data, de um bando na vizinha freguesia de
Carvoeiro. Sobre os bandos desde a Idade Média designadamente no século XII, cf. Mattoso 1985 I:422; no século XV, em
Barcelos, cf. Ferreira 1990:47-69 e, em Torres Vedras, cf. Rodrigues 1994:157. Contemporaneamente, sobre o banditismo noutras
regiões e países mediterrâneos, cf., especificamente na Galiza, Durán (1974:297 ss), na Grécia, Damianakos (1985:219-240) e, na
Itália, Blok (1972:494-503) e, em geral, Hobsbawm (1974), cuja interpretação acerca do carácter primitivo ou pré-político do
banditismo é, por exemplo, em relação ao movimento jornaleiro andaluz, contestado por Alier (1988: J 72-173).
4
Sobre a compatibilidade entre centralismo e localismo no contexto do Estado absolutista e da transição para a modernidade, cf.
Andersen 1974:19 ss e, em particular, sobre as comunidades «fechadas» da América Central e Java, cf.Wolf (1957:10), Sobre
Portugal, cf. A. M. Hespanha 1984:59 ss. A existência dalguns mecanismos de auscultação às Juntas de Paróquia não deve
obnubilar as consideráveis limitações nos processos de representação das populações perante as Câmaras. Em relação a Barcelos,
Capela (1989:94 ss) reforça esta ideia ao constatar como, ao tempo da era pombalina e nomeadamente até à reforma
administrativa de 1834, se compatibilizavam interesses do Estado central e determinados interesses oligopolísticos a nível
municipal.
Em defesa dos interesses corporativos locais, cf., por exemplo, a posição da Câmara de Barcelos contra a importação de
cereais estrangeiros (AB 27-3-1865), Acerca das estratégias de delegação de poderes e a integração de figuras locais como
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

Entre os processos em que a articulação poderes e interesses a nível municipal e paroquial se torna bem
visível é de referir o da divisão do enorme município de Barcelos em seis subcentros administrativos
conhecidos por Julgados de Paz – que representou um reforço da relativa autonomia administrativa e
tributária das paróquias adstritas a cada Julgado (Capela 1989:267) –, a redistribuição de aforamentos e
arroteamentos de terrenos pelos poderes municipais e a legalização pela Câmara das usurpações de baldios
por particulares (cf. AVA 213,212, 214, 219 de 30-8-1842 e 223 de 17-5-1871 in M66 AMB).
Se sobre o Lindoso o foral proclamava claramente que a Coroa não teria ali «montanheiras nem
incultos» (FN 5-10-1514 in L. Dias 1969:143), em Barcelos os baldios, considerados até meados do século
XVIII terrenos comunais da paróquia, começaram a ser reivindicados como municipais por força da Lei de
1745 e do alvará de 23 de Julho de 1766. Neste longo processo, a Câmara, sobretudo na segunda metade do
século XIX, legitimando, por um lado, a apropriação de tomadias por particulares melhor situados na
hierarquia da paróquia e, por outro, invocando, sob figuras jurídicas até então inexistentes, que os incultos
eram da Coroa e do município, foi transferindo para a sua jurisdição a posse de baldios que eram do
tradicional domínio directo dos povos (alvará CMB de 26-6-1875).
Paralelamente à disputa pela ocupação de cargos relativos ao lançamento das sisas por parte de
membros ascendentes do burgo e, sobretudo, da aristocracia, é de referir, como postura sintomática da
taxativa recusa tributária das colectividades e de seus líderes locais, o facto de o Juiz de Fora, nomeado pelo
Rei, se ver obrigado a designar louvados «por não aparecer o povo a votar e a eleger louvados para a
feitura do lançamento presente das sisas» (LSB M84:6, 28-12-1822).

Dado que o município de Barcelos não tinha acesso a determinados bens e rendimentos fundiários das
colectividades, a principal fonte de receitas fiscais em Barcelos seria, sobretudo desde a segunda metade do
século XVIII até início do século XIX, constituída, como refere Capela (1989:308 ss), por um interminável
acervo de condenações com as respectivas coimas ou multas na sequência de contravenções às posturas
municipais. Do total de 1.028.294 réis recolhidos em coimas, em 1804, em cinco Julgados, 101.200 (9.8%)
provinham do Julgado de Aguiar com uma média de 6.325 réis por paróquia adstrita a este Julgado (Capela
1989:309 ss). Documentos do início do século XIX relativos a Aguiar dão conta do modo como os
moradores e seus gados começaram a ver afectada a sua liberdade de circular no espaço delimitado de sua
própria paróquia, ao ser-lhes aplicadas coimas de cerca de mil réis por, por exemplo, «trazer solto o touro
procriador» ou «um cão», «deitar ovelhas ao monte sem pastor» ou uma «largada» ou ainda, no caso dos
merceeiros, por «não aferir as medidas» (cf. respectivamente LC 397, 1826:142, 1812:71v, 1814:51,
1923:48v), factos estes objecto de denúncia – amiúde discricionária – dos sucessivos jurados, quadrilheiros
ou de simples funcionários menores da Câmara.
Todo o sistema tributário originário do Antigo Regime será, contudo, remodelado. As receitas derivadas
de coimas tenderiam a diminuir e a ser substituídas por outras concretamente os foros – aliás já existentes –
e, sobretudo, pelas contribuições prediais (décimas) sobre prédios rústicos e urbanos. A Câmara e a Fazenda
Pública passariam a funcionar como cruciais dispositivos mediadores da relação fiscal do nascente Estado
moderno com populações locais como Lindoso e Aguiar. Da consulta das décimas foi possível estabelecer a
seguinte distribuição de encargos tributários prediais:

vereadores e zeladores, cf. AB 20-6-1874, APBE 15-11-1924, 26-7-1924 e 21-6-1923. E sobre pedidos de parecer, ainda que
formais, por parte da Câmara às autoridades locais sobre o descanso semanal ou o recenseamento eleitoral, cf., entre outras, APB
24-1-1906, 10-2-1906, 24-11-1919, 26-4-1920, 13-1-1922, 6-6-1923. Contrariamente à Junta de Aguiar que, em regra, desde o
século XIX, acede aos pedidos de aforamento da Câmara (v.g. AVA 11-6-1885), a do Lindoso nega-os mais amiúde em função da
manutenção do estatuto dos baldios comunais (v.g. AJL 19-2-1921).
294
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

QUADRO 32: Distribuição e evolução da décima: Lindoso-freguesia (1838-1846)

Fonte: Lançamento da Décima e Impostos Anexos da Câmara de Ponte da Barca, freguesia do Lindoso, 1838-1939, 1939-
1940, 1845-1846, Distrito Administrativo de Viana do Castelo.

QUADRO 33: Distribuição e evolução da décima: Aguiar (1774-1821)

Fonte: Livro de Décima relativo a Aguiar, 1774, 1776, 1778, 1784, 1821, AMB.

Tal como se pode inferir dos quadros 32 e 33, quer no Lindoso, quer sobretudo em Aguiar, a maioria
das décimas incidia, em termos absolutos e percentuais, sobre categorias até 200 réis.
As interferências das instituições, ora estatais, ora municipais, eram suportáveis e até admissíveis, desde
que seus representantes, não revolvendo os próprios fundamentos do modus vivendi comunitário, lograssem
legitimar-se e estabelecer, pela concessão de determinados incentivos ou contrapartidas, laços
administrativos com os órgãos de poder local como o pároco, o zelador e a Junta de paróquia. Os
representantes destes órgãos, ainda que dispondo-se, de acordo com o artigo 16 do Código Administrativo, a
«prestar juramento de fidelidade ao rei e de obediência à Carta Constitucional» (AJL 25-1-1902), estavam
confrontados com exigências de dupla lealdade e sujeitos a dupla pressão: a da Câmara e a da colectividade.
Não raramente o zelador, apesar de superiormente intimado a denunciar ou penalizar transgressões
(apascentamento de rebanhos sem licença camarária, colocação de escombros em caminho público), ora se
afastava ou alegava, por exemplo, que determinados detritos «não perturbavam o trânsito», ora preferia à
confrontação com seus vizinhos «a exoneração do cargo»5. Daí que uma das mais incisivas linhas de
5
Sobre a origem da figura do zelador municipal, bem como sobre as frequentes escusas para o cargo, cf. Actas de Vereação da
Câmara de Barcelos de 20-6-1789 a 6-2-1793 in Capela 1989:126 ss. A ambiguidade da figura do zelador pode constatar-se nas
frequentes demissões e pedidos de exoneração (cf. APB 25-4-1903, 9-1-1908, 24-5-1909) à Câmara, termo este cujo significado
para as aldeias portuguesas parece ter uma conotação mais elitista que o de Ayuntamiento em Espanha. Por outro lado, as
frequentes admoestações ou substituições, sem qualquer aparente justificação, prendem-se provavelmente com o facto de, além de
tratar-se de um cargo odioso, o zelador não corresponder às expectactivas da Câmara. Esta, apesar de delegar-lhe determinados
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

fractura – também confirmada por Capela (1989: 116,135 ss) – consistia em que, enquanto cargos
honoríficos e de prestígio eram ocupados por membros mais providos, as funções mais vis ou odiadas
(oficial de controlo ou delação) recaíam sobre elementos mais desprovidos. Tal ocorria ou porque estas
últimas funções colidiam com os interesses dos notáveis, ou porque estes simplesmente se escusavam, ou,
sobretudo mais tarde, porque aos desmunidos convinha-lhes subtrair-se à tutela dos patronos locais.

Quanto à relação entre as populações e as diversas instituições municipais e estatais, a par de


ajustamentos e compromissos, verificaram-se, no final do século XIX e no primeiro quartel do século XX,
não só formas de resistência passiva como inclusive confrontos abertos que opuseram as populações,
sobretudo a de Lindoso, aos organismos camarários e estatais. Estes estavam encarregados não só de
implementar e acompanhar inovações infra-estruturais tais como o cemitério, a abertura de uma estrada e a
construção de uma barragem pela empresa espanhola Electra del Lima (em Lindoso), como também de
extrair o excedente agro-pecuário pela via fiscal, impor coercivamente celeiros municipais (AB 11-10-1919)
e, sobretudo, gerir os recursos serranos pela política de florestação (APB 30-5-1903, 24-8-1917, 6-11-1920,
APBE 27-9-1924, 2-4-1925). Com efeito, estes primeiros empreendimentos de «progresso», implicando
uma maior circulação de bens e pessoas – cujas consequências, segundo narrativas de memórias relatadas
por antepassados, os moradores desconheciam e temiam pelo seu grau de incerteza6 – representavam uma
notável alteração na vida económica e cultural destes. Convém, porém, notar que, enquanto em Aguiar e
sobretudo em Lindoso as famílias despossuídas saudavam as novas oportunidades de trabalho «porque ali
encontraram trabalho muitos indivíduos desta paróquia que viviam na miséria» (AJL 3-7-1910), as
reacções dos camponeses possuidores caracterizavam-se por um repúdio bastante generalizado, na medida
em que tais projectos, além de prejudicar a agricultura e o pastoreio, seriam levados a cabo por entidades
incontroláveis ou até hostis: as Câmaras, os Serviços Florestais e a Electra del Lima– primeiro fiscalmente
assediada e, posteriormente, encomiada pela Câmara em função dos objectivos de implementação da luz
eléctrica na vila (cf. APB 30-5-1903, 24-8-1917, 6-11-1920, APBE 27-9-1924, 2-4-1925).

A Electra del Lima, necessitando explorar águas de minas e negociar a concessão das águas do rio Lima
e pretendendo legitimar-se perante as autoridades locais, dispõe-se, além de pagar 90.000 réis anuais, a
oferecer como prémio 200$00 para a construção do cemitério (AJL 3-7-1910, 28-8-1911). Mais tarde, para
compensar a destruição dos moinhos de água, declara que construirá moinhos eléctricos e electrificará
«gratuitamente» o aglomerado. Apesar das vantagens dos moinhos eléctricos perante as vicissitudes
climatéricas do vento e dos caudais de água, estas ofertas assim como a da electricidade, por parte da Electra
del Lima, seriam contudo recusadas pela maioria dos moradores. Estes preferiam a (auto)reconstrução dos
seus moinhos de água noutro local (AJL 18-2-1912) porque – diziam – «o moinho eléctrico estragava a
farinha» ou «a luz eléctrica tirava o leite às vacas». Porém, os gestos simbólicos, quer sejam os pagamentos
e os donativos da Electra del Lima, quer sejam as reticências, as razões ou os pretextos das populações,
tornam-se ininteligíveis se não forem tidos em conta os prejuízos materiais (desaparecimento de mananciais

poderes e procurar seduzi-lo atribuindo-lhe «metade do produto das multas impostas pela sua diligência» (APB 9-1-1908, 16-12-
1908, 14-3-1925 e APBE 21-6-1924, 25-4-1925), constata, por vezes, que os próprios zeladores ou infringem as posturas
municipais (APB 3-9-1919, 24-8-1917) ou se demitem. Por exemplo, em 1903, o zelador António Vaz Monteiro «entende que não
lhe compete denunciar perante o respectivo Juiz de Paz a contravenção cometida por João Lourenço Ribeiro e Maria Gonçalves
Braga, como lhe foi ordenado em ofício de 21-2-1903 do presidente desta Câmara, porque a terra que os mesmos depositaram no
caminho público não estorva o trânsito, apenas impede o seguimento de algumas águas de chuva, as quais vão prejudicar Ana
Dias Pimenta. Pede também a exoneração do seu cargo...» (APB 25-4-1903).
6
Impactos negativos e receios também sublinhados, para outras situações, por Migdal (1974:71 ss, 183), E. Weber (1976:197 ss) e
Vergoupolos (1978:97 ss) e, no Portugal oitocentista, por escritores como J. Dinis (1912), não obstante os apelos encomiásticos
deste ao avanço da nova era civilizacional e seus protagonistas (pequeno) burgueses. Em relação a Lindoso dizia J. Vieira: «Ai das
pobres tradições e lendas bárbaras, quando o asfalto invada, como um triunfador ovante, o recinto do solitário castelo de
Lindoso» (1986 1:372). Quanto a Aguiar, entre 1890 e 1900, por ocasião da implementação dos caminhos-de-ferro, o pequeno
Manuel Alves ouviu da boca de um ancião de Aguiar, a jeito de profecia, o seguinte sobre os temores da civilização moderna:
«Hão-de vir carroças de burros, pássaros voadores (aviões),forno infernal (o combóio), bicicletas e máquinas sem fogo
(automóveis) e estradas até às igrejas. Virá a guerra civil em que não haverá pais por filhos nem filhos por pais. Tudo será pago
em dinheiro» (Ael118). Cf. também Feijó 1992:204.
296
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

e fontes, estragos de culturas) e, sobretudo, a luta pelo domínio do espaço local7.

Quanto à introdução e/ou ao agravamento fiscal por parte da Câmara, da leitura de vários dos 125
Inventários Orfanológicos de Aguiar entre 1858 e 1980 e, sobretudo, das actas da Câmara de Ponte da Barca
se infere a sua devastadora incidência e, dum modo insistente, nos finais do século XIX e no primeíro do
século XX. A contribuição predial entre 1880 e 1897 regulava entre 18 e 21 % do rendimento bruto, tal
como foi possível apurar a partir dalguns autos de prestação de contas em inventários orfanológicos8. Tal
como se pode concluir da leitura de diversas actas das Câmaras de Ponte da Barca e de Barcelos, foi,
todavia, durante a I República e, sobretudo, entre 1919 e 1926, que, não só sobre artesãos, carreteiros e
vendedores forâneos, mas também sobre munícipes urbanos e, em particular, rurais, se multiplicaram,
criaram ou agravaram (novas) taxas, impostos e multas, cujo não pagamento podia desembocar na
confiscação e na arrematação dos bens susceptíveis de tributação9.
Aos processos de extorsão tributária por parte da Câmara e do Estado contrapunham os moradores
determinadas práticas que consistiam, por exemplo, em mudar os nomes ou o local de residência, evitar
contactos de modo que a morte do de cujus passasse despercebida nas instâncias fiscais e, salvo o caso de
propriedades compradas, manter registados os bens fundiários no nome dos pais, avôs, bisavôs. Sempre que,
por menoridade ou ausência dalgum dos herdeiros, se impusesse o inventário orfanológico, os herdeiros
maiores aduziam razões ou pretextos que dispensassem a suaobrigatoriedade. Não só se retardava a
louvação, apresentando-se certificados justificativos de maioridade ou forjando-se até procurações
comprovativas da localização certa do herdeiro ausente, como, por vezes, se negava aos funcionários
municipais a avaliação dos bens para inventário10.

Entre as diversas resoluções camarárias acerca da necessidade de inventariar os haveres dos moradores
e, em particular, a de arrolar as cabeças de gado, há a salientar a de 24 de Novembro de 1919 que, no seu
artigo oitavo, determinava «colectar todos os animais bovino, caprino e lanígero com uma taxa anual por
cabeça» e aplicar as correspondentes multas de 5$00 na primeira transgressão e 7$50 na segunda. Não
obstante o facto de as disposições camarárias assumirem, para as freguesias situadas no perímetro de

7
Sobre os referidos danos causados, cf. respectivamente AJL 21-1-1912, 17-3-1912. Perante os abusos da Electra del Lima, a
divisão na paróquia forçou à demissão do regedor (AJL 3-9-1911), ao mesmo tempo que se estabeleceu um acordo, a fim de
minorar os efeitos prejudiciais das obras (AJL 4-1-1912).Posteriormente, a proibição de os romeiros de Lindoso passarem pela
represa obrigaria a Junta a construir uma ponte (AJL 28-9-1919).
Outra entidade objecto de protestos era a Guarda Fiscal pela «forma inconscienteincorrecta como tem apreendido os gados a
pastar sem pastor na serra, depois do facto este povo ter escravamente cumprido a lei do alistamento dos gados» (AJL 20-6-
1917; cf. ainda AJL 2-7-1922, 21-2-1926).
8
Por exemplo, 620 réis dum rendimento global anual de entre 2.930 a 3.380 réis relativos a dois prédios (IOA M1, 4:96 ss, 1880).
9
Cf., entre outras actas, a APB 24-11-1919, 26-4-1920, 6-11-1920, 27-11-1920, 19-2-1921, 26-4-1921, 13-1-1922, 14-11-1922,
15-2-1923, 12-7-1924, 3-4-1926. Refiram-se, por exemplo, os impostos de tipo corporativo sobre veículos, animais de carga e
animais para venda e outras mercadorias (vinho, géneros alimentares) provindas do exterior do município (APB 15-2-1923; AB
20-9-1920), o imposto ad valorem em 2% a 3% sobre qualquer mercadoria exportada (AB 30-8-1920, de acordo com a Lei 999 de
16-7-1920). Em caso de renitência ou relaxe no pagamento de multas, era possível fazer buscas e apreensões dos objectos, em que
metade do seu valor reverteria para o denunciante e metade para a Câmara (AB 20-6-1874; APB 24-11-1919, 6-11-1920, 27-11-
1920, 19-2-1921, 26-4-1921, 15-2-1923, 6-6-1923), Os moradores de Aguiar, apesar de terem cedido terreno para a construção do
caminho-de-ferro, viriam mais tarde a ser proibidos de caminhar pelas bermas da via, sendo obrigados a pedir licença ao
respectivo capataz.
10
Além dos casos de desistências de inventário por transacção entre herdeiros já maiores (v.g, IOA 26-,8-1887), é de referir como
sintomático da descorJ'iança dos moradores perante o Estado a constituição de advogado para efeito de inventário orfanológico, a
recusa do inventariante em comparecer à citação ou, em caso de herdeiro auseme, apresentação de prova de existência deste em
lugar certo (respectivamente lOA Ml, 28-5-1883; lOA P2:l22 Ml7, 1887; IOA P21 M105 7-8-1873, IOA M633 18-8-1903; IOA
P588 Li3:139 M588, 30-4-1884; 10A P22 M160, 15-12-1953).
Exceptuando esporádicas licenças administrativas como a do pagamento de selo (LISL 1834-36:l-2v, LISL 1838:5, 26-6-1838)
ou outras relativas a reconstrução de casa ou similares (AB 27-6-1903, 27-8-1904), pedidos de remissão de foros (AB 22-3-1920)
e subsídios de lactação para mães solteiras e pobres (AB 27-61870, 9-11-1872, 10--1-1874, 19-8-1899, 18-4-1902), os moradores
de ambas as aldeias evitavam contactos com Câmara especialmente na esfera fiscal. Sucedia amiúde que, só passados vários anos,
o curador oficial de órfãos, encarregado de requerer ao juiz o inventário orfanológico, certificava-se da morte do de cujus (cf. IOA
de 1858 a 1945).
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

extensos baldios, um tratamento fiscal menos gravoso que para as demais (um e três em vez de dez e vinte
centavos por cabeça caprina e bovina), este imposto sobre o gado viria todavia a afectar as colectividades de
montanha como Lindoso que, até então, tinham escapado um apertado controlo camarário-estatal. Na
sequência desta resolução reage a Junta de Freguesía do Lindoso que «lavra o seu protesto contra o dito
artigo que vem agravar a situação do povo das montanhas, sendo as fazendas a única fonte de riqueza e
receita que este povo tem para poder competir com os seus tributos ao Estado da República» (AJL 4-1-
1920).
Apesar das ameaças de procedimento pelo Ministério Público «contra aqueles donos de gado que ainda
não pagaram, coagindo-os a pagar» (APB 8-10-1920) e não obstante a requisição e a intervenção da GNR
para obrigar pela força os moradores do Lindoso a tirarem as licenças para as pastagens do gado, as
renitências e recusas de pagamento – cujos factos a própria Câmara aliás reconhece (APB 8-10-1920, 7-8-
1923) –, as reuniões e manifestações junto à Câmara, por parte dos representantes das diversas
colectividades possuidoras de incultos (AJL 8-1-1920, 17-4-1921) ter-se-iam saldado por uma vitória das
populações da zona. Entre estas sobressai a do Lindoso, cuja Junta de Freguesia, apoiada social e
financeiramente «tem a honra de fazer cientes que terminou brava e heroicamente em prol dos povos a
decantada causa e conflito que há dois anos mantivemos com a Câmara» (AJL 16-10-1921).
Deste modo, o Lindoso, assim como as demais colectividades de montanha, veria no artigo primeiro das
das posturas municipais de 1923 confirmado o tratamento de excepção e inclusive o regime de insenção e
suspensão tributárias sobre o gado (APB 5-3-1923, 7-8-1923, 2-4-1925).

Num outro diferendo mantido com Estado acerca do estatuto comunitário, municipal ou estatal da mata
do Cabril no Lindoso, a Junta, não acatando as ordens administrativas e reiterando que «os montados desta
freguesia são paroquiais e não camarários conforme o foral de 1514 e conforme a nossa postura especial e
a lei número oitenta e oito» (AJL 5-6-1921), ameaça ela própria de recorrer a juízo (AJL 3-7-1921). Neste
conflito a Junta soube aproveitar em seu favor o empenho do patrono-advogado A.C., a quem, na questão do
tributo sobre o gado tinha tratado como «filho da região» e tecido, em acta, o rasgado elogio de
«extraordinário ditador»! (AJL 16-10-1921). Com efeito, este patrono político– mais próximo das
populações11 e estrategicamente interessado em concretizar os objectivos de florestação da referida mata –
viria a mediar, designadamente junto do Director dos Serviços Florestais e, por via deste, junto do
Ministério da Justiça, para que este desistisse – como, de facto, sucedeu – da acção judicial contra a Junta de
Freguesia porque «os importantíssimos custos, caso o Ministério Público vença a acção, como é natural,
irão provavelmente levar à miséria algumas famílias do Lindoso e lançar toda esta paróquia numa
compreensível agitação», além de a «prossecução (da acção) ser lesiva dos interesses do Estado...,
prejudicando a valiosa acção que todos nós esperamos dos Serviços Florestais» (APBE 28-3-1925).

Não obstante estas vitórias, é de registar, no contexto das estratégias de sujeição do Lindoso às forças da
ordem estatal, além da instalação a 1-1-1911 de um posto de vigilância da Guarda Fiscal em pleno centro da
aldeia numa casa arrendada a uma das famílias mais providas, a entrada, em 1922, da GNR que, a partir de
então, passaria a patrulhar a colectividade de modo permanente. A ausência, até então, de um corpo policial
estranho constitui um dos sintomas indiciadores do espaço relativamente amplo de jurisdição local, de que o
(ex)forâneo e velho residente Mário dá conta: «Antes dessa altura, a Guarda Republicana não vinha cá,
porque a gente daqui era muito rebelde e não deixava que ela entrasse cá dentro» (L59).

Apesar da oposição cerrada das populações por intermédio das respectivas Juntas no sentido de manter
incólumes os terrenos comunais, o Governo, pelo Decreto-Lei de 16-3-1923 e a Câmara, através da
Comissão Executiva, não desistem do propósito de limitar os direitos dos povos aos baldios. Assim, a

11
Em viva e apaixonante polémica com os seus adversários políticos na Câmara que lhe insinuavam desvios de dinheiro para
objectivos eleitorais do seu partido e exigiam uma comissão de fiscalização à contabilidade municipal, este político, patrono dos
interesses corporativos do Lindoso, aduzia em seu favor que «quem não se vendeu, como pode provar com documentos em
seupoder, a troco da mata do Cabril, não tem receio a quantas comissões houver no mundo» (APB 3-4-1926; cf. ainda APB 15-4-
1926). A este respeito, cf. também Cruz (1985:133-142) que, além de promover a revalorização da mata, invectiva também o
Estado por este não efectuar melhoramentos e deixar Lindoso ao abandono.
298
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

Câmara, que antes tentara estabelecer o imposto de «cinco escudos a cada habitante do município que goze
de baldios» (APB 27-11-1920) e, mais tarde, a quem possua gado bovino (APB 6-6-1923), anula tais
disposições e torna presentes em sessão municipal as posturas da freguesia do Lindoso (APB 27-4-1923).
Em contrapartida, começa por registar na conservatória predial a mata do Cabril pertencente à freguesia
(APB 14-4-1923) e propõe à Junta um projecto de acção dos Serviços Florestais, reconhecendo-lhe os
direitos aos baldios, mas delegando-lhe funções e corresponsabilizando-a pelo projecto (AJL 1-6-1924, 6-7-
1924, 20-7-1924). Por sua vez, a Junta da paróquia, afirmando-se na «posse pacífica» da mata desde a
concessão do foral de 5-10-1514, congratula-se e «arquiva o reconhecimento de seus direitos de posse dos
baldios e do seu regime de pastagens» por parte da Câmara (APBE 6-9-1924). Por outro lado, se rejeita
sugestões de «projectos turísticos» de munícipes «ilustres» da vila e «sonhadores de obras jamais
aparecidas e irrealizáveis» (AJL 3-2-1923), não se oporá, contudo, e inclusivamente colaborará comos
eventuais planos de florestação, desde que tal intervenção traga, antes de mais, melhoramentos, em especial
o prolongamento da estrada de Cidadelhe até à fronteira. Mais, lembra que as melhorias havidas têm sido
feitas por uma entidade estrangeira – a Electra del Lima– e por motivos privados! Passado um ano, como a
Câmara não procedera a quaisquer melhoramentos infra-estruturais como «penhor da (sua) sinceridade» e
como condição prévia à acção de intervenção dos Serviços Florestais, a Junta declara em acta o seu
cepticismo sobre os bons propósitos da Câmara, cujos responsáveis «ainda ontem negavam os nossos
direitos de propriedade» (AJL 16-8-1925). Por fim, dado o facto de os moradores já terem arborizado os
montes no passado, propõe-se ela própria assumir a responsabilidade de realizar um plano de florestação
mas «sem nunca atentar contra a actual liberdade das pastagens do gado» (AJL 25-7-1924; cf. também
APBE 6-9-1924)12.
Perante os objectivos camarários e sobretudo estatais, os representantes dos moradores do Lindoso,
apelando às atribuições reconhecidas no artigo 146 da Lei 88 de 7 de Agosto de 1913, não só requerem que
os seus montados confinantes com os galegos sejam tapados por serem «espoliados pelas constantes
apreensões do seu gado» por parte dos carabineiros, como denunciam as atitudes dos Serviços Florestais e
da Guarda Fiscal com as autoridades galegas e seus súbditos por os autorizarem a apoderar-se e a tapar
terrenos baldios (AJL 2-7-1922, 7-9-1924, 20-2-1955). Além disso, apresentam queixas e pedidos de
indemnização contra a empresa espanhola Electra del Lima, a qual, além de não ter indemnizado as famílias
de dois moradores mortos nas obras da barragem, se permitia uma série de abusos tais como quebra de
telhas, corte de madeiras sem licença e outros danos (AJL 26-12-1925, 10-1-1926, 19-8-1956, 28-5-1963).

Após um interregno de relativa indefinição entre 1925 e 1936, o governo central sob o «Estado Novo» e
a Câmara de Ponte da Barca prosseguirão cautelosamente a anterior política no sentido de substituir o
espaço desgastado pelo pastoreio por florestação. Feito o reconhecimento dos baldios a nível nacional pela
Junta de Colonização Interna entre 1936 e 1939 e traçadas as linhas de actuação, as Câmaras e as Juntas de
Freguesia detinham competências para alienar terrenos baldios, ficando os florestalmente aptos sob o
controlo e a gestão dos Serviços Florestais instituídos13. Sendo estes, porém, uma criatura estatal estranha às
populações e às próprias Juntas de freguesia, a luta reacenderse-ia com os planos de arborização em 1944-
45, os quais viriam a suscitar uma acção coordenada das Juntas das freguesias, frisando os seus promotores a
sua qualidade de«proprietários». Esta parece ter sido todavia a última acção conjunta e significativa dos
orgãos representativos dos povos serranos de Alto Minho na defesa dos seus terrenos comunais e demais
interesses corporativos locais perante as instituições camarárias e estatais, a cuja interferência as Juntas

12
Sobre processos semelhantes de usurpação dos baldios paroquiais em freguesias circunvizinhas de tipo comunitário, cf. APB 6-
9-1924, 15-11-1924; APBE 15-11-1924, 25-4-1925. No entanto, em paróquias não comunitárias do Vale do Lima, os donos e
proprietários estavam plenamente de acordo «com o edital deste município de 5-3-1923 que regulamenta o pastoreio de cabras e
ovelhas e que não permite, de modo algum, a ninguém trazer o referido gado às suas propriedades a não ser conforme o que
dispõe o mesmo edital» (APB 29-11-1923).
13
Sobre a a florestação da mata do Cabril, cf. D.L. de 14-10-1944. No Minho haveria 84.650 hectares correspondendo a 15.9% do
total de 531.441 hectares em baldios no Continente, superfície esta equivalente a 6% da área continental total (Castro 1980:68).
Para descrição e análise da legislação sobre os baldios e o processo de florestação, nomeadamente os efeitos nefastos da política
florestal sob o «Estado Novo» e o atraso das medidas legislativas após 1974, cf. Estevão 1983: 1157-1260 e I. Medeiros 1984:85
ss.
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

preferiam como única via de pacificação a simples «vida de abandono que até então temos gozado» (AJL
16-8-1925).
Embora a defesa dos interesses das populações de montanha continuasse, por vezes, a ser feita por
autoridades ou personalidades locais, a partir daí viriam a sobrepor-se a uma estratégia conjunta
anticamarária as velhas disputas internas entre paróquias acerca da posse e do (ab)uso duma determinada
área de terreno baldio nas zonas limítrofes. Tal levou designadamente a freguesia do Lindoso e as vizinhas
Britelo e S. Miguel ao Supremo Tribunal de Justiça (AJL 6-12-1925, 31-1-1926), cuja sentença de 20-3-
1936, reconhecendo como baldio do Lindoso a área em questão obrigava contudo os seus moradores a ceder
anualmente, durante três meses, a utilização de pastagens às referidas paróquias vizinhas.
Se este facto é sintomático da deslocação do eixo de polarização e da divisão que entre as populações e
no seu seio se foi progressivamente instalando, a regra dominante até então traduzia-se na defesa corporativa
dos interesses (inter)paroquiais, sempre que afectados a partir do exterior.

12.2. O mediador como amortecedor (1940-74)

Contrariamente ao anterior período marcado por situações de confronto entre uma colectividade
relativamente unida e as entidades camarárias e estatais, as hesitações e as divergências internas quanto aos
novos assomos de cerceamento da autonomia aldeã (projectos infra-estruturais e, no Lindoso, plano de
florestação) são reveladoras do modo como Aguiar e Lindoso foram abrindo o flanco e perdendo
paulatinamente pontos nas suas estratégias anti-estatais, cada vez mais defensivas e esquivas.
Para enfraquecer e contornar os obstáculos que o poder e a hierarquia locais pudessem oferecer, os
representantes do Estado aplicaram a táctica da divisão, aproveitando e reforçando as pré-existentes
clivagens entre facções aldeãs. Não só delegavam poderes e aliciavam membros da Junta através da
concessão de benefícios e sinecuras (13:4), como incorporavam atomistica e selectivamente nas próprias
instituições membros de famílias mais influentes e/ou potenciais adversários, redistribuindo-lhes empregos e
postos de controlo, supervisão e policiamento (zeladores, guardas florestais e fiscais, capatazes). Além disso,
ofereciam alternativas aos jornaleiros dependentes e a outros elementos pobres e «marginalizados»,
recrutando-os para a execução de árduas tarefas manuais ou ingratas funções de vigilância e denúncia.

Durante o «Estado Novo», além da multiplicação de licenças administrativas, acentuaram-se as


dependências das Juntas de freguesia e do regedor perante instâncias municipais e parapoliciais. Por
exemplo, na freguesia do Lindoso, entre 1933 e 1957, registam-se 17 licenças para queimar foguetes, 21
para manter a porta de estabelecimento ou taberna aberta e 6 de abertura de loja. Igualmente, entre 1935 e
1954, além de 113 licenças para uso de carros agrícolas isentos de imposto, são concedidas 8 licenças de
bicicleta e l de animais de carga, em particular bovino (RLA/PB 1933-1957, RV/PB 1935-1954). Por outro
lado, ainda que sob a égide e/ou a pressão de determinadas famílias influentes, o Estado foi interferindo nas
aldeias, instalando uma delegação do Registo Civil – requerida em 1921 (AJL 4-9-1921) – e implementando
um serviço para «manifestar» o vinho destinado à venda e, por fim, a escola básica.
Ainda no Lindoso, é de referir o poder discricionário e sujeito a acordos de compadrio por parte de
guardas-fiscais de fronteira quanto aos frequentes actos de contrabando a que, perante a precaridade de
recursos, vários moradores recorriam particularmente em determinadas conjunturas. Da recolha de dados
extraídos dos Registos dos Processos de Alfândega consultados na Guarda Fiscal foi possível elaborar um
quadro dos casos denunciados ou detectados na fronteira entre 1933 e 1941:

300
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

QUADRO 34: Movimento fronteiriço de mercadorias: Lindoso (1933-1941)

Legenda: Arguidos: (i) identificados; (ii) não identificados. Natureza do produto: (A) alimentar: batata, arroz, milho,
centeio, feijão, grão-de-bico, trigo, farinha, massa, açúcar, aletria, ovos, carne de porco, unto, presunto, toucinho, galinha,
bacalhau, sardinhas, azeite, alhos, pimentão, queijo, chocolate, biscoito, além de animais (cavalar e lanígero); (B)
vestuário: boinas, gorras, camisolas, tecido de algodão e de linho, seda, lenços, linhas de costura; (C) calçado: alparcatas,
borracha de crepe e preta; (D) tabaco; (E) outros de diversa utilidade: petróleo, sabão, sabão de potássio, sabonete, clorato
de potássio, de cobre, zinco, chumbo, aros de óculos, lentes, isqueiros, cordões de isca, fósforos, ferramentas, fogões de
petróleo, pregos, louça, câmaras-de-ar, tripas secas, cortiça. Unidades/quilos/ litros/metros: (a) 1-5; (b) 6-10; (c) 11-20;
(d) 21-50; (e) 51-100; (f) >100. Valor calculado(em escudos): (1) 1-20; (2) 21-50; (3) 51-100; (4) 101-500; (5)>500. * não
encontrados dados sobre 1938.
Fonte: Registos de Processos de Alfândega, 1933-1941, Guarda Fiscal, Lindoso.

Do quadro 34 poder-se-á concluir que 75.5% das mercadorias transaccionadas eram de natureza
alimentar, vestuário e calçado, cujas quantidades e valores respectivamente em 61.6% e 76.8% dos artigos
não ultrapassavam a barreira das dez unidades (quilogramas ou litros) e dos cinquenta escudos. Salvo alguns
poucos casos de contrabando de maior valor, dos resultados se infere tratar-se, em regra, de pequeno
contrabando de subsistência, em que, por outro lado, tão-pouco é possível determinar com nitidez por que
razões umas vezes são apreendidas mercadorias, pagos direitos alfandegários e outras vezes não. Em todo o
caso, foi possível apurar que entre 179 casos 25.1%– dos quais alguns portadores de insignificâncias –
pagaram multas e/ou direitos aduaneiros, 1.2% não pagaram e/ou foram processados e dos restantes 63.7%
não foi registada qualquer pena pecuniária ou de prisão (RPAL 1933-1941).

Dada a rigidez hierárquica da estrutura sócio-política local, pedidos que implorassem protecção perante
as autoridades ou remoção de obstáculos face a estranhos e, em especial, estratégias de mobilidade social
ascendente ou de simples melhoria de condições de vida eram, senão bloqueadas, sujeitas a critérios
restritivos ou discriminatórios por parte de patronos e mediadores. Por outro lado, eventuais leis ou normas
administrativas impessoais, impeditivas da operacionalidade das estratégias dos actores sociais eram e são
quebradas pelo que Stirling (1968:51) de modo eufemístico denomina a «moralidade pessoal» dos
funcionários públicos. Com efeito, no, amiúde, ineficiente e opaco sistema da burocracia administrativa e
judicial portuguesa de então, a actividade mediadora, tornando audível a voz da pessoa afectada, introduzia,
deste modo, um elemento de flexibilidade e possibilitava que estratégias paralelas e informais produzissem
certa eficácia, um fenómeno aliás igualmente constatado por autores como Campbell (1964:247), Boissevain
(1966:29) e Sayari (1977:106) respectivamente na Grécia, na Sicília e na Turquia. Os próprios moradores,
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

interiorizando a sua incapacidade de manipular directamente os canais de poder camarário ou estatal e


partindo eles do princípio de que o sistema jurídico-administrativo estava feito para obstruir os seus
projectos ou, como verifica Riegelhaupt (1979:513), para os prejudicar, serviam-se ou negociavam com um
influente medianeiro – localmente denominado misseiro. Este, por sua vez, intercedia junto do respectivo
funcionário, notável ou doutor, o qual, por vezes, se deixava subornar, fazendo depender o tratamento dos
assuntos ora da lealdade religiosa ou política do cliente, ora de uma gratificação (dinheiro ou géneros tais
como vinho, presunto, frango, cabrito).

Lindoso

A Câmara de Ponte da Barca, presidida pelo padre A., reconhecendo em acta de 26-12-1944 o atraso e
as deficiências infra-estruturais da vila e do município (saneamento básico, reabastecimento de água e rede
eléctrica, arranjo de estradas, mercados e repartições públicas) e considerando que não havia possibilidades
económicas para levar a cabo tais melhoramentos, decide, no âmbito dos planos estatais de florestação,
explorar a mata do Cabril no Lindoso, a qual, contrariamente a declarações anteriores, seria «fora de
discussão um bem comum, próprio deste município» (APB 26-12-1944).
A realização dos objectivos estatais e municipais acima delineados e, em particular, a usurpação da
mata do Cabril seria irrealizável sem o assentimento passivo ou acomodatício de diversos moradores e,
sobretudo, sem a cumplicidade da Junta e a conivência dalguns agentes internos – o lavrador Henriques e os
comerciantes Raposo, de Parada, e Urbano, de Lindoso. Estes, além de, segundo um informante, fazer
«desaparecer documentos comprovativos da pertença do monteà freguesia» ter-se-iam apropriado de
logradouros comuns sob o beneplácito dos Serviços Florestais14. No Lindoso pontificavam e repercutiam-se
sobremaneira no clima geral da freguesia os jogos de bastidores do cacique Raposo, em colusão com os
responsáveis políticos da vila e dos Serviços Florestais. Conhecido por «corça», «raposa» e «manda-chuva»,
esta figura-chave, assumindo um misto de mediador financeiro e político, foi assim retratada por um filho
duma das suas vítimas: «mandava apedrejar os seus concorrentes do comércio, emprestava dinheiro com o
intuito de apoderar-se das terras dos devedores e movia os cordelinhos para reunir em sua casa os da
Câmara e os dos Serviços Florestais para nomear os membros da Junta».

Este tipo de práticas correntes de vinculação pessoal e, simultaneamente, de violência, ora latente, ora
manifesta, até à década de sessenta constitui um dos indicadores sintomáticos de como o Estado ainda não
monopolizava o exercício da força física, a nível local. A gratificação da lealdade ou a punição da rebeldia
ficava ao critério discricionário dos agentes da autoridade local, cujo limite seria determinado pela relação
de forças locais, pela política da «boa reputação» na expressão de Bailey (1971: 1) e pela presença ou não de
superior força física por parte das vítimas que, por vezes, desafiavam eventuais agressores ou
inclusivamente detentores do poder ou da «justiça» local.
Não obstante o facto de outros mediadores locais como os lavradores Ferraz ou Milheiro (de Parada) se
oporem a estratégias de conluio com os Serviços Florestais, o papel crescente de mediadores pactuantes
como, por exemplo, Raposo e Urbano, ia de par com uma diminuição considerável da capacidade de
resistência da colectividade perante um Estado que interferia, directa ou indirectamente, cada vez mais em
assuntos outrora do seu foro exclusivo. Assim, se antes do repovoamento florestal, os montanheses de
Lindoso eram senhores do território, cultivavam centeio, recolhiam, informando a Junta mas sem licença
superior, matos e lenhas, fabricavam carvão e organizavam livremente o pastoreio do gado sem se
preocuparem de os animais invadirem a área florestal, com os planos de arborização estatal e, sobretudo, a
vinda da Guarda Florestal em 1942-43 ficavam-lhes vedadas tais actividades nesse perímetro. Isto forçá-los-
ia, além de pedir licença (AJL 27-7-1969), a construir, por sua própria conta, um muro à volta da zona

14
Tentativas de apropriação, usurpação ou simples cessão de parcelas de terreno comunal, umas bem-sucedidas outras não, podem
detectar-se em várias actas da Junta do Lindoso (cf., por exemplo, AJL de 2-11-1902, 19-12-1920 e, mais tarde, as de 17-5-1959,
27-7-1969, 31-5-1973, 30-12-1973, 31-10-1975, 2-1-1976 e 20-1-1976, além de documentos de algumas sisas: n.º' 203 de 25-6-
1944, 230 e 280 de 22-8-1944, 188 de 11-6-1945 e 139 de 25-4-1954.
302
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

interdita à pastagem. Bastava, porém, que o gado entrasse na área controlada pelos Serviços Florestais, para
que, mesmo sem qualquer danificação, os guardas florestais aplicassem aos respectivos donos multas de
25$00 por cada cabra ou 70$00 por cada vaca. Quem não tivesse dinheiro para pagar, teria de deixar como
caução o anel, a fieira ou o cordão de ouro ou até, por vezes, hipotecar uma terra para obter dinheiro; doutro
modo, o animal ficava apreendido.
Criada, na base dos Decretos-Lei de 14-10-1944 e 8-5-1945, uma área florestal reservada para a
plantação de eucaliptos e pinheiros e subtraída uma porção considerável de pastagens para o gado, os grupos
domésticos ver-se-iam obrigados, consequentemente, a reduzir ou mesmo a desfazer-se do seu efectivo
pecuário, tal como o mostra o gráfico 32 acerca da evolução da posse de gado em Lindoso.

GRÁFICO 32: Evolução da posse do gado: Lindoso (1945-86) (índice 1945=100)

Fonte: Livros 1, 1A, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 das Guias de pastagem do gado, 1945-86, Guarda Fiscal, Lindoso.

Tomando o ano de 1945 como base, entre 1945 e 1960, Lindoso teria diminuído o seu quantitativo
pecuário para 46.8% no gado bovino, 20.5% no caprino, 26.4% no ovino e 34% no suíno, diminuição que
jamais viria a ser colmatada, sendo tão-só atenuada com os aforros migratórios a partir de 1964 (anexo 21).
Por outro lado, davenda das árvores plantadas pelos Serviços Florestais, apenas reverteriam para as Juntas
de freguesia 10% do valor global a partir de 1962 e 25% desde 1972, elevando-se, no pós 25 de Abril, para
70% ou 60%, conforme a gestão coubesse às próprias colectividades ou ao Estado (D.L. 39/76 de 19-1).
Outra actividade livre antes da florestação consistia em produzir carvão. Se esta actividade constituía
para diversas famílias a sua principal fonte de subsistência, fazê-lo no espaço controlado pelos Serviços
Florestais passava a ser uma actividade proibida ou, pelo menos, sujeita ao arbítrio dos guardas florestais
que podiam interceptar e até ameaçar de disparo os produtores, apreender-lhes o carvão ou então, segundo o
testemunho de mulheres carvoeiras já referido em 6:2, fazer chantagem, a nível sexual, com as suas
«presas»!
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

Na caça aos «transgressores» os guardas florestais eram coadjuvados por zelosos rondistas locais que,
uma vez libertos dos chefes paroquiais e ansiosos de subir hierarquicamente, mostravam-se diligentes
perante os seus superiores, não só denunciando e/ou obrigando as mulheres carvoeiras a depositar o carvão
no posto da Guarda Florestal como, por vezes, conduzindo eles próprios, de propósito, o gado para dentro da
área interdita!
Mesmo quando houvesse trabalho superiormente destinado para toda a semana para certos trabalhadores
dos Serviços Florestais, alguns guardas deixavam-nos trabalhar por semana apenas dois ou três dias,
embolsando-se eles próprios o salário dos restantes dias não ocupados, já directamente, já por acordo tácito
com os trabalhadores a quem eventualmente gratificavam! Além disso, a discricionaridade dos guardas era
notável,no dizer de um dos actuais responsáveis, desde 1971, do Parque Nacional da Peneda-Gerês, a nova
designação dos antigos Serviços Florestais: «A autoridade pessoal do guarda era praticamente arbitrária:
multava ou perdoava a multa conforme os seus gostos e conveniências. O seu superior directo raramente
exercia controlo e as pessoas, por medo a represálias, não diziam a verdade dos factos ocorridos».
Tais actos de chantagem, repressão e até de pequena corrupção deixariam marcas indeléveis na
memória colectiva da população, ainda hoje visíveis não só num relacionamento ressentido com ex-
«rondistas», guardas e, sobretudo, com a direcção do Parque Nacional da Peneda-Gerês como, por vezes, no
despoletar de pequenos conflitos e até litígios judiciais por incidentes aparentemente insignificantes. Por
exemplo, uma queixa judicial, por parte de um guarda-florestal residente mas forâneo, seria mal sucedida
devido à solidariedade vicinal para com um morador acusado por aquele de ter-lhe «roubado» uma galinha
(TPB Li1:100, 99/85, 1985).

Consumados os planos de florestação estatal, quaisquer outras intervenções tais como a interferência
daElectra del Lima nos montes baldios a troco de um empréstimo financeiro para a construção de uma
escola, a remoção de uma dezena de espigueiros de pedra e a cessão de terrenos para aí construir a escola
primária15, tornaram-se, apesar da oposição da população e, em particular, dos expropriados, relativamente
mais fáceis. Mais, em 1964-65, não obstante as pressões dissuasoras de um padre da católica Rádio
Renascença e as reticências do presidente da Junta em ceder terreno baldio à Rádio Televisão Portuguesa
para a implementação de um posto emissor estatal, a delegação de poderes no mesmo patrono-advogado das
vitórias de outrora conduziria, devido às pressões governamentais, à alienação, por 30.000$00, de cerca de
19 hectares de terreno baldio a 1$50 o metro quadrado16. Em suma, uma colectividade serrana como
Lindoso, embora com as sucessivas remodelações visse aumentados os seus rendimentos florestais e
beneficiasse de pequenos melhoramentos infra-estruturais (caminhos, estradas) e (tardias) indemnizações
pelas perdas de animais causadas pelos lobos, acabaria por nem sequer ser consultada nem convidada a
participar em certos projectos (por exemplo, cessão de edifício à FAOJ em 1981 para instalação de pousada,
venda de lotes em hasta pública, conforme carta de 11-7-1990) e veria perder progressivamente em favor do
referido Parque a posse e a gestão de seus recursos naturais.

Aguiar

Contrariamente a Lindoso, Aguiar não conheceu tão incisivos processos de expropriação de recursos
com tão grandes dimensões e, por isso, os conflitos com a Câmara ou o Estado foram de menor relevo. No
entanto, a interferência estatal mediada pela Câmara, delegando na Junta e sobretudo no seu aliado local – o
empreiteiro e presidente da Junta Severino – certas competências para a implementação do projecto de uma
estrada, representaria uma das maiores fissuras no seio da aldeia. Foi, com efeito, a propósito da abertura
duma estrada em 1944-45, que as famílias e os próprios membros da Junta não só reavivaram internas

15
Cf. respectivamente AJL 28-4-1963, OL 3297 de 8-6-1962 e AJL 25-8-1963. A Junta teve de ceder terrenos comunais para
compensar os proprietários expropriados por motivo da construção da escola (AJL 15-6-1969). Por outro lado, a colectividade, ao
investir em melhoramentos locais (infra-estruturas, cemitério, edifício escolar, certas habitações) as receitas do arrendamento ou
da venda de terrenos, madeiras ou pedra, acabaria por economizar ao próprio Estado os correlativos gastos infra-estruturais. O
cemitério de Aguiar concluir-se-ia a 13-7-1886 e o de Lindoso a 4-6-1906 (AJL 4-6-1906).
16
Cf. AJL 17-1-1965 e 1-9-1965, NTPB C 38:74-77. Posteriormente, seriam também alienados à própria Rádio Renascença 4.500
metros quadrados por 6.750$00 (AJL 18-9-1966, 9-8-1967).
304
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

querelas parentais, como assumiram posições diferenciadas e, por vezes, antagónicas de tipo faccional.
Além da expectativa e da passividade de casas não afectadas, é de salientar a atitude do presidente da Junta
enquanto gestor do projecto, o qual, sendo, por um lado, apoiado pelos seus jornaleiros e artesãos
dependentes, sofreria, por outro, a oposição e até a rebelião declarada dalguns lavradores. Estes viriam a
instaurar um processo contra a Câmara e contra a própria Junta, em especial contra o seu presidente, a quem
apelidavam de «fiteiro», «bicho daninho», «amigo dos da Câmara». Os autores reclamantes, além de exigir a
construção de sifões para a rega das terras adjacentes e a reparação dos muros demolidos, requeriam como
indemnização um total de 5.028$50 pela expropriação de terrenos e pelos estragos causados,
designadamente o corte abusivo de videiras e árvores de fruta, a inacessibilidade e o rebaixamento das
serventias. A divisão interna na aldeia e sobretudo uma dívida de 14.000$00 de Severino a um credor de
freguesia vizinha – de que o secretário e o tesoureiro eram garantes – induziram estes a dessolidarizar-se do
presidente e a forçar a Câmara a entregar ao referido credor os previstos 10.000$00 de indemnizações aos
moradores afectados. Finalizada a estrada em 1945, o presidente da Câmara, a 22-3-1948, já não precisando
da mediação do presidente da Junta, demite-o e exara um despacho remetendo a responsabilidade dos danos
para a Junta, «com a qual os proprietários combinaram as expropriações, não sabendo a Câmara em que
termos»17.

A nível estatal, o governo salazarista, invocando razões de qualidade e concorrência, interviria ainda na
política vinícola, decretando uma restrição no plantio da vinha «americana», além de ordenar o arranque e a
enxertia das existentes18. Esta medida em Aguiar não suscitou incidentes relevantes devido a uma oposição
furtiva inclusive por parte dos lavradores empossados nas sucessivas Juntas. Todavia, a nível concelhio, já
anteriormente numa circular de 26-3-1937 emitida pelo presidente da Comissão Administrativa da Câmara,
F.T., os mediadores locais, em especial os párocos, seriam instados a desempenhar o seu papel persuasor
junto dos viticultores «exercendo a sua valiosa influência no sentido de obter os melhores resultados. A
Bem da Nação».

De acordo com a ideologia dominante sob o «Estado Novo», as funções de «previdência social»
caberiam apenas supletivamente ao Estado, devendo ficar, tal como referem as próprias actas da Câmara
(AB 17-4-1941), a cargo da iniciativa particular, da família e dos mecanismos de entreajuda comunitários
sob os auspícios dos patronos locais. Para além dos constrangimentos sócio-económicos da formação social
da época, a componente político-ideológica sob o «Estado Novo» teria, portanto, contribuído para que,
comparativamente a padrões de desenvolvimento europeus, os mínimos cuidados de saúde e segurança
social fossem tardios, precários e canalizados através das Casas do Povo.
Eivadas desde o início de um espírito corporativo centralista, com a imposição de pagamento de quotas
e o provimento de funcionários, as respectivas Casas do Povo do Lindoso e de Aguiar – cujas sedes se
situavam em freguesias circunvizinhas – teria, sobretudo em Aguiar, com o perfil algo autoritário do
responsável, provocado algumas relutâncias. Apesar disso, os funcionários localmente recrutados,
pressionando ou enxertando directrizes superiores do regime corporativo nas relações patrocinais vigentes,
teriam logrado amortecer, de modo hábil, esporádicas ou virtuais resistências locais.

12.3. O mediador como agente partidário (1974-90)

Com a mudança provocada pela emigração nos finais dos anos sessenta, com uma morfologia social
local mais diferenciada e, sobretudo, com a nova configuração do sistema pluripartidário no pós 25 de Abril

17
Cf. TB P634 Sec I M543 Li10:78, 14-10-1948. O projecto da estrada, conhecido pelo número 10384, traçado pela Direcção
Geral dos Serviços de Urbanização do Norte e delegado pela Câmara em Severino (AJA 10-1-1945), conheceu como principais
opositores os lavradores, em particular os afectados pela expropriação (Ae33, e79, e93, e126), que exigiam a referida
indemnização de 5.028$50, aliás oficialmente prevista. Este processo criou uma autêntica segmentação faccionária na aldeia.
Teoricamente a este respeito, cf. Nicholas 1966:51 ss, Bailey 1970:51 ss, Alavi 1973:43 ss, Banck 1979:851-856.
18
AJA 10-1-1945. A vinha «americana», sendo mais resistente a doenças tais como a filoxera, oferecia uma maior segurança e
abundância de produção aos pequenos produtores, mas constituía um factor impeditivo do aumento do preço do restante vinho, tal
como o pretendiam os médios e grandes produtores,
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

de 1974 diminui o carácter imperativo e sancionatório do poder local e desprende-se ligeiramente o controlo
hegemonizado por determinadas personalidades locais nas relações externas das actividades económicas e
políticas. Os notáveis tradicionais, temendo perder a sua velha hegemonia, mantêm-se partidários de
esquemas patriarcais e corporativos no quadro duma democracia directa mas restritiva. Por isso, lamentando
ou condenando a introdução do sistema partidário na aldeia, apelam à restauração da velha coesão e unidade
comunitárias, tal como, por exemplo, o ex-presidente de Junta Celso: «Não estou de acordo que os membros
da Junta sejam recrutados a dedo pelos partidos que cozinham as listas nas costas do povo, pois devia ser
este quem devia escolher os homens da sua confiança para estar à frente dos destinos da freguesia» (L109).

A progressiva interferência e o controlo por parte da Câmara, do Estado e dos próprios partidos
políticos representa, de facto, a subordinação das Juntas a estas entidades e, correlativamente, a paulatina
quebra da sua autonomia decisória na gestão dos recursos internos. Ainda que outrora esta prerrogativa de
autonomia aproveitasse sobremaneira às famílias económica e politicamente mais dotadas (5:1), é possível
verificar o aumento de investimento financeiro camarário e estatal nas aldeias. Esta perda de autonomia
aldeã vai de par com o acréscimo de encargos da Câmara para com as Juntas e respectivas freguesias. Estas
– que antes de 1911 se autofinanciavam –, se, entre 1911 e 1974, apenas recebiam do Estado e sobretudo da
Câmara esporádicossubsídios para gastos infra-estruturais ou outros tais como expediente de correio,
deslocações da Junta e similares, hoje são financiadas em especial pelas Câmaras que superintendem,
amiúde com as consequentes contrapartidas de submissão oudependência política, no pagamento de diversos
itens: desde a implementação de infra-estruturas, passando pela concessão de subsídios vários até à
aplicação de orçamentos para programas de desenvolvimento integrado, incluindo projectos de educação e
animação recreativa e cultural. Esta tendência é ainda reforçada pelo facto de, a de 1981, aos membros da
Junta ter-lhes sido atribuído o subsídio dos duodécimos, de acordo com a Lei 9/81: por exemplo, em Aguiar,
em 1992, o presidente recebia mensalmente 31.528$00 e o secretário e o tesoureiro 25.222$00 cada um.
Desta evolução de crescente dependência se pode inferir a importância que reveste, para a
Administração central, a necessidade de as actividades municipais se enquadrarem superiormente nas
estratégias político-administrativas daquela e se supeditarem aos ditames da modernização, devendo assim
as populações rurais submeter-se aos objectivos de integração económica e política. Por sua vez, nas suas
contendas pela liderança dentro e fora dos partidos, os estrategas e políticos municipais reservam lugares aos
seus próximos colaboradores e concedem empregos e favores aos mediadores locais que, ainda que de
segunda linha, são eficazes a nível da freguesia, sobretudo quando instrumentalizados para arrebanhar
consideráveis contingentes de clientes votantes.

Quebradas, porém, um tanto, na expressão de Alavi (1973:29), as «lealdades primordiais», assim como
as demais relações deferenciais a que aludem diversos autores como Newby (1975:161 ss), Sayari
(1977:109) e Scott (1985:312 ss), emergem padrões de comportamento mais individualizados, atenua-se a
identidade geo-social aldeã e entra em crise a velha coesão sob a autoridade tradicional. Consequentemente,
devido a realinhamentos de facções em base parental, associativa e sobretudo partidária, a colectividade
local fragmenta-se e, deste modo, formam-se segmentos competitivos. Estes, embora aproveitando ainda
identidades familiares ou de grupo, orientam-se todavia para alianças com entidades ou grupos da sociedade
envolvente, enfraquecendo assim as tradicionais relações patrocinais.
Para a criação de novos pontos de intersecção com as instituições bancárias,municipais e estatais
contribuiu, sem dúvida, certa mobilidade social, já horizontal, já vertical, e a formação de contactos
alternativos no exterior por parte de filhos (e)migrantes e estudantes dalguns camponeses, artesãos e
merceeiros. Tal permitir-lhes-ia aceder a novas oportunidades de opção19 e, por conseguinte, dispensar os
serviços e os favores do padre, da Junta e das casas ricas, elaborar cartas e panfletos contra figuras

19
De referir, entre outros, L12, 24, 29, 75, 98; A7, 13, 22, 24, 39, 55, 59, 78, 118. Uma maior liberdade de opção, graças à
moderna multiplicação competitiva de agências estatais, partidos, mediadores e respectivos recursos, tem sido igualmente
constatada noutras situações por autores como Huizer (1965:142.-143), Silverman (1965:187), Weingrod (1968:384 ss), E. Weber
(1976:263 ss), Sayari (1977:107 ss) e Loizos (1977:116) e, em Portugal, Almeida 1986:367 ss. Do mesmo modo, com a
introdução de nova tecnologia agrícola, os patrões-patronos têm igualmente reduzido a sua dependência da mão-de-obra dos
clientes (cf. Corbin 1979:111).
306
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

dominantes e até ousar pronunciar-se por partidos ou grupos da oposição.

Enquanto, em colectividades sem a presença de partidos, o poder local constituía o resultado da relação
de forças interna e traduzia a defesa dos interesses locais mais fortes, conjugados ou não com os dos
próprios ocupantes dos cargos, numa constelação política em que a nomeação dos membros das listas é pré-
fabricada ou consentida nos bastidores dos aparelhos partidários, o poder torna-se, acima de tudo, um
veículo de interesses estranhos, ainda que confundidos ou articulados com estratégias particulares de agentes
locais. Por isso, os caciques concorrentes, ora alinham pelo mesmo partido, ora optam por este ou aquele,
não tanto em função da concepção programática de cada um, mas antes tendo em conta as suas conexões
com os respectivos patronos municipais, assim como as aberturas existentes no quadro eleitoral reinante, a
fim de fazer valer as suas posições e interesses, assim como os de seus cabos, apaniguados e apoiantes
menores.

Lindoso

De entre as diversas vicissitudes e incidentes do processo pós 25 de Abril de 1974 em Lindoso,


designadamente os conflitos entre a facção pró-padre e a facção anti-padre e as tentativas do Estado em
apoderar-se de um edifício escolar construído pelos moradores (AJL 2-4-1975), é digno de realce o caso
paradigmático da expropriação de terrenos para a construção de uma barragem pela empresa pública EDP.
Perante as primeiras e fugidias incursões de técnicos e funcionários da EDP para identificação dos
terrenos e seus donos, não se fizeram esperar reacções radicais por parte dalguns moradores: «Eu não digo
quais são as minhas terras. Se os vejo a pisá-las, mato-os». Apesar das atitudes espontâneas de oposição por
parte da população – a que uma Comissão de Defesa procurou dar corpo e apelar a figuras ou poderes no
exterior (jornalistas, partidos políticos, Ministério de Obras Públicas) –, a EDP viria a contar, fora e dentro
da aldeia, com aliados, cujos interesses conjugar-se-iam parcialmente com os seus. Fora da aldeia
convergiriam os partidos políticos governamentais do Bloco Central (PSD, PS), partidários de projectos
infra-estruturais de modernização, ainda que em detrimento dos interesses ditos particularistas da
comunidade, os quais, segundo os dirigentes da EDP, deveriam supeditar-se «ao interesse público»
traduzido no aumento de 10% de produção de energia hidráulica nacional. A nível regional e municipal,
acresceriam as estratégias dos respectivos responsáveis designadamente os da Câmara de Ponte da Barca,
para a qual convinha canalizar fundos em vista de melhoramentos infra-estruturais, co-tutelando assim o
empreendimento20.
Dentro da aldeia, para além da relativa quietude do pároco – que ou distanciar-se-ia ou aconselharia a
moderação – a EDP, não obstante a Junta de então, numa carta de 7-7-1980, ter alertado para que « não
fossem tocados os terrenos de cultivo e pastagem como meio de subsistência», pôde obter a aquiescência da
subsequente Junta de freguesia, particularmente do seu presidente, um não proprietário. Este, na mira de
manter o lugar alcançado pela via partidária sob a anuência do presidente da Câmara e após obter como
prémio da sua inércia pactuante um posto de trabalho de vigilante, comportar-se-ia, no dizer de um morador,
como um «cordeiro manso» e afirmaria: «A Junta não tem nada a ver com isso, são assuntos particulares, a
EDP precisa mais do terreno que os nossos filhos!».

Tendo os detentores do poder local claudicado perante os objectivos estratégicos da EDP, a direcção
desta, através da perícia dos seus experientes negociadores, conseguiria, na base da táctica de «falas
mansas» e de uma abordagem atomicista, convencer cada um dos moradores do Lindoso de que, não
oferecendo resistência frontal à Câmara e à EDP, os seus terrenos seriam «melhor avaliados e os seus filhos
recompensados com postos de trabalho». Por outro lado, além de aliciarem as famílias mais modestas com a

20
Chegara a ser proposta pela Comissão de Defesa a hipótese da transferência do projecto para terrenos baldios duma freguesia
limítrofe do município de Arcos de Valdevez situada na outra margem do rio, na medida em que tal projecto traria menores
prejuízos à população vizinha que às férteis veigas da zona ribeirinha do Lindoso, proposta esta que não obteria eco da parte da
Câmara de Ponte da Barca.
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

estimulante ideia de auferir juros do dinheiro «sem esforço», os negociadores não só segredavam a cada
vendedor o pagamento de um preço mais elevado que às demais famílias como, de acordo com a resistência
do cliente, bem como da sua posição e capacidade negociadora, atribuíam preços diferentes a terrenos da
mesma qualidade21.
Simultânea ou seguidamente, para os indivíduos mais recalcitrantes e para membros da própria
Comissão de Defesa, os mediadores congeminaram tácticas dissuasoras, difundindo o espectro da
expropriação forçada por utilidade pública e até ameaças intimidatórias de prisão. Já, porém, aos líderes de
opinião favoráveis e a alguns adversários convertidos ou silenciados acabariam por destinar-lhes postos de
trabalho, avaliar-lhes mais favoravelmente os terrenos e inclusivamente, nalguns casos, registar em seu
nome terrenos baldios cedidos pela Junta em troca dos expropriados. E, a nível de opinião pública na aldeia,
fizeram circular rnmores de que a família influente A ou B já tinha assinado e, mais tarde, de que mais de
50% das famílias já haviam cedido, o que teria induzido as indecisas a assinar os contratos dos terrenos a
expropriar.
Dada a falta de organização colectiva adequada, as divisões e as suspeições intracomunitárias e a
preponderância das estratégias familistas (indiferença das famílias não afectadas, estratagemas jurídicos, em
catorze casos, de reavaliação de prédios dados como omissos, tentativas de tratamento de favor por
engenheiros e técnicos), a Comissão de Defesa iria perdendo força, dando lugar a uma atitude generalizada
de resignação perante e o colossal binómio da EDP-Estado: «Então você já viu um cão pequeno a morder
num grande?» (L120).
Apesar dos estratagemas utilizados, a ausência de força negocial veio permitir que, de modo geral, os
habitantes atingidos sobretudo até 1985 fossem indemnizados com valores extremamente baixos e os seus
mais férteis terrenos expropriados a preços senão matriciais, bastante inferiores aos preços do mercado
fundiário na região, variando o leque entre 20 e 80$00 por metro quadrado, preços estes não precisados ou
até negados por responsáveis da EDP, que limitar-se-iam a dizer terem sido praticados «os preços
legalmente estabelecidos». Para as famílias expropriadas até 1985 (anexo 22), a injustiça e o tratamento
discriminante por parte da EDP/ Estado– em que, por vezes, um dos juízes da comarca de Ponte da Barca é
por alguns moradores co-responsabilizado – tornaram-se tanto mais flagrantes quanto a mesma entidade,
devido certamente às pressões das autoridades galegas e seus representados, atribui ao mesmo tipo de
terrenos, nas limítrofes terras de Galiza, preços que situar-se-iam entre 500 e 800$00 o metro quadrado22!
Salvo a lavradora mais rica de Lindoso, que teria recebido cerca de 600.000$00 e treze casas que teriam
auferido entre l00.000$00 e 200.000$00, a média resultante das vendas oscilava à volta de 38.000$00. Tais
valores, em termos económicos locais, ou representam a sua irreprodutibilidade ou diminuem a sua
capacidade reprodutiva, agravando assim a sua dependência de fontes de receita extra-agrícolas: «Quem vai
sofrer com tudo isto são os nossos filhos. Ficam sem terra e quem lhes assegura trabalho?» (L67).
Diversas famílias, ora indignadas ora impotentes pelo modo como foram ludibriadas, não se têm
cansado de lamentar o sucedido, induzindo esta dolorosa experiência um dos moradores mais idosos a
chorar perante o espectáculo da barragem «engolindo» as suas terras: «Tanto passámos nós e os nossos
antepassados para arrancar um pedaço de terra, cultivá-lo e conservá-lo para agora ir perder-se nas águas
da barragem! O Estado levou-nos o gado, agora a EDP leva-nos os terrenos» (L48).

A demissão da Junta de freguesia perante as pressões exteriores tornar-se-ia mais visível quando, com a
forçada «anuência» dos dois ex-presidentes da Junta entre 1973 e 1982, sem qualquer consulta prévia à
21
Contrariamente a outros projectos como o de Tourém, nos anos setenta, em que populares cercaram com facas engenheiros e
funcionários da EDP, a abordagem porta a porta e com tratamento diferenciado foi aqui bastante eficaz. Por vezes, enquanto casas
económica ou politicamente melhor colocadas conseguiam melhores preços para as suas terras, alguns moradores mais débeis
viam os seus direitos preteridos e/ou as suas terras, por si cultivadas mas sem título, negociadas por mediadores locais.
22
Segundo informantes qualificados, designadamente advogados de defesa de moradores atingidos em acções de expropriação
estatal de terrenos, à sombra ou à margem deste processo acolhiam-se indivíduos menos escrupulosos que, ora negociavam e
especulavam sobre terrenos comprados, ora os revendiam para construção de casas ou complexos turísticos.
Estes factos, aliados à circunstância de engenheiros e funcionários da EDP possuírem serviços de saúde próprios e melhores
escolas, têm reforçado uma animosidade silenciosa das populações privadas de tais serviços, não obstante bastantes moradores de
Lindoso reconhecerem também os apoios destes serviços, ainda que incidentais, à população, sobretudo em situações de
emergência.
308
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

população e nem sequer à própria Assembleia de freguesia, ela cede gratuitamente águas e arrenda 17.8
hectares por 60.000$00 anuais. Mais, tendo em conta a Lei 39/76 de 19 de Janeiro, a Lei 40/76 e a Portaria
117/76 de 1 de Março, a Junta, ao assumir de modo indevido a qualidade de «dona e legítima possuidora de
baldios», aliena ilegalmente 57.4 hectares de terrenos comunais pelo preço global de 3.700.000$00 à razão
de 8$00 o metro quadrado(quadro 35).

QUADRO 35: Bens comunais expropriados pela EDP

Fonte: Escritura de venda cedida por morador e Escrituras Diversas, Li85C:53v-58, 13-12-1984, Notariado de Ponte da Barca.

O processo de construção da barragem – aliás saudado pelos que, obtendo trabalho, não sofreram
expropriações – trouxe consideráveis modificações no ecossistema de Lindoso, um maior grau de circulação
de bens e pessoas e, em particular, um aumento de casamentos exogâmicos. A transferência, embora
limitada em volume e no tempo,de força de trabalho de Lindoso para a construção da barragem reforçou o
processo de transição duma economia agro-pastoril relativamente autónoma para um mosaico de economias
domésticas dependentes de várias fontes de rendimento externas, sem excluir contudo que, para uma mão-
de-obra não qualificada, o fim das obras da barragem signifique o desemprego ou o regresso forçado e
precário à agricultura. Embora alguns moradores tentem canalizar as suas poupanças para alternativas como
o turismo, são sobretudo os mediadores de compra e venda de terrenos e outras entidades quem se vem
empenhando em renegociar terrenos ou tirar proveito de projectos turísticos. Apesar da reacção das
posteriores Juntas do Lindoso e freguesias vizinhas no sentido de travar o processo de incorporação criando
a Associação de Proprietários do Parque da Peneda-Gerês, afigura-se irreversível a perda da sua relativa
autonomia.

Aguiar

Passado o período conturbado de 1974-75, o comando político de Aguiar seria justamente retomado
pela família Fontes através de Donato, filho do antigo presidente da Junta de freguesia, o qual conseguirá
paulatinamente exercer o papel de principal mediador dos moradores na sociedade envolvente. Tendo
conseguido, graças às conexões familiares com influentes citadinos, tornar-se funcionário e, posteriormente,
ascender por si próprio à categoria de oficial no tribunal de Barcelos, filiou-se e tornou-se um acérrimo
activista pelo PSD. Esta ligação permitir-lhe-á manter bons contactos com notáveis municipais
designadamente na Câmara e nos meandros da justiça comarcã, inibindo diversos moradores de lhe
lançarem qualquer invectiva ou censura. Acresce que a sua posição era reforçada pelo facto de a esposa ser
professora na aldeia, de modo a haver algumas famílias que se sentiam algo dependentes quanto à avaliação
escolar dos seus filhos.
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

Se bem que o seu pequeno poder seja ora sobrestimado por conterrâneos seus ora rejeitado e contestado
por outros mediadores concorrentes integrados no mesmo ou noutros partidos, Donato funde em si o papel
de patrono pela supremacia fundiária da família com a de principal medianeiro para a maior parte dos
habitantes de Aguiar (e de freguesias circunvizinhas), aos quais presta os tradicionais «jeitos» e «favores»
perante problemas que os aflijam: doenças, reformas, processos burocráticos designadamente judiciais. Por
outro lado, além de competir mais eficazmente na drenagem e na gestão de recursos colectivos
(melhoramentos infra-estruturais em estradas, caminhos ou transportes), liderou a construção de um «salão
paroquial» – que, numa estratégia de descolagem do patrocínio da Igreja, rebaptizá-lo-á de Centro Social.
Apesar de o Centro Social ter sido construído com o trabalho voluntário de paroquianos, com 51% em
ofertas de dinheiro das casas de Aguiar e 19% das de freguesias circunvizinhas de um total de 5.597.231$00,
a Câmara de Barcelos, tendo contribuído com 27% basicamente sob a forma de cessão de máquinas para
terraplanagem, pretende superintender cada vez mais no Centro Social. Neste, além da criação de um Jardim
de Infância, de um núcleo de Actividades de Tempos Livres e de um rancho folclórico, acabaria por ser
instalada, em 1990, por mediação de Donato e por convénio entre a Câmara e a Igreja, uma Casa-Escola
Agrícola, política e religiosamente controlada pela Opus Dei.

Qualquer acção procedente das instituições municipais ou estatais teria de contar com a colaboração de
Donato, sendo de referir, em especial, as tentativas de um plano de irrigação pelos Serviços Municipais da
Direcção Regional do Ministério de Agricultura e Pescas e a criação de um inoperante Centro de cultura e
educação permanente (educação de adultos, cursos para jovens, teatro, desporto). Enquadrando estas até
hoje (quase) inexistentes actividades, um projecto de desenvolvimento integrado – em que Aguiar
constituiria uma das cinco freguesias-piloto (Lei 3n9 de 10 de Janeiro e Portaria 16/M/82) – deveria originar
algumas iniciativas para as quais foram inicialmente convocados alguns dos colaboradores próximos do
Centro Social, mantendo-se contudo alheada a maioria dos moradores.
Não sabendo os seus clientes exactamente até onde se estende a sua rede de contactos, Donato opera na
sombra da própria Junta de freguesia ou por detrás da tela opaca do PSD, alimentando as representações dos
conterrâneos com um misto de feitos e promessas. Os casos bem-sucedidos apresenta-os amiúde como obra
dos seus esforços, habilidades ou influências, quando, em regra, se trata da aplicação de disposições legais
ou sentenças judiciais isentas. Porém, sendo Donato um mediador sem título académico, esta primeira fase
de criação de clientes-devedores no ciclo de circulação de bens e serviços, exigindo-lhe investimento
pessoal e até abdicação de contrapartidas financeiras, foi extremamente importante para validar-se e
transmutar esses favores acumulados num crédito social alargado e, a médio prazo, tornar-se uma figura
benquista da maioria dos conterrâneos. Agindo nos interstícios do poder camarário e da aldeia, o objectivo
central de Donato é prender cada uma das famílias à sua pessoa e, por um ou outro favor concedido, torná-
las devedoras, a fim de aumentar a sua credibilidade mas mantendo, por vezes, tal como já o referira Bailey
(1970:174 ss), as suas fontes, canais e instrumentos de poder local em cuidadoso sigilo.
A acção do mediador Donato caracteriza-se assim por uma versátil duplicidade. Se para os seus clientes
da aldeia se projecta como influente dirigente de orquestra,para com certos políticos e letrados da cidade
funciona como singelo e servidor. Se utiliza diversas tácticas tais como divulgar as suas promoções e êxitos,
encenar honorosas recepções a notáveis citadinos no Centro Social a fim de obter alguns fundos e
benefícios, também investe politicamente dando a cara e percorrendo com fervor as aldeias em apoio aos
candidatos do «seu» partido.
As relações de domínio patrocinal em Aguiar tornam-se subtilmente eficazes por se encontrarem
perpassadas de uma convivência num território comum, a qual, acrescida dum certo reconhecimento e
afectividade, contribui para manter duráveis as relações assaz personalizadas entre o mediador Donato e os
seus conterrâneos-clientes.

*
**

Concluindo, contrariamente a concepções um tanto românticas sobre a democracia municipal, o


município raramente tem cristalizado ou animado movimentos paroquiais de resistência anti-estatal, sendo,
310
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

em particular até meados do século XIX, veículos de defesa dos interesses e das pressões das classes
aristocráticas, da burguesia nascente e do funcionalismo, como já o comprovou Capela (1989:115,191) a
respeito do município de Barcelos. Quando muito, os poderes municipais, sem confiar demasiado nas
estruturas representativas a nível paroquial, têm recorrido a alguns elementos locais para amortecer
descontentamentos e integrar as colectividades. Por outro lado, a preservação duma certa autonomia viria
permitir o reforço de vínculos clientelares, tal como, em relação a outras situações na América Central, já o
havia notado Wolf (1957:14).
Em contexto agrário, com recursos limitados, rigidez estatutária e prática ausência e/ou forte restrição
na mobilidade (geo)social, as aparentes ou reais atitudes de apoio e lealdade sócio-política e religiosa dos
clientes face a patronos e mediadores obedeciam a imperativos racionais de subsistência,, segurança e/ou
melhoria de posição, É justamente numa função mediadora mais personalizada com a sociedade envolvente
que as relações clientelares, prolongando, embora de modo diferente, as demais relações sociais de
parentesco e vizinhança, possuem dinâmica própria – amiúde envolta sob um manto moral, religioso e cada
vez mais –, mas não estão desligadas das economias locais e correlativas diferenciações sociais.
Se na primeira e na segunda fases, as interferências municipais e estatais (débil implementação de infra-
estruturas e a cargo das colectividades e, em especial, em Lindoso, usurpação florestal sem indemnização) se
deviam à falta de recursos nas instâncias intermédias e centrais, ambas as aldeias têm conhecido, ainda que
de modo lento e ziguezagueante, um processo real de submissão aos ditames de centralização estatal e aos
objectivos estratégicos de modernização. O grau de interferência, o ritmo e a eficácia deste processo tem
dependido, contudo, não só da configuração sócio-economica e da capacidade de resistência da respectiva
unidade sócio-política e territorial – a freguesia e/ou a aldeia – e seus mediadores como do volume, da
frequência e da intensidade das forças exteriores.
Os elos mais débeis da cadeia de interdependências entre o local e o estatal serão os elementos do poder
local pouco ou não agricolamente ocupados e os membros mais dependentes, ansiosos de escapar ao
controlo dos poderosos locais. Por isso, desde os anos quarenta e, sobretudo, a partir da década de setenta os
moradores têm-se apresentado frágeis não tanto pelos métodos violentos das instituições estatais, mas antes
pela conivência e pela cumplicidade interessadas de diversos tipos de actores internos à colectividade, em
especial de personalidades revestidas de autoridade e/ou poder locais por um lado e, por outro, dalguns
membros mais pobres. Para estes últimos, a política florestal, se num primeiro momento representou a perda
da principal fonte de subsistência – o carvão – num segundo, aliada às saídas migratórias, proporcionou uma
relativa libertação do jugo local dos donos da terra e da força de trabalho.
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

A visita do bispo a Aguiar e Quintiães (foto 35)

312
Camponeses, Igreja e Estado: Os mediadores

A procissão: o pálio e os notáveis, Ponte da Barca (foto 36)

Do processo de expropriação em vista da barragem e outros assuntos se infere que a Junta de freguesia,
deixando de ser, com o sistema pluripartidário, um órgão corporativo como outrora e abdicando da
incumbida função de representar e defender os interesses da população, tornar-se-ia um instrumento de
poder cada vez mais residual e maleável às estratégias partidárias e aos objectivos munícipo-estatais.
Com efeito, na terceira fase, se a implantação do regime pluripartidário vem debilitando o patrocinato
tradicional, tal não tem implicado necessariamente o seu desaparecimento, mas antes a sua transformação e
diluição nos arranjos institucionais, de modo a coexistir com solidariedades de tipo horizontal. De qualquer
modo, constata-se uma progressiva erosão das identidades e solidariedades antigas e a diminuição do papel
dos tradicionais patronos e mediadores em ambas as aldeias e, provavelmente, na sociedade rural minhota.
Assim, enquanto nas primeiras décadas deste século, os representantes locais constituíam um forte
contraponto ao poder camarário e estatal e, nos anos quarenta e cinquenta, os emergentes caciques – Raposo
no Lindoso e sobretudo Severino em Aguiar – se afirmavam de modo violento e justiceiro como autênticos
donos do território, entre 1950 e 1970 os patronos Milheiro e Ferraz no Lindoso e Fontes em Aguiar, ao
serem elos ocasionais com os poderes camarários, granjeavam, de modo patriarcal e afectivo, força de
trabalho barata ou (quase) gratuita. No pós 25 de Abril de 1974, se os líderes partidários e camarários, para
reforçar o seu próprio poder, multiplicam redes de contactos, favores, empregos e demais recursos públicos
em troca de empenhamento e apoio eleitorais, mediadores políticos como Donato tornaram-se agentes
competitivos e integrados em estruturas (para)partidárias e camarárias num quadro de formal observância
dos ditames legais.
A disponibilidade dalguns recursos reforça certamente, a curto ou a médio prazo, o poder local de
mediadores (para)partidários de tipo suplicante, aliás decisivos nos processos de sujeição comunitária.
Porém, à medida que, a médio-longo prazo, se realiza o processo de incorporação das economias artesanal,
camponesa e pastoril na economia e na sociedade englobantes, as entidades municipais e estatais, ao
Entre a Aldeia e o Estado: O mediador

transferirem, de modo mediado e subtil, para funcionários as competências dos velhos patronos e
mediadores, vão interferindo e exercendo funções de integração e controlo de colectividades como Lindoso
e Aguiar. Por sua vez, quanto mais se desintegrem os aspectos corporativos da comunidade, mais os actores
locais tendem a participar e/ou a integrar-se na economia e na política regional, nacional e até internacional.

314
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

CAPÍTULO 13

UM PODER LOCAL FAMILISTA:


CONCORRÊNCIA E DIVIDENDOS

Não é apenas no século XIX, como sugerem Descamps (1935:39 ss) e Willems (1963:68), mas
inclusivamente e, pelo menos, até aos anos setenta deste século, que as relações de família e parentesco,
embora já um tanto mais debilitadas, estão na base da estrutura do poder local. Também em Lindoso e em
Aguiar o poder local é familista na medida em que gravita em torno de determinadas famílias concorrentes
ou rivais, cujas contradições as diversas mudanças políticas, a nível municipal ou central, permitem abrandar
ou intensificar, afectar mas não forçosamente anular ou resolver. As relações de poder, atravessadas pelas
relações parentais, imbricam-se estreitamente, por conseguinte, com os lugares e as posições de prestígio das
respectivas famílias-protagonistas no xadrez da aldeia.
Do mesmo modo, contrariamente à ideia de Foster (1965:303) de que os camponeses seriam relutantes
em aceitar uma dinâmica de competitividade acerca da liderança política, constatam-se, a nível interno de
cada colectividade, lutas à volta dos cargos políticos. Assim, bastantes dos acontecimentos públicos e
mesmo privados têm como recorrente pano de fundo a emulação dos actores políticos locais que,
contrariando um (pre)conceito restrito de (macro)política, empreendem política praticamente a tempo
inteiro. Em tempo «normal» e durante longos períodos, quer em Lindoso, quer sobretudo em Aguiar, as
famílias mais influentes têm dominado as respectivas colectividades, decorrendo tal predomínio da
«natural» imposição do seu poder económico e/ou político, do seu acervo de conhecimentos e/ou da sua
capacidade de liderança. Dado que a reclassificação positiva de uns é percebida como derivada da
desclassificação de outros, é justamente na competição pelo controlo dos recursos públicos e por ocasião de
determinados momentos marcantes da vida pública local e nacional que cada um dos protagonistas procura
ganhar terreno sobre os seus adversários: desde acontecimentos de natureza intra ou interfamiliar
(casamento, funeral, litígio) até assuntos da esfera pública (um melhoramento infra-estrutural, uma festa,
uma visita episcopal, a entrada ou saída de pároco e, sobretudo, a disputa eleitoral).

Um modelo de causalidade mecânico, em que o volume de bens e o lugar sócio-económico ocupado por
cada actor seria o único factor determinante para identificar a sua posição a nível político-ideológico,
conduzir-nos-ia a um impasse na medida em que o subjacente pressuposto teórico e ideológico esbarra com
a constatação de factos e regularidades que o infirmam. Por outro lado, as contradições do poder local não
obedecem a linhas programáticas ou ideológicas, mas exprimem, se bem que de maneira não linear, as
emulações, as rivalidades ou mesmo os confrontos interfamiliares pelo domínio dos recursos locais e pela
conquista do(s) melhor(es) lugar(es). Além disso, em relação a Lindoso, fazendo esta parte de uma freguesia
dividida em três aldeias territorialmente delimitadas, o poder local não constitui um corpo uniforme e
unilocalizado mas reparte-se pelos três aldeamentos, resultando de cada um destes um dos três membros da
Junta.
Da leitura sintomática das actas da Junta, das referências e histórias orais narradas sobretudo pelos mais
idosos e do estudo da composição social dos portadores dos cargos religiosos e políticos locais se infere que
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

os lugares de distinção e/ou comando nas Confrarias, nas Comissões Fabriqueiras, nas Juntas e na Regedoria
eram ocupados e forjados a partir das famílias munidas com mais recursos: fundiários, monetários,
comunicacionais, de prestígio ou outros. Apesar de a gradual distribuição de recursos, sobretudo em
Lindoso, impedir fortes concentrações de poder económico e político, este era basicamente detido ou
repartido entre proprietários e lavradores desafogados. A estes acresciam alguns mestres de obras e
comerciantes (Ae7, L24), cujas lojas e oficinas, enquanto locais de recrutamento de mão-de-obra ou detendo
uma posição fixa e central na aldeia face aos transeuntes, constituíam, tal como o sublinha Boissevain
(1978:156), pólos agregadores na formação de cliques locais e transmissores de mensagens de informação e
de mediação com o exterior.

Sendo ténue, deficitária ou até ausente a institucionalização do poder, os detentores e concorrentes aos
respectivos postos eram forçados a socorrer-se de «formas elementares de dominação»1. Cativar, prender ou
apropriar-se de cada família dependente requeria uma dedicação personalizada, diária, constante. Não
bastava, portanto, dispor de recursos fundiários, monetários e comunicacionais para se constituir mediador.
Nem todos os artesãos, merceeiros e lavradores se tornavam mediadores sistemáticos, porque nem todos
detinham oportunidades e condições de exercício de tal função. Esta, além de exigir a posse doutros recursos
tais como disponibilidade, tempo, energia e astúcia, fazia parte dum negócio, cujos dividendos, em regra, só
a médio e a longo prazo tornar-se-iam palpáveis. Algumas famílias, porém, no intuito de reproduzir ou
reforçar a sua posição sócio-política – que ora flui do lugar proeminente ocupado no sistema sócio-político
local, ora decorre de um certo investimento calculado –, ora se presta(va)m a levar a cabo estas operações,
ora eram e, de certo modo, ainda são estimuladas por forças e personalidades exteriores: por exemplo, os
membros da Junta e da Assembleia de Freguesia, pela Câmara ou pelos partidos políticos, os merceeiros
pelos comerciantes grossistas.

13.1. Recursos e estratagemas: o compadrio

Pelo menos até aos anos sessenta, paróquias como Lindoso e sobretudo Aguiar, em regra sob o domínio
tradicional do padre, formavam uma espécie de pequenos «Estados» dentro do Estado. As autoridades
locais, institucionalizadas nas Confrarias, na Comissão Fabriqueira e sobretudo na Junta de Freguesia
detinham consideráveis poderes internos, mesmo quando delegados. Não só se ocupavam do lançamento e
da arrecadação parcial de impostos (por exemplo, derramas para satisfazer despesas de carácter
administrativo e simbólico), como se encarregavam de implementar infra-estruturas, alienar ou redistribuir
determinados bens e valores (terrenos comunais, madeiras e matos), organizar e regular os trabalhos
comunitários, solucionar quesílias acerca de águas e limites territoriais e, eventualmente, negociar ou
restaurar a ordem interna e harmonizar as hierarquias locais. De resto, alguns dos notáveis locais
representavam-se e, não raro, agiam como donos do território paroquial, em cujo perímetro não só exerciam
uma certa jurisdição factual interna, aplicando, por exemplo, a justiça perante certas infracções das normas
vigentes, como controlavam a circulação de bens e pessoas, designadamente forasteiras, bem como as
próprias demarcações fronteiriças da respectiva freguesia.

O aforismo popular «quem não tem padrinhos morre mouro», além da sua conotação cristã, era e é bem
denotativo da necessidade de segurança e protecção das famílias mais carentes. Estas, dada a sua
vulnerabilidade no seio da aldeia e a desconfiança face ao exterior, ora se refugia(va)m nos laços de
parentesco e vizinhança, ora procura(va)m escolher para padrinhos dos baptizados e casamentos dos seus
filhos membros das famílias mais ricas e influentes da aldeia ou da região, tal como os dados dos assentos de
casamento dos registos paroquiais de 1860 a 1985 evidenciam:

1
Cf. Bourdieu 1980:217. Para uma mais completa e sistemática explanação de recursos e condições da sua mobilização, cf. Bader
e Benschop 1988: 129 ss, Bader 1991:254 ss.
316
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

QUADRO 36: Padrinhos de casamento (1860-1985)

Legenda: (a) padre, minorista; (b) proprietário, lavrador-lavradora/doméstica; (c) industrial, comerciante; (d) empregado,
funcionário; (e) artesão, operário; (f) caseiro,jornaleiro, criado; (g) desconhecido/ilegível.
Fonte: Assentos de casamento do Lindoso e de Aguiar, 1860-1985, CRCPB, CRCB, RPL e RPA.

Tal como se pode inferir do quadro 36, em 92.6% e em 81.8% dos casos, respectivamente no Lindoso e
em Aguiar, foram escolhidos para padrinhos padres, proprietários e lavradores, pequenos comerciantes e
industriais, empregados e funcionários públicos, cabendo 5.6% e 14.7% a artesãos e operários e restando
apenas 1.8% e 3.5% a caseiros, jornaleiros e criados.
Um outro indicador relevante para evidenciar os tipos dominantes de apadrinhamento é o facto de, ao
longo do tempo considerado, justamente em colectividades com elevada taxa de analfabetos, 80.7% dos
padrinhos no Lindoso e 88.4% dos de Aguiar saberem, pelo menos segundo os referidos assentos de
casamento, assinar o nome. Nesta óptica, além do peso relativamente constante dos lavradores-proprietários,
importa referir que, de acordo aliás com a configuração histórica da estrutura profissional, enquanto até
1930 predominavam em ambas as aldeias os proprietários-lavradores e os padres como padrinhos, a partir
daí, além destes, perfilam-se também novos tipos de padrinhos personalizados nas figuras de pequenos
comerciantes e empreiteiros, artesãos, operários e, sobretudo, empregados e funcionários. Por outro lado, se
a partir de 1920-30 se torna cada vez mais frequente o recurso a parentes próximos para padrinhos de
casamento e, a partir de 1960, para padrinhos de baptismo, antes dessa época eram preferidos membros de
famílias não parentes, dentro e fora da aldeia, não raro solteiros mas com recursos e/ou estatuto social
elevado, aspecto este aliás também relevado para Portugal por Callier-Boisvert (1968:99) e Goldey
(1981:127) e, para Grécia, por Campbell (1964:244).
Entre os pais e os padrinhos do afilhado entabula(va)-se uma relação de parentesco ritual através da
instituição conhecida por compadrio. A relação de compadrio, embora não se verifique apenas entre
desiguais e possa incluir uma forte componente de amizade, se não o é, pode tornar-se ou patrocinal ou, pelo
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

menos, imbuída de traços de amizade instrumental2. Não será com certeza por acaso que, em ambas as
aldeias, eram precisamente as famílias mais providas de recursos que detinham um maior número de
afilhados: entre cinco e dez ou mais.
Se hoje se torna cada vez menos usual, ao afilhado competia tradicionalmente demonstrar a sua
dependência sob a fórmula de saudação reverencial: «Dê-me a sua bênção, padrinho», ao que se seguia, por
parte deste, uma referência a uma hierarquia espiritual superior: «Deus te abençoe» Sendo o padrinho padre,
o afilhado deveria corresponder a elevadas exigências de teor simbólico: «Para receber um fato do meu
padrinho, o padre José Milheiro, tive que ajudar à missa, decorar e cantarolar aquele latinório todo»
(L103).
Esta dimensão simbólica era acompanhada de estratégias materiais na medida em que os afilhados e
suas famílias esperavam dos seus protectores, além do folar anual, a satisfação das tradicionais obrigações
sociais: por exemplo, prendas de género ou roupas, deixas de bens móveis ou até imóveis, se fossem
padrinhos sem filhos, recrutamento para trabalho agrícola ou artesanal e, se possível, legados testamentários,
pagamento de estudos, empenhamento em meter cunhas para obter emprego e ajuda na resolução de
eventuais problemas. E, tratando-se de padrinhos de casamento, tal implicava um gasto mais oneroso:
custear a mobília, oferecer os anéis de ouro ou então um bom donativo em dinheiro.
Segundo Kenny, Campbell e Wolf3 o padrinho-patrono, recebendo apenas bens intangíveis (honra,
prestígio, lealdade), suportaria dispêndios materiais que constituiriam o que Foster (1972:179) designa de
formas culturais de nivelamento. Sem negar alguma operacionalidade por parte de tais mecanismos
redistributivos, compensatórios ou inibitórios de maior diferenciação, subjaz contudo a este pressuposto uma
tendencial legitimação do statu quo de desigualdade social. Com efeito, no Lindoso e sobretudo em Aguiar
ter afilhados implicava, em regra, dispor a todo o momento de um largo contingente de mão-de-obra barata
ou em troca da simples alimentação. Paralelamente a formas simétricas de entreajuda e, como tal, indutoras
e tradutoras de amizade solidária, o sistema de troca, nas relações entre actores com posses desiguais,
constitui e, sobretudo até aos anos setenta, constituía o mecanismo de legitimação do económica ou
politicamente mais forte sob formas de reconhecimento e gratidão.
Criadora de dívidas, a dádiva, perpassada de uma certa afectividade e transfigurada sob a linguagem da
generosidade e da amizade, comporta um preço bastante elevado na medida em que representa não raro a
contrapartida simbólica duma forma subtil de controlo e integração sócio-políticas e com desigual
resultado4, aliás de acordo com o dito popular «uns, dando, enriquecem; outros, roubando, empobrecem».

13.2. Competências, favores e domínios

Mantendo-se, designadamente até à vaga emigratória dos anos sessenta, a orientação dos moradores
para o interior da aldeia e circunscrevendo-se os diversos actores-clientes aos seus respectivos lugares, tal
equivalia para patronos e mediadores reter as suas posições oligopolísticas de relevo, cujo imaginário de

2
Tal como já o salientaram Pitt-Rivers (1961:140), Campbell (1964:232 ss), Boissevain (!966:23), Mintz e Wolf (1967:186 ss),
Wolf (1980:28, 34), Silva e Van Toor (1982:224), Bader e Benschop (1988:150).
3
Cf. Kenny 1962:136, Campbell 1968:150, Wolf 1980:34 e, em Portugal, P. Monteiro 1985:79-80. Este aspecto é também focado
por Christian (1972:39 ss), El-Messiri (1977:250) e Abercrombie e Hill (1976:421), referindo estes dois últimos autores que as
trocas resultam materialmente assimétricas mas em favor do cliente.
4
Como referem Silverman 1965:177 ss e Scott 1985:307 ss. Sobre a dádiva, enquanto fenómeno mediador da permuta, cf. Mauss
(1993:266 ss) e, enquanto parte do «fundo cerimonial» prestado pelos mais abastados, cf. Wolf (1966:7) ou, enquanto instrumento
de coesão, reapropriação e controlo sociais, capaz de prevenir situações de ruptura, cf. Godelier 1984a:210 ss. Convém ter
presente que, enquanto autores de inspiração (neo)funcionalista tendem a considerar o compadrio e o apadrinhamento como
prolongamentos de simétricas relações parentais (Freeman 1970:142 ss), ou como contratos diádicos ora substituíveis por ora
expressivos duma amizade ritualizada, ainda que não desinteressada (Brandes 1975:133, 161, Pitt-Rivers 1961:139 ss, Foster
1967:214 ss), outros interpretam-nos como dissimuladas formas de exploração e/ou estratégias rituais de relativa desvalorização
da reprodução biológica e, correlativamente, de revalorização ideológica e dominação política, posição defendida respectivamente
por Silverman (1970:321 ss), Bourdieu (1980:191 ss), Bloch e Guggenheim (1981:384-385), Scott (1985:309 ss), Castillo
(1989:149 ss) e, em Portugal, Almeida (1986:363 ss).
318
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

autoengrandecimento oferece aliás facetas e episódios interessantes 5. Mais, os clientes, não cumprindo as
regras correntes, resistindo ou procurando inverter o statu quo, poderiam ser objecto de retaliação, denúncia
ou controlo fiscal e político e mesmo ficar sujeitos à instauração de processos judiciais designadamente
execuções por hipoteca6. Num sistema de posições hierárquicas rígidas em que a mobilidade social é restrita
e os mecanismos de acesso assentam em modos nem sempre electivos, o comando da aldeia reduzia-se,
como foi referido, a um círculo restrito de famílias, formando, por sua vez, cliques na base das
solidariedades parentais e relações deferenciais. Do mesmo modo, eventuais deslocações de prestígio e
poder locais são acompanhadas, precedendo-as ou seguindo-as, por mudanças de posição social dos
respectivos actores sociais, fenómeno que reforça a referida tese da convertibilidade de recursos (3:2.2).

Contrariamente ao sugerido por Cutileiro (1977:298), Riegelhaupt (1979:517, 520) e Bennema


(1992:187), durante o «Estado Novo» a competição política local tinha lugar no interior do sistema vigente,
particularmente na esfera pública, onde as funções dos mediadores locais se articulavam com os poderes da
hierarquia camarária e estatal7, junto à qual os primeiros intercediam, pressionavam ou manipulavam, em
especial mediante o habitual instrumento de oferta de vinho, cabrito ou lombo de porco. Salvo algumas
competências, cujo carácter político-administrativo superior não lhes permitia qualquer interferência, os
protagonistas da autoridade tradicional, embora cooptados ou nomeados pela Câmara e circunscritos ao
âmbito local, detinham, sobretudo na primeira e na segunda fases descritas em 12:1 e 12:2, consideráveis
poderes na medida em que os seus pareceres e acções resultavam decisivos para os moradores.
Com efeito, no relativo isolamento de ambas as aldeias, o padre e, incidentalmente, o professor8, os
membros da Junta e o regedor, derivando a sua autoridade de delegação hierárquica e/ou estatuto local,
funcionavam como sendo o último elo respectivamente das instituições eclesiástica, administrativo-escolar e
policial. Além de negociar a ordem interna, arbitrar disputas e, eventualmente, exercer por mãos próprias a
justiça local (por exemplo, sovas em casos de furtos), funcionavam como semi-legitimados miniguardiões
da ordem estabelecida, especializando-se até em diferentes campos: a Junta de freguesia, em particular, o
seu presidente, em assuntos administrativos e, por vezes, políticos e financeiros; o regedor, enquanto
responsável policial local e principal elemento de contacto com agentes da GNR; o padre, com maior
incidência na esfera religiosa e moral, embora não raro e indirectamente, na política.

Repartindo entre si ou monopolizando ciosa e efectivamente as junturas de comunicação com as


instituições camarárias e bancárias, nada ou pouco ocorria que não tivesse a iniciativa ou fosse do
assentimento da Junta. Tal ocorria, por exemplo, não só na propaganda política do «Estado Novo» e, em
particular, na distribuição das listas eleitorais, como na posse e na administração, no aforamento e,
eventualmente, na venda de terrenos comunais a particulares9; nas colectas para o arranjo da igreja, do

5
Por exemplo, na década de sessenta, quando a Câmara, de modo um tanto snobista, requereu ao presidente da Junta o número de
solípedes existentes na freguesia, este, associando o termo solípedes a «sol» com a sua propriedade de brilho, teria respondido
que, no Lindoso, havia três (brilhantes) personalidades: o pároco, o comandante da Guarda Fiscal e ele próprio, presidente.
6
Entre outros, é de referir um processo instaurado pelo padre Arcanjo Campela (Ae27) a um pequeno lavrador (Ae59), a
propósito de um terreno baldio, e um outro pelo mesmo autor a camponeses-caseiros que, contestando a prepotência vicinal do
padre, viriam a ser despejados sob a alegação de atraso no pagamento de rendas e dívidas. Entre outras formas de retaliação,
refiram-se as denúncias no caso de não «manifestar» o vinho para venda, de não solicitar licenças para possuir cão, isqueiro,
bicicleta, motorizada ou para reconstruir casa ou anexos.
7
Durante o «Estado Novo», tal como foi referido em 12:2, acentuam-se as dependências das Juntas de freguesia e sobretudo do
regedor, a quem competia informar e denunciar os desviantes. Por exemplo, o regedor do Lindoso informa a 27-7-1971, que
«António P. G. é um homem incorrigível, não tem paradeiro certo hájá muito tempo e não se sabe dele» (IOL P2n2 M5, 29
Li18:192).
8
Dado o controlo político-religioso sob o «Estado Novo», não obstante a origem rural de diversos professores(as) do ensino
básico e, eventualmente, as suas estratégias de revalorização cultural do rural, dificilmente estes(as) poderiam, sobretudo quando
forâneos, constituir qualquer alternativa, interferindo, em regra, o mínimo com os poderes locais. São contudo de referir algumas
fricções entre pároco e professor(a) que, em regimes não ditatoriais, se tornam mais visíveis (cf. sobre França E. Weber 1976:362
ss).
9
Se em Aguiar, durante o «Estado Novo», se remetiam para autoridades superiores pedidos de concessão ou venda de terrenos
baldios (AJA 22-6-1968), no Lindoso era a Junta quem administrava e superentendia na posse e na administração dos bens
comunais que, quer durante a I República, quer sobretudo a partir dos anos sessenta, foi aforando, segundo o seu critério, a
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

cemitério ou do campo de futebol; na instalação do telefone público, bem como na escolha do seu local; na
colaboração para construir a nova escola (em 1959 em Aguiar e 1969 no Lindoso); na (re)construção de
pontes ou na reparação de estradas e caminhos, primeiro autofinanciados e, posteriormente, subvencionados
pela Câmara por «cedência do imposto de trabalho» (AJL 15-1-1911, 6-9-1912, 6-4-1922; AB 17-4-1941).

Com repercussões na esfera privada, os patronos e mediadores tendiam ora a monopolizar para si, ora a
mediar para famílias aliadas e dependentes uma diversificada gama de transacções, sinecuras e arranjos no
labirinto administrativo e policial. Do Livro de Registo de Atestados da Junta do Lindoso passados entre
1946 e 1969 foi possível apurar os tipos de atestados e a condição dos requerentes ou beneficiários:

QUADRO 37: Tipos de atestados e profissões dos beneficiários: Lindoso


(1946-1969)

Legenda: Tipos de atestado: (a) residência; (b) casa/obras/benfeitorias; (c) subsistência/assistência social; (d)
emprego/emigração; (e) abono de família; (f) registo civil (nome/emancipação/casamento); (g) bom comportamento.
Profissão dosrequerentes/beneficiários: (1) proprietário/lavrador; (2) (pequeno) agricultor/camponês parcial; (3)
merceeiro/empresário; (4) artesão/operário/emigrante; (5) criado/ /jornaleiro; (6) empregado/funcionário/guarda; (7)
doméstica.
Fonte: Livro de Registo de Atestados, Lindoso, 1946-1969, AJFL.

Para além de uma elevada percentagem de atestados de tipo administrativo sobretudo os concernentes
ao casamento, infere-se um considerável índice de 48% de atestados para efeitos de abono de família,
subsistência ou assistência social e médica. Para obter o parecer positivo nestes e noutros atestados como os
relativos a obras ou confirmativos de bom comportamento tornava-se aconselhável ou mesmo imperativa a
manutenção de boas relações com a Junta.
Além destes, há a referir outros favores, geralmente não registados no referido Livro de Registo de
Atestados, tais como diligenciar no sentido de anular multas, dispensar do serviço militar, conseguir
empregos, representar legalmente emigrantes, obter declarações oficiais ou a simples aposição de assinatura
e carimbo da Junta para «declarações de pobreza», preencher documentos e, em especial, os boletins para
subsídios de invalidez e velhice pela Casa do Povo, prestar informações relativas a processos de emigração
legal, pseudoturística e mesmo clandestina, bem como à concessão de créditos (cf. AJL 22-3-1917, AJA e
AJL até 1985).

Quanto aos métodos políticos utilizados, no âmbito do sistema pluripartidário do pós 25 de Abril de
1974, para além das técnicas de persuasão e dos respectivos alinhamentos aparentemente voluntários,
também no Lindoso, em Aguiar e arredores, velhos patronos e caciques, mesmo quando filiados em partidos
assentes na nova ordem democrática (PPD/PSD, CDS), assumiram atitudes autoritárias e, por vezes,
autocráticas. Dados os seus hábitos de dominação e ressentidos com o evoluir dos acontecimentos no pós 25
de Abril de 1974, chegaram, sobretudo na fase restauracionista, a exercer actos de retaliação e até de
violência, vetando o direito à palavra, lançando ameaças e difamações sobre os seus reais ou imaginários
adversários alistados noutros partidos (PS, PCP), além de fazer correr boatos de que, por exemplo,
«inválidos ou idosos que não votassem no PSD ou no CDS perderiam as suas pensões!».

diversos moradores (13:4).


320
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

A emergência do processo de secularização, a instauração do sistema democrático e a abertura do leque


partidário, permitindo uma certa desinibição às poucas famílias contestatárias do teocrático regime
salazarista, vieram todavia obrigar os patronos tradicionalmente dominantes a ter em conta a concorrência
de novos actores políticos. Deste modo, as relações de patrocinato e, em particular, as lutas intercaciques
vêm-se deslocando e diversificando não só à volta da contradição do sagrado versus o profano e da
respectiva (des)continuidade do poder eclesiástico versus o civil, mas também pela via político-partidária e
pelo eixo central dos canais munícipo-estatais. Por outro lado, o sistema democrático, assente no princípio
da representação pluripartidária, se tem o mérito de trazer à tona da água manobras que, anteriormente sob o
sistema monolítico do «Estado Novo», eram abafadas, implicou contudo uma progressiva corrosão das
formas de democracia directa, ainda que restritivas e eivadas de tendências patriarcais e patrimoniais (5:1).
Para as categorias mais pobres e desprotegidas o sistema pluripartidário não altera a sua anterior
subrepresentação local na medida em que os grupos domésticos remediados e relativamente autosuficientes
mantêm, em regra, uma representação maioritária e os interesses destes nem sempre coincidem com os
daqueles. Além disso, um tal sistema, se, por um lado, permite veicular desforras perante injustiças do
passado, por outro, segmenta e polariza artificialmente grupos domésticos similares ou une em base
clientelar indivíduos, cujos interesses se agregam ou sobrepõem, mas nem sempre reflectem as contradições
sociais intra-aldeãs nem exprimem, para o exterior, o sentido de pertença comunitária e respectivos
interesses comuns: «O sistema dos partidos a nível do governo está bem, mas, a nível das freguesias, não.
Os partidos pescam aqueles elementos que melhor se adaptam ao seu meio e aos seus objectivos mas
dividem-nos a nós e não olham pelos nossos interesses» (L109).

Se estes desabafos traduzem um certo «saudosismo» por parte de tradicionais notáveis locais, denotam
também uma relativa perda de terreno por parte destes, visível nomeadamente numa crescente quebra
relativa de hegemonia do CDS e do PPD/PSD nas sucessivas eleições autárquicas e para a Assembleia da
República (cf. anexos 23 e 24).
É sobremaneira nos actos eleitorais que, segundo observações colhidas no terreno, se reavivam entre
famílias ressentimentos e polémicas passadas e se manifestam velhas ou novas lealdades políticas. As
vésperas do escrutínio eleitoral, sobretudo autárquico, conhecem uma efervescente movimentação dos
candidatos e apoiantes das diversas listas partidárias, ora delineando-se e forjando-se alianças, ora
entrechocando-se famílias na luta pelo controlo do poder local, não sendo de excluir a visita porta a porta.
Além disso, em relação a Lindoso, os partidos concorrentes, para conseguirem eleger os seus candidatos
necessitam, como foi referido, ter em conta o critério geopolítico, segundo o qual cada um dos membros da
Junta, independentemente do seu cargo formal, funciona para o interior de cada uma das aldeias como uma
espécie de «presidente».

A formação de blocos de famílias em apoio do cacique A ou B processa-se, paulatinamente, a partir de


pequenas pedras colocadas em pontos estratégicos, além dos recursos que cada actor político dispõe à
partida ou deita mão para tomar eficaz a sua acção. Por exemplo, em Aguiar, enquanto o mediador Donato
investe na concessão de favores e se apoia em pequenos poderes incrustados na Câmara, nos tribunais e
sobretudo na ala dominante do PSD, o seu concorrente Serafim, constituindo-se, enquanto carteiro na aldeia,
figura central de intercomunicação e contando igualmente com o apoio de alguns notáveis municipais (por
exemplo, um inspector do ensino básico), tenta operar sob a sombra tutelar da autoridade eclesiástica.
Na sua candidatura à liderança, patronos e mediadores locais, em regra, ora apelam a determinados
valores morais ou religiosos, ora prometem a implementação de determinados melhoramentos e projectos de
desenvolvimento das respectivas populações locais, fazendo fé da sua «entrega» e «dedicação» à causa
colectiva: «Eu não trabalho por interesse pessoal. Tenho tido até vários convites políticos dentro do meu
partido e tenho recusado. O que me interessa é fazer de Aguiar um pólo de desenvolvimento, pois até há
pouco tempo estava muito isolada. Mas, para isso, há que superar a influência do padre que impede o
avanço» (A20).

As estratégias dos notáveis e mediadores locais entrelaçam-se, por sua vez, nos jogos de influência dos
políticos municipais, cujas ramificações são não raro oriundas das famílias mais preponderantes, quer da vila
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

ou cidade, quer das freguesias circunvizinhas. Estas, em regra, apesar dos solavancos políticos do 25 de
Abril de 1974, não sucumbiram e algumas delas têm dominado inclusive até hoje a vida política municipal
sob formas bastante personalizadas.
Cada partido político opera, também a nível municipal, através de algumas famílias ou figuras-chave.
São igualmente, porém, os próprios partidos políticos que são utilizados nas estratégias dalgumas famílias
influentes, motivadas por subjacentes interesses económicos e de prestígio. Estando os membros das
famílias politicamente influentes distribuídos por diversos partidos, o seu domínio no burgo e nas freguesias
circundantes permanece relativamente intacto. Assim, em Ponte da Barca, por exemplo, a firma comercial
Gomes e Marques, além de difundir os riscos, tem conseguido, pelo menos até 1985, extrair dividendos
comerciais, candidatando-se o primeiro pelo CDS e o segundo pelo PSD. Assim, cada um destes novos
ricos-comerciantes distribui, conforme a situação em cada aldeia, favores entre os seus clientes-merceeiros
na mira de estes constituirem, por sua vez, pólos de influência entre as populações de cada uma das aldeias
do município.
Mais significativo tem sido o domínio da família Leandro, a qual, independentemente da emulação
interna entre os vários filhos-irmãos, tem um pé em cada um dos três principais partidos: Manuel,
proprietário de uma garagem, no CDS, Jorge, comerciante, no PS e Marcelo, dono de farmácia, principal
promotor do genro Vítor, casado com a sua filha, médica, a presidente da Câmara pelo PSD.

Também em Barcelos, o poder local municipal, gravitando à volta de determinadas personalidades e


grupos de famílias rivais, tem sido basicamente familista. Se, durante a primeira metade do século XX, o
palco do poder municipal foi ocupado, em alternância, por algumas das «ilustres» casas de proprietários,
comerciantes e letrados, em especial médicos e advogados, a rivalidade entre algumas destas famílias
manter-se-á. A ala mais forte no PSD, tradicionalmente controlada por alguns protagonistas rurais e urbanos
sobretudo advogados – entre os quais Marco Branco, cuja cunhada teria casado com José Lemos,
responsável máximo, a nível municipal, pelo PS – viria a ser desde 1989 desafiada por uma nova ala,
liderada pelo médico Francisco Lemos, irmão do referido José Lemos e actual presidente da Câmara. Deste
modo, releva em Barcelos o facto de, durante os últimos anos do pós 25 de Abril de 1974, as lideranças
municipais do PSD e do PS se encontrarem justa e respectivamente nas mãos de cada um dos dois irmãos
pertencentes à família Lemos. Tal situação reforça as dissensões facciosas no seio do PSD ou do PS, dando,
por vezes, lugar a subterrâneas ligações tácticas de uma das facções, respectivamente com dirigentes do PS
ou do PSD, para destronar a outra.
Embora cada vez menos, é, portanto, ainda a lógica familista que permite compreender não só a
ramificação de membros da mesma família em diversos partidos como a criação de facções no seio de um
partido ou inclusivamente a mudança de opção partidária por parte de determinadas personalidades
influentes sobretudo quando, uma vez criada clientela à sombra de determinado partido ou ao longo de
determinado mandato, o partido-tampão se oponha frontalmente ao notável ou este esteja perdendo terreno
eleitoral.

Lindoso

Até ao eclodir da I República, o poder local civil em Lindoso fundia-se grosso modo com o eclesiástico
e, em particular, como foi referido, na pessoa do pároco. Com este associavam-se, porém, os interesses dos
lavradores locais que, desde meados do século XIX, têm mantido uma proeminência nos diversos cargos,
cuja permanência ou afastamento dependia do evoluir da sua posição social. Por exemplo, o facto de um
antepassado da rica lavradora Eugénia Ferraz ter sido demitido do posto de chefe da Guarda Fiscal não só se
repercutiria na perda do cargo de presidente da Junta corno representaria o início do desbaratar de bens que
só posteriores aforros, por parte de um genro, fariam recuperar.
A referida demissão do pároco Domingues (11:3), a desclassificação de seus directos apoiantes e a
emergência dalgumas novas figuras, designadamente lavradores (Pita, Guedes, Soares), na arena do poder
local constituem dados sintomáticos de que a implantação da I República, repercutindo-se a seu modo em
Lindoso, catalisou brechas de ruptura e intensificou lutas internas de facções na aldeia. A nova Comissão
322
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

Paroquial Republicana, além de fazer constar em diversas actas votos de «louvor e dedicação» ao governo
da República (AJL 15-11-1910), põe em dúvida a contabilidade das Juntas transactas entre 1890 e 1910 e
critica sete conterrâneos partidários do «conspirador monárquico» padre Domingues por exigirem as chaves
da igreja e terem para esse fim um encontro com o referido padre (AJL 17-9-1911, 5-11-1911, 16-2-1913),
«sem haverem consultado o povo desta freguesia se o aceitava a paroquiar esta freguesia ou não» (AJL 22-
10-1911).
Nos anos vinte, as Juntas conhecerão todavia uma maior oposição não só por reivindicarem a gestão da
residência paroquial como, sobretudo, por decidirem vender por 350.000$00 a madeira da mata do Cabril, o
que provocará ameaças de embargo, anulação da eleição da Junta e, inclusivamente, do contrato de venda na
sequência de um pleito judicial. Mais, o presidente da Junta de então acabaria por ser ameaçado de morte,
sendo-lhe recordado o facto de um avô seu, também presidente da Junta, por um motivo idêntico, ter sido
assassinado com um tiro em 1870 (AJL 15-6-1924, 5-12-1922, 2-1-1923, 27-5-1923, 3-6-1923, 15-7-1923,
20-12-1922).

Na sucessiva transferência de cargos da Junta e da Regedoria entre 1941 e 1974, não obstante as
emulações interaldeãs e a mudança de alguns nomes no seio dalgumas famílias de lavradores mais influentes
e/ou rivais, verifica-se urna linha de relativa continuidade entre as mesmas que, ora partilham, ora alternam
o poder: Milheiros e Guedes em Parada, Raposos e Oliveiras em Cidadelhe, Soares, Henriques, Rosas e
Cunhas em Lindoso, alguns dos quais mantiveram-se sucessivamente em postos de chefatura cerca de
quarenta anos! Por exemplo, a família Milheiro – que ordenara os dois referidos padres, Adélio e José –
estendia o seu domínio eclesiástico ao campo civil, permanecendo e, amiúde, presidindo à Junta entre 1900
e 1908, 1917 e 1919 e 1925 e 1963. O seu poder viria, porém, a ser periodicamente contestado por famílias
rivais suas: Guedes em Parada, Ferraz e Soares em Lindoso e, em Cidadelhe, o merceeiro e prestamista
Raposo. Apesar dos conjunturais contra-ataques, os Milheiros manter-se-iam económica e politicamente
mais coesos e unidos que os seus adversários, a saber, os Guedes ou os Soares. Enquanto estes, sendo
famílias numerosas e carecendo de meios suficientes em terra e gado para manter todos os herdeiros bons
lavradores, eram forçados a migrar e/ou dividiam-se em facções intrafamiliares, os Milheiros, além de
relativamente auto-suficientes, detinham importantes contactos eclesiásticos e civis e podiam usufruir, além
dos rendimentos agrícolas, de ganhos extra-agrícolas provenientes da sua comparticipação numa dita
sociedade de ferro em Lisboa. Donde, a sua maior capacidade de ser garantes de empréstimos e de mobilizar
clientes reverteria em apoios que, por sua vez, reforçariam a sua hegemonia política local.
Uma das razões adicionais e de recorrente pretexto na disputa pelo poder local prendia-se com a sede da
freguesia. Enquanto para os moradores de Cidadelhe e sobretudo Parada deveria ser esta a sede paroquial
por ser geograficamente o seu centro, os de Lindoso achavam ser a sua a aldeia-mor por encontrar-se ali
situada a igreja-matriz da paróquia. A estes despiques de cariz territorial, subjazem os respectivos duelos
históricos entre determinadas famílias, assim como as dissidências e transgressões, por parte das famílias
opositoras e seus aliados, perante as ordens da Junta, do Regedor ou de seus cabos, tal como se pode
depreender dalgumas actas da Junta (AJL 2-6-19 16-6-1918, 4-1-1919). Além disso, tais emulações na vida
política local tornavam-se visíveis, quer nos arranjos casamenteiros, quer nos diversos (des)alinhamentos
inter e intrafamiliares: Milheiros versus Ferraz e sobretudo Soares, Milheiros versus Oliveiras e, em
especial, Raposo.

Tal como podemos verificar por alguns exemplos oralmente narrados e por referências nas actas da
Junta, as rivalidades entre caciques em base territorial manifestavam-se iterativamente a respeito de diversos
acontecimentos: acordo ou não com a Electra del Lima sobre uma queda de água, atribuição de matos
baldios entre Lindoso e Parada, delimitação de marcos com paróquias vizinhas, local de implantação do
cemitério – cuja dissensão daria lugar à construção de um cemitério para cada uma das três aldeias – ou,
ainda que raramente, a própria regulação comunitária dos trabalhos de sementeira e colheita, a qual era
decidida, ora a nível de cada povoado, ora a nível da paróquia, embora com certa descoordenação e, por
vezes, com registo de desobediências e abusos10. Seria, porém, nos anos cinquenta e sessenta que ter-se-ia

10
Cf. respectivamente AJL 3-7-1910; AJL 15-6-1913, 5-7-1914, 16-5-1915, 6-12-1925; AJL 2-6-1912, 2-6-1917, 16-3-1919; AJL
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

intensificado a emulação político-religiosa interfamiliar, concretamente entre Ferraz e Milheiro, cujo ponto
alto centrar-se-ia na disputa da restauração da igreja respectivamente em Lindoso ou em Parada. Apelando
cada um dos contendores às razões acima expostas, os Milheiros acabariam contudo por perder a batalha
interna face à família Ferraz que, com o persuasivo argumento duma dádiva de 220.000$00, teria
conseguido demover o pároco e o próprio bispo dos planos de restaurar a igreja em Parada, tal como a Junta
de então presidida por Milheiro o reconhecia: «Se não fosse a quantia que eles deram à Igreja, talvez ela
não ficasse naquele lugar»(AJL 15-11-1959).
Milheiro conhecia também na sua própria aldeia de Parada opositores designadamente a família Guedes
no final dos anos cinquenta. Enquanto esta acusava Milheiro de ter «recebido», enquanto presidente da
Junta, 2.000$00 destinados à nova escola de Parada, este responsabilizava Guedes pela má construção da
escola e pela venda, sem licença, do mobiliário da escola velha. Uma tal discussão, que «ia terminando
numa cena desagradável», não poderá desligar-se certamente do contexto das eleições presidenciais entre o
pró-salazarista Tomáz e o opositor Delgado e que, na refrega destas, levaria o presidente da Junta Milheiro a
pedir, em ofício de 5-7-1959, a intervenção do presidente da Câmara pelo facto de Guedes, seu opositor, lhe
ter dirigido «insultos e palavras de difamação» (AJL 19-7-1959).

Para além dos despiques internos entre os velhos lavradores estabelecidos, uma convergente emulação
destes reacender-se-ia em bloco, sempre que um intruso ou um novo concorrente vindo de baixo ganhava
posição proeminente. Tal o caso de Rafael em Lindoso e de Raposo em Cidadelhe que, sendo de origem
pobre, conseguiriam cada um por si afirmar-se politicamente nas suas respectivas aldeias: o primeiro como
presidente da Junta (1964-72) e o segundo como principal mediador entre a povoação local e os Serviços
Florestais do Estado (12:2). É neste contexto de reclassificação local que o despeito dos lavradores –
comandados em Parada por Milheiro face a Raposo e, em Lindoso, por uma das facções Soares face a Rafael
– se traduz por uma oposição aberta à presidência deste. Em Maio de 1967 «sete senhores», todos eles
lavradores, são denunciados em acta pelo presidente Rafael por serem «contrários às autoridades e seus
melhoramentos públicos. Estes senhores querem passar por cima do senhor Presidente da Câmara, do
senhor Presidente da Junta e do senhor Regedor de todo o povo» (AJL 14-5-1967).
A contestação dos lavradores, embora não tenha logrado demitir imediatamente Rafael, constituiria um
fermento em gestação que viria a surtir efeito quando a esta dinâmica interna se associou, na sequência da
«primavera» política marcelista, o provimento de um novo presidente da Câmara em Ponte da Barca,
interessado em renovar as Juntas e, assim, criar novos braços-apoio nas freguesias. A mensagem de «dar
novo impulso à freguesia» viria a acicatar algumas das famílias opositoras de Rafael no sentido de substitui-
lo. Com efeito, em 1972, após uma renhida votação, Rafael seria derrotado, por uma pequena margem de
votos, pelos velhos opositores republicanos Guedes e Delfim, líder da facção Soares I, cujo prestígio se
vinha reforçando pelo facto adicional de alguns dos seus doze filhos se acharem em tirocínio sacerdotal ou
possuirem formação escolar civil média e superior.
Começando por pôr em causa as contas da Junta cessante, os membros da nova Junta declararam em
acta não estar «conformes com as contas apresentadas pelo ex-presidente senhor Rafael» (AJL 15-2-1972).
Por outro lado, esta transição de poder veio provocar alguns ajustes de contas entre famílias desavindas e
mesmo a repercutir-se no resultado de certos litígios interfamiliares pendentes, nomeadamente o ocorrido
entre Cunha e André relativo à determinação de um pedaço de terreno considerado logradouro pelo primeiro
e particular pelo segundo. Na sua primeira reunião, a nova Junta, invalidando a tese da Junta anterior em
favor de Cunha – a qual, segundo alguns, teria contribuído para que esta ganhasse a causa no tribunal de
primeira instância –, repõe a questão em termos diferentes ao negar, no momento do recurso ao tribunal de
Relação, ter havido qualquer acta em que a Junta «tivesse deliberado mover qual quer acção» contra a
reivindicação de André (AJL 10-1-1972).
Esta nova relação de forças, emergente no início dos anos setenta, far-se-á vincar ao ponto de, apesar
dos abalos conjunturais do pós 25 de Abril 1974, quando os oficiais do MFA, numa operação de exoneração
das Juntas do regime deposto, perguntaram à população se queria manter ou não o então presidente Delfim,

2-6-1918; AJL 1-7-1923.

324
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

os presentes, de modo quase unânime, colocaram-se ao lado deste e não o demoveram do lugar.
Exceptuando esta particularidade, o novo contexto pluripartidário, dando lugar ao aparecimento de
novos protagonistas concorrentes à chefatura da freguesia, em particular ex-emigrantes, proporcionou
movimentações que viriam pressionar Delfim, já avançado em idade, para deixar vago o lugar em favor da
família Cunha na pessoa do ex-emigrante Romeu (1976-79), o qual seria posteriormente substituído por um
outro ex-emigrante, Armando (1979-82), líder da facção Soares II.
Se a interferência dos partidos políticos na freguesia contribuiu para alterar o xadrez político local, o
cerne das contradições em assuntos de natureza religiosa ou (para)política continuava sendo induzido por
protagonistas dos velhos conflitos interfamiliares. Estes, adaptando-se e procurando fazer valer pela via
eclesiástica ou partidária as suas posições familistas, bipolarizar-se-ão também face à figura do padre,
sobressaindo em defesa pública deste, pelo menos, seis famílias e enfrentando-o ou até exigindo a sua
demissão umas sete (11:3). Com este pano de fundo a influente e numerosa família Soares, já internamente
dividida por motivos de herança e outros (Delfim, Joaquina e Maria versus Rosa, Graça e Olinda), verá as
suas fissuras intrafamiliares reforçadas pelo facto de o padre Nuno ter alegadamente alinhado em favor de
Delfim e em detrimento de Rafael, casado com Graça Soares. A isto acresce o facto circunstancial de o
padre ter sugerido a Albano – com quem Rosa Soares e seu filho Armando mantinham um litígio por causa
da demarcação das extremas de um quintal – o nome de um reputado advogado, cujo papel teria sido, no
entender das partes, decisivo para uma sentença favorável a Albano. Este subgrupo Soares II, que
inicialmente privava com o padre e mantinha com ele relações de cordialidade, far-lhe-ia a partir de então
uma declaração de guerra, designadamente acerca da gestão dos dinheiros da capela de Santa Madalena
(11:3). E na medida em que o padre se foi distanciando ou sendo rejeitado pela facção Soares II, começaria
a ser «acarinhado» pelos Milheiros que, por ocasião de um conflito doméstico entre o padre e a mãe,
conseguirão fazer mudar a residência deste de Lindoso para Parada.
Do mesmo modo a nível partidário, se os partidos tentam infiltrar-se por intermédio de determinadas
casas, também estas, tal como se observou, pretendem instrumentalizar os partidos para os seus próprios
objectivos familiares. Assim, o CDS, sendo apoiado em Cidadelhe por Raposo, em Parada por Aires e parte
dos Milheiros e, em Lindoso, por Ferraz, Rosas, Sousas e a merceeira Luísa, constituirá um veículo de
influência destas e outras famílias. Por exemplo, Raposo, trespassando a gestão do comércio a seu sobrinho
e forjando o casamento deste com uma filha dos seus rivais Milheiros, coloca o sobrinho nas listas do CDS,
opção esta que custar-lhe-ia o retraimento ou a oposição doutros sobrinhos que, juntamente com merceeiros
concorrentes, alistados noutros partidos (PSD, PS), irão desferir os seus contra-ataques a Raposo e seus
apoiantes.
No pólo oposto do espectro partidário, a APU/CDU, exceptuando a situação conjuntural do pós 25 de
Abril, em que pôde contar com pequenos empreiteiros e filhos de lavradores como Eugénio e Gonçalo,
encontra-se fracamente representada, tendo como principal activista um pequeno empreiteiro de Parada e
como apoiantes alguns operários e caseiros com exíguos recursos e desclassificados pelos opositores como
«bêbados» (L33), «tolos» ou «vagabundos» (L115, 111).
Enquanto partido dominante, o PSD conta, entre os seus promotores e activistas locais, com famílias de
maior peso económico-social e prestígio local: além de parte dos Milheiros e Guedes em Parada, em
Lindoso pontificam membros do subgrupo Soares I, alguns Cunhas e a merceeira Júlia, filha do então
presidente Paulo.
Quanto ao PS, contando com o empenho dalgumas famílias de lavradores, merceeiros e pequenos
empreiteiros, é também impulsionado por (e)migrantes semi-residentes, todos com um posicionamento mais
crítico e secularizante em relação aos velhos poderes estabelecidos sobretudo o eclesiástico: em Cidadelhe
por Silva, aliás concorrente de Raposo, em Parada por Albertino e, em Lindoso, pelo subgrupo Soares II,
parte dos Cunhas e o merceeiro-lavrador Álvaro.
Nas lutas interfamiliares do pós 25 de Abril, tanto à volta do sagrado-profano como da competição
partidária, sobressai como destemido apoiante da anticlerical facção Soares II o ex-emigrante Paulo, cuja
atitude valer-lhe-ia ser promovido a candidato e, posteriormente, ser eleito presidente da Junta pelo PSD
entre 1980 e 1985. A condescendência e a demissão, perante os objectivos estratégicos da EDP (12:3), por
parte de membros com menos recursos e com lugar na Assembleia, na Junta e, em especial, do próprio
presidente Paulo, se, por um lado, representou a não defesa dos interesses colectivos e, em particular, dos
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

moradores possidentes e expropriados pelo Estado, por outro, reflectiu uma certa intuição primária de
membros de um grupo social (quase) desprovido de terra e, eventualmente, mais interessado em postos de
trabalho na barragem.

Não obstante a distância ideológica entre o PS e o CDS, com as eleições autárquicas de 1985 veio a ser
posta em causa a tradicional hegemonia do PSD na Assembleia de Freguesia por uma coligação local entre o
PS e o CDS. Os representantes destes partidos, além de verificarem irregularidades processuais (alterações
de data na instalação da Assembleia de Freguesia, recusa de transferência do livro de actas, carimbos e
outros instrumentos do exercício da sua competência), detectaram incorrecções e falta de transparência na
apresentação de contas da gerência de 1985 (duplicação e sobrevalorização de recibos de despesas e
subvalorização de receitas, melhoramentos não realizados, relatório de contas assinado por membros da
Assembleia cessante), o que levá-los-ia a apresentar uma exposição-queixa ao Governo Civil a 12-6-1986
(DLLl). Se bem que a queixa acabasse por ser abafada por superiores patronos do PSD, a nível interno, o ex-
forâneo e outrora desprovido Paulo, ao perder a credibilidade por capitular perante a EDP e ao procurar
autonomizar-se de seus protectores iniciais, fez cair sobre si o despeito dalgumas famílias abastadas, em
particular os Soares II. Estes, após um agitadíssimo ajuntamento local, conseguiram afastar e substituir
Paulo pelo parente e ex-emigrante Sabino (1986-89), sem deixar de «mimosear» aquele com frases como
esta: «Fora da Junta, gatuno, que hoje estás bem mas esqueces-te que vieste para cá com as calças
remendadas» (DLL2).

Perante a ousadia de questionar as contas e pôr em dúvida a verticalidade da Junta, os membros desta,
respaldados por testemunhas locais e camarárias, entre as quais o presidente da Câmara, instauraram um
processo-queixa por calúnia (TPB Pl00/86), o qual tinha em vista intimidar os insubmissos membros da
Assembleia de Freguesia e, assim, reparar o descrédito da Junta cessante e do próprio PSD. Entretanto, a
nível local, em defesa dos arguidos, membros da Assembleia de Freguesia pelo PS e pelo CDS, circulava um
documento acusando de «corrupto» o ex-presidente Paulo e que viria a ser assinado por quarenta e dois
moradores, entre os quais membros dalgumas famílias mais providas «Estamos nesta luta com o senhor
presidente da Assembleia pela dignidade, pela lealdade do nosso povo contra a ladroagem do nosso
presidente da Junta» (DLL2).
Uma posterior viragem de posicionamento político do presidente da Câmara, abandonando o PSD e
candidatando-se pelo PS às eleições autárquicas de 1989, viria não só alterar as peças do xadrez político
municipal, como arrastar antigos candidatos paroquiais do PSD pelo PS. Por exemplo, em Lindoso a
candidatura do ex-presidente Paulo pelo PS colocaria os tradicionais activistas do PS em posição incómoda
e obrigaria os arguidos do mencionado processo-queixa, uma vez ilibados pelo juiz, a desistir duma contra-
acção contra Paulo e a Junta cessante.

Aguiar

Do mesmo modo que para Lindoso, foi possível para Aguiar, mediante a observação das assinaturas das
actas da Junta de Aguiar e outros documentos, concluir que, designadamente entre 1925 e 1974, as famílias
que tinham assento nos respectivos órgãos de poder local eram, além do pároco, predominantemente
lavradores-proprietários, com particular relevo para prestamistas e ex-emigrantes recém-chegados e bem-
sucedidos.
Até 21-12-1947, a Junta era composta por três lavradores: Basílio (Ae46) como tesoureiro, Mota
(Ae148) como secretário e Severino como presidente, o qual, além de lavrador, era, como foi referido,
merceeiro e mestre-de-obras. A função de presidente proporcionava a Severino uma base considerável de
apoio especialmente entre famílias de artesãos e jornaleiros dele dependentes que o temiam e apoiavam
porque, em vista da obtenção de trabalho e da resolução de problemas burocráticos, diziam: «precisa-se do
presidente». No entanto, Severino, além de sofrer um revés numa disputa parental em matéria de partilhas,
conheceria uma crescente contestação, por parte de lavradores expropriados, por motivo da abertura de uma
estrada (12:2), e um desfecho desfavorável num despique competitivo com o padre Vaz. A posição
326
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

periclitante e o descrédito na esfera política local provocariam, por sua vez, um relativo abandono de seus
aliados dentro e fora da Junta incluindo o presidente da Câmara, além de um cerco dos seus credores e
comerciantes grossistas citadinos, forçando-o a emigrar para a Argentina para aí vir a falecer.
Coadjuvado por algumas famílias de lavradores, designadamente o secretário e o tesoureiro da Junta e o
merceeiro Maia (Ae118), o padre Vaz, entre 1950 e 1955, redigirá as actas da Junta e assumirá o controlo do
poder local. Não obstante persistirem alinhamentos políticos em favor de Severino entre alguns dos seus
adeptos (Luís, Correa), os cargos de presidente, tesoureiro e secretário seriam retransmitidos em 1955
respectivamente ao médio lavrador Fontes, ao lavrador e ex-emigrante Lima e ao lavrador e prestamista
Subtil, os quais governariam a freguesia até 1974 sem grande oposição.
A longevidade no cargo, a emissão dalgumas dúbias «declarações de pobreza» e outras nomeadmnente
as relativas à obtenção de pensões pela Casa do Povo e, sobretudo, o descrédito crescente da velha Junta
conotada com o regime deposto a 25 de Abril de 1974 obrigariam à sua demissão. Será todavia o filho de
Fontes, Donato, funcionário judicial, quem entretanto, aplicando estratagemas ao seu alcance para recuperar
a imagem da família, retomará, sob novos métodos e estilo, o comando da freguesia (12:3). Apesar dos
ataques cerrados de alguns proprietários-lavradores tais como o Dr. Vitório, velho republicano da vizinha
freguesia de Cossourado, as famílias Fontes, Lima e Subtil saem formalmente da Junta, mas retêm aí
pessoas da sua directa confiança11, as quais seriam mormente orientadas pelo emergente mediador Donato.

As relações entre o poder civil e o eclesiástico continuavam, mesmo no pós 25 de Abril de 1974, a
caracterizar-se por uma relativa coexistência colaborante, embora a presença da minoritária oposição tenha
inibido e moderado as manifestações políticas públicas do pároco. Neste quadro, mais uma vez, seria o
mediador Donato quem, desde 1976, delegado pelos seus pares, tomaria a iniciativa de, primeiro em
colaboração com o padre Vaz e, seguidamente, sob a tutela do seu primo e proprietário padre Campela,
congregar vontades, esforços e dinheiros em vista da construção de um Centro Social em superfície do
passal, tal como ele próprio alude em auto-retrato: «Um menino buliçoso,já homem,foi encarregado pelos
restantes amigos de falar ao padre Vaz sobre o terreno do passal necessário para a construção do Centro
Social» (JA 1:10).

Quanto ao espectro político-partidário, o CDS e sobretudo o maioritário PSD são liderados por
lavradores e, em particular, por Vitalino, Serafim, Ramos, Amaral e, em especial, Donato. Embora Donato
continue a ser até hoje o principal mediador local face ao exterior (12:3), com a emergência de novos
actores económicos e culturais vai sendo cada vez menos exclusivo e hegemónico o seu papel como ponto
de acesso a entidades e personalidades forâneas. Por isso, o domínio de Donato não é total, sendo obrigado a
ter em conta estratégias e tácticas, tanto de concorrentes no seu próprio partido, designadamente Serafim e
Ramos, como, sobretudo, outros convictos opositores, em especial quando militantes e apoiantes doutros
partidos e oriundos de famílias mais modestas. Estes, juntamente com alguns ex-emigrantes e até médios
lavradores recém-promovidos, alinham ou apoiam indefectivelmente partidos, coligações e bandeiras (ditas)
de esquerda: uns com expressão mínima pela APU/CDU, outros mais significativamente pelo PS.

Os opositores de Donato, incluindo alguns (ex)correligionários partidários deste, exploram as possíveis


oportunidades e controvérsias, a fim de conservar ou retomar a liderança da aldeia e beneficiar os seus
aliados e protegidos. Por exemplo, estando instalado o telefone público na residência paroquial mas
encontrando-se esta desabitada por o pároco se encontrar inactivo e idoso, Serafim, como empregado dos
CTT e presidente da Junta, diligenciaria em 1977 para que o telefone fosse transferido para a casa comercial
de seu aliado dependente Jorge. Esta diligência resultaria todavia gorada devido ao facto de o pároco,
Donato e outros notáveis aliciarem parentes e clientes a assinar um abaixo-assinado com a menção
impressiva de algumas «distintas» profissões para que o telefone ou se mantivesse na residência paroquial

11
Entre 1974 e 1976, Fonseca, Coelho e Serafim, filho de Subtil (AJA 16-2-1975); entre 1976 e 1979, Serafim, Pinheiro e Óscar,
este último por certas qualidades pessoais e por casamento com família lavradora Gonçalo-Fortuna; e, entre 1979 e 1993, de modo
mais pennanente, os ex-emigrantes Gil, Vitalino, sobrinho do padre Vaz, e Augusto.
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

ou fosse transferido para a casa de Vitalino, sobrinho do pároco «...até porque os utentes desejam que as
suas conversas telefónicas não sejam ouvidas (prática corrente por parte do padre e da criada na residência
paroquial! MCS) pelos frequentadores dessas casas que são autênticas tabernas frequentadas por pessoas
de todas as categorias da sociedade e, em especial, do nível mais baixo...» (P1021, CR/CTT Braga).
Esta contra-acção, surtindo um efeito suspensivo, apenas conseguiria retardar a transferência do
telefone, uma vez que, por réplica dos opositores do abaixo-assinado e por deliberação posterior da
Assembleia da freguesia, o telefone público viria a ser instalado na mercearia de Jorge em 1982 (AJA 19-6-
1982).
É ainda, no contexto das rivalidades entre mediadores, concretamente entre Donato e Serafim, que o
arrendamento das terras do passal e o correspondente quantitativo constituiria a medula de uma questão que
tem servido aos caseiros para assegurar os seus direitos e aos respectivos líderes locais, posicionando-se
contra ou a favor do padre, para extrair dividendos de prestígio e poder local. Assim, por exemplo, no
interregno da sucessão do padre Campela, o então presidente da Junta Serafim, em 1979, reflectindo a
posição de diversos lavradores que, ciosos de manter a sua velha hegemonia, consideravam que «os caseiros
do passal, com as rendas baixas, estão a enriquecer à custa da freguesia» (A123), manifesta ao novo
pároco a necessidade do aumento das respectivas rendas por si colectadas.
Não obstante este gesto de Serafim, o padre Mateus, sucessor do padre Campela, num primeiro
momento, teria consagrado não Serafim mas Donato na qualidade de primeiro colaborador, nomeando-o
para o cargo de principal dirigente da Comissão Paroquial. Esta aliança romper-se-ia contudo quando, como
foi referido, o padre Mateus não secundou os objectivos de Donato no sentido de aquele requerer licença
episcopal para que, no intuito de se projectarem 22 lotes sociais «em favor de famílias pobres» (A20), a
Igreja alienasse a baixo preço uma área de 20.388 metros quadrados. Esta proposta, que não só o padre
Mateus como os demais opositores de Donato interpretaram como projecto para negócios em desfavor da
Igreja, viria a constituir uma das bases de desavença entre as duas facções: uma, mais conservadora,
protagonizada pelo pároco e uma outra, mais secularizante, por Donato e seus aliados, alguns dos quais
dados como «comunistas e ateus».

Embora católico praticante e inicialmente ancorado na hierarquia eclesiástica e, em especial, nos padres
Vaz e Campela, Donato, militante do PSD, um partido menos filieclesiástico que o CDS, foi, com efeito,
impelido pelo contexto de conjuntural dissidência com o novo pároco Mateus a protagonizar uma tímida e
inconsistente tendência secularizante na liderança local perante o conservadorismo clerical na freguesia e no
município: «Tal como ouvi do professor Melo, vivemos num regime paroquialista. Tenho passado uns maus
bocados nesta luta contra os padres retrógrados. Quando o padre Mateus investiu contra mim e o
presidente da Junta chamando-nos do altar "ladrões", não lhe saí, por conselho dalguns padres, a caminho,
fiquei-me em casa e esta táctica tem dado bons resultados» (A20).
Empurrado, por um lado, por inesperadas vicissitudes tais como o acidente mortal do seu aliado, padre
Campela, e a não-colaboração do sucessor deste e, por outro, incitado por líderes municipais no seu papel de
opositor ao conservadorismo eclesiástico, Donato, respaldado pela Junta e seus apoiantes, nomeadamente os
caseiros, conseguirá não só congelar o aumento das rendas do passal entre 1980 e 1985, como
inclusivamente retirar da batuta clerical o Centro Social. Mais, criará um movimento favorável à demissão
do padre Mateus, fazendo coligações selectivas com padres circunvizinhos, desde que maleáveis aos seus
objectivos e do seu partido e torneando escolhos na aproximação ao poder episcopal através de uma ou outra
figura sacerdotal bem colocada.

O insucesso da operação de demissão do pároco devido a certos erros tácticos (11:3), os velhos
ressentimentos dalgumas famílias pelo aproveitamento, a baixo preço, da sua mão-de-obra por parte da casa
Fontes, algumas promessas de emprego não cumpridas, a não apresentação de contas e o défice de
democracia no Centro Social com a consequente monopolização de funções ou a sua restrição a amigos e,
sobretudo, os ataques dos adversários às «poucas vergonhas» ocorridas no Centro Social – todos estes factos
e/ou rumores, aliás referidos em cáustico panfleto local, viriam todavia à superfície e suscitariam uma
quebra da imagem social e moral de Donato e um crescente mal-estar e divisão nos moradores. Uma tal
situação de equilíbrio de instável seria, numa estratégia de contra-ataque, habilmente aproveitada, desde a
328
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

visita pascal de 1985, tanto pelo pároco como pelos tradicionais rivais de Donato. Estes, uma vez nomeados
pelo pároco em Conselho Paroquial, juntamente com cerca de seis antigos aliados de Donato, organizaram-
se, sob a tutela eclesiástica, para minar e enfrentar o domínio deste.
Seriam, porém, de efémera duração os assomos de domínio destes «respeitáveis rebeldes» na medida
em que, além de não possuirem fundos financeiros para mostrar «obra feita», assumiram medidas
impopulares tais como o aumento de rendas do passal e, sobretudo, predispuseram-se a claudicar perante as
pretensões do pároco e da Igreja no sentido de esta se assenhorear do Centro Social pelo facto de deter aí o
direito de superfície.
Uma das expressões da real relação de forças entre os dois blocos e, em particular, entre Serafim e
Donato seria dada na visita episcopal em 1986 que, promovida pelo pároco e pelo Conselho Paroquial para
se (auto)relançarem e, assim, arredarem Donato da arena civil e sobretudo eclesiástica, acabaria por reforçar
a posição deste e seus apoiantes. Estes ousaram não só ir cumprimentar à sacristia um bispo previamente
instruído para os desclassificar religiosa e socialmente como expor-lhe, na igreja e na presença da
população, as suas posições. Assente que o pomo da discórdia se centrava no poder de disposição sobre o
Centro Social, peranteum bispo aparentemente interrogante e preocupado com a paternidade do Centro
Social («quem é o pai do Salão Paroquial?», responderam em uníssono os crentes presentes: «O povo» –
sinal evidente de que Donato e a sua facção granjeava o apoio maioritário dos conterrâneos. Perante tal
relação de forças, o bispo, apostado em não perder o total controlo do barco paroquial, chegaria, a
contragosto do pároco e da ala conservadora, a aceitar o convite de Donato para tomar um café no Centro
Social, vitória que levaria Donato a exclamar: «Este foi dia mais importante da minha vida!».
Este revés e a falta de dinâmica social e organizativa do Conselho Paroquial – que, tendo-se oposto ao
loteamento social de Donato, num primeiro momento tão-pouco conseguiria convencer o padre Mateus a
vender parte do passal para reconstruir a residência – foi criando uma certa indefinição de poder que a
facção pró-Donato paulatinamente soube explorar nos bastidores e na arena do Centro Social. Nem a
«greve» do pároco aos serviços religiosos, na mira de responsabilizar Donato pela degradação da situação,
obteve os efeitos desejados. Pelo contrário, face à agressão de um paroquiano emigrante ao padre Mateus e,
sobretudo, perante certos desentendimentos do padre com o Conselho Paroquial, aquele acabaria por
resignar-se, desabafando na homilia de despedida: «A Igreja (o passal e demais bens, MCS) tem sido uma
grande vaca de leite que todos querem mamar» (A138).
Se Serafim, com o afastamento e a saída do padre Mateus, bem como a substituição deste por um padre
da Ordem dos Passionistas, perdera conjunturahnente a protecção eclesiástica, ele voltará contudo a
recuperá-la com o recém-chegado novo pároco, o padre Ambrósio, cujo posicionamento viria a pender em
favor de Serafim e demais membros da Comissão Fabriqueira, apostada desta vez em consolidar a sua
posição não só mostrando «obra» (restauração da residência, arranjo do adro, construção de futebol de salão)
mas também tentando gerir e apropriar-se juridicamente do Centro Social.

Rigorosamente, se as posições do pároco e seus apoiantes reflectem atitudes mais reactivas e mais
conservadoras, a de Donato não é, de modo algum, socialmente emancipadora nem sequer ideologicamente
anticlerical e, muito menos, a-religiosa. A sua posição secularizante, resultante duma aliança interrompida
com o padre Campela pelo acidente mortal deste e da sua inépcia em manobrar o novo pároco, é
negativamente mediada pela relação de concorrência com os seus rivais face aos seus actuais ou potenciais
clientes. Esta relação conduzirá por certo a novos equilíbrios instáveis e inerentes episódios de disputa pelo
controlo do poder, configurando-se como cenário mais provável e duradoiro uma dualidade de poderes em
torno de dois eixos e respectivos protagonistas: a Igreja, o pároco e «sua» Comissão Fabriqueira, por um
lado, e o Centro Social, Donato e seus adeptos, por outro.

13.3. Os dependentes: a segurança mínima

Perante uma situação de dependência sob a tutela discricionária dos patronos e caciques locais, que
atitudes se constataram, pelo menos no passado, por parte dos jornaleiros, camponeses e artesãos mais
pobres?
Embora excepcionais, cabe referir como, já no século XIX, se registaram alguns esporádicos casos de
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

insolência ou até rebelião de pobres, quando não contra os seus patrões e dominadores, pelo menos contra a
propriedade fundiária ou animal. Por exemplo, o jornaleiro Domingos Gonçalves teria sido chamado ao Juiz
de Paz por duas vezes: uma por não pagar indemnização pela morte de uma vaca e outra por ter «maltratado
uma porca cevada» e que viria a morrer três dias depois (LCNC Li10:93, 14-8-1837; LCNC Li10:102, 11-
12-1837). De modo mais arrojado, o mesmo jornaleiro ousaria apelar ao Juiz de Paz, ora para exigir o
pagamento dos seus salários (LCNC Li10:132v-133v, 9-3-1838), ora para reivíndicar outros direitos. Assim,
depois de condenado no cumprimento da obrigação de indemnização em 1000 réis por ter metido a enxada
na terra do vizinho Barbosa, desafiaria como autor, para se ressarcir de seus direitos, o seu amo, uma vez
que este «foi o único culpado em semelhante caso, dado ser ele quem lhe destinou o serviço a fazer» (LCNC
Li10:120, 31-1-1838).

Geralmente, o comportamento dos mais desmunidos era e, ainda que em menor grau, é controlado e
sancionado no âmbito da corporação e da autoridade aldeãs. Os mecanismos na desigualdade de acesso aos
bens fundiários e, sobretudo, culturais diminuem, de facto, para os desprovidos as oportunidades de
informação e a capacidade de intervenção, não só induzindo-os a acatar a ordem social e a conformar-se
com as normas dominantes como chegando mesmo, não raro, a provocar neles, como refere Bourdieu um
«acto de desconhecimento» e/ou um sentimento de (auto)exclusão nos assuntos políticos a nível local,
regional ou nacional. Em semelhante contexto de relação de forças desfavorável, as atitudes dos moradores-
clientes, quer de assentimento, quer de passiva distância, ausência ou abstenção, enquanto estratégias
tendentes a «minimizar a sua vulnerabilidade» (Waterbury 1977:337), tornam-se lógicas e compreensíveis.
Tais comportamentos são e sobretudo eram, até certo ponto, resultantes das suas próprias vivências
biográficas e, consequentemente, do habitus de classe interiorizado, já sobretudo do seu próprio «instinto»
de sobrevivência e/ou falta de alternativa. Daí poder, em termos globais, afirmar-se que, quanto mais
carenciados, pobres e impotentes fossem os moradores, mais dependentes, humildes e deferentes teriam que
apresentar-se face à «boa vontade» de seus patrões-patronos, nomeadamente para obtenção de trabalho ou
arrendamento de terra, empréstimo de gado e alfaias agrícolas (arado, carro de vacas, prensa) ou para
enfrentar qualquer emergência (doença, má colheita, necessidade de crédito ou assistência social).
Num quadro em que a segurança mínima e a própria alimentação das famílias mais pobres dependia
duma estreita e personalizada relação com os seus patrões-patronos locais, não se esboçavam entre aqueles
posições comuns com base em critérios de classe, mas verificavam-se expectativas passivas ou alinhamentos
verticais que seguiam de perto as rivalidades entre as casas mais fortes, sobretudo quando entre estas se
estabeleciam renhidos litígios judiciais a nível interfamiliar12. Por exemplo, num processo judicial de
embargo de construção de um lagar de azeite, accionado por Fontes contra Fortuna, os jornaleiros e artesãos
deste foram depor em favor do patrão, segundo a contraparte, para «salvar-se de qualquer responsabilidade
e defender os patrõe que os assalariavam» (TB M572 Li10:37v, 1899-1903).

Com efeito, a nível das relações de tipo diádico, cada grupo doméstico menos provido procurava
gratificar os jeitos e favores mencionados proporcionando dádivas em espécie, no caso de ter algumas
posses, ou então dias de trabalho gratuito, tal como relata o jornaleiro Joaquim: «Como não havia dinheiro
nem trabalho, um homem tinha que estar calado, tinha que agachar-se…Quando um lavrador matava um
porco, podíamos receber às vezes um bocado de carne mais gorda, mas tínhamos que estar sempre ao
dispor dele para trabalhar na sua casa...» (L22).
12
Para processos semelhantes na Galiza, cf. Tolosana 1979:58. Nestes litígios judiciais sobretudo em Aguiar é de referir, ao lado
de testemunhas-lavradores, o engajamento de jornaleiros e artesãos em favor de seus protectores ou protagonistas mais fortes: por
exemplo, no litígio sobre distribuição de águas entre o proprietário padre Bernardo Campela e um lavrador com terreno limítrofe
(TB M770, 1873); no processo relativo a um eventual direito de aqueduto entre Machado e Pires em 1875 (TB M891, 9-4-1875);
na acção de divórcio entre Clernência e Pires (TB M588, 25-7-1890); na questão entre o empreiteiro e presidente da Junta
Severino versus Rosa (TB M499, 6, 16, 1935 e M253, 1937) ou versus membros da Junta e lavradores expropriados (TB P634
M543 Li10, 1948) ou inclusivamente contra conterrâneos hipotecados e arruínados (TB P203 M512 L6:205, 21-4-1938; TB
P1039 M180 Li2:3, 11-4-1938; TB P16 M499 Li6:17, 28-10-1935); no conflito entre o proprietário padre Arcanjo Campela e o
pequeno lavrador José Coelho sobre o eventual direito a uns sobreiros num terreno baldio que coube em sortes a este último (TB
P387, M539, 19-4-1947); e no litígio entre o proprietário Campela contra o pequeno camponês-caseiro Duarte sobre um eventual
direito de aqueduto para passagem de água (TB P51, Li6:107, 24-7-1962).
330
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

Particularmente antes da vaga emigratória dos anos sessenta, o medo, a insegurança e a concorrência
entre os desprovidos tornava possível alugar, por baixo preço, a sua força de trabalho num ambiente
paternalista. Se um jovem ou uma originária de família pobre pretendesse aprender uma arte (carpinteiro,
pedreiro, alfaiate, costureira) ou ir trabalhar de criado(a) junto de urna família mais abastada, além de
suportar humilhações psicológicas, morais e até agressões físicas, teria de mostrar-se agradecido(a) e,
eventualmente, oferecer presentes ou de trabalho suplementar para ser aceite.
Os jornaleiros e camponeses mais pobres, sobretudo caseiros, estando compulsivamente dependentes de
casas mais providas, tinham de submeter-se e não raro ocultar os seus sentimentos e ressentimentos mais
íntimos, evitar dizer mal ou escarnecer dos seus patrões e patronos para não serem marginalizados ou
sofrerem retaliações, atitude expressa no aforismo popular ouvido em Aguiar: «Na terra dos lobos a gente
tem de uivar como eles» (A118).
É, portanto, no âmbito do patrocinato, que adquire relevância sócio-antropológica o facto de os
habitantes, sobretudo dependentes, manterem para com os mais influentes os chamados «respeitos
humanos», perceptíveis nas posturas corporais contraídas e nos modos deferentes de falar nomeadamente na
esfera pública. Não é por acaso que clientes-dependentes, em especial caseiros e jornaleiros, necessitavam
«dar-se bem» e agradar ao interlocutor de cada dia ou momento, servindo frequentemente de pombos-
correio de informações ou até segredos de diversas famílias empregadoras, curiosas em saber a vida
intramuros dos vizinhos.
Neste contexto os moradores pobres limitavam-se, ora a furtar-se de tomar partido nas rivalidades
internas entre famílias-caciques candidatas à liderança da aldeia, ora, mais amiúde, a simular uma respeitosa
subserviência no trato, a aparentar um radiante contentamento no trabalho, a ceder aos desejos,
nomeadamente sexuais, dos seus patrões-patronos para lhes cair nas boas graças e, assim, manter o trabalho
ou o arrendamento da terra, perfilando uma lealdade política – embora nem sempre incondicional – perante
aqueles que lhes fossem menos adversos. Apoiar um e, de preferência, multiplicar o número de protectores
eram, de resto, as únicas maneiras de limitar ou difundir os riscos inerentes à sua precária existência. Estas
atitudes não eram simples expressões de «falsa consciência», mas obedeciam a uma estratégia calculada,
cujo objectivo central consistia em obter das famílias de lavradores um apoio mínimo. Porém, este «mal
necessano» era apenas suportável, na medida em que os respectivos clientes sabiam que normalmente os
lavradores locais, embora mais interessados em assegurar mão-de-obra barata e «boa reputação», não os
deixariam, no quadro das expectativas da moral vigente, morrer de fome. Doutro modo, segundo foi possível
inferir de referências e testemunhos de três moradores de Lindoso e seis de Aguiar, estes não tinham
escrúpulo em infringir a dita moral, apoderando-se veladamente, pela calada da noite, de produtos agrícolas
necessários à sua sobrevivência: «tinha-se que roubar porque a miséria era grande» (L119) (7:2.4).

A fim de limitar a dependência perante as casas económica e/ou politicamente mais providas e, assim,
evitar a sua «má vontade» e eventuais represálias, as famílias não assalariadas mas endividadas, se
publicamente exibiam um bom relacionamento com os seus rnediadores e credores, mantinham o mais
possível em segredo os seus problemas internos. Deste modo, procuravam não deixar entrever demasiada
fraqueza económica, a fim de evitar conluios ou especulações de potenciais compradores e prestamistas
locais, para os quais tinham uma série interminável de obrigações: presentes e jantares, disponibilidade para
testemunhar em tribunal13, cedência ou alienação de bens por «preço de amigo». Estas atenções – não tanto
em função do processo de trabalho familiar como em compensação de favores e contactos no exterior –, por
parte da família em dívida, tinham em vista retrair a declaração de insolvência e o consequente assalto, no

13
A este propósito tornam-se intrigantes não só a técnica de recrutamento como o tipo de testemunhas que o autor e/ou arguido
procuram mobilizar para depor em seu favor. Além do jogo de bastidores no sentido de retirar ou, pelo menos, desmobilizar
testemunhas da contraparte dissuadindo-as ou seduzindo-as com ganhos superiores, seleccionam-se testemunhas em função da
força económica, da idade e/ou do estatuto elevado e pressionam-se outras atendendo à sua posição de dependência, das quais se
espera incondicional apoio, independentemente da (in)justiça da causa. Embora não de modo extremo como em situações de
servidão, é, de certo modo, aqui aplicável a tese de Tonnies (1953:62-63), segundo o qual o pobre apoiava ou votava no partido do
«senhor». Doutro modo, seria objecto de retaliação com consequências fatais para o seu modo de vida, segurança patrimonial ou
mesmo existencial, tal como, para Córsega, o demonstrou Ravis-Giordani (1976:175 ss). Sobre as relações deferenciais, cf. ainda
Newby 1975:139-164.
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

todo ou em parte, aos seus bens.

Para além das retribuições materiais de carácter assimétrico, há que sublinhar as recompensas
simbólicas e de lealdade religioso-política, a saber, o estrito cumprimento dos deveres religiosos face à
vigilância do padre ou, então, a votação em determinado candidato apoiado pelo respectivo patrono ou
cacique local, mais como imperativo moral e/ou expressão de agradecimento pelos favores praticados ou
como imploração perante necessidades futuras. É neste quadro que se compreendem não só os (quase)
indefectíveis alinhamentos verticais, mesmo que em detrimento de membros da mesma condição social, mas
também os fingimentos e as sucessivas mudanças de posicionamento conforme a ala comprovadamente mais
forte na política local ou, ainda, por fim, as recorrentes posições de medo, defecção e distanciamento
públicos para não cair nas más graças deste ou daquele líder, tal como ripostou o pedreiro Roberto quando
lhe pediam a assinatura para demitir o actual pároco de Lindoso: «Pode estar tudo muito certo mas nós não
assinamos nada nem contra nem a favor, pois nós nem o trouxemos nem o levamos» (L69).

Os moradores politicamente dependentes das iniciativas das personalidades importantes da aldeia,


sobretudo do padre e doutros mediadores, por si sentiam-se ora incapazes – ainda que não desinteressados –,
ora sem condições de tomar iniciativas e posições autónomas, limitando-se a votar e apoiar, por gratidão ou
conveniência, os candidatos dos partidos situacionistas ou, em segredo por medo a represálias, os da
oposição.

A progressiva mudança desta configuração, ampliando a capacidade negocial dos clientes em diversos
aspectos (salarial, arrendamento, favor administrativo)14, dar-se-ia a partir da vaga migratória e da
implantação do sistema pluripartidário (12:3). Estes factores tornariam mais precárias as fontes de controlo
sócio-político, desestabilizando a balança de poderes tradicional ou afrouxando os laços da (quase) orgânica
dependência dos pobres.
Despreocupando-se das eventuais incompatibilidades conceptuais entre as próprias convicções político-
religiosas e os fundamentos programáticos de determinada formação política, votar em determinado
candidato ou partido, além de eventualmente constituir um gesto de agradecimento, tornva-se cada vez mais
um meio de (re)negociar e exercer pressão sobre determinada personalidade ou líder local, a fim de
continuar a prestar favores e serviços, tal como o exprimia em Aguiar um cliente ao mediador Donato: «Se
você não me conseguir a reforma, eu deixo de votar no seu partido» (A105).
Mantendo-se o móbil dos apoios e das oposições políticas condicionado por interesses e considerações
familistas, este novo e mais competitivo contexto força o mediador a investimentos suplementares para
recriar e manter a lealdade de seus tradicionais clientes, os quais não arriscavam todavia a mudança de
posicionamento até se certificarem de um comprovado e eficaz apoio alternativo. Rivalidades familiares
internas, a concessão ou a denegação de pequenos favores e recompensas materiais, o ser ou não
contemplado na adjudicação de pequenas obras de empreitada na igreja, na residência paroquial, no Centro
Social ou inclusivamente o ser ou não postergado nas próprias listas eleitorais e em que lugar – tudo entrava
em linha de conta para a expressão favorável ou desfavorável de cada apoiante face ao candidato A, B ou C.
Salvo alguns casos de moradores dependentes que num passado mais longínquo ousaram tomar
iniciativa e assumir posição frontal e pública contra o partido e/ou o grupo local dominante, o trabalho de
oposição tem sido todavia levado a cabo, nas últimas décadas, precisamente por (descendentes de) dez
famílias em Lindoso e treze em Aguiar que, enquanto filhos de pequenos camponeses, rnerceeiros, artesãos
ou operários-(e)migrantes, possuíam, além de contactos exteriores, alguns recursos especialmente escolares.

14
Enquanto em conflitos anteriores, em regra, moradores dependentes não se manifestavam em favor de outros da mesma
condição e não raro testemunhavam em benefício das partes mais abastadas, após o 25 de Abril de 1974 verificam-se alguns casos
de solidariedade horizontal: por exemplo, em Aguiar no conflito sobre um eventual direito de opção na venda de um campo entre
o médio lavrador Veloso e o caseiro Duarte, este tinha como testemunhas alguns vizinhos pobres ou modestos.
Em Lindoso, os pais de Ana (L48), colocados em situação de apuro económico-financeiro, hipotecaram e venderam,
verbalmente e sem escritura, a Henriques tenenos. Restabelecida a situação financeira dos vendedores, graças às remessas
emigratórias por parte do genro Lino, estes viriam a repor o dinheiro e a desfazer o contrato oral, o que lhes valeria o epíteto de
«farsantes» e «ladrões» por parte dos compradores e apoiantes.
332
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

Só, porém, com a emergência de fontes de sobrevivência externas à aldeia e a multiplicação de alternativas
político-partidárias se começaram a detectar, de modo embrionário, algumas vozes mordazmente críticas por
parte de ex-jornaleiros, concretamente dois em Lindoso e seis em Aguiar, os quais, perdendo os «respeitos
humanos», denunciam, em público e perante representantes da oposição, pressões sobre si exercidas: «Você
veja se controla bem isso, porque, no momento de o meu pai votar, Donato foi segredar-lhe para votar no
PSD» (A18).
Mais, se no passado raramente acontecia que um morador dependente, quando devedor, jornaleiro ou
caseiro, questionasse o cumprimento de qualquer acordo na base da «honra da palavra dada», na nova
conjuntura algumas casas outrora dependentes, alcançada uma fase mais desafogada do ciclo familiar,
conseguiriam, senão uma inversão da relação, pelo menos um novo reequilíbrio, obrigando a uma
reformulação do respectivo acordo e evidenciando cada vez mais na arena pública alguns (res)sentimentos
outrora abafados.

13.4. «Servindo» para servir-se: os dividendos

Tal como tem sido referido, o papel de liderança e de suporte financeiro dos gastos colectivos em
especial na esfera do simbólico, por parte das famílias mais prósperas, é interpretado por autores como
Foster (1965:305 ss) como mecanismo redistributivo e forma de compensação dos mais abastados em favor
dos menos providos, de modo a restaurar o equilíbrio comunitário e contribuir para o regular funcionamento
da colectividade (11:5). Ora bem, apesar das pressões comunitárias nesse sentido, tal premissa ingénua
obnubila que a «generosidade» dos mais ricos se encontra animada por interesses e objectivos estratégicos
próprios.
Tal como vimos em 13:1 e 13:2, patronos e mediadores eclesiásticos e civis, além de, em regra, serem
detentores de mais recursos simbólicos e sobretudo económicos, pela sua preponderância como gestores de
recursos e assuntos públícos, estavam em condições não só de regular a colectividade como de bloquear
perdas e recolher algumas vantagens simbólicas e materiais, ainda que insignificantes, para si próprios, seus
aliados e dependentes: «A política é como uma porca com oito tetas» (A49).
Com efeito, sendo tais mecanismos constatados e de longa data a nível municipal (Capela 1989:131 ss),
também em Lindoso e em Aguiar os detentores de poder local, servindo-se aberta ou sigilosamente dos
canais disponíveis de poder e comunicação camarários e aplicando as já referidas técnicas de manipulação e
domínio, designadamente pela via de concessão de pequenos favores, têm extraído contrapartidas pessoais
ou familiares, tanto em termos económicos, como em aumento de prestígio e poder. Mais, além de se
permitirem certos privilégios e benefícios, têm cometido, por vezes, arbitrariedades e atropelos, sem que, em
regra, tenham sido abertamente contestados, nem sequer pelos próprios adversários, também ciosos de ter
algum poder e proveito. Aliás, persiste na memória e na consciência actual de bastantes moradores – que só
em surdina nas confidências intrafamiliares, por altura de zangas interfamiliares ou de alvoroço local o
manifestam – a convicção de que os indivíduos que tomam iniciativas, se candidatam e/ou são investidos
nos cargos públicos fazem-no em função dos seus interesses particulares. Os moradores, se, por um lado,
não deixam de valorizar positiva ou negativamente tais favores e conveniências conforme a sua posição
social, consideram-nos, por norma, arranjos «compreensíveis», «correntes», mesmo quando repreensíveis.
As próprias actas da Junta, já em Aguiar, já, sobretudo, em Lindoso, dão conta de como os membros de
Juntas recém-empossadas e seus promotores acusam Juntas cessantes de terem «desviado» dinheiros,
apropriado ou deixado apropriar recursos da freguesia15.

Os recursos ao alcance do pároco, de membros da Junta e das casas ricas têm variado ao longo dos
séculos XIX e XX, desde a possibilidade de assenhorear-se, gratuitamente ou por «preço de amigo», de
15
Por exemplo, as Juntas pró-republicanas face às Juntas pró-monárquicas de 1890-1910 acusadas de não apresentar recibos de
despesas e receitas (AJL 16-2-1913). As actas da Junta do Lindoso referem ainda casos posteriormente ocorridos, em especial as
acusações de Rafael versus Milheiros (AJL 28-4-1963, 3-1-1964) e sobretudo Delfim Soares versus Rafael (AJL 15-1-1972). Em
Aguiar, o pároco acusa, entre 1980 e 1986, Donato e presidente da Junta de falta de seriedade na gestão dos dinheiros da Igreja e
do Centro Social. Tais acusações, em regra, estão estreitamente imbricadas na luta pelo comando da aldeia.
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

capelas e outros bens de culto (esmolas, ofertas de devotos), de baldios ou águas até à gestão de dinheiros
camarários, estatais ou comunitários. Já as próprias Memórias Paroquiais da freguesia do Lindoso em 1758
(MPL l1-3-1758:666) referem, a par de ermidas comunitárias (Santa Madalena, Santo André, S. Sebastião),
o facto de ser propriedade privada do pároco Francisco Gonçalves a capela de Santo Amaro; e,
relativamente a catorze paróquias de Barcelos – algumas das quais circunvizinhas de Aguiar, 26 capelas
estarem em mãos de particulares (Fonseca 1948:45 ss). E, quanto aos rendimentos dos párocos, ainda no
contexto da monarquia liberal, além de bastantes dos contribuintes da décima situados nos escalões
superiores a 1.000 réis serem párocos, do total de 37.000 réis colectados em 1826, 11.000 eram derivados
dos direitos paroquiais e do pé de altar do respectivo abade (LDA 1821:13-17v e LSA M34, 1826:17).
Paralelamente à retórica de «entrega» e «dedicação» ministeriais, em regra, os párocos, concretamente
os de Lindoso e de Aguiar, costumavam ser bastante exigentes, não só no pagamento de serviços religiosos
tais como baptizados, casamentos, funerais, sermões ou confissões – estes aliás objecto de pagamento em
separado16 –, mas também na cobrança anual do tributo eclesiástico conhecido por côngrua ou primícias
como contrapartida de seu estatuto e do exercício das funções simbólico-pastorais. Os Livros de
Conciliaçõese não Conciliações entre 1835 e 1841 mostram que, entre os tipos de conflitos interfamiliares,
6.5% eram relativos à recusa dalguns paroquianos em pagar as primícias ao pároco. Se os paroquianos de
Lindoso até 1971 e os de Aguiar até 1978 eram relativamente regulares no pagamento das primícias, nos
finais dos anos setenta, não o eram assim tanto, tal como se pode ler do seguinte quadro referente a Aguiar:

QUADRO 38: Pagamento de primícias: Aguiar (1978-80)

* rasa= 13 quilos; cântaro= 12.5 lirros; ou, se em dinheiro, 500$00 e 1500$00 por cada rasa de milho e por cada cântaro de
vinho, respectivamente.
Fonte: Lista de primícias, 1978-80. AJFA.

Além de famílias que declararam abertamente não pagar, bastantes das 47.4% de casas sem registo não
pagaram não só por falta de recursos mas também por falta de vontade. Outras declararam não pagar
regularmente este tributo, o qual não traduz uma percentagem fixa do volume real e proporcional das
receitas familiares actuais. Se, em 1891, em Aguiar, cada família pagava, em média, três rasas de milho e
um cântaro de vinho, os viúvos uma rasa e meia de milho e meio cântaro de vinho e os solteiros três quartos

16
Cada família pagava, em 1985, 300$00 por cada missa que, sobretudo na dominical, se multiplicava pelo número de «almas»
encomendadas. Comparando o pagamento dos serviços entre 1920 e 1985 constata-se uma evolução no sentido de uma maior
especificação e monetarização dos mesmos. Assim, enquanto em 1920 custo do funeral era englobado nas primícias e por cada
obrada, baptizado e casamento o pároco recebia uma rasa de milho, uma galinha e pão trigo, em 1985, por cada funeral, baptizado
e casamento o pároco recebia respectivamente, pelo menos, 3.000$00, 500$00 e 3.000$00 (cf. art. 7 LUA 1920 e ILA 1984-85).
334
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

de rasa de milho e um quarto de cântaro de vinho respectivamente (NRPCB 7-12-1891)17, um século mais
tarde, atendendo sobretudo ao relativo aumento de produtividade da terra e do trabalho e, apesar de
actualizada em dinheiro, a primícia representaria bastante menos em relação ao rendimento global.
Tratando-se de famílias sem rendimentos agrícolas, especialmente até 1970 era-lhes exigido o preço
dum saco de carvão (em Lindoso) e, a partir de então, um ou dois dias de trabalho no passalou o produto
equivalente. Recentemente, em Lindoso, com base na geral melhoria de condições de vida, foi estipulado
pelo pároco que cada «chefe» de família, sendo solteiro ou viúvo, deveria pagar três quartos de rasa de
milho e meia rasa de centeio e, sendo casado, pagaria indistintamente uma rasa de centeio, duas de milho e
um cântaro de vinte litros de vinho ou o equivalente em dinheiro.
Além das primícias, acrescem osfolares de Páscoa – antigamente em espécie, hoje cada vez mais em
dinheiro, em envelope fechado – e os rendimentos derivados dopassal. Este, se em Lindoso, sendo
constituído por um quintal e dois terrões, oferecia um módico rendimento, em Aguiar rendia e rende
anualmente à volta de 3000 litros devinho, 60 de azeite e 385 rasas de milho pagos por caseiros oriundos de
oito famílias modestas ou pobres18.
Será ainda a Igreja a principal beneficiada com uma parte substancial de excepcionais receitas
paroquiais procedentes da venda de bens comunais. Cabe, neste aspecto, destacar o destino do capital
monetário resultante da venda das madeiras da mata do Cabril em 1923, o qual, em grande parte, haveria
sido aplicado não só na conclusão dos três cemitérios com os seus respectivos portões de ferro, como
sobretudo na reparação da igreja e da residência paroquiais (AJL 21-1-1923).

Outro campo de aproveitamento «familista», desta vez conjugado com os interesses municipais pelo
aumento de receitas fiscais, foi o da apropriação de baldios por parte de particulares melhor colocados na
hierarquia aldeã19. Embora iniciado no século XVIII, será, no entanto, na sequência da revolução liberal de
1820 – cujos propulsores e legisladores, a nível nacional, eram avessos à manutenção dos baldios (cf. Silbert
1968:13, 382 ss) – que, tanto a nível municipal como em Aguiar e freguesias circunvizinhas, se verificam,
além de concessões de provisão régia e da cessão de bens municipais, alguns casos de usurpação de baldios
(LTBCB 3-7-1824: AB 30-4-1880, 7-8-1880). Estes últimos, especialmente numa primeira fase, deveriam
ter transcorrido à margem da própria Câmara, a fim de evitar pagar a esta qualquer tributo, tal como se pode
ler num dos processos de aforamento: «António Francisco da Silva, ferreiro desta mesma freguesia, tinha
feito uma tomadia com sua casa no terreno maninho do concelho, o qual já se achava reduzido a cultura e
dele não pagava foro algum à Câmara deste concelho» (AMB Li2-5:5v, 30-9-1842).

Este como outros usurpadores locais de baldios, não lhes sendo possível escapar a certo controlo
municipal, acabavam por requerer um auto de inspecção para que «se medisse, demarcasse e lançasse o foro
correspondente» (AMB Li2-5:5v, 30-8-1842). Deste modo e em nome do «progresso da agricultura»
conjugavam-se os interesses dos requerentes com os das classes urbanas oligárquicas e administrativas
operantes na Cãmara pelo mecanismo do aforamento (12:1). Segundo Capela (1989:148 ss), em Barcelos, os
foros representavam a partir de 1809 a metade, entre 1820 e 1834 dois terços, sendo desde então a grande
parte das receitas municipais obtidas a partir do orçamento realizado com as contribuições directas ao
Estado.
A apropriação de baldios pressupunha, portanto, o concurso de dois factores: capital económico, em
particular monetário, e reconhecimento jurídico pela via político-administrativa, precedido de um parecer da

17
Cf. também Capela e J. A. Nunes 1983:86. Em 1920 vigorava a seguinte distribuição: 27 pagavam três rasas de milho e um
almude de vinho; 23 duas e meia rasas de milho e meio almude de vinho; 22 uma rasa e meia e um quarto de almude; e os
restantes meia rasa.
18
Nomeadamente 64 rasas de milho por Luís, 63 por Irene, 62 por Bentinho, 55 por Rosália, 35 por Tomás, 20 por Elias, 20 por
Abílio e 20 por Fernando.
19
Os requerentes de tais processos eram, com efeito, proprietários e/ou lavradores, sendo de referir nomeadamente Manuel da
Costa, José Luís Fernandes Lima, António Francisco da Silva, Rosa Vicente de Sousa (AVA 3-9-1842, 30-8-1842, 17-5-1871).
Sobre aforamentos e apropriações desde a segunda metade do século XVIII, cf. A. Oliveira 1980:4 ss, Capela 1989:38 ss. Sobre a
distinção entre posse e propriedade e sobre as condições de transformação da primeira na segunda, nomeadamente no contexto
português oitocentista e tendo por ilustração os autos de aforamento em Vieira do Minho, cf. Brandão e Rowland 1980:179 ss.
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

Junta paroquial. Quem mais moeda possuísse, mais mão-de-obra poderia mobilizar para vedar e arrotear
terrenos baldios, plantar árvores, alienar os seus matos ou madeiras, minar águas e, consequentemente, mais
foros poderia pagar à Câmara. Porém, este processo só viria a ser consolidado a partir do momento em que o
pretendente se submetesse ao poder municipal e detivesse infiuência bastante para converter a usurpação de
facto num direito legalmente reconhecido mediante a emissão municipal de um título de propriedade, tal
como o confirmam diversos casos de aforamento através da Câmara20.
Entre os proprietários locais envolvidos nestes processos de apropriação privada de baldios, cabe
ressaltar o caso paradigmático do próprio presidente da Junta, o proprietário padre Roberto Maciel. Este,
apoderando-se e tapando terrenos avaliados em 23.200 réis, ficaria a pagar à Câmara o foro anual de 1.160
réis, de acordo com a sentença relativa ao aforamento municipal feito a 30-8-1842. Com esta concessão a
Câmara faria do pároco e presidente da Junta um aliado seu, o qual, por razões de cargo e conveniência
particular, prestar-se-ia a denunciar, nos certificados informativos da Junta, paroquianos que, ao apropriar-se
eventualmente de terrenos baldios, não se dispusessem previamente a requerer e a pagar o devido
aforamento: «Atestamos em como é verdade que Miguel Lourenço desta paróquia de Aguiar circundou com
parede simples há cinco a dez meses uma porção de terreno, que era baldio» (PA 12-8-1985).

As estratégias de apropriação passam todavia pela detenção do poder local e/ou aliança com este,
designadamente o pároco e a Junta, seja no sentido de o alcançar ou manter, seja no sentido de o contestar
ou derrubar, dada a sua importância nos pareceres enviados à Câmara. Por exemplo, a propósito da petição
de aforamento por Rosa Vicente, o presidente da altura, o bacharel Eduardo Salazar, ordena diligências no
sentido de a Junta informar se o dito terreno «se acha ou não na exclusiva posse da dita requerente e no
estado de benfeitorizado e se o terreno é susceptível de aforamento sem prejuízo do público ou particular»
(PA 5:10, 17-2-1877), pedido a que a Junta, presidida pelo padre Roberto Maciel, responde favoravelmente:
«Atestamos em como Rosa Vicente, viúva, desta freguesia, possui este terreno há muitos anos, com posse
imemorável, e não causa prejuízo algum ao público nem ao particular, é o que é verdade» (PA 5:5:10v, 1-
5-1877).

Tratando-se de dois pretendentes – um da próplia freguesia e outro forâneo –, cada um conseguia, em


regra, mover as suas próprias influências, de modo a colocar a própria Junta a seu lado, tal como o lavrador
Pires de Aguiar num conflito de aqueduto que o opôs a Machado, lavrador de Quintiães (TB M806 e M891,
1873-75). Já, porém, na eventualidade de se entrechocarem interesses de dois ou mais pretendentes da
mesma paróquia ao mesmo talhão de terreno, o parecer da Junta tornava-se tão problemático quão decisivo.
Por exemplo, após uma acesa luta, durante pelo menos cinco anos, entre os lavradores Barbosa Machado e
Miguel Afonso, a Junta intimada pela Câmara a dar parecer sobre se a proximidade de uma pedreira pública
e a presença de um direito de servidão do segundo litigante constituía impedimento para atribuição de
aforamento camarário de um terreno usurpado pelo primeiro, acabaria por respaldar as pretensões deste em
detrimento das do segundo ao afirmar: «não prejudica o público nem o particular, tendo a mesma pedreira
dois caminhos, um para o norte outro para o sul» (AJA 19-5-1889 in PA 11-5-1885).
Neste e noutros exemplos21, reparando atentamente no estatuto dos requerentes e co-assinantes das
petições de aforamento e confrontando os seus nomes e assinaturas com os dos membros da Junta, há fortes
indícios de estarmos perante relações de parentela e compadrio entre elementos da Junta e as famílias
contempladas. Nestes processos e correlativos conflitos não eram utilizados apenas membros da Junta como
inclusivamente, se possível, da própria Câmara. Por exemplo, o padre Bernardo Campela, num litígio sobre
a vedação de terreno com o padre António Rosa, tentou arrastar como co-autora a própria Câmara, a qual
escusar-se-ia porque a contraparte era precisamente vereador da mesma (TB M809, 1883:1 ss). Por outro
lado, a relativa ausência de oposição a estes processos de apropriação acentuar-se-ia com o facto de mais
tarde ter lugar um aforamento colectivo com a subsequente repartição, ainda que desigual, de grande parte

20
Cf., entre outros, LTBCB:l32v-134, 3-7-1824, AVA 212,213,214,219 de 30-8-1842 e 223 de 17-5-1871 in M66 AMB.
21
Cf., entre outros, PA 30-8-1842, PA 1-5-1877, PA 9-7-1884 in AMB e, posteriormente, Ae28 v e59 in TB P387, M539, 1-9-
1947. Às petições do presidente da Junta, o proprietário e padre Roberto Maciel, de Rosa Vicente e de Alves Barbosa deram o seu
consentimento vizinhos e reputados lavradores locais, alguns dos quais com relações parentais com o requerente.
336
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

dos baldios restantes, tal como se pode inferir do Auto de aforamento dos baldios paroquiaes de Aguiar
(AABA) com data de 28-5-1913.

Relativamente a Lindoso, registam-se, pelo menos desde o início do século e durante o primeiro quartel
do século XX, alguns processos de apropriação privada e de expropriação estatal, embora só a partir dos
anos quarenta tal tenha ocorrido com uma amplitude significativa. Com efeito, são as próprias actas da Junta
que dão conta de diversas tentativas nesse sentido a partir, já do exterior, já do interior da freguesia. Assim,
paralelamente ao facto de certa imprensa e agentes privados considerarem «ilegal» o destino paroquial da
venda da madeira da mata do Cabril (AJL 21-1-1923, 4-2-1923), são referidos diversos casos de vedação e
apropriação de baldios, cujos promotores seriam não só famílias abastadas e/ou detentoras de cargos na
Junta como outras, também economicamente fortes, mas sem poder e rivais daquelas: os Guedes, os Cunhas,
entre outros. Neste processo, era a própria Junta que, precisando de angariar fundos para cobrir despesas
correntes, nomeadamente a manutenção do simbólico, reparação de infra-estruturas e demais necessidades
colectivas, começaria por, em troca do dinheiro cedido ou emprestado, dar em arrendamento porções de
terreno paroquiais a determinadas famílias que, por sua própria conta, as iam vedando e delas se iam
apropriando. Se, por um lado, lavradores, designadamente o ex-regedor, ex-membros ou aliados da Junta,
eram contemplados com terrenos, licenças de construir moinhos junto ao rio ou ramadas na via pública em
compensação de «benefícios prestados à freguesia» (cedência de regos de água, terreno para o cemitério ou,
mais tarde, para a escola), também os seus opositores se apropriavam eles próprios de terrenos que, se bem
que inicialmente negados, acabariam por ficar na sua posse22. Do mesmo modo, apesar dalguns protestos e
queixas sobre «diversos indivíduos que usurparam as madeiras e os matos de logradouros comuns sem a
devida autorização da Junta» (AJL 26-2-1924), os constrangimentos provocados pela expansão de culturas
domésticas tais como o milho e a batata, a formação de poulos e, sobretudo, os requerimentos no sentido de
dividir e sortear parcelas forçariam a própria Junta a pedir aos moradores que cortassem o mato dos montes.
Teria sido com este objectivo que foi nomeada uma comissão de sete lavradores para demarcar os terrenos
acoutados e, assim, colaborar nesta «nova forma de acoutar os montes nos limites da freguesia, pois que é
uma vantagem para o futuro dos povos» (AJL 4-6-1920).

Na sequência das práticas durante o liberalismo e o republicanismo, igualmente durante o «Estado


Novo» se verificou, por parte de alguns ocupantes de cargos político-administrativos locais, o
aproveitamento familista na concessão recíproca de espaços privilegiados nos cemitérios destinados a
jazigos perpétuos e, sobretudo, a gestão, a apropriação e o cercamento de terrenos baldios. De facto,
também, neste período, em Lindoso se constataram irregularidades, pautando-se a acção das respectivas
Juntas por tratamentos de favor a uns e discriminatórios a outros. Por outro lado, membros da Junta e demais
mediadores de então, possibilitando a penetração de agentes estatais, assim como de outros actores estranhos
à paróquia, funcionaram como parachoques dos embates – de que o processo de florestação do Lindoso
constituiu um caso paradigmático – entre as «suas» colectividades e as instituições munícipo-estatais. Pelos
seus bons serviços e préstimos viriam tais mediadores a ser, por vezes, compensados com cessões e/ou
novas demarcações de terrenos baldios. Por exemplo, Henriques, presidente da Junta nos anos sessenta,
começando por arrendar parcelas comunais, acabaria por vedá-las e, seguidamente, apropriá-las ou aliená-
las.
Para quem a presença dos representantes dos Serviços Florestais (engenheiros e guardas) constituiu
especial anzol estratégico de vantagens familiares foram dois merceeiros locais: Urbano em Lindoso e
Raposo em Parada. A tarefa de mediar e domesticar a revolta de conterrâneos expropriados pelo Estado nos
seus terrenos comunais atraía certamente sobre si os ressentimentos daqueles e, por conseguinte, implicava
um certo risco ao ligar a sua sorte ao (in)sucesso da operação de florestação. No entanto, tal acção,
acompanhada de prestações de informações, jantares e outras recompensas aos engenheiros e guardas

22
Respectivamente a favor de (ex)membros da Junta e/ou seus aliados, cf. AJL 20-7-1912, 3-1-1915, 4-2-1917, 18-3-1917, 6-4-
1919, 4-5-1919, 1-6-1919, 21-3-1920, 4-7-1920, 18-7-1920, 19-12-1920, 5-2: -1921, 6-3-1921, 4-12-1921, 16·3-1924, 4-5-1924,
5-10-1924, 6-9-1925; e, por parte de opositores transgressores ou sem licença, cf. AJL 2-11-1902, 2-4-1911, 20-8-1912 e 16-11-
1924.
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

florestais, proporcionaria a cada um dos referidos merceeiros certas regalias e facilidades tais como a
concessão ou a compra favorável de terrenos baldios e de materiais para construção da sua própria casa e
loja. Além disso, os responsáveis dos Serviços Florestais, depositando na mercearia de Urbano e sobretudo
na de Raposo os salários dos seus jornaleiros, adstringiam à gestão forçada e discricionáriado dono da
respectiva loja os ganhos salariais e os gastos de reabastecimento alimentar dos respectivos jornaleiros-
clientes.
Ainda que de modo mais indirecto e subtil, também outros protagonistas do poder apesar de opositores
do processo de florestação e dos mediadores desta, acabariam por extrair algum proveito na medida em que,
emprestando dinheiro a famílias vítimas de multas e apreensões de gado, constituíam-se credores dos bens
penhorados e hipotecados para, eventualmente, em seguida, em caso de insolvência do devedor, se tornarem
seus donos.

Quanto a Aguiar, apesar da distribuição de grande parte dos baldios feita em 1913-14, também aí
prossegue sob o «Estado Novo» a apropriação de baldios, já de modo directo, já de modo indirecto, sob a
forma de disputa acerca da natureza e do destino de terrenos já atribuídos mas não registados. As famílias da
Junta e seus aliados, arvorando-se num primeiro momento em defensoras do estatuto comunitário desses
«baldios», tinham em vista, num segundo momento, a sua apropriação em detrimento de direitos de casas
adversárias ou com menos recursos (v.g. Ae46 e 53 v Ae126).
A alienação dos (quase) últimos talhões de terreno viria a ter lugar a partir do início dos anos setenta,
através de contrato de compra e venda, em favor de emigrantes regressados ou do próprio tesoureiro da
Junta, sendo alegado, em abono deste último, o direito de preferência pela sua posse há mais de vinte anos
para fins da sua actividade industrial (AJA 20-1-1976).
Mais impressionante seria o modo como o pároco de Aguiar, padre Vaz, sob a passividade da Junta,
sem qualquer consulta prévia à população, além de alienar bens da paróquia tais como imagens de santos e
ornamentos valiosos, decidiu ceder o principal monumento de Aguiar – o cruzeiro, datado de 1621 – a uma
distinta família forânea.

Também em Lindoso o trespasse de recursos públicos em favor de membros da Junta, de seus aliados e
dependentes era levado a cabo precisamente por Juntas, cujos membros afirmavam em acta que «a missão
da Junta da Freguesia é a de defender o interesse de todos os habitantes da mesma freguesia e não os seus
e os dos seus amigos» (AJL 20-2-1955).
Quando atribuídas pela Junta a um de seus membros, as concessões eram aparentemente cobertas com o
cumprimento duma formalidade legal, segundo a qual, retirando-se da reunião o membro da Junta
requerente do respectivo beneficio, este era-lhe concedido por deliberação dos restantes. A título ilustrativo,
refira-se que, na sequência da batalha perdida por Milheiro face a Ferraz para restaurar a igreja de Parada em
vez da de Lindoso, foi requerido em 1957 pelo presidente da Junta, António Milheiro, um espaço para um
jazigo perpétuo. Sobre este pedido o secretário e o tesoureiro da Junta deliberam que: «Em virtude de o
senhor António Manuel G. e seus irmãos serem obrigados a abandonarem a campa que lhes pertencia por
motivo das obras da igreja, é muito justo que esta Junta lhe ofereça no cemitério de Parada, como pede,
uma campa perpétua para nela ser colocada a mesma lápide que tinha...» (AJL 17-3-1957).
Dois meses depois é a vez do secretário da Junta, o merceeiro Urbano – em cujo inventário por esta ou
outra razão surgirão seis prédios omissos na matriz (M6 Li13:59, 20/77) – de cumprir o ritual de retirar-se
da reunião, para os outros dois decidirem sobre o seu requerimento no sentido de lhe ser atribuído um
terreno baldio, o qual lhe foi concedido porque «não dá caminho nem prejudica terceiros» (AJL 17-5-1959).
O aproveitamento familista a partir da posição política tornava-se mais visível quando os contemplados
detinham exíguos recursos fundiários. Entre 1944 e 1963, o secretário da Junta Celso, filho ilegítimo, de
início jornaleiro e, posteriormente, funcionário estatal como cantoneiro, assume, por morte do presidente, a
presidência da Junta de 1962 a 1963. A trajectória e a posição de então, associada ao facto de sua mulher ser
caseira de ex-membros da Junta, forçá-lo-ia não só favorecer a construção de ramadas privadas de
moradores-lavradores, em via pública, mas também a solicitar e obter dos restantes membros o deferimento
para, uma vez alcançado o assentimento de catorze famílias vizinhas, lhe serem vendidos a 50$00 por carro
de terra diversos terrenos, uma casa e um quintal com treze carros de terra e lhe serem concedidas, a título
338
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

gratuito, três bouças, dez carros de terra e uma hora e meia de água de uma fonte pública para a sua casa23.
A Junta seguinte, presidida por Rafael, insurgindo-se contra esta concessão, determinaria ao infractor para,
no futuro, «jamais tocar na água», fundamentando assim a sua posição: «Esta Junta informou-se que as
outras Juntas anteriores não lhe deram água nenhuma nem o povo, que continuara sem água como
antigamente» (AJL 14-6-1964).

A partir de 1955 foi-se tornando usual a feitura de requerimentos e exposições à Junta no sentido de
obter licenças e benefícios, nomeadamente a cessão gratuita ou por baixo preço de terrenos logradouros para
cultivo, exploração de águas e, sobretudo, de porções de terreno baldio com cerca de 500 metros quadrados
para construção de casa para habitação. Além de, por vezes, o interessado directa ou indirectamente fazer
chegar ao protector a mensagem de, por exemplo, «se conseguisse esse pedido, recompensá-lo-ia bem»
(AJL 20-11-1960), os processos de expropriação eram encorajados pelos próprios Serviços Florestais, desde
que tais talhões temporariamente adscritos fossem inferiores a um hectare e registados na matriz predial.
Não obstante o critério oficial ser o da pobreza do requerente, o deferimento ou o indeferimento dos pedidos
nem sempre obedecia, porém, a esta norma – aliás bastante fluida –, mas dependia, amiúde, do tipo de
relação (parental, amiga ou compadria, concorrente ou conflitual) do requerente face à Junta ou a algum dos
seus membros, dando, uma vez mais, lugar a tratamentos discricionários. Assim, a Junta concedeu ao guarda
florestal Ferreira terreno para construção de casa e para cultivo (AJL 21-7-1957, 17-7-1960), mas negou-o a
Rodrigues, um outro guarda florestal (AJL 20-9-1959), alegando a futura construção de um fontanário nesse
local, enquanto parentes de Rodrigues afirmam hoje dever-se tal decisão a receios do merceeiro Urbano,
secretário da Junta, de ser aí aberta uma loja concorrente.
Igualmente entre 1959 e 1961 a Junta indeferiu ao ex-forâneo Timóteo o pedido de concessão de
terreno, alegando desavenças passadas entre vizinhos (AJL 19-2-1961), mas concedeu ao emigrante Dinis
um campo de cultivo em logradouro – que este aliás já começara a vedar – «por ser pobre, ter a seu cargo
quatro filhos, não só para dar o jeito ao interessado como para pôr o terreno no maior progresso que pode
haver, que é a agricultura» (AJL 8-1-1961).
Esta última cedência seria contudo indirectamente criticada pela Junta seguinte que mandou «constituir
uma comissão de homens desta freguesia que não sejam dados terrenos para cultivo nos logradouros
comuns desta freguesia sem ser do conhecimento de qualquer Junta que haja nesta freguesia» (AJL 19-4-
1964).

Em caso de indeferimento da Junta ou de oposição de diversos moradores ao processo de apropriação,


restava ao requerente apelar a uma instância superior judicial ou política. Assim o fez, por exemplo, a
«rebelde» Joana que, não obstante diversos protestos e ameaças locais de vir a ser processada, acabaria por
escrever ao Governo Civil para criticar a Junta (AJL 11-2-1968).
As sucessivas concessões e transgressões foram fazendo com que, a partir do início da década de
setenta, se tornasse corrente a prática da Junta do Lindoso em ceder, a preços simbólicos, lotes para
construção de casa a famílias pobres, dando assim lugar a um prolongamento da aldeia ao longo da estrada
adjacente.
Seja por objectivos de sobrevivência, seja por motivos de reforço de posições e outras vantagens são de
referir, além da remuneração dos autarcas sob a forma de duodécimos, certos dividendos visíveis em ambas
as colectividades e em diferentes períodos e contextos públicos. Estes traduziam-se no facto de os ocupantes
dos cargos conseguirem, devido a contactos municipais ou outros, ora empreitadas e empregos para
familiares e amigos seus, ora a concessão de favores a opositores para amortecê-los24, ora ainda capital-

23
Cf. respectivamente AJL 11-11-1962 e 28-7-1963. A mulher do beneficiário era caseira de L24, e31, 73. Cf. ainda SIL 203 de
25-6-1944, 230 e 280 de 22-8-1944, 188 de 11-6-1945, 139 de 25-4-1954.
24
No pós 25 de Abril de 1974, por exemplo, reparação de estradas e caminhos, cemitérios, lavadouros, colocação de bancos de
pedra (L67 e 90 sob Romeu, L5, 51 e 106 sob Paulo, A110 e 149 sob Gil); limpeza da escola por companheira de Paulo e Elsa,
ambas pobres; a função de guia turística do castelo a parente de Romeu e, posteriormente, a filha de Sabino; ou ainda a reserva de
postos de trabalho como vigilantes na EDP, SEOP e Marfil para membros da Junta, da Assembleia e outros influentes de Lindoso
(L65, 51, 37, 92). Como exemplo de favores a adversários é de referir a mediação de Donato para empregar, como assistente de
educadora de infância, uma filha de Vitalino, tesoureiro da Junta (1981-93) e parte vencida num processo de perfilhação, em que
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

dinheiro a baixo juro junto de instituições bancárias para, seguidamente, a troco de juros mais elevados e
outras «atenções», emprestá-lo a farm1ias necessitadas. A estas habilidades são de acrescer, por parte
dalguns mediadores financeiros como Subtil, secretário da Junta entre 1955 e 1974, as vantagens derivadas
da sua perícia – socialmente herdada de seu pai como «juiz de paz»– em mediar disputas e obter transacções
em heranças ou outras rixas, colocando-o em posição óptima para apoderar-se de prédios abaixo do valor
venal corrente e/ou receber pequenas recompensas fundiárias, monetárias ou outras25.
Mais, eram igualmente membros das Juntas e outras personalidades com influência nas instituições
munícipo-estatais os que, não raro, conseguiam evitar ser afectados em eventuais expropriações por corte de
estrada – caso de Severino em Aguiar – e sobretudo diligenciar ou aplicar fundos de dinheiro público para
melhoramentos infra-estruturais que dessem acesso ou confinassem com casas e propriedades suas, de seus
familiares e amigos, ainda que em detrimento doutros co-residentes com maior prioridade ou urgência. É, e
sobretudo era, porém, entre actores sociais residentes no perímetro geográfico aldeão onde circulavam os
dividendos mais valiosos expressos em contrapartidas derivadas da série de jeitos e favores burocráticos,
designadamente o dispor de um largo contingente de voluntariosa mão-de-obra extrafamiliar, sobretudo em
épocas de sementeira e colheita. A utilização de força de trabalho barata ou até gratuita, além de contribuir
para a formação de excedentes agrícolas, permitiu a libertação parcial da mão-de-obra familiar e, deste
modo, possibilitou aos filhos(as) de casas mais providas e, em especial, dos mediadores mais influentes uma
formação escolar ou um emprego em sectores não agrícolas.

Um outro aspecto relevante da política decisória da Junta consistia e, de certo modo, ainda consiste em
transferir para a arena política inimizades pessoais ou rivalidades familiares, servindo-se inclusivamente do
seu poder para expressamente penalizar adversários, coartar-lhes a iniciativa política ou vetar-lhes direitos e
benefícios. Tal ocorreu com frequência, em Lindoso, durante a I República, entre republicanos e
monárquicos, estes favoráveis ao padre Domingues: os primeiros proibindo que os segundos assumissem
cargos públicos (AJL 22-10-1919) e os segundos designadamente um zelador pró-monárquico a pretender
perseguir os republicanos (AJL 26-10-1919). Ou, no pós 25 de Abril de 1974, um projecto de criação, a 23-
9-1980, dum complexo gimnodesportivo, por parte de sócios da Associação Desportiva e Recreativa de
Lindoso conotados com o PS, não obstante ser apoiado pelo delegado distrital do Ministério da Educação e
Cultura, acabaria por ser dificultado e retardado pelo facto de a Junta – mais interessada em apoiar uma
outra associação fundada a 21-9-1984 em Parada – se recusar a ceder o terreno no preciso momento em que
a mesma Junta acedeu aos pedidos da EDP para concessão de águas e expropriação de baldios para a
barragem e para a construção de uma estalagem.
Tal animosidade político-familista, porém, exprime-se mesmo a um nível mais primário. Por altura do
melhoramento de um caminho no eido de Lindoso, Paulo, presidente da Junta eleito pela lista do PSD, opôs-
se a que os acessos à casa de Silvério e Zeferino, seus adversários políticos pelo PS, fossem reparados,
apesar das insistências de representantes camarários e do Parque Nacional da Peneda-Gerês no sentido de
evitar tal tratamento excepcional, discriminatório. Ou ainda, em 1985, não obstante as diligências de Aires,
de Parada, junto do pároco e da Junta, a fim de obter a cessão de um pedaço de terreno baldio, um dos
membros da Junta, Albertino, vizinho de Aires, veta tal pedido pelo simples facto – real mas não confessado
– de, confinando a sua casa com o dito terreno, ser ele próprio um potencial interessado e concorrente. Este
facto, por sua vez, viria a ser decisivo para que Aires, enquanto membro da Assembleia pelo CDS, acabasse
por se coligar com os membros pelo PS para derrubar Albertino e demais membros da Junta pró-PSD em
1985.

Não obstante persistir a conjugação das estratégias familistas dos respectivos líderes com as partidárias
determinadas manobras, possíveis num quadro de rnonopolização de poder local sobretudo durante o
«Estado Novo», vêm-se tornando cada vez mais difíceis e insustentáveis devido à presença incómoda das

Donato teria tomado partido pela parte contrária; ou a designação para cozinheira da Casa-Escola Agrícola uma filha de família
opositora de Donato.
25
Subtil obteria, no processo Fontes-Gomes, duas terras (SIA 1523/58, SIA 1478/58), no caso de Moreira versus comerciante
grossista um sobretudo e, como mediador de um usurário forâneo, sem filhos, parte da sua herança. Do mesmo modo, adversários
do padre Vaz não escondem o comentário sobre «os que viveram à sombra do padre!»
340
Camponeses, Igreja e Estado: os Mediadores

oposições locais e suas abertas ou veladas críticas. Por exemplo, a inicial atribuição selectiva de espaços
para jazigos em favor de famílias influentes ou membros da Junta vai-se democratizando, podendo, em
princípio, qualquer família reservar-se a compra desses espaços para os seus parentes falecidos26.

*
**

Resumindo, por insignificantes que fossem os recursos circunscritos à esfera pública, só com a
manutenção ou conquista de uma determinada posição na hierarquia política local era possível gerir tais
recursos públicos, os quais implicaram nos mais diversos contextos políticos uma maior ou menor luta
competitiva pelo seu controlo.
O pároco, os membros da Junta, lavradores-proprietários e outras personalidades influentes, ao
constituírem-se veículos tradicionais de conexão com o exterior e ao prestarem favores de acordo com as
necessidades de seus conterrâneos, eram os actores que estavam em melhores condições de acumular
reputação e (in)directamente extrair algum proveito das funções públicas locais. Os detentores dalgum tipo
de poder local procuravam reproduzir, a seu modo, o seu domínio local: enquanto uns (por exemplo, o
pároco e o presidente da Junta) vinculavam os paroquianos pelo imperativo moral, pela dádiva ou pelo favor
«administrativo», outros como o prestamista «prendiam-nos» pela obrigação económico-financeira.
Cada um dos candidatos ao poder local assumia um maior ou menor risco a nível familiar. Se o aumento
de prestígio e/ou poder favorecia a ascensão económica, também a sua diminuição ou perda, especialmente
no campo religioso e político, poderia acarretar duros golpes no património familiar, tal como ocorreu
nalguns raros casos, sobretudo até meados do século XX.
A evolução da história política local mostra como caciques em concorrência procuravam, nas suas
disputas intestinas, servir-se da autoridade eclesiástica (padre, bispo) para os seus objectivos de domínio,
dada a importância fulcral desta no controlo das consciências de grande parte dos moradores. Daí que às
várias manobras de bastidores levadas a cabo pelas famílias mais influentes da paróquia se encontrava
subjacente a prévia estratégia de «ter o padre nas mãos». Todas as tácticas eram admissíveis, conforme as
circunstâncias e a relação de forças, desde a bajulação pura e simples e/ou a oferta de préstimos até ao
confronto, por vezes, violento, particularmente quando outros métodos de persuasão ou tentativas de
coligação fracassassem.

26
Entre as primeiras reservas de espaços para jazigos no cemitério, são de referir, além da relativa à família Milheiro em Lindoso,
as atribuídas à família Fortuna, doadora do terreno para cemitério, ao padre ]\faciel, ao padre Vaz e família em Aguiar;
seguidamente, a membros da Junta durante o «Estado Novo» e, no pós 25 de Abril de 1974, já num processo de maior abertura e
democratizaçã.o, 011tros moradores, cf SIA 1000/6/91 a 19-6-1974, AJA 31-5-1974, 31-10-1975, 30-7-1976, 30-8-1976,
Um Poder Local Familista:Concorrência e Dividendos

Os ex-votos e os dividendos, Aguiar-Balugães (foto 37)

A importância da instrumentalização do pároco vai esmorecendo à medida que o acesso a novos modos
de vida, saber e poder por parte de ex-seminaristas, emigrantes e outros vai secularizando a vida sócio-
política local, cujos ingredientes acabam por minar ou degradar o poder absorvente e tendencialmente
monopolizador dos tradicionais caciques, nomeadamente do pároco.
Com a avalancha emigratória desde os anos sessenta e as remodelações camarárias na fase final do
«Estado Novo» verifica-se uma certa deslocação da relação de forças tradicional em que as velhas famílias
de médios e abastados lavradores vão perdendo um tanto a capacidade de subordinação e de negociação
perante as famílias mais pobres. A nível político, tal fenómeno social viria a retraduzir-se na recolocação de
lugares em Lindoso ou, em Aguiar, numa diminuição de prestígio por parte dos detentores do poder local.
Perante a precaridade ou a ausência de adequados meios de participação na res publicae de fiscalização
sobre os ocupantes dos cargos, dispor de recursos e multiplicar redes de influência e contacto possibilita
processos de desvio dos objectivos supostamente colectivos. Em tais condições o mediador poderá fazer
creditar, converter ou acumular eventuais investimentos económicos, comunicativos e outros em vantagens
pessoais ou familiares, já materiais, já político-simbólicas.

342
CONCLUSÃO

Este trabalho começou, preliminarmente, por reconhecer a conduta dita conservadora do campesinato
nortenho e, em especial, minhoto, assim como o seu assentimento relativamente passivo para com o bloco
conservador, em particular no século XX. Este facto, embaraçoso para muitos, é com frequência negado,
raramente analisado ou indevidamente interpretado a começar por autores alinhados ou conotados com a
esquerda política. Tal como se tentou demonstrar, algumas explicações da acção camponesa resultam
incorrectas ou infundadas, manifestando mesmo certos preconceitos em relação à classe camponesa.
Os camponeses têm apoiado grupos conservadores, não porque eles fossem conservadores por natureza,
tal como pretendem certas concepções metafísicas designadamente a corrente funcionalista, assim como o
conservadorismo político. As revoltas camponesas, nomeadamente em Portugal, desde a época medieval até
ao século XIX, são um claro desmentido do postulado ahistórico do funcionalismo.
Com base em determinados pressupostos de certas variantes do modelo sócio-psicológico e da
interpretação dogmática da teoria da pauperização, poder-se-ia conjecturar que a precaridade ou a
deterioração das condições de vida das categorias mais desprovidas constituiriam uma condição suficiente
para levantamentos camponeses contra as forças conservadoras dominantes. Tais grupos sociais, apesar de
terem vivido sob más condições, em pobreza e subalimentação, não se têm contudo sublevado
colectivamente, em especial neste século.

Não obstante a referência a factos comprovados por diversos cientistas sociais, sobretudo historiadores,
a interpretação histórica, sumariamente traçada na introdução, acerca da decrescente dependência
camponesa até à época contemporânea deve ser entendida mais como uma hipótese de trabalho a ser
explorada e confirmada por pesquisa histórica.
Os dados recolhidos de fontes directas e indirectas e, sobretudo, da própria historiografia portuguesa
indiciam que, desde a Idade Média até às formações sociais dos séculos XIX e XX, a acção dos camponeses
constitui, para além da longa aliança entre a aristocracia fundiária, o clero e a nascente burguesia comercial-
compradore, um factor indispensável para a compreensão da história de Portugal. Esta configuração sócio-
política constrangiu o poder político no sentido de adoptar uma política mercantilista em detrimento duma
política desenvolvimentista. Talvez esta perspectiva contribua para explicar os sucessivos fracassos ou a
lentidão dos projectos de modernização e sobretudo de industrialização desde o século XVIII até ao pós 25
de Abril de 1974.
O «conservadorismo» sócio-político dos camponeses poderá ser entendido a partir do ângulo da sua
necessária e secular luta pela conquista e pela manutenção do seu pedaço de terra como condição e garantia
vitais para a sua relativa autonomia e liberdade a nível familiar. Esta luta histórica coincide
progressivamente não só com a libertação da sua condição servil, mas também com a paulatina formação
das diversas categorias camponesas nos tempos modernos, em particular na sua afirmação já não tanto
contra a velha feudalidade como contra a burguesia ascendente com as suas bases comerciais e industriais
urbanas e, sobretudo, contra o Estado. Com efeito, tem sido o Estado central moderno a grande ameaça ao
modo de existência e mundividência camponesas.
Não há uma conduta uniforme nos diversos grupos sociais presentes em ambas as aldeias. Em todo o
Conclusão

caso, tal como se evidenciou ao longo dos sucessivos capítulos e se resumiu nas respectivas sínteses finais,
os factores-chave para explicar o comportamento considerado «passivo», «inerte», «conservador» dos
grupos camponeses e outros actores sociais assentam nos constrangimentos sócio-estruturais e
organizacionais, com os quais se articulam as diversas estratégias daqueles na sua luta comunitária e
(inter)familiar pela manutenção e/ou melhoria de suas condições de existência como base da sua relativa
autonomia. Daí as disputas internas a nível interfamiliar e, sobretudo, as lutas externas no sentido de
contrariar a interferência das instituições exteriores (Igreja, Câmara, Estado).

Por uma filtração crítica das formas comunitárias, foi possível verificar a imbricação geo-social do
território comum, dos sentimentos de pertença e demais elementos de identidade e solidariedade com formas
de diferenciação e hierarquia sociais. Com efeito, o comunitarismo, sendo uma resposta económica
imprescindível nomeadamente no ecossistema de montanha, é parte integrante das diferenciadas economias
domésticas e, como tal, não é, de modo algum, sinónimo de igualitarismo. Em todo o caso, o comunitarismo
tem reforçado as estruturas vigentes, as quais começaram a ser justamente abaladas com a intervenção da
Câmara e do Estado sobretudo no século XX. Os dados apresentados sobre a entreajuda comunitária terão
contribuído para desfazer equívocos e rebater pressupostos de homogeneidade sócio-económica e cultural
que a teoria funcionalista costuma, em regra, manter implícitos na interpretação deste fenómeno. A
entreajuda implica, portanto, troca de bens e serviços não só entre iguais mas também entre desiguais.

Os actores sociais de ambas as colectividades, embora mantenham como dominante a economia


camponesa e as suas actividades quotidianas sejam perpassadas predominantemente por uma específica
racionalidade camponesa, manejam elementos provenientes de diversos tipos e esferas de actividade que
entroncando-se na aldeia, são provenientes e não raro regulados a partir da economia de mercado e das
instâncias municipais e estatais.
Esta interpenetração da economia camponesa com elementos da economia de mercado detecta-se tanto
no incipiente mas incisivo processo de mecanização e modernização agrícolas – que, além de introduzir
novos estilos de vida, implica a penetração de meios de produção e produtos originários das agro-indústrias
–, como no expelir de membros excedentes dos grupos domésticos, dando lugar a novas formas de
pluriactividade e pluri-rendimento. Mais, os grupos domésticos aproveitam as oportunidades externas para
realizar as suas específicas estratégias de reprodução e, se possível, as suas aspirações de melhoria e até de
mobilidade social ascendente.
O processo de modernização agrícola, diferenciação social e intervenção estatal, não é, de modo algum,
linear: se, por um lado, conhece resistências que as duas colectividades bem demonstram, contribui, por
outro, para fragmentar identidades comunais e familiares e constitui um dos eixos principais da erosão de
lealdades pessoais e solidariedades comunitárias.

O alcance e a eficácia das diferenciadas estratégias dos actores sociais são contudo dependentes, tal
como se pôde constatar, da natureza e do grau de recursos possuídos, os quais condicionam e possibilitam,
constrangem e estruturam a acção, ora convergente, ora divergente, dos diversos grupos sociais. A
exiguidade de recursos articulada com a diferenciação, por insignificante que seja, contribui para despoletar
emulações latentes, conflitos e até lutas competitivas acerca da posse dos mesmos pelos grupos domésticos,
tanto a nível interfamiliar, como inclusive a nível intrafamiliar e intradoméstico, tal como veremos mais
incisivamente na publicação subsequente.

Ao passar em revista as estratégias e os mecanismos de reprodução e transformação duma sociedade


agrário-camponesa e em transição para uma sociedade moderna, três estratégias ocuparam de modo central a
terceira parte: as casamenteiras, as relativas às heranças e as migratórias. Com efeito, para o sucesso
maioritário das estratégias de reprodução e de mobilidade social e, consequentemente, para o considerável
grau de resistência e adaptação dos camponeses contribuiram factores de diversa ordem, entre os quais se
destacam o grau de recursos económicos, escolares e erótico-sexuais no casamento, os económico-afectivos
nas heranças e a capacidade de trabalho, auto-sacrifício e aforro, em especial nos processos migratórios.
Hoje e, sobretudo, no passado o casamento constitui a instituição nuclear onde tem lugar a reprodução
344
biológica e social e onde, a par dalguns excepcionais cruzamentos interclassistas, a endogamia geográfica e,
especialmente, a homogamia social reflectem uma implacável lógica de inclusão-exclusão social, de que o
problema da filiação bastarda é um dos fenómenos mais sintomáticos.
Por si só determinado sistema de herança não explica adequada e suficientemente o fenómeno da
ilegitimidade e a evolução de sua taxa. Para entender a ilegitimidade, o grau da sua incidência e vicissitudes,
importa ter em conta o poder classista e patriarcal, bem como as suas expressões nas relações sexuais entre
homens económica e politicamente mais dotados e mulheres sem ou com insignificantes recursos
económicos. É o contexto espacio-temporal e outras variáveis (tipo de recursos, fase de desenvolvimento,
direito consuetudinário e escrito, mentalidade) que, possibilitando ou não alcançar meios alternativos de
subsistência, reduz ou agrava o campo de dependência dos mais pobres face aos mais ricos, ampliando ou
restringindo o espaço de manobra incluindo o de opção matrimonial dos (ex)deserdados.
As considerações, dados e exemplos aduzidos são de molde a poder inferir serem diversificadas e
criativas as maneiras de fazer e desfazer herdeiros, conforme as conveniências dos actores presentes na cena
relativa à herança. O modo de transmitir, avantajado particularmente em Aguiar, tem constituído, no
passado, uma das formas de reproduzir ou reforçar a diferenciação social entre herdeiros principais e
herdeiros desfavorecidos no seio do próprio grupo doméstico. No entanto, também no interior da fórmula de
herança (quase) divisível se detectam, além da regra do terço em favor de um dos herdeiros, práticas de
transmissão desigual com as respectivas sequelas de emulações e conflitos entre herdeiros, o que obriga a
não analisar em redoma a instituição da herança fora do contexto social envolvente e das contradições,
forças e princípios que o regulam.
No quadro da reprodução e da recriação de herdeiros são de relevar ainda outros vectores tais como a
capacidade de poupança e, mais recentemente, a estratégia educacional, a qual, se, por um lado, contribuiu
para fortalecer e/ou reestruturar as posições dos mais abastados, tem também constituído um factor de
acesso a recursos por parte de grupos sociais menos providos, funcionando assim como base de saída ou
reconversão profissional e, eventualmente, como instrumento de transformação e mobilidade sociais.

Com as saídas migratórias, sobretudo dos anos sessenta, os seus protagonistas pretenderam, de modo
geral, ora resolver as suas crises internas através de meios alternativos de subsistência, ora reforçar as suas
posições na aldeia, sem que, designadamente até à década de oitenta, se deixassem envolver de modo
definitivo por forças externas à comunidade.
Os motivos de retorno rural, suportando, em regra, uma reconversão profissional transitória em vista da
sua reprodução ou ascensão social na aldeia, têm-se sobreposto, pelo menos numa fase de débil
industrialização como a portuguesa, a factores e estímulos urbanos. Contrariamente ao desarreigado
ambiente dos países de emigração, a retoma ou a redefinição do lugar na aldeia, ao mesmo tempo que
representa uma compensação, ainda que relativa e serôdia, de seus sacrificios passados, desafia os lugares
dos estabelecidos. A simples presença de emigrantes, seus dinheiros e qualificações, suas casas, automóveis
e trajes têm reconfigurado a tradicional vida social da aldeia. O seu relativo sucesso, longe de diminuir o
risco de inveja e conflito no interior da comunidade, veio não só refazer os seus hábitos e padrões de vida,
mas também contribuir para que os demais actores, em especial os lavradores, reformulassem as suas
próprias estratégias.

Um outro vector fundamental para explicar o comportamento de grande parte dos actores sociais,
especialmente dos mais desprovidos, são as relações de patrocinato, em que os sujeitos-clientes mantinham,
no seu quotidiano, uma relação de dependência face aos notáveis e mediadores locais. Tais relações, embora
não tão absorventes como as ocorridas em aldeias mais estratificadas e perpassadas de relações senhoriais,
têm constituído, em particular até aos anos setenta, uma realidade do quotidiano dos moradores de Lindoso
e, sobretudo, de Aguiar. No limitado quadro da aldeia, os camponeses pobres, jornaleiros e outros grupos
dependentes não possuíam alternativas; e, não lhes sendo oferecidas outras a partir do exterior, restava-lhes
apenas sobreviver e coexistir com os seus patronos. Considerando que as suas próprias fontes de poder eram
reduzidas e partindo da ideia-mestra da luta pela conservação e pela melhoria do seu modo de organização
social, é possível perceber as razões pelas quais uma parte considerável dos camponeses se tem mantido
afastada dos acontecimentos políticos ocorridos no centro, apoiando, quando muito, em dada situação, esta
ou aquela figura local que pusesse menos em perigo as suas condições de existência.
Conclusão

Não é, de modo algum, ilógico ou irracional que os actores sociais concretos recorram a diversas
tácticas de acordo com o seu lugar no xadrez político local, assim como mudem de atitude de acordo com a
sua posição e a de seus «protectores». Daí que a revolta ou a mobilização e, sobretudo, a inércia ou a
passividade, passando pela resistência de índole retraída e defensiva, sejam aspectos resultantes da mesma
realidade de sujeitos dependentes. A dominância das atitudes passivas e esquivas relaciona-se por certo com
o facto de os actores sociais dependentes serem extremamente realistas, minimizarem situações de risco e,
em regra, não se prestarem, no isolamento local, a atitudes heróicas e, inclusive, ampararem-se de diversos
patronos e bandeiras, ainda que estranhas.

Os constrangimentos e as estratégias camponesas situam-se na e invadem igualmente a esfera do


religioso e este, sem lhe serem negadas a sua especificidade e relativa autonomia, é mais facilmente
apreensível quando interpretado e analisado à luz da dimensão dos poderes locais.
A religiosidade vivida pelos moradores de ambas as aldeias, co-estruturando e dominando as suas
actividades diárias, articula-se, por isso, com outras condicionantes nomeadamente de tipo político, sem as
quais a permanência e a variabilidade das manifestações religiosas tornar-se-iam incompreensíveis e
inexplicáveis. É nestes parâmetros que a função organizacional e civilizacional, de legitimação, controlo
doutrinário e regulação de costumes, por parte da Igreja e, em particular, do pároco face às respectivas
populações, adquirem relevância e sentido.
A relação destas colectividades, primeiro face à Igreja e, sobretudo desde o século XIX, igualmente face
às Câmaras e ao Estado, tem-se caracterizado por uma mediada e subtil mas crescente intromissão destes e,
consequentemente, por uma redução cada vez maior do âmbito de domínio das referidas colectividades. Na
medida em que as elites eclesiásticas têm conseguido impor aos moradores uma relativa submissão da
ordem temporal à sua ordem normativa, verificou-se um reforço do domínio eclesiástico e uma certa
mistificação doutrinária. Do mesmo modo mas em sentido inverso, as crescentes transgressões de moradores
e suas atitudes de evitamento, desvio ou resistência, manifestando-se sob formas lendárias, proverbiais ou
anedóticas, têm representado um enfraquecimento da autoridade moral da Igreja e, em particular, de seus
representantes locais: os párocos.
Na sua ambivalência face ao poder eclesiástico, as populações vão coexistindo com o padre, aceitando-o
ou contestando-o, não só em função da sua posição face a interesses «familistas», jogos e alianças de poder
na aldeia, mas também em consonância com o grau de tolerância e verticalidade moral, de disponibilidade e
generosidade demonstradas na sua acção pastoral e social.

Outros protagonistas da autoridade local, além do pároco, se têm tornado também importantes,
sobretudo no passado recente, para mediar e integrar ambas as colectividades especialmente através do
secular sistema de patrocinato. Este, porém, não constituindo um atributo inerente à natureza humana, tão
pouco representa um traço indelével de determinada cultura nacional ou regional. É antes historicamente
condicionado e, como tal, é susceptível de modificar-se, readaptar-se ou diluir-se noutros arranjos
institucionais e inclusive desaparecer perante novas situações ocorridas designadamente na sociedade
envolvente.
Central na análise deste processo é, portanto, a relação triádica entre camponeses, mediadores e Estado,
a qual se tem diversamente configurado em três fases desde meados do século XIX, sendo a função principal
do patrono e, em especial, do mediador preencher o fosso entre o Estado e as colectividades locais e
descodificar as mensagens daquele para estas ou vice-versa. Tanto a nível nacional como regional e local, os
líderes partidários e governamentais, para reforçar o seu próprio poder, estabelecem uma multiplicidade de
conexões, redistribuindo favores, empregos e demais recursos em troca de empenhamento e apoio eleitorais
às respectivas máquinas partidárias e estatais.
O efeito de isolamento sob o domínio dos patronos e caciques era de tal ordem que quanto mais pobres,
dependentes e vulneráveis se encontrassem certos moradores perante os notáveis locais e a autoridade
clerical, tanto maior teria de ser, em regra, o grau de lealdade aparente, política e/ou religiosa, para com os
seus protectores – tudo isto na mira de subsistir no âmbito da organização local. A revolta ou qualquer tipo
de conduta desviante, em termos individuais, acarretaria apenas retaliação e marginalização, reprovação
pública ou até perseguição ao «rebelde».
346
O comportamento mutável dos actores-clientes, assim como os reajustamentos político-ideológicos de
seus mediadores dever-se-ão articular com as reestruturações e mudanças no tecido sócio-económico e com
a dinâmica da micropolítica local, em especial o facto de surgirem novos canais alternativos de poder e
protecção pela via associativa, sindical, partidária ou outra. No processo de transferência de competências e
de substituição dos velhos patronos e caciques por novos agentes do Estado vai um longo trajecto, cuja
durabilidade, no âmbito da constelação sócio-económica e política da colectividade, é função das estratégias
inerentes à racionalidade camponesa, do grau e do ritmo de industrialização e urbanização, bem como dos
blocos de alianças e oposições de classes sociais em determinada formação social e, em particular, do
progressivo alargamento e da prevalência das modernas solidariedades de tipo horizontal.
Embora, dada a configuração social centrífuga dos grupos domésticos, a rede-base do poder local seja
de facto policêntrica e difusa, a vida política polariza-se tendencialmente de modo dual à volta de dois
grupos ou famílias-líder, que funcionam como pólos de atracção-impulsão dos assuntos públicos, nos
diferentes contextos políticos, num ou noutro sentido.
Os adversários dos detentores do poder local, quando não colhem benefícios na oposição, começam por
criticar os ocupantes dos lugares mas, logo que obtêm posições de comando, aplicam métodos semelhantes,
a fim de disfrutar das vantagens disponíveis. Donde, nas histórias e vicissitudes das lutas intercaciques,
raramente há subjacentes diferenciados projectos sócio-políticos ou linhas ideológicas programáticas. A sua
pretensão em conservar e/ou assenhorear-se do poder local era instrumentalmente «familista» na medida em
que o empreendimento político, sem excluir alguma margem de risco, tinha em vista, predominante ou
exclusivamente, o aumento do seu próprio património, prestígio e/ou poder.
Por norma, a necessidade de cada família-líder em alargar o seu domínio passava pela concessão de
favores a conterrâneos dependentes, a qual não era nem inocente nem filantrópica, redundando directa ou
indirectamente em proveito da família «benfeitora» ou «protectora». Seguindo de perto as diversas
necessidades e adversidades dos grupos domésticos, tais favores constituíam meios de entesourar capital
simbólico, criando nos beneficiários-clientes, além dum sentimento de respeito, determinadas obrigações,
em especial a de fornecer «trabalho por favor».

A inserção da vida político-partidária nas respectivas aldeias representou um passo decisivo no processo
de incorporação das mesmas nos mecanismos da formal legalidade democrática e, correlativamente, uma
quebra de sua autonomia interna e do respectivo poder dos patronos e mediadores tradicionais. O sistema
pluripartidário no pós 25 de Abril de 1974 possibilitou a emergência menos constrangida de novos
contendores na arena política local e, sobretudo, a progressiva erosão de solidariedades interdomésticas,
despoletando velhas contradições parentais entre as famílias mais providas e cristalizando novas
solidariedades e alinhamentos entre as outrora dependentes. As rivalidades, seja entre lavradores, seja entre
merceeiros, tanto podem canalizar-se através de diferentes partidos como passar pela abóbada do mesmo
partido e das suas alas ou facções. Ainda que de modo não unívoco nem linear, a luta política bem como o
alinhamento partidário constitui uma outra forma em que a competitividade interfamiliar se manifesta. Por
outro lado, embora se verifique uma certa correspondência entre as posições e referências sociais do passado
e as tendências políticas dos respectivos líderes locais, nem todas as famílias pobres alinham em bloco por
este ou aquele partido, programaticamente mais consentâneo com os seus interesses, votando, amiúde, pelo
partido do patrono a quem mais favores devem ou de quem se sentem dependentes. A criação ou o
alargamento dum séquito de clientes e votantes tem em vista manter ou conquistar posições que, por sua
vez, servirão de trampolim para o aumento de vantagens ou contrapartidas económicas.
Salvo casos excepcionais em que as instituições deixariam cair politicamente os seus mediadores, estes,
para além das próprias estratégias de apropriação, eram, em regra, não só recompensados com a recondução
do lugar de prestígio e chefatura como premiados com vantagens materiais. Aliás, só é possível
compreender o triunfo progressivo das forças e interesses exteriores às populações tendo em conta as
pressões e os prémios que têm transformado mediadores locais resistentes em coniventes e colaboradores,
conscientes ou não, dessas forças e interesses, com as quais conjugaram os seus próprios interesses pessoais
ou familiares. Este dado deita por terra a ilusão funcionalista da harmonia das partes no todo da
colectividade, bem como a posição dicotómica que define a mudança por uma linear e vaga confrontação
entre a colectividade e a sociedade envolvente.
Conclusão

O binómio conservação e mudança torna-se compreensível, tendo em conta não só os impactos de


forças exógenas, mas também a diferenciação de grupos e interesses no seio da própria colectividade. Por
outro lado, os resultados dos processos de incorporação de ambas as comunidades, sobretudo a de Lindoso,
refutam por si sós os pressupostos do modelo de tipo vulcânico em sentido psicológico, segundo o qual
bastaria o descontentamento para que surgisse a oposição ou o levantamento a determinada situação. Tal
constatação remete-nos assim para uma última conclusão, a saber, que uma das condições nucleares para se
operarem mudanças favoráveis e socialmente relevantes para as classes dominadas, tais como os diversos
grupos de camponeses sobretudo dependentes, radica na sua capacidade de resistência e mobilização
organizadas.

348
Anexos
ANEXOS

ANEXO 1: Evolução demográfica: Lindoso-freguesia (1864-1991)

Fonte: INE, Censos Populacionais; * núcleos familiares residentes.

ANEXO 2: Evolução demográfica: Aguiar (1864-1991)

Fonte: INE, Censos Populacionais; * núcleos familiares residentes.


ANEXO 3: Explorações e distribuição da área

Fonte: INE, RAC, 1979.

ANEXO 4: Culturas e áreas (Lindoso)

Legenda: nº exp. = número de explorações.


Fonte: INE, RAC, 1979.

ANEXO 5: Culturas e áreas (Aguiar)

Legenda: nº exp. = número de explorações.


Fonte: INE, RAC, 1979.

350
Anexos

ANEXO 6: Durabilidade da entreajuda por categorias fundiárias

Fonte: ILL e ILA. 1984-85.

ANEXO 7: Famílias: entidade financiadora

Fonte: ILL e ILA, l 984-85.

ANEXO 8: Explorações segundo o tipo de mão-de-obra utilizada, fonte de receita do grupo doméstico
do produtor e respectivas áreas (Lindoso)

Fonte: INE, RAC, 197

ANEXO 9: Explorações segundo o tipo de mão-de-obra utilizada, fonte de receita do grupo doméstico
do produtor e respectivas áreas (Aguiar)

Fonte: INE, RAC, 1979.

352
Anexos
ANEXO 10: Composição dos grupos domésticos (1880-1985)

Fonte: Róis de desobriga e ILL e ILA, 1984-1985.

ANEXO 11: Naturalidade dos noivos em Aguiar (1780-1979)


Legenda: fregues. = própria freguesia; vizinhas= freguesias vizinhas; p/ total = rácio de endogamia paroquial; s/ inform. =
sem informação.
Fonte: Registos Paroquiais,Assentos de casamento de Lindoso (ACL) e Assentos de casamento de Aguiar (ACA): 1780-
1979.

ANEXO12: Idade média de casamento (1860-1985)

Fonte: Registos paroquiais, Assentos de casamento de Lindoso e Assentos de casamento de Aguiar, 1860-1985.

354
Anexos
ANEXO 13: Filhos legítimos e ilegítimos (1870-1979)

Legenda: * dados só relativos a Lindoso; desde 1912 para Lindoso-freguesia; (α) = rácio de ilegítimos/ total; s/ inform. =
sem informação.
Fonte: Registos Paroquiais, Assentos de baptismo de Lindoso (ABL) e Assentos de baptismo de Aguiar (ABA): 1870-1979.

ANEXO 14: Grupos etários e tipo de filiação

Legenda: (α)= rácio de «ilegítimos» sobre «total».


Fonte: ILL e ILA, 1984-1985.

ANEXO 15: Estado e profissão dos testadores (Lindoso 1741-1771)

Legenda: estado civil do testador: (a) solteiro, (b) casado com filhos, (c) viúvo com filhos, (d) casado/viúvo sem filhos,
(y) desconhecido; profissão do testador:(1) empregado, funcionário, (2) proprietário, (3) lavrador, (4) camponês parcial,
caseiro, (5) desconhecido; parentesco do sucessor: A = filho/a, cônjuge, B = irmão, cunhado, sobrinhos, netos, afilhados,
C = outros parentes + não parentes, D = não parentes, Y = desconhecido.
Fonte: Livro de Testamentos de Lindoso, 1741-1773, Arquivo Distrital de Viana do Castelo.
ANEXO 16: Saldos de compras fundiárias: Aguiar (1930-85) {em ares)

Legenda: parc. = parcelas;ha = hectares.


Nalgumas transacções inclui-se compra de casas: a= 1, b = 2, c = 3, d = 4, e = 5, f= 6, g = 7 casas.
Fonte: Livros de matrizes prediais de Aguiar, Repartição de finanças, Barcelos, 1985.

ANEXO 17: Grupos sociais e transacções fundiárias: Aguiar (1955-85

Fonte: Escrituras Notariais. Notário de Barcelos. 1985. C = compras, V= vendas.

356
Anexos
ANEXO 18: Desejo dominante dos pais face ao futuro dos filhos

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

ANEXO 19: Desejo dos filhos/jovens quanto ao seu futuro

Fonte: ILL e ILA, 1984-85.

ANEXO 20: Habitação inicial e posterior na emigração

Fonte: ILL e ILA. 1984-85.


ANEXO 21: Evolução da posse de gado: Lindoso (1945-86) (índice 1945 = 100)

Fonte: Livros 1, 1A, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 das Guias de pastagem do gado, Guarda Fiscal, 1945-86.

ANEXO 22: Famílias e terrenos expropriados pela EDP (1985)

* l carro de terra = 90 m2.


Fonte: ILL, l985.

358
Anexos

ANEXO 23: Resultados eleitorais: Lindoso-freguesia (1975-1991)

Legenda: APU = Aliança Povo Unido. CDU = Coligação Democrática Unitária. PEV = Partido Ecológico Os Verdes. PRD = Partido Renovador Democrático.
a
AD = Aliança Democrática.
b
FRS = Frente Republicana e Socialista (coligação PS+UEDS, União de Esquerda Democrática e Socialista).
1989 1991
* Inclui MDP (Movimento Democrático Português) + PCTP/MRPP (Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses) + UDP (União Democrática Popular) + PSR (Partido
Socialista Revolucionário) + PCP-ML (Partido Comunista de Portugal - Marxista Leninista) + FEC/OCMLP (Frente Eleitoral dos Comunistas/Organização Comunista Marxista
Leninista Portuguesa + POUS (Partido Operário da Unidade Socialista) + PST (Partido Socialista dos Trabalhadores) + LST (Liga Socialista dos Trabalhadores) + PC(R) (Partido
Comunista Reconstruído).
** Inclui PPM (Partido Popular Monárquico)+ PDC (Partido da Democracia Cristã) + MIRN (Movimento Independente de Restauração Nacional), extrema-direita.
Fonte: Resultados das Eleições para a Assembleia Constituinte (1975), Assembleia da República (1976, 1979, 1980, 1983, 1985, 1987, 1989, 1991) e Autárquicas (1976, 1979, 1982,
1985, 1989).
ANEXO 24: Resultados eleitorais: Aguiar (1975-1991)

Legenda: APU = Aliança Povo Unido. CDU= Coligação Democrática Umtária. PEV= Partido Ecológico Os Verdes. PRD= Partido Renovador Democrático.
a
AD = Aliança Democrática.
b
FRS = Frente Republicana e Socialista (coligação PS+UEDS, União de Esquerda Democrática e Socialista). * Inclui MDP (Movimento Democrático Português) + PCTP/MRPP
(Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses) + UDP (União Democrática Popular) + PSR (Partido Socialista Revolucionáiio) + PCP-ML (Partido Comunista de Portugal -
Marxista Leninista) + FEC/OCMLP (Frente Eleitoral dos Comunistas/Organização Comunista Marxista Leninista P01tuguesa + POUS (Partido Operário da Unidade Socialista) +
PST (Partido Socialista dos Trabalhadores) + LST (Liga Socialista dos Trabalhadores) + PC(R) (Partido Comunista Reconstruído).
** Inclui PPM (Partido Popular Monárquico)+ PDC (Partido da Democracia Cristã)+ MTRN (Movimento Independente de Restauração Nacional), extrema-direita.
Fonte: Resultados das Eleições para a Assembleia Constituinte (1975), Assembleia da República (1976, 1979, 1980, 1983, 1985, 1987, 1989, 1991) e Autárquicas (í976, 1979, 1982.
1985, 1989).

360
Anexos
ANEXO 25: Casas do Lindoso

362
Anexos
364
Anexos

ANEXO 26: Casas de Aguiar


366
Anexos
368
Anexos
370
Anexos
BIBLIOGRAFIA

AALTEN, Anna (1982), «Women's work and sexuality in Rural Galicia» in Euromediterranean Working Paper, 31:1-
16, Amesterdão: Universiteit van Amsterdam.
ABERCROMBIE, Nicholas e HILL, Stephen (1976), «Patemalism and Patronage» in British Journal of Sociology,
vol 27, 4:413-429.
ABERCROMBIB, Nicholas e TURNER, Bryan S.(1978), «The Dominant Ideology Thesis» in British Journal of
Sociology, vol 29, 2:149-170.
ADAS, Michael (1981), «From Avoidance to Confrontation: Peasant Protest in Precolonial and Colonial Southeast
Asia» in Comparative Studies in Society and History, vol 23, 2:217-247.
ALARCÃO, A. (1981), «"Comportamento" político dos cidadãos em "regiões" da "pequena agricultura"» in Revista
Crítica de Ciências Sociais, 7/8:329-359.
ALAVI, Hamza (1973), «Peasant Classes and Primordial Loyalties» in The Journal of Peasant Studies, vol l, 1: 23-62.
ALEXANDER, Jennifer & ALEXANDER, Paul (1982), «Shared Poverty as Ideology: Agrarian Relationships in
Colonial Java» in Man, vol 17, 4:597-619.
ALIER, Juan Martinez (1988), «Crítica de la interpretación del anarquismo como "rebeldía primitiva'' in E.S. Guzmán
e K Heisel (orgs.) Anarquismo y movimiento jornalero en Andalucía: 169-173, Córdoba: Ediciones de la
Posada.
ALMEIDA, Ana Nunes de (1985), «Trabalho feminino e estratégias familiares» in Análise Social, vol XXI, 85:7-44.
ALMEIDA, Carlos e BARRETO, António (1976), Capitalismo e emigração, Lisboa: Prelo.
ALMEIDA, Fortunato (1970), História da Igreja em Portugal, vol III, Porto: Livraria Civilização.
ALMEIDA, João Ferreira de (1977), «Sobre a monografia rural» in Análise Social, vol XITI, 52:789-803.
ALMEIDA, João Ferreira de (1981), «Alguns problemas de teoria das classes sociais» in Análise Social, vol XVII,
66:231-251.
ALMEIDA, João Ferreira de (1984), «Classes sociais, votos e poder: um espaço camponês» in Análise Social, vol
XX, 84:583-620.
ALMEIDA, João Ferreira de (1986), Classes sociais nos campos. Camponeses parciais numa região do noroeste,
Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
ALMEIDA, João Ferreira de (1987), «Párocos, agricultores e a cidade: dimensões da religiosidade rural» in Análise
Social, vol XXIII, 96:229-240.
ALMEIDA, Pedro Tavares (1991), Eleições e caciquismo em Portugal oitocentista (1868-1890), Lisboa: Difel
ALTHUSSER, Louis [1972 (1965)], Pour Marx, Paris: Maspero.
ALTHUSSER, Louis (1980), Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, Lisboa: Presença.
ALTHUSSER, Louis e BALIBAR, Étienne [1973 (1968)], Lire le Capital, II, Paris: Maspero.
ALVES, Márcio Moreira (1976), De portugese soldaten en het socialisme, Baam: In den Toren.
AMARO, Rogério Roque (1984), «Retorno, emigração e desenvolvimento regional» in M.Silva et al. (org.) Retorno,
emigração e desenvolvimento regional em Portugal: 165-234, Lisboa: IED.
AMIN, Samir (1978), «O capitalismo e a renda fundiária» in S. Amin e K. Vergoupolos (orgs.), A questão camponesa
e o capitalismo: 10-56, Lisboa: A Regra do Jogo.
AMIN, Samir (1979), «Le développement inégal et la question nationale» in L' Homme et la Société, 51-54: 3-48.
AMIN, Samir (1981), Classe e nação na história e na crise contemporânea, Lisboa: Moraes Editores.
AMORIM, Maria Norberta (1987), Guimarães de 1580 a 1819. Estudo Demográfico, Lisboa: I.N.I.C.
ANDERSON, Perry (1974), Lineages of the Absolutist State, Londres: NLB.
ANDRADE, Pedro (1991), «A taberna mediática: local reticular de negociações sociais e sociológicas» in Revista
372
Bibliografia

Crítica de Ciências Sociais, 33:265-286.


ANTUNES, Manuel de Azevedo (1985), Vilarinho da Furna, uma aldeia afundada, Lisboa: Regra do Jogo.
ANTUNES, M. L. Marinho (1973), A emigração portuguesa desde 1950. Dados e comentários, Lisboa: Gabinete de
Investigações Sociais.
ANTUNES, M. L. Marinho (1981), «Migrações, mobilidade social e identidade cultural: factos e hipóteses sobre o
caso português» in Análise Social, vol XVII, 65:17-27.
ARAÚJO, José Rosa (1967), «Apontamentos sobre o Alto Minho» in Mensários da Casa do Povo, n.º' 174, 179.
ARELLANO, Héctor Martinez (1959), «Vicos: las fiestas en la integración y desintegración cultural» in Revista del
Museo Nacional XXVIII:189-247, Lima.
ARGEMIR, Dolors Comas d' (1987), «Rural Crisis and Reproduction of Family Systems. Celibacy as a Problem in
the Aragonese Pyrenees» in Sociologia Ruralis, vol XXVII, 4: 263-277.
ARIES, Philippe (1983), «O casamento indissolúvel» in Ph. Arles e A. Béjin (orgs.) Sexualidades ocidentais: 138-
157, Lisboa: Contexto Editora.
ARIES, Philippe [1988 (1960)], A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa: Relógio d' Água.
ARROTEIA, J. Carvalho (1983), A emigração portuguesa: suas origens e distribuição, Lisboa: Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa.
ARROTEIA, J. Carvalho (1985), «Aspectos Recentes da Emigração Portuguesa» in Revista Crítica de Ciências
Sociais, 15, 16 e 17:435-443.
ATTALIDES, Michael (1977), «Forms of Peasant Incorporation in Cyprus During de Last Century» in E. Gelnner e J.
Waterbury (orgs.) Patrons and Clients in Mediterranean Societies: 137-155, Londres: Duckworth.
AUGUSTINS, Georges (1982), «Esquisse d'une comparaison des systemes de perpétuation des groupes domestiques
dans les sociétés paysannes européennes» in Archives Européennes de Sociologie, vol XXIII, 1: 39-69.
AYA, Rod (1979), «Theories of Revolution Reconsidered. Contrasting Models of Collective Violence» in Theory and
Society, 8:39-99.
BACCI, Massimo Livi (1971), A Century of Portuguese Fertility, Princeton: Princeton University Press.
BADER, Veit Michael (1976), Marxisme en Sociologie, Amesterdão: Universiteit van Amsterdam.
BADER, Veit Michael (1981), Ambivalenzen in Max Webers' Begriff der Legitimitiit, Duisburg.
BADER, Veit Michael (1991), Collectief Handelen, Groningen: Wolters-Noordhoff.
BADER, Veit Michael et al. [1980 (1976)], Einführung in die Gesellschaftstheorie: Gesellschaft, Wirtschaft und Staat
bei Marx und Weber, Frankfurt/Main, Nova Iorque: Campus.
BADER, Veit M. e BENSCHOP, Albert (1988), Ongelijkheden, Groningen: Wolters Noordhoff. BADONE, Ellen
(1990), «Introduction» in E. Badone (org.) Religious Ortodoxy & Popular Faith in European Society: 3-23,
Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press.
BAILEY, F. G. (1970), Stratagems and Spoils. A Social Anthropology of Politics, Oxford: Basil Blackwell.
BAILEY, F. G. (1971), «Gifts and Poison» in F.G. Bailey (org.) Gifts and Poison: The Politics of Reputation: l-25,
Oxford: Basil Blackwell.
BALANDIER, Georges [1987 (1967)], Antropologia Política, Lisboa: Presença.
BANCK, Geert A. (1979), «The Persistence ofLocal Levei Factionalism» in Ciência y Cultura, 31 (8):851-857.
BANDARRA, Álvaro e JAZRA, Nelly (1976), A estrutura agrária portuguesa transformada? Lisboa: Iniciativas
Editoriais.
BANFIELD, Edward C. (1958), The Moral Basis of a Backward Society, Nova Iorque: The Free Press.
BAPTISTA, Fernando Oliveira (1978), Dos projectos de colonização interna ao capitalismo agrário (anos trinta-
1974), Coimbra.
BAPTISTA, Fernando Oliveira (1980), «Economia de latifúndio - o caso português» in A. Barros (org.) A agricultura
latifundiária na Península Ibérica: 341-372, Lisboa: Instituto Gulbenkian de Ciência, Centro de Estudos de
Economia Agrária.
BAPTISTA, Fernando Oliveira (1981), «Pequena agricultura: economia agrária e política agrária (anos trinta-1974)»
in Revista Crítica de Ciências Sociais, 7/8: 59-80.
BAPTISTA, Fernando Oliveira et ai. (1989), «Agricultura familiar no Distrito de Braga» in Estudos em Homenagem a
Ernesto Veiga de Oliveira: 17:37, Lisboa: INIC, Centro de Estudos de Etnologia.
BAPTISTA, Fernando Oliveira (1993), Agricultura, espaço e sociedade rural, Coimbra: Fora de Texto.
BAROJA, J. Caro (1968), Las brujas y su mundo, Madrid: Alianza Editorial.
BARRETO, António (1987), Anatomia de uma revolução. A Reforma Agrária em Portugal, 1974-1976, Lisboa:
Publicações Europa-América.
BARROS, Afonso (1979), A reforma agrária em Portugal. Das ocupações de terra à formação das novas unidades
de produção, Oeiras: Centro de Estudos de Economia Agrária, Instituto Gulbenkian de Ciência.
BARROS, Afonso (1981), «Modalidades de pequena agricultura» in Revista Crítica de Ciências Sociais, 7/8: 111-
134.
BARROS, Afonso (1986), Do latifundismo à reforma agrária. O caso de uma freguesia do Baixo Alentejo, Oeiras:
Instituto Gulbenkian de Ciência, Centro de Estudos de Economia Agrária.
BARROS, Afonso (1990), «A Sociologia Rural perante a problemática do espaço» in Sociologia. Problemas e
Prácticas, 8:43-53.
BARROS, Henrique (1948-54), Economia Agrária, vol I, II e III, Lisboa: Sá da Costa.
BARROS, Henrique (1972), A estrutura agrária portuguesa, Lisboa: Editorial República.
BARROS, Henrique da Gama (1945), História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII-XV, vol II e
IV, Lisboa: Sá da Costa.
BARTH, Frederic (1966), Models of Social Organisation, Londres: Royal Anthropological Institute.
BASTO, E.L. (1936), Inquérito económico-agrícola. Alguns aspectos económicos da agricultura em Portugal, vol IV,
Lisboa: Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Agronomia.
BASTOS, Cristiana (1987), Os Montes do Nordeste Algarvio, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Tese de
mestrado (policopiada).
BATH, Bernard Slicher van (1978), Bijdragen tot de agrarische geschiedenis, Utrecht/Antwerpen: Het Spectrum. .
BAX, Mart (1991), «Religious Regimes and State-Formation: Toward a Research Perspective» in E. Wolf (org.)
Religious Regimes and State Formation: 7-27, Nova Iorque: State University of New York Press.
BAYTELMAN, David (1979), «The Agricultural Sector in Portugal» in Viffjaar landhervorming, Wageningen:
Congres International Agrarisch Centrum.
BELL, Colin e NEWBY, Howard [1982 (1971)], Community Studies. An Introduction to the Sociology of the Local
Community, Londres: George Allen & Unwin.
BELLAH, Robert (1964), «Religious Evolution» in American Sociological Review, vol 29, 3: 358-374.
BENEDICT, Ruth [ s/d (1934)], Padrões de cultura, Rio de Janeiro: Livros do Brasil.
BENIS, Maria Joannis (1979), «A emigração de 1856 a 1875 vista de Viana do Castelo» in Revista de História
Económica e Social, 3:85-100.
BENNEMA, Jan Willem (1976), Tradities van komunale samenwerking op het portugese platteland, Amesterdão:
Universiteit van Amsterdam.
BENNEMA, Jan Willem (1992), Port, kerk en arbeidsvrede. Economische en politieke verhoudingen in Alto Douro,
Portugal, Nijmegen: Katholieke Universiteit Nijmegen
BENSCHOP, Albert (1982), Max Weber' s bijdrage aan de theorie van sociale ongelijkheid en sociologische
klassentheorie, Amesterdão: Universiteit van Amsterdam (policopiado).
BENSCHOP, Albert (1993), Klassen, Amesterdão: Spinhuis.
BERGER, Peter e LUCKMAN, Thomas [1976 (1966)], Construção social da realidade, Petrópolis: Editorial Vozes
Ltda.
BERGER, Suzanne (1972), «Corporatisme et politique des partis: Finisterre et Côtes du Nord, 1928-1968» in
Tavernier et ai. (org.) L' Univers Politique des Paysans: 273-290, Paris: Collin.
BERGER, Suzanne (1975), Les Paysans contre la Politique: L'organisation Rurale en Bretagne, 1911-1974, Paris:
Editions du Seuil.
BERNALES, Andrés Opazo (1982), «Hacia una comprensión teórica de la religión de los oprimidos» in Estudios
Sociales Centro-Americanos, Ano XI, 33:11-58.
BERNSTEIN, Eduard [1964 (1899)], Socialismo evolucionário, Rio de Janeiro: Zahar.
BERNSTEIN, Herny (1977), «Notes on Capital and Peasantry» in Review of African Political Economy, 10:60-73.
BERTAUX, Daniel (1978), Destinos pessoais e estrutura de classes, Lisboa: Moraes Editores.
BESTEMAN, Catherine (1989), «Economic Strategies of Farming Households in Penabranca, Portugal» in Economic
Development and Cultural Change vol 38, 1:129-143.
BETTELHEIM, Charles (1969), «Theoretical Remarks» in E. Arrighi (org.) Unequal Exchange, Nova Iorque:
Monthly Review Press.
BLACK, Jacob (1972), «Tyranny as a Strategy for Survival in a "Egalitarian" Society: Luri Facts versus an
Anthropological Mystique» in Man, vol 7, 4:614-634.
BLOCH, Marc [1968 (1939)], La societé féodale, Paris: Albin Michel. BLOCH, Maurice (1974), «Symbols, Song,
Dance and Features of Articulation: is Religion an Extreme Form of Traditional Authorithy?» in European
Journal of Sociology, vol XV, 1:55-81.
BLOCH, Maurice e GUGGENHEIM, S. (1981), «Compadrazgo, Baptism and Symbolism of a Second Birth» in Man,
16, 3:376-386.
BLOK, Anton (1969), «Mafia and Peasant Rebellion as Contrasting Factors in Sicilian Latifundism» in Archives

374
Bibliografia

Européennes de Sociologie, vol X, 1:95-116.


BLOK, Anton (1969a), «Peasants, Patrons and Brokers in Western Sicily» in Anthropological Quarterly, 42, 1:155-
170.
BLOK, Anton (1969b), «Variations in Patronage» in Sociologische Gids, vol 16, 1:365-378.
BLOK, Anton (1972), «The Peasant and the Brigand: Social Banditry Reconsidered» in Comparative Studies in
Society and History, 14, 4: 494-503.
BLOK, Anton (1970), «Manas an entrepreneur» in Sociologisch Gids, 17: 225-234.
BLOK, Anton (1974), The Mafia of a Sicilian Village, Nova Iorque: Harper and Row.
BLOK, Anton (1981), «Rams and Billy-Goats: A Key to the Mediterranean Code of Honour» in Man, vol 16, 3: 427-
440.
BODEMANN, Y. Michal (1982), «Class Rule as Patronage: Kinship, Local Ruling Cliques and the State in Rural
Sardinia» in The Journal of Peasant Studies, vol 9, 2:147-175.
BOIS, Paul du (1971), Paysans de l'Ouest. Des structures économiques et sociales aux opinions politiques depuis l'
epoque révolutionaire, Paris: Flammarion.
BOISSEVAIN, Jeremy (1965), Saints and Fireworks: Religion and Politics in Rural Malta, Londres: Athlone Press.
BOISSEVAIN, Jeremy (1966), «Patronage in Sicily» in Man, vol 1, 1:18-33.
BOISSEVAIN, Jeremy (1969), «Patrons as Brokers» in Sociologische Gids, vol 16, 1:379-386.
BOISSEVAIN, Jeremy (1977), «When The Saints Go Marching Out» in E. Gellner e J. Waterburry (orgs.) Patrons
and Clients in Mediterranean Societies: 81-95, Londres: Duckworth.
BOISSEVAIN, Jeremy [1978 (1974), Friends of Friends, Networks, Manipulators and Coalitions, Oxford: Basil
Blackwell.
BOISSEVAIN, Jeremy (1983), «De groei van Volksrituelen op Malta» in A. Koster, Y. Kuiper e J. Verrips (orgs.)
Feest en ritueel in Europa:17-34, Amesterdão: Vrij Universiteit.
BOUQUET, Mary e DE HAAN, Henk (1987), «Kinship as an Analytical Category in Rural Sociology: an
Introduction» in Sociologia Ruralis, vol XXVII, 4:243-261.
BOURDIEU, Pierre (1962), «Célibat et condition paysanne» in Etudes Rurales, 5/6:32-135.
BOURDIEU, Pierre (1971), «Genese et structure du champ religieux» in Revue Française de Sociologie, vol XII,
3:295-334.
BOURDIEU, Pierre (1972), «Les stratégies matrimoniales dans le systeme de reproduction» in Annales, 4-5: 1105-
1127.
BOURDIEU, Pierre (1977), «Une classe-objet» in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 17-18:2-5.
BOURDIEU, Pierre (1979), La distinction. Critique sociale du jugement, Paris: Minuit.
BOURDIEU, Pierre (1980), Le sens pratique, Paris: Minuit.
BOURDIEU, Pierre (1989), O poder simbólico, Lisboa: Difel.
BRADLEY, Tony e LOWE, Philip (1984), «Introduction: Locality, Rurality and Social Theory» in Bradley, T. y
Lowe, P. (orgs.) Locality and Rurality: Economy and Society in Rural Regions: 1-24, Norwich: Geo Books.
BRANCO, Camilo Castelo [1971 (1876)], Novelas do Minho, Lisboa: A. M. Pereira.
BRANCO, Jorge Freitas (1987), Camponeses da Madeira. As bases materiais do quotidiano no Arquipélago, Lisboa:
D. Quixote.
BRANDÃO, Maria de Fátima e FEIJÓ, Rui (1979), «O discurso reformador de Mouzinho da Silveira» in J. Reis et al.
(orgs.) O Século XIX em Portugal: 267-288, Lisboa: Presença, Gabinete de Investigações Sociais.
BRANDÃO, Fátima e ROWLAND, Robert (1980), «História da propriedade e comunidade rural: questões de
método» in Análise Social, vol XVI, 61-62:173-207.
BRANDES, Stanley (1975), Migration, Kinship and Community: Tradition and Transition in a Spanish Village, Nova
Iorque: Academic Press.
BRANDES, Stanley (1976), «La Soltería or Why People Remain Single in Rural Spain» in Journal of
Anthropological Research, vol 32, 3: 205-233.
BRASS, Tom (1986), «"Cargos" and Conflict: The Fiesta System and Capitalist Development in Eastern Peru» in The
Journal of Peasant Studies, vol XIII, 3:45-62.
BREMAN, J. C. (1969), «Veranderingen in de betrekkingen tussen landheren en landarbeiders in ZuidGujarat, India»
in Sociologische Gids, vol 16, 1:395-402.
BRETTEL, Caroline (1983), «Emigração, a Igreja e a Festa Religiosa do Norte de Portugal: estudo de um caso» in
Estudos Contemporâneos, 5:175-204.
BRETTEL, Caroline (1991), Homens que partem, Mulheres que esperam. Consequências da emigração numa
freguesia minhota, Lisboa: Publicações Dom Quixote.
BRITO, Joaquim Pais de (1989), A aldeia, as casas: organização comunitária e reprodução social numa aldeia
transmontana(Rio de Onor), Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (policopiado
).
BRITO, Joaquim Pais de (1991), «A taberna: lugar e revelador da aldeia» in J.P. Brito e B. J. O'Neill (orgs.), Lugares
de Aqui: 167-199, Lisboa: Dom Quixote.
BRITO, M. Raquel V. Soeiro de (1948), O Soajo. Notas Geográficas acerca de uma aldeia do Minho Alto, Lisboa:
Instituto para a Alta Cultura, Centro de Estudos Geográficos.
BROWN, Judith (1970), «A Note on the Division of Labor by Sex» in American Anthropologist, vol 72, 5:1073-1078.
BURGUETE, J.A.G.M. (1978), O Caso de Rio Maior, Lisboa: O Século.
BURGUIERE, André (1972), «De Malthus à Max Weber: le mariage tardif et l'esprit d'entreprise» in Annales, 27:
1128-1138.
BUVE, R. (1969), «Patronage op het Mexikaanse platteland» in Sociologische Gids, vol 16, 1: 419-432.
CABRAL, João de Pina (1984), «Comentários críticos sobre a casa e a família no Alto Minho Rural» in Análise
Social, XX, 81-82:263-284.
CABRAL, João de Pina (1989), Filhos de Adão, filhas de Eva. A visão do mundo camponesa no Alto Minho, Lisboa:
Publicações Dom Quixote.
CABRAL, João de Pina (1991), Os contextos da Antropologia, Lisboa: Difel.
CABRAL, Manuel Villaverde (1974), Materiais para a história da questão agrária em Portugal, séculos XIX e XX,
Porto: Inova.
CABRAL, Manuel Villaverde (1976), O desenvolvimento do capitalismo em Portugal, Lisboa: Regra do Jogo.
CABRAL, Manuel Villaverde (1978), «Agrarian Structures and Recent Rural Movements in Portugal» in The Journal
of Peasant Studies vol 5, 4: 411-445.
CABRAL, Manuel Villaverde (1979), Portugal na alvorada do século XX, Lisboa: Regra do Jogo.
CABRAL, Manuel Villaverde (1983), «A economia subterrânea vem ao de cima: estratégias da população rural
perante a industrialização e a urbanização» in Análise Social, vol XIX, 76: 199-234.
CABRAL, Manuel Villaverde (1986), «Etat et Paysannerie. Politiques Agricoles et Strategies Paysannes au Portugal
depuis la Seconde Guerre Mondiale» in Sociologia Ruralis, vol XXVI, 1: 6-19.
CABRAL, Manuel Villaverde (1987), «Pluriactivité et stratégies paysannes d'abandon de l'agriculture: deux
exemples» in Information sur les Sciences Sociales, 26, 2:319-344.
CALDAS, Eugénio Castro (1947), Formas de exploração da propriedade rústica, Lisboa: Sá da Costa.
CALDAS, Eugénio Castro (1964), «Aspectos da resistência ao desenvolvimento na agricultura» in Análise Social, 7-
8:463-471.
CALLIER-BOISVERT, Colette (1966), «Soajo - une communauté féminine rurale de !'Alto Minho» in Bulletin des
Études Portugaises, 27:237-284.
CALLIER-BOÍSVERT, Colette (1968), «Remarques sur le systeme de parenté et sur la farnille au Portugal» in
L'Homme, vol VIII, 1:87-103.
CAMPBELL, John K. (1964), Honour, Family and Patronage: A Study of Institutions and Moral Values in a Greek
Mountain Community, Oxford: Clarendon Press.
CAMPBELL, John K. (1968), «Two Case Studies ofMarketing and Patronage in Greece» in J. G. Peristiany (org.)
Contributions to Mediterranean Sociology:143-154, Paris, Haia: Mouton e Co.
CANCIAN, Frank (1974), «New Patems of Stratification in the Zinacantan Cargo System» in Journal of
Anthropological Research, vol 30, 3:164-173.
CAPELA, José Viriato (1984), «Os rendimentos dos párocos do concelho e arciprestado de Barcelos nos fins do
antigo regime e durante o século XIX» in Barcellos Revista, vol 2, 1:59-97, Barcelos: Câmara Municipal.
CAPELA, José Viriato (1989), A Câmara, a Nobreza e o Povo do concelho de Barcelos, Barcelos: Barcellos Revista.
CAPELA, José Viriato e NUNES, João Arriscado (1983), «O Concelho de Barcelos do Antigo Regime à Primeira
República - Fontes para o seu estudo» in Barcellos Revista, vol 1, 2:204-268.
CARDOSO, Fernando e FALLETO, E. (1971), Dependência e desenvolvimento em sociedades dependentes, Rio de
Janeiro: Zahar Editores.
CARQUEJA, Bento (1916), O povo portuguez, Porto: Livraria Chardron.
CARRIERE, Jean (1981), Landowners and Politics in Chile: a Study of the «Sociedad Nacional de Agricultura»,
1932-1970, Amesterdão: CEDLA.
CARRIERE, Jean et ai. (1989), «lntroduction: Proletarianisation, Industrialisation and Pattems of Action» in J.
Carriere, N. Haworth e J. Roddick (orgs.), The State, Industrial Relations and the Labour Movement in Latin
America, Basingstoke: Macmillan.
CARVALHO, Agostinho de (1984), Os pequenos e médios agricultores e a política agrária no período 1960-1975,
Oeiras: Instituto Gulbenkian de Ciência, Centro de Estudos de Economia Agrária.

376
Bibliografia

CASSIA, Paul Sant (1982), «Property in Greek Cypriot Marriage Strategies, 1920-1980» in Man, vol XVII, 4:643-
663.
CASTILLO, Angel Montes del (1989), Simbolismo y poder: un estudio antropológico sobre compadrazgo y
priostrazgo en una comunidad andina, Barcelona: Anthropos.
CASTLES, Stephen e KOSACK, Godula (1973), Immigrant Workers and Class Structure in Western Europe,
Londres: Oxford University Press.
CASTRO, Armando de (1945), Alguns aspectos da agricultura nacional, Coimbra: Coimbra Editora.
CASTRO, Armando de [1980 (1971)], Estudos de história sócio-económica de Portugal, Porto: Limiar.
CASTRO, Armando de (1981), História Económica de Portugal II, Lisboa: Caminho.
CASTRO, José Ferreira de (1949), Emigrantes, Lisboa: Guimarães Editores.
CAUSI, Luciano Li (1975), «Anthropology and Ideology: The Case of Patronage in Mediterranean Societies» in
Radical Sciences Journal, 1:72-89.
CAVACO, Carminda (1980), A agricultura a tempo parcial, Lisboa: Universidade de Lisboa, Centro de Estudos
Geográficos.
CAVACO, Carminda (1981), «A pluriactividade na pequena agricultura» in Revista Crítica de Ciências Sociais,
7/8:171-193.
CEPEDA, Francisco José Terroso (1988), Emigração, regresso e desenvolvimento no nordeste interior português,
Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (policopiado).
CERQUEIRA, Cristina (1987), L' organisation sociale dans une village du Nord-Est du Portugal a travers les
techniques et rituels de l' abbatage du cochon, Serra do Barroso, Paris: L'Université de Paris X
(policopiado).
CERQUEIRA, Silas (1973), «L'Église Catholique et la Dictature Corporatiste Portugaise (1910-1972)» in Revue
Française de Sciences Politiques, vol 23, 3:473-513.
CHAMPAGNE, Patrick (1975), «La reestructuration de l'espace villageois» in Actes de la Recherche en Sciences
Sociales, 3:43-67.
CHAMPAGNE, Patrick (1977), «La fête au village» in Actes de la Recherches en Sciences Sociales, 17-18: 73-84.
CHAYANOV, Alexander [1966 (1925)], The Theory of Peasant Economy, organizado por D. Thomer, B. Kerblay y
R.E. Smith con lntroducción de T. Shanin, Wisconsin: The University ofWisconsin Press.
CHAYANOV, Alexander [1976 (1924)], «Teoria dos sistemas económicos não capitalistas» in Análise Social vol XII,
46:478-502.
CHRISTIAN, William, Jr. (1972), Person and God in a Spanish Valley, Nova Iorque e Londres: Seminar Press.
CHRISTIAN, William, Jr. (1973), «Holy People in Peasant Europe» in Comparative Studies in Society and History,
15, 1:106-114.
COELHO, António Borges (1981), A revolução de 1383, Lisboa: Çaminho.
COELHO, Maria Helena da Cruz (1990), Homens, espaços e poderes (séculos XI-XVI), I - Notas do Viver Social,
Lisboa: Livros Horizonte.
COHEN, Abner (1969), «Political Anthropology: the Analysis of the Symbolism of Power-Relations» in Man, vol 4,
2:215-235.
COHEN, G. A. (1978), Karl Marx's Theory of History. A Defense, Nova Prínceton University Press.
COLE, Sally (J.991), Women of the Praia. Work and Lifes in a Portuguese Coastal Community, Princeton, Nova
Jersey: Princeton University Press.
COLLIN, Claude (1975), «Revolution et contre-revolution dans ies campagnes ponugaises» in Temps Modernes, vol
31, 351:381-404.
COLLOMP, Alain (1984), «Tensions, Dissensions and Ruptures inside the Family in Seventeenth-and-Eighteenth-
Century Haute Provence» in H. Medick e D. Sabean (orgs.) Interest and Emotion: Essays on the Study of
Family and Kinship: 145-170, Cambridge/ Paris: Ca.rnbridge University Press, Edition de la Maison des
Sciences de l'Homme.
COMTE, August (1852), Cathéchisme positiviste, Paris: Garnier. Custódio (1983/84), «Emigrantes portugueses: o
regresso, 1960-198 l» in Revista do Centro de Estudos Demográficos, 26:73-126.
CÓNIM, Custódio (1984), «Caracterização do fluxo de retornos, 1960-70» in M. Silva et a/. (orgs.) Retorno,
Emigração e Desenvolvimento Regional em Portugal: 27-48, Lisboa: Instituto de Estudos para o
Desenvolvimento.
CORBIN, John (1979), «Social Class and Patron-Clientage in Andalusia: Some Problems of Comparing
Ethnographies» in Anthropological Quarterly, vol 52, 1:99-114.
CORDOVIL, Francisco (1979), Estrutura das explorações agrícolas. O Produto agrícola como insrrumento de análise
e determinação - Ensaio para 1968-70, Oeiras: Centro de Estudos de Economia Agrária, frlstituto
Gulbenkian de Ciência.
COSTA, padre António Carvalho da (1868), Corografia Portugueza e Descripçam Topografica do famoso Reyno de
Portugal, com notícias das fundações das Cidades, Villas e Lugares que contem Varões ilustres,
Genealogias das Familias Nobres, fundações de Conventos, Catálogos dos Bispos, maravilhas da natureza,
edifícios e outras curiosas observações, Braga: Tipographia de Domingos Gonçalves Gouveia.
COSTA, António Firmino da (1984), «Alfama: entreposto de mobilidade social» in Cadernos de Ciências Sociais,
2:3-35.
COSTA, Avelino de Jesus da (1959), O bispo D. Pedro e a organização da diocese de Braga. vol I e II, Coimbra:
Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.
COSTA, Joaquim (1990), «Festas religiosas, emigração e ostentação no Alto Minho» in Economia e Sociologia, 50:5-
27.
COSTA, Joaquín [1984 (1901)], Oligarquia y caciquismo, Colectivismo agrario y otros escritos, Madrid: Alianza
Editorial.
COSTA, Manuel Silva e (1985), Religion et idéologie dans l'instauration de la paysannerie parcelaire au Nord du
Portugal, Louvain-la-Neuve: Université Catholique de Louvain.
COSTA, Ramiro da (1975), O desenvolvimento do capitalismo em Portugal, Lisboa: Assírio e Alvim.
COULANGES, Fustel (1870), La Cité Antique, Paris: Hachette.
CRUMMETT, Maria de los Angeles (1985), «Class, Household Stmctme and the Peasantry: An Empirical Approach»
in The Journal of Peasant Studies, vol XIV, 3: 363-379.
CRUZ, Eduardo Cerqueira Machado (1985), Escritos inéditos ou dispersos, Ponte da Barca: Organização Gráfica
Lopes.
CRUZ, Manuel Braga da (1980), As origens da democracia cristã e o salazarismo, Lisboa: Presença, Gabinete de
Investigações Sociais.
CUNHA, Fernanda de M. (1932), Notas etnográficas sobre Barcelos, Porto: Imprensa Portuguesa.
CUNHAL, Álvaro [1974 (1964)], Rumo à Vitória, Porto: Edições A Opinião.
CUNHAL, Alvaro (1966), Contribuição ao estudo da questão agrária I e II, Lisboa: Avante.
CUTILEIRO. José (1977), Ricos e no Alentejo (Uma sociedade rural portuguesa), Lisboa: Sá da Costa.
CUTILEIRO, José (1988), «Honra, vergonha e amigos» in J.G. Peristiany (org.) Honra e Vergonha. Valores das
sociedades mediterrânicas: IX-XXVII, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
DAHRENDORF, Ralf (1959), Class and Class Conf1ict in Industrial Society, Londres: Routledge & Kegan Paul Ltd.
DALTON, George (1972), «Peasantries in Anthropology and History» in Current Anthrology, vol 13, 3-4:385-407.
DAMIANAKOS, Stathis (1985), «Banditisme et imaginaire pastoral en Grece: XIX début XX e siècle» in Études
Rurales, 97-98:219-240.
DAVIES, James C. (1962), «Toward a Theory of Revolution» in American Sociological Review, vol XXVII, 1:5-19.
DAVIS, John (1977), People of the Mediterranean: An Essay in Comparative Social Anthropology, Londres:
Routledge & Kegan Paul.
DAVIS, Kingsley (1963), «The Theory of Change and Response in Modern Dernographic History» in Population
Index, 29:345-366.
DESCAMPS, Paul (1935), Le Portugal: la vie sociale actuelle, Paris: Firmin-Didot et C.ie.
DIAS, Jorge (1961), «O que se entende por antropologia cultural» e «Problemas de método em estudos de
comunidade» in Ensaios Etnológicos, 52:1-22, 39-55, Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, Centro de
Estudos Políticos e Sociais.
DIAS, Jorge (1964), «Cornmunity Studies in Portugal» in Portuguese Contribution to Culture: 63-93, Joannesburgo:
Witwaterstrand University Press.
DIAS, Jorge [1981 (1948)], Vilarinho das Furnas: uma aldeia comunitária, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda.
DIAS, Jorge [1984 (1953)], Rio de Onor. Comunitarismo agro-pastoril, Lisboa: Presença.
DIAS, José Silva (1960), Correntes de sentimento religioso em Portugal, Coimbra: Universidade de Coimbra.
DIAS, José Silva (1979), «O vintismo: realidades e estrangulamentos políticos» in J. Reis ei al. (orgs.), O Século XIX
em Portugal: 303-308, Lisboa: Presença/Gabinete de Investigações Sociais.
DIAS, Luiz Fernando de Carvalho (1969), Forais Manuelinos do Reino de Portugal e do Algarve, conforme o
exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa, Entre Douro e Minho: Edição do Autor.
DINIS, Júlio [1912 (1868)], «A Morgadinha dos Canaviais» in Obras de Júlio Dinis, vol I, Porto: Lello & Irmão
Editores.
DIXON, Ruth (1971), «Explaining Cross-Cultural Variations in Age at Marriage and Proportions Never Marrying» in
Population Studies, 25: 215-233.

378
Bibliografia

DOBB, Maurice (1950), «Reply» in Science and Society, XIV, 2:157-167.


DOUGLAS, William (1971), «Rural Exodus in Two Spanish Basque Villages: a Cultural Explanation» in American
Anthropologist, vol 73, 5: 1100-1114.
DRIESSEN, Henk (1991), «The Politics of Religion on the Híspano-African Frontier: An Historical-Anthropological
View» in E.Wolf (org.), Religious Regimes and State Formation: 237-259, Nova Iorque: State University of
New York Press.
DUBY, Georges (1973), Guerriers et paysans, Paris: Gallimard.
DUGGETT, Michael (1975), «Marx on Peasants» in The Journal of Peasant Studies, vol 2, 2:159-182.
DURÃES, Margarida (1988), «Herdeiros e não herdeiros: nupcialidade e celibato no contexto da propriedade
enfiteuta» in Revista de História Económica e Social, 21:47-56.
DURÁN, J.A. (1974), Crónicas. Agitadores, poetas, caciques, bandoleros y reformadores en Galicia, Madrid: Akal.
DURKHEIM, Émile [1977 (1893)], A divisão do trabalho social, I e II, Lisboa: Presença.
DURKHEIM, Émile [1991 (1915)], Les formes élémentaires de la vie religieuse, Paris: Librairie Générale Française.
DURKHEIM, Émile (1959), Socialism and Saint Simon, organizado por A. Gouldner, Londres: Routledge & Kegan
Paul.
DUVIGNAUD, Jean (1973), Fêtes et Civilisations, Paris: Weber.
EIJKEN, Anne (1983), «ln naam van de Madonna der Genezing: feestviering op een bedevaartsoord in Sardinie» in A.
Koster, Y. Kuiper e J. Verrips (orgs.) Feest en Ritueel in Europa: 71-91, Amesterdão: VU Uitgeverij.
EISENSTADT, Samuel N. e RONIGER, Luís (1984), Patrons, Clients and Friends. Interpersonal Relations and The
Structure of Thrust in Society, Cambridge: Cambridge University Press.
EIZNER, Nicole (1972), «Idéologie paysanne» in Tavemier et al. (orgs.) L' Univers Politique des Paysans: 317-334,
Paris: Collin.
ELIAS, Norbert [1980 (1970)], Introdução à Sociologia, Lisboa: Edições 70.
ELIAS, Norbert [1982 (1939)], Het civilisatieproces. Sociogenetische en psichogenetische onderzoekingen, I e II,
Utrecht e Antuérpia: Het Spectrum.
ELLEMERS, J. E. (1969), «Patronage in sociologisch perspectief» in Sociologische Gids, 16, l: 432-442.
EL-MESSIRI, Sawsan (1977), «The Changing Role of the Futuwa in the Social Structure of Cairo» in E. Gellner e J.
Waterbury (orgs.) Patrons and Clients in Mediterranean Societies: 239-253. Londres: Duckworth.
ENGELS, Friedrich [1973 (1895)], Over het boerenvraagstuk, Amsterdam: Pegasus.
ENNEW, Judith, HIRST, Paul e TRIBE, Keíth (1977), «"Peasantry" as an Economic Category» in The Journal of
Peasant Studies, vol 4, 4:295-322.
ERASMUS, Charles (1956), «Culture, Structure and Process: the Occurrence and Disappearance of Reciprocal Farm
Labor» in Southwestern Journal of Anthropology, vol 12, 4:444-469.
ERASMUS, Charles (1968), «Community development and the "encogido" syndrome» in Human Organisation, 27, 1:
65-74.
ESTEVÃO, João Antunes (1983), «A florestação dos baldios» in Análise Social, vol XIX, 77-78-79: 1157-1260.
ESTEVES, António Joaquim (1986), «A religião popular em Portugal» in Cadernos de Ciências Sociais, 4:63-76.
ESTRADA, Eduardo Moyano e GUZMÁN, Eduardo Sevilla (1978), «Sobre los procesos de cambio en la economía
campesina» in Agricultura y Sociedad, 9: 257-271.
ÉTIENNE, Bruno (l 977), «Clientelism in Algeria» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.) Patrons and Clients in
Mediterranean Societies: 291-307, Londres: Duckworth.
FARIS, James (1972), «Comment» to G. Foster' s «The Anatomy of Envy: a Study in Syrnbolic Behaviour» in
Current Anthropology, vol 13, 2:189-190.
FAURE, Claude (1974), Agriculture et capitalisme, Paris: Anthropos.
FEIJÓ, Rui (1992), Liberalismo e transformação social, Lisboa: Fragmentos.
FERRÃO, João (1984), «Portugal nos últimos vinte anos: estruturas sociais e configurações espaciais» in Pensamiento
Iberoamericano, Revista de Economia Política, 6: 223-236.
FERRAZ, José Manuel (1975), «O desenvolvimento sócio-económico durante a Primeira República (1910-1926)» in
Análise Social, vol XI, 42-43:454-471.
FERREIRA, Eduardo de Sousa (1977), «Actualidade e perspectivas da emigração portuguesa no contexto europeu» in
E. S. Ferreira (org.), A emigração portuguesa e o seu contexto internacional: 11-27, Lisboa: Iniciativas
Editoriais.
FERREIRA, Maria da Conceição Falcão (1990), «Pinheiros» e «Mendanhas» de Barcelos em confronto por finais do
século XV (1489-1490) in Revista de Ciências Históricas, vol V: 47-69, Porto: Universidade Portucalense.
FERREIRA, Vitor Matias (1977), Da reconquista da terra à reforma agrária, Lisboa: Regra do Jogo.
FERRO, António (1934), Salazar, Portugal et son chef, Paris.
FLANDRIN, J. F. (1975), Les amours paysannes (XVI-XIX siécle), Paris: Gallimard-Julliard.
FLYNN, P. (1974), «Class, Clientelism and Coercion: Some Mechanisms of Intemal Dependency and Control», in
Journal of Commonwealth and Comparative Politics, 12 (2): 138-156.
FONSECA, Teotónio Pereira da (1948), Barcelos, aquém e além Cávado, Barcelos: Companhia Editora do Minho.
FONTES, António Lourenço (1974), Etnografia Transmontana I: Crenças e Tradições de Barroso, Montalegre:
Edição do Autor.
FORTES, Meyer (1971), «The Developmental Cycle in Domestic Groups» in J. Goody (org.) Kinship: 85-98,
Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books,
FORTUNA, Carlos (1993), «O desenvolvimento por um fio: Portugal colonial, os têxteis de algodão e a economia-
mundo» in B. S. Santos (org.), Portugal: um retrato singular: 57-90, Porto: Edições Afrontamento.
FOSTER, George (1965), «Peasant Society and the Image of Limited Good» in American Anthropologist, vol 67,
2:293-315.
FOSTER, George [1967 (1961)], «The Dyadic Contract: A Model for the Social Structure of a Mexican Peasant
Village» in J. M. Potter, M. N. Diaz e G. M. Foster (orgs.) Peasant Society: 213-230, Boston: Little, Brown
and Company.
FOSTER, George [1972 (1958)], «The Anatomy of Envy: a Study in Symbolic Behavior» in Current Anthropology.
vol 13, 2: 165-186.
FOUCAULT, Michel (1979), Microfísica del poder, Madrid: Ediciones de la Piqueta.
FRAGATA, António (1984), A agricultura minifundiária de Entre Douro e Minho, Porto: Faculdade de Economia
(policopiado).
FRANÇA, Luís (1980), Comportamento religioso da população portuguesa, Lisboa: Moraes Editores e Instituto de
Estudos para o Desenvolvimento.
FRANK, André Gunder (1967), «Sociology of Development and the Underdevelopment of Sociology» in Catalyst,
3:20-73.
FRANK, André Gunder (1977), Acumulação, dependência e subdesenvolvimento, Lisboa: Iniciativas Editoriais.
FREEMAN, Susan Tax (1970), Neighbors. The Social Contract in a Castilian Hamlet, Chicago e Londres: The
University of Chicago Press.
FREITAS, E., ALMEIDA, J. Ferreira e CABRAL, M. V. (1976), Modalidades de penetração do capitalismo na
agricultura: Estruturas agrárias em Portugal Continental 1950-1970, Lisboa: Presença.
FRIEDMAN, Harriet (1978), «World Market, State and Family Farm: Social Bases of Household Production in the
Era of Wage Labor» in Compàrative Studies in Society anel History vol.20. 4:545-586.
FRIEDMAN, Harriet (1980), «Household Production and the National Economy: Concepts for the Analisis of
Agrarian Formations» in The Journal of Peasant Studies, vol 7, 2:158-184.
FRIEDMAN, Milton e SAVAGE, L. G. (1948), «The Utilility Analisis of Choices Involving Risk» in The Journal of
Political Economy, 56: 279-304.
FRIEDRICH, P. (1968), «The Legitimacy of a Cacique» in M. Swartz et al. (org.) Local-Level Politics Social anel
Cultural Perspectives: 243-269, Chicago: Aldine.
GALESKI, Boguslaw, (1972), Basic Concepts of Rural Sociology, Manchester: Manchester University Press.
GALJART, Benno F. (1964), «Class and "Following" in Rural Brasil» in America Latina, 7: 3-23.
GALJART, Benno F. (1969), «Patronage als integratie mechanisme in Latijns America» in Sociologische Gids, 16, 1:
402-411.
GALLAGHER, Tom (1977), «Peasant Conservatism in Portugal» in lberian Studies, vol VI:1-60.
GASPAR, Jorge e VITORINO, Nuno (1976), As eleições de 25 de Abril: geografia e imagem dos partidos, Lisboa:
Livros Horizonte.
GASSON, Ruth e ERRINGTON, Andrew (1993), The Farm Family, Bussiness, Wallingford: CAB International.
GEERTZ, Clifford (1963), Agricultural Involution. The Processes of Ecological Change in Indonesia, Berkeley, Los
Angeles e Londres: University of California Press.
GEERTZ, Clifford (1973), The lnterpretation of Cultures, Nova Iorque: Basic Books, lnc.
GELLNER, Ernest (1977), «Patrons and clients» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.) Patrons and Clients in
Mediterranean Societies: 1-6, Londres: Duckworth.
GERALDES, Alice (1979), Castro Laboreiro e Soajo: habitação, vestuário e trabalho da mulher, Lisboa: Serviço
Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico.
GERALDES, Alice (1987), Gente do minifúndio. Produção e Reprodução Social em Mudança na freguesia da
Correlhã, Braga: Universidade do Minho. Tese de doutoramento (policopiada).
GERALDES, Alice (1989), «Lavradores e artistas: diferenças e convergência» in Cadernos do Noroeste, vol lI, 2/3:
95-123.

380
Bibliografia

GIDDENS, Anthony (1984), The Constitution of Society. Outline of the Theory of Structuration, Cambridge: Polity
Press.
GILMORE, David (1977), «Patronage and Class Conflict in Southern Spain» in Man, vol 12, 3/4:446-458.
GILMORE, David (1980), The People of the Plain. Class and Community in Lower Andalusia, Nova Iorque:
Columbia University Press.
GILSENAN, Michael (1977), «Against Patron-Ciient Relations» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.) Patrons and
Clients in Mediterranean Societies: 167-183, Londres: Duckworth.
GINER, Salvador e GUZMAN, Eduardo Sevilla (1980), «The Demise of the Peasant: Some Reflections on
Ideological Inroads into Social Theory» in Sociologia Ruralis vol XX 1-2: 13-27.
GINZBURG, Cario [1980 (1976)], The Cheese and the Worms. The Cosmos of Sixteenth-Century Miller, Londres e
Henley: Routledge & Kegan Paul.
GLUCKMAN, Max (1962), Essays on the Ritual of Social Relations, Manchester: Manchester Universíty Press.
GODELIER, Maurice (1973), «Préface» in Sur les societés pré-capitalistes: textes choisis de Marx, Engels et
Lenin:13-142, Paris: Éditions Sociales.
GODELIER, Maurice [1977 (1973)], Horizontes da Antropologia, Lisboa: Edições 70.
GODELIER, Maurice (1984), «To Be a Marxist in Anthropology» in S. Mintz et al. (orgs.) On Marxian Perspectives
in Anthropology: Essays in Honor of H arry H oijer: 35-57, Malibu: Undena Publications.
GODELIER, Mauriice (1984a), L'idéel et le matériel. Pensée, économies, sociétés, Paris: Fayard.
GODINHO, Vitorino Magalhães (1978), «L'émigration portugaise (XVe-XXe siecles): une constante structurale et ies
réponses aux changements du monde» in Revista de História Económica e Social, 1: 5-32.
GODINHO, Vitorino Magalhães [1980 (1971)], Estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa: Arcádia.
GOFFMAN, Ervíng (1974), Les rites d'interaction, Paris: Minuit.
GOLDEY, Patrícia {198i ), «Emigração e estrutura familiar – estudo de um caso no Minho» in Estudos
Contemporâneos, 2/3:111-127.
GOLDEY, Patrícia (1982), «Emigrantes e camponeses: Uma análise da literatura sociológica» in Análise Social, vol
XVIII, 71:533-553.
GOLDEY, Patricia (1983), «Migração e relações de produção: a terra e o trabalho numa aldeia do Minho: 1876-1976»
in Análise Social, vol XIX, 77-78-79:995-1023.
GOLDTHORPE, J. H. (1983), «Women and Class analysis: in Defence of the Conventional View» in Sociology, 17
(4):465-488.
GONÇALVES, Albertino (1987), «O presente ausente. O emigrante na sociedade de origem» in Cadernos do
Noroeste, vol I, 1:7-30.
GONÇALVES, Albertino (1989), «O presente ausente. Vias e desvios na intelecção da emigração e da sociedade
portuguesas» in Cadernos do Noroeste, vol II, 2/3:125-153.
GOODMAN, David e REDCLIFT, Michael (1985), «Capitalism, Petty Commodity Production and the Farm
Enterprise» in Sociologia Ruralis vol XXV, 3/4:231-247.
GOODY, Jack (1972), «The Evolution of the Family» in P. Laslett e R. Wall (orgs.) Household and Famiíy in Past
Time: Comparative Studies in Size and Structure of the Domestic Group over The Past Three Centuries in
England: 103-124, Cambridge: Cambridge University Press.
GOODY, Jack (1976), Production and Reproduction: a Comparative Study of the Domestic Domain, Cambridge:
Cambridge University Press.
GOODY, Jack (1976a), «Introductíon» in J. Goody, J. Thirsk e E. P. Thompson (orgs.) Family and lnheritance, Rural
Society in Western Europe 1200-1800: 1-9, Cambridge: Cambrigde University Press.
GOODY, Jack (1977), «Against Ritual: Loosely Structured Thoughts on a Loosely Defined Topic» in S. F. Moore &
B.G. Myerhoff (orgs.), Secular Ritual, Assen, Amesterdão: Van Gorcum.
GOODY, Jack (1983), The Development of the Family and Marriage in Europe, Cambridge: Cambridge University
Press.
GOUDSBLOM, J. (1986), «Priesters en Krijgers» in Vrij Nederland, de 5-4-1986: 14-23.
GRAMSCI, António (1976), A formação dos intelectuais, Amadora: Fronteira.
GRATTON, Philipe (1971), Les luttes de classes dans les campagnes, Paris: Anthropos.
GRATTON, Philipe (1972), «Le mouvement ouvrier et la question agraire de 1870-1947» in Y. Tavemier et al.
(orgs.), L'Univers Politique des Paysans: 163-195, Paris: Collin.
GUERREIRO, Manuel Viegas (1982), Pitões das Júnias. Esboço de monografia etnográfica, Lisboa: Serviço
Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico.
GURR, Ted Robert (1970), Why Men Rebel, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press.
GUTELMAN, Míchel (1975), Estruturas e reformas agrárias, Lisboa: Edições 70.
GUZMÁN, Eduardo Sevilla (1979), La evolución del campesinado en España. Elementos para una Sociologia del
campesinado, Barcelona: Ediciones Península.
GUZMÁN, Eduardo Sevilla (1983), «El campesinado: elementos para su reconstrucción teórica en el pensamiento
social» in Agricultura y Sociedad, 27:33-77.
GUZMÁN, Eduardo Sevilla (1988), «Hacia una caracterización del Anarquismo agrario» in E. S. Guzmán e K. Heisel
(orgs.), Anarquismo y movimento jornalero en Andalucía: 23-46, Córdoba: Ediciones La Posada.
HABAKKUK, H.G. (1955), «Family Structure and Economic Change in Nineteenth Century Europe» in The Journal
of Economic History, XV:1-12.
HABERMAS, Jürgen [1981 (1976)], «Naar een reconstructie van het historisch materialisme» in J. Habermas
Marxisme en Filosofie: 183-240, Amesterdão: Boom Meppel.
HAJNAL, J. (1965), «European Marriage Patterns in Perspective» in D. V. Glass e D. E. Eversley (orgs.) Population
in History: 101-143, Londres: Edward Arnold.
HAMMEL, E.A. e LASLETT, Peter (1974), «Comparing Household Structure over Time and Between Cultures» in
Comparative Studies in Society and History, 16, l :73-109.
HARRIS, Marvin [1990 (1977)], Canibais e Reis. As origens das culturas, Li&boa: Edições 70.
HARRISON, Mark (1975), «Chayanov and the Economics of the Russian Peasantry» in The Journal of Peasant
Studies, vol 2, 4:389-417.
HARRISON, Mark (1977), «The Peasant Mode of Production in the Work of A.V. Chayanov» in The Joumal of
Peasant Studies, vol IV, 4:323-336.
HEDLEY, Max J, (1985), «Mutual Aid Between Farrn Households New Zeeland and Canada» in Sociologia Ruralis,
vol XXV. 1:26-39.
HERCULANO, Alexandre (1873), «A Emigração» (cartas) in Opúsculos II: 61-132, Lisboa: Presença, organização,
introdução e notas de Jorge Custódio e José Manuel Garcia.
HERKOVITZ, Melville [1982 (1952)], Antropología Económica: estudio de econornía comparada, Mexico: Fondo
de Cultura Económica.
HERVIEU, Bertrand (1976), «Le pouvoir au village: difficultés et perspectives d'une recherche» in Études Rurales,
63-64: 15-30.
HESPANHA, António Manuel (1984), «Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime» in A. M.
Hespanha (org.) Poder e instituições na Europa do Antigo Regime:7-89, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian
HESPANHA, Pedro (1987), «Posse da terra e reprodução da força de trabalho: o caso do Baixo Mondego» in Revista
Crítica de Ciências Sociais, 22:145-157.
HOBSBAWM, Eric (1973), «Peasants and Politics» in The Journal of Peasant Studies, vol I, l: 3-22.
HOBSBAWM, Eric [1974 (1959)], Rebeldes primitivos: estudio sobre las formas arcaicas de los movimientos
sociaies en los siglos XIX y XX, Barcelona: Ariel.
HOEBINK, P. (1979), «Vijf jaar na de 25 Apríl in de portugese landbouw» in Vijf jaar landhervorming, Wageningen:
Congres Intemational Agrarisch Centrum.
HOMANS, George (1983), «Steps to a Theory of Social Behavior» in Theory and Society, 12:1-45.
HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor [1979(1962)], Sociologica, Madrid: Taurus Ediciones.
HUIZER, Gerritt ( 1965), «Some Note on Community Developrnent and Rural Social Research» in America Latina, 8,
3:128-144.
HUIZER, Gerrit (1969), «Toe Role of Patronage in the Peasant Political Struggle in Latin America» in Sociologische
Gids, 16, 1:411-4!9.
HUIZER, Gerrit (J 970), «"Resistance to Change" and Radica! Peasant Mobilization: Foster and Erasmus
Reconsidered» in Human Organization, vol 29, 4:303-313.
HUIZER, Gerrit (1972), The Revolutionary Potential of Peasants in Latin America, Toronto, Londres: Lexington
Books.
HUIZER, Gerrit (1973), Peasant Rebellion in Latin America, Middlesex: Penguin Books.
HUIZER, Gerrit (1979), «Anthropology and Politics: From Naiveté toward Liberation» in G. Huizer e B. Mannheim
(orgs.) The Politics of Anthropology, Haia-Paris: Mouton.
HUIZER, Gerrit (1985), «Spirituality against Opression: Strength or Weakness of the Poor?» in Third World Book
Review vol I, 4-5:56-60.
HUNT, Diana (1979), «Chayanov's Model of Peasant Household Ressource Allocation» in The Journal of Peasant
Studies, vol 6, 3:247-285.
HUTCHINSON, Bertram (1966), «The Patron-Dependant Relationship in Brazil: A Preliminary Examination» in
Sociologia Ruralis, vol VI, l :3-29.

382
Bibliografia

INGLIS, Tom (1991), «The Struggle for Contrai of the Irish Body: State, Church and Society in Nineteenth Century
Ireland» in E. Wolf (org.) Religious Regimes and State Formation: 55-72, Nova Iorque: State University of
New York.
IONESCU, Ghita (1977), «Patronage under Communism» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.) Patrons and Clients in
Mediterranean Societies: 97-102, Londres: Duckworth.
ISAMBERT, F. A. (1972), «Comportement politique et attitude religieuse» in R. Metz e J. Schlick (orgs.) Politique et
foi, Troisième Colloque de CERDIC: 14-41, Estrasburgo: Cerdic Publications.
ISZAEVICH, Abraham (1975), «Emigrants, Spinsters and Priests: The Dynamics of Demography in Spanish Peasant
Societies» in The Journal of Peasant Studies, vol 2, 3:292-312.
ITURRA, Raúl [1983 (1976)], «Estratégias na organização doméstica da produção na Galiza rural» in Ler História,
1:81-109.
ITURRA, Raúl (1985), «Casamento, ritual e lucro: a produção dos produtores numa aldeia portuguesa» (1862-1983)
in Ler História, 5:58-81.
ITURRA, Raúl (1986), «Práticas religiosas em Portugal» in Aspectos do Portugal Rural: 139-155, Braga: Sociedade
Portuguesa de Estudos Rurais.
ITURRA, Raúl (1987), «A reprodução no celibato» in Ler História, 11:95-105.
ITURRA, Raúl (1989), «A religião como teoria da reprodução social» in Ler História, 15:95-110.
ITURRA, Raúl (1990), Fugirás à escola para trabalhar a terra, Lisboa: Escher.
JENKINS, R. (l 979), The Road to Alto, Londres: Pluto Press.
JOAQUIM, Augusto (1979), «Todos fomos de mais: introdução a ensaios sobre a topologia qualitativa do
salazarismo» in Análise Social, 59:675-696.
JOLLIVET, Marcel (1972), «Sociétés rurales et classes sociales» in Tavernier et al. (orgs.), L' Univers politique des
paysans: 79-106, Paris: Collin.
JOLLIVET, Marcel (1974), «Sociétés rurales et capitalisme:» in M. Jollivet (org.) Sociétés Paysannes ou Lutte de
Classes au village?: 230-269, tomo II de Les Collectivités Rurales Françaises, Paris: Collin.
JOLLIVET, Marcel (1974a), «L'analyse fonctionelle-structurelle en question ou la théorie necessaire» in M. Jollivet
(org.) Sociétés Paysannes ou Lutte de Classes au Village?, 155-229, tomo II de Les Collectivités Rurales
Françaises, Paris: Collin.
JUNTA DE COLONIZAÇÃO INTERNA (1939), Reconhecimento Geral dos baldios do Continente, I, II e III,
Lisboa: Ministério da Agricultura, S.N.I.
JUSTINO, David (1987), A formação do espaço económico nacional, Portugal 1810-1913, I e II, Lisboa: Veja.
KARDINER, Abram [1961 (1939)], The individual and His Society. The Psychodynamics of Primitive Social
Organization, Nova Iorque e Londres: Columbia University Pressº
KARSZ, S. (1974), Théorie et Politique: Louis Althusser, Paris: Fayard.
KAUFMAN, Robert (1974), «The Patron-Client Concept and Macro-Politics: Prospects and Problems» in
Comparative Studies in Society and History, 16, 3:284-308.
KAUTSKY, Karl [1974 (1897)], A questão agrária, Porto: Afrontamento.
KAYSER, Bernard (J 973), «Le nouveau systeme des relations ville-campagne» in Espaces et Sociétés, 8:3-13.
KAYSER, Bernard (1984), «Subversion des villages français» in Études Rurales, 93-94:295-324.
KAYSER, Bernard (1988), «Permanence et perversion de la ruralité» in Études Rurales, 109:75-108.
KENNY, M. (1960), «Patterns of Patronage in Spain» in Anthropological Quarterly, vol 33, 1:14-23.
KENNY, M. (1962), A Spanish Tapestry. Town and Country in Castile, Bloomington: The University of Indiana
Press.
KERBLAY, Basile ( 1971 ), «Chayanov and the Theory of Peasantry as a Specific Type of Economy» in T.Shanin
(org.) Peasant and Peasant Societies:150-160, Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books.
KERTZER, David I. (1980), Comrades and Christians. Religion and Political Struggle in Comunist ltaly, Cambridge:
Cambridge University Press.
KERTZER, David I. (1991), «The Role of Ritual in State Formation» in E. Wolf (org.) Religious Regimes and State
Formation: 85-103, Nova Iorque: Sta.te University of New York Press.
KIMBALL, Solon T. (1949), «Rural Social Organization and Cooperative Labor» in The American Journal of
Sociology, vol LV, 1:38-49.
KROEBER, A. L. [1963 (1948)], Anthropology: Culture, Patterns and Processes, Nova Iorque & Burlingame:
Harcourt, Brace & World, Inc.
KULA, Witold (1976), An Economic Theory of the Feudal System, Londres: NLB.
LAMBERT, Bernard (l 975), Os camponeses na luta de classes, Lisboa: Dom Quixote.
LANDES, David (1969), The Unbound Prometheus: Technological Change and Industrial Development in Western
Europe from 1750 to the Present, Cambridge: Cambridge University Press.
LANTERNARI, Vittorio (1963), The Religious of the Opressed. A Study of Modem Messianic Cults, Londres:
McGibon & Kee.
LASLETT, Peter (1972), «Introduction: the Hístory of the Family» in P. Laslett e R. Wall (orgs.) Household Family
in Past Time: Comparative Studies in Size and Structure ofthe Domestic Group over the Past Three
Centuries in England: 1-89, Cambridge: Cambridge University Press.
LASLETT, Peter (1980), «Introduction: Comparing Illegitimacy over Time and Between Cultures» in P. Laslett et al.
(orgs.) Bastardy and lts Comparative History: I-67, Londres: Edward Arnold.
LASLETT, Peter (1980a), «The Bastardy Prone Subsociety» in P. Laslett et al. (orgs.) Bastardy and its Comparative
History: 217-239, Londres: Edward Arnold.
LEACH, Edmund (1968), «Ritual» in D. Sills (org.), lnternational Encyclopedia of the Social Sciences, 13:520-526,
Nova Iorque: MacMillan, The Free Press.
LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de Pinho (1873), Portugal Antigo e Moderno – Dicionário Geográphico,
Estatístico, Chorográfico, Heráldico, Archeológico, Histórico, Biográphico e Etnológico de todas as
cidades, villas e freguesias de Portugal e de grande número de aldeias, Lisboa: Livraria Editora de Mattos
Moreira e Companhia.
LEAL, João (1994), As festas do Espírito Santo nos Açores. Um estudo de Antropologia Social, Lisboa: Dom Quixote.
LEANDRO, Engrácia (1992), Au-delà des apparences. L' insertion sociale des Portugais dans l' agglomeration
Parisienne, Paris: Université Paris V René Descartes.
LEITE, J. Costa (1987), «Emigração Portuguesa: a lei e os números (1855-1914)» in Análise Social, vol XXIII,
97:463-480.
LEMARCHAND, René (1981), «Comparative Political Clientelism: Structure, Process and Optic» in S. N. Eisenstadt
e R. Lemarchand (orgs.) Political Clientelism, Patronage and Development: 7-32, Londres: SAGE
Publications.
LENINE, Vladimir [1970 (1899)], O imperialismo, estádio supremo do capitalismo, Lisboa: Caminho.
LENINE, Vladimir [1977 (1899)], The Development of Capitalism in Russia, Collected Works III, Moscovo: Progress
Publishers.
LENSKI, Gerhard. [1963 (1961)], The Religious Factor. A Sociological Study of Religion' s Impact on Politics,
Economics and Family Life, Nova Iorque: Anchor Books, Doubleday & Company.
LENSKI, Gerhard (1966), Power and Privilege: a Theory of Social Stratification, Nova Iorque: Me Graw Hill Book
Company.
LE PLAY, Frédéric [1982 (1855, 1864)], «La Réforme Sociale en France, déduite de l'observation comparée des
peuples européens» e «Les ouvriers europeens», Tours: Mame in C.B. Silver (org.) Frédéric Le Play: On
Family, Work and Social Change: 239-282, Chicago, Londres: Toe University of Chicago Press.
LEPPERT, A. (1974), Die Deklassierte Klasse (Studien zur Geschichte und Ideologie des Kleinbürgertum),
Francofort am Main: Fischer Taschenbuch Verlag.
LERNER, D. (1958), The Passing of Traditional Society, Modernizing the Middle East, Nova Iorque: Toe Free Press
of Glencoe.
LEWIN, Linda (1987), Politics and Parentela in Paraíba. A Case Study Family-Based Oligarchy in Brazil, Princeton,
Nova Jersey: Princeton University Press.
LEWIS, Jim e WILLIAMS, Allan (1986), «Factories, Farms and Families. The Impacts of Industrial Growth in Rural
Central Portugal» in Sociologia Ruralis, vol XXVI, 3/4:320-344.
LIMA, Aida Valadas (1983), «Contribuição para o estudo da mercantilização do sector agrícola» in Análise Social,
vol XIX, 77-78-79:439-475.
LIMA, Aida Valadas (1986), «Agricultura a tempo parcial em Portugal – uma primeira aproximação à sua
quantificação» in Análise Social, vol XXII, 91:371-379.
LINTON, Ralph [1952 (1947)], The Cultural Background of Personality, Londres: Routledge & Kegan Paul Ltd.
LIPTON, Michael (1968), «The Theory of the Optimising Peasant» in The Journal of Development Studies, 4, 3:327-
351.
LLOBERA, Joseph R. (1979), «Tecno-Economic Determinism and the Work of Marx on Pre-Capitalist Societies» in
Man, 14, 2:249-270.
LLOYD, Peter (1971), Classes, Crises and Coups. Themes in the Sociology of Developing Countries, Londres:
McGibbon & Kee.
LOIZOS, Peter (1975), «Changes in Property Transfers Among Greek Cypriot Villagers» in Man, 10:503-523.
LOIZOS, Peter (1977), «Politics and Patronage in a Cypriot Village, 1920-70» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.)
Patrons and Clients in Mediterranean Societies: 115-135, Londres: Duckworth.

384
Bibliografia

LONG, Norman (1986), Commoditization: Thesis and Antithesis. Some Critical Thoughts, Braga: XIII Congresso de
Sociologia Rural (policopiado).
LOPES, A. Simões (1980), Desenvolvimento Regional. Problemática, Teoria, Modelos, vol I, Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian.
LOPES, Arsénio Almeida (1984), O comunitarismo nas Terras de Nóbrega» in Terras de Nóbrega e de Barca, Ponte
da Barca: Câmara Municipal de Ponte da Barca (policopiado).
LOPES, Fernando Farelo (1991), «Caciquismo e política em Portugal» in Sociologia, Problemas e Práticas, 9:127-
137.
LOPREATO, J. e HAZELRIGG, L. (1972), Class, Conflict and Mobility, San Francisco: Chandler Publishing
Company.
LOURENÇO, Eduardo (1978), O labirinto da saudade, Lisboa: Dom Quixote.
LOURENÇO, Nelson (1991), Família Rural e Indústria. Mudança Social na região de Leiria, Lisboa: Fragmentos.
LUHMANN, Niklas [1982 (1970)], The Differentiation of Society, Nova Iorque: Columbia University Press.
LUKACS, George (1976), «A consciência de classe» in O. Velho et al. (orgs.) Estrutura de classes e estratificação
social: 11-59, Rio de Janeiro: Zahar Editores.
LUXEMBURGO, Rosa [1967 (1912)], L'accumulation ducapital, Paris: Editions Sociales.
MACIEL, Domingos de C. B., «Um episódio grotesco... numa recolha do sábio José Leite de Vasconcelos» e
«Capelas do Vale do Neiva» in C. N. de O. Maciel et al. (orgs.) (1982), Vale do Neiva, Subsídios
Monográficos: 263-403, Barcelos: Companhia Editora do Minho.
MACIEL, Manuel Justino Pinheiro (1979), «Durrães ou emigração como alternativa» in O Distrito de Braga, vol IV,
2." série (VIII): 17-173.
MAINE, Henry Sumner [1880 (1861)], Ancient Law, Londres: John Murray.
MALDONADO, Luís (1989), «La religiosidad popular» in C. Alvaréz Santaló et al. (orgs.) La religiosidad popular. I.
Antropologia e Historia: 30-43, Barcelona: Anthropos
MALEFAKIS, E. (1980), «Two Therian Land Reforms Compared: Spain 1931-37 and Portugal 1974-78» in A.
Barros (org.) A agricultura latifundiária na Península Ibérica: 455-486, Oeiras: Centro de Estudos de
Economia Agrária, Instituto Gulbenkian de Ciência.
MALINOSVSKI, Bronislaw (1944), A Scientific Theory of Culture and Other Essays, Nova Iorque: The University of
North Carolina.
MANDEL, Emest (1962), Traité d' économie marxiste, II, Paris: Union Générale d'Editions.
MANN, Susan A. e DICKlNSON, James M. (1978), «Obstacles to the Development of a Capitalist Agriculture» in
The Journal of Peasant Studies, vol 5, 4:466-481.
MANNHEIM, K [1976 (1929)], Ideologia e utopia, Rio de Janeiro: Zahar Editores.
MARCONDES, J.V. Freitas (1948), «Mutirão or Mutual Aid» in Rural Sociology, vol 13, 4:374-384.
MARQUES, A. H. Oliveira. (1978), Introdução à história da agricultura em Portugal, Lisboa: Cosmos.
MARQUES, A. H. Oliveira. [1981-85 (1972)], História de Portugal, vol I, II e III, Lisboa: Palas Editores.
MARQUES, António e BAIRRADA, Mário (1982), «As classes sociais na população activa portuguesa, 1950-198»,
in Análise Social, vol XVIII, 72-73-74: 1279-1297.
MARSHALL, Alfred [1954 (1890)], Princípios de Economía, Madrid: Aguilar.
MARTINS, Joaquim P. Oliveira (1956), Fomento Rural e Emigração, Lisboa: Guimarães Editora.
MARTINS, Joaquim P. Oliveira [1982 (1883)], Portugal Contemporâneo, vol II, Lisboa: Europa-América.
MARTINS, Júlio Silva (1973), Estruturas agrárias em Portugal Continental, I e U, Lisboa: Prelo Editora.
MARTINS, Moisés Lemos (1990), O olho de Deus no discurso salazarista, Porto: Afrontamento.
MARX, Karl [1970 (1869)], De achttiende Brumaire van Louis Bonaparte, Amesterdão: Pegasus.
MARX, Karl [1973 (1859], «Formes qui précedent la production capitaliste» in M. Godelier (org.) Sur les sociétés
précapitalistes: textes choisis de Marx, Engels et Lenine: 180-226, Paris: Sociales.
MARX, Karl. [1973a (1881)], «Lettre de Karl Marx à Véra Zassoulitch» in M. Godelier (org.) Sur les sociétés
précapitalistes: textes choisis de Marx, Engels et Lenine: 318-342, Paris: Éditions Sociales.
MARX, Karl [1974 (l859)], Zur Kritik der Politischen Okonomie, Nijmegen: SUN.
MARX, Karl [1974a (1867)], O Capital, I e II, Lisboa: Delfos.
MARX, Karl [1974b (1895)], De klassenstrijd in Frankrijk, Amesterdão: Pegasus
MARX, Karl (1982), «Pour une Critique de la Philosophie du Droit de Hegel» in Oeuvres, III, Paris:
Gallimard/Pléiade.
MARX, Karl e ENGELS, Frederic [1972 (1846)], De Duitse ldeologie I, Nijmegen: SlJN.
MATTOSO, José (1985), Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325), I e II, Lisboa:
Estampa.
MATTOSO, José (1985a), Portugal Medieval. Novas Interpretações, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
MAUSS, Marcel [1993 (1924)], «Essai sur le don. Forme et raison de l'échange dans les sociétés archaiques» in M.
Mauss Sociologie et Anthropologie: 143-279, Paris: Quadrige, Presses Universitaires de France.
MCDONALD, J. S. (1956), «Italy's Rural Social Structure and Emigration» in Revista de Occidente, XII, 5:437-456.
MCDONALD, John e MACDONALD, Leatrice D. (1964), «Chain Migration, Etnic Neighborhood Formation and
Social Networks» in Millbank Memorial Fund Quaterly 42:82-97.
MEDEIROS, Fernando (1978), A sociedade e a economia portuguesa nas origens do salazarismo, Lisboa: A Regra
do Jogo.
MEDEIROS, Fernando (1988), «Um sistema social de espaços múltiplos – a autonomia do local na sociedade
portuguesa» in Revista Crítica de Ciências Sociais, 25/26:143-162.
MEDEIROS, Isabel (1984), Estruturas pastoris e povoamento na Serra da Peneda, Lisboa: INIC, Centro de Estudos
Geográficos da Universidade de Lisboa.
MEDICK, Hans (1976), «The Proto-Industrial Family Economy: the Structural Function of Household and Family
During the Transition From Peasant Society to Industrial Capitalism» in Social History, 3:291-315.
MEDICK, Hans e SABEAN, David Warren (1984), «Introduction» e «Interest and Emotion in Family and Kinship
Studies: a Critique of Social History and Anthropology» in H. Medick e D. W. Sabean (orgs.), lnterest and
Emotion: Essays on the Study of Family and Kinship: 1-27, Cambridge/Paris: Cambridge University Press
e Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme.
MEILLASSOUX, Claude (1977), Terrains et Théories, Paris: Anthropos.
MENDES, Fernando Ribeiro (1983), «O sector agrícola, a economia nacional e as relações de troca intersectoriais
(1950-1980)» in Análise Social, XIX, 77-78-79:421-438.
MENDRAS, Henri (1974), «Un schéma d'analyse de la paysannerie française» in M. Jollivet (org.), Sociétés
Paysannes ou Lutte de Classes au Village, tomo II de Les Collectivités Rurales Françaises: 11-38, Paris:
Collin.
MENDRAS, Henri (1976), Sociétés paysannes, Paris: Collin.
MENEZES, M. Manuela Pimentel de Sousa (1987), «Emigração e pequena agricultura: reflexão a partir de um caso
concreto: freguesia do Soajo» in III Xornadas Agrarias Gallegas: A pequena agricultura, Corunha:
Diputación Provincial.
MESQUITA, Dídirno V. H. C. V. B. (1982), «O Zé do Telhado em Balugães» in C. N. de O. Maciel et al. (orgs.),
Vale do Neiva. Subsídios Monográficos: 247-251, Barcelos: Companhia Editora do Minho.
MIGDAL, Joel S. (1974), Peasants, Politics and Revolution, Princeton: Princeton University Press.
MINGIONE, Enzo e PUGLIESE, Enrico (1987), «A difícil delimitação do "urbano" e do "rural": alguns exemplos e
implicações teóricas» in Revista Crítica de Ciências Sociais, 22:83-99.
MINTZ, Sidney W. (1973), «A Note on the Definition of Peasantries» in The Journal of Peasant Studies, vol I, 1:91-
106.
MINTZ, Sidney e WOLF, Eric [1967(1950)] «An Analysis of Ritual Co-parenthood (Compadrazgo)», in J. M. Potter,
M. N. Diaz e G. M. Foster (orgs.) Peasant Society: 174-199, Boston: Little, Brown and Company.
MITTERAUER, Michael e SIEDER, Reinhard (1982), The European Family. Patriarchy to Partnership from the
Middle Ages to the Present, Oxford: Basil Blackwell.
MOLLARD, Aimedée (1977), Paysans exploités, Grenoble: Presses Universitaires.
MÓNICA, Filomena (1978), Educação e Sociedade no Portugal de Salazar, Lisboa: Presença.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo (1985), «Lavradores, frades e forais: revolução liberal e regime senhorial na comarca de
Alcobaça (1820-1824)» in Ler Hist6ria, 4:31-87
MONTEIRO, Nuno Gonçalo (1990), «Societat Rural i actituds polítiques a Portugal (1820-1834)» in J. M. Fradera, J.
Millan e R. Garrabou (orgs.) Carlisme i moviments absolutistes: 127-150, Barcelona: Eumo Editorial.
MONTEIRO, Paulo (1985), Terra que já foi terra, Lisboa: Edições Salamandra.
MOORE, Barrington, Jr. (1966), Social Origins of Dictatorship and Democracy. Lord and Peasant in the Making of
the Modern World, Boston: Beacon Press.
MOORE, E. P. (1975), «Cooperative labour in Peasant Agriculture» in The Journal of Peasant Studies, vol II, 3:270-
291.
MOREIRA, Manuel Belo (1986), «A agricultura portuguesa: uma apresentação» in Portugal Rural, Braga: Sociedade
Portuguesa de Estudos Rurais.
MOURÃO, Isabel M. C. G. e BRITO, Luís Miguel C. M. (1983), O jovem e a agricultura familiar no Vale do Lima,
Lisboa: Universidade Técnica de Lisboa.
MOUZELIS, Nicos (1977), «The Debate on the New-Marxist Approach to Development» in N. Mouzelis (org.)
Modern Greece: Facets of Underdevelopment: 33-55, Londres: Macmillan Press.

386
Bibliografia

MOUZELIS, Nicos (1978), «Class and Clientelistic Politics: the Case of Greece» in The Sociological Review, vol 26,
3:471-497.
MYRDAL, Gunnar [1959 (1957)], Teoría Econ6mica y regiones subdesarrolladas, México: Fondo de Cultura
Económica.
NASH, Manning (1971), «Market and Indian Peasant Economies» in T. Shanin (org.), Peasants and Peasant
Societies: 161-177, Harmondsworth, Middlesex: Penguin.
NEUMAN, J. von e MORGENSTERN, Oskar [1964 (1944)], Theory of Games and Economic Behavior, Nova Iorque:
Wiley.
NEWBY, Howard (1975), «Toe Deferential Dialectic» in Comparative Studies in Society and History, 17, 2: 139-164.
NEWBY, Howard e GUZMÁN, Eduardo Sevilla (1983), lntroducción a la Sociología Rural: 13-135, Madrid: Alianza
Editorial.
NICHOLAS, Ralph W. (1966), «Segmentary Factional Political Systems» in M. Swartz et al. (orgs.), Political
Anthropology: 49-59, Chicago: Aldine.
NORONHA, Sebastião Matos e (1697), Constituiçoens Synodaes do Arcebispado de Braga ordenadas no anno de
1639 pelo illustríssimo senhor arcebispo D. Sebastião de Matos e Noronha, Lisboa: Miguel Deslandes.
NUNES, Adérito Sedas (1964), «Portugal, sociedade dualista em evolução» in Análise Social, 7/8:407-462, Lisboa:
Gabinete de Investigações Sociais.
NUNES, Adérito Sedas e MIRANDA, David (1971), O desenvolvimento em Portugal: aspectos sociais e
institucionais, Lisboa: Gabinete de Investigações Sociais.
NUNES, João Arriscado (1986), «On Household Composition in North Western Portugal. Some Critical Remarks and
a Case Study» in Sociologia Ruralis, vol XXVI, 1: 48-68.
NUNES, João Arriscado e FEIJÓ, Rui (1986), «Household Composition and Social Differentiation in North Western
Portugal in the Nineteenth Century» in Sociologia Ruralis, vol XXVI, 3:249-267.
NUNES, João Arriscado e FEIJÓ, Rui (1990), «As transformações dos "incultos" no Noroeste (1750-1900): uma
proposta de reapreciação» in Cadernos de Ciências Sociais, 8/9:45-90.
OFFENBERG, Astrid e WIT, Peter de (1980), Kleine boeren in de portugese agrarische hervorming, Amesterdão:
Universiteit van Amsterdam.
OLIVEIRA, Aurélio (1980), «A renda agrícola em Portugal durante o Antigo Regime (séculos XVII-XVIII). Alguns
aspectos e problemas» in Revista de História Económica e Social, 6: 1-56.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de (1955), «Trabalhos colectivos gratuitos e recíprocos em Portugal e no Brasil» in
Revista de Antropologia, São Paulo, vol. 3, 1:21-43.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, GALHANO, Fernando e PEREIRA, Benjamim (1974), «Rio de Onor 1973»
inMemoriam Jorge Dias, vol I, Lisboa: I.A.C.-J.I.C.V.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de (1984), Festividades cíclicas em Portugal, Lisboa: Dom Quixote.
OLIVEIRA, Miguel de (1950), As paróquias rurais portuguesas: sua origem e formação, Lisboa: União Gráfica.
O'NEILL, Brian Juan (1984), Proprietários, lavradores e jornaleiras, Lisboa: Dom Quixote.
O'NEILL, Brian Juan (1990), «Repensando trabalhos colectivos lúdicos. A matança do porco em Alto Trás-os-
Montes» in Estudos em Homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira:411-520, Lisboa: Instituto Nacional de
Investigação Científica.
PAHL, R. E. (1966), «The Rural-Urban Continuum» in Sociologia Ruralis, vol VI, 3-4: 299-329.
PAIGE, Karem E. e PAIGE, Jeffrey M. (1981), The Politics of Reproductive Ritual, Berkeley: University of
California Press.
PARKIN, F. (1979), Marxism and Class Theory: a Bourgeois Critique, Londres: Tavistock Publications.
PARSONS, Talcott (1956), «Family Structure and the Socialization of the Child» in T. Parsons e R. Bales (orgs.),
Family, Socialization and lnteraction Process: 35-131, Londres: Routledge & Kegan Paul.
PARSONS, Talcott (1963), «Family and Church as Boundary Structures» in N. Bimbaum e G. Lenzer (orgs.),
Sociology and Religion, Nova Jersey: Prentice Hall.
PARSONS, Talcott (1964), «Evolutionary Universals of Society» in The American Sociological Review, 29: 339-357.
PARSONS, Talcott [1966 (1953)], «On the Concept of Political Power» in R. Bendix e S. Lipset (orgs.), Class, Status
and Power: 240-265, Nova Iorque: Toe Free Press.
PARSONS, Talcott [1967 (1953)], «Una revisión analítica de la teoria de la estratificación social» in Ensayos de
Teoría Sociológica: 333-378, Buenos Aires: Paidós.
PARSONS, Talcott [1988 (1951)], El sistema social, Madrid: Alianza Editorial.
PARSONS, Talcott e WHITE, W. (1961), «The Link between Character and Society» in S.M. Lipset e L. Lowenthal
(orgs.), Culture and Social Character: the Work of David Riesman Reviewed: 89-135, Nova Iorque: Free
Press.
PASSOS, Marcelino Lyra (1990), «Cultura, ideologia e desenvolvimento» in Actas do I Congresso Português de
Sociologia, A Sociologia e a Sociedade Portuguesa na Viragem do Século, vol II: 331-342, Lisboa:
Fragmentos.
PEARSE, Andrew (1971), «Metropolis and Peasant: the Expansion of the Urban-Industrial Complex and the
Changing Rural Structure» in T. Shanin (org.) Peasants and Peasant Societies: 69-80, Harmondsworth,
Middlesex: Penguin Books.
PEDREIRA, Jorge Miguel (1987), «Indústria e atraso económico em Portugal (1800-25). Uma perspectiva
estructural» in Análise Social, vol XXIII, 97:563-596.
PEIXOTO, João (1992), «Portugal e as migrações internacionais: as perspectivas de evolução» in Actas do II
Congresso Português de Sociologia, Estruturas Sociais e Desenvolvimento, 1:849-862, Lisboa:
Fragmentos.
PElXOTO, Rocha [1974 (1908)], «Formas de vida comunalista» in M. V. Cabral (org.) Materiais para a história da
questão agrária em Portugal – Séculos XIX e XX: 391-405, Porto: Inova.
PERCEVAL, Louis (1973), Com os camponeses – Para uma agricultura moderna, Lisboa: Prelo Editora.
PEREIRA, Mário (1974), Alguns elementos para caracterização da assimetria regional agrária portuguesa, Oeiras:
Centro de Estudos de Economia Agrária, Instituto Gulbenkian de Ciência.
PEREIRA, Mário (1979), A estrutura agrária portuguesa (1968-70) – Suas relações com a população e produção
agrícolas, Oeiras: Centro de Estudos de Economia Agrária, Instituto Gulbenkian de Ciência.
PEREIRA, Miriam Halpern [1979 (1971)], Livre câmbio e desenvolvimento económico. Portugal na segunda metade
do século XIX, Lisboa: Cosmos.
PEREIRA, Miriam Halpem (1981), A portuguesa de emigração (de 1850 a 1930), Lisboa: Regra do Jogo.
PEREIRA, Teotónio (1937), A batalha do futuro, Lisboa: Clássica Editora.
PERISTIANY, J. G. [1988 (1965)], «Introdução» in Peristiany (org.) Honra e Vergonha. Valores das sociedades
mediterrâneas: 3-10, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
PETERS, Emrys Lloyd (1977), «Patronage in Cyrenaica» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.), Patrons and Clients in
Mediterranean Societies: 275-290, Londres: Duckworth.
PINTO, José Madureira (1980), «Condição camponesa e abstenção» in Praxis, 9-10:3-41, Porto: Associação de
Estudantes da Faculdade de Economia.
PINTO, José Madureira (1981), «Solidariedade de vizinhança e oposições de classe em meio rural» in Análise Social,
vol XVII, 66:199-229.
PINTO, José Madureira (1982), «Religiosidade, conservadorismo e apatia política do campesinato em Portugal» in
Análise Social, vol XVIII, 70: 107-136.
PINTO, José Madureira (1985), Estruturas sociais e práticas simbólico-ideológicas nos campos, Porto: Afrontamento.
PINTO, Manuel (1979), «A Igreja e a Insurreição Popular do Minho de 1846» in Estudos Contemporâneos, 0:83-134.
PINTOR, padre M. A. Bernardo (1976), Santuário da Senhora da Peneda: uma jóia do Alto Minho, Braga: Empresa
Diário do Minho.
PINTOR, padre M. A. Bernardo (1977), O Recontro de Val-de-Vez onde foi?, Braga: Livraria Cruz.
PISCO, Manuel e SERUYA, Luís Miguel (1984), «Perfil do emigrante retornado e sua reintegração em Portugal» in
M. Silva et al.(org.), Retorno, emigração e desenvolvimento regional: 65-109, Lisboa: IED.
PITT-RIVERS, Julian [1961 (1954)], The People of the Sierra, Chicago e Londres: The University of Chicago Press.
PLOEG, J. D. van der (1985), «Pattems of Farming Logic: The Structuraction of Labour and the Impact of
Extemalization» in Sociologia Ruralis, vol XXV, 1:5-25.
POINARD, Michel (1983), «Emigrantes portugueses: o retorno» in Análise Social, vol XIX, 75:29-56.
POINARD, Michel (1983a), «Emigrantes retomados de França» in Análise Social, vol XIX, 76:261- 296.
POINARD, Michel e ROUX, Michel (1977), «Os casos português e jugoslavo: a emigração contra o
desenvolvimento» in E. S. Ferreira (org.), A emigração portuguesa e o seu contexto internacional: 31-66,
Lisboa: Iniciativas Editoriais.
POLANAH, Luís (1985), «O colectivismo agrário no Norte de Portugal», in Antropologia Portuguesa, vol 3: 61-68,
Coimbra: Instituto de Antropologia.
POLANAH, Luís (1987), Comunidades camponesas do Parque Nacional da Peneda-Gerês, Lisboa: Serviço Nacional
de Parques, Reservas e Conservação da Natureza.
POLANAH, Luís (1990), «Espírito do Comunitarismo» in Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Homenagem a
Ernesto Veiga de Oliveira: 63-82, Porto: Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia.
POLANAH, Luís (1990a), As relações de vizinhança em Almeida de Sayago» in Estudos em Homenagem a Ernesto
Veiga de Oliveira: 597-617, Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica.
POLANYI, K. [1957 (1944)], The Great Transformation. The Political and Economic Origins of Our Time, Nova

388
Bibliografia

Iorque: Beacon Press.


POLANYI, K. [1976 (J 957)], «Aristóteles decubre la economía» in K. Polanyi, C. M. Arensberg e H. Pearson,
Comercio y mercado en los imperios antiguos, Barcelona: l 1 l.-144, Editoriai Labor.
PONTON, Rémy (1977), «Les images de la paysanneries dans le roman rural à la fin du 19 e siecle» in Actes de la
Recherche en Sciences Sociales, 17-18:62-7 L
POPKIN, Samuel (1979), The Rational Peasant. The Polítical Economy of Rural Society in Vietnam, Berkeley, Los
Angeles, Londres, Califórnia: University of Califomia Press.
PORTELA, José (1986), Trabalho cooperativo em duas aldeias de Trás-os-Montes, Porto: Afrontamento.
POULANTZAS, Nicas (1975), Classes in Contemporary Capitalism, Londres: NLB.
POWELL, John D. (1970), «Peasant Society and Clientelist Politics» in American Political Science Review, 64,
2:411-426.
PRETO, Rolão (1945), A traição burguesa, Lisboa: Tipografia Renascença.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de (1973), Bairros Rurais Paulistas, São Paulo: Livraria Duas Cidades.
RADCLIFFE-BROWN, A. R. (1989), Estrutura e função nas sociedades primitivas, Lisboa: Edições 70.
RAPP, Rayna (1983), «Peasants into Proletarians from the Household Out: An Analysis from the Intersection of
Anthropology and Social History» in J.P. Menscher (org.), Social Anthropology of Peasantry: 32-47,
Bombaim e Nova Iorque: Somaya Publications.
RAVIS-GIORDANI, George (1976) «L'alta pulitica et la bassa pulitica: valeurs et comportements politiques dans les
communautés villageoises corses (XIX-XX siecles)» in Études Rurales, 63-64: 171-189.
REDCLIFT, Michael (1973), «The Effects of Socio-Economic Changes in a Spanish Pueblo on Comrnunity
Cohesion» in Sociologia Ruralis, vol XIII, 1:1-13.
REDCLIFT, Michael (1986), «Survival Strategies in Rural Europe: Continuity and Change. An lntroduction» in
Sociologia Ruralis, vol XXVI, 3-4:218-227.
REDFIELD, Robert [1961 (1956)], Peasant Society and Culture, Chicago: University of Chicago Press.
REIS, Jaime (1984), «O atraso económico português em perspectiva histórica (1860-1913)» in Análise Social, vol
XX, 80:7-28.
REIS, José (1981), «A economia agrária e a pequena agricultura» in Revista Crítica de Ciências Sociais, 7 /8: 149-
170.
REIS, José (1988), «Território e sistemas produtivos locais: uma reflexão sobre as economias locais» in Revista
Crítica de Ciências Sociais, 25-26:127-141.
REIS, Manuela e NAVE, J. Gil (1986), «Camponeses emigrados e emigrantes regressados. Práticas de emigração e
estratégias de regresso duma aldeia da Beira Interior» in Sociologia, Problemas e Práticas, l:67-90.
REY, P. Philippe [1979 (1973)], As alianças de classes, Coimbra: Centelha.
RIBEIRO, Aquilino [1985 (1958)], Quando os lobos uivam, Lisboa: Bertrand.
RIBEIRO, Bartolomeu (1935), Senhora Aparecida de Balugães, Porto.
RIBEIRO, Manuela (1991), «Ter, ser e morrer no Barroso. A morte como meio de abordagem aos sistemas de
estratificação social» in Cadernos de Ciências Sociais, 10/11:101-122.
RIBEIRO, Orlando (1940), «Villages et communautés rurales au Portugal» in Biblos, vol XVI, 2, Coimbra: Coimbra
Editora.
RIBEIRO, Orlando (1970), Ensaios de Geografia Humana e Regional, Lisboa: Sá da Costa.
RIBEIRO, Orlando (1987), Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Lisboa: Sá da Costa.
RIEGELHAUPT, Joyce (1967), «Saloio Women: an Analysis of Informal and Formal Política! and Economic Roles
of Portuguese Peasant Women» in Anthropological Quarterly, vol 40, 3:109-126.
RIEGELHAUPT, Joyce (1973), «Festas and Padres: the Organization of Religious Action in a Portuguese Parish» in
American Anthropologist, 75:835-852.
RIEGELHAUPT, Joyce (1979), «Os camponeses e a política no Portugal de Salazar: o Estado Corporativo e o
"apoliticismo" nas aldeias» in Análise Social, vol XV, 59:505-523.
RIEGELHAUPT, Joyce (1981), «Camponeses e Estado Liberal: a Revolta da Maria da Fonte» in Estudos
Contemporâneos, 2-3:129-139.
RIEGELHAUPT, Joyce (1982), «O significado religioso do anticlericalismo popular» in Análise Social, vol XVIII,
72-73-74:1213-1229.
RODRIGO, Isabel (1986), «Feminização da agricultura» in Análise Social, vol XXII, 92-93: 643-652.
RODRIGUES, Adriano Duarte (1979), «La pratique symbolique des travailleurs immigrés» in Revista de História
Económica e Social, 4:41-51.
RODRIGUES, Ana Maria (1994) «Les relations de clientelisme en milieu urbaine. L'exemple d'une ville portugaise au
XVe siecle» in Villes et Societés Urbaines au Moyen Age: 149-161, Paris: Presses de l 'Université de Paris-
Sorbonne.
RODRIGUES, Ana Maria e DURÃES, Margarida (l 989), «Família, Igreja e Estado: a salvação da alma e o conflito
de interesses entre os poderes» in Actas do Colóquio Arqueologia do Estado: 817-836, Lisboa.
RODRIGUES, Francisco Martins (1964), «Abandono da aliança operário-camponesa» in Revolução Popular, 1:12-19.
RODRIGUES, Francisco Martins (1965), «Luta de classes ou "unidade de todos os portugueses honrados"» in
Revolução Popular, 3:63-84.
ROGERS, Everett M. (1969), Modernisation Among Peasants: The Impact of Communication, Nova Iorque: Holt,
Rinehart.
ROMERO-MAURA, J. (1977), «Caciquismo as a political system» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.), Patrons and
Clients in Mediterranean Societies: 53-62, Londres: Duckworth.
ROSTOW, W. [1964 (1960)], Etapas do desenvolvimento económico, Rio de Janeiro: Zahar Editores.
ROWLAND, Robert (1981), «Âncora e Montaria, 1827: duas freguesias do Noroeste segundo os livros de registo das
Companhias de Ordenanças» in Estudos Comtemporâneos, 2/3:199-242.
ROWLAND, Robert {1984), «Sistemas familiares e padrões demográficos em Português: questões para urna
investigação comparada» in Ler História, 3:13-32.
RUIVO, Fernando e MARQUES, Maria Manuel Leitão (1982), «Comunidade e antropologia jurídica em Jorge Dias:
Vilarinho da Furna e Rio de Onor» in Revista Crítica de Ciências Sociais, 10: 41-87.
SÁ, Isabel G. e CORTES, Nuno (1992), «A assistência à infância no Porto do século XIX: expostos e lactados» in
Cadernos do Noroeste, vol 5 (1-2): 179-190.
SÁ, Vitor de (1969), A crise do liberalismo e as primeiras manifestações das ideias socialistas em Portugal (1820-
1852), Lisboa: Seara Nova.
SAHLINS, Marshall (1960), «Political Power and the Economy in Primitive Society» in G. E. Dole e R. L. Carneiro
(orgs.), Essays in the Science of Culture in Honor of Leslie A White: 390-415, Nova Iorque: Thomas
Crowel Company.
SAHLINS, Marshall (1972), Stone Age Economics, Chicago e Nova Iorque: Aldine-Atherton, Inc.
SALAZAR, António Oliveira (1937/56), Discursos I, II, Coimbra: Coimbra Editora.
SALITOT-DION, Michèle (1977), «Stratégíes de reproduction et accumulation des patrimoines fonciers» in Études
Rurales, 65:31-48.
SAMPAIO, Alberto [1979 (1923)], Estudos históricos e económicos: as vilas do Norte de Portugal, vol I e II, Lisboa:
Editorial Vega.
SANCHIS, Pierre (1983), Arraial: Festa de um Povo. As romarias portuguesas, Lisboa: Dom Quixote.
SANTO, Moisés Espírito (1980), Freguesia rural ao norte do Tejo, Lisboa: IED.
SANTO, Moisés Espírito (1984), A religião popular portuguesa, Lisboa: A Regra do Jogo.
SANTOS, Armindo dos (1992), Heranças. Estrutura agrária e sistema de parentesco numa aldeia da Beira Baixa,
Lisboa: Dom Quixote.
SANTOS, Boaventura Sousa (1982), «O Direito e a Comunidade: as transformações recentes da natureza do poder do
Estado nos países capitalistas avançados» in Revista Crítica de Ciências Sociais, 10:9-40.
SANTOS, Boaventura Sousa (1985), «Estado e sociedade na semiperiferia do sistema mundial: o caso português» in
Análise Social, XXI, 87-88-89:869-901.
SANTOS, Maria José Azevedo (1984), «Subsídios para o estudo do concelho de Ponte da Barca, segundo o Inquérito
Paroquial de 1845» in Terras de Nóbrega e de Barca: História, Etnografia e Poesia, Ponte da Barca:
Câmara Municipal (policopiado).
SAYAD, Abdelmalek (1977), «Les trois "âges" de l'émigration algérienne en France» in Actes de la Recherche en
Sciences Sociales, 15:59-79.
SAYARI, Sabri (1977), «Political Patronage in Turkey» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.), Patrons and Clients in
Mediterranean Societies: 103-113, Londres: Duckworth.
SCHNEIDER, Jane (1971), «Of Vigilance and Virgins: Honor, Shame and Acces to Resources in Mediterranean
Societies» in Ethnology, vol X, 1:1-24.
SCHNEIDER P., SCHNEIDER J., HANSEN E. (1972), «Modernisation and Development: the Role of Regional
Elites and Non-Corporate Groups in the European Mediterranean» in Comparative Studies in Society and
History, 14:328-350.
SCHNEIDER, Susan (1980), O Marquês de Pombal e o vinho do Porto. Dependência e subdesenvolvimento em
Portugal no século X:VIII, Lisboa: A Regra do Jogo.
SCHUMPETER, Joseph [1972 (1951)], lmpérialisme et classes sociales, Paris: Minuit.
SCOTT, James (1969), «Corruption, Machine Politics and Political Change» in The American Political Science
Review, vol 63, 4:1142-1158.

390
Bibliografia

SCOTT, James (1976), The Moral Economy of the Peasant: Rebellion and Subsistence in Southeast Asia, New Haven
e Londres: Yale University Press.
SCOTT, James (1977), «Patronage or Exploitation?» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.) Patrons and Clients in
Mediterranean Societies: 21-39, Londres: Duckworth.
SCOTT, James (1977a), «Protest and Profanation. Agrarian Revolt and the Little Tradition», I e II in Theory and
Society, 4,1:1-38 e 4,2:211-246.
SCOTT, James (1985), Weapons of the Weak. Everyday Forms of Peasant Resistance, New Haven, Londres: Yale
University Press.
SCOTT, James (1990), Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts, New Haven e Londres: Yale
University Press.
SEERS, D. [1967 (1963)], «The Limitations of the Special Case» in K. Martin e J. Knapp (orgs.), The Teaching of
Development Economics, Londres: Cass.
SEGALEN, Martine [1983 (1980)], Love and Power in the Peasant Family. Rural France in the Nineteenh Century,
Chicago: Toe University of Chicago Press.
SEGALEN, Martine (1984), «“Avoir sa part”: Sibling Relations in Partible Inheritance Brittany» in H. Medick e D.
Sabean (orgs.), Interest and Emotion: Essays on the Study of Family and Kinship: 129-144,
Cambridge/Paris: Cambridge University Press, Édition de la Maison des Sciences de l'Homme.
SÉRGIO, António (1972), Breve interpretação da história de Portugal, Lisboa: Sá da Costa.
SÉRGIO, António (1974), Antologia dos Economistas Portugueses, Século XVII, Lisboa: Sá da Costa.
SERRADOR, Ana (1983), «A Festa do Santo Padroeiro numa Comunidade Rural» in Estudos Contemporâneos,
5:205-240.
SERRÃO, Joel [1977 (1972)], Emigração Portuguesa. Sondagem histórica, Lisboa: Horizonte.
SERRÃO, Joel (1985), «Notas sobre emigração e mudança social no Portugal contemporâneo» in Análise Social,
XXI, 87-88-89: 995-1004.
SERRÃO, Joel e MARTINS, Gabriela (1978), Da Indústria Portuguesa: do Antigo Regime ao Capitalismo
(Antologia), Lisboa: Livros Horizonte.
SERVOLIN, Claude (1972), «L'absorption de l'agriculture dans le mode de production capitaliste» in Y. Tavernier et
al. (orgs.), L' Univers politique des paysans: 41-105, Paris: Collin.
SEVE, Lucien (1975), Marxisme et théorie de la personalité, Paris: Editions Sociales.
SHANIN, Theodor (1971), «Introduction» e «Peasantry as a Political Factor» in T. Shanin (org.) Peasants and
Peasant Societies: 11-19, 238-263, Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books.
SHANIN, Theodor (1972), The Awkward Class. Political Sociology of Peasantry in a Developing Society: Russia
1910-1925, Londres, Oxford: University Press.
SHANIN, Theodor (1973), «The Nature and Logic of the Peasant Economy: a Generalisation», I, in The Journal of
Peasant Studies, vol I, 1:63-80.
SHANIN, Theodor (1974), «Toe Nature and Logic of the Peasant Economy: Diversity and Change», II, e «Policy and
Intervention», m, in The Journal of Peasant Studies, vol 1, 2:186-206.
SHANIN, Theodor (1979), «Definiendo al campesinado: conceptualizaciones y desconceptualizaciones. Pasado y
presente en un debate marxista» in Agricultura y Sociedad, 11:9-52.
SHORTER, Edward (1976), The Making of the Modern Family, Nova Iorque: Basic Books, Inc. Publishers.
SIEBER, W. (1986), «Part-time Agriculture and Rural Social Transformation in Central Portugal» in XIII Congresso
Europeu de Sociologia Rural, Braga (policopiado).
SILBERT, Albert (1960), Le "collectivisme agraire" au Portugal: histoire d' un probleme, Lisboa.
SILBERT, Albert (1968), Le probleme agraire portugais au temps des premieres Cortes Liberáles (1821-23), d' aprés
les documents de la Comission de l' Agriculture, Paris: PUF.
SILBERT, Albert (1977), Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal oitocentista, Lisboa: Livros Horizonte.
SILBERT, Albert (1978), Le Portugal Méditerranéen à la fin de l'Ancien Régime, XVIII-début du XIX siecle.
Contribution a l' histoire agraire comparée, vol I, II, m, Lisboa: Instituto Nacional de Investigação
Científica.
SILVA, Armando B. Malheiro da (1993), Miguelismo. Ideologia e Mito, Coimbra: Minerva.
SILVA, Augusto Santos (1994), Tempos cruzados. Um estudo interpretativo da cultura popular, Porto: Afrontamento.
SILVA, Manuel Carlos (1987), «Camponeses nortenhos: "conservadorismo" ou estratégias de sobrevivência,
mobilidade e resistência» in Análise Social, vol XXIII, 97:407-445.
SILVA, Manuel Carlos (1989), «Economia, campesinato e "Estado Novo"» in Ler História, 15:111-155.
476 Bibliografia
SILVA, Manuel Carlos e TOOR, Marga van (1978), «Kleine boeren in Manique do Intendente en cooperaties van
Torre Bela e Brinçal» in Portugalgroep (org.) Een onderzoek naar de recente ontwikkelingen in Portugese
Landbouw: Agrarische Hervorming in Portugal, Amesterdão: Universiteit van Amsterdam.
SILVA, Manuel Carlos e TOOR, Marga van (1982), Verzet van kleine boeren in Noord Portugal (traduzido para
português sob o título Sobreviver e resistir como camponeses), Amesterdão: Universiteit van Amsterdam
(policopiado).
SILVA, Manuel Carlos e TOOR, Marga van (1988), «Camponeses e patronos: o caso de uma aldeia minhota» in
Cadernos de Ciências Sociais, 7:51-80.
SILVA, Manuela et al. (1984), Retorno, emigração e desenvolvimento regional, Lisboa: IED.
SILVA, Rosa Fernanda Moreira da (1983), «Contraste e mutações na paisagem agrária das planícies e colinas
minhotas» in Estudos Contemporâneos, 5:9-115.
SILVERMAN, Sydel F. (1965), «Patronage and Community-Nation Relationships in Central Italy» in Ethnology, vol
4, 2:172-189.
SILVERMAN, Sydel F. (1967), «The Community-Nation Mediator in Traditional Central Italy» in J. M. Potter, M. N.
Diaz e G. M. Foster (orgs.), Peasant Society: 279-293, Little Brown and Company.
SILVERMAN, Sydel F. (1968), «Agricultural Organisation, Social Structure and Values in Italy: Amoral Familism
Reconsidered» in American Anthropologist, 70,1:1-20.
SILVERMAN, Sydel F. (1970), «Exploitation in Rural Central Italy: Structure and Ideology in Stratification Study»
in Comparative Studies in Society and History, 12,3:327-338.
SILVERMAN, Sydel F. (1981), «Rituals of lnequality: Stratification and Symbol in Central Italy» in G. D. Berreman
(org.), Social lnequality: Comparative and Developmental Approaches, Nova Iorque: Academic Press.
SILVERMAN, Sydel F. (1983), «The Concept of Peasant and the Concept of Culture» in J. P. Menscher (org.), Social
Anthropology of Peasantry: 7-31, Bombaim e Nova Deli: Somaya Publications.
SIMMEL, Georg [1977 (1908)], Sociologia I. Estudios sobre las formas de socialización, Madrid: Revista de
Occidente.
SJOBERG, Gideon (1965), «Community» in J. Gould e W. L. Kolb (orgs.), Dictionary of Sociology, Tavistock.
SKOCPOL, Theda (1979), «State and Revolution. Old Regimes and Revolutionary Crises in France, Russia and
China» in Theory and Society, vol 7:7-96.
SMELSER, Neil J. (1962), Theory of Collective Behavior, Londres: Routledge and Kegan Paul, Ltd.
SMITH, W. Robertson [1964 (1907)], «The Importance of Religious Practice. The Method of the Inquiry» in L.
Schneider (org.), Religion, Culture and Society. A Reader in the Sociology of Religion: 81-84, Nova Iorque
e Londres: John Wiley & Sons, Inc.
SOARES, Franquelim N. (1993), «A Arquidiocese de Braga no século XVII. Sociedade e mentalidades pelas
Visitações Pastorais (1550-1700)» in Cadernos do Noroeste, vol 6 (1-2):37-56.
SOBRAL, José Manuel (1987), Prefácio aos Apontamentos para a história da Revolução do Minho em 1846 ou da
Maria da Fonte,finda a guerra em 1847, Lisboa: Rolirn.
SOBRAL, José Manuel (1990), «Religião, relações sociais e poder. A Misericórdia de F. no seu espaço social e
religioso (séc. XIX-XX)» in Análise Social, vol XXV, 107:351-373.
SOBRAL, José Manuel e ALMEIDA, Pedro Tavares (1982), «Caciquismo e poder político. Reflexões em torno das
eleições de 1901» in Análise Social, vol XVIII, 72-74:649-671.
SOIFFER, Stephen M. e HOWE, Gary N. (1982), «Patrons, Clients and the Articulation of Modes of Production: An
Examination of the Penetration of Capitalism into Peripheral Agriculture in Northeastern Brasil» in The
Journal of Peasant Studies, vol 9, 2:176-206.
SOLINAS, Piergiorgio (1987), «A família» in F. Braudel e G. Duby (orgs.), O Mediterrâneo: os Homens e a
Herança: 59-84, Lisboa: Teorema.
SOROKIN, Pitirim e ZIMMERMAN, Carle C. (1929), Principles of Rural-Urban Sociology, Nova Iorque: Henry
Holt.
SOUSA, Tude M. de (1909), Serra do Gerez. Estudos, aspectos e paizagens, Porto: Livraria Chardron.
STIRLING, Paul (1968), «Impartiality and Personal Morality» in J. G. Peristiany (org.), Contributions to
Mediterranean Sociology: 49-64, Paris e Haia: Mouton & Co.
SUAUD, Charles (1978), La vocation, Paris: Minuit.
SWARTZ, Marc J., TURNER, Victor W. e TUDEN, Arthur (1966), «Introduction» in Swartz et al. (orgs.), Political
Anthropology: 1-41, Chicago: Aldine.
SWEEZY, Paul (1950), «The Transition from Feudalism to Capitalism» in Science and Society, XIV, 2:134-157.
TAVARES, Jean (1976), «Les paysans, l'église et la polítique dans un village portugais» in Temps Modernes, vol 31,
360:2234-2274.
TAVERNIER, Yves (1972), «Les paysans français et la politique» in Y. Tavernier et al. (orgs.), L' Univers politique

392
Bibliografia

des paysans: 109-120, Paris: Collin.


TELLES, Basílio (1903), Carestia de vida nos campos, Porto: Livraria Chardron.
TELLES, Inocêncio Galvão (1963), Apontamentos para a História do Direito das Sucessões Português, Lisboa:
Petrony.
TELO, António José (1980), Decadência e queda da I República Portuguesa, I, Lisboa: Regra do Jogo.
TENGARRINHA, José (1982), «Movimentos camponeses em Portugal na transição do Antigo Regime para a
sociedade liberal» in M. H. Pereira et al. (orgs.), O Liberalismo na Península Ibérica na primeira metade
do século XIX, vol II: 153-159, Lisboa: Sá da Costa.
TEPICHT, Jerzy (1973), Marxisme et agriculture: le paysan polonais, Paris: Colin.
THOMAS, William e ZNANIECKI, Florian (1971), «A Polish Peasant Family» in T. Shanin (org.), Peasants and
Peasant Societies: 23-29, Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books.
THOMPSON, E. P. (1967) «Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism» in Past and Present, 38:56-96.
THOMPSON, E. P. (1979), «La “economía moral”» de la multitud en la Inglaterra del siglo XVIII» in E.P.Thompson
(org.), Tradición, Revuelta y Conciencia de Clase: estudios sobre la crisis de la sociedad industrial,
Barcelona: Crítica.
THOMPSON, E. P. [1982 (1963)], The Making of the English Working Class, Harmondsworth, Middlesex: Penguin.
THORNER, Daniel [1971 (1962)], «Peasant Economy as a Category in Economic History» in T. Shanin (org.),
Peasants and Peasant Society: 202-218, Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books.
TILLY, Charles (1975), «Reflections on the History of European State-Making» in Ch. Tilly (org.), The Formation of
National States in Western Europe: 3-83, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press.
TILLY, Louise, SCOTT, Joan e COHEN, Miriam (1976), «Women's Work and European Fertility Pattems» in The
Journal of lnterdisciplinary History, 3:447-476.
TIPPS, D.C. (1973), «Modernization Theory and Comparative Study of Societies: a Critical Perspective» in
Comparative Studies in Society and History, 15: 199-226.
TOLOSANA, Carmelo Lisón (1973), «Some Aspects of Moral Structure in Galician Hamlets» in American
Anthropologist, 75, 3: 823-834.
TOLOSANA, Carmelo Lisón (1979), Antropologia Cultural de Galicia, Madrid: Akal.
TOLOSANA, Carmelo Lisón [1987 (1979)], Brujería, Estructura Social y Simbolismo en Galicia, Madrid: AKAL.
TONNIES, Ferdinand [1953 (1887)], «Estates and Classes» in Bendix e Lipset (orgs.), Class, Status and Power: 49-
63, Nova Iorque: Free Press, Londres: Collier Macmillan.
TRINDADE, Maria Beatriz Rocha (1976), «Comunidades migrantes em situação dipolar. Análise de três casos de
emigração especializada para os E.U.A., para o Brasil e para a França» in Análise Social, vol XII, 48:983-
997.
TRINDADE, Maria Beatriz Rocha (1986), «Do rural ao urbano: o associativismo como estratégia de sobrevivência»
in Análise Social, vol XXII, 91:313-330.
TRINDADE, Maria Beatriz Rocha e ARROTEIA, Jorge (1986), A Emigração, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários.
TURNER, Victor [1974 (1969)], O processo ritual: estrutura e anti-estrutura, Petrópolis: Vozes.
VALENTE, Vasco Pulido (1974), O poder e o povo: a Revolução de 1910, Lisboa: Dom Quixote.
VALENTE, Vasco Pulido (1979), «O povo em armas: a revolta nacional de 1808-1809» in Análise Social, vol XV,
57:7-48.
VAN GENNEP, Arnold (1978), Os ritos de passagem, Petrópolis: Vozes.
VERGOUPOLOS, Kostas (1978), «O capitalismo disforme. O caso da agricultura no capitalismo» in S. Amin e K.
Vergoupolos (orgs.), A questão camponesa e o capitalismo: 57-233, Lisboa: A Regra do Jogo.
VERMETTE, Luce (1986), «Les donations: activités domestiques et genre de vie: 1800-1820 et 1850-1870» in J. Goy
e J. P. Wallot (orgs.), Évolution et éclatement du monde rural: 507-515, Paris: Éditions de l 'École des
Hautes Études en Sciences Sociales.
VERNIER, Bernard (1977), «Emigration et déréglement du marché matrimonial» in Actes de la Recherche en
Sciences Sociales, 15:31-58.
VERRIPS, Jojada (1983), «Wie zijn hoofd niet koel houdt gebruikt zijn hersens» in A. Koster, Y. Kuiper e J. Verrips
(orgs.), Feest en Ritueel in Europa: 346-371, Amesterdão: VU Uitgeverij.
VIDIGAL, Luis (1988), Cidadania, caciquismo e poder, 1980-1916, Lisboa: Livros Horizonte.
VIEIRA, C. Casimiro, padre [1981 (1874)], Apontamentos para a história da revolução do Minho em 1846 ou da
Maria da Fonte escritos pelo Padre Casimiro finda a guerra em 1847, Lisboa: Antígona.
VIEIRA, José Augusto [1986-87 (1887)], O Minho Pitoresco, tomos I e II, Valença: Rotary Club de Valença.
VILAÇA, Helena (1986), «Woman, Family and Rural Community – Sociabilities in a Gerês Mountains Village»,
Braga: XIII Congresso Europeu de Sociologia Rural (policopiado).
VILAR, Pierre [1981 (1963)], Historia de España, Barcelona: Editorial Crítica.
VISSERS, Sjef (1993), «A Holy Priest and His Friends: a Devotional Movement in Contemporary Portugal» in M.
Bax e A. Koster (orgs.), Power and Prayer. Religious and Political Processes in Past and Present,
Amesterdão: VU University Press.
VITERBO, Fr. Joaquim da Santa Rosa de [1962 (1798)], Elucidário das palavras, termos e frases, Porto, Lisboa:
Livraria Civilização.
WALL, Karin (1984), «Mulheres que partem e mulheres que ficam: uma primeira análise da função social e
económica das mulheres no processo migratório» in Ler História, 3:53-63.
WALL, Karin (1986), «Agricultura e família em Portugal: elementos para uma leitura crítica» in Aspectos do Portugal
Rural: 89-106, Braga: XIII Congresso Europeu de Sociologia Rural.
WALL, Karin (1992), «Pour une sociologie des formes familiales dans la societé rurale» in A. Almeida et al. (orgs.),
Familles et Contexts Sociaux: 163-182, Lisboa: ISCTE/ClES.
WALLERSTEIN, Immanuel (1974), «The Rise and Future Demise of the World Capitalist System: Concepts for
Comparative Analyses» in Comparative Studies in Society and History, 16:387-415.
WALLERSTEIN, Immanuel [1990 (1974)], O sistema económico mundial, Porto: Afrontamento.
WATERBURY, John (1977), «An Attempt to Put Patrons and Clients in Their Place» in E. Gellner e J. Waterbury
(orgs.), Patrons and Clients in Mediterranean Societies: 329-342, Londres: Duckworth.
WATERBURY, Ronald (1975), «Non-Revolutionary Peasants: Oaxaca Compared to Morelos in the Mexican
Revolution» in Comparative Studies in Society and History, 17,1:410-442.
WEBER, Eugene (1976), Peasants into Frenchmen. The Modernisation of Rural France 1870-1914, Stanford
Califomia: Stanford University Press.
WEBER, Max [1961 (1920)], General Economic History, Nova Iorque: Collier Books.
WEBER, Max (1972), «Clase, "status" y partido» in R. Bendix e S.M. Lipset (org.), Clase, "status" y poder: 87-105,
vol II, Madrid: Euramerica.
WEBER, Max [1974 (1905)], The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, Londres: Unwin University Books.
WEBER, Max [1978 (1920)], Economy and Society, I e II, editado por G. Roth e C. Wittich, Berkeley e Londres:
University of California Press.
WEINGROD, Alex (1968), «Patrons, Patronage and Political Parties» in Comparative Studies in Society and History,
10:377-400.
WEINGROD, Alex (1977), «Patronage and Power» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.), Patrons and Clients in
Mediterranean Societies: 41-51, Londres: Duckworth.
WERTHEIM, W. (1969), «Patronage als structureel verschijnsel» in Sociologische Gids, 16, 1:362-364.
WERTHEIM, W. (1969a) «From Aliran toward Class Struggle in the Countryside of Java» in Pacific Viewpoint, vol
10, 2:1-17.
WERTHEIM, W. (1971), Evolutie en Revolutie. De golfslag der emancipatie, Amesterdão: Van Gennep.
WHITE, Caroline (1980), Patrons and Partisans. A Study of Politics in Two Southern ltalian Communities,
Cambridge: Cambridge University Press.
WILLEMS, Emilio (1963), «On Portuguese Family Structure» in K. Ishwaran (org.), lnternational Studies in
Sociology and Social Anthropology, vol I, 65-79, Leiden: E. J. Brill.
WOLF, Eric (1955), «Types of Latin American Peasantry: a Preliminary Discussion» in American Anthropologist, 51,
3:452-471.
WOLF, Eric (1956), «Aspects of Group Relations in a Complex Society: Mexico» in American Anthropologist, vol
58, 6:1065-1078.
WOLF, Eric (1957), «Closed Corporate Peasant Communities in MesoAmerica and Central Java» in Southwestern
Journal of Anthropology, vol 13, 1:1-18.
WOLF, Eric (1966), Peasants, Nova Jersey: Prentice Hall, INC.
WOLF, Eric [1974 (1969)], Les guerres paysannes du vingtieme siecle, Paris: Maspero.
WOLF, Eric [1980 (1966)], «Relaciones de parentesco, de amistad y de patronazgo en las sociedades complejas» in
M. Banton (org.), Antropología Social de las Sociedades Complejas: 19-39, Madrid: Alianza Universidad.
WOLF, Eric (1983), «On Peasant Rent» in J. P. Menscher (org.), Social Anthropology of Peasantry: 48-59, Bombaim:
Somaya Publications.
WOLF, Eric e COLE, John (1962), «Cultural Dissonance in the Italian Alps» in Comparative Studies in Society and
Hisrory, 5:1-14.
WORSLEY, P. (1964), The Third World, Londres: Weidenfeld and Nicolson.
VRIGLEY, E. Anthony (1982), «Family and Household: The Analysis of Domestic Groups» in Annual Review of
Anthropology, 8:161-205.

394
Bibliografia

WRIGHT, Eric Olin (1978), Class, Crisis and the State, Londres: NLB.
ZUCKERMAN, Alan (1977), «Clientelistic Politics in Italy» in E. Gellner e J. Waterbury (orgs.) Patronsand Clients
in Mediterranean Societies: 63-79, Londres Duckworth.

Você também pode gostar