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A noção de nação em ação: lusotropicalismo e cultura institucional na província

ultramarina de Angola (1953-1973).

Gilson Brandão de Oliveira Junior∗

Esse caráter humano da colonização portuguesa, se no Brasil é


que teve a sua expressão mais larga e ao mesmo tempo mais
feliz, é, entretanto, commum á obra colonizadora de Portugal
(Gilberto Freyre, 1940).

O lusotropicalismo não é válido para explicar a formação do


Brasil e é inteiramente falso para as circunstâncias do
colonialismo português na África (“Buanga Fele”, Mário Pinto
de Andrade, 1955).

Lusotropicalismo, lusotropicologia & civilização/cultura lusotropical: entre a


construção, a apropriação e a crítica conceitual∗∗.

Introdução: entre a teoria e a ideologia.

O conjunto de ideias concebidas pelo escritor brasileiro Gilberto Freyre, bem como os
conceitos que o caracteriza (lusotropicalismo – lusotropicologia – civilização/cultura
lusotropical), traz consigo uma série de alusões de caráter pretensamente teórico, que
estão pautadas por premissas eminentemente ideológicas em sua formulação. Essa dupla
condição (teórico-ideológica) a que este conceito está submetido, é essencial para as
reflexões sugeridas neste trabalho, a saber: a vinculação das suas ideias ao problema da
decadência ibérica oitocentista, que respectivamente reafirma e resgatam elementos da
mística imperial portuguesa diante da emergência dos novos paradigmas capitalistas – a
modernidade anglo-saxã –, e a inovação teórico-metodológica utilizada para explicar
alternativamente as particularidades do processo de colonização da América Portuguesa


Doutorando em História Social pela Universidade de Brasília; professor de História da África e História
Ibérica do ICADS (Instituto de Ciências Ambientais e Desenvolvimento Sustentável) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
∗∗
As reflexões presentes neste trabalho fazem parte do primeiro capítulo (em fase de construção) da tese
em andamento, provisoriamente intitulada De Agostinho da Silva a Agostinho Neto: a apropriação da
‘brasilidade’ na África e da ‘africanidade’ no Brasil.
que, por sua vez, se ampara pelos elementos citados anteriormente, e foi posteriormente
generalizada a todo “o mundo que o português criou”1.
Ao arriscar uma definição preliminar, poderíamos caracterizar os seus
fundamentos da seguinte maneira: a predisposição genética2 e genésica3 dos portugueses
ao contato com as populações autóctones das regiões tropicais (extra-europeias). Como
veremos adiante, os elementos basilares deste ideal já estavam presentes em suas obras,
antes mesmo da formulação conceitual propriamente dita.
Em sua obra inaugural, Casa grande e senzala (1933), o autor faz uso deste
complexo teórico-ideológico para tentar explicar as origens do Brasil, enquanto
extensão da colonização empreendida pelos portugueses na América. Até então, a forte
presença de negros africanos e seus descendentes advindos da secular vigência do
sistema escravista luso-afro-brasileiro era vista com preocupação pelas elites políticas e
culturais deste país, diante do consequente retrocesso que a sua presença representaria
no discurso identitário e nacional, segundo os paradigmas da época. A originalidade da
sua proposta residia especificamente na exaltação da mestiçagem enquanto fator
propulsor de uma civilização/cultura diferenciada e adaptada aos trópicos, que seria por
sua vez, caudatária da tradição ibérica – particularmente portuguesa.
A “maturação” deste complexo teórico-ideológico lhe permitiu a ampliação do
seu horizonte interpretativo: ao generalizar a experiência do nordeste brasileiro que
utilizara para explicar as origens do Brasil, Freyre passou a conceber que os elementos
1
Alusão ao título da obra publicada por Freyre em 1940, O mundo que o português criou: aspectos das
relações sociaes e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas, na qual expande as suas
interpretações sobre o processo de colonização empreendida pelos portugueses no nordeste brasileiro, a
todas as áreas exploradas por estes em escala mundial.
2
Este termo está associado à transmissão hereditária de caracteres físicos (neste caso, também culturais).
Segundo este princípio, as características particulares do ethos português seriam herdadas
biologicamente; a sua configuração seria caudatária de uma formação mestiça europeia, maometana e
judaica – ímpar entre os povos europeus – e também estaria associada às particularidades genésicas deste
povo – ver definição adiante. Em ambos os processos (genético e genésico) a crença na capacidade inata
do português em miscigenar-se (biológica e culturalmente) é a força motriz da argumentação de Freyre,
da sua caracterização singular, atribuída à formação deste povo.
3
O termo está relacionado à “gênese”, ao processo de formação do povo português, que por sua vez,
remete às particularidades históricas pautadas pelos contatos intrínsecos de povos extra-europeus e pela
amalgamação étnico-cultural que lhe é subjacente – miscigenação. O termo “gênese” também está eivado
de um sentido religioso que, dentro da tradição cristã (genesis) representa a origem inexorável e o destino
teleológico de um povo considerado eleito. Este último sentido é importante, pois, como veremos adiante,
podemos perceber nas obras de Freyre a presença de elementos míticos (de caráter ideológico) de matriz
religiosa, os quais se pautam por argumentos semelhantes a estes e que estão imbuídos de conotações
fundamentais à compreensão dos seus trabalhos: a ideia de “missão civilizadora” (também
evangelizadora) de um povo “mais cristocêntrico que etnocêntrico”.
imanentes a este complexo – as características genésicas e genéticas atribuídas aos
colonizadores portugueses – estariam presentes em todas as áreas tropicais em que estes
estiveram presentes, construindo destarte, uma “unidade de sentimentos e cultura”
(FREYRE, 1940, p. 42).
Somente mais de uma década depois (1951), em um contexto amplamente
distinto – após o desfecho da Segunda Guerra Mundial e o início da emergência das
ações e dos discursos anticoloniais – é que o conceito viria a ser formulado, na ocasião
de uma viagem feita por Freyre aos territórios portugueses (a partir de então chamados
de) “ultramarinos” 4 a convite do Ministro do Estado Novo, Sarmento Rodrigues – esta
viagem marca o início de uma série de relações amistosas e conturbadas entre o regime
de Salazar e o escritor brasileiro, e é a matéria-prima para duas importantes obras deste
autor: Aventura e rotina (1953a) e Um brasileiro em terras portuguesas (1953b) nas
quais os conceitos em questão apareceram grafados pela primeira vez. A utilização
destes conceitos foi de grande valia para a manutenção do império português, sobretudo
por seu embasamento tradicional-ideológico, de cariz pretensamente teórico.
Dessa forma, a análise conceitual desse complexo teórico-ideológico será feita
concomitantemente a breves análises das obras deste autor:

• Os fundamentos dos seus aportes teóricos e tradicional-ideológicos presentes


desde a sua obra inaugural (Casa grande e senzala, 1933);
• A manutenção da sua “tese” diante da ampliação do seu espaço amostral (O
mundo que o português criou, 1940);
• A pretensão científica e o seu embasamento tradicional-ideológico, no contexto
da sua construção conceitual (Aventura e rotina e Um brasileiro em terras
portuguesas, ambas de 1953);

4
As alterações dos conceitos “colônia” & “colonial” para “ultramar” & “ultramarino” estão relacionadas
à revogação do Acto Colonial de 1933, ocorrida em 1951, diante de pressões sofridas pelo Estado Novo
por parte de organismos internacionais como a ONU e a OTAN, num contexto em que a descolonização
estava na ordem do dia. A partir de então, o governo português passou a investir em uma imagem exterior
desvinculada dos antigos sistemas coloniais, promovendo assim, a autorrepresentação de um império que
se concebia como uma totalidade indivisível que se estenderia do “Minho ao Timor”. O patrocínio da
viagem de Freyre pelos territórios colonizados por Portugal faz parte desse conjunto de iniciativas.
• A apropriação ideológica pelo Estado Novo, pautada por motivações
legitimadoras do seu cariz científico (Integração portuguesa nos trópicos e O
luso e o trópico, 1958 e 1961, respectivamente);

É significativa para as nossas futuras análises que a inauguração das reações


críticas (quase) imediatas à formulação deste conceito tenham surgido no seio das
províncias ultramarinas, nomeadamente em Angola, sob a condenação severa do
intelectual e ativista político Mário Pinto de Andrade, sob o pseudônimo de “Buanga
Fele”, no artigo intitulado Qu´est-ce que le lusotropicalismo? da revista Presence
africaine de 1955 (epígrafe). Discutiremos aqui, o processo de construção do complexo
teórico-ideológico freyreano. A sua consequente utilização pelo Estado Novo, as críticas
conceituais – iniciadas por esta verrina nacionalista angolana – e a verificação nas
fontes de como esse ideal foi inserido em Angola, são temas que pretendemos tratar na
apresentação durante o evento.

A construção do “luso” + “trópico”: breve história de um conceito?

Dentre as inegáveis qualidades de Gilberto Freyre, enquanto grande escritor que era,
está o seu apreço cuidadoso na construção e aplicação de conceitos. É significativo o
fato dele, embora seja sumariamente acusado de ser o autor da formulação “democracia
racial”, nunca ter escrito tal expressão em suas obras, optando pelos conceitos de
“democracia étnica” ou “democracia cultural” – embora os substratos ideológicos
sempre lhes estivessem subjacentes. O mesmo acontece com a adoção dos conceitos
“ultramarino” e “ultramar”, enquanto substituição eufemística dos surrados termos
“colonial” e “colônias”, num contexto em que as iniciativas de colonização
(subjugação) era extremamente criticada pelas novas potências econômicas mundiais
(EUA e URSS), portadores de um discurso a favor da autodeterminação dos povos –
após a Segunda Guerra Mundial5. Dessa forma, podemos dizer o mesmo sobre o

5
Na obra Integração portuguesa nos trópicos (1958) Freyre faz uma interessante discussão conceitual
acerca da polaridade entre os conceitos “assimilação” e “integração”, defendendo que as relações que os
portugueses desenvolveram nos trópicos pendem para esta última, dado que as suas características
culturais se fundiram a tal ponto com as “populações de climas quentes”, que acabaram por se integrar em
uma nova civilização/cultura lusotropical. É importante mencionar que esta obra foi publicada
cuidado que este autor teve na constituição conceitual legada aos termos
lusotropicalismo, lusotropicologia e civilização/cultura lusotropical.
Antes da análise propriamente dita, façamos algumas considerações acerca do
estudo dos conceitos, a partir das reflexões do historiador Reinhart Koselleck (1992),
que servirão de orientação para as nossas ponderações posteriores.
Segundo este historiador, “cada palavra remete-nos a um sentido, que por sua
vez indica um conteúdo. (...) Os conceitos para cuja formulação seria necessário um
certo nível de teorização e cujo entendimento é também reflexivo” (p. 134-5). Assinale-
se que, como vermos adiante, os conceitos freyreanos em questão são compostos por
termos que carregam uma significativa carga semântica (luso + trópico), que se
dinamizam nos diversos contextos de sua aplicação – sendo que o termo “luso” traz
consigo elementos tributários de um mito fundador (portanto, mais estáveis), enquanto o
termo “trópico” passa por um processo de mutação semântica contextual (o significado
atribuído à categoria dos “outros”). Ao analisarmos esta questão, diante do contexto em
que estes conceitos foram criados, a interpretação dos seus componentes constitutivos é
bastante significativa, pois Freyre aparentemente tentou extrair da sua antítese6, a
originalidade da sua “teoria”, reabilitadora da presença daqueles “outros” na construção
de um novo paradigma civilizacional: aquilo que ele chamou de civilização/cultura
lusotropical.
Outra questão importante para a nossa análise diz respeito ao processo de
maturação destes conceitos. Embora a novidade da interpretação já tivesse sido
esboçada por Freyre em obras anteriores, a sua configuração conceitual só se deu mais
tarde e, como já foi dito, em um contexto amplamente diversificado daquele em que
fora concebido. Para além desta alteração geracional, é importante lembrar que a carga
semântica (e simbólica) dos termos que formam estes conceitos, tem sido lapidada

simultaneamente em português e inglês, e fora destinada às diversas embaixadas mundo afora – esta
atitude é parte das iniciativas de apropriação dos ideais lusotropicalistas e da difusão de uma imagem
internacional desvinculada dos velhos métodos coloniais – assunto que trataremos adiante.
6
Como vermos adiante, o termo “luso” se refere às origens míticas, quase épicas, da formação do povo
português, enquanto o termo “trópico” estaria associado, a priori, com um significado pejorativo
atribuído aos bárbaros, ou selvagens. Essa antítese se pautava na tão propalada dicotomia existente entre
“civilização” & “barbárie”, ou entre um abstrato “nós” e os “outros”, tão comum no século XIX e, no
caso de Portugal, até meados dos anos 1950. A originalidade da explicação de Freyre, para a viabilidade
da manutenção do colonialismo português, reside exatamente na inversão dos termos dessa equação,
como pretendemos mostrar a seguir.
paulatinamente, alterando (mas também mantendo) muitos dos seus sentidos que, são
resignificados na longa duração. A esse respeito, é necessário

nos interrogar acerca dos limites e fronteiras que separariam palavras em


si teorizáveis, e acerca de que palavras seriam em si reflexivas. Trata-se
na verdade de uma determinação aleatória. Pode-se eventualmente,
através da Begriffsgeschichte, indicar a partir de quando um conceito
tornou-se fruto de uma teorização e quanto tempo levou para que isso
acontecesse (Ibidem, p. 135).

Nesse sentido, acreditamos que, muito embora o seu conteúdo já estivesse


presente nas obras anteriores de Freyre, os conceitos formados pelos radicais “luso” +
“trópico”, com as implicações contextuais que lhes são caracteristicamente intrínsecas,
não poderiam ter surgido antes da Segunda Guerra Mundial. Isto porque, deveremos
levar em consideração as alterações contextuais – e também conceituais – em que as
obras freyreanas acerca dessa questão foram produzidas, pois, além das transformações
políticas que motivaram a sua apropriação pelo Estado Novo, a própria concepção
acerca dos conceitos em questão mudou significativamente – sobretudo, o conteúdo
daquilo que se entendia por “trópico”. Diante disso, é importante lembrar que

todo conceito articula-se a um certo contexto sobre o qual também pode


atuar, tomando-o compreensível. Pode-se entender esta formulação
tornando-o mais instigante. (...) O que significa dizer que todo conceito
está imbricado em um emaranhado de perguntas e respostas,
textos/contextos (Ibidem, p. 137-8).

Estes conceitos ganharam um aspecto generalizante ao serem aplicados às


relações entre os portugueses e “os outros”, passíveis de uma pretensa teorização que se
alicerçou nos elementos tradicional-ideológicos que lhe são pertinentes, já que “um
conceito relaciona-se sempre àquilo que se quer compreender, sendo portanto a relação
entre o conceito e o conteúdo a ser compreendido, ou tomado inteligível, uma relação
necessariamente tensa” (Ibidem, p. 136).
Acerca dessa tensão7, verificamos na obra de Freyre uma inversão de valores do
paradigma anteriormente concebido como “civilização” & “barbárie”, associado aos
radicais “luso” & “trópico”, mas que foram resignificados em sua aplicação: da sua
teorização inicial (1933, 1940) até a sua conceituação propriamente dita (1953, 1958), o
contexto modificou-se amplamente, bem como a acepção valorativa atribuída aos
termos que formaram os conceitos em questão – sobretudo “trópico”. Diante disso,
acerca da teorização dos conceitos, Koselleck nos alerta que

A história dos conceitos coloca-se como problemática indagar a partir de


quando determinados conceitos são resultado de um processo de
teorização. Essa problemática é possível de ser empiricamente tratada,
objetivando essa constatação, por meio do trabalho com as fontes
(Ibidem, p. 136).

Nossa perspectiva é a de que os trabalhos de Freyre se pautam por uma pretensa


teorização, regulada por elementos tradicional-ideológicos, e transmitidos pela carga
semântica contida nos termos com os quais operou as suas formulações conceituais.
Essa análise crítica se aplica, tanto na sua formulação, mas, sobretudo, na utilização
destes conceitos pelo Estado Novo8, a partir da nova realidade que se encontrava no
período pós-guerra: dependentes das zonas coloniais e, portanto, ávidos pela
manutenção do seu império ultramarino. Nesse sentido, o termo “luso”, eivado de
conotações de caráter nacionalista, se adequou muito bem aos intentos da manutenção
deste império. Em decorrência das alterações contextuais, o termo “trópico” tornou-se
adequado para a ocasião, pois, significava ao mesmo tempo, os “outros” que outrora se
pretendia civilizar, e que agora (ao menos no plano discursivo) se buscava integrar; mas
também, diz respeito às áreas geográficas das quais este império dependia, sobretudo
economicamente. Nas formulações conceituais operadas por Freyre, os termos foram
mantidos, enquanto os seus sentidos se alteraram, já que

A história dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a


conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas

7
Em sua perspectiva antagônica, Koselleck os caracterizou como “conceitos antitéticos assimétricos”
(2006, p. 98).
8
A “vulgata lusotropicalista”, assim definida por Yves Leonard (1997, pp. 223-224).
possam ser as mesmas. (...) da mesma palavra um novo conceito foi
forjado, e que portanto ele é único a partir de uma nova situação histórica
que não só engendra essa nova formulação conceitual, como também
poderá se tornar através dela inteligível (Ibidem, p. 141).

Sobre a configuração dos conceitos, ainda segundo Koselleck, “a diacronia está


contida na sincronia”: na construção dos conceitos formados pelos radicais “luso” +
“trópico” existe uma ambivalência importante para os objetivos da nossa análise: no que
tange à aplicação dos conceitos em questão, a presença do termo “luso” remete à
nacionalidade portuguesa, à sua mística imperial e aos intentos da sua manutenção.
Enquanto isso, o termo “trópico”, tendo o seu sentido ideologicamente modificado pelo
contexto, acaba por se destinar ao “novo mundo criado pela ação dos portugueses”
nessa parte do globo. Isso porque, como afirmamos há pouco, ele tem conotações ao
mesmo tempo espaciais (geográfica) e culturais, como veremos adiante.
Entretanto, “esta força diacrônica deve ser passível de ser mensurada de alguma
forma, quando se pretende trabalhar empiricamente” (Ibidem). Poderemos verificar que,
é justamente aí que residem as críticas ao complexo conceitual criado por Freyre,
nomeadamente, a sua restrição pragmática: os fatos descritos por ele na tentativa de
sustentar as suas construções conceituais não puderam ser verificados empiricamente,
sobretudo nos espaços coloniais onde pretensamente se desenvolveriam as relações que
caracterizariam a “nova civilização/cultura lusotropical”. Isso explica, por um lado, o
fato das críticas emanarem prioritariamente daí, e por outro, descortina-lhe o seu
aspecto mais tradicional-ideológico que teórico.

Análise conceitual: formulações ‘teóricas’, impregnadas de ‘tradição’ e ‘ideologia’.

Os conceitos em questão são formados por dois radicais (luso + trópico) acompanhados
de sufixos que acabam por alterar-lhes substancialmente o significado. Comecemos a
nossa análise por uma breve consideração da sua sufixação, para então analisar os
radicais que o compõe – que de fato, descortinam a matriz tradicional-ideológica deste
complexo pretensamente teórico.
Lusotropicalismo: o conceito é formulado por dois radicais seguidos do sufixo “ismo”.
É significativo o fato das inúmeras análises críticas que se dedicam ao estudo destes
fenômenos partirem do termo em questão, sendo que nas obras de Freyre as aparições
terminológicas mais frequentes são “lusotropical” (em sua forma adjetiva) e
“lusotropicologia” (substantivo). Nesse sentido, a sufixação do termo pode indicar a
escolha dos analistas em classificar o fenômeno como um complexo mais ideológico9
do que científico, como pretendia Freyre. Entretanto, para este autor, tal formulação era
apenas uma parte do seu complexo teórico mais amplo (lusotropicologia), sendo que
“lusotropicalismo designaria somente a atitude, a predisposição, a tendência e suas
consequências dispersas ou esporádicas, ou também somente literárias ou artísticas, em
cujo caso a palavra teria o sentido – nada pejorativo – que damos a termos como
impressionismo ou expressionismo” (IÑIGUEZ, 1999, p. 60).

Lusotropicologia: A sufixação deste conceito está prontamente associada a uma


pretensão científica, já que deriva do grego “logos” que está associado à razão, ao
estudo e à ciência. Freyre o aborda, de maneira aprofundada, em duas ocasiões
específicas: na introdução “a uma possível luso-tropicologia” em Um brasileiro em
terras portuguesas (1953b) e em Integração portuguesa nos trópicos (1958). Trata-se de
um tipo diferencial de ciência “engendrada na prática” e exercida empiricamente, eivada
de características intrínsecas aos portugueses, e que fora advinda do seu pioneirismo
expansionista, pois, segundo ele,

Na obra de conhecimento de terras, culturas e populações africanas,


orientais, americanas, ainda virgens de olhos europeus, destaque-se, ainda
uma vez, que sábios, peritos ou simples observadores portugueses
salientaram-se por uma série de trabalhos pioneiros que abriram ou
amaciaram o caminho aos estudos de outros europeus. Foram eles
grandes orientalistas e, sobretudo, tropicalistas dos séculos XV ao XVII
(FREYRE, 1953b, p. 100, grifo nosso).

9
“Com o despertar da ciência e dos demais ramos do conhecimento, o sufixo –ismo parece ter sido um
elemento de grande contribuição para novas palavras. Houaiss ainda acrescenta que no século XIX e XX,
seu uso disseminou para designar movimentos sociais, ideológicos, políticos, opinativos, religiosos e
personativos (...)” (GIANASTACIO, 2010, p. 07, negrito nosso). Curiosamente os termos em destaque
estão diretamente associados aos conteúdos, usos e abusos desta parte da obra de Freyre, como veremos
ao longo deste trabalho.
Tratava-se de uma proposta de ciência que teria os seus antecedentes nos
contatos efetivados no ultramar, como ele tenta nos persuadir ao citar as
particularidades ‘científicas’ de uma infinidade de agentes portugueses que lá atuaram,
mas que ainda aguardava a sua plena sistematização. Isso ocorreria diante do
reconhecimento das virtudes diferenciais dos portugueses ao lidar com populações
extra-europeias, que teriam criado um novo tipo de cultura/civilização nos trópicos,
visando assim, a transformação dos usuais paradigmas eurocêntricos:

se algum dia se constituir em ciência a sistemática lusotropicológica aqui


sugerida, terá nesse processo de superação da condição étnica pela
cultural, mercê da qual o mais preto dos pretos da África tropical se
considera português sem ter que renunciar a alguns dos seus hábitos de
homem ecologicamente do trópico, um dos seus principais objetos de
estudo (FREYRE, 1958, p. 36-37).

Lusotropical: A forma adjetiva surge na obra de Freyre para caracterizar todos aqueles
elementos pertinentes ao “novo mundo nos trópicos”10 formado pela atuação
amalgamadora do colonizador português nas áreas extra-europeias, que, segundo
Freyre,

Criou um mundo de valores aparentemente contraditórios mas na verdade


harmônicos. Um mundo novo, uma civilização nova, uma cultura nova a
que por antecipação pertenceram portugueses dos séculos XVI a XVIII
para os quais voltamos hoje como para pioneiros do que pode, ou deve,
chamar-se civilização ou cultura luso-tropical (FREYRE, 1953b, p. 130).

É importante prestarmos atenção aos conceitos que foram caracterizados por esta
adjetivação: civilização e cultura. Para além destes, também aparece outro qualificativo
no título desta conferência: moderno11. Dessa forma, estes três conceitos estão
associados aos radicais “luso” e “trópico”. Trataremos deles adiante, quando tecermos
as nossas considerações sobre este último radical, pois, acreditamos estar nele, a
inovação conceitual de Freyre – viabilizada pela alteração contextual a que nos
referimos anteriormente. Outro fator que podemos perceber nas citações anteriormente

10
Alusão ao título de outra obra de Freyre, intitulada New world in the tropics (1963), que teve a sua 1a
edição brasileira, aumentada e atualizada em língua portugesa, em 1971.
11
“Uma cultura moderna: a luso-tropical” (FREYRE, 1953b, p. 125).
apresentadas, que também pretendemos discutir posteriormente, é o período no qual
Freyre situa a formação do complexo lusotropical: entre os séculos XVI e XVIII. Nossa
hipótese é a de que os elementos tradicional-ideológicos partilhados por Freyre situam-
se naquilo que Sérgio Campo Matos chamou de “Decadência e filosofia da história
nacional” do século XIX (1997, pp. 377-384).

Passemos à análise dos radicais que formam os conceitos:

Luso: A escolha deste termo é significativa, pois, se considerarmos simplesmente os


elementos que caracterizariam a ação amalgamadora portuguesa nos trópicos (os
princípios da miscibilidade, mobilidade e aclimatabilidade12), atrelados ao seu passado
“indefinido entre África e Europa”13, eivado de contatos com populações muçulmanas e
judaicas, os conceitos deveriam estar associados à totalidade da Península Ibérica – da
qual também faz parte a Espanha.
Tratar-se-ia então de uma iberotropicologia, ou hispanotropicologia (relativa à
denominação romana Hispania, generalizada ao território “reconquistado” pelos
cristãos14)? De fato, em momentos ocasionais, Freyre insere os espanhóis neste novo
tipo de civilização/cultura, afirmando inclusive que a lusotropicologia é uma forma mais
específica do conhecimento europeu acerca dos trópicos (tropicologia), associada à
outra forma intermediária: “uma hispanotropicologia ou uma hispanologia” (FREYRE,
1958, p. 34).
Entretanto, a escolha do termo luso (associado à Lusitânia15) representa a
distinção dos portugueses dentro da antiga Hispânia, que marcaria a diferença entre

12
Respectivamente associado à capacidade de miscigenar-se com populações tropicais (advindos dos seus
contatos com populações muçulmanas), à capacidade de uma população exígua em mobilizar regiões
extensas (advindo da influência judaica) e à capacidade de adaptar-se a climas quentes (advindo da sua
localização geográfica mediterrânea, além da mestiçagem que lhe é imanente). Cf. CASTELO, 2011, p.
263.
13
Cf. FREYRE, 2006, p. 66. Na página seguinte ele continua o argumento: “A indecisão étnica e cultural
entre a Europa e a África parece ter sido sempre a mesma em Portugal como em outros trechos da
Península”.
14
De qualquer forma, tal denominação não admitiria substratos herdados das denominações “Sefardita”
ou “Andaluzia”, respectivamente relativos à presença de judeus e árabes neste território, identificado a
sua filiação à ideologia cristã da reconquista – diferentemente do que se poderia (ingenuamente) supor
pelo elogio que Freyre faz a mestiçagem.
15
A Lusitânia era uma das três províncias romanas da Hispânia (atual Península Ibérica) que correspondia
ao que é hoje o Sul do Douro em Portugal e à Estremadura na Espanha. Os lusitanos eram um dos povos
estes, e os espanhóis16, inclusive em termos comportamentais e religiosos, que os havia
“unido” no passado, de acordo com a ideologia da reconquista17.
Além de demarcar a sua cisão em relação à Espanha, a carga semântica
impregnada no termo luso relaciona-se com a manutenção dos elementos sobre os quais
a nacionalidade portuguesa se alicerça: a referência ao ancestral comum “Luso”,
presente na epopeia camoniana18 – considerada por Freyre como uma das mais vivas
demonstrações lusotropicológicas – a associação dos lusíadas ao contato com os
muçulmanos desde a reconquista19; a noção de missão imperial de caráter cristão
durante e após a expansão ultramarina20, a noção de providência do “Quinto Império”21
etc. Não é a intenção deste pequeno trabalho demonstrar detalhadamente tais conexões.
Contudo, podemos salientar dois aspectos importantes dos valores
consubstanciados no termo em análise: a cisão em relação aos espanhóis (considerados
“europeus”) e em relação aos muçulmanos22, diante dos quais se elevaram os pilares da
nacionalidade portuguesa – alicerçada por motivações religiosas – e que estão presentes
na carga semântica atribuída ao termo luso.
Afirmamos anteriormente, que a origem tradicional-ideológica de Freyre residia
nos debates acerca da decadência portuguesa no século XIX. A noção da decadência
que marcara a historiografia portuguesa neste século pôde ser sentida desde o seu
princípio: com a perda da sua mais importante colônia23 (Brasil), a dependência dos
territórios africanos tornou-se intensa24. Tal decadência estava relacionada com a

que habitavam esse território na época pré-romana, sendo considerados os descendentes de uma
legendária personagem chamada “Luso”, que frequentemente são evocados na epopeia camoniana.
16
A diferença entre portugueses e espanhóis foi bem delimitada por Freyre desde Casa grande e senzala:
“(...) o caráter português dá-nos principalmente a ideia de vago impreciso (...) e essa imprecisão é que
permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes impossíveis de se ajustarem no duro e anguloso
castelhano, de um perfil decididamente gótico e europeu” (Ididem, p. 68-69).
17
Cf. NOGUEIRA, 2001.
18
A criação de uma imagem que exalta as qualidades do português se faz a partir da detração dos árabes.
Cf. BOECHAT, 2007.
19
Cf. OLIVEIRA MARQUES, 1998.
20
Cf. HESPANHA, 1995.
21
Cf. BOSI, 1998.
22
“A tradição antropológica portuguesa não é a da construção de um império, mas a da construção de
uma nação (...) [pois] a maioria dos estudos que podemos incluir na categoria de antropológicos relativos
aos árabes se tenham desenvolvido (...) no campo disciplinar da história e do território português e
frequentemente associados à construção identitária nacional ou regional” (SILVA, 2005, p. 783).
23
Cf. RUIZ, 1980 e ALEXANDRE, 1993.
24
Cf. ALEXANDRE, 1980.
emergência de novos paradigmas trazidos por novas potências, nomeadamente, a
Inglaterra. O seu apoio à emancipação brasileira, bem como o ultimato de 1890, foram
momentos significativos para a constatação de que nacionalidade portuguesa estava
sendo ameaçada pelo capitalismo moderno.
Foi neste contexto que se passou a buscar em Portugal, as causas desse “atraso”,
debatendo “sobre as possibilidades de modernização e/ou regeneração das nações
ibéricas”. Nasceram assim, diversas tendências para explicar e tentar solucionar a crise
que os assolava, sendo os debates do Cassino e, por decorrência, os da geração de 1870,
bastante significativos para refletirmos sobre os rumos que este país poderia tomar.

Os debates da geração de 70, que se estenderam pelos anos de 80 e 90 do


XIX, são testemunhos dos conflitos entre as possibilidades econômicas,
colocadas por uma nação localizada na periferia do capitalismo
contemporâneo de tintas imperialistas, e as representações da nação nos
termos do binômio decadência/atraso que marcavam a visão de mundo
dessas elites e dos portugueses. (...) há interesse econômico na África,
mas não há capital disponível para efetivar e executar as tarefas e
atividades colonizadoras que, acreditavam muitos, regenerariam a nação e
redimiriam do seu atraso (NEMI, 2006, p. 64).

Ana Nemi nos mostra duas das principais tendências que surgiram deste
contexto: o republicanismo tradicionalista e positivista de Teófilo Braga25 e o
socialismo crítico de Antero de Quental. Ambas investiam em identificar as causas do
atraso e apontavam caminhos divergentes para a regeneração da nação. Podemos
identificar a matriz do Estado Novo com a primeira tendência. De qualquer maneira, o
que estava em questão era a manutenção do império e da nação26, e todas as vertentes
apontavam para a África como signo da sua redenção.
Ainda sobre o século XIX, outra referência importante de salientar são as
relações e clivagens existentes entre o pensamento de Gilberto Freyre e Oliveira
Martins. Este historiador português, autor de O Brasil e as colônias portuguesas,

25
“[Este republicanismo] via na modernidade e nos seus produtos urbanos e tecnológicos fontes de
corrupção das comunidades rurais e de desordem social. Não por acaso será esse nacionalismo
tradicionalista que irá fundamentar a ditadura de Salazar” (NEMI, 2006, p.53).
26
“[O debate oitocentista] acabou por fortalecer um movimento de sacralização da memória nacional
emblemada na imagem do Império como condição precípua para a preservação do caráter nacional que se
pretendia regenerar” (Ibidem).
introdutor do ideal social darwinista em Portugal, era defensor da criação de “Novos
Brasis em África” através da racionalização da empresa colonial em Angola e da
subjugação dos africanos, os quais considerava uma raça inferior: “a civilização das
raças negras só pode caminhar pelo cruzamento com os negróides islamitas do Oriente:
o Ocidente não lhes dará, como espécies por ela assimiláveis, mais do que panos para se
vestirem, aguardente para se embriagarem, pólvora para se exterminarem” (Oliveira
Martins apud ALEXANDRE, 1979, p. 213). Este posicionamento (da impossibilidade
da assimilação de povos tropicais) foi alvo de críticas de Freyre:

Oliveira Martins fixa em sua História de Portugal os excessos ou as


deformações, ainda em Portugal, do método depois ultramarino (...). Que
aquele modo de assimilação doméstica de elementos exóticos, ainda
quentes dos trópicos e das selvas prestava-se a fáceis deformações
capazes de comprometer os próprios rudimentos da moral cristã e da
família, é evidente. Mas o que não seria justo seria julgar-se o método em
si por essas deformações, mesmo numerosas como certamente foram
(FREYRE, 1953b, p. 33).

Apesar das suas divergências no tange à mestiçagem, e ao valor cultural


atribuído às influências dos sofridas por outros povos, Freyre certamente partiu das
problemáticas levantadas por Martins. Embora discordassem no aspecto da “pureza
racial”, a originalidade da tese de Freyre pode ser atribuída às reflexões e debates
travados com a leitura deste importante autor português, sobretudo no que tange a
herança da tradição portuguesa na constituição das bases culturais brasileiras, em
contraposição às influências de origem anglo-saxã:

Se é indiscutível que a teoria rácica que Martins subscreve, admitindo a


existência de raças superiores e de raças inferiores (...) não deve
esquecer-se o sentido crítico e o realismo com que descreve a acção dos
europeus. (...) A mestiçagem constituía, a seu ver, um factor negativo de
corrupção das virtualidades do carácter nacional. Em contrapartida, via
positivamente o aumento da imigração latina de portugueses, galegos,
italianos e espanhóis [para o Brasil], tendo em conta que, ao invés dos
alemães e anglo-saxônicos, os latinos se aclimatavam sob os trópicos.
Retomava assim a posição central do lusotropicalismo de Gilberto Freyre.
E chega ao ponto de definir como ideal futuro para a nação brasileira o de
“uma nação europeia e não mestiça”, “neo-latina, neo-ibérica, neo-
portuguesa” (MATOS, 2001, p. 326).
Retomaremos esta questão adiante, quando tratarmos do conceito “moderno”
atrelado ao radical “trópico”. Por ora, vale dizer que o termo luso consubstancia
semanticamente toda uma série de elementos tradicional-ideológicos, ligados aos
alicerces da nacionalidade portuguesa. Por isso afirmamos anteriormente que, trata-se
de um conceito de conformação mais “estável”, se comparado ao radical “trópico”, pois,
apesar das alterações semânticas contextuais, ele está ligado a um complexo ideológico
de origem mítica, atrelado à ideia de nação27.
Estes elementos tradicional-ideológicos a que nos referimos, foram
instrumentalizados por Freyre na explicação da originalidade da colonização portuguesa
na América. Não é de estranhar, contudo, que os significados atribuídos a este radical na
obra freyreana, mesmo quando ainda não o havia concebido como conceito, tenha sido
rejeitado pelo Estado Novo entre os anos 1930-40, mas que fora incorporado a partir
dos anos 1950, como demonstrou Cláudia Castelo (1999, cap. 03). Retomando
Koselleck, “todo conceito articula-se a um certo contexto sobre o qual também pode
atuar, tomando-o compreensível”.

Trópico: A alteração contextual, do hiato existente entre as formulações ‘teóricas’ até a


sua conceituação, foi responsável por uma sensível e relevante variação do seu sentido.
Essas mutações estariam ligadas, por um lado, à elevação das vozes africanas e asiáticas
ex-coloniais pleiteando a autodeterminação de seus destinos, e por outro, ao declínio
dos antigos impérios, que estavam sustentados pela ideia de sua superioridade
étnica/cultural dos europeus diante dos demais.
Como já alertamos anteriormente, este conceito traz entranhado em si, duas
conotações complementares: uma espacial e, outra cultural28. A dimensão espacial
relaciona-se àquelas áreas submetidas à colonização de exploração – associada às
capacidades produtivas de artigos que não poderiam ser cultivados na Europa – ou seja,
a dimensão da sua exploração econômica. Tal exploração sempre fora exercida a partir
da opressão da mão de obra autóctone, e foi sobre esta composição que assistimos a
emergência dos impérios coloniais. Dessa forma, a vertente cultural atribuída a este
27
Nação enquanto “comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e
soberana”, Cf. ANDERSON, 1989, p. 14.
28
A problemática da nossa análise parte da articulação existente entre “Império, geografia e cultura”,
tema da obra de Edward Said (2011) inspirada em análises literárias.
conceito estaria aí definida: as hierarquizações socioculturais existentes desde os
primeiros contatos, seja por meio de explicações teológicas – e depois “científicas” –
revelaram a detração que alicerçava a homogeneização do “outro” “extra-europeu”; este
habitava e confundia-se aos usuais espaços da exploração econômica: trópico29.
O termo “trópico” estaria associado, então, à negação da civilização: signo da
“barbárie”. Foi justamente a oposição a esta concepção de trópico, que logrou a Freyre,
a originalidade de sua obra30 inaugural, Casa grande e senzala. Embora ainda não
estivesse esboçado o conceito, os seus fundamentos estavam ali presentes.
Diversos são os motivos que podem ter levado Freyre a reagir a esta concepção
dos “trópicos” – do qual ele fazia parte. Entre eles, elenquemos a sua vivência
acadêmica, que aponta para duas questões gerais: uma de cunho pessoal, e outra
intelectual.
Estudante oriundo da periferia do mundo capitalista, Freyre teve boa parte da sua
formação nos Estados Unidos, em um dos principais centros de pesquisa em Ciências
Humanas da época (Universidade de Columbia). As perspectivas partilhadas no cerne
do capitalismo moderno eram bastante conflitantes com a sua vivência no nordeste de
matriz aristocrática, e podem ter inspirado Freyre nesta sua “reação” aos modelos
hegemônicos vigentes. Esse contraste se relaciona diretamente às divergências
culturais. Este último termo se alia ao segundo ponto elencado para análise: a influência
intelectual da antropologia cultural do seu tutor Franz Boas.
Podemos perceber desde a primeira obra de Freyre (1933) tentativas nítidas de
alteração dos significados dos conceitos cultura e civilização, favoráveis aos “outros”
detratados nos tratados antropológicos eurocêntricos oitocentistas, elogiando a matriz
cultural do amalgama da América Portuguesa. Trata-se de um contexto em que o
antagonismo “civilização” & “barbárie”, além das concepções racistas e racialistas,
estavam na ordem do dia.

29
Durante décadas, “trópicos” serviu ao Europeu para receptáculo geral de exotismos e estranhezas,
numa espécie de “orientalização” do Sul pelo Norte que traz consigo conotações negativas. (...). O antro
do primitivismo e da não civilização, portanto (BASTOS, 1998, p. 419).
30
Gilberto Freyre estava há anos empenhado em assinalar, descrever e explicar as características do
complexo cultural que, culminando no Brasil, teria as suas origens na colonização portuguesa e no
enaltecimento desta com povos e elementos culturais africanos (BASTOS, 1998, p. 423).
Na sua obra seguinte (1940) propôs o alargamento da sua interpretação para
todas as áreas de colonização portuguesa. A recepção a estas ideias não foram muito
simpáticas em Portugal, sobretudo pelas aspirações oitocentistas mantidas nas ciências
sociais, a partir da qual se criticava o pilar fundamental desta “teoria”: a mestiçagem.
Entretanto, depois da Segunda Guerra Mundial, o contexto se alteraria
substancialmente. Com o Eixo derrotado, a crença em impérios sustentados pela
superioridade racial de seu povo não poderia mais ser usada como fundamentação das
práticas coloniais. Pelo contrário, se viu um acirramento progressivo da descolonização
africana e asiática entre os anos 1950-1960, e da emergência do não alinhamento
terceiro-mundista (Conferência de Bandung, 1955).
Essa alteração contextual pode ser percebida na obra de Freyre, sobretudo, na
sua construção conceitual: utilizando o mesmo conceito (trópico) e a mesma
‘metodologia’ (generalização) ele caracterizou aquilo que acreditava ser uma nova
cultura e civilização, associando-os aos elementos tradicional-ideológicos contidos no
termo luso. Trata-se da ampliação do antigo debate existente entre “civilização” e
“barbárie”, no qual a homogeneização dos “outros” sintetizados pelo conceito
“trópicos” se elevaria em sua obra, agora com valores positivos.
Freyre tentava mostrar a partir de então31 que esta nova cultura/civilização era
mais adaptada à modernidade do que os modelos que emergiram com a Guerra Fria,
sobretudo aquele de tradição anglo-saxã, como era o caso dos Estados Unidos. O valor
que atribuía aos conceitos civilização, cultura e moderno, enquanto adjetivos do seu
complexo luso-tropical, mostra nitidamente a vontade de Freyre em “reagir” aos novos
paradigmas, resgatando os valores da tradição ibérica – particularmente lusa. Esta nossa
interpretação provisória, parte dos resultados de trabalhos recentes (LIMA, 2011;
SCHNEIDER, 2012) que mostram a necessidade de compreender a obra de Freyre a
partir da sua fundamentação tradicional-ideológica, ligada aos debates da decadência
ibérica oitocentista.
Assim, termo-conceito não poderia ter nascido na fase anterior a este contexto,
muito embora nas obras anteriores já existisse a ideia que lhe recobre. Acreditamos que
o conceito foi instrumentalizado nas viagens que Freyre realizara pelo continente
31
Os conceitos surgem em 1953, mas a sua instrumentalização política se deu, sobretudo, a partir de
1958.
africano, patrocinadas pelo regime de Salazar: o contexto da criação do “termo” marca o
início da sua conexão com o Estado Novo, mas também, da sua (pronta) apropriação.

Considerações parciais

Qual seria a relação entre os fundamentos da obra de Freyre com a mística imperial
portuguesa – consubstanciada no colonialismo do Estado Novo? Preliminarmente,
acreditamos que o fundamento de ambos partiram das questões oitocentistas, mostradas
sumariamente neste texto, ambas associadas com a constituição da nação, seja brasileira
ou portuguesa, respectivamente. A conveniência mútua do seu “encontro”, no contexto
em que os conceitos freyreanos foram apropriados pelo Estado Novo, pode estar
relacionada pela ameaça de um “inimigo comum”: o risco do esfacelamento do império
português, diante da emergência da nova ordem estabelecida – sobretudo a ONU e a
OTAN representando os EUA – representativa dos valores “modernos” classificados
por Freyre como herdeiros da tradição anglo-saxã.
Já Freyre, sempre esteve preocupado com as questões relativas ao Brasil. Em
suas obras, mesmo aquelas escritas neste contexto, é nítida esta sua preocupação. A
formulação dos seus conceitos, e o conteúdo tradicional-ideológico nele presentes foram
apropriados pelo Estado Novo – uma apropriação consentida, diga-se de passagem –
devido o seu prestígio como cientista de reconhecimento internacional. Este
reconhecimento explica parte do seu consentimento nesta apropriação.
Além disso, “defender Portugal” era proteger os resquícios daquela tradição
imperial que fundara o Brasil, paradigma de uma nova cultura lusotropical, mas que
agora corria o risco de esfacelar-se. Isso poderia explicar que, mesmo tratando-se de
uma “comunidade de sentimento e cultura”, Freyre fosse contrário (pelo menos entre o
final de 1950 e início de 1960) à descolonização, e muito pouco simpático aos
movimentos emancipacionistas da “África Portuguesa”.

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