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HISTÓRIA DO BRASIL COLÔNIA

CAPÍTULO 4 - A HISTORIOGRAFIA DO
BRASIL COLONIAL: QUAIS SÃO AS SUAS
INTERPRETAÇÕES?
Maíra Pires Andrade

INICIAR

Introdução
A escrita da história, enquanto modo de elaborar a experiência e vivência no tempo,
pela reconstrução e rememoração do passado, é alicerçada pela cultura histórica de
cada tempo, local e prática social. Nesse sentido, afirma Guimarães (1995), que a
historiografia, assim como a escrita da história no tempo, é uma forma narrativa
com o passado como objeto de conhecimento. Vamos entendendo a partir disso que
a historiografia do Brasil se modifica ao longo dos diversos contextos históricos, se
adequando às demandas de cada cultura histórica. E ao nos depararmos com a
escrita da história narrada por intelectuais de diversos tempos, temos de questionar
em qual circunstância histórica essa história foi escrita e quais as demandas do
período, a fim de compreender as suas contribuições, mas também de elaborar
críticas às suas visões, já que estas estão sustentadas por pensamentos específicos. 
Esse questionamento também deve ser feito nas obras clássicas da historiografia
brasileira: qual a principal contribuição de cada uma? Quais os avanços? Quais
representações sobre o Brasil são formadas a partir destas? Em que contexto cada
obra foi criada?
O início do século XX será marcado pela busca incessante de uma identidade
nacional brasileira, resultando na publicação de diversas obras de intelectuais que
se tornaram clássicas ao fornecerem uma interpretação sobre a história do Brasil.
Esses intelectuais construíram representações do Brasil, que influenciam a
sociedade até a atualidade, e possibilitaram a formação de uma identidade
nacional, inscrevendo o Brasil num passado, presente e futuro.  Nisso, vamos
compreender as obras dos seguintes intelectuais: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, Caio Prado Júnior, Fernando Novais, João Fragoso e Manolo Florentino.
Acompanhe com atenção e bons estudos!

4.1 Gilberto Freyre: Casa grande e


senzala
A escrita da história do Brasil no início do século, principalmente entre as décadas
de 1920 e 1930, foi pautada pela perspectiva eurocêntrica. O pensamento
eurocêntrico era calcado na ideia de que os europeus eram as raças superiores a
todas as demais, o que trazia uma justificativa para a colonização europeia e
reforçava a hierarquia entre as raças, que figurava nas teorias científicas do século
XIX. 
Neste panorama, diversos pensadores propuseram o “branqueamento” do Brasil,
para que a desejada nação brasileira que estava a se formar fosse mais parecida com
o ideal europeu. A partir desta conjuntura e com a preocupação sobre a formação da
identidade nacional brasileira, vemos surgir, em 1933, a obra do pernambucano
Gilberto Freyre, Casa grande e senzala. Na época, o livro foi considerado
revolucionário e um marco na historiografia sobre a formação do Brasil, pois
naturalizou a mistura das raças, como característica positiva da identidade
brasileira, algo considerado negativo até então (REIS, 2007). 
Contudo, como historiadores, temos que nos ater às críticas feitas a esta obra, assim
como as demandas e questões presentes no seu contexto histórico.

4.1.1 Gilberto Freyre e o processo de colonização


A obra de Gilberto Freyre observa a formação do Brasil sob o foco da escravidão,
marcando a historiografia como uma das primeiras abordagens a partir deste ponto
de vista. Mas, para compreender como esta nova forma de ver a história brasileira
surgiu e foi acolhida, vamos entender o contexto da época e também as diversas
críticas que foram surgindo às teses apresentadas na esteira desta obra clássica
(SCHWARTZ, 2001).
Partindo da escravidão, Freyre elaborou uma interpretação do passado do Brasil,
influenciada pela Antropologia Cultural e a História Social. Ele se apoiou em uma
gama diversificada de fontes como história oral, documentos pessoais, documento
oficiais e jornais, voltando suas atenções, não somente à história política, mas
também à história do cotidiano, da alimentação, do vestuário, entre outros (BURKE,
2001). É assim que Freyre lança as bases da formação social brasileira e aponta, de
modo enaltecedor, o papel da colonização portuguesa no processo.
Em sua leitura sobre o Brasil colonial, Gilberto Freyre o considera um equilíbrio de
antagonismos, isto é, o Brasil seria formado por pares opostos que se equilibram
entre si: a economia e a cultura; o europeu e o indígena; o europeu e o africano; a
agricultura e o pastoril; a economia agrária e a mineira; o católico e o herege; o
bandeirante e o senhor de engenho; o escravo e o senhor de engenho. 
A oposição entre as classes dominantes e subalternas, ou seja, entre a casa grande e
a senzala, é apresentada como o sustentáculo da formação do Brasil colonial (REIS,
2007). É importante observar que as interpretações de Freyre eram elaboradas a
partir de um determinado lugar, usando sua expressão, a “casa grande”,
representada pelos senhores de engenho e os cafeicultores, ambos exaltados como
heróis (REIS, 2007).
Figura 1 - Representação da oposição entre a casa grande, ao fundo e os africanos escravizados. Fonte:
Everett Historical, Shutterstock, 2018.

Seguindo as ideias de Freyre, a formação da colonização portuguesa nos trópicos,


isto é, no Brasil, possui três elementos fundantes que tornaram possível a expansão
econômica da colônia: o latifúndio, a miscigenação e a escravidão. Freyre expõe as
causas para a empreitada da colonização portuguesa, trazendo como bases centrais
a miscigenação, o sucesso da colonização e as qualidades dos heróis: os
portugueses. Pode-se dizer que era uma escrita aristocrática da colonização
brasileira (REIS, 2007).
Essa visão elitista, dos portugueses como heróis, já era defendida por Varnhagen,
em 1850. Segundo Reis (2007), Freyre caracteriza a languidez do povo brasileiro, pois
a ampulheta do relógio é mais lenta, une o tempo ibérico, que já é moroso, com o
tempo dos aristocratas, deitados na rede, a serem servidos, sem precisar trabalhar. É
a ideia de continuidade entre a colônia e a nação, que defende a colonização
latifundiária e a mão de obra escrava para superar os obstáculos colocados à
constituição da civilização e da nação brasileira (FREYRE, 1933).
Freyre defende e romantiza os colonizadores portugueses, afirmando que, naquele
momento, diante do contexto e do meio, não existiria nenhum modo melhor de
efetivar a colonização se não pela escravidão. E se, em alguns pontos, as teorias de
Freyre se unem às de Varnhagen, aqui, elas se distanciam pois Varnhagen aponta
outros meios para a colonização, diferentes da escravidão e do latifúndio (REIS,
2007). No entanto, se engana aquele que pensar que esta era uma defesa da
exploração da mão de obra africana, pois era justamente ao contrário, a escravidão
era vista como negativa, devido à influência dos costumes e da cultura africana que
foi trazida com ela. Vemos que a questão racial já era objeto dos intelectuais que,
naquele momento, pensavam a escrita da história da nação que se formava
(SCHWARTZ, 2001).

4.1.2 Conceitos centrais em sua obra: patriarcalismo e miscigenação


Os termos raça e miscigenação, ao contrário do que possa parecer, não são
conceitos neutros. Ambos termos carregam em si uma forte carga política e
ideológica sendo mobilizada por diversos discursos. Até o século XIX a mestiçagem,
isto é, a mistura da raça branca, no caso o europeu, com o africano ou indígena era
um sinal da incivilidade da nação ou uma tentativa política de “embranquecer” a
cultura e a população brasileira (SCHWARCZ, 1996).
Freyre (1933) ao defender o latifúndio e a escravidão, aos olhos do período,
valorizou a presença de africanos no Brasil, entretanto, estes permaneceram no
lugar de subalternidade. Essa valorização é vista de modo crítico por diversos
pesquisadores da atualidade empenhados no combate ao racismo. Para Freyre
(1933) a cultura negra trouxe a alegria e a sensualidade dos negros, principalmente
das mulheres negras, que ele denomina com o estereotipo pejorativo de “mulata”.
Nesse sentido, o autor afirma que mesmo com a presença negra, a colonização foi
um sucesso devido a predisposição dos portugueses à miscigenação. Sobre essa
afirmação, vemos em sua obra o estereótipo da mulher negra como linda e sensual,
naturalmente apta ao sexo e a mulher branca destinada ao casamento. Nas suas
palavras: “para excitar-se diante da noiva branca precisou, nas primeiras noites de
casado, de levar para a alcova a camisa úmida de suor, impregnada de budum, da
escrava negra sua amante” (FREYRE, 1933, p. 368).
Freyre (1933) irá desenvolver a ideia de “democracia racial”, mas que devido a
severas críticas feitas por essa concepção, vamos denominar de “mito da
democracia racial.” Essa noção, buscava exaltar a mistura das raças e das culturas e
descartava as diferenças entre elas. Aqui, é importante enfatizar que Gilberto Freyre
não irá utilizar esse termo “democracia racial” em sua obra, mas irá desenvolver os
pressupostos e fornecer um status científico a esta ideia, que será depois
consolidada através deste termo. Freyre chegou a mobilizar um termo semelhante a
esse para representar essa concepção, “democracia étnica”.
Segundo Freyre (1933, p. 18) “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na
alma quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena,
e ou do negro”. Com um olhar distante, o discurso de que todos somos miscigenados
de Freyre, soava bem aos ouvidos da época, no entanto, este camuflava em sua obra
a hierarquia entre as raças e até mesmo enaltecia e romantizava a violência da
escravidão, apontando a suposta bondade dos senhores de engenho e construindo
uma história da escravidão brasileira, em oposição à norte americana, como uma
escravidão mais amenas e branda. 
Nesse pensamento, se conformava a ideia de que existia uma relação harmoniosa
entre as três raças formadoras do Brasil, o africano, o índio e o branco. Este é o que
chamamos de “mito da democracia racial” que reproduz até hoje discursos
equivocados sobre as relações raciais no Brasil (MUNANGA, 2004). A partir disso
refletimos: nunca existiu violência na escravidão? A escravidão era algo bom para os
africanos? Se existia harmonia, o Brasil é um país sem racismo? 

VOCÊ SABIA?
O termo raça ao longo da história teve seu sentido alterado, sendo objeto de diversos discursos
científicos, biológicos e políticos. Num primeiro momento, o termo foi cunhado na zoologia e na
botânica para dividir os animais e plantas. A partir do século XVIII, com as teorias iluministas e
científicas, o termo raça, passa a ser utilizado para o ser humano. No entanto, no século XX, essa
teoria foi contestada, atestando a não existência da raça como instrumento da biologia. Nos dias
atuais, esse conceito biológico foi superado, compreendendo que este foi criado inscrito nas
relações de poder para hierarquizar os povos, contudo, seus efeitos ainda existem como podemos
ver através dos preconceitos raciais. Os movimentos sociais usam o conceito de raças através do seu
cunho político de resistência (MUNANGA, 2004).

A escrita de Freyre, segundo Reis (2007), é preocupada com o espaço privado e com
as práticas sociais do cotidiano, evidenciando a família para entender a formação do
Brasil. A casa grande, não era apenas o símbolo da economia colonial, mas também
era um núcleo social de grande poder. A estrutura patriarcal e disciplinadora da
família constituída nas casas grandes, foram o sustentáculo para o desenvolvimento
econômico, político e social da nação.
Assim como a mestiçagem e a boa escravidão, a organização das famílias dos
engenhos do nordeste, os núcleos familiares da elite, se tornariam aos olhos de
Freyre (1933), o modelo e a essência vivida em todo o gigante Brasil, em suma uma
generalização, contestada por muitos historiadores. A família patriarcal era
composta não apenas da família nuclear, mas também pelos africanos escravizados,
afilhados, filhos bastardos, criados, padres, capelães, entre outros. 

4.1.3 A base da formação colonial na construção do Brasil sob olhar


de Gilberto Freyre
Em suma, a perspectiva de Freyre (1933) defende que a escravidão e mestiçagem
seriam dimensões fundamentais e particulares do panorama brasileiro,
caracterizando a escravidão como "boa", onde prevalecia a exploração, mas
também as relações familiares (SCHWARCZ, 2001). Contudo, o que este autor não
menciona e que era a chave central do sistema escravista, são as relações de poder
hierárquicas entre brancos e negros e que permanece mesmo após a abolição da
escravidão, a exemplo de práticas racistas.
Neste aspecto, a sua obra considera que os africanos tiveram participação
fundamental na formação do Brasil, contudo, esta participação é vista apenas como
segundo plano, como uma contribuição, enquanto os portugueses eram vistos como
heróis da construção da nação.  Isto é, vemos uma narrativa construída a partir do
olhar da casa grande, da elite patriarcal, há uma valorização seletiva da cultura
africana, mas é o cotidiano da casa grande e da família patriarcal que é visto como a
principal característica do brasileiro.

CASO
Uma professora do 9º ano do ensino fundamental, depois de passar o conteúdo relativo as
consequências da escravidão no Brasil e de fazer uma reflexão sobre o racismo no Brasil, entrega aos
alunos uma atividade. Fazer uma análise da música do rapper Gabriel, o Pensador chamada de
“Racismo é burrice” (PENSADOR, 2003). Em sua letra, a música exalta a miscigenação e as misturas
raciais, reafirmando diversas vezes que o Brasil é uma mistura de raças. Os alunos após lerem a letra
da música responderam à atividade, argumentando que no Brasil não existe racismo, pois todos
somos uma mistura de raças e todos nós somos iguais. Diante disso, a professora teve que fazer uma
intervenção e retomar a aula sobre o contexto do racismo no Brasil, explicando que, embora haja
naturalmente toda essa mistura de etnias, o racismo ainda é presente, pois várias pessoas se
excluem desse processo de miscigenação.

Kabengele Munanga (2004) afirma que devido a criação do Mito da democracia


racial, iniciado por Freyre, que buscou defender a ideia de um Brasil que nasceu da
mistura das raças e que todas estas viviam harmonicamente, há a formação de ideia
equivocadas sobre o Brasil que circulam no pensamento da sociedade, como por
exemplo, a afirmação da inexistência do racismo no Brasil devido a harmonia das
etnias. Portanto, a falácia da democracia racial, segundo Munanga (2004), é uma
corrente ideológica que tem como intuito esconder as desigualdades raciais e
afirmar a existência de uma situação de igualdade e de oportunidade para ambos.
Ao mesmo tempo a ideia da mistura, esconde a verdadeira realidade entre brancos e
negros, onde estes últimos são vítimas de preconceitos no seu cotidiano. 
Ainda sobre a valorização da mestiçagem que vemos no caso acima e também no
discurso de Freyre, Liv Sovik (2010) irá argumentar que a positivação deste, não
significa a alteração do lugar social de subalternidade dado aos negros e indígenas
pela superioridade branca. O que vemos seria apenas uma valorização seletiva
realizada com a concessão dos brancos, que permanecem como superiores. Em
linhas gerais, o discurso da mestiçagem construído por Freyre reproduziu, não a
valorização da mistura racial em si, mas o “embranquecimento” da população. O
que era valorizado não era o negro, mas o “moreno” e o “pardo”, termos construídos
para negar a existência dos negros no Brasil. Neste sentido, a mestiçagem, com sua
carga política, não significa uma saída para a eliminação do racismo na sociedade e
sim, é a continuação deste na sua dimensão camuflada.

4.2 Sérgio Buarque de Holanda: Raízes


do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda, intelectual oriundo de uma família modesta, publica
em 1936 a primeira edição da sua obra que marcou a interpretação sobre a história
do Brasil, Raízes do Brasil. Influenciado pelos seus estudos na Alemanha, a sua
escrita evidencia o historicismo alemão através de Weber e Ranke. Sua obra reúne
diversos ensaios que realizam uma crítica a colonização portuguesa. Publicada num
contexto em que o Brasil já era independente, a escravidão já havia sido abolida, no
entanto, o Brasil ainda permanecia sob a dominação das oligarquias agrárias, esta
obra buscou traçar uma alternativa para se afastar do poder das grandes oligarquias
rurais e formar uma nação moderna e democrática.

4.2.1 Sérgio Buarque de Holanda e o processo de colonização


A obra Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, publicada em 1936, foi escrita
em meio a conjuntura política de 1930, onde assistimos a emergência do governo
autoritário de Getúlio Vargas através da chamada "Revolução de 30", ao mesmo
tempo devido às mudanças das atividades econômicas, a burguesia começa a
ganhar força no cenário político do Brasil e a elite rural, antes hegemônica, perde
seu poder político (DIAS, 1985). Neste período, vemos a ascensão de uma nova
classe média, oriunda dos movimentos tenentistas, da burguesia e do operariado, e
a falência República Velha, isto é, a crise da política do café-com-leite. Esse
rompimento do passado que Sérgio Buarque de Holanda queria superar para vencer
o progresso (DIAS, 1985).
Na perspectiva de Holanda (1995) sobre o processo de colonização do Brasil, os
portugueses seriam os agentes naturalmente aptos para conquistar este território e
efetivar a civilização. Entretanto, apesar de apontar a necessidade natural da
colonização portuguesa nos trópicos, o autor evidencia as mazelas do projeto
colonizador. Neste viés, para construir seu argumento o intelectual criou dois
conceitos baseados nos “tipos ideais” de Weber, afirmando que na ocasião do
descobrimento, existia dois tipos de colonizadores: os aventureiros oriundos dos
países ibéricos, que tinham como objetivo somente as riquezas materiais; eram ao
olhar do autor, irresponsáveis, audaciosos e inclinados à vagabundagem; vindo dos
países nórdicos estavam os trabalhadores, estes calculavam os obstáculos antes de
chegar na sua conquista, com passos curtos e esforços limitados construíam um
modo de vida sólido e compensador (REIS, 2007).
Holanda (1995) aponta que na colonização do Brasil, prevaleceu o tipo aventureiro,
que segundo este, teria uma maior predisposição natural para a missão da
colonização. Esta dimensão seria a explicação para o caminho trilhado pela
colonização portuguesa movida pela exploração pura, a cobiça pelas riquezas sem
custos e fáceis e a busca por títulos e posições de status. Neste sentido, a
colonização portuguesa não teve um caráter racional e metodológico, estes só
vislumbravam a volta para Portugal e o desfrute das suas riquezas conquistadas, a
colonização portuguesa para Holanda na verdade, se tratou de uma feitorização
(DIAS, 1985).
Para Holanda (1995), o colonialismo e a escravidão deixaram uma herança marcante
na história brasileira e mesmo no século XX, o país ainda sofreu os malefícios dessa
herança, já que se encontrava numa economia enfraquecida, com uma elite
opressora e uma sociedade autoritária.

4.2.2 Termos e conceitos da obra Raízes do Brasil


A cultura da personalidade irá deixar sua marca no Brasil como uma sociedade que
foi colonizada e escravista. O projeto colonizador português, ao ver de Holanda, na
verdade não foi nada planejado e organizado, configurou também relações culturais
e sociais que foram diluídas para a formação de uma nação democrática,
assinalando como negativo a cultura ibérica das relações pessoais (REIS, 2007).
O principal legado desse passado colonial perpassado pelo paternalismo, é a
configuração do que Holanda chama de “homem cordial”, ou seja, aquele movido
pelos sentimentos e emoções. Essa característica, era muito presente na zona rural,
onde prevalecia o patriarcalismo e o paternalismo, sendo o poder do Estado
substituído pelo poder das oligarquias familiares, onde não existia a diferenciação
entre o âmbito privado e o público, e este primeiro frequentemente ultrapassava o
limite do público. O sentido de cordial não tem a ver com gentileza, mas é
mobilizado no sentido da diplomacia, isto é, até mesmo uma inimizade, assim como
a amizade pode ser cordial. O conceito foi retirado de uma carta do paulista Ribeiro
Couto ao escritor mexicano Alfonso Reyes, o termo “cordial” em sua expressão
original significa “relativo ao coração”, prevalecendo a ambiguidade e dubiedade do
termo (HOLANDA, 1995; REIS, 2007).

VOCÊ QUER LER?


Em 2007 o historiador João José Reis lançou o livro Identidade do Brasil de Varnhagen a FHC. Esta obra é
fundamental para compreender o movimento da historiografia brasileira do século XIX, a partir de 1850
com Varnhagen até o século XX em 1970 com Florestan Fernandes, passando por Gilberto Freyre, Sérgio
Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, entre outros historiadores essenciais para entender a história do
Brasil (REIS, 2007). Vale a pena conferir! 
Neste sentido, Holanda (1995) descreve que a cordialidade foi danosa, mas
representou o modo de organização da política nacional. Sublinhou que este
homem cordial, era adepto da hostilidade, pois estava acostumado a lidar com atos
extremos e com a violência usados do lado de fora da legalidade, ou seja, a violência
era inerente a este tipo ideal. Nesse viés, dentro da cordialidade há uma tentativa
constante de personalizar as relações interpessoais, isto conformava um verdadeiro
sistema político, onde amizades e lealdade pessoais eram essenciais, pois quem
regia as decisões não eram as leis, mas as emoções e a esfera particular
(FIGUEIREDO, 2003).

4.2.3 A base da formação colonial na construção do Brasil moderno


sob a perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda
No início da obra Raízes do Brasil, o autor trata da ideia de que nós brasileiros somos
“desterrados” na nossa própria terra, pois há uma supervalorização do legado da
cultura europeia, resultando na construção de uma identidade nacional que tinha
como essência a tradição lusitana. Aos países ibéricos, Holanda (1995), sublinha que
estes eram zonas fronteiriças, devido a formação tardia do seu Estado Nação e a
tardia integração de Portugal à Europa. Com isso, os portugueses, vivendo através
de tipos imprecisos e indecisos, tinham como indispensável a reafirmação do seu
valor individual expressos através dos títulos de nobreza. Essa extrema valorização
do individualismo e do personalismo, e a ambição pelas riquezas e títulos, levou à
história de Portugal um contexto caótico o que influenciou também o próprio
objetivo da colonização do Brasil e a posterior situação política brasileira,
caracterizada pela desorganização. Sobre este período, Amílcar Torrão Filho (2003),
irá afirmar que na visão de Holanda, a formação da sociedade colonial brasileira foi
sustentada fora dos meios urbanos, isto é, na cordialidade dos meios rurais.
Figura 2 - Representação do trabalho escravo africano nos engenhos da cana de açúcar, símbolos do
período colonial brasileiro. Fonte: Everett Historical, Shutterstock, 2018.

A raiz do Brasil é a raiz ibérica vinculada a Portugal, que nos olhos de Holanda é essa
cultura sem regras, sem obediências e que impede o Brasil se tornar uma nação
moderna e racional, tanto no plano econômico, como pessoal e administrativo. Ao
contrário do pensamento de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda evidencia
que a miscigenação não foi tão eficiente a ponto de afastar a cultura ibérica dos
brasileiros, pois essa cultura ainda triunfa. Para o primeiro autor, esta herança
portuguesa seria uma glória que deveria ter sido conservada, enquanto para
Holanda, isto deve ser apagado (DIAS, 1985).
A obra de Holanda é um clássico da historiografia brasileira, no entanto, assim como
as demais obras de historiografia, temos que compreendê-la dentro do seu contexto
de escrita e assim elaborar críticas a ela. Isto é, esta obra deve ser utilizada de modo
atento e crítico, evitando cair em equívocos históricos. Desde a sua primeira edição
em 1936, a obra foi reformulada e reescrita com aprovação do autor. Em 1948, foi
publicada a segunda edição da obra, contendo um viés mais ideológico e tendo
como plano de fundo o liberalismo. Em 1956, foi divulgada as alterações da terceira
edição e há uma ênfase na frouxidão da organização política oriunda das raízes
ibéricas. Na edição de 1963, há uma maior relevância dada a concepção do homem
cordial. A última edição aprovada em vida, foi publicada em 1969 (REIS, 2007).

VOCÊ QUER LER?


Em 2016, em comemoração aos 80 anos da primeira edição da obra clássica de Sérgio Buarque de
Holanda, Raízes do Brasil, os professores Lilia Moritz Schwarcz, da USP e Pedro Meira Monteiro, da
Universidade de Princeton, lançaram uma edição comemorativa desta obra com revisões e correções
feitas a partir dos próprios rabiscos do autor. O nome da obra é Raízes do Brasil – Edição Crítica.

Lilian Schwarcz (1996) chama atenção a uma crítica necessária a ser feita em relação
aos conceitos e tipos ideais trabalhados por Holanda (1995), pois estes são apenas
posições e não condizem com a realidade social propriamente dita, fato que ele
mesmo demonstra em sua obra. Ou seja, a cordialidade não é a expressão de cada
brasileiro, mas o autor aponta que esta é a perspectiva no qual a cultura brasileira
está fadada. É importante assinalar, que dentre as diversas edições de Raízes do
Brasil, buscou-se traçar a origem subjetiva do brasileiro, questionando os pactos
políticos, as relações estabelecidas entre o privado e o público, a lei universal e as
emoções do indivíduo. No entanto, como defende Lilia Schwarcz (1996), a obra não
é uma fórmula mágica para compreender o Brasil no presente, pois, como reitera
Holanda em todas as suas edições, a sua interpretação não é uma relação direta
entre o presente e a herança do passado, mas a necessidade de questionar e
problematizar essa herança ibérica, já que ela produziu práticas diversas em
diferentes contextos. Em suma, como historiadores, devemos ter a compreensão da
importância desta obra para o período histórico em que ela foi escrita, assim como
identificar as suas críticas e limites, contudo, os conceitos trazidos por ela, como a
cordialidade brasileira, devem ser mobilizados somente para apreender a história da
política brasileira no seu contexto de escrita, isto é, na década de 30. Para entender a
situação política do Brasil atual, não podemos utilizar os conceitos desta obra, pois
estaríamos sendo anacrônicos e a questão do problema se localiza mais no
presente, do que numa possível busca de uma origem no passado.
4.3 Caio Prado Júnior: Formação do
Brasil Contemporâneo
Em meio ao singular contexto político de 1930, diante da crise, da decadência da
República Velha e o surgimento de um novo governo, em 1942 o intelectual
comunista e militante do marxismo, Caio Prado Júnior publicou a sua obra A
formação do Brasil Contemporâneo. Dentre outras obras que se tornaram clássicas
nesta conjuntura da década de 30, esta também será voltada à formação de uma
identidade da nação e também ao entendimento das estruturas políticas do Brasil.
Caio Prado Júnior, assim como Gilberto Freyre e também Sérgio Buarque Holanda,
irá olhar para o passado colonial para buscar as respostas da existência dos
obstáculos que impedem o desenvolvimento do Brasil. Sua obra irá detalhar o perfil
da economia e política brasileira, da colonização até o início do século XIX, se
tornando um clássico da historiografia brasileira ao fornecer uma interpretação aos
acontecimentos da década de 1930.

4.3.1 Caio Prado Júnior e a formação do processo de colonização


Na obra A formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Júnior (1963) com o
objetivo de entender a evolução política e econômica do Brasil, retoma a origem da
nação a partir de uma interpretação marxista, se atendo às dimensões do Estado e
das classes sociais, percepção então, ausente até o momento da publicação da sua
obra. Prado Júnior faz uma análise marxista apoiada no materialismo histórico,
onde o fator econômico orienta e é preponderante sob os demais elementos da
superestrutura.
A ideia central da sua obra sobre a formação do Brasil do presente, isto é, da década
de 1930, é que este se dimensiona pelo o que foi o Brasil na sua fase colonial até o
século XVIII. Em outras palavras, para o autor, o início da formação da nação ocorreu
a partir da colonização e este passado colonial teria continuações ainda no presente.
Para ele, ao contrário do que seria recorrente, o Brasil não teria passado por uma
transição entre o feudalismo e o capitalismo, como seria o caso europeu, mas este
teria passado por uma estrutura colonial que foi desde o início vinculada ao
capitalismo e a uma situação nacional que também estaria vinculado ao
capitalismo, características estas, que ainda permanecem na história brasileira
(IGLESIAS, 1982).
No que diz respeito ao fator econômico, Prado Júnior afirma, que o trabalho livre
não se estruturou efetivamente em todo o país até o período da sua escrita. Existiam
locais em que o trabalho livre e assalariado estava bem alocado, mas predominava
ainda no Brasil a herança viva da escravidão, argumentando assim, que a economia
brasileira ainda não tinha completado seu ciclo de evolução da fase colonial para
nacional. Semelhante ao plano econômico, as relações sociais também se
encontravam no seu estado colonial, com a desigualdade entre as riquezas de cada
indivíduo e também o desproporcional status moral de cada um (IGLESIAS, 1982).
Neste horizonte escrito por Prado Júnior (1963), as mazelas da sociedade brasileira
do período em que escreveu, não são novos, mas ainda consequências dos mesmos
problemas que assolaram o Brasil no século da colonização, não havendo reais
mudanças para solucionar tais problemas.

4.3.2 A expressão 'o sentido da Colonização' para Caio Prado Júnior


Caio Prado Júnior em sua obra chama atenção à interpretação feita sobre a
colonização do Brasil, salientando que esta não deve ser analisada como um fato
isolado e resultado direto do descobrimento, mas pelo contrário, para ter essa
compreensão deve se retomar a expansão marítima europeia a partir do século XV.
O autor defende que deve se entender o Brasil colonial dentro da rede complexa da
expansão do poder europeu, sendo esta primeira uma extensão dessa totalidade.
Somente assim é possível apreender o conjunto da sociedade colonial e o
verdadeiro sentido da colonização, termo fundamental utilizado por ele (PRADO
JÚNIOR, 1963).

VOCÊ QUER VER?


A professora Virgínia Fontes, historiadora e professora-pesquisadora da Universidade Federal Fluminense
e da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, aborda o complexo pensamento de Caio Prado
Júnior, necessário para compreender as nuances da historiografia brasileira na década de 1930. O vídeo
de sua palestra <https://www.youtube.com/watch?v=lk12MECGKbI (https://www.youtube.com/watch?
v=lk12MECGKbI)> apresenta importantes dimensões do pensamento da clássica obra do autor, A
formação do Brasil contemporâneo (FONTES, 2013).
A partir desse sentido da colonização todas as relações estabelecidas no âmbito
colonial, como a exploração, a ocupação e os aspetos materiais e sociais, não são
meras coincidências, mas resultados desse termo fundamental da obra de Caio
Prado Júnior. Nessa conjuntura, o sentido da colonização explica essas relações e os
acontecimentos que se seguirão do fenômeno da colonização, não sendo obras da
causalidade (PRADO JÚNIOR, 1963).
  A partir da expansão marítima europeia a história brasileira se entrelaça com a
história da Europa, sendo o funcionamento da colônia americana tendo como
finalidade o comércio europeu, isto é, abastecer Portugal com os gêneros tropicais e
riquezas minerais. Isto explica, o desinteresse dos portugueses em povoar e habitar
a colônia, já que seus objetivos seriam apenas da exploração para exportação
(PRADO JÚNIOR, 1963).
Todas as atividades executadas na colônia tinham como propósito, abastecimento
do mercado externo, até mesmo o desenvolvimento na agricultura. Esta foi
possibilitada não devido aos fatores naturais das terras brasileiras, mas pela
escassez de alguns alimentos tipicamente tropicais que não eram produzidos na
Europa. Nesse sentido, conforme Caio Prado Júnior, quem ditava as regras de
exploração da colônia americana era os mecanismos do comércio europeu. Com
exceção apenas das atividades voltadas para a subsistência dos colonos e
colonizados, as demais eram proibidas e reprimidas pela coroa portuguesa (REIS,
2007).

VOCÊ QUER VER?


A Biblioteca Nacional publicou em seu acervo digital, a versão virtual da exposição sobre o centenário de
Caio Prado Júnior, ocorrida em 2007, devido às comemorações dos 100 de nascimento desse intelectual.
A exposição virtual apresenta além da complexa biografia do autor, recortes de jornais, depoimentos e
entrevistas relacionadas à vida e obras do historiador (BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL, 2018).
A administração da colônia americana pela coroa portuguesa, no olhar de Caio
Prado Júnior (1963) era sinônimo de um sistema caótico e desorganizado. Isto seria
consequência da cobiça dos colonizadores portugueses, que só queriam retirar as
riquezas do território para o crescimento de sua metrópole. O fracasso da
administração colonial era o reflexo da administração da metrópole. Em oposição ao
que pensava Sérgio Buarque de Holanda, para Prado existia um projeto colonizador
para a colônia americana, sistematicamente pensado para buscar os lucros para o
mercado europeu, isto é, a acumulação primitiva do capital. Até mesmo as
diferenças regionais eram produtos da lógica do comércio externo. O sentido da
colonização para Prado Júnior é a apreensão da colônia como uma dimensão
orgânica do comércio europeu, isto é, a criação de locais estabelecidos por uma
lógica e dinâmica que lhe é exterior, sem possuir uma dinâmica própria (RABELLO,
1985).

4.3.3 A base da formação colonial na construção do Brasil moderno


sob a perspectiva de Caio Prado Júnior
Para descrever o povoamento da colônia, Prado Júnior divide esse momento em
três fases. A primeira, iniciada com a colonização e até o século XVII, seria a
ocupação inicial dos portugueses que vai do litoral do Amazonas até o Rio da Prata,
e para o interior adentrando no Nordeste e o planalto de São Paulo e Paraná. A
segunda fase, compreende o período do século XVIII com a busca pelo ouro em
Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, ocasionados com a crise da pecuária no
nordeste. A terceira fase, iniciada a partir do final do século XVIII e até o XIX, é
resultado das migrações para o sul e para o planalto paulista, com o objetivo de
recuperar a economia paulista em decadência (PRADO JÚNIOR, 1963).
Em todo esse processo das três fases de povoamento, há a inserção de novas
atividades, como o cultivo do café, há também novas transformações que irão
deslocar o eixo econômico do Brasil, que passa do nordeste ao centro do país, até se
fixar nas capitanias de Rio de Janeiro e São Paulo (REIS, 2007).
Figura 3 - Representação de um indígena que era considerado por Caio Prado Júnior como um dos
obstáculos da civilização no Brasil. Fonte: Marzolino, Shutterstock, 2018.

Prado Júnior também aborda os cruzamentos raciais no Brasil, nessa análise ele
considera os indígenas como um dos maiores problemas enfrentados para alcançar
o progresso da colônia, ou seja, uma visão pautada nos ideais eurocêntricos. Ainda
nesse seguimento, Prado Júnior irá afirmar que os negros e indígenas por serem
raças inferiores, não poderiam ascender na sociedade, enquanto, os brancos, que
após a abertura dos portos em 1808 aumentaram de número consideravelmente,
podiam facilmente ascender socialmente (PRADO JÚNIOR, 1963).

VOCÊ SABIA?
O termo “negro”, frente aos movimentos sociais, se refere a uma identidade política, resultado de
uma construção sócio histórica. O conceito de negro tem um fundamento etnossemântico, político e
ideológico, mas não biológico. No Brasil, declarar-se negro é uma escolha política, por isso esse
termo não é sinônimo de africano. O termo foi empregado num primeiro momento de modo
pejorativo pelos colonizadores na África, depois foi ressignificado e reapropriado pelos africanos
como sinônimo de luta (MUNANGA, 2004).
Reforçando a perspectiva eurocêntrica, Prado Júnior (1963) irá argumentar que a
efetiva atuação dos negros e indígenas na história do Brasil, só ocorreu em
decorrência da reduzida mão de obra europeia necessária para realizar a ocupação e
colonização do território americano. Nesse sentido, o autor seguiu o pensamento de
Gilberto Freyre, apontando a miscigenação das três etnias como a expressão da
identidade brasileira, sendo isso só possível diante da natural aptidão do Português
em cruzar as raças (REIS, 2007).
Prado Júnior (1963) ao tratar da dimensão social, evidencia a escravidão como
principal elemento do século XIX da sociedade brasileira. Irá se ater a distinção entre
a escravidão americana das demais experiências escravistas, colocando esta como
singular. Para ele a escravidão americana foi a pior e mais violenta experiência,
principalmente quando comparada à escravidão romana, já que nesta primeira, o
escravo seria uma máquina de trabalho inconsciente.

Figura 4 - Representação das navegações usadas na expansão marítima europeia que resultou na
colonização do Brasil sob o olhar de Caio Prado Júnior. Fonte: Everett – Art, Shutterstock, 2018.
No olhar do autor, o descobrimento do Brasil foi consequência da expansão
marítima europeia e a colonização do Brasil resultado das necessidades do
comércio europeu. Nesse viés, três séculos após o descobrimento do Brasil e a
formação da colônia, o Brasil se encontrava na mesma conjuntura, isto é, sob
dependência do comércio europeu.
No panorama do pensamento de Caio Prado Júnior, é preciso estar atento que este
concebeu esta narrativa de acordo com as demandas e com o contexto histórico e
político do momento, isto é, o início de um governo autoritário de Getúlio Vargas.
Nesse sentido, devemos nos ater a este contexto para avaliar e examinar as
contribuições desta obra para o período, assim como as críticas feitas a ela. 

4.4 Entre Fernando Novais e João


Fragoso: o papel do mercado interno e o
Arcaísmo como projeto
O século XX marca a produção de diversos clássicos da historiografia brasileira,
preocupados com a formação da nação, como já vimos neste capítulo. Caio Prado
Júnior e depois posteriormente Fernando Novais, passaram a compreender o
período colonial como fundamental para explicar a formação do Brasil, contudo este
passado deveria ser superado. Fernando Novais aperfeiçoou a teoria de Caio Prado
Júnior, considerando ainda o “sentido da colonização”. A partir da década de 1990
historiadores ligados à “Escola do Rio”, como Manolo Florentino e João Fragoso
renovaram a historiografia sobre o Brasil colonial e rediscutiram pontos chave das
interpretações anteriores, conformando uma ruptura historiográfica.

4.4.1 O sistema colonial por Caio Prado Júnior e Fernando Novais


Fernando Novais na década de 1970 reformulou as ideias do sentido da colonização
de Caio Prado Júnior, colocando esta concepção num panorama mais amplo da
mudança entre o feudalismo e o capitalismo industrial na Europa. Novais (1979)
argumenta que a colonização da américa portuguesa foi semelhante a
determinados processo que ocorreram na Europa, como a formação dos Estados-
nação, a estruturação do capitalismo e a formação de uma cultura laica. Deste
modo, o autor insere a colonização da américa portuguesa no processo de formação
do capitalismo mundial e na própria história da Europa.
Para Novais (1979) é no período da idade Moderna que o sistema colonial tem seu
sentido real em plena expansão, tornando-se parte do projeto mercantilista. Nesta
conjuntura, é a função principal da colônia fornecer produtos e manter a economia e
o desenvolvimento da metrópole. Neste contexto da expansão marítima, temos a
imersão e o domínio do mercantilismo como ferramenta essencial do absolutismo.
Ou seja, na visão do autor o mercantilismo estava vinculado ao absolutismo, na
medida em que este primeiro proporcionava a centralização e a unificação política,
permitindo o afastamento da crise do feudalismo e a expansão comercial. Nesse
aspecto, a colonização do Brasil é entendida como um resultado da expansão
comercial europeia e vinculada à formação do capitalismo mundial. Vemos que
tanto Fernando Novais, quanto Caio Prado Júnior apresentam uma explicação para
o sentido da colonização, embasado no capital comercial e na produção ao mercado
externo, no entanto, Novais desloca esse argumento para uma explicação mais
ampla.
Novais exemplifica da seguinte forma:

se combinarmos, agora, esta formulação – o caráter comercial dos


empreendimentos coloniais da época moderna – com as considerações
anteriormente feitas sobre o antigo Regime – etapa intermediária entre a
desintegração do feudalismo e a constituição do capitalismo industrial – a
ideia de um “sentido” da colonização atingirá seu pleno desenvolvimento
(NOVAIS, 1979, p. 30).

VOCÊ O CONHECE?
Na mesma linha historiográfica de Caio Prado Júnior e Fernando Novais, está a publicação da obra
Formação Econômica do Brasil em 1959 pelo economicista Celso Furtado. Furtado também enfatiza o
período colonial como essencial para estudar o Brasil do seu tempo presente, de modo a aprofundar as
considerações de Caio Prado Júnior (FURTADO, 1982).

Caio Prado Júnior ao tratar das razões da escravidão africana, argumenta que isso
ocorreu devido à escassez de contingente populacional em Portugal e a grande
oferta de mão de obra indígena na colônia americana. Fernando Novais (1979)
argumenta que a razão da escravidão africana era os próprios lucros e excedentes
comerciais gerados com o tráfico de escravos. 

Figura 5 - Representação do mercado de venda de africanos escravizados que gerava grandes lucros.
Fonte: Everett Historical, Shutterstock, 2018.

Segundo Novais (1979), a interpretação de Prado Júnior enfoca o comércio, e não


evidencia que o sentido da colonização estava vinculado a uma das dimensões de
formação do capitalismo e só afirma a consequente formação da economia nacional
oriunda da economia colonial. Prado Júnior sublinha que o comércio externo criou a
colônia e a nação brasileira, mas não denotou o panorama geral da transição da era
moderna pró-capitalismo. Novais (1979) realça que esse passado colonial do Brasil
produziu uma formação social chamada por ele de “Antigo Sistema Colonial”, que
explicaria o processo de formação do capitalismo por meio da acumulação primitiva
de capital, conforme o que ocorreu na colônia portuguesa. Deste modo, criou-se a
exclusividade da colônia, em que a colônia só poderia produzir os gêneros
alimentares que não concorressem com o mercado da metrópole e só podiam
vender seus bens para esta.

4.4.2 O sistema colonial por Caio Prado Júnior, João Fragoso e


Manolo Florentino
Caio Prado Júnior abordou a história do Brasil buscando a sua totalidade,
estudando o recorte entre o século XVIII e XIX, para entender o século XX, período
que na sua visão sintetizada, a fase colonial do Brasil era representativa do sentido
da colonização que influenciou até o século XX. Para ele a colonização se explicava
pela sua vinculação dependente com o mercado externo, isto é, o mercado europeu.
João Fragoso, em 1992, publica a sua obra Homens de grossa aventura. Sua obra
abrangeu o mercado do Rio de Janeiro entre o século XVIII e o início do século XIX,
no entanto, Fragoso não procura encontrar um ponto explicativo da totalidade do
período colonial, mas contestar os modelos tradicionais. Nesse sentido, irá defender
que a teoria de Caio Prado Júnior não dava conta de evidenciar todo período
histórico, já que as atividades da colônia não eram somente dependentes do
mercado externo. Ele não nega as contribuições de Caio Prado Júnior, mas amplia e
questiona suas conclusões, apontando que a monocultura latifundiária escravista
era uma das tantas outras atividades comerciais da colônia e que também era
movimentada por uma lógica interna de mercado.
Fragoso (1992) aponta que a colonização portuguesa não era guiada por um
capitalismo da metrópole, já que existia regras do Antigo Regime que orientava a
sociedade, como a estrutura hierárquica de status e busca por títulos de nobreza e
ascensão social. Caio Prado Júnior (1963) também argumenta a existência de um
poder aristocrático em torno dos status dos proprietários de terras.  Isto, ao ver de
Fragoso, conformava não uma economia capitalista, mas uma economia mercantil
configurada a partir do investimento em compra de títulos e atividade honoríficas.
Figura 6 - Representação do poder da aristocracia que envolvia a sociedade colonial brasileira. Fonte:
Everett Historical, Shutterstock, 2018.

Neste sentido, para Fragoso, é o perfil da economia colonial não capitalista que
promoveu a independência da colônia ao mercado externo. No entanto, isso não
quer dizer que Caio Prado Júnior defendeu a existência de um capitalismo colonial,
ele apenas inseriu a colônia num cenário do mercado internacional. Fragoso
defende que o comércio da colônia, desde seu início, foi mobilizado por
comunidades locais de comerciantes que estavam conectados com uma rede de
outras atividades, fornecendo assim a independência da colônia em relação ao
mercado europeu. Ao contrário deste, Caio Prado Júnior não irá considerar essas
outras atividades realizadas pelos mercadores, tendo vistas apenas para o que era
exportado.
Fragoso e Florentino em sua obra O arcaísmo como Projeto, publicada pela primeira
vez em 1993, ao estudar o comércio fluminense entre 1790 e 1840, defenderam a
autonomia do mercado interno em relação ao cenário comercial internacional. Os
autores propuseram uma nova interpretação para a história do Brasil colonial,
apontando que a colonização não foi produto da expansão comercial da metrópole,
mas foi resultado da nobreza do antigo regime. Na colonização ibérica, a sua
finalidade não era a potencialização da burguesia da metrópole, mas pelo contrário,
objetivava a extinção dessa classe e o abastecimento do poder da nobreza. Isso seria
a justificativa para que nunca houvesse dentro da colônia uma supremacia do
capital metropolitano, pois este sofria concorrência dentro do império. Com isso,
dentro da colônia se desenvolveram comunidades mercantis, como a praça do Rio
de Janeiro, abordada em sua obra (FLORENTINO,1992; FRAGOSO, 1999).
Nestas condições, as comunidades mercantis alcançaram o objetivo de abastecer o
mercado da metrópole, mas também colocaram obstáculos ao crescimento da
burguesia em Portugal. A coroa portuguesa porém, não colocou empecilhos ao
desenvolvimento do mercado interno, que se desenvolveu a partir de três fatores:
mão de obra, alimento e terras. A mão de obra escrava africana era formada por uma
complexa rede comercial amplamente mobilizada em toda a sociedade,
favorecendo o surgimento em diversas regiões de pequenos proprietários e um
maior fluxo na oferta e no preço dos escravizados (FLORENTINO, 1992; FRAGOSO,
1999).
Em resumo, em Fragoso (1999) vemos uma maior relevância dada ao comércio
interno de gêneros alimentares, que tinha grande representação dentro da
economia colonial.

4.4.3 O papel da escravidão e a ausência de capital interno


circulante na construção do Brasil
A escravidão e o capital interno foram objetos de discussão entre os intelectuais da
historiografia brasileira, como vimos acima com Caio Prado Junior, Fernando
Novais, João Fragoso e Manolo Florentino. Caio Prado Júnior, enfatiza o trinômio
escravismo, latifúndio e monocultura como a base da economia colonial que irá
gerar o mercado interno e externo.
Figura 7 - Representação do cotidiano da violência do sistema escravista causado aos africanos
escravizados. Fonte: Everett – Art, Shutterstock, 2018.

Em suma, as concepções trazidas pelos intelectuais da “Escola do Rio”, João Fragoso


e Manolo Florentino, colocaram novos atores na cena do período colonial brasileiro,
apontando a importância do capital interno que circulava na colônia através de
marcadores locais. As redes comerciais e movimentações desses mercadores,
sobretudo nas capitanias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, juntamente com o
mercado voltado à subsistência, permitiram à colônia portuguesa a acumulação
interna de capital e a manutenção dos latifúndios, proporcionando assim uma
independência em relação ao mercado europeu (REIS, 2007). Deste modo, ambos
autores não recusavam as propostas de Caio Prado Júnior, mas apontavam
elementos que faltavam em sua análise, questionando a expressão o “sentido da
colonização”.

Síntese
Você concluiu os estudos sobre os clássicos da historiografia brasileira do século XX,
apreendendo sobre as contribuições, conceitos, avanços e retrocessos nas
interpretações sobre a história do Brasil colonial a partir de diversos autores, são
eles: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Fernando
Novais, João Fragoso e Manolo Florentino. Vimos que o período colonial, a
escravidão e o conceito de raça foram objetos de diferentes discursos, sendo que em
alguns autores vimos a perspectiva de superar esse passado e em outros a exaltação
do passado colonial.
Neste capítulo, você teve a oportunidade de:
refletir sobre as contribuições de cada um dos autores da historiografia
brasileira;
compreender o papel de cada um dentro da historiografia e também as
críticas feitas às suas obras;
apreender o conceito de “democracia racial” de Gilberto Freyre, mas também
as suas críticas e consequências;
entender a concepção de “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda;
identificar a expressão “Sentido da colonização” para Caio Prado Júnior e as
críticas feitas pelos intelectuais posteriores.

Referências bibliográficas
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2018. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/exposicoes/caio-prado-jr/
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