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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO, FILOSOFIA E
HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS

ELIENE BARBOSA LIMA

MATEMÁTICA E MATEMÁTICOS NA UNIVERSIDADE DE


SÃO PAULO: ITALIANOS, BRASILEIROS E BOURBAKISTAS
(1934-1958)

Salvador - Ba
2012
ELIENE BARBOSA LIMA

MATEMÁTICA E MATEMÁTICOS NA UNIVERSIDADE DE


SÃO PAULO: ITALIANOS, BRASILEIROS E BOURBAKISTAS
(1934-1958)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Ensino, Filosofia e História das Ciências da
Universidade Federal da Bahia, Universidade Estadual
de Feira de Santana, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Doutora em Ensino, Filosofia e
História das Ciências, na área de concentração de
História e Filosofia das Ciências e implicações para o
Ensino das Ciências.

Orientador: Prof. Dr. André Luis Mattedi Dias

Salvador – Ba
2012
Biblioteca Central Julieta Carteado – UEFS

Lima, Eliene Barbosa


L697m Matemática e matemáticos na Universidade de São Paulo:
italianos, brasileiros e bourbakistas (1934-1958). / Eliene Barbosa
Lima. – Salvador, BA, 2012.
260f.

Orientador: André Luis Mattedi Dias

Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ensino,


Filosofia e História das Ciências, Universidades Federal da Bahia,
Universidade Estadual de Feira de Santana, 2012.

1.Geometria algébrica – História. 2.Escola italiana. 3.Escola


bourbakista. 4.Matemáticos brasileiros – História. 5.Abordagens
geométrica e algébrica. I.Dias, André Luis Mattedi. II.
Universidade Federal da Bahia. III.Universidade Estadual de Feira
de Santana. IV. Título.

CDU: 512.7(09)
ELIENE BARBOSA LIMA

MATEMÁTICA E MATEMÁTICOS NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO:


ITALIANOS, BRASILEIROS E BOURBAKISTAS (1934-1958)

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Ensino,
Filosofia e História das Ciências, na área de concentração de História e Filosofia das Ciências
e implicações para o Ensino das Ciências da Universidade Federal da Bahia, Universidade
Estadual de Feira de Santana.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Circe Mary Silva da Silva Dynnikov


Doutora em Pedagogia, Universitat Bielefeld
Universidade Federal do Espírito Santo

Prof. Dr. Jean Fernandes Barros


Doutor em Matemática, Universidade Federal de Pernambuco
Universidade Estadual de Feira de Santana

Prof. Dr. Aurino Ribeiro Filho


Doutor em Física, University of Essex
Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. Olival Freire Junior


Doutor em História Social, Universidade de São Paulo
Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. André Luis Mattedi Dias (orientador)


Doutor em História Social, Universidade de São Paulo
Universidade Federal da Bahia

Salvador – Ba
2012
Eliezer Cerqueira Lima (in memoriam)
AGRADECIMENTOS

Durante os mais de quatro anos de doutorado, a caminhada nem sempre foi fácil. Não
raro, pareceu-me impossível de ser realizada, mesmo tendo o conforto de saber que fui eu
quem a escolheu para fazer. O que prevalece, na maioria das vezes, ainda que tenhamos o
amparo do orientador, é o processo solitário de escrita, a diária convivência de fazer e refazer
argumentos, que precisam estar bem fundamentados, num processo que envolve tempo, prazo
para terminar, exigência que faz parte de todo e qualquer curso de pós-graduação,
independentemente dos problemas surgidos ao longo dessa caminhada, tornando a tarefa
ainda mais árdua e dura.
Todos esses momentos são atenuados por algumas convicções que construímos ao
longo da vida e que, de alguma forma, fugindo de qualquer lógica, fortalece-nos e nos
impulsiona ao movimento, enfim, a não ficar, como dizia Raul Seixas, “no trono de um
apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar.”. Neste
sentido, agradeço a Deus pelo milagre da fé. E, ainda, pela presença de pessoas que são
importantes em nossas vidas desde sempre, de quando tive consciência de mim mesma. À
minha mãe em especial, Odete Barbosa Lima, que, só pela existência, já deixa o meu mundo
mais feliz e à minha irmã Elizete Barbosa Lima, pela ajuda constante e incondicional.
Devo dizer que sou uma pessoa de sorte, pois consegui construir laços tão fortes com a
minha eterna professora de matemática da escola básica, Georgina da Silva e Silva – nela me
inspirei e foi de sua responsabilidade o início da minha carreira profissional, a ponto de me
considerar, desde o início de nossa convivência, um membro oficial de sua família. Inclusive
com direito a tias, Maria das Graças da Silva e Genoveva Bacelar da Silva, tão generosamente
receptivas em sua casa quando eu morava em Ilhéus e precisava ficar em Salvador para
assistir às aulas do doutorado.
Com outras pessoas, a presença foi construída ao longo da minha vida, cada uma
com a sua própria história de como nos encontramos e começamos a ter pontos de
intersecção. Neste sentido, agradeço a Rosemeire Valadares, que deu condições para que eu
fizesse o curso de licenciatura em matemática quando eu trabalhava na escola em que dirigia e
mais adiante pela amizade fraterna, compreensiva e protetora de irmã mais velha. Ainda, a
Antonio Vilas Boas, ou simplesmente “Vilas”, uma amizade não tão diária, mas sólida, um
dos meus alicerces no processo de realização da minha dissertação quando muito gentilmente
cedeu os seus conhecimentos de historiador para fazer leituras e considerações acerca da
minha escrita. O outro alicerce foi Sandra Sinara Cerqueira, renovado aqui na realização dessa
tese. Novamente com as constantes leituras, críticas, discussões e sugestões, pela ajuda na
correção gramatical, na interpretação de alguns termos em inglês e na elaboração do abstract,
o que não me isenta da responsabilidade pelos eventuais erros cometidos. É também uma
amiga fraterna, a pessoa que me ajuda a enxergar a vida com mais otimismo, às vezes sem
dizer nada, só pelas ações generosas que sempre tem para com os seus semelhantes. Agradeço
ainda a outras amizades construídas no próprio período do doutorado, a Janice Lando e Inês
Freire, que se tornaram, além de amigas de frequentes reuniões de desconcentração, parceiras
de trabalhos. E Larissa Pinca, uma amizade conquistada no período em que lecionei na UESC.
Há aquelas pessoas que apareceram na minha vida profissional durante a minha
defesa de mestrado e permaneceram. Este é o caso específico do Prof. Dr. Wagner Rodrigues
Valente, a quem agradeço pela gentileza que sempre mostrou para comigo, notadamente por
ter se disponibilizado, desde a defesa de mestrado, a me ajudar no que fosse possível nesse
meu percurso de formação profissional. Outras vieram por terem aceitado o convite para
participar da minha banca de qualificação. Dessa forma, agradeço os comentários e sugestões
do Prof. Dr. Jean Fernandes Barros e do Prof. Dr. Aurino Ribeiro Filho. E, ainda, a Profa.
Dra. Circe Mary Silva da Silva Dynnikov pela generosidade, receptividade e disponibilidade
mostradas ao dar contribuições valiosíssimas a essa pesquisa. Agradecimentos estes
renovados pelas suas respectivas participações na minha defesa, os quais são estendidos ao
Prof. Dr. Olival Freire Junior. Houve aquelas que foram primordiais para um melhor
entendimento do que seja o ofício de ser historiador. Neste sentido, agradeço à Profa. Dra.
Lígia Bellini e ao Prof. Dr. Antonio Luigi Negro, pela receptividade e pelas excelentes aulas,
discutidas no mais alto nível em companhia de colegas historiadores muito generosos. As
discussões dos textos contemplando as várias facetas do fazer e da metodologia histórica
foram, sem a menor sombra de dúvidas, fontes inspiradoras para a realização dessa pesquisa.
Analogamente, abro espaço ainda para agradecer ao enriquecedor convívio e aprendizados
obtidos durante as aulas de História e Educação ministradas conjuntamente pela Profa. Dra.
Sara Martha Dick e a Profa. Dra. Joseania Miranda Freitas.
Sou grata ao meu orientador Dr. Prof. André Luis Mattedi Dias por sua importância ao
longo de minha formação profissional. Uma longa convivência gerou uma amizade, algumas
vezes mais explícita do que a própria função de orientador, manifestada pelos inúmeros
diálogos, não apenas para buscar o fortalecimento e a renovação de novos parâmetros dos
laços profissionais, mas, principalmente, pela busca do bem estar pessoal de ambas as partes.
Isso só fazemos por alguém que nos é muito importante. A André todo o meu respeito
profissional e toda a minha consideração, independente do futuro reservado para essa nossa
relação profissional.
E, por fim, mas não menos importante, agradeço à UEFS, representada na figura do
Diretor do DEXA Prof. Dr. Haroldo Gonçalves Benatti e, mais especificamente, à área de
Educação Matemática, por meio de sua coordenadora Profa. Dra. Andréia Maria Pereira de
Oliveira, que não mediram esforços, apesar do pouquíssimo tempo de chegada a essa
Instituição, para que eu pudesse concluir essa tese afastada das minhas atividades docentes.
Além disso, agradeço pela acolhida.
A todos vocês, mais uma vez, o meu mais profundo agradecimento.
RESUMO

Nesta pesquisa buscamos compreender o lugar que a Universidade de São Paulo ocupou na
rede internacional que configurou o desenvolvimento da geometria algébrica, durante o
período de 1934 a 1958. Fizemos esse recorte temporal, tendo como início o ano de chegada
dos matemáticos italianos na subsecção das ciências matemáticas da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e, como término, o último ano em que um
integrante da escola bourbakista esteve nessa faculdade realizando atividades acadêmicas.
Para tanto, fazendo uso de uma literatura vigente e de fontes, tais como livros didáticos, teses
de doutoramento, anuários, notas de aulas e autobiografia, buscamos responder os seguintes
questionamentos: 1) Quais foram os elementos que influenciaram no processo de constituição
do método geométrico e algébrico da matemática, em particular na geometria algébrica? 2)
Sob quais discursos foram estabelecidas as escolas italiana e bourbakista de matemática? 3)
Como as primeiras gerações de matemáticos brasileiros da Universidade de São Paulo
construíram a sua cultura matemática diante da influência da matemática da escola italiana e
da escola bourbakista, no intervalo de 1934 a 1958, período que melhor evidencia esta
influência? Apropriando-nos dos debates teóricos, metodológicos e epistemológicos do
campo da história, desenvolvemos essa pesquisa em duas partes. Na primeira, priorizamos o
processo de configuração do campo da geometria algébrica, especialmente acerca do
envolvimento das escolas italiana e bourbakista nesse processo. Na segunda parte, voltamos o
nosso olhar notadamente para o contexto brasileiro, estritamente para a subsecção das ciências
matemáticas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, para
o processo de constituição de suas primeiras gerações de matemáticos brasileiros formada sob
a influência das escolas italiana e bourbakista. Essas discussões foram imbricadas por
aspectos sociais, filosóficos, religiosos e políticos, visto que pareceram ter interferido
fortemente não apenas na vida acadêmica, pessoal, nas relações e nos deslocamentos de
alguns dos matemáticos que tiveram participação ativa nesse cenário, mas também na própria
configuração da historiografia do campo da geometria algébrica. Em face de todos esses
aspectos, consideramos que a Universidade de São Paulo entrou no cenário do intenso embate
internacional entre as abordagens geométrica e algébrica, protagonizado, respectivamente,
pelas escolas italiana e bourbakista, em especial circunscrito ao campo da geometria
algébrica. Dentro dessa perspectiva, argumentamos que as primeiras gerações de matemáticos
brasileiros da Universidade de São Paulo, a partir da convivência com as escolas italiana e
bourbakista, fizeram apropriações das concepções matemáticas dessas duas escolas em
conformidade à sua própria identidade de pensar e fazer matemática.

Palavras-chave: História da geometria algébrica. Escola italiana. Escola bourbakista.


Abordagens geométrica e algébrica. Matemáticos brasileiros
ABSTRACT

This research aims to understand the place that the University of São Paulo occupied in the
international network that configured the development of algebraic geometry, during the
period 1934 to 1958. We cut this time, having to start the year of the arrival of the Italian
mathematicians in the mathematical sciences subsection of the Faculty of Philosophy,
Sciences and Letters, University of São Paulo and, to finish the last year that a member of the
bourbakist school been doing academic activities in this Faculty. For this purpose, we made
use of a current literature and from sources, such as textbooks, doctoral dissertations, annuals,
lecture notes and autobiography, we seek to answer the following questions: 1) What were the
elements that influenced in the process of constitution of geometrical and algebraic
mathematics, particularly in algebraic geometry? 2) Under what speeches were established the
Italian and bourbakist schools of math? 3) How did the first generations of mathematicians
Brazilian University of São Paulo built their mathematical culture on the influence of the
Italian school of mathematics and bourbakist school in the range 1934 to 1958, a period that
best shows this influence? We appropriated to the theoretical debates, methodological and
epistemological field of history, and we have developed this research into two parts. At first,
we prioritized the process of configuration of the field of algebraic geometry, especially about
the involvement of Italian and bourbakist schools in this process. In the second part, we
turned our attention especially to the Brazilian context, strictly for the subsection of
mathematical sciences at the Faculty of Philosophy, Sciences and Letters, University of São
Paulo, for the process of forming its first generation of Brazilian mathematicians formed
under the influence of Italian and bourbakist schools. These discussions were interwoven by
social, philosophical, religious and political aspects, since it seemed to have interfered
strongly not only in the academic life, personal, relationships and displacement of some of
mathematicians who actively participated in this scenario, but also in own configuration of
historiography of the field of algebraic geometry. In the face of all these aspects, we believe
that the University of São Paulo entered the international scene of intense confrontation
between the geometric and algebraic approaches, protagonized, respectively by bourbakist
and Italian schools, in particular circumscribed to the field of algebraic geometry. Within this
prospect, we argue that the first generations of Brazilians mathematicians at the University of
São Paulo, by the experience with the Italian and bourbakist schools, made appropriations of
the mathematical conceptions of these two schools in conformity its own identity of thinking
and doing mathematics.

Keywords: History of algebraic geometry. Italian school. Bourbakist school. Geometric and
algebraic approaches. Brazilian mathematicians.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
I PARTE ................................................................................................................................. 27
1 EUROPA OCIDENTAL DO SEC. XIX: A CIÊNCIA E OS CONFLITOS POLÍTICOS E
RELIGIOSOS ...................................................................................................................... 28
2 ALGEBRIZAÇÃO DA MATEMÁTICA: PERDA DA HEGEMONIA GEOMÉTRICA ..... 32
2.1 Métodos: crises, rupturas e novas concepções ................................................................... 52
2.1.1 Década de 1930: epistemologia estruturalista bourbakista........................................... 56
3 A GEOMETRIA ALGÉBRICA ........................................................................................... 66
3.1 Geometria algébrica de Oscar Zariski .......................................................................... 108
II PARTE.............................................................................................................................. 132
4 A ESCOLA MATEMÁTICA ITALIANA NA FFCL DA USP .......................................... 133
5 A MATEMÁTICA BOURBAKISTA NA USP .................................................................. 154
6 MATEMÁTICOS BRASILEIROS DA FFCL .................................................................... 201
6.1 Doutoramentos, teses e estilo matemático.................................................................... 213
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 231
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 241
Fontes ............................................................................................................................... 241
Depoimentos e entrevistas ................................................................................................. 244
Literatura de apoio ............................................................................................................ 244
APÊNDICE: As relações em uma estrutura matemática ........................................................ 258
11

INTRODUÇÃO

Desobstruir pontos de vistas, escapar das armadilhas do que, por repetição, tornaram-
se tradição na escrita de uma historiografia das ciências quase sempre não é uma tarefa trivial
para alguém que se propõe a ser um historiador das ciências contemporaneamente. Diga-se de
passagem, nem mesmo para o historiador de ofício. De fato, libertar-se das amarras de uma
historiografia totalizante, de longos períodos, a que tudo se explica por regras rigorosamente
delimitadas a serviço de um método científico generalista, para adentrar num estilo de escrita
que privilegia a imersão da prática científica no contexto da cultura, definitivamente não foi e
não é algo que possa ser feito sem desnaturalizar tradições de certo fazer histórico. É ainda se
propor a caminhar por labirintos já percorridos, buscando fazer um exercício de
desnudamento das trilhas já traçadas para conseguir o distanciamento necessário de forma que
possibilite ser feito o mergulho com os olhos bem abertos em águas ainda não navegadas. E,
então, ampliar o campo de ação para além das fronteiras previamente impostas, para, enfim,
construir novos olhares sobre velhos objetos, os quais são (re)colocados, como se fossem
peças, numa espécie de mosaico que permite várias possibilidades de encaixes, inserindo
outros até então ignorados pela historiografia vigente dos grandes paradigmas.
A história, segundo Ronaldo Vainfas, começou a passar por essas transformações a
partir da década de 1920 por meio das primeiras gerações do grupo dos Annales, de Lucien
Febvre e Marc Bloch a Fernand Braudel. Em um movimento de combate à história, muitas
vezes chamada de positivista, que tratava apenas dos fatos singulares, principalmente, aqueles
de natureza política, diplomática e militar, essa geração de historiadores abriu o diálogo com
outras ciências humanas – a antropologia, a psicologia, a linguística, a geografia, a economia
e, especialmente, a sociologia – e começou a inserir em seu campo novos objetos de estudo,
tais como sentimentos, crenças e costumes. Esse processo caracterizou um tipo de fazer
histórico que ficou conhecido como história das mentalidades.1
No entanto, sem querer fazer apologia à existência de uma história das mentalidades
homogênea e unificada, Ronaldo Vainfas argumentou que, de um modo geral, nela podia ser
percebida uma preocupação em fazer uma história problematizadora do social, privilegiando
os anônimos e suas formas de viver, sentir e pensar e, ainda, um interesse exacerbado pelas
grandes sínteses, de buscar em períodos de longa duração as regularidades, o que seria
comum a todos, ao coletivo e, portanto, passíveis de serem quantificáveis. É verdade que

1
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural, p. 129-130.
12

havia os que rejeitaram a priori os temas e o próprio conceito das mentalidades, mas outros
passaram por um processo de desencantamento, tal como aconteceu como Carlo Ginzburg.2
Para ele, o interesse da história das mentalidades em identificar elementos que se repetiam
várias vezes em períodos longos levava-a a negligenciar episódios que fugiam dessa
regularidade, ou seja, os diferentes contrastes presentes em vários grupos sociais ou ainda a
existência de várias classes sociais com peculiaridades próprias3.
Nesse movimento de desalinhamento, começa a haver então um ceticismo crescente
acerca dessa história, desencadeando o seu declínio, mas mantendo um alinhamento em
relação à vitalidade dos seus objetos, que continuaram fortes dentro do âmbito de uma
emergente história cultural, que se tornou, na concepção de Ronaldo Vainfas, “o grande
refúgio” dos historiadores das mentalidades. Rejeitando o conceito de mentalidades, mas sem
abrir mão do diálogo que foi estabelecido com outras ciências humanas e muito menos sem
menosprezar os seus temas, os historiadores ditos culturais, diferentemente do que
preconizava a história das mentalidades, mostravam-se também preocupados em dar voz aos
conflitos sociais, às peculiaridades na formação de uma classe social, ao lugar que o indivíduo
ocupava, enfim, ao que fugia ao comum, compartilhado em uma sociedade. Inclusive não
rejeitavam os temas da micro-história, considerados como legítimos, desde que, pontuou
Ronaldo Vainfas, fossem feitas as devidas conexões entre os microrrecortes e a sociedade
global. 4 Grosso modo, esses são certamente elementos que caracterizam diferenças da história
cultural em relação à história das mentalidades, todavia, não diferenças, na nossa concepção,
que as colocam em patamares de antagônicos, mas talvez que possam ser vistas, guardadas as
devidas proporções dos interesses que motivaram o surgimento desses dois fazeres históricos,
como complementares, sem que uma necessariamente esteja inclusa na outra e vice-versa.
Em suma, houve uma quebra da hegemonia de um único e grande modelo de fazer
pesquisa histórica no momento em que alguns historiadores, a exemplo dos já citados Lucien
Febvre e Marc Bloch, abriram a possibilidade de um diálogo com outras ciências humanas,
viabilizando não só um novo olhar sobre os velhos objetos históricos, mas, principalmente, a
inserção no seu campo de jurisdição de novas abordagens e novos objetos que antes, se não
marginalizados, eram considerados menores. Portanto, historicizar, sob o fascínio de fazer
vôos mais amplos dispondo de vários caminhos perfeitamente viáveis, passou a significar
transcender a uma historiografia circunscrita em si mesma. Foi certamente um universo de

2
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural, passim.
3
Apud VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural, p. 151.
4
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. p. 144-149.
13

profundas mudanças que de modo análogo, segundo Dominique Pestre, começou também a
fazer parte da historiografia das ciências a partir da metade dos anos de 19805.
Este redirecionamento foi fruto das novas reflexões sobre a prática científica
desencadeadas ainda na década de 1970 por meio de ações e do diálogo de um grupo
composto de profissionais formados em sociologia, antropologia, filosofia e história,
notadamente oriundos de um núcleo de britânicos. Em outros termos, começou-se a
estabelecer um novo quadro de referência, seja, por exemplo, por meio dos trabalhos
propostos por David Bloor, que, ao recusar uma história julgada e o seu anacronismo, lançou
mão de seus quatro princípios de método – isto é, causalidade, simetria, imparcialidade e
reflexibilidade6 – objetivando, nas palavras de Dominique Pestre7: “[...] desvencilhar a
História das Ciências das leituras construídas de modo retrospectivo, que sustentam que nada
há a explicar quando um sábio “descobre” uma verdade da natureza [...], mas que a explicação
é essencial no caso contrário.”8; ou ainda quando se remete aos trabalhos de Harry Collins
com seus enfoques menos históricos do que sociológicos, fazendo uso de entrevistas e da
proximidade com os cientistas para tratar das suas práticas científicas, que não estavam
limitadas apenas a sistemas de proposições que poderiam ser falsificadas ou não mediante
experiências. Interessava-lhe, conforme ainda Dominique Pestre, “[...] os gestos e os atos
materiais [...] o saber-fazer e os saberes tácitos, a maneira pela qual os cientistas comparam e
calibram seus instrumentos, os procedimentos de validação localmente colocados em ação
pelos experimentadores.”9.10
Já decorreram cerca de quinze anos da publicação feita por Dominique Pestre sobre
essas novas abordagens e os novos objetos que foram inseridos na historiografia das ciências
e hoje não é fato raro encontrarmos, quer seja na literatura internacional, quer seja na
brasileira, textos de história das ciências que contemplam um olhar mais amplo sobre as
ciências. Contudo, parece-nos que ainda hoje esse é o grande desafio dos atuais historiadores
da matemática, quando buscam se colocarem assim, lado a lado, com essa historiografia das
ciências em geral. Isto é algo ainda muito complicado, diante da própria formação que os
matemáticos recebem acerca da sua área de conhecimento, notadamente internalista, com
pouco ou nenhum diálogo com outras áreas de conhecimento. E muitas vezes quando as têm,
5
PESTRE, Dominique. Por uma nova história social e cultural das ciências: novas definições, novos objetos,
novas abordagens, p. 4.
6
Mais detalhes desses quatro princípios, veja: BLOOR, David. The strong programme in the sociology of
knowledge, p. 1-19.
7
Todas as citações foram escritas tal como apareceram nos textos originais.
8
PESTRE, Dominique. Por uma nova história social e cultural das ciências..., p. 7.
9
PESTRE, Dominique. Por uma nova história social e cultural das ciências..., p. 9.
10
PESTRE, Dominique. Por uma nova história social e cultural das ciências..., passim.
14

a exemplo da filosofia ou história, é para contemplar o próprio ponto de vista do matemático


acerca do seu campo de atuação, isto é, enfatizando a matemática como puramente
proveniente das reflexões sobre as articulações lógico-abstratas dos seus conceitos feitas por
gênios com dons sobrenaturais11.
Nessa historiografia da matemática feita por matemáticos para matemáticos, de certa
forma, tornou-se lugar comum o endossamento de que nesta área de conhecimento não há
rupturas, descontinuidades. Uma ideia cristalizada por meio de um discurso que privilegia o
caráter contínuo evolucionista das suas construções teóricas. Algo que começou a dividir
terreno, ainda que não seja de forma consensual, com os historiadores da matemática
formados em âmbitos de programas de pós-graduação que dão espaços para uma
historiografia da matemática que valoriza, de forma inédita, o conhecimento e as atividades
matemáticas como feitas por pessoas inseridas dentro de um contexto social, com
preocupações políticas e econômicas da sua época, submetidas a condicionamentos sociais e
culturais de diversas ordens. Foi dentro desse contexto, apropriando-nos dos debates teóricos,
metodológicos e epistemológicos do campo da história, tal como buscamos fazer na
dissertação12 por nós desenvolvida, que também tentamos inserir a nossa tese de
doutoramento. Nela buscamos compreender o lugar que a Universidade de São Paulo (USP)
ocupou na rede internacional que configurou o desenvolvimento da geometria algébrica,
durante o período de 1934 a 1958. Fizemos esse recorte temporal, tendo como início o ano de
chegada dos matemáticos da escola italiana na subsecção das ciências matemáticas da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP e, como término, o último ano em
que um integrante da escola bourbakista esteve nessa Faculdade realizando atividades
acadêmicas. No entanto, esse recorte temporal foi bastante relativizado ao longo do
desenvolvimento dessa pesquisa, visto que muitas vezes recuamos para décadas anteriores ao
período que demarcamos. Isto foi feito pela necessidade em compreendermos como alguns
fatores – notadamente os políticos, os religiosos e os discursos das abordagens algébricas e
geométricas – influenciaram na formação da rede internacional do desenvolvimento da
geometria algébrica, e, ainda, pela necessidade que sentimos em delinearmos os possíveis
motivos de essa rede ter chegado à USP. Assim, no contexto brasileiro, limitamos essa

11
Veja: ANGLIN, W.S. Matemática e História; PARSHALL, Karen Hunger; HOGENDIJK, Jan P. Editorial:
The History of Mathematics, the History of Science, Mathematics, and Historia Mathematica; BOTTAZZINI,
Umberto; FRASER, Craig. Editorial: At the turn of the millennium: New Challenges for the History of
Mathematics and for Historia Mathematica.
12
LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites: a contribuição de Omar Catunda para a modernização
da análise matemática no Brasil.
15

pesquisa no universo da USP. Tal limite deveu-se ao fato de que a USP, além de ter sido um
palco na rede internacional que configurou a geometria algébrica a partir da vinda de alguns
matemáticos da escola italiana e da bourbakista, a sua criação, com a sua FFCL, representou
um marco para o início da transformação do ensino superior das ciências no Brasil13.
Nessas condições, buscamos atingir o nosso objetivo, norteados pelos seguintes
questionamentos: 1) Quais foram os elementos que influenciaram no processo de constituição
do método geométrico e algébrico da matemática, em particular na geometria algébrica? 2)
Sob quais discursos foram estabelecidas as escolas italiana e bourbakista de matemática? 3)
Como as primeiras gerações de matemáticos brasileiros da USP construíram a sua cultura
matemática diante da influência da matemática da escola italiana e da escola bourbakista, no
intervalo de 1934 a 1958, período que melhor evidencia esta influência? Tanto nessa pesquisa
de doutorado como no que fizemos no mestrado, priorizamos a matemática que começou a ser
constituída a partir do séc. XIX – que chamaremos de moderna – por meio de uma série de
transformações, mudanças, inovações, que afetaram, de um modo geral, a sua organização
profissional, os seus fundamentos epistemológicos e metodológicos, a estruturação das suas
subáreas de conhecimento, repercutindo principalmente nos resultados da produção do
conhecimento matemático. Dentro dessa série, esteve inclusa a construção de número como
um ente puramente abstrato sem ser associado à noção de quantidade e ainda o deslocamento
da fundamentação do cálculo de uma base infinitesimal, estritamente geométrica, para ser
colocada em termos de limites, definidos sob princípios aritméticos, os quais passaram a ser
considerados como sendo a linguagem da álgebra. E, ainda, a sua profissionalização,
disciplinarização, especialização, unificação e generalização do seu método científico, que
passou a ser baseado, ainda que não tenha tido predomínio homogêneo, na algebrização e na
axiomatização.14
Foi, portanto, em decorrência da nossa dissertação de mestrado que começaram as
ideias iniciais dessa tese. Na dissertação, focamos no Curso de Análise Matemática de Omar
Catunda (1906-1986), com o objetivo de compreender sua contribuição no processo de
institucionalização da análise matemática moderna no Brasil no período de 1934 a 1968,
quando exerceu maior influência na formação dos estudantes das instituições de nível
superior, particularmente na USP e na Universidade da Bahia, instituições onde atuou

13
DIAS, André L. Mattedi. Um estudo da trajetória da historiografia, p.172.
14
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda: uma
forma peculiar de apropriação da análise matemática moderna, p. 211; LIMA, Eliene Barbosa; Dias, André
Luis Mattedi. Concepções modernas de rigor: Omar Catunda, Jacy Monteiro e o Movimento da Matemática
Moderna no Brasil, p. 173-175.
16

profissionalmente.15 Isto porque uma das suas partes principais consistiu na comparação da
obra de Omar Catunda com o Curso de Análise Matemática de Luigi Fantappiè e com os
Elementos de Cálculo Diferencial e Integral de William Anthony Granville (1863-1943).
O objetivo dessa parte foi evidenciar certos elementos contidos na matriz da escola
italiana de Fantappiè que serviram de base para o livro de Catunda, bem como destacar as
principais diferenças teóricas e metodológicas em relação ao texto de Granville, tomado como
representante do tratamento infinitesimal do cálculo, segundo concepções de Gottfried
Wilhelm von Leibniz (1646-1716) e Isaac Newton (1642-1727), tal como era lecionado nas
escolas brasileiras de engenharia até meados do século XX. Também foram feitas algumas
comparações com as Lezioni di Analisi (1933) de Francesco Severi (1879-1961) – outra
referência da escola italiana – e com os Foundations of modern analysis (1960) de Jean
Alexandre Eugène Dieudonné (1906-1992), este integrante do Grupo Bourbaki. Analisamos
as formas de apresentar os números e os conjuntos numéricos, as definições de limite, bem
como a proposta de Omar Catunda de ensinar análise matemática tentando compatibilizar o
rigor moderno – isto é, estabelecido em métodos algébricos e abstratos da lógica axiomática –
com o que ele chamou de intuição geométrica.
Como resultado, pudemos verificar como Omar Catunda imprimiu na sua publicação a
sua forma própria de entender e de produzir o conhecimento matemático, em outras palavras,
como ele se apropriou da análise matemática moderna de origens europeias de acordo com a
sua identidade social e cultural. Neste sentido e sem a pretensão de estabelecer uma
controvérsia acerca da prioridade, destacamos que o livro Curso de Análise Matemática
publicado por Omar Catunda, por ser uma das primeiras obras de análise matemática moderna
publicada no país em língua vernácula, tornou-se efetivamente um instrumento privilegiado
da difusão desse ramo da matemática moderna no Brasil, pois foi durante muito tempo a única
ou principal referência para muitos estudantes e professores, sendo ainda hoje considerado por
muitos – a exemplo de Ubiratan D’Ambrosio – um livro bem escrito, moderno e rigoroso16.
Dessa forma, na nossa pesquisa de mestrado, o nosso principal personagem, Omar
Catunda apesar de fazer uso do rigor que foi considerado moderno, devido ao seu contato com
a escola bourbakista, também privilegiou ao rigor centrado no método geométrico, em
decorrência a sua forte relação com a escola italiana, principalmente com o seu mestre Luigi
Fantappiè. Esse aspecto peculiar da apropriação do rigor moderno da matemática feito por

15
Veja: LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites...
16
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda..., p.
227; LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites..., p. 122.
17

Omar Catunda foi um fator importante para que mudássemos o nosso olhar sobre o processo
de construção do rigor matemático ao longo de sua história. Diferentemente do que
afirmamos na nossa dissertação, agora argumentamos que o rigor matemático não deve ser
entendido como um processo contínuo de desenvolvimento, tal como foi defendido por
Aleksandr Danilovich Aleksandrov (1912-1999). Sintetiza o autor:
[…] o rigor da matemática não é absoluto, está em proceso de contínuo
desenvolvimento, os principios da matemática não foram congelados de uma
única vez para sempre sem que tivesse sua própria vida e pudesse ainda ser
objeto de discussões científicas..17
Mas como um conceito que teve diversas significações dentro do contexto histórico da
matemática e, que, portanto, o seu significado atual não corresponde a uma relação biunívoca
entre evolução e generalização, conforme ao pensamento de Michel Foucault quando afirmou
que:
[...] a história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento
progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente
de abstração, mas a de seus diversos campos de constituição e de validade, a
de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi
realizada e concluída sua elaboração..18
e, quando sinalizou:
Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao
ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o
útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua
direção, as idéias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas
não tivesse conhecido invasões, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a
genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos
acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde
menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história - os
sentimentos, humor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não
para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes
cenas onde eles desempenharam papéis distintos; até definir o ponto de sua
lacuna, momento em que eles não aconteceram [...]. 19
Neste sentido, pareceu-nos que entender o rigor matemático como um processo de
contínuo desenvolvimento fortalece ainda mais a perspectiva de uma história da matemática
feita por matemáticos para matemáticos, na medida em que reforça a ideia de que na
matemática as teorias formalizadas anteriormente são sempre um caso particular das teorias
procedentes. Sobre isto, sem nenhuma pretensão de adotar uma postura “foulcauteana”, são
muito apropriadas as seguintes palavras de Michel Foucault:

17
[...] el rigor de la matemática no es absoluto, está en proceso de continuo desarrollo, los principios de la
matemática no se han congelado de una vez para siempre sino que tienen su propia vida y pueden incluso ser
objeto de discusiones científicas.. ALEXSANDROV, Aleksandr Danilovich et al. Vision General de la
Matemática, p. 19-20.
18
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, p.5.
19
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, p.15.
18

De início, no nível da formalização: é essa história que a matemática não


deixa de contar sobre si mesma, no processo de sua própria elaboração. O
que ela foi em um dado momento (seu domínio, seus métodos, os objetos
que define, a linguagem que emprega) jamais é lançado ao campo exterior da
não-cientificidade, mas se encontra continuamente redefinido (ainda que a
título de região caída em desuso ou atingida provisoriamente pela
esterilidade) no edifício formal que constitui; esse passado se revela como
caso particular, modelo ingênuo, esboço parcial e insuficientemente
generalizado, de uma teoria mais abstrata, mais poderosa ou de mais alto
nível; a matemática retranscreve seu percurso histórico real, no vocabulário
das vizinhanças, das dependências, das subordinações, das formalizações
progressivas, das generalidades que se enredam..20
Vale, no entanto, salientar que em nossa pesquisa de mestrado, ainda que não
tivéssemos contemplado esse olhar em relação ao rigor matemático, foi amplamente discutido
o rigor dentro de uma base geométrica e o seu deslocamento, a partir do séc. XIX, para
princípios algébricos. Isto para que pudéssemos ter uma configuração mais próxima possível
acerca da escola italiana de matemática, notadamente em relação a sua discussão moderna da
análise matemática, que, mesmo sendo feita dentro do que passou a ser considerada uma
perspectiva moderna da matemática, o seu rigor foi estabelecido sob a ótica da abordagem
geométrica. Tal abordagem foi largamente difundida e apropriada no âmbito da subsecção das
ciências matemáticas da FFCL, pela sua primeira geração de matemáticos, especialmente por
Omar Catunda.
Consideramos que essa nossa historiografia da matemática brasileira, desenvolvida no
mestrado, correspondeu a apenas uma das vertentes de abordagem matemática que
influenciou a formação dos matemáticos brasileiros da subsecção das ciências matemáticas da
FFCL desde a sua criação em 1934 até a segunda metade da década de 1950. Ficou ainda a
outra vertente, ou seja, a inserção da ênfase ao rigor algébrico feito por meio de uma estrutura
matemática enraizada na linguagem da teoria dos conjuntos que foi dada pela escola
bourbakista na USP a partir de 1945. Todavia, ao invés de continuarmos o nosso foco de
discussão na análise matemática, escolhemos como cerne dessa pesquisa de doutoramento o
campo da geometria algébrica, mas não apenas na ótica da escola bourbakista, mas também
da escola italiana de matemática21. Escolas que, quando referidas, têm uma significação
diferente, apesar de reconhecermos que entre elas existam certas similitudes.
Tal como interpretado por Ciro Ciliberto e Aldo Brigaglia ao se referirem ao adjetivo
‘italiana’, a mesma leitura, na nossa concepção, pode ser feita para o adjetivo ‘bourbakista’,
que faz parte do termo escola bourbakista. Esses autores chamaram atenção de que o adjetivo

20
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, p. 214-215.
21
Muitas vezes, por uma questão pragmática, escreveremos apenas escola italiana.
19

‘italiana’, presente na expressão escola italiana, tem uma conotação de ser muito mais atrelada
a um marco que se refere a um estilo de trabalho científico do que propriamente dito para
designar uma escola nacional. Conforme observamos ao longo do desenvolvimento dessa
pesquisa, houve, dentro desse ambiente italiano de matemática, a presença de matemáticos de
outras nacionalidades – a exemplo do americano Julian Lowell Coolidge – que foram para
Itália identificados com o estilo de trabalho científico matemático presente nesse País. Nas
palavras dos autores:
[…] ao mesmo tempo em que Coolidge foi assistir as palestras de Segre, os
dois mais conhecidos geômetras italianos, Catelnuovo e Enriques,
trabalhavam para transmitirem seus métodos e principais resultados – seu
estilo de trabalho científico – para um público internacional..22
Nessa ótica, ainda que não seja feita na mesma proporção, há, na interpretação de Ciro
Ciliberto e Aldo Brigaglia, uma imbricação entre ‘estilo de trabalho’ e ‘escola nacional’, uma
caracterização que eles dizem ter aparecido bem claramente na seguinte passagem de David
Mumford: “A escola italiana, e especialmente Severi, Todd, Eger, e B. Segre [...] desenvolveu
uma teoria geral das classes de Chern no caso algébrico”23. Assim, concluem: “Para
Mumford, então, a palavra ‘escola’ não se referia a uma comunidade estritamente nacional,
mas a um conceito mais geral que englobava, entre outros indivíduos, o belga Lucien
Godeaux e o americano Julian Coolidge.”24. Uma visão que foi corroborada, por exemplo, em
relação ao próprio Julian Coolidge que foi recebido na Itália, no seu retorno no ano de 1927,
como um membro da escola italiana.25 Na nossa concepção, todo esse entendimento pontuado
por Ciro Ciliberto e Aldo Brigaglia acerca do adjetivo ‘italiano’, ampliado por nós para o
adjetivo ‘bourbakista’, pode ainda ser empregado no caso dos matemáticos que tiveram a sua
formação influenciada por um desses dois estilos de trabalho, a partir dos deslocamentos
feitos pelos matemáticos que faziam parte ou seguiam predominantemente, na sua prática
matemática, o estilo de uma das duas escolas. Este foi o caso das primeiras gerações de
matemáticos brasileiros formados na subsecção das ciências matemáticas da FFCL. Diante

22
[…] at the same time in which Coolidge was attending Segre’s lectures, the two best known Italian geometers,
Castelnuovo and Enriques, worked to convey their methods and main results—their scientific working style—
to an international audience.. CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the
Italian and American schools of algebraic geometry…, p. 313.
23
The Italian school, and notably Severi, Todd, Eger, and B. Segre,” […] “developed a general theory of Chern
classes in the algebraic case”. Apud CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations
between the Italian and American schools of algebraic geometry…, p. 313.
24
For Mumford, then, the word “school” referred not to a strictly national community but to a more general
concept that encompassed, among other individuals, the Belgian Lucien Godeaux and the American Julian
Coolidge. CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the Italian and American
schools of algebraic geometry…, p. 313.
25
CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the Italian and American schools
of algebraic geometry…, p. 313.
20

desses aspectos, estamos considerando que a escola italiana e a escola bourbakista não foram
constituídas apenas por matemáticos, respectivamente, de nacionalidade italiana e francesa –
regiões de origem de cada uma dessas duas escolas – mas também por todos aqueles
matemáticos, que compartilharam da forma de pensar e fazer matemática, influenciados
predominantemente pelo estilo de trabalho presente em uma dessas duas escolas. Contudo,
para além dessas similitudes, baseando-nos no conceito de habitus social dada por Norbert
Elias, a escola italiana, particularmente a sua de geometria algébrica, apesar de possuir um
compartilhamento de ideias em torno de uma tradição geométrica, não teve este fator como
suficiente para que os seus matemáticos – enquanto seres também individuais, com
características singulares – conseguissem constituir e conviver em um ambiente de grupo. Em
suma, na escola italiana, em especial na sua de geometria algébrica, não houve um discurso de
grupo tal como aconteceu com a escola bourbakista, notadamente entre os integrantes do
Grupo Bourbaki. Isto porque, Norbert Elias no seu conceito de habitus social diz que “[...]
cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem uma composição
específica que compartilha com os outros membros de sua sociedade”26.
Dessa forma, levando em consideração esses elementos presentes na constituição da
escola italiana e da bourbakista, priorizamos tratar nessa pesquisa de doutoramento o campo
da geometria algébrica, motivados principalmente por três fatores: Primeiro, tanto a escola
italiana como a bourbakista dedicaram uma forte atenção a esse campo, tornando-se, no
âmbito dessas escolas, um dos seus principais objetos de pesquisa. No entanto, cada uma
privilegiava uma concepção própria de rigor, isto é, a escola italiana pela ênfase a uma
dimensão geométrica e a bourbakista fazendo uso dos princípios algébricos e analíticos, numa
abordagem estruturalista da matemática, tendo como sua linguagem a teoria dos conjuntos.
Segundo, houve entre o final do século XIX e a década de 1950 uma conformação no campo
da geometria algébrica, fortemente influenciada pelos problemas políticos internacionais do
período, os quais repercutiram na trajetória e no relacionamento dos matemáticos franceses,
alemães, italianos e americanos, que foram os protagonistas dessa conformação no campo da
geometria algébrica. Em particular, as relações entre fascismo e nazismo e os problemas
enfrentados pelos matemáticos de nacionalidade judia pareceram ter influenciado fortemente
a memória e a historiografia desse campo de conhecimento matemático. E, o terceiro e último,
mas não menos importante em relação aos dois primeiros fatores, correspondeu ao fato de que
essa configuração presente na geometria algébrica no âmbito europeu e nos Estados Unidos,

26
ELIAS, Norbert. Mudanças na balança nós-eu. In A Sociedade dos Indivíduos, p.150.
21

fez parte do universo da matemática brasileira, em particular, a partir da vinda de alguns dos
representantes da escola italiana e da bourbakista para a subsecção das ciências matemáticas
da FFCL. Foi, então, investigando, vasculhando como foi constituído esse capítulo da
matemática dita moderna e sua difusão e apropriação no contexto brasileiro da FFCL, que
pudemos, tal como afirmou Durval Muniz Albuquerque Júnior, baseado nas concepções de
Michel Foucault:
[...] apreender o movimento de seu aparecimento, aproximarmo-nos
do momento em que foi ganhando consistência, visibilidade e
dizibilidade, foi emergindo como as duras conchas emergem do
trabalho lento de petrificação do lamaçal do mangue.. 27
Pareceu-nos, portanto, que apreender o movimento de aparecimento da escola italiana
e da bourbakista fez com que nos aflorasse e inserisse, nas nossas próprias argumentações, um
novo olhar acerca do processo de construção do conhecimento matemático, em particular,
nesse capítulo da matemática constituída a partir do séc. XIX. Esse novo olhar foi
desencadeado pelas respectivas formas que essas escolas lidaram com o rigor matemático
dentro do campo da geometria algébrica, influenciando diversas localidades, inclusive a
brasileira, particularmente a subsecção das ciências matemáticas da FFCL e, ainda, o seu
entrelace com os problemas políticos internacionais do período entre o final do séc. XIX e a
década de 1950, envolvendo matemáticos franceses, alemães, italianos e americanos, que de
algum modo tiveram uma relação com uma dessas duas escolas ou ambas. Sem a pretensão de
entrar no embate que esse olhar possa acarretar nas tradições seculares em torno da forma de
conceber e produzir o conhecimento matemático, passamos a ponderar a matemática como
construções discursivas28, práticas sociais, as quais estão imersas nas relações de poder
mediante a busca de adesão de novos sujeitos a essa prática que estava sendo sedimentada no
Brasil. Em outras palavras, na medida em que essas construções discursivas parecem
convencionar, validar uma determinada prática matemática, concedendo-lhe privilégio, há
uma articulação permanentemente presa às relações de poder por aqueles que procuram, a

27
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. Um leque que respira: Michel Foucault e a questão do objeto em
história, p. 119.
28
Essas construções discursivas são entendidas aqui, em conformidade ao pensamento de Michel Foucault. Ele
diz que é necessário “[...] não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que
remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para
designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso
fazer aparecer e que é preciso descrever”.. (grifos do autor). FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber,
p.56. E, ainda quando afirmou que: “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as
interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. [...] o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se
luta, o poder do qual nos queremos apoderar.. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p.5.
22

todo tempo, dominar, demarcar, consistentemente, os princípios dessa matemática, não só no


âmbito das faculdades brasileiras, mas também nas próprias escolas secundárias. Estas últimas
não fizeram parte do universo da nossa pesquisa de doutoramento29.
Dessa forma, ainda que em um âmbito mais amplo, seguimos um caminho análogo
àquele percorrido no mestrado. Com efeito, agora, no doutorado, diante do objetivo que nos
propusemos a atingir, escolhemos cinco personagens brasileiros do universo da USP que
tiveram um contato direto com algum integrante da escola italiana ou da escola bourbakista
ou ainda de ambas. Priorizamos aqueles que exerceram a função de assistentes científicos ou
de auxiliares de ensino. Assim, fizeram parte do âmbito dessa pesquisa Edison Farah (1915-
2006), Cândido Lima da Silva Dias (1913-1998), Benedito Castrucci (1909-1995), Luiz
Henrique Jacy Monteiro (1918-1975) e o próprio Omar Catunda.
Neste sentido, fizemos uso das mais variadas fontes. Vale salientar que o trabalho de
localização de algumas dessas fontes foi muito facilitado devido ao Acervo Histórico Virtual
disponibilizado pelo Instituto de Matemática e Estatística da USP30. Nele, dentre outros,
pudemos ter acesso a documentos que foram produzidos por alguns dos matemáticos da
escola italiana ou da escola bourbakista quando estiveram na USP para ministrarem cursos e
palestras. Priorizamos aqueles que tinham alguma relação com o nosso objeto de estudo, ou
seja, especialmente as notas de aulas que foram redigidas por algum matemático brasileiro
que naquele momento exercia algum vínculo de trabalho com os matemáticos estrangeiros
pertencentes a uma ou a outra escola de matemática. Cabe-nos ainda pontuar que o principal
conjunto dessas fontes se remeteu às teses de doutoramento ou às que foram feitas como pré-
requisito exigido para fazer concursos para provimentos de cadeiras pertencentes à subseção
das ciências matemáticas da FFCL, que conseguimos localizar quando fomos à Biblioteca da
USP. Tais teses foram selecionadas levando em consideração o grau de envolvimento dos
matemáticos da USP com os integrantes da escola italiana e da bourbakista que estiveram
nessa Universidade no período abarcado por essa nossa pesquisa. Ainda fizemos uso de livros
didáticos produzidos pelos matemáticos acerca da geometria algébrica, as notas de aulas, os
anuários da FFCL, além de depoimentos e entrevistas que já haviam sido produzidos por
alguns personagens que foram centrais para a realização dos propósitos dessa nossa tese de
doutoramento. Tais fontes foram interrogadas com o intuito de atingirmos o objetivo que

29
Neste sentido, no âmbito do Grupo de Pesquisa História-Matemática-Educação (GHAME), coordenado pelo
Prof. Dr. André Luis Mattedi Dias, há, em andamento, pesquisas de mestrado e doutorado que contemplam
como seus objetos de estudos as escolas secundárias, em particular, as baianas, enfocando a modernização
escolar do ensino de matemática, notadamente, no período pós-II Guerra Mundial.
30
Tal Acervo pode ser acessado pelo seguinte endereço eletrônico: http://www.ime.usp.br/acervovirtual/
23

propusemos, ou seja, em nenhum momento estivemos preocupados em fazer uma divisão a


priori dos aspectos que colocam a produção da matemática dentro do universo da história da
matemática e o seu ensino no âmbito da história do ensino de matemática. Nessa ótica,
tornou-se muito importante um aspecto central da proposta apresentada por Bruno Belhoste
em 1998, que afirma que não poder haver uma separação a priori da produção matemática das
condições de sua reprodução:
[...] o compartilhamento do conhecimento matemático, isto é, sua
socialização no âmbito de comunidades de especialistas e de comunidades
de utilizadores, sejam eles pesquisadores ou profissionais, mesmo no
conjunto do corpo social, constitui um aspecto essencial da atividade
matemática, parte integrante da atividade de invenção. De maneira geral, não
existe uma esfera da produção teórica inteiramente autônoma, mas
preferencialmente atividades intelectuais engajadas em contextos específicos
que determinam suas condições de desenvolvimento. Esta é a razão pela qual
me parece que o estudo da circulação dos textos e das práticas no tempo e no
espaço social e geográfico está no cerne do trabalho do historiador. Mas, esta
abordagem banal em história das ciências hoje em dia, permanece pouco
divulgada na história da matemática, onde ainda domina uma concepção
idealista e retrospectiva do desenvolvimento da disciplina..31
Gert Schubring, apesar de aderir à proposta de Bruno Belhoste e desejar que seja
conhecida e aplicada em numerosos estudos de casos, faz uma ressalva:
Nós devemos, portanto, definir uma abordagem que evite toda separação
entre produção e reprodução, tanto nos seus princípios metodológicos quanto
nas suas práticas que dela são originadas. É importante partir de um quadro
teórico cujas categorias não se interditem. Ora, alinhando produção com
“invenção” e ensino com “socialização” ou “divulgação” ou “recepção” [...]
vamos todos direto ao encontro de uma separação. Tais identificações
implicam quase sem dúvida a uma hierarquia entre invenção e transmissão,
atribuindo a pesquisa um aspecto primário, originário e ao ensino um papel
secundário, derivado..32
Esta crítica de Schubring à proposta de Bruno Belhoste ganha ressonância quando
examinamos com Roger Chartier alguns aspectos que fundamentam boa parte da produção
31
[...] la mise em commun du savoir mathématique, c'est-à-dire sa socialisation au sein de communautés de
spécialistes et de communautés d'utilisateurs, qu'elles soient savantes ou de métier, voire mème dans
l'ensemble du corps social, constitue un aspect essentiel de l'activité mathématique, partie intégrante de
l'activité d'invention. Que, de maniere générale, il n'existe pas de sphère de la production théorique qui serait
entierèment autonome, mais plutôt des activités intellectuelles engagées dans des contextes spécifiques qui
déterminent les conditions de leur développement. C'est pourquoi l'étude de la circulation des textes et des
pratiques dans le temps et l'espace social et géographique me parît au coeur du travail de l'historien. Mais cette
approche, aujourd'hui banale en histoire des sciences, reste trop peu répandue en histoire des mathématiques,
où domine encore une conception idéaliste et rétrospective du développement de la discipline.. BELHOSTE,
Bruno. Pour une réévaluation du role de l’enseignement dans l’histoire des mathématique, p.12.
32
Il nous faut donc définir une approche qui évite toute séparation entre production et reproduction, tant dans ses
principes méthodologiques que dans les pratiques qui en decoulent. Il importe de partir d’un cadre théorique
dont les catégories mêmes l’interdisent. Or, en alignant production avec “invention” et enseignement avec
“socialisation” ou “divulgation” ou réception” [...], on va tout droit vers une séparation. De telles
identifications impliquent presqu’inéluctablement une hiérarchie entre invention et transmission, attribuant à
la recherche un aspect premier, original, et à l’enseignement un rôle secondaire, dérivé.. SCHUBRING, Gert.
Production mathématique, enseignement et communication, p. 31.
24

historiográfica sobre a dimensão cultural das sociedades humanas:

Estas distinções primordiais, expressas na maioria das vezes através de pares


de oposições (erudito/popular, criação/consumo, realidade/ficção, etc.), eram
como que os alicerces comuns e não problemáticos sobre os quais podiam
apoiar-se as maneiras de tratar os objectos da história intelectual ou cultural,
maneiras essas que divergiam entre si. Ora, passados alguns anos, são essas
mesmas delimitações que se tornaram objecto de problematizações,
convergentes, senão idênticas. Pouco a pouco os historiadores tomaram
consciência de que as categorias, que estruturavam o campo da sua análise
(com uma evidência tal que passava a maior parte das vezes despercebida),
eram elas próprias – tal como aquelas que eram objecto da história – o
produto de divisões móveis e temporárias..33
Tendo todos esses parâmetros delimitados e explicitados, cabe-nos agora por fim
pontuar que optamos dividir a nossa tese em duas partes, as quais foram escritas buscando
uma coesão e uma interlocução entre elas. Tudo isto foi feito com o firme propósito de fazer
uma escrita sem uma preocupação a priori com a linearidade, afim de que os objetos tratados
nos tópicos de cada uma das duas partes não fossem esgotados de uma única vez, mas
retomados sempre quando necessário, independentemente da parte em que foi anteriormente
tratado, como se fossem uma trilha em formato de rede.
Na primeira parte discutimos a questão do rigor da matemática tendo como foco
central a geometria algébrica e o seu rigor no cenário da Europa ocidental, notadamente,
Itália, França e Alemanha, perpassando pela América do Norte, especificamente nos Estados
Unidos, desde a segunda metade do séc. XIX até a década de 1950. Para isto, abordamos o
processo de algebrização da matemática, o qual desencadeou a perda da hegemonia
geométrica, provocando crises, rupturas e novas concepções de métodos, dentre eles a
epistemologia estruturalista bourbakista. Assim, com esses elementos adentramos no processo
de configuração do campo da geometria algébrica, especialmente, acerca do envolvimento da
escola italiana e da bourbakista nesse processo, visto que ambas escolas exerceram o papel de
protagonistas na formação das primeiras gerações de matemáticos brasileiros da subsecção
das ciências matemáticas da FFCL.
Na segunda parte, e última, voltamos o nosso olhar prioritariamente para o contexto
brasileiro, estritamente para a subsecção das ciências matemáticas da FFCL, para o processo
de constituição de uma primeira comunidade de matemáticos brasileiros, formada sob a
influência da escola italiana e da bourbakista. Para tanto, mantivemos como foco às críticas
feitas em relação ao rigor do método geométrico italiano, bem como as suas comparações
com o método algébrico da escola bourbakista, que começaram a fazer parte da realidade da

33
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações, p. 54.
25

matemática brasileira a partir da convivência com essas duas escolas. Um embate que já fazia
parte de diversos contextos internacionais, a exemplo da Itália, Alemanha, França e Estados
Unidos, localidades onde circulavam boa parte dos matemáticos envolvidos nessa busca de
legimitação de um método em detrimento do outro. Muitos desses embates tiveram
repercussão, como veremos no desenvolvimento dessa nossa tese, em universos altamente
especializados formados pela comunidade mundial de matemáticos, tal como aconteceu
durante o Congresso Internacional de Matemáticos realizado em 1932 na cidade de Zurique
entre os matemáticos Bartel Leendert van der Waerden (1903-1996) e Francesco Severi34.
Nessa discussão buscamos caracterizar como se deu a apropriação da comunidade de
matemáticos brasileiros das teorias que foram trabalhadas por essas escolas, especialmente
aquelas que estavam dentro do rol que poderiam possibilitar o estudo e a inserção da pesquisa
científica brasileira no campo da geometria algébrica.
E, finalmente, salientamos que, tanto na primeira parte como na segunda fizemos
todas essas discussões permeando aspectos sociais, filosóficos, religiosos e políticos que
pareceram ter interferido fortemente não apenas na vida acadêmica, pessoal e nas relações de
alguns dos matemáticos que tiveram participação ativa nesse cenário, mas também na própria
configuração da historiografia do campo da geometria algébrica.

34
SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van der Waerden’s work in algebraic geometry: 1926
– 1946. In: GRAY, Jeremy J; PARSHALL, Karen H. (ed.). Episodes in the history of modern algebra (1800-
1950), p.264-268.
I PARTE
28

1 EUROPA OCIDENTAL DO SEC. XIX: A CIÊNCIA E OS CONFLITOS


POLÍTICOS E RELIGIOSOS

Séc. XIX, a Europa Ocidental vivia um cenário de grandes mudanças que afetavam de
maneira geral o papel da ciência diante do florescimento de uma nova sociedade. No cerne
dessas mudanças, um fator importante foi a expansão do movimento político nacionalista,
marcado por disputas, tensões, conflitos e guerras, que apregoava a criação de uma nação
soberana, tendo como um forte gatilho a Revolução Francesa, ocorrida na segunda metade do
séc. XVIII, com os seus discursos contra o clero e a nobreza.35 Dentro desse contexto de
mudanças, após uma longa convivência com instituições tipicamente feudais, a Itália – sob a
dominação papal – e a Alemanha – sob restauração do Sacro Império Romano-Germânico –
conseguiam assim a sua unificação nacional, algo que para a Itália significou ainda o
ressurgimento da matemática italiana. Mais incisivamente, conforme Vito Volterra (1860-
1940), possibilitou “a existência científica de uma nação”36. Até a década de 1870, as diversas
localidades da Alemanha e da Itália, apesar de terem, respectivamente, a mesma etnia e
falarem a mesma língua, formavam Estados independentes politicamente. Em especial os
matemáticos italianos das mais longínquas e variadas regiões da Itália ao fazerem parte de
uma mesma nação, começaram a estabelecer contatos uns com os outros, iniciando a
articulação de uma comunidade científica de matemáticos que se entrelaçava com o campo
político devido à militância ativa de matemáticos como Antônio Luigi Gaudenzio Giuseppe
Cremona (1830-1903) e o próprio Vito Volterra. Forma-se, então, uma parceria político-
científica benéfica para estruturar e solidificar a matemática como um profícuo campo de
conhecimento científico. Neste sentido, as inserções políticas desses matemáticos e de outros,
em cargos políticos importantes, tal como no Conselho Superior para a Educação Pública, foi
determinante, por exemplo, para a criação de novas cadeiras, como a primeira Cadeira de
Geometria Superior na Universidade de Bologna, em 1860.37
Outro fator importante nessas mudanças foi a Revolução Industrial, já plenamente
vivida pela Grã-Bretanha desde o séc. XVIII, tornando-se, ao longo do séc. XIX, uma região
que desempenhou, segundo Eric J. Hobsbawn, um papel importante na formação da economia
mundial. As mudanças eram drásticas, caminhos que antes eram trafegados apenas por
cavalos, passaram a dividir espaço com um complexo sistema ferroviário ou ainda com os

35
PAULA, João Antônio de. A idéia de nação no século XIX e o marxismo, p.219; HOBSBAWM, Eric J. A
Revolução Francesa. In: A era das revoluções, p. 83-113.
36
“the scientific existence of a nation”. Apud BOTTAZZINI, Umberto. Mathematics in a unified Italy, p.165.
37
BOTTAZZINI, Umberto. Mathematics in unified Italy, passim.
29

primeiros carros motorizados e dirigíveis, aptos a mostrar as suas potencialidades e vantagens;


a construção de navios a vapor, no movimento de idas e vindas no Danúbio, já unia a Grã-
Bretanha e a França desde 1822. Mais do que visíveis e úteis, essas construções eram
encantadoras, pois aglutinavam conforto e melhoria da qualidade de vida, transformando-se
em elementos essenciais no discurso que colocava em primeiro plano o desenvolvimento da
ciência como um fator imprescindível para a continuidade do progresso dessa emergente
sociedade.38 Assim, tornou-se inevitável a profissionalização da ciência, que foi, de fato,
realizada, mas em diferentes momentos, nas mais variadas regiões, conforme os seus
respectivos interesses políticos e sociais. Com efeito, na primeira metade do séc. XIX, na
Alemanha, precisamente na região prussiana, a profissionalização se deu juntamente com o
seu novo sistema educacional universitário que passou a desempenhar o papel duplo de ensino
e pesquisa. Esse movimento de profissionalização da ciência representou para Magali Sarfatti
Larson uma “[...] reestruturação geral da desigualdade social nas sociedades capitalistas
contemporâneas [...]”39. Nesse processo dialético ensino-pesquisa iniciado pelas universidades
alemãs da região prussiana e seguido por várias outras universidades de todo o mundo, esteve
inclusa a necessidade de produzir conhecimentos que deveriam ser inseridos na sociedade,
com o objetivo de transformá-la e direcioná-la para o progresso. Este foi o caso, por exemplo,
da Grã-Bretanha, que construiu novas instituições educacionais, com especial interesse pelo
ensino da ciência e da matemática, motivados, principalmente, pela Revolução Industrial.40
Nesse processo de profissionalização, independente da região e dos seus interesses políticos e
sociais, foi determinante o controle do mercado de trabalho que deveria ser assumido e
exercido apenas por profissionais qualificados em uma determinada área de conhecimento
científico41.
Em particular, a matemática passava por uma grande ebulição para formar o seu
estatuto enquanto área de conhecimento autônomo e independente. De fato, nesse período,

38
ROGERS, Leo. A survey of factors affeting the teaching of mathematics outside the universities in Britain in
the nineteenth century; p.149; HOBSBAWM, Eric J. Rumo a um mundo industrial. In: A era das revoluções,
p. 235- 253.
39
“[…] general restructuring of social inequality in contemporary capitalist societies […]”. Apud SCHNEIDER,
Ivo. The professionalization of mathematics and its educational context: introduction. In: BOS, Henk J.M.;
MEHRTENS, Herbert; SCHNEIDER, Ivo (eds). Social history of nineteenth-century Mathematics, p. 77.
40
SCHNEIDER, Ivo. The professionalization of mathematics and its educational context: introduction. In: BOS,
Henk J.M.; MEHRTENS, Herbert; SCHNEIDER, Ivo (eds). Social history of nineteenth-century Mathematics,
p. 83; ROGERS, Leo. A survey of factors affeting the teaching of mathematics outside the universities in
Britain in the nineteenth century, passim.
41
SCHNEIDER, Ivo. The professionalization of mathematics and its educational context: Introduction, p.75-88;
SCHUBRING, Gert. The conception of pure mathematics as an instrument in the professionalization of
mathematics. In: BOS, Henk J.M.; MEHRTENS, Herbert; SCHNEIDER, Ivo (eds). Social history of
nineteenth-century Mathematics, p. 111-134.
30

houve uma série de transformações, mudanças e inovações que afetaram de maneira geral
todos os aspectos constitutivos da matemática42, desde a sua organização profissional, até os
seus fundamentos epistemológicos e metodológicos, passando pela estruturação das suas
subáreas de conhecimento, com notáveis repercussões nos resultados da produção do seu
conhecimento e na ampliação do seu campo de trabalho. Fizeram parte dessa produção a
aritmetização da análise, as novas álgebras, os novos espaços, a teoria dos conjuntos, as novas
lógicas e as novas axiomáticas43.
Um elemento essencial para a produção desses novos resultados foi a centralidade do
rigor da matemática em métodos algébricos e abstratos da lógica axiomática, ao invés do
método geométrico, vinculado aos princípios da geometria euclidiana que prevaleciam
absolutamente até o séc. XIX. Em outras palavras, a construção discursiva do rigor passou a
residir no universo da estrutura das demonstrações algébricas e do encadeamento lógico das
proposições.44 Contudo, esse rigor não foi uma prática unilateral que passou a vigorar no
cerne da produção das teorias da matemática de diversas localidades europeias, das quais
priorizamos a Alemanha, França e a Itália, não apenas pelo domínio que tiveram das
principais publicações dos novos resultados que foram estabelecidos dentro do conhecimento
matemático ao longo do séc. XIX, mas principalmente pela participação ativa de seus
matemáticos no desenvolvimento do campo da geometria algébrica, notadamente entre a
segunda metade do séc. XIX e a década de 1950. Essa unilateralidade parece não ter
acontecido ou predominado nem mesmo dentro de seus próprios contextos internos.
Havia diferentes interesses e formas de conceber e praticar essa matemática do séc.
XIX. Na França, no ambiente da École Polytechnique, houve, em 1821, os trabalhos de
Augustin Louis Cauchy (1789-1857), que, vislumbrando uma nova perspectiva de
fundamentação para o cálculo, deu uma conceitualização de limite atrelada à de função, sem
fazer uso da intuição geométrica e da dinâmica, apelando apenas para a noção de número,
variáveis e funções45. Diferentemente do elevado centralismo presente na França, na
Alemanha, talvez por não haver ainda uma unidade nacional ou cultural – uma vez que desde
a última metade do séc. XVII até a década de 1870 os seus estados eram independentes –, o
desenvolvimento da matemática, mostrou-se diferente em suas regiões, notadamente entre os

42
Veja: STRUIK, Dirk J. Mathematics in the early part of the nineteenth century, p. 6-20.
43
LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites..., p.46.
44
LIMA, Eliene Barbosa; Dias, André Luis Mattedi. Concepções modernas de rigor..., p.175; DIAS, André L.
Mattedi. Uma crítica aos fundamentos do ensino autoritário e reprodutivo da matemática, p. 66-69.
45
BOYER, Carl B. The concepts of the calculus: a critical and historical discussion of the derivate and the
integral, p.272-273.
31

estados do sul, de predominância católica, e os estados do norte, majoritariamente constituído


de uma população protestante.
Em contraposição aos estados do sul, nos estados do norte, prioritariamente os que
faziam parte da região prussiana, foram estabelecidas ações, por meio de reformas nos seus
sistemas políticos e educacionais a nível superior e secundário, que permitiram estabelecer a
autonomia disciplinar da matemática, algo que convergia para o rumo tomado pela ciência de
um modo geral. Contudo, mesmo na região prussiana, houve embates entre os institutos
técnicos superiores, que priorizavam a matemática aplicada e os sistemas universitários que
davam ênfase à matemática pura, e, ainda no próprio ambiente interno das instituições
universitárias, como a controvérsia envolvendo Georg Friedrich Bernhard Riemann (1826-
1866), da Universidade de Göttingen e Karl Theodor Wilhelm Weierstrass (1815-1897), que
pertencia à Universidade de Berlim. Essa controvérsia girou em torno do método utilizado
para a construção das teorias das funções abelianas e elípticas, feita por Riemann pelos
métodos geométricos, diferindo, por sua vez, da construção de Weierstrass, que aplicou
métodos algébricos.46 Na Itália, os matemáticos italianos, mesmo conscientes dos crescentes
discursos a favor dos métodos algébricos, preferiram, porque não dizer hegemonicamente,
desenvolver as teorias da matemática por meio do método geométrico, alcançando níveis de
excelência entre as últimas décadas do séc. XIX e as primeiras duas décadas do séc. XX, cujas
universidades faziam parte da rota de jovens matemáticos de todo o mundo, devido ao alto
nível dos seus numerosos pesquisadores47.
Em suma, nesses diferentes contextos, quer seja na França, quer seja na Alemanha ou
ainda na Itália, perpassando para o séc. XX, a discussão estava sempre explicitamente em
torno do rigor, ou melhor, da falta de rigor matemático. No entanto, implicitamente, pareciam
estar ainda envolvidas questões de ordem política, religiosa, de prestígio e de poder
hegemônico, ou seja, parecia haver uma rede complexa de interesses que transcendiam o
discurso que se preocupava apenas com desenvolvimento rigoroso das teorias da matemática.
Isto é o que parece ter acontecido em torno da fundamentação da geometria algébrica no
cenário ocorrido no período da segunda metade do séc. XIX e a primeira metade do séc. XX,
do qual faziam parte a Itália, a Alemanha, a França e os Estados Unidos. Nesse cenário, havia
uma circulação de ideias, uma movimentação de lugares, mas era um objeto, a geometria

46
Veja: SCHUBRING, Gert. Mathematics in Germany. In: SORENSEN, Henrik Kragh. A dozen Episodes from
the mathematics of the nineteenth century; BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric
fantasies”: Weierstrass’ response to Riemann.
47
GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p.1-28;
CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the Italian and American schools
of algebraic geometry in the first decades of the 20th century, p. 310-319.
32

algébrica, que ocupava um lugar inabalável e permanente no cerne do discurso sobre o rigor.
Aos olhos menos sensíveis, isto possibilitava que outros elementos, num efeito muito sutil,
tais como os que foram apontados anteriormente, fossem ocultados ou minimizados em sua
importância nesse discurso. Sob o discurso do rigor, a geometria algébrica despertou o
interesse e a prioridade pela sua fundamentação sob bases rigorosas, primeiro, porque os seus
objetos e problemas apresentavam a peculiaridade de estabelecer vínculos entre a geometria, a
álgebra e a análise, algo que era particularmente, na nossa concepção, muito atrativo como um
exemplo de unificação natural das teorias da matemática. E, depois, na mesma proporção,
porque ela era dominada pela escola italiana de matemática, que utilizavam métodos
geométricos para a construção das suas demonstrações. No entanto, conforme iremos abordar
ao longo do desenvolvimento dessa pesquisa, tais métodos, no decorrer dos anos e mais
incisivamente no período entre as duas guerras mundiais, começaram a ser questionados por
matemáticos como van der Waerden, André Weil (1906-1998) e Oscar Zariski (1899-1986)
em favor da crescente aplicação da álgebra moderna no campo da geometria algébrica. De
um modo geral, apoiando-nos na pesquisa de Silke Slembek, as críticas recaíam no fato de
que o método geométrico da escola italiana de geometria algébrica desencadeava
demonstrações cheias de lacunas. Algo que, na ótica de Oscar Zariski, não as invalidaria, mas
apenas as tornaria altamente plausíveis48.

2 ALGEBRIZAÇÃO DA MATEMÁTICA: PERDA DA HEGEMONIA


GEOMÉTRICA

Até o começo do séc. XIX, a álgebra não era mais que a teoria das equações, as quais
eram geralmente associadas a problemas particulares, cujas soluções eram quase sempre
dadas abordando cada caso em separado, isto é, por meio do método sintético.49 Entre o
último terço do séc. XIX e o primeiro terço do séc. XX, a álgebra, segundo Leo Corry,
produzida por seus praticantes, passou por profundas mudanças que não se resumiram apenas
na adição de novos resultados, de novos conceitos e de novas técnicas, mas também envolveu
mudanças importantes nas diversas formas em que foram concebidos os seus objetivos e as

48
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation de la géométrie algébrique selon
Oscar Zariski, p.10; ZARISKI, Oscar. Algebraic surfaces, p. 18.
49
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda...,
p.226.
33

suas possibilidades50. Para essa mudança de status da álgebra, contribuiu o fato de os


matemáticos passarem a considerar a aritmética como sua linguagem, quando instituíram uma
nova caracterização para os números, que deixaram de ser associados à ideia empírica de
quantidade para serem concebidos como símbolos abstratos, sem qualquer referência à
realidade concreta.51 Dentro dessa nova concepção, os números passaram a ser vistos,
conforme Peter Damerow, primeiro, no nível de dedução, cujas afirmações e provas foram
formuladas em linguagem natural, tal como foi feito, por exemplo, nos Elementos de
Euclides; depois, no nível de dedução formal, que substituiu essa linguagem natural pela
52
linguagem formal, como uma forma de objetivar o pensamento científico matemático.
Portanto, as sucessivas generalizações e extensões do conceito de número se tornaram um
aspecto importante para se começar a instituir um processo de aritmetização de toda a
matemática. Assim, segundo Gert Schubring, o esforço da aritmetização da matemática foi
sustentado com a concepção de que a álgebra passou a ser vista como uma disciplina
fundamental em si e a geometria não mais do que um campo de aplicação da álgebra.53
O status adquirido pela álgebra deveu-se ao seu elevado grau de abstração e
generalização imposto nas suas definições e demonstrações, construídas somente sob a lógica
axiomática. O início dessas transformações foi gerado com a demonstração feita por Paolo
Ruffini (1765-1822) e Niels Henrik Abel (1802-1829) da impossibilidade de haver resolução
de equações de quinto grau através de radicais, algo que foi almejado devido ao êxito obtido
em torno da resolução de equações algébricas de 2º, 3º e 4º graus. Foi, no entanto, somente
por meio dos trabalhos de Évariste Galois (1811- 1832), o primeiro a mostrar uma teoria geral
(hoje denominada teoria dos grupos) que incluía as noções de subgrupos e isomorfismos, que
foi possível obter uma solução plausível para a determinação das raízes algébricas. Estes
resultados permitiram, em contraponto ao que era feito antes através do método sintético, a
resolução generalizada de uma família de equações por meio de um único procedimento
analítico, ou seja, por uma única sequência algorítmica de operações denominada fórmula.
As ideias implícitas presentes nos trabalhos de Galois tornaram-se mais visíveis e
centrais após Joseph Liouville (1809-1882) tê-las publicado em 1846. Talvez isto tenha
influenciado no fato de tais ideias terem sido gradualmente incorporadas por Joseph Alfred

50
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930): changing conceptions of a discipline. A
guided tour using the jahrbuch über die fortschritte der mathematik, p. 221.
51
JAHNKE, Hans N; OTTE, Michael. Origins of the program of “Arithmetization of mathematics”. In: BOS,
Henk J.M.; MEHRTENS, Herbert; SCHNEIDER, Ivo (ed.), p. 29.
52
Apud ALMEIDA, Manoel de Campos. Origens dos numerais. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA
DA MATEMÁTICA, p. 125.
53
SCHUBRING, Gert. Rupturas no estatuto matemático dos números negativos, p. 82.
34

Serret (1819-1885) nas edições de seu livro. Tal livro, muito popular na França durante a
segunda metade do séc. XIX, tornou-se, na sua terceira edição, publicada em 1866, o primeiro
livro de ensino superior a tratar de forma completa da exposição da teoria de Galois.54 A
paulatinidade das modificações feitas por Joseph Serret nas edições de seu livro, alcançando o
auge em sua terceira edição, pode ser observada na seguinte passagem dessa sua obra:

Desde que comecei a me ocupar do trabalho considerável que eu publico


hoje o resultado e que eu não gastei menos de três anos, eu reconheci a
conveniência e até mesmo a extensão de várias teorias importantes que não
haviam sido abordadas de uma forma abrangente nas edições anteriores, ao
mesmo tempo eu tinha como central introduzir neste trabalho os resultados
de minhas novas pesquisas sobre a álgebra, especialmente aqueles que se
referem à eliminação, a teoria das congruências e aquela das substituições.
Mas o quadro que eu adotei para a primeira edição e eu mantive na segunda
não era adequado para um aumento tão grande de matérias..55

Posteriormente, em 1870, houve a publicação de uma segunda obra francesa, de


autoria de Camille Jordan (1838-1922), que também incluía na estrutura de seu corpo a teoria
desenvolvida por Galois. Já em direção do final do séc. XIX, em 1895, o alemão Heinrich
Martin Weber (1842-1913) publicou uma obra56 na Alemanha que contemplava também as
ideias que estavam sendo introduzidas no conhecimento algébrico ao longo séc. XIX. 57 Esses
dois exemplos, um no contexto francês e o outro na Alemanha parecem ser um bom indício de
como as novas ideias inseridas na álgebra começaram a ser apropriadas e passaram a ser
circuladas no ensino superior.
Mas, ainda, conforme os estudos de Leo Corry, a álgebra quer seja no livro de Joseph
Serret, quer seja no livro de Camille Jordan ou ainda na obra de Martin Weber, continuava
sendo vista, tanto por esses autores como por outros praticantes, como uma área de
conhecimento que tratava apenas das equações e formas polinomiais. Noutras palavras, lidar
com teorias abstratas, como as de grupos, nesse momento, era equivalente a trabalhar as
principais tarefas dessa álgebra, dita clássica, que se resumiam na análise e na resolução de
equações algébricas por meio de radicais, a partir da concepção preliminar das propriedades

54
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930)…, p. 221.
55
Dès que je commençai à m'occuper du travail consideráble dont je publie aujourd'hui le résultat et auquel je
n'ai pas consacré moins de trois annés, je reconnus la convenance et même la étendus à plusieurs théoris
importantes que n'avaient pas été traitées d'une manière complète dans les éditions précedents; j'avais à coeur
en même temps d'introduire dans cet ouvrage les resultats de mes nouvelles recherches sur l'Algèbre,
notamment de celles qui se rapportent à l'élimination, à la théorie des congruences et à celle des substitutions.
Mais le cadre que j'avais adopté pour la première edition et que j'avais conservé dans la deuxième se prêtait
mal à un si grand accroissement de matières. SERRET, Joseph Alfred. Avertissement. In: Cours d’algèbre
supérieure, p. v-vi.
56
Nomeada de Lehrbuch der Algebra.
57
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930)…, p. 221.
35

básicas dos sistemas de números racionais e reais. Isto coloca explicitamente que a inserção
de novas teorias dentro do conhecimento algébrico não significou necessariamente uma
transformação imediata na sua forma de concepção e organização. Muito pelo contrário, foi
um processo complexo, gradual, não linear e não homogêneo. Dentro desse contexto, Leo
Corry fez uma análise do processo de construção e consolidação da nova concepção e da nova
organização que foram paulatinamente institucionalizados dentro do conhecimento algébrico,
que possibilitou caracterizá-lo como álgebra moderna. Isto foi feito por meio dos livros
didáticos e de influentes revistas publicados na Alemanha e nos Estados Unidos, que
discutiam sobre o desenvolvimento da matemática, em particular da álgebra, no período entre
as últimas décadas do séc. XIX e as três primeiras décadas do séc. XX.58
A opção de Leo Corry de fazer a sua análise tendo como uma de suas fontes centrais
os livros didáticos diverge de uma concepção que coloca tais livros, se não numa posição
marginalizada, mas como um mero ‘estereótipo’ da produção do conhecimento científico, e,
portanto, considerados uma literatura menor em relação a outras fontes secularmente vigentes
no arcabouço das pesquisas históricas, tais como os documentos de arquivos, jornais e
revistas especializadas. Leo Corry, além de colocar os livros didáticos em status de igualdade
perante essas outras fontes, não direcionou sua análise a uma descrição do processo de
formação do campo de conhecimento algébrico, mas lançou luzes para uma melhor
compreensão desse caminho, “por vezes tortuoso”, acerca da transição da álgebra clássica
para o que passou a ser chamado de álgebra moderna. Em outros termos, Leo Corry buscou
construir um cenário sobre o conhecimento algébrico, interrogando as ações visíveis e,
principalmente, as subjacentes que ele acreditava terem interferido fortemente na imagem que
os matemáticos, ainda muito influenciados pelo modelo clássico da álgebra, tinham e
desejavam estabelecer para esse conhecimento a partir das novas teorias que estavam sendo
construídas. Nessas ações estavam em jogo fatores que transcendiam argumentos lógicos
acerca da notória expansão do corpo de conhecimento algébrico. O aspecto que pareceu ser
determinante na estruturação dessa nova álgebra que estava se constituindo foi a visão que os
matemáticos tinham do que seria álgebra. Portanto, se por um lado havia um contexto de
mudanças, por outro, elas não foram homogêneas e universalmente compartilhadas pela
comunidade de matemáticos. Na nossa ótica, a discussão de Leo Corry assemelhou-se à ideia
de Gert Schubring sobre como deveria ser feita uma análise de livros didáticos. Gert

58
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930)…, passim.
36

Schubring considera que os livros didáticos devem ser analisados sob a ótica da hermenêutica,
particularmente sob o conceito construído por Friedrich August Wolf:
A hermenêutica – ou a arte de explicar – nos ensina a entender os
pensamentos de outra pessoa através de seus sinais, e a explicá-los. Isso
permite a dádiva de um julgamento claro que pode penetrar na analogia dos
modos de raciocinar de outra pessoa [...] O que é necessário antes de tudo
como conhecimento científico é o conhecimento da língua na qual o autor
escreveu. Isso inclui diversas investigações gramaticais, de modo que estas
precisam ser feitas primeiro. O conhecimento da língua, entretanto, não será
suficiente. Precisamos aprender a respeito da situação moral na época do
autor, precisamos ter conhecimentos de história e de literatura, e temos de
saber sobre a situação mental, o esprit..59
Assim, a partir desse conceito, para Gert Schubring, uma análise hermenêutica dos
livros didáticos deve levar em consideração todo o seu contexto de produção e não apenas
uma tentativa de compreendê-los dentro da maneira de pensar de um dado cientista. Para
ele, isto poderia ser feito por meio da história social das ideias, na qual o historiador, além
de trabalhar com a estrutura interna do livro-texto, julgaria essa estrutura e as conexões
internas estabelecidas, situando o autor do livro-texto e a sua obra dentro do contexto do
desenvolvimento da matemática, inclusive avaliando a originalidade das contribuições do
autor para esse desenvolvimento.60
Esses aspectos puderam ser mais bem percebidos quando Leo Corry tratou, por um
lado, sobre a emergência gradual da concepção estruturalista da álgebra como um princípio
capaz de unificar as diferentes teorias algébricas e, por outro, sobre as tentativas de
organização que foram feitas a partir da criação de novas teorias com caracterizações
algébricas. Além disso, esses são dois elementos importantes para uma melhor compreensão
acerca do processo de institucionalização dessa nova álgebra.
De fato, em relação à concepção estruturalista da álgebra, o livro de van der
Waerden, Moderne Algebra, segundo afirmação de Leo Corry, trouxe uma argumentação
original e fundamental para a efetivação dessa concepção na álgebra, em 1930. Neste
sentido, van der Waerden teve um papel vanguardista ao apresentar os diversos ramos
matemáticos relacionados com o conhecimento algébrico dentro de uma única perspectiva e
de forma unificada. Em linhas gerais, fez uma abordagem conceitual hierarquizada das
teorias algébricas. Em consonância a essa afirmação de Leo Corry, muito oportunas são as
palavras de Frédéric Patras:

Van der Waerden mostrou de facto que a álgebra moderna gerava os métodos
e as técnicas novas – mais ou menos uniformes no espírito e independentes

59
Apud SCHUBRING, Gert. Análise histórica de livros de matemática, p.14-15.
60
SCHUBRING, Gert. Análise histórica de livros de matemática, p.14-17.
37

dos objetos particulares estudados. Em outros termos, Moderne Algebra foi


mais do que apenas o resultado de um trabalho de formalização: ele
correspondeu um novo horizonte de ferramentas da matemática. (grifo no
original). 61
Radicado na Alemanha, desde a década de 1920, o holandês van der Waerden é visto
por uma literatura atual como sendo o último cientista que parece ter tido a faculdade de
constituir uma visão ampla de diversos ramos de domínio matemático entre eles a álgebra
abstrata, a teoria dos números, a topologia e a geometria algébrica. Ainda teve destaque pelos
seus trabalhos na física, na história da matemática62 e da astronomia.63
De fato, mesmo no período da II Guerra Mundial, van der Waerder, ainda que
vivenciando algumas dificuldades, permaneceu na Alemanha. Neste sentido, Yvonne Dold
Samplonius relatou que o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002), recordou, em
uma carta endereçada a ela, que van der Waerden, por ser holandês, foi preso no início da II
Guerra Mundial, obtendo sua liberdade, segundo esse próprio filósofo, devido a sua
interferência junto a uma autoridade do regime nazista.64 Hans-Georg Gadamer parece ter
construído ao longo de sua vida um olhar muito singular sobre o regime nazista, tal como
podemos observar na interessante passagem da análise feita por Luis Rohden sobre a biografia
de Hans-Georg Gadamer publicada por Jean Grondin:
Como atesta Grondin em várias passagens da sua biografia, Gadamer repetiu
sempre que “os Nazistas reais não despertavam nele nenhum interesse”. Da
“ilusão” nazista confessa ter sido salvo, primeiro em virtude da amizade que
o ligava a muitos intelectuais judeus e, depois, pela convicção de que o
fenômeno, por impressionante que fosse, teria existência efêmera; et illud
transit, segundo repetia..65
Ainda em relação a esse momento vivido por van der Waerden no período da II
Guerra Mundial na Alemanha, Günter Frei, Jaap Top e Lynne Walling em seu artigo, de
cunho biográfico, afirmaram que van der Waerden, tanto antes como durante a II Guerra
Mundial permaneceu em Leipzig como um estrangeiro, visto que se recusou a desistir da sua
cidadania holandesa, ficando, dessa forma, exposto ao já hostil tratamento do regime nazista.
Assim, em nossa interpretação, com a procupação de deixar claro que van der Wearden não
compactuou com as ideias nazistas mesmo tendo permanecido na Alemanha durante a II

61
Van der Waerden montrait de facto que l’algèbre moderne générait des méthodes et des techniques nouvelles –
plus ou moins uniformes dans l’esprit et indépendantes des objets particuliers étudiés. En d’autres termes,
Moderne Algebra fut plus que le Seul résultat d’un travail de formalisation: il lui correspondait un nouvel
horizon d’outils mathématiques. PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, p.112.
62
Neste sentido, citamos, por exemplo, o seu livro Science Awakening, publicado originalmente em alemão, no
ano de 1950, sob o título de Ontwakende wetenschap. FREI, Günther; TOP, Jaap; WALLING, Lynne. A short
biography of B. L. van der Waerden, p. 143.
63
Veja: FREI, Günther; TOP, Jaap; WALLING, Lynne. A short biography of B. L. van der Waerden.
64
DOLD-SAMPLONIUS, Yvonne. Interview with Bartel Leendert van der Waerden. Nota de rodapé, p.317.
65
ROHDEN, Luis. Jean Grondin, Hans-Georg Gadamer: eine biographie, p. 270.
38

Guerra Mundial, esses autores enfatizaram que tal hostilidade não teve qualquer efeito sobre a
integridade de van der Wearden. Isto porque, pontuaram Günter Frei, Jaap Top e Lynne
Walling, van der Waerden, juntamente com os seus amigos físicos Werner Karl Heisenberg
(1901-1976) e Friedrich Hermann Hund (1896-1997) e o físico-químico Karl Friedrich
Bonhoeffer (1899-1957), manteve a postura de defender as pessoas que estavam sendo
perseguidas por esse regime.66 Uma visão que é corroborada no artigo de Norbert
Schappacher. Segundo este autor, nos registros do arquivo pessoal de van der Waerden
localizado na Universidade de Leipzig, constam que ele passou por dificuldades políticas,
principalmente com os nazistas locais. Dessa forma, analogamente como afirmaram Günter
Frei, Jaap Top e Lynne Walling, é mencionado, no referido arquivo, que van der Waerden –
ao lado de Friedrich Hermann Hund e Werner Karl Heisenberg – questionou, em uma
reunião do corpo docente da Universidade de Leipzig realizada em 1935, a decisão do
governo alemão de demitir quatro de seus colegas ditos “não-arianos”, visto que eles estavam
cobertos por uma cláusula pertencente a Lei de 7 de abril de 1933 que protegia aqueles que
foram combatentes na linha de frente durante a I Guerra Mundial. É registrado inclusive que
van der Wearden, ainda que tenha recuado logo em seguida depois de ser atacado por um
colega, chegou a sugerir que as demissões representavam um desrespeito do governador em
relação à referida Lei. No entanto, o recuo de van der Waerden, segundo Norbert
Schappacher, não impediu que os nazistas locais tivessem a visão de que ele era politicamente
perigoso.67 No entanto, para Colin McLarty, van der Waerden muito provavelmente apoiou o
regime nazista. Fez esta leitura ponderando que van der Waerden aceitou um emprego em
Leipzig no momento em que os judeus já eram retirados das faculdades alemãs e que
permaneceu nele mesmo após a Holanda ser invadida pelos alemães, replicando, neste último
caso, a afirmação de Günter Frei, Jaap Top e Lynne Walling acerca do fato de que van der
Waerden ao manter a sua cidadania holandesa ficou exposto ao tratamento hostil da política
nazista. Na concepção de Colin McLarty, van der Waerden com a reputação que já tinha
conquistado, poderia ter conseguido uma posição em qualquer outro lugar fora da
Alemanha. 68
Dentro desse contexto, consideramos que talvez valha a pena ainda ponderar que van
der Waerden tenha sido movido a ficar na Alemanha pelo fato de que vivia num ambiente

66
FREI, Günther, TOP, Jaap, WALLING, Lynne. A short biography of B. L. van der Waerden, p. 138.
67
SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van der Waerden’s work…. Nota de rodapé, p. 251-
252.
68
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, p. 445.
39

científico considerado um dos mais proeminentes da época, principalmente para o


desenvolvimento da matemática. De fato, van der Waerden, que havia estudado matemática,
entre os anos de 1919 e 1925, na Universidade de Amsterdam, na Universidade de Hamburgo
e na Universidade de Göttingen – esta última considerada o centro mundial de pesquisa em
matemática – tinha se tornado, em 1931, professor e co-diretor do Seminário de Matemática
do Instituto de Matemática da Universidade de Leipzig. Antes, porém, após ter defendido a
sua tese de doutoramento, em 1926, na Universidade de Amsterdam, havia sido professor
visitante, no período de 1926-1927, da Universidade de Hamburgo. Ainda, em 1928, tinha
assumido uma cátedra na Universidade de Groningen, na qual, por sinal, havia escrito e
publicado, em 1930, a sua mais conhecida obra Moderne Algebra.
Portanto, van der Waerden havia construído toda a sua carreira profissional dentro dos
limites alemães, algo que se tornou possível devido à sua escolha, sem nenhuma
aleatoriedade, de passar inicialmente uma temporada de seis meses de estudos nesse País, o
que lhe possibilitou começar a chamar atenção de alguns dos seus mais importantes
matemáticos. Por exemplo, na Universidade de Göttingen, teve aulas sob a docência de
Hellmuth Kneser (1898-1973), com quem disse ter aprendido topologia, e com a alemã
Amalie Emmy Noether (1882-1935), cujos estudos se concentravam na álgebra, sendo
inclusive apontada pelo próprio van der Waerden como a sua grande mentora em Göttingen.
Ao que parece indicar, a participação inicial de van der Waerden em suas aulas foi bem
promissora, na medida em que o recomendou à Fundação Rockfeller para receber uma bolsa
de um ano e assim poder continuar por mais dois semestres os seus estudos na Alemanha,
após ter vencido os primeiros seis meses custeados pelo seu pai no ano de 1923. Assim, fez
mais um semestre de estudo na Universidade de Göttingen e o outro na Universidade de
Hamburgo, onde teve aulas com Emil Artin (1898-1962). 69
Muito provavelmente van der Waerden estava principalmente se referindo aos
resultados produzidos por Emmy Noether acerca do que hoje é chamado “anéis noetherianos”,
estudados e introduzidos no seu artigo de 1921 que tratava sobre a teoria de ideais. Nesse
artigo Emmy Noether, segundo Frans Lemmermeyer e Peter Roquette, mostrou de forma
convincente que, em um anel comutativo, as várias leis de decomposição dos ideais nos anéis
de polinômios – conhecidos hodiernamente como ideais primários – poderiam ser
exclusivamente obtidas tendo como pressuposto o fato de que todos os ideais admitiam uma
base finita. Em 1924, durante a reunião da Sociedade de Matemática Alemã, realizada em

69
DOLD-SAMPLONIUS, Yvonne. Interview with Bartel Leendert van der Waerden, p.315; FREI, Günther,
TOP, Jaap, WALLING, Lynne. A short biography of B. L. van der Waerden, p. 138.
40

Innsbruck na Áustria, Emmy Noether apresentou uma base axiomática para a fatoração de
ideais em ideais primos – os quais eram conhecidos como anéis de inteiros em um corpo de
número algébrico, mas nomeados hoje em dia de “anéis de Dedekind”, em referência a Julius
Wilhelm Richard Dedekind (1831-1916). Já no ano seguinte, na reunião da Sociedade de
Matemática Alemã, Emmy Noether apresentou as suas ideias acerca da teoria da
representação.70 Esses trabalhos de Emmy Noether em torno da teoria abstrata de anéis,
juntamente aos principais resultados da fatoração dos ideais de polinômios apresentados por
Emanuel Lasker (1868-1941) e os teoremas de fatoração para inteiros algébricos trabalhados
por Dedekind, tornaram-se, segundo Leo Corry, um dos pilares centrais para a abordagem
moderna e estrutural da álgebra71.
Emmy Noether foi matemática, mas antes mulher, judia, e também simpática às ideias
da então União Soviética. Foi membro radicalista do Partido Democrático Social
Independente, a partir de 1919, até ele ser dissolvido em 1922, uma predileção considerada
pelos seus colegas de Göttingen como de mau gosto e chocante, mas que, no olhar de seu
amigo russo Pavel Seergeevich Aleksandrov (1896-1982), era um traço brilhante de seu
caráter. Já nessa época, o partido – que seguia os princípios da filosofia social criada pelo
alemão de origem judia, Karl Heinrich Marx (1818-1883) – por proclamar “uma ditadura dos
proletariados”, era frequentemente chamado de “terror Bolchevista” pelo Ministro do Exército
Gustav Noske e também por muitos estudantes de Göttingen.72 Com esses elementos fazendo
parte de sua personalidade, Emmy Noether tornou-se um alvo fácil para todos os tipos de
injustiças e hostilizações, apesar de ser filha do prestigioso matemático de Erlangen Max
Noether (1844-1921) e ter sido considerada uma matemática extremamente talentosa, afinal
ninguém permaneceria na prestigiosa Universidade de Göttingen, com todos esses
sobressaltos, se não fosse suficientemente competente no exercício da sua profissão. Um
status que pode ser percebido, por exemplo, por meio do matemático americano Saunders
Maclane (1909-2005), que foi para essa Universidade em 1931 para fazer os seus estudos de
doutoramento. Saunders MacLane, depois de ter passado um ano decepcionante à espera de
uma vaga de pós-graduação em Chicago, afirmou que naquela época além de estar
procurando um departamento de matemática de excelência, tinha interesse que nele tivesse

70
LEMMERYER, Frans; ROQUETTE, Peter. Introduction. In: Helmut Hasse und Emmy Noether: Die
Korrespondenz 1925-1935, p.10.
71
[…]”. CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p. 231.
72
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, passim.
41

estudos e pesquisas em lógica matemática, uma paridade que ele disse ter encontrado na
Universidade de Göttingen.73
Contudo, todo o talento de Emmy Noether, em um primeiro momento, mais
marcadamente por ser mulher, não foi suficiente para que a sua carreira profissional, assim
como a recepção de seus trabalhos matemáticos, fossem duramente atingidos. Mesmo tendo o
apoio de David Hilbert (1861-1943) – já reconhecido como grande líder matemático mundial
– e de Hermann Weyl (1885-1955), Emmy Noether nunca teve um salário regular na
Universidade de Göttingen, ainda que, por exemplo, Hermann Weyl, segundo Saunders
Maclane, a considerasse como igual a ele74. Chegou em 1915 e apenas em 1925 alcançou uma
posição oficial por meio do título de professora associada (Privatdozent), algo equivalente ao
cargo de professor adjunto, porém não teve direito a proventos tal como qualquer outro
professor que disponibilizava os seus serviços profissionais em Göttingen.75 Sem jamais
conseguir uma promoção, Emmy Noether, que inicialmente trabalhou sob a influência do
próprio David Hilbert e de Felix Christian Klein (1849-1925), muito provavelmente só
conseguiu essa posição, ainda que sem rendimentos regulares, por ter se tornado, tal como
afirmaram Frans Lemmermeyer e Peter Roquette, “[...] um membro respeitado e altamente
valorizado pela comunidade de matemática.”76.
Em um segundo momento, desencadeado pela ascensão do regime nazista, por ser
principalmente judia, tendo ainda com um elemento agravante o seu posicionamento político.
Com efeito, apesar de a política anti-semita ter pouco centralizado as suas ações sobre a
matemática no período de 1900 à década de 1920 em Göttingen, quando comparada aos
outros cursos dentro dessa própria Universidade ou a outras, na prática, para Emmy Noether
isto não teve muito efeito, pois, além de a matemática ser apenas uma parte da faculdade de
filosofia dessa Universidade, os anti-semistas faziam oposição especialmente às mulheres
judias. 77
Assim acreditamos que, por um período, fazer parte de um ambiente notadamente
masculino, algo inovador e revolucionário na época, foi, sem sombras de dúvidas, um fator
complicador para Emmy Noether não apenas desenvolver, mas também consolidar a sua

73
MACLANE, Saunders. Mathematics at Göttingen under the Nazis, p. 1134.
74
MACLANE, Saunders. Mathematics at Göttingen under the Nazis, p. 1135.
75
LEMMERYER, Frans; ROQUETTE, Peter. Introduction. In: Helmut Hasse und Emmy Noether…, p.10;
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, p. 441.
76
“[…] a respected and highly valued member of the mathematical community.”. LEMMERYER, Frans;
ROQUETTE, Peter. Introduction. In: Helmut Hasse und Emmy Noether…, p.10.
77
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, passim.
42

carreira profissional. Em outro momento, essa dificuldade se deu em face de sua origem judia
e suas convicções políticas diante de uma Alemanha que vivia o preâmbulo de protagonizar
ao que hoje ainda é considerada a maior atrocidade cometida contra a humanidade que foi a II
Guerra Mundial. Nas palavras de Colin Mclarty, Emmy Noether “Tanto na política como na
matemática e certamente por ser uma mulher acadêmica [...] era frequentemente vista como
excessiva [...] e até mesmo uma ameaça.”78. Comentada por uns, a exemplo de Adolf
Abraham Halevi Fraenkel (1891-1965), matemático alemão judeu, como alguém que
praticava uma política teórica feita dentro dos limites de sua sala e, na interpretação de Colin
Mclarty, “[...] uma comunista na segurança da sua sala.”79, o que parece ser inegável é o fato
que Emmy Noether não escondia as suas preferências políticas. Um indício disso foi quando
se mostrava muito próxima dos visitantes russos em Göttingen, ou no momento em que
resolveu passar o período de 1928-1929 em Moscou. Isto por si só já era radical tomando por
base o ambiente que se formava na Alemanha. Nas palavras de Pavel Aleksandrov:
Em Moscou ela rapidamente cruzou em nossos caminhos, tanto na
matemática como na vida cotidiana. Ela vivia em um modesto quarto no
dormitório na Ponte Crimeia e geralmente caminhava até a Universidade.
Ela estava muito interessada em nosso estilo de vida, e em particular na
vida da juventude soviética, especialmente os estudantes..80
O que parece ter sido também inegável na vida de Emmy Noether foi a sua
capacidade de separar os assuntos profissionais das questões políticas. Neste sentido, já nos
dias tumultuados de 1933, aconteceu algo inusitado na reunião de Emmy Noether, realizada
em seu apartamento para organizar uma palestra que Helmut Hasse (1898-1979) iria fazer
sobre a teoria dos corpos de classe, para a qual ele contribuiu com importantes resultados, tais
como as leis da reciprocidade, o teorema da norma, a teoria de corpos de classes locais e a
multiplicação complexa81. Dentre os presentes, um aluno, Ernst Witt (1911-1991), por quem
Emmy Noether tinha o maior apreço, apareceu trajando um uniforme da SA [Storm Trooper].
Contrariamente ao que se possa imaginar, não ficou surpreendida com o gesto explícito a
favor do nazismo. Emmy Noether sempre teve uma relação muito próxima aos estudantes,

78
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, p.432.
79
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, p. 445.
80
“She quickly fell in with our Moscow ways, both in mathematics and in everyday life. She lived in a modest
room in the dormitory at the Crimean Bridge and generally walked to the University. She was very interested
in our way of life, and in particular the life of the Soviet youth, especially the students.”. Apud MCLARTY,
Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic Party, p.
442.
81
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, p.444; LEMMERYER, Frans; ROQUETTE, Peter. Introduction. In: Helmut Hasse und Emmy
Noether…, p.8.
43

portanto, sabia com certa segurança aqueles que apoiavam ou eram contra o movimento
nazista, justamente por ter vivido experiências nos dois lados dessa moeda. Uma foi ter
cedido a sua própria sala para os estudantes esquerdistas fazerem suas reuniões, outra, em
sentido inverso, foi de ter sido expulsa de uma das pensões em que viveu e regularmente fazia
as suas refeições, pelos líderes estudantis, residentes na pensão, sob a alegação de que não
queriam compartilhar o mesmo teto com alguém que denominavam de “judia inclinada ao
marxismo”.82
Um outro exemplo, dentro desse contexto, consiste na sua amizade com o próprio
Helmut Hasse, evidenciada nas muitas correspondências83 trocadas entre o ano de 1925 até a
trágica morte de Emmy Noether em 1935, ou seja, eles continuaram a se corresponder mesmo
após a saída de Emmy Noether da Alemanha em 1933. Tais cartas tinham como tema central
a matemática. Contudo, mesmo tendo toda essa consideração por Emmy Noether e ainda ter
algumas objeções às políticas nazistas, Helmut Hasse foi notadamente um simpatizante do
regime nazista. Helmut Hasse, apesar de ter usado todo o seu prestígio e lutado, em 1933,
para manter o emprego de Emmy Noether na Universidade de Göttingen, diga-se de passagem
sem sucesso, ele era um conservador e fervorosamente apoiou as ideias do governo nazista.
Ao explicar a sua convergência com os socialistas nacionais, na década de 1930, e posteriores
críticas às ações desse governo, Helmut Hasse proferiu as seguintes palavras: “Eu aprovei
com todo meu coração e alma os esforços de Hitler para eliminar as injustiças feitas à
Alemanha pelo [Versailles] tratado [...]”84. Colin McLarty ainda complementa dizendo que
“ Esta era uma posição comum na época, não só na Alemanha, mas também em círculos
germanófilos na Holanda, Inglaterra e Estados Unidos.”.85
Dessa forma, parece que para Emmy Noether as escolhas das pessoas que fariam parte
de seu convívio envolviam outros critérios que não perpassavam pelas suas preferências
políticas. E a recíproca dessas pessoas era a mesma em relação a Emmy Noether, que sempre

82
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, passim.
83
Frans Lemmermeyer e Peter Roquette apresentam em seu livro 82 cartas, 79 de Emmy Noether para Helmut
Hasse e apenas 3 de Helmut Hasse para Emmy Noether. Os autores apontam que existiram muitas outras
cartas de Helmut Hasse para Emmy Noether, uma vez que muitas das cartas dela eram respostas às indagações
de Helmut Hasse. As 82 cartas se encontram no Handschriftenabteilung da Biblioteca da Universidade de
Göttingen. LEMMERYER, Frans; ROQUETTE, Peter. Introduction. In: Helmut Hasse und Emmy Noether…
p. 7-8.
84
“I approved with all my heart and soul of Hitler’s endeavors to remove the injustices done to Germany by [the
Versailles] treaty […]”. Apud MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the
Independent Social Democratic Party, p. 444; LEMMERYER, Frans; ROQUETTE, Peter. Introduction. In:
Helmut Hasse und Emmy Noether, passim.
85
“This was a common position at the time not only in Germany but also in Germanophile
circles in Holland, England, and the United States[…]”. MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait:
Emmy Noether and the Independent Social Democratic Party, p. 444.
44

deixou explícito o seu posicionamento político e a sua origem judia. Contudo, foi devido
justamente a esta postura que Emmy Noether não conseguiu a condescendência do governo
nazista para que permanecesse na Alemanha. Assim, em 25 de abril de 1933, Emmy Noether
estava entre as primeiras que foram expulsas das universidades, assumindo logo em seguida
uma posição em Bryn Mawr, Pensilvania, nos Estados Unidos, local onde morreu, em 1935,
poucos dias depois de ter se submetido a uma cirurgia.86 Naquela conjuntura o governo
alemão havia sancionado uma lei para a demissão de todos os professores associados
(Privatdozent) e assistentes judeus, excluindo apenas aqueles que já exerciam a profissão
antes de 1914 e os que serviram como soldados na I Guerra Mundial. Além desses
profissionais, a lei também previa a demissão de todos os funcionários que, em qualquer
época, não tiveram um comprometimento pleno com o Estado Nacional Socialista. 87
Em suma, será que esses elementos presentes na personalidade de Emmy Noether – ou
seja, o fato de ser mulher, em um primeiro momento, e de ser, em um segundo momento,
principalmente judia após a ascensão do regime nazista e ainda ter mantido o seu
posicionamento político – não teriam influenciado na sua carreira profissional, mesmo tendo
sido considerada uma matemática de extremo talento? Se esses elementos não tiveram
significado na sua trajetória profissional, por que não conseguiu dar continuidade às suas
pesquisas na Alemanha? Por quais motivos então foi perseguida e hostilizada, tendo inclusive
de deixar o seu País para viver em condições adversas nos Estados Unidos, sem a
possibilidade de ter um acesso direto aos seus pares na Alemanha? Tratar desses elementos,
além da própria produção da matemática, auxilia quer seja numa compreensão mais
globalizada do ambiente cultural vivenciados pelos cientistas, em particular pelos
matemáticos, quer seja em uma melhor percepção de como e por que determinadas parcerias
ou grupos altamente especializados são formados ou ainda no sentido de saber o porquê de
determinadas escolhas feitas por matemáticos durante o exercício da sua atividade terem sido
cruciais no reconhecimento ou não de suas teorias perante uma comunidade de matemáticos.
Assim, historiadores da matemática como Umberto Bottazzini e Craig Fraser, ou como Gert
Schubring atualmente entendem que o desafio essencial do historiador da matemática é
compreender a produção matemática em seus mais diversos aspectos, fazendo uso das mais
diversas abordagens teóricas e dos mais variados recursos metodológicos88; um estilo que

86
MCLARTY, Colin. Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic
Party, p. 445.
87
MACLANE, Saunders. Mathematics at Göttingen under the Nazis, p. 1136.
88
BOTTAZZINI, Umberto; FRASER, Craig. Editorial: At the turn of the millennium: New Challenges for the
History of Mathematics and for Historia Mathematica; SCHUBRING, Gert. Production mathématique,
45

diverge de uma historiografia da matemática que coloca a produção matemática como um


conhecimento que secularmente se desenvolve por si só, à margem das influências sociais.
Parece-nos, diante do desfecho da situação de Emmy Noether, que ainda podemos
fazer uma leitura de que van der Waerden tenha feito a opção em permanecer na Alemanha
durante a II Guerra Mundial por não ter dimensionando com muita clareza o crescente quadro
de horror que estava se configurando pelo regime nazista e que ele provavelmente, assim
como todos os alemães, sofreria algum tipo de privação caso a Alemanha fosse derrotada,
como de fato oficialmente se confirmou em 02 de setembro de 1945, após seis anos de
conflito. Algo que de certa forma converge com o pensamento de Saunders Mac Lane quando
afirmou que: “As pessoas eu sabia que estavam preocupadas com esses assuntos e
frequentemente tinham liberais ou simpatizantes inclinados à esquerda, mas eu não lembro de
alguém que tenha previsto o futuro corretamente.”89. Assim, parece- nos plausível esta visão
de Saunders Mac Lane, ainda que fosse possível perceber que alguma coisa estava para
acontecer diante dos últimos anos que antecederam o início da II Guerra Mundial. Isto
porque, segundo Pavel Aleksandrov, sobre a atmosfera não só de Göttingen, mas de toda a
Alemanha, no ano de 1932, havia um estado de alerta “[...] havia um sentimento de que algo
estranho e mal estava acontecendo. Multidões de Juventude de Hitler já estavam percorrendo
as ruas com suas canções. Ficou claro que um golpe estava vindo [...]”90.
Entre 1943 a 1945, o ambiente na Alemanha estava um caos, bombardeios estratégicos
tornavam-se mais intensos, como o que aconteceu em Leipzig, em 04 de dezembro de 1943,
uma das cidades importantes na fabricação de aviões. A vida definitivamente se tornou
indiscriminadamente mais difícil para todos e van der Waerden e família já sofriam os efeitos
disso. Os matemáticos e as suas atividades não estavam à margem daquele contexto, imunes e
alheios aos acontecimentos. Eles também sucumbiram. Nesse período, por certo tempo, van
der Waerden não pôde se dedicar às suas atividades matemáticas ou qualquer outra coisa além
de se preocupar com a sua própria sobrevivência e a de sua família. Em consequência ao
bombardeio em Leipzig, van der Waerden e família se refugiaram, por uma noite, em
Dresden, partindo, em seguida, para a pequena cidade de Bischofswerda, onde permaneceram
por cerca de um ano. Em 1944 retornaram a Leipzig, que ainda estava sob fortes ataques

enseignement et communication. Educação Matemática Pesquisa.


89
“The people I knew were concerned by these issues and often had liberal or left leaning sympathies, but I
recall no one who correctly foresaw the future.”. MACLANE, Saunders. Mathematics at Göttingen under the
Nazis, p. 1135.
90
“[…] there was a feeling that something strange and evil was going on. Crowds of Hitler Youth were already
going around the streets with their songs. It was clear that a coup was coming […]”. Apud MCLARTY, Colin.
Poor taste as bright character trait: Emmy Noether and the Independent Social Democratic Party, p. 443.
46

aéreos e, em 1945, encontravam-se em Tauplitz, na Áustria, cidade em que residia a mãe de


sua esposa Camilla van der Waerden.
Em Tauplitz, passando dificuldades em obter inclusive alimentação, sentido-se
deslocado e sob a indicação americana de que todos deveriam retornar ao seu país de
nascimento, van der Waerden, chefe da família, voltou para a Holanda em julho de 1945. No
trajeto feito de ônibus, talvez percorrido com pensamentos acerca de seu futuro incerto, van
der Waerden e sua família chegaram a Holanda, sem absolutamente nada, nenhuma promessa
de emprego em alguma instituição de ensino holandês ou em qualquer outro lugar, apenas
tendo a casa de seu pai, já falecido, para viver. Seguindo o seu martírio pessoal e
principalmente profissional, conseqüência de sua opção em permanecer na Alemanha durante
o período do regime nazista, van der Waerden claramente percebia que a sua crescente e
prestigiosa carreira profissional de matemático estava imbricada na sua personalidade
enquanto ser social e que, portanto, ela não foi imune às escolhas que fez ao longo de sua
vida.
Nesse cenário de desalento, van de Waerden não chegou à ruína total devido à
interferência do seu fiel amigo alemão, de origem judia, Hans Freudenthal (1905-1990), que,
em um primeiro momento, buscou para ele uma posição na Universidade de Utrecht, local em
que ele próprio trabalhava. Tal tentativa só não se efetivou devido à rejeição da rainha que
alegou o fato de van der Waerden ter permanecido na Alemanha durante todo o período
vigente do nazismo. Mas, em mais um gesto de solidariedade à situação de van der Waerden,
Hans Freudenthal buscou e conseguiu para ele uma posição na Shell para trabalhar na área da
matemática aplicada. Van der Waerden ainda trabalhou, durante o ano de 1947, como
professor substituto na Universidade de Johns Hopkins em Baltimore nos Estados Unidos e,
no período de 1948 a 1951, voltou para a Holanda, para lecionar na Universidade de
Amsterdam, graças aos esforços dessa Universidade para levá-lo e por sua autonomia diante
do poder da rainha. Depois, ainda no ano de 1951, aceitou o convite e foi para Zurique
assumir a posição de professor de matemática e de diretor do Instituto de Matemática da
Universidade de Zurique. Nesta Universidade ficou até a sua aposentadoria no ano de 1973
após ter recusado, em 1953, o convite de lecionar em München e com isto retornar a
Alemanha.91

91
Veja: DOLD-SAMPLONIUS, Yvonne. Interview with Bartel Leendert van der Waerden; FREI, Günther,
TOP, Jaap, WALLING, Lynne. A short biography of B. L. van der Waerden.
47

Assim, van der Waerden conseguiu retomar a sua carreira, dando continuidade ao seu
trabalho matemático, que começou a ser reconhecido após a publicação do seu livro Moderne
Algebra, em 1930, marcando, como já foi dito anteriormente, uma nova forma de conceber a
álgebra, construída a partir de uma concepção estruturalista.
De acordo com Leo Corry, a concepção estruturalista presente no livro de van der
Waerden tinha como princípio básico o fato de que certa família de noções, tais como, grupos,
anéis, ideais e corpos, tratava-se de exemplos individuais de uma mesma ideia que estava
subjacente, ou seja, da ideia de uma estrutura algébrica. Em outras palavras, van der Waerden
conseguiu construir uma abordagem metodológica única e convincente para estudar todas e
cada uma dessas noções, as quais eram vistas, até então, como sendo apenas vagamente
relacionadas. Assim, dentro da sua conceitualização hierárquica, implicada de sua abordagem
estruturalista, van der Waerden, entre outras redefinições, deixou de dar prioridade aos
números racionais e reais no tratamento de conceitos, tal como o de polinômios. Em vez disso
passaram a ser considerados casos particulares das construções algébricas abstratas. Tais
conceitos, centrais na álgebra clássica, na abordagem de van der Waerden, passaram a ser
considerados “[...] como produtos finais de uma série de sucessivas construções algébricas
[...]”.92 Neste sentido, por exemplo, van der Waerden introduziu o conceito de um corpo de
frações sob um domínio integral geral e, dessa forma, obteve, como um caso particular, os
números racionais, vistos como corpos de frações dos anéis de inteiros. Ainda nesse seu livro,
van der Waerden deixou em segundo plano a clássica tarefa da álgebra de encontrar as raízes
reais e complexas de uma equação algébrica, dedicando, em seu capítulo sobre teoria dos
grupos, apenas três pequenas seções voltadas para essa aplicação específica dessa teoria.93
Em suma, o trabalho de van der Waerden foi importante para a construção do
movimento estruturalista porque ele conseguiu construir uma teoria que hierarquizava
diferentes objetos da álgebra, principalmente por ter mostrado que as teorias algébricas eram
imbricadas por meio de transferências ou de extensões, seguindo uma ordem de subordinação
lógica dos seus conceitos algébricos, que pode ser percebida na seguinte exemplificação: “Um
anel é então um grupo comutativo com uma lei de composição suplementar satisfazendo
certas propriedades: seus axiomas de estrutura são mais ricos, e o conceito de anel se

92
“[…] final products of a series of successive algebraic constructs […]”. CORRY, Leo. From algebra (1895) to
moderne algebra (1930), p.223.
93
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p. 222-223.
48

subordina, portanto, ao do grupo comutativo.”94. Além disso, van der Waerden, ainda segundo
a análise de Frédéric Patras, trabalhou a teoria algébrica fazendo uso da noção de morfismo,
definida como uma aplicação que tinha a faculdade de conservar todas as relações que
estariam no interior de uma dada teoria algébrica. 95
Vale salientar que as noções tratadas no livro de van der Waerden já haviam sido
abordadas em livros que apresentavam uma visão clássica da álgebra. Um desses livros foi a
terceira edição do já mencionado livro de Joseph Alfred Serret, publicado em 1866, no qual
fez uma discussão sobre grupos. Outro foi a obra de Dedekind, de 1871, em que introduziu as
noções de ideais e corpos por meio da sua elaboração da teoria da fatoração, construída a
partir dos números algébricos do matemático alemão Ernst Edward Kummer (1810-1893)96.
Dessa forma, o grande diferencial presente na obra de van der Waerden foi justamente
explicitar uma nova concepção sistematizada para a álgebra, algo inédito até então. Isto
porque, na análise de Leo Corry, houve uma série de formulações anteriores que
implicitamente indicavam os primórdios de uma abordagem estruturalista. Neste sentido, por
exemplo, afirmou que o próprio Heinrich Martin Weber já havia publicado em 1893 um artigo
em que fez uma apresentação da teoria de Galois “verdadeiramente moderna”. Nele a teoria
de Galois não foi colocada apenas como uma ferramenta para o problema da resolução das
equações algébricas, mas também como uma teoria que permitia fazer uma interação entre
grupos específicos e certos corpos bem definidos, expondo um texto que pela primeira vez
trazia a noção de corpo como uma extensão de grupo. Um pouco mais detalhadamente, nas
palavras de Leo Corry: “[...] Weber focou no estabelecimento de um isomorfismo entre o
grupo de permutações das raízes da equação e o grupo de automorfismos do corpo de divisão
que deixa os elementos do corpo de base invariante.”97. Assim, na leitura de Leo Corry,
Heinrich Martin Weber, ao fazer uma interação entre grupos e corpos, estabeleceu as suas
propriedades “estruturais”, embora isto não tenha sido explicitamente explorado por ele nesse
seu artigo e nem mesmo houve indícios dessa discussão em qualquer outro trabalho seu,
inclusive na sua já mencionada obra Lehrbuch der Algebra de 1895.98

94
Un anneau est ainsi un groupe commutatif avec une loi de composition supplémentaire satisfaisant certaines
propriétés: ses axioms de structure sont plus riches, et le concept d’anneau se subordonne donc à celui de groupe
commutatif. PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, p.113.
95
PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, passim.
96
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p. 222-223.
97
“[...] Weber focused on establishing an isomorphism between the group of permutations of the roots of the
equation and the group of automorphismos of the splitting field that leave the elements of the base field
invariant.”. CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p.227.
98
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p. 227.
49

Conforme já foi indicado anteriormente, outro matemático que apresentou trabalhos


com vestígios de uma concepção estruturalista foi Emanuel Lasker. Segundo Leo Corry, tais
trabalhos foram posteriormente reconhecidos como textos que de fato tinham uma forte
identificação com a abordagem moderna estruturalista feita para os estudos algébricos. Foi,
portanto, devido a esse aspecto, que Leo Corry destacou o trabalho de Emanuel Lasker sobre
a fatoração dos ideais de polinômios em um artigo publicado em 1905, elaborado a partir dos
trabalhos de David Hilbert sobre a teoria dos invariantes polinomiais. E, ainda, mais
enfaticamente, o trabalho de Ernst Steinitz (1871-1928), que tratou da teoria abstrata dos
corpos. Para Leo Corry, a originalidade desse artigo não residiu na sua definição puramente
abstrata da teoria dos corpos, algo que, conforme apontado anteriormente, já havia sido feito
por Heinrich Martin Weber, em 1893, mas pelo fato de ter usado pela primeira vez um
conjunto de considerações teóricas que incluía, de forma conveniente, uma aplicação do
axioma da escolha. Toda sua análise foi baseada em uma discussão sistemática dos casos
possíveis acerca dos tipos básicos de corpos, além de fazer um estudo dos tipos de
propriedades que fariam parte desses corpos, válidas para quaisquer extensões ou ainda para
as subentidades desses corpos. Essas discussões fizeram Leo Corry afirmar que “Este é o
primeiro lugar onde encontramos uma análise do tipo que pode ser chamada de "estrutural",
com justificação plena de uma entidade algébrica que é definida em termos puramente
abstratos.”.99 E complementa dizendo que essa concepção, construída por Ernst Steinitz para a
teoria abstrata dos corpos, foi estendida por van der Waerden para toda a álgebra em seu livro
Moderne Algebra.100
Dentro da constituição dessa concepção estruturalista feita por van der Waerden,
ainda contribuíram os trabalhos de Emil Artin, feitos nos últimos anos de 1920, acerca da
teoria de Galois, que a concebeu em um duplo papel: por um lado, como o estudo das
interrelações estabelecidas entre certos corpos com as suas extensões algébricas e, por outro,
fazendo associação dos seus grupos de Galois com os seus subgrupos. A teoria de Galois
assim definida por Emil Artin, segundo Leo Corry, atingiu a sua concepção mais moderna e
definitiva forma, tornando-se “[...] uma das características proeminentes da concepção
estrutural da álgebra como manifestada no livro de van der Waerden [...].”101. A importância
dos trabalhos de Emil Artin, juntamente aos de Emmy Noether foi inclusive reconhecida pelo

99
“This is the first place where we find an analysis of the kind that can be dubbed “structural” with full
justification of an algebraic entity that is defined in purely abstract terms.”. CORRY, Leo. From algebra
(1895) to moderne algebra (1930), p.231.
100
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p. 231.
101
“[…] one of the prominent hallmarks of the structural conception of algebra as manifest in van der Waerden’s
book […]”. CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p. 235.
50

próprio van der Waerden, quando afirmou que “[...] o livro é baseado nas palestras de Artin e
Noether.”102.
Todos esses trabalhos apontados nos mostraram, tal como Leo Corry enfatizou no seu
texto, o quão árduo, sinuoso e lento foi o processo de institucionalização da concepção
estruturalista da álgebra no formato apresentado na obra de van der Waerden, que
[...] desempenhou um papel decisivo em estender essas ideias para toda a
álgebra, assim cristalizando e ajudando a difundir entre um público amplo da
comunidade matemática a nova imagem da disciplina cujo centro estava se
pondo na idéia de uma estrutura algébrica..103
Contudo a publicação do livro de van der Waerden não significou o estabelecimento
de uma cultura de concepção dominante e homogênea na álgebra. Muito pelo contrário, de
fato o livro de van der Waerden teve um convívio paralelo com outras obras, como por
exemplo, as publicações de Karl Emmanuel Robert Fricke (1861-1939), em 1924, a de
Leonard Eugene Dickson (1874-1954) e a de Helmut Hasse, ambas publicadas em 1926 e,
ainda do livro de Otto Haupt (1887-1988), editado em 1929104. Tais obras, embora também
tivessem incluído as novas teorias no âmbito do conhecimento algébrico, preservavam, em
suas abordagens, uma concepção clássica da álgebra e não por isto tiveram uma importância
menor no processo de constituição dessa nova álgebra. Ao seu modo, produziram conceitos,
teoremas e técnicas que foram relevantes nas pesquisas algébricas. Em certa medida, visto que
se trata de apenas um único exemplo, isto pode ser evidenciado no fato de que a obra de
Leonard Eugene Dickson era considerada como tendo o texto mais avançado de álgebra
disponível nos Estados Unidos, até o ano de 1941, quando começou a perder espaço para o
livro A Survey of Modern Algebra, publicado nesse mesmo ano, sob a autoria de Garrett
Birkhoff e Saunders Mac Lane.105
Assim, nesse processo, evidencia-se mais uma vez, em primeiro plano, a concepção
que o próprio matemático tinha acerca do que seria álgebra e esse elemento, na leitura de Leo
Corry, consubstanciado com a dinamicidade da produção desse conhecimento, interferiu
fortemente nas diversas tentativas de sua organização, bem como na geração das dificuldades
em estabelecer uma divisão precisa e uniforme dessa nova álgebra que estava se constituindo.
Esse contexto pode ser constatado, por exemplo, numa análise aprofundada feita por Leo

102
DOLD-SAMPLONIUS, Yvonne. Interview with Bartel Leendert van der Waerden, p. 316.
103
“[...] played a decisive role in extending these ideas to the whole of algebra, thus crystallizing and helping to
spread among a broad audience in the mathematical community the new image of the discipline at the center
of which stood, the idea of an algebraic structure.”. CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra
(1930), p.236-237.
104
Respectivamente intituladas de: Lehrbuch der Algebra; Modern algebraic Theories;Höhere Algebra e
Einführung in die Algebra. CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p.224.
105
CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p. 224-225.
51

Corry acerca dos sistemas classificatórios, prioritariamente presentes no trabalho de liderança


desenvolvido pela revista alemã Jahrbuch über die Fortschritte der Mathematik106, durante o
período da década de 1900 a 1930 e, ainda, comparativamente, ao que ocorria no cenário da
revista americana Transactions of the American Society até a década de 1920, na qual Leo
Corry apontou diferenças bastante significativas da abordagem matemática dessa revista em
relação ao que era apresentado na revista Jahrbuch über die Fortschritte der Mathematik. 107
Tais estudos permitiram que Leo Corry sintetizasse que teorias como as de grupos,
corpos, sistemas hipercomplexos, formam o núcleo central do que hoje chamamos de álgebra
moderna, sendo que as causas mais usualmente apontadas em relatos históricos para essa
evolução da álgebra entre 1860 e 1930, foram:
[...] (1) a penetração de métodos derivados dos trabalhos de Galois no estudo
das equações polinomiais; (2) a gradual introdução e elucidação de conceitos
como os de grupo e de corpo, com a adoção concomitante de definições
matemáticas abstratas (uma tendência associada, entre outros, aos trabalhos
de Richard Dedekind, Heirich Weber, Georg Ferdinand Frobenius, Ernst
Steinitz); ( 3) a melhoria dos métodos para lidar com invariantes de sistemas
de formas polinomiais, avanço da escola algorítmica alemã de Paul Gordan e
Max Noether; (4) a adoção lenta mas consistente dos métodos teóricos dos
conjuntos e da abordagem axiomática moderna implicadas pelos trabalhos
de Georg Cantor e de David Hilbert; ( 5) O estudo sistemático da fatoração
de domínios gerais, conduzido por Emmy Noether, Emil Artin e seus
alunos.. 108
Para além disso, percebemos que nesses processos de construções que envolveram
uma nova concepção e organização de novas teorias para as diversas áreas da matemática,
neste caso em particular, para a álgebra moderna, ainda que haja alguma predominância de
uma visão em relação a outras, não há como negar a presença dessas diferentes abordagens
dentro do corpo de conhecimento matemático ou ainda o envolvimento dos matemáticos,
implícita ou explicitamente, com questões de cunho social, a exemplo da política. Algo que
certamente diverge de uma história da matemática que privilegia certo fazer matemático,
como se ele fosse único e linear, desprezando aspectos que fazem parte desse fazer, tais como

106
Esta revista foi criada por Carl Ohrtmann e Felix Müller em 1866, ambos, professores do Gymnasium de
Berlim em 1866. CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930), p. 225.
107
Mais detalhes, veja: CORRY, Leo. From algebra (1895) to moderne algebra (1930).
108
“(1) the penetration of methods derived from Galois’s works into the study of polynomial equations; (2) the
gradual introduction and elucidations of concepts like group and field, with the concomitant adoption of
abstract mathematical definitions (a trend associated with the works of Richard Dedekind, Heinrich Weber,
Georg Ferdinand Frobenius, Ernst Steinitz and others); (3) the improvement of methods for dealing with
invariants of systems of polynomial forms, advanced by the German algorithmic school of Paul Gordan and
Max Noether; (4) the slow but consistent adoption of set-theoretical methods and of the modern axiomatic
approach implied by the works of Georg Cantor and of David Hilbert; (5) the systematic study of factorization
in general domains, conducted by Emmy Noether, Emil Artin and their students.”. CORRY, Leo. Modern
algebra and the rise of mathematical structures, p. 2.
52

as diferentes formas de conceber o conhecimento matemático ou ainda o contexto social em


que os matemáticos estavam imersos.

2.1 Métodos: crises, rupturas e novas concepções

A falta de rigor na matemática é, para os matemáticos, uma catástrofe. A busca do


raciocínio e de um modelo que explicita todas as argumentações por meio de demonstrações,
chegando a resultados irrefutáveis significa, dentro do universo matemático, raciocinar
logicamente de forma consistente e coesa. Desde outros tempos, como uma forma de garantir
o status da matemática enquanto conhecimento científico, esse processo parece o que melhor
resume as intenções dos matemáticos quando buscam fundamentar uma teoria matemática.
Mas isto não é uma tarefa fácil.
De fato, até boa parte do séc. XIX, a Geometria de Euclides era tida como absoluta,
um exemplo de verdade universal, imutável. Contudo, ponderações feitas acerca do 5º
Postulado de Euclides – ou seja, se ele era um postulado ou um teorema, por não se apresentar
tão auto-evidente quando comparado com os outros quatro postulados – levaram não só à
prova da confirmação da sua independência em relação aos outros quatro postulados, mas
também à produção de um novo corpo de geometria, as geometrias não-euclidianas,
divulgadas nos trabalhos independentes de Nicolai Ivanovitch Lobachevsky (1792-1856) e do
já mencionado Riemann. Tais resultados, acrescidos do desenvolvimento da análise,
ultrapassando a intuição geométrica, proporcionaram a perda da certeza hegemônica da
geometria euclidiana, na qual se pensava repousar a matemática. Para além disso, houve o
reconhecimento de que as propriedades geométricas não dependiam da intuição espacial ou
física dos entes geométricos em si, mas eram consequências lógicas dos axiomas adotados.109
Ainda, problemas relacionados ao infinito juntamente à descoberta de paradoxos ou
antinomias nas formulações “ingênuas” da teoria dos conjuntos proposta por Georg Ferdinand
Ludwig Philipp Cantor (1845-1918) estabeleceram mais um grande ponto de inflexão na
forma de conceber o conhecimento matemático. Dessa forma, desencadeou-se, a partir da
segunda metade do séc. XIX e início do séc. XX, um movimento de rupturas e construções de
novas concepções para fundamentar a matemática. Neste sentido, para efeito de uma luta pela
busca de uma hegemonia pela fundamentação e do fazer matemática, ganha espaço no

109
BALANZAT, Manuel. Prologo. In: Historia de las Ideas Modernas en Matemática, p. v-vi; DIAS, André L.
Mattedi. Uma crítica aos fundamentos do ensino autoritário e reprodutivo da matemática, p.67.
53

processo de construção das suas teorias a corrente filosófica do Formalismo110 inaugurada por
David Hilbert (1861-1943), em detrimento de outras como o Intuicionismo e o Logicismo,
sob o discurso de que os matemáticos teriam toda liberdade para estabelecer uma verdade ou
falsidade no corpo de suas teorias apenas por meio de uma linguagem lógica formal, sem
quaisquer preocupações com o conteúdo. Em outras palavras, constituir uma teoria na
matemática era fazer um processo de legitimação absoluta, não contraditório de toda
matemática, por meio de uma axiomática que não tem significado – conteúdo – ou seja, a sua
validade é independente do mundo empírico ou mesmo do mundo platônico. Resumidamente,
os formalistas defendiam a tese de reduzir a matemática à linguagem simbólica construída por
meio de regras que não se referiam a nada, livre da subjetividade da linguagem natural, na
qual o seu significado está diretamente atrelado ao uso que se faz em determinadas situações
do contexto da realidade. Dentro dessa perspectiva, o método axiomático de David Hilbert
consiste em escolher certo número de noções e de proposições primitivas – aceitas, a priori,
como verdade – para que seja construída, a partir delas, uma teoria na qual só podem ser
inseridas outras ideias ou mesmo outras proposições somente, respectivamente, através de
definições e demonstrações. Este procedimento originou o que Newton Carneiro Affonso da
Costa chamou de axiomática material da teoria construída. Em seguida diz que, quando se
abdica dos significados intuitivos dos conceitos primitivos, colocando-os como implícitos nas
proposições primitivas, podem-se procurar as consequências do sistema obtido – a axiomática
– desvinculadas da natureza ou mesmo do significado dos termos primitivos ou das relações
que estes têm entre si; formulando, desta maneira, uma axiomática abstrata111.
Observemos que o fazer matemático do formalismo, guardadas as devidas proporções
acerca dos objetivos que motivaram a criação dessa corrente filosófica, entrelaça-se com os
resultados que foram alcançados a partir da consistência das geometrias não-euclidianas. Isto
porque começou a sobressair a ideia de que a consistência das teorias da matemática só seria
possível, de fato, em decorrência da dedução lógica-axiomática, da sua análise mais profunda,
totalmente desvinculadas de toda referência intuitiva ao espaço físico. Dessa forma, o
formalismo mesmo com os limites lógicos estabelecidos pelo Teorema da Incompletude de
Kurt Gödel (1906-1978), pareceu profundamente refletir o fascínio dos matemáticos pelo
ideal de organização axiomática, de forma que possibilitasse a economia de pensamento na
construção de novas teorias rigorosamente provadas.

110
COSTA, Newton C.A. da. Introdução aos fundamentos da matemática, p. 49-63.
111
Apud LIMA, Eliene Barbosa et al. A institucionalização da matemática moderna nos currículos escolares ou
a hegemonia da cultura matemática cientifica nas escolas. JORNADAS LATINOAMERICANAS DE
ESTUDIOS SOCIALES DE LA CIENCIA Y TECNOLOGIA, p.7.
54

Começa-se então um crescente exercício de acentuar o caráter formal da matemática,


levado a níveis extremos de abstração e um alto grau de generalização, que segundo Frédéric
Patras, privilegiava as soluções globais e negligenciava as particularidades de toda ordem, tal
como foi feita pelo Grupo Bourbaki, influenciado pelas ideias de David Hilbert e mais
fortemente pela escrita estrutural de van der Waerden. A associação dessas duas tradições deu
origem ao estruturalismo dos bourbakistas, mas sem as preocupações filosóficas que estavam
inseridas, por exemplo, no próprio Formalismo de David Hilbert ou ainda no Intuicionismo de
Luitzen Egbertus Jan Brouwer (1881-1966). Inclusive com as suas aplicações em outras
ciências, como por exemplo, a física. Noutras palavras, houve, conforme Frédéric Patras, por
parte dos bourbakistas, uma escolha de não se deter com as questões filosóficas pendentes em
torno da fundamentação da matemática, bem como com a sua inserção em outras áreas de
conhecimento, interessando-se apenas com o campo das verdades matemáticas, isoladas no
domínio das formas puras, que para eles eram estabelecidas por meio do seu modelo
estruturalista. Tal escolha metodológica, na leitura feita por Frédéric Patras, pode ser
observada, por exemplo, em uma crítica que os bourbakistas, representados por Claude
Chevalley (1906-1984) e André Weil fizeram contra o Intuicionismo e os problemas
filosóficos de que se ocupou Hermann Weyl, fazendo uso da Fenomenologia, mas que, no
nosso entender, poderia ser expandida para toda abordagem matemática que tivesse em sua
análise um cunho filosófico na tentativa de sua fundamentação. Na sua crítica, os bourbakistas
Claude Chevalley e André Weil argumentaram, na interpretação feita por Fredéric Patras, que
os matemáticos sérios não deveriam se preocupar com questões filosóficas, de maneira que
interferissem na escrita da matemática.112 Essa forma de pensar de dois representantes
bourbakistas pode ainda ser complementada na seguinte passagem da sua obra coletiva:
Há uma conexão fechada entre o fenômeno experimental e as estruturas da
matemática que parece confirmar de forma bastante inesperada as recentes
descobertas de físicos contemporâneos. Todavia, nós não compreendemos
suas razões subjacentes para esse fato [...] e talvez nós nunca vamos entender
[...].
[...] a matemática é como uma reserva de formas abstratas – as estruturas da
matemática; e acontece – sem qualquer razão aparente – que certos aspectos
da realidade empírica moldam-se nessas formas, como se fosse através de
um tipo de pré-adaptação..113

112
PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, passim.
113
That there is an intimate connection between experimental phenomena and mathematical structures, seems to
be fully confirmed in the most unexpected manner by the recent discoveries of contemporary physics. But we
are completely ignorant as to the underlying reasons for this fact […] we shall perhaps always remain ignorant
of them.[…]. […] mathematics appears thus as a storehouse of abstract forms – the mathematical structures;
and it so happens – without our knowing why – that certain aspects of empirical reality fit themselves into
55

Por ironia, apesar de ainda hoje se reconhecer o caráter técnico irrepreensível do


trabalho do Grupo Bourbaki, é justamente em torno dos postulados metodológicos assumidos
e defendidos não só pelo Grupo, mas de uma maneira geral por uma comunidade de
matemáticos, que residem as atuais críticas em relação ao seu modelo axiomático. De fato,
segundo Frédéric Patras, recentemente, de forma mais enfática, não faltam relatos, inclusive o
dele, que criticam a organização estável empregada na matemática pelos Bourbaki, na qual
seguiam uma linha enciclopedista, por meio de um modelo axiomático radical que isolava a
produção matemática de qualquer contexto sócio-cultural114. Na sua ótica, o estilo empregado
pelos bourbakistas, que se cristalizou como modelo na produção da matemática, era ‘seco’,
‘pesado’, que gerava uma leitura ‘indigesta’, de difícil compreensão, fruto da sua organização
muito rígida, mecânica e sem significação, tornando-se uma área de conhecimento de seleção
escolar, que a nosso ver não se restringe apenas ao âmbito escolar, mas em todos os seus
níveis. Isto porque, para Frédéric Patras, os matemáticos escolheram fazer o seu trabalho, de
forma aprisionada, sem olhar para além da moldura do modelo estruturalista empregada pelo
Grupo Bourbaki. Sintetizou o autor:

Eles acreditavam ser possível seguir um programa axiomático radical,


livrando as matemáticas de qualquer tensão externa. É precisamente sobre
esse ponto que fracassou Bourbaki. Embora seus trabalhos sejam
tecnicamente irrepreensíveis, os postulados metodológicos que lhes são
subjacentes, em primeiro lugar de tudo a idéia de que há uma «arquitetura»
intrínseca e relativamente fixada do corpo matemático, foi em grande parte
inconveniente para o desenvolvimento das matemáticas desde os anos de
1950.. 115
Dessa forma, contrariamente ao que empregava o modelo estruturalista dos
bourbakistas, Frédéric Patras argumentou que a prática recente da matemática exige uma
revisão regular da sua organização interna, defendendo inclusive o retorno do seu vínculo
com a realidade na medida em que coloca que a decisão epistemológica assumida pelos
Bourbaki em não associar a matemática com a realidade é recusada pela história. Seguindo
essa linha de raciocínio, Frédéric Patras considera que a filosofia da matemática deve
reassumir a sua posição que tinha outrora na própria constituição da produção matemática.
Neste sentido, afirmou:

these forms, as if through a kind of preadaptation. BOURBAKI, Nicholas. The architecture of mathematics, p.
221-232.
114
PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, p. 6-7.
115
Ils avaient cru possible de suivre un programme axiomatique radical, dégageant les mathématiques de toute
astreinte extérieure. C’est précisément sur ce point qu’a achoppé Bourbaki. Alors que ses travaux sont
techniquement irréprochables, les postulats méthodologiques qui les sous-tendent, en tout premier lieu l’idée
qu’il existerait une «architecture» intrinsèque et relativement figée du corpus mathématique, ont été pour une
bonne part mis en défaut par le développement des mathématiques depuis les années 1950. PATRAS,
Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, p.7.
56

[...] a redescoberta da realidade parece ser peculiar à filosofia matemática


contemporânea e um de seus caminhos de desenvolvimento mais
promissores. Não sem reservas, nós terminamos por seguir René Thom em
sua análise dos relatos da criação matemática para a fenomenologia do
mundo vivido ou em sua remissão na ordem do dia da filosofia
aristotélica..116
Por fim, sentenciou: “[...] É necessário então que venham reaprender os procedimentos de
descrição da criação científica em termos de consciência do mundo, da intencionalidade ou,
simplesmente, das intuições espaciais ou orgânicas.”.117
Existe, portanto, uma teorização crítica acerca do fazer matemático da escola
bourbakista, de como o excesso de abstração teve um efeito desastroso na produção
significativa do conhecimento matemático, particularmente em torno da sua relação com a
aprendizagem que não raramente se tornou injustificável aos olhos dos alunos. Parece que foi
dentro dessa lógica que Frédéric Patras buscou resgatar o papel central da realidade e da
filosofia da matemática no processo de produção das atividades matemáticas. O grande
problema dessa e de outras teorizações que são feitas é a falta de um modelo matemático com
uma rede de estratégias de divulgação tão bem articulada tal como foi realizada pelo Grupo
Bourbaki. Talvez seja por isso que ainda hoje percebemos na organização vigente do
conhecimento matemático em todos os seus níveis de ensino, apesar de todas as críticas, a
presença da epistemologia estruturalista construída pelo Grupo Bourbaki a partir do final da
década de 1930. Epistemologia essa que influenciou várias gerações de matemáticos, das mais
diversas localidades, ao buscar ser hegemônica em todos os níveis de inserção do
conhecimento matemático, alcançando o seu auge no período de 1950 a 1970.

2.1.1 Década de 1930: epistemologia estruturalista bourbakista

O Grupo Bourbaki foi formado em torno de um personagem fictício denominado


Nicholas Bourbaki. A reunião plenária ou o primeiro Congresso Bourbaki para a fundação
desse Grupo ocorreu na Université Blaise Pascal na cidade francesa de Besse-en-Chandesse,
em julho de 1935.

116
la redécouverte du réel semble être le propre de la philosophie mathématique contemporaine et l’une de ses
voies de développement les plus prometteuses. Non sans réserves, nous conclurons en suivant René Thom
dans son analyse des rapports de la création mathématique à la phénoménologie du monde vécu on dans sa
remise à l’ordre du jour de la philosophie aristotélicienne. PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique
contemporaine, p. 7.
117
[...] Il faut que l'époque qui vient réapprenne les procédures de description de la création scientifique en
termes de conscience du monde, d'intentionnalité ou, tout simplesment, d'intuitions spatiales ou organiques.
PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, p.7.
57

Seus membros fundadores118 foram os jovens franceses Henri Paul Cartan (1904 -
2008), Jean Frédéric Auguste Delsarte (1903-1968), Claude Chevalley, André Weil e Jean
Dieudonné, todos ex-alunos da Escola Normal Superior de Paris e que permaneceram
membros do Bourbaki até o fim, ou seja, até a idade limite de 50 anos, que foi fixada por eles
mesmos.119 A sua origem deveu-se à preocupação desses matemáticos em formar uma nova
comunidade científica francesa, que, durante a I Guerra Mundial (1914-1918), foi dilacerada,
havendo, portanto, nas suas concepções, a necessidade urgente de um novo recomeço,
principalmente no exercício das atividades matemáticas vigente até então na França.120
Dentro desse contexto, o Grupo Bourbaki começou articular o seu modelo matemático
a partir da sua insatisfação com a obra clássica de análise matemática moderna de Edouard
Goursat (1858-1936), que era muito utilizada pelas instituições francesas de nível superior
desde o início do séc. XX, mas que, para os jovens integrantes do grupo Bourbaki já estava
envelhecida e já não atendia às construções teóricas mais recentes da matemática, como as
que tiveram oportunidade de conhecer quando foram para Alemanha no final da década de
vinte do séc. XX121. Dessa forma, esse Grupo pretendia inicialmente fazer um novo tratado de
análise que, além de contemplar os seus estudos quando estiveram na Alemanha, incluiria
“[...] o ponto de vista do pai de um entre eles, Élie Cartan (1869-1951), sobre as formas
diferenciais exteriores e estabelecer a fórmula geral de Stokes correspondente.”122. Com essas
novas inserções, o Grupo Bourbaki pretendia que o seu tratado servisse tanto aos estudantes
como também aos matemáticos, físicos e engenheiros. Contudo, o seu projeto mudou

118
Historiadores da matemática, como Leo Corry e Liliane Beaulieu, apontam mais outros nomes como
membros fundadores do Grupo Bourbaki, os quais também estiveram presente no primeiro Congresso
Bourbaki realizado em 1935. Eles são: Lucien Alexandre René de Possel (1905-1974); Szolem Mandelbrojt
(1899-1983); Jean Coulomb (1904-1999) - substituindo Paul Dubreil (1904-1994), que participou apenas de
uma única reunião das realizadas em 1934-1935 e; Charles Ehresmann (1905-1979) no lugar de Jean Leray
(1906-1998), que se fez presente em duas reuniões. Todos franceses e que haviam estudado na École Normale
Supérieure de Paris, a exceção foi Szolem Mandelbrojt, que era polonês e obteve o grau de doutor na
Universidade parisiense de Sorbonne em 1923. BEAULIEU, Liliane. Bourbaki à Nancy, p.36; CORRY, Leo.
Writing the ultimate mathematical textbook: Nicolas Bourbaki’s Éléments de mathematique, p. 4-5; ______.
Nicolas Bourbaki: theory of structures. In: Modern algebra and the rise of mathematical structures, p. 292.
119
Esses são os cincos matemáticos que foram colocados por André Weil e Armand Borel como os fundadores
do Bourbaki. O primeiro justificou que eles foram os únicos que exerceram as suas atividades no Bourbaki até
a idade limite de 50 anos. O último, afirmou que tais matemáticos foram os que efetivamente dedicaram mais
tempo e desempenho intelectual até a sua aposentadoria do Grupo. Como André Weil (um dos fundadores) e
Armand Borel foram bourbakistas, optamos por essa versão apresentada por eles. WEIL, André. Souvenirs
d’apprentissage, p.105; BOREL, Armand. Twenty-five years with Nicolas Bourbaki, 1949-1973, p. 374.
120
JACKSON, Allyn. Interview with Henri Cartan, p.785.
121
Veja : BELHOSTE, Bruno. Pour une réévaluation du role de l’enseignement dans l’histoire des
mathématique, p.22 ; HOUZEL, Christian. Le rôle de Bourbaki dans les mathématiques du vingtième siècle,
p.53; WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 97-127.
122
[...] le point de vue du père de l’ un d’entre eux, Élie Cartan (1869-1951), sur les formes différentielles
extérieures et établir la formule générale de Stokes correspondante. HOUZEL, Christian. Le rôle de Bourbaki
dans les mathématiques du vingtième siècle, p.53.
58

completamente de natureza, tornando-se, segundo Christian Houzel, “[...] uma exposição


sistemática e unificada das partes fundamentais das matemáticas segundo o método
axiomático inspirado de Hilbert.”123.
Para Gert Schubring, “O projeto desenvolveu-se de uma maneira que serviu não
apenas para constituir livros didáticos para a França mas para modernizar a matemática com
uma influência global na pesquisa e mesmo no ensino em todos os seus níveis.”124. Tal
empreendimento se tornou padrão para o exercício das atividades matemáticas, quer seja no
nível superior, quer seja no nível básico, alcançando o seu auge no período de 1950 a 1960.
Contribuiu fortemente na difusão e apropriação desse padrão de exercício matemático a rede
de estratégias estabelecidas pelo Grupo Bourbaki, nas quais estavam inclusas publicações,
realização de seminários, aulas ministradas e participação em eventos, não só para influenciar,
mas também para adquirir novos adeptos à sua axiomática estruturalista com o firme
propósito de instituir e vulgarizar um novo padrão de exercício matemático. De fato, sob o
pseudônimo de Nicholas Bourbaki, os matemáticos desse Grupo começaram a redigir e a
editar a sua obra chamada Éléments de Mathématique e a organizar os Séminaire Bourbaki125,
que também existem na sua versão publicada126. Neste sentido, contribuiu ainda o fato de que
os integrantes desse Grupo circularam, ministraram aulas e proferiram palestras nos mais
diversos contextos, inclusive o brasileiro, o que aumentou consideravelmente o seu raio de
influência e a sua capacidade em obter novos adeptos para o seu projeto.
No entanto, para colocar em prática esse novo padrão de exercício matemático, o
Grupo Bourbaki estabeleceu a sua epistemologia estruturalista. Com efeito, de raízes alemãs a
estrutura matemática construída pelo Grupo Bourbaki, como já foi dito anteriormente, foi
influenciada pela axiomática de David Hilbert e mais fortemente pelas ideias estruturalistas
do matemático holandês van der Waerden estabelecida para a álgebra, em 1930. Em linhas
gerais, os elementos utilizados por van der Waerden na construção da sua Moderne Algebra
serviram de inspiração para o modelo axiomático estruturalista do Grupo Bourbaki, na medida
em que o Grupo tornou o rigor axiomático estabelecido por van der Waerden para a álgebra
como sendo norma de toda escrita matemática.127

123
[...] une exposition systématique et unifiée des parties fondamentales des mathématiques selon la méthode
axiomatique inspirée de Hilbert. HOUZEL, Christian. Le rôle de Bourbaki dans les mathématiques du
vingtième siècle, p. 54.
124
SCHUBRING, Gert. Análise histórica de livros de matemática: notas de aula, p. 161.
125
Esses seminários ainda hoje são realizados e publicados, assim como a edição da obra Éléments de
Mathématique pela Association des collaborateurs de Nicolas Bourbaki. Veja : <http://www.bourbaki.ens.fr/>.
126
Veja : http://www.bourbaki.ens.fr/; HOUZEL, Christian. Le rôle de Bourbaki dans les mathématiques du
vingtième siècle, p.53.
127
PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, passim.
59

Há, todavia, outro aspecto que foi importante no processo de construção desse modelo
feito pelo Grupo Bourbaki, o qual também contribuiu para que ele fosse institucionalizado
entre os seus pares. Houve todo um discurso de convencimento com argumentações que
pareciam, no mínimo, muito bem fundamentadas para inserir as suas ideias estruturalistas.
Neste sentido, o Grupo Bourbaki discorreu sobre uma tríade de concepções – raciocínio
dedutivo, formalismo lógico e método axiomático – que já faziam parte do universo da
matemática, com o objetivo de evidenciar o papel essencial que a sua ideia de estrutura teria
para o estabelecimento da unidade do conhecimento matemático, algo que já era muito
ambicionado desde o período pitagórico. Dentro dessa ótica, Bourbaki argumentou que era
um “truísmo sem sentido” assumir que o raciocínio dedutivo fosse um princípio unificador
para a matemática. Fazer isto era não levar em consideração a complexidade existente nas
diferentes teorias da matemática, uma vez que para ele o método de raciocínio por meio das
“cadeias de silogismos” não seria mais que uma “transformação mecânica” aplicável a
quaisquer premissas, mas que não diziam nada acerca da sua natureza. Assim, complementou
afirmando que o raciocínio dedutivo “[...] é a forma externa que os matemáticos dão ao
pensamento”128, ou seja, correspondia a um veículo, a uma linguagem de que os matemáticos
faziam uso para se comunicarem e se tornarem acessíveis aos outros. Por sua vez argumentou
que o trabalho de estabelecer as regras dessa linguagem, bem como a criação do seu
vocabulário e da clarificação da sua sintaxe constituía um aspecto, pouco interessante, do
método axiomático, o qual foi chamado de formalismo lógico. Isto porque o formalismo
lógico, na visão de Bourbaki, não tinha a propriedade de fornecer o que ele chamou de “uma
profunda inteligibilidade da matemática”, exatamente o que o método axiomático definia
como o seu principal objetivo a ser alcançado129. Para os bourbakistas, seria por meio da
intervenção de matemáticos geniais que o método axiomático nos ensinaria “[...] a buscar as
razões profundas para tal descoberta, encontrar as ideias comuns dessas teorias, que estão
escondidas sob o aparato de detalhes pertencentes a cada uma das teorias consideradas,
isolando essas ideias e colocando-as visíveis.”130.
Houve, portanto, uma preocupação, por parte do Grupo Bourbaki, em explicitar
cuidadosamente as funções do raciocínio dedutivo e do formalismo lógico dentro da produção
do conhecimento matemático, buscando colocar em primeiro plano o status do método

128
[...] is the external form which the mathematician gives to his thought […]. BOURBAKI, Nicholas. The
architecture of mathematics, p.223.
129
BOURBAKI, Nicholas. The architecture of mathematics, p. 223.
130
[...] the deep-lying reasons for such a discovery, to find the common ideas of these theories, buried under the
accumulation of details properly to each of them, to bring these ideas forward and to put them in their proper
light. BOURBAKI, Nicholas. The architecture of mathematics, p. 223.
60

axiomático no processo de construção das teorias da matemática, que iria além dessas
funções. Na sua concepção, o método axiomático proporcionaria “[...] o estudo sistemático
das relações existentes entre as diferentes teorias da matemática [...]”131, o qual seria o aspecto
central da evolução interna da ciência matemática, uma vez que acreditavam que tal evolução
“[...] tem, apesar da aparência, trazido uma união mais estreita entre as diferentes partes da
matemática, criando algo como um núcleo central que é mais coerente do que nunca.”132.
Nesse contexto instaurado acerca do método axiomático, o Grupo Bourbaki, de modo
sofisticado, construiu toda uma argumentação para que a comunidade de matemáticos se
convencesse da importância do método axiomático na construção de suas teorias. Na etapa
seguinte, parece que não foi complexo instituir, na falta de outro modelo bem edificado, que o
seu modelo estruturalista seria a forma para obter as relações existentes entre as várias teorias
da matemática, mais precisamente, o mecanismo capaz de finalmente estabelecer de forma
rigorosa a unidade da matemática. É, portanto, devido a essas características do estruturalismo
que se passou afirmar, tal como foi feito por Newton da Costa, que o Grupo Bourbaki
considerava que axiomatizar uma dada teoria seria equivalente a definir uma estrutura
matemática133. Seu objetivo era construir o “esqueleto”, a base, a essência em que
repousariam as diferentes teorias da matemática. Em uma síntese muito bem construída por
Décio Krause, esse método de Bourbaki era estabelecido pelas seguintes etapas:
(i) no âmbito de teorias matemáticas amadurecidas, dissociar, em suas
demonstrações, aquilo que constitui a origem (ressort) dos principais
raciocínios utilizados; (ii) tomar separadamente estes elementos e formulá-
los em princípios abstratos, deduzindo-se-lhes, então, todas as consequências
lógicas; e (iii) retornar as teorias e analisar as relações que são obtidas
quando os elementos anteriormente dissociados voltam a ser combinados. 134.
Assim, Bourbaki considerava que a separação das propriedades dos entes matemáticos
possibilitaria o emprego de um termo que seria definido de forma mais precisa e também
possibilitaria classificar essas propriedades segundo as estruturas a que pertenceriam – sendo
que uma mesma estrutura poderia servir aos propósitos dos mais diversos entes matemáticos.
Era essa capacidade facultada ao método axiomático dos bourbakistas, ou seja, de colocar
variados conteúdos sob noções primárias de uma dada teoria, que o fazia, na sua concepção,
uma importante fonte de enriquecimento da intuição dos matemáticos, não no sentido da

131
[...] the systematic study of the relations existing between different mathematical theories [...]. BOURBAKI,
Nicholas. The architecture of mathematics, p.222.
132
[...] has, in spite of appearance, brought about a closer unity among its different parts, so as to create
something like a central nucleus that is more coherent than it has ever been. BOURBAKI, Nicholas. The
architecture of mathematics, p.222.
133
COSTA, Newton C. A. da. O conceito de Estrutura em Ciência, p. 10.
134
KRAUSE, Décio. O conceito bourbakista de estrutura, p.81-82.
61

natureza espacial ou sensível, como algumas vezes se pensava, mas voltada para obter o
conhecimento sobre o comportamento dos entes matemáticos, os quais, por si mesmos,
passaram a ser considerados, nessa “arquitetura” do Grupo Bourbaki, como pouco
importantes, diante das relações que poderiam ser feitas a partir deles135. Dessa forma, no
entendimento do Grupo Bourbaki, “[...] o método axiomático permite, quando se refere a
entes matemáticos complexos, separar desses entes as suas propriedades e as agrupam em
torno de um pequeno número de noções [...]”136.
Assim, grosso modo, tem-se uma estrutura quando se define uma ou várias relações
sobre os elementos de um ou mais conjuntos definidos.137 Mas não apenas para este caso, há
de se considerar também as relações que podem ser obtidas entre as partes do conjunto
considerado e ainda entre os elementos cujos conjuntos possuem grau mais elevado dentro do
que Bourbaki chamou de “terminologia da ‘hierarquia de tipos’”.138
A formação dessa concepção de estruturas da matemática levou os bourbakistas a
considerarem que elas eram, de fato, os únicos objetos da matemática. Nelas existiam as que
eram fundamentais, as do tipo mais geral com um pequeno número de axiomas, que iriam
servir de base para obter outras estruturas, as quais foram chamadas de “estruturas mães”,
formadas pelas estruturas algébricas, estruturas de ordem e pelas estruturas topológicas.
Somava-se nessa sua argumentação o fato de que, na produção dessa “arquitetura”, houve o
estabelecimento das estruturas plurivalentes – modelos não isomorfos, uma vez que
envolve duas ou mais das estruturas mães – algo que não existia nas primeiras
axiomatizações do século XIX, que só trabalhavam com teorias univalentes, isto é, teorias que
eram totalmente determinadas pelo sistema global de seus axiomas, não sendo possível aplicá-
las em qualquer outra teoria que não fosse aquela da qual tinham sido extraídas, a exemplo da
axiomática da aritmética de Dedekind e Giuseppe Peano (1858-1932), ou ainda a da
geometria euclidiana de David Hilbert139. Assim, Bourbaki sintetizou: “o estudo de teorias
multivalentes é a mais admirável característica na distinção entre a matemática moderna e
matemática clássica”140. Isto porque a sua estrutura poderia fornecer uma notável economia de
pensamento, na medida em que se poderiam construir as teorias matemáticas, desvinculadas

135
Veja: BOURBAKI, Nicholas. Introduction. In: Théorie des ensembles; BOURBAKI, Nicholas. Introduction.
In: Algèbre. .
136
[...] la méthode axiomatique permet, lorsqu’on a affaire à des êtres mathématiques complexes, d’en dissocier
les proprietétés et de les regrouper autour d’un petit nombre de notios [...]. BOURBAKI, Nicholas.
Introduction. In: Théorie des ensembles, p. 3.
137
Ver apêndice: As relações em uma estrutura matemática.
138
BOURBAKI, Nicholas. The architecture of mathematics, p. 225-226.
139
BOURBAKI, Nicholas. The architecture of mathematics, p.230.
140
Apud KRAUSE, Décio. O conceito bourbakista de estrutura, p. 98.
62

de quaisquer conteúdos do mundo real, as quais recebiam um tratamento puramente sintático,


uma vez que o Grupo Bourbaki considerava as estruturas um texto, mas sem preocupação
com a semântica. Em suma, um texto matemático formal seria um texto que fosse expresso
apenas sobre um número pequeno de palavras invariáveis sobre uma sintaxe constituída por
um número pequeno de regras invioláveis. Assim, do ponto de vista das estruturas, na
concepção dos bourbakistas, a matemática parecia ser um “armazém de formas abstratas”141.
Em suma, os elementos abordados sobre a axiomática do Grupo Bourbaki fizeram
com que fosse possível percebermos que, nessa sua “arquitetura”, a matemática era vista, tal
como na axiomática de David Hilbert, como uma construção abstrata. Mas, para além da
axiomática de David Hilbert e das ideias estruturalistas de van der Waerden para a álgebra, o
Grupo Bourbaki propôs uma axiomática estabelecida pelas relações que seriam determinadas
em um dado conjunto, as quais poderiam ser incorporadas em quaisquer outras teorias e não
necessariamente naquela em que foi originada. Observemos que essas relações seriam
estabelecidas pela linguagem da teoria dos conjuntos, vista como uma teoria base que
possibilitaria unir logicamente as várias teorias da matemática. Além disso, o Grupo Bourbaki
preocupou-se com os argumentos que partiam sempre do geral para o particular, feitos por
meio de um quadro lógico constituído por definições, axiomas e teoremas. Para isto, houve
uma defesa explícita do caráter abstrato da álgebra, na medida em que considerava muito mais
simples a noção comum subjacente às operações algébricas usuais, retirada de qualquer
natureza específica. Assim, fazendo uso das leis de composição, Bourbaki subordinou a
aritmética (ou teoria dos números) clássica – o estudo dos números inteiros naturais – à
álgebra. Isto porque entendia o conjunto dos números inteiros naturais compostos pelas leis de
composição da adição e da multiplicação142. Reforça-se, nesse sentido, o papel que a álgebra
começou a ter dentro do conhecimento matemático, a partir do séc. XIX, tornando-se
imprescindível no estudo das relações matemáticas.
Contudo, o status adquirido pela álgebra, a partir do séc. XIX, dentro da matemática,
não foi fácil de ser institucionalizado. Não foi a priori intencional e muito menos homogêneo
ou ainda não conflitante, mesmo dentro de uma comunidade de matemáticos de uma única
região. Muito pelo contrário, houve uma rede complexa de disputas, querelas, brigas,
polêmicas, controvérsias e sobressaltos. Mais detalhadamente, além da perda da certeza da
verdade absoluta da geometria euclidiana, também contribuíram a favor para o crescente

141
Veja: BOURBAKI, Nicholas. The architecture of mathematics; KRAUSE, Décio. O conceito bourbakista de
estrutura.
142
BOURBAKI, Nicholas. Introduction. In: Algèbre, p.xi-xiii.
63

predomínio do método algébrico na matemática outros resultados que nela estavam sendo
obtidos, provocando embaraços para serem legitimados pelo método geométrico, tais como os
números negativos e os infinitamente pequenos. Mais do que isto, estes resultados tornaram-
se centrais para uma profunda mudança de concepção dos entes matemáticos, que passaram a
ser pensados totalmente desvinculados do mundo real.
Os números negativos, depois de uma longa e intensa querela, que durou mais de 1500
anos, passaram a ser entendidos e ainda que não hegemonicamente, conforme pesquisas de
Gert Schubring143, como uma construção puramente algébrica, tal como foi assumido por
Wilhelm August Förstemann (1791-1836) e solidificada posteriormente por Hermann Hankel
(1839-1873) em 1867. Nessa nova concepção, era possível realizar operações como a
multiplicação, sem quaisquer restrições ainda que fosse com os números negativos, na medida
em que eles passaram a ser concebidos apenas como construções, sem uso de qualquer outro
recurso da experiência sensorial, enfim, apenas convenções apropriadas. Por sua vez, isto não
significava o abandono das operações eficazes até então existentes na aritmética, mas uma
ampliação do seu campo de validade, uma vez que passaram a ser compreendidas como
operações abstratas e, portanto, executáveis independentemente da concepção de número
adotada, ou seja, se de entes abstratos, ou se de quantidades, ou ainda de grandeza. Ainda, os
números negativos como construção puramente algébrica tornava-se um elemento essencial
para a obtenção da generalização na matemática, uma ideia bastante sedutora, pois
proporcionava uma aplicação irrestrita, por exemplo, da definição de equação, algo que foi
muito controverso entre os matemáticos ou seus praticantes do séc. XVIII, a exemplo de Jean
Le Rond d’Alembert (1717-1783).
No entanto, num movimento ao contrário, essa nova concepção limitou a abrangência
das quantidades e grandezas geométricas a determinados contextos, perdendo o seu caráter de
fundamental na álgebra. Na nossa leitura, isto deixava explícito que não se tratava de uma
simples mudança do método geométrico para o algébrico. Institucionalizar essa concepção de
número negativo tornou inevitável não apenas o reconhecimento da independência da álgebra
em relação à geometria, mas também o caráter relativo das verdades das teorias da
matemática, que a partir desse momento passaram a ser construídas sob um sistema
puramente abstrato.

143
Maiores detalhes, veja: SCHUBRING, Gert. Rupturas no estatuto matemático dos números
negativos;______. Conflicts between generalization, rigor, and intuition: number concepts underlying the
development of analysis in 17-19th century France and Germany; ______. Um outro caso de obstáculo
epistemológico: o princípio de permanência.
64

Um embate análogo aconteceu em relação às quantidades infinitamente pequenas, que


estavam sendo utilizadas no cálculo com fragilidades lógicas. Isto porque tais quantidades
pareciam também não poder serem compatibilizadas com o método geométrico plenamente
vigente até o séc. XIX. Algo que acabou também favorecendo a defesa da algebrização da
matemática.144
Atualmente, nos mais variados livros de cálculo, é praxe iniciar com a definição de
limite baseada no conceito de função, de número real e de continuidade, fazendo uso das
notações de épsilon () e de delta () em substituição às expressões um pouco vagas como
‘suficientemente próximo’, tornando a definição de limite, com essa abordagem, efetivamente
rigorosa. Grosso modo, emprega-se que o limite de uma função f(x) é igual a um valor real L
quando o valor de x se aproxima por ambos os lados de um dado valor de a, em que f(x) não
precisa necessariamente ser definido em a. Entende-se que, à medida que x se aproxima cada
vez mais de a tanto pela direita quanto pela esquerda, x irá se colocar em um intervalo aberto
arbitrário (x0, x1). Assim, o valor de f(x) ficará obrigatoriamente delimitado em um intervalo
definido como (L-, L + ), no qual  é um número positivo real qualquer, que pode ser quão
pequeno quanto se queira. Ainda, para que o intervalo (x0, x1) possua a mesma distância de a,
define-se um número real positivo  pertencente a esse intervalo e que fosse menor do que x1
– a e a – x0.145 Essa concepção de limite começou vigorar na matemática com o início do
advento da aritmetização da análise, tradicionalmente atribuído ao trabalho de Cauchy
intitulado Cours d’analyse, publicado em 1821. Em tal obra Cauchy apresentou uma
definição de limite predominantemente aritmética, com pretensões de independência em
relação às intuições geométricas, e uma definição para os números reais que pretendia
alcançar um novo padrão de rigor, que somente foi alcançado, no caso dos números, com os
cortes de Dedekind e, no caso dos limites, com Weierstrass, que introduziu a definição e
notação dos epslons e deltas aceita contemporaneamente. Dessa forma, do cálculo baseado na
noção de infinitesimal, como em Leibniz e Newton, formou-se a análise moderna clássica146,

144
Maiores detalhes, veja: LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites...
145
ANTON, Howard. Cálculo: um novo horizonte,v.1, p.138-141.
146
Atualmente, a análise é a parte da matemática que estuda as funções utilizando os métodos dos limites, sejam
definidas no conjunto dos números reais ou dos complexos – análise clássica – ou em espaços de objetos
quaisquer onde estejam definidos “vizinhança” - espaços topológicos – ou distância – espaços métricos. Por
exemplo, a análise funcional estuda espaços de funções, como os de Banach ou de Hilbert. NIKOL'SKII, S.
M. Mathematical analysis. LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática
de Omar Catunda.... Nota, p. 227.
65

com o deslocamento do centro da matemática do âmbito da geometria e dos métodos


sintéticos para o âmbito da aritmética, da álgebra e dos métodos analíticos.147
Analogamente ao que aconteceu com a estruturação da álgebra moderna e com os
números negativos, a institucionalização dessas mudanças ocorreu paulatinamente nos
diversos contextos, tendo também como um dos indicadores mais significativos a sua
incorporação nos livros didáticos utilizados nos cursos superiores, a exemplo do Cours
d’analyse mathematique (1902) de Edouard Goursat, do Course of modern analysis (1902) de
E.T. Whittaker (1873-1956), das Lezioni di analisi (1933) de Francesco Severi, e do Cálculo
diferencial e integral148 (1927) de Richard Courant (1888-1972).149
Portanto, nesse cenário brevemente delineado ao longo dessa nossa discussão, o
método geométrico sofreu um duro golpe, principalmente devido aos resultados rigorosos
alcançados na análise; a quebra da hegemonia da geometria euclidiana; a concepção de
números negativos e números reais; e a nova estruturação da álgebra com as suas novas
teorias, direcionando o conhecimento matemático para um processo de algebrização, o qual
alcançou um alto grau de generalização por meio dos trabalhos da escola bourbakista,
notadamente, dos integrantes do Grupo Bourbaki, a partir do final de 1930.
Mesmo não sendo hegemônica, nas mais diversas comunidades de matemática
existentes nos mais variados contextos, essa algebrização passou a predominar na construção
das teorias da matemática, sob um forte discurso acerca da falta de rigor do método
geométrico. Assim, se no séc. XIX a busca de uma fundamentação do cálculo esteve presente
no centro das discussões dos matemáticos, na primeira metade do séc. XX, no período de
1920 a 1950, as atenções se voltaram para a geometria algébrica. Trabalhada pela matemática
italiana justamente dentro do método geométrico, a geometria algébrica parecia ter alcançado
o seu limite de expansão de pesquisa diante dos resultados que estavam sendo alcançados por
meio da fundamentação dos seus conceitos apoiados principalmente na álgebra moderna
desenvolvida por Emmy Noether. A partir deste momento, a geometria algébrica – que
segundo Norbert Schappacher, pode ser definida ad hoc como sendo o tratamento dado aos
objetos e problemas geométricos sob a ótica dos métodos algébricos150 – tomou rumos que

147
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda..., p.
212. Mais detalhes
148
Original em alemão: COURANT, Richard. Vorlesungen über differential- und integralrechnung. Berlin:
Julius Springer, 1930-1931 [c1927].
149
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda..., p.
212.
150
De acordo com essa definição, Norbert Schappacher diz que existe uma relação de dependência entre o que
seja geometria algébrica em uma determinada época da história com os tipos de objetos geométricos e
problemas aceitos nesse período e, em especial, com o status contemporâneo da álgebra. Assim, por exemplo,
66

foram atrelados, principalmente, aos nomes de André Weil e, especialmente, ao de Oscar


Zariski, deixando, em segundo plano, as contribuições feitas pelos matemáticos italianos,
como Guido Castelnuovo (1865-1952), Federigo Enriques (1871-1946) e Francesco Severi.
Essa discussão faz parte do nosso próximo tópico. Para além da tão propagada falta de rigor
do método geométrico italiano, argumentamos que a perda do protagonismo da escola
italiana, em especial da sua tradição na geometria algébrica, envolveu questões políticas,
religiosas e de poder.

3 A GEOMETRIA ALGÉBRICA

Perto do Lago Maggiori, na Itália, local escolhido para tratar de uma pleurisia
contraída em 1862, morreu, apenas quatro anos depois, Bernhard Riemann, figura que é
normalmente referenciada no processo de constituição da geometria algébrica.
Nascido em Breselenz, Alemanha, Riemann tem uma imagem geralmente associada a
um homem de notável habilidade matemática. Pouco se diz sobre o seu envolvimento em
eventos revolucionários ocorridos no ano de 1848, durante a sua passagem em Berlim, que o
levou a tomar a decisão de retornar, em 1849, a Göttingen, temendo uma punição que seria
feita pela repressão reacionária. Ou ainda muito pouco além do fato de que era tímido, de
saúde debilitada, religioso, próximo de sua família, mas um tanto quanto desajeitado quando
151
se encontrava fora desse universo familiar. A ênfase, por assim dizer, é dada às suas
brilhantes teorizações, feitas por alguém que parecia ter pouca vivacidade na sua vida
cotidiana, isto é, uma figura retraída, que vivia à margem dos acontecimentos da sua
sociedade. Nada muito incomum no ambiente de um estilo de historiografia da matemática
que não considera relevante para o processo de produção do conhecimento matemático a
identidade do matemático enquanto indivíduo e ser social, construída pelo seu
compartilhamento com a sociedade de que faz parte. Talvez tenha sido por isto que não
encontremos muitas informações de Riemann que tenham ido muito além das suas atividades

no início do séc. XVII, mencionar geometria algébrica, basicamente, significava aplicar a nova álgebra
vigente nos problemas construídos geometricamente, principalmente aqueles provenientes da antiguidade. Em
suma, para Norbert Schappacher, essa ‘geometria algébrica’ correspondia ao que que ficou conhecido como a
arte analítica, dentre outros, de René Descartes e FrançoisViète (1540-1603). Por outro, para ele, o que
chamamos modernamente de geometria algébrica foi originado de um processo gradual de dissociação da
análise, após os resultados revolucionários de Riemann na geometria, já no séc. XIX, abrindo a possibilidade
de inserção de novos objetos, que permitiram construir diversos tipos de variedades, tais como, topológicas,
diferenciáveis, algébricas e analíticas. SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van der
Waerden’s work…, p.245.
151
GRAY, Jeremy. Complex Curves. In: Worlds out of nothing: A course in the history of geometry in the 19th
century, p. 187-188.
67

matemáticas, assim, são esses elementos que farão parte da nossa breve discussão acerca de
Riemann.
Em 1851, Riemann, na sua tese de doutoramento152, introduziu curvas complexas nos
estudos que eram até então produzidos por matemáticos na abordagem das funções elípticas.
Em particular, considerou que uma curva algébrica com equações f(s,z) = 0, sendo s e z
variáveis complexas, que tem grau n e m, respectivamente, em s e z, poderia ser pensada
como uma curva que percorre n-vezes o plano complexo, gerando um objeto que ficou
conhecido como a superfície de Riemann da função f ( assim por diante tratada por nós). Para
Jeremy Gray, as superfícies de Riemann “[...] são um bom exemplo da filosofia das
magnitudes e quantidades no trabalho de Riemann.”. Ainda complementa afirmando que
Riemann acreditava que “[...] não havia necessidade de uma interpretação real de pontos
complexos em uma curva.”153, algo que, conforme já abordamos, convergia com algumas
outras orientações que foram sendo constituídas na matemática ao longo do séc. XIX, como,
por exemplo, a concepção de números dissociada da realidade sensorial. Assim, sob esse
ponto de vista, pela primeira vez, determinava-se que uma curva poderia ter pontos
complexos sobre ela, enfim, que uma curva pudesse ser constituída por pontos complexos.154
Dando continuidade aos estudos da sua tese de doutorado, Riemann, em 1857,
publicou no prestigioso Journal für die reine und angewandte Mathematik155, que ficou mais
conhecido como Jornal de Crelle, um artigo sobre funções abelianas156, superando tudo que
Weierstrass tinha produzido sobre o assunto até esse momento. Em seu artigo – resultado de
vários anos de trabalho, incluso em um curso que ministrou em 1855-1856 para apenas três
pessoas, entre elas Dedekind – Riemann desenvolveu ainda mais as suas ideias sobre a
superfície de Riemann, bem como as suas propriedades topológicas. Para isto, analisou
funções com múltiplos valores como tendo um único valor sobre uma superfície de Riemann
e deu uma solução geral para o problema da inversão que Niels Henrik Abel (1802-1829) e
Carl Gustav Jacob Jacobi (1804-1851) haviam resolvido para as integrais elípticas. Para

152
Intitulada Grundlagen für eine allgemeine Theorie der Funktionen einer veränderlichen komplexen Größe.
153
GRAY, Jeremy. Worlds out of nothing: A course in the history of geometry in the 19th century, p. 185.
154
GRAY, Jeremy. Worlds out of nothing: A course in the history of geometry in the 19th century, p. 185.
155
Tal Jornal, fundado por August Leopold Crelle (1780-1855) em 1826, é o periódico mais antigo de
matemática ainda publicado. RODRIGUES, José Francisco. Portuguese mathematical journals: some aspects
of (almost) periodical research publications, p. 1; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. August
Leopold Crelle. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
156
Em linhas gerais, uma função abeliana ou hiper-elíptica corresponde a uma generalização de uma função
elíptica, que tem duas variáveis com quatro períodos. Ainda pode ser considerada como a função inversa de
certas integrais, denominadas de integrais abelianas ou hiper-elíptica, que têm a forma , sendo R um
polinômio de grau maior que 4. Cf.<http://www-groups.dcs.st-
and.ac.uk/~history/Glossary/abelian_function.html>.
68

estabelecer esses resultados, Riemann utilizou, tal como tinha ocorrido em sua tese, o
princípio de variação, aprendido com Johann Peter Gustav Lejeune Dirichlet (1805-1859)
durante o período que esteve em Berlim, levando-o, posteriormente, a designá-lo de Princípio
de Dirichlet157. O uso de tal Princípio gerou uma das mais contundentes críticas feitas por
Weierstrass, já nos primeiros anos de 1870, contra o método geométrico de Riemann, ao
apresentar um exemplo de uma função que era limitada inferiormente, mas que não assumia o
seu ínfimo, ou seja, uma função que o Princípio não conseguia garantir. 158
Desde a divulgação dos trabalhos de Riemann, nos anos de 1850, Weierstrass não
cessou mais as suas críticas em relação aos resultados alcançados por Riemann, sem obter
deste réplicas. O teor das críticas de Weierstrass sempre girou em torno da falta de rigor que
ele considerava presente nas provas de Riemann, justamente porque eram feitas por meio do
método geométrico. Além disso, Weierstrass, ainda demonstrava certa desconfiança em
relação às superfícies de Riemann, colocadas por ele como “geometria fantasiosa” de
Riemann159. No entanto, subjacente às suas críticas, parece que Weierstrass buscava ter o
reconhecimento de que ele deu importantes contribuições no processo de desenvolvimento
dos estudos sobre as funções analíticas, em particular, das funções abelianas e elípticas, as
quais começaram a exercer sobre ele uma forte atração desde os tempos de estudante na
Universidade de Bonn, a partir de 1834. Fazendo um curso voltado para seguir a carreira de
administrador na Prússia, planejada pelo seu pai, Weierstrass fez estudos autodidatas, dentre
outros, de um trabalho de Jacobi sobre as funções elípticas. Contudo, só teve uma
compreensão dos mecanismos necessários para lidar com ela por meio das leituras das aulas
transcritas de Christoph Gudermann (1798-1852). Iniciando, dessa forma, o seu fascínio pelo
estudo da teoria das funções analíticas160.
Contrariando o desejo de seu pai, Weierstrass tomou a decisão de abandonar o curso e
seguir uma carreira de professor de matemática. Para isto, mas visando, principalmente, obter
os estudos necessários sobre as funções elípticas, Weierstrass, matriculou-se, em 1839, na

157
Esse Princípio corresponde a um método criado por Dirichlet para resolver um problema na teoria das
equações diferenciais parciais, hoje em dia, conhecido como o problema de Dirichlet para a equação de
Laplace. Tal método, segundo Djairo Guedes de Figueiredo, “Talvez se trate de um dos primeiros exemplos de
transformação de um problema de Equações Diferenciais Parciais em uma questão do Cálculo das Variações.”.
FIGUEIREDO, Djairo Guedes. O Princípio de Dirichlet, p. 65; ______. Métodos variacionais em equações
diferenciais, p. 22.
158
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”..., p. p.926-932; FIGUEIREDO, Djairo
Guedes de. O Princípio de Dirichlet, p. 63-84; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Georg
Friedrich Bernhard Riemann. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
159
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”..., passim.
160
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Karl Theodor Wilhelm Weierstrass. Karl Theodor
Wilhelm Weierstrass. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
69

Academia de Münster. Durante um semestre assistiu às aulas de Gudermann sobre funções


elípticas, que eram realizadas dentro do curso de Teologia e Filosofia. Foi nessas
circunstâncias que as funções elípticas se tornaram, segundo Umberto Bottazini, o objeto de
estudo do primeiro artigo de Weierstrass, escrito em 1840, para obter o seu venia docendi. O
ponto de partida de Weierstrass, na leitura de Umberto Bottazini, “[...] foi afirmar que a
função elíptica de Abel que é a inversa da função integral de primeiro tipo [...] pode ser
expressa como a razão de duas séries de potências convergentes [...], cujos coeficientes são
funções inteiras do módulo da integral.”161. Nos dois anos seguintes Weierstrass ainda
produziu outros artigos que tal como o seu primeiro ensaio não foram publicados.
Sumariamente, em 1841, segundo Umberto Bottazini, sem qualquer conhecimento de
resultados relacionados a Cauchy, antecipou o francês Pierre Alphonse Laurent (1813-1854),
ao estabelecer a série de Laurent de uma função em um anel circular. Isto porque, neste
mesmo artigo, Weierstrass provou o teorema da integral de Cauchy para anéis circulares. Já
em outro trabalho, provou três teoremas sobre séries de potências. Em dois deles deu
estimativas – ou seja, produziu o que ficou conhecido como as desigualdades de Cauchy –
para coeficientes de uma série de Laurent de uma ou ainda de várias variáveis complexas. No
outro teorema, tratou do que hoje é chamada de séries duplas. Da prova desses resultados,
Weierstrass conseguiu obter o teorema da diferenciação uniforme de séries convergentes. E,
em 1842, escreveu um artigo no qual colocou que um sistema de n equações diferenciais
poderia ser resolvido por meio de um sistema de n séries de potências que são incondicional e
uniformemente convergentes, que satisfaz as condições iniciais para t=0. Provou ainda que as
séries de potências convergentes em um disco de centro t=0 poderiam ser analiticamente
continuadas fora desse disco.162
Dessa forma, no seu texto, Umberto Bottazini afirma que, ainda nos primeiros anos de
1840, Weierstrass já tinha estabelecido os resultados essenciais para a teoria das funções
analíticas, porém nunca os publicou, permanecendo em manuscritos, apenas sumarizou os
principais resultados que tinha obtido no ano de 1840 em uma parte conclusiva de seu artigo
de 1856, publicado no Jornal de Crelle. Colocado como uma primeira parte, tal escrito foi
uma versão expandida e detalhada de seu artigo de 1854, também exposto nesse Jornal.
Neste, Weierstrass fez uma breve abordagem do seu trabalho sobre funções abelianas, já

161
“[…] was Abel’s claim that the elliptic function which is the inverse of the elliptic integral of first kind […]
could be expressed as the ratio of two convergent power series […], whose coefficients are entire functions of
the modulus of the integral.”. BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 925.
162
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 925-926; O’CONNOR, Jonh J.;
ROBERTSON, Edmund F.. Karl Theodor Wilhelm Weierstrass. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
70

desenvolvido há vários anos e que havia sido resumido no relatório anual do Gymnasium
Braunsberg de 1848-1849, mas que não foi notado pelos eminentes matemáticos da época.
Contudo, após a apresentação do já mencionado artigo de Riemann, em 1857, com uma
abordagem das funções abelianas completamente nova, que superava a sua produção,
Weierstrass nunca cumpriu a sua promessa de dar continuidade ao artigo de 1856.163 Ainda,
na observação de Umberto Bottazzini, Weierstrass e Riemann, mesmo colocando o mesmo
título – ambos denominados de Teoria das funções abelianas164 – e terem utilizado os mesmos
textos de referências no processo de construção de seus respectivos artigos, compreenderam
funções abelianas de forma diferentes, conforme o próprio Weierstrass reconheceu
posteriormente. Neste sentido, declarou que, apesar do trabalho de Riemann ter sido “[...]
baseado sobre fundamentações completamente diferentes da minha, pode-se imediatamente
reconhecer que seus resultados coincidem completamente com os meus”165. Em linhas gerais,
isto porque:
Enquanto o anterior [Weierstrass] definiu funções abelianas como as funções
analíticas unívocas de várias variáveis complexas relacionadas à sua solução
do problema da inversão de Jacobi, o último [Riemann] compreendeu
funções abelianas como a integral das funções algébricas introduzidas pelo
teorema de Abel..166
O fato é que as ações de Weierstrass ou a falta delas, quer seja por inicialmente não ter
tido a devida oportunidade, quer seja por receio às críticas, levando-o a ter um preciosismo
excessivo, ou ainda porque apenas preferiu não publicar os seus resultados obtidos no período
de 1840-1842, fizeram com que tais resultados, segundo Umberto Bottazzini, não tivessem
167
nenhuma influência no desenvolvimento contemporâneo da matemática. Uma atitude que
se tornou muito comum ao longo da sua carreira profissional, mesmo no auge das suas críticas
ao trabalho de Riemann, foi manter grande parte de seus resultados sem publicar, preferindo a
divulgação deles por meio de palestras, comunicando-os ocasionalmente a Academia de
Berlim. Na síntese de Umberto Bottazzini:
Por uns vinte anos ele elaborou a sua teoria das funções analíticas por meio
de refinamentos e melhorias contínuas, sem tomar a decisão de publicá-las.

163
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 926-927; O’CONNOR, Jonh J.;
ROBERTSON, Edmund F.. Karl Theodor Wilhelm Weierstrass. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
164
Em alemão, Theorie der Abel’schen Funktionen.
165
“[…] based on foundations completely different from mine, one can immediately recognize that his results
coincide completely with mine”. Apud BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric
fantasies”…, p. 928.
166
Whereas the former [Weieerstrass] defined Abelian functions to be the single-valued, analytic functions of
several complex variables related to his solution of the Jacobi inversion problem, the latter [ Riemann]
understood Abelian functions to be the integrals of algebraic functions introduced by Abel’s theorem..
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 928.
167
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 925-926.
71

Weierstrass utilizou para apresentar suas descobertas em suas palestras, e


somente ocasionalmente as comunicava a Academia de Berlim. Essa atitude
combinada com a sua aversão de publicar seus resultados em artigos
impressos e o fato que ele desencorajava seus alunos de publicar as notas de
seus cursos, palestras, eventualmente davam as palestras de Weierstrass uma
aura de singular e de excepcionalidade.. 168
De qualquer sorte, mesmo tomando essa decisão consciente, ela não o impediu de
mostrar desconfortos em relação ao status que Riemann estava alcançando numa teoria que
ele, Weierstrass, já vinha se dedicando por cerca de vinte anos e que ainda até 1854 era “[...]
um desconhecido professor escolar.”169. Tornou-se professor da Universidade de Berlim
somente em 1856, com cerca de 40 anos, idade considerada ainda hoje, pela própria
comunidade matemática, avançada para um matemático exercer, com todos os seus atributos
intelectuais, a atividade de pesquisa na matemática. Esse sentimento de desconforto de
Weierstrass em relação ao trabalho de Riemann pode ser observado na seguinte passagem do
texto de Umberto Bottazzini:
Kronecker acrescentou que no artigo de Riemann sobre funções abelianas as
séries-θ em várias variáveis “vieram do nada”. Weierstrass afirmou que “ele
entendia Riemann, porque ele já possuia os resultados dessa pesquisa [de
Riemann]”. Quanto as superfícies de Riemann, elas eram nada mais do que “
fantasias geométricas”. De acordo com Weierstrass, “discípulos de Riemann
estão cometendo o erro de atribuir tudo ao seu mestre, enquanto muitas
[descobertas] tinham já sido feitas e são devidas a Cauchy, etc.; Riemann
não fez nada mais do que vesti-las da sua forma para sua conveniência”..170
Baseando-nos no já citado pensamento de Bruno Belhoste em relação a não separação
a priori da produção matemática das condições de sua reprodução, Weierstrass pareceu ter
esquecido ou não ter percebido que, além de produzir conhecimento matemático, era
necessário o seu compartilhamento, isto é, a sua socialização entre os seus pares para que
pudesse reivindicar uma posição de reconhecimento equiparável a que Cauchy e o próprio
Riemann haviam alcançados quando publicaram as suas respectivas e já mencionadas
teorizações. Para tanto, não era suficiente proferir palestras, tornava-se prioritária a

168
For some twenty years he worked out his theory of analytic functions through continuous refinements and
improvements, without deciding to publish it himself. Weierstrass used to present his discoveries in his
lectures, and only occasionally communicated them to the Berlin Academy. This attitude, combined with his
dislike of publishing his results in printed papers and the fact that he discouraged his students from publishing
lecture notes of his courses, eventually gave Weierstrass’ lectures an aura of uniqueness and exceptionality..
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 929.
169
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 924.
170
Kronecker added that in Riemann’s paper on Abelian functions the θ-series in several variables “came out of
the blue”. Weierstrass claimed that “he understood Riemann, because he already possessed the results of his
[Riemann’s] research”. As for Riemann surfaces, they were nothing other than “geometric fantasies”.
According to Weierstrass, “Riemann’s disciples are making the mistake of attributing everything to their
master, while many [discoveries] had already been made by and are due to Cauchy, etc.; Riemann did nothing
more than to dress them in his manner for his convenience”.. BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs
“geometric fantasies”…, p. 930.
72

publicação das suas produções em espaços que eram considerados de referência pela
comunidade internacional de matemáticos tal como o Jornal de Crelle, algo que Weierstrass
não fez sistematicamente ao longo de sua vida profissional. Houve resultados que ele jamais
publicou como aqueles do período de 1840-1842.
Este parece ter sido um outro aspecto das críticas de Weierstrass à teorização de
Riemann, não tão evidentes, mas que tiveram, na nossa ótica, um papel importante na
motivação de Weierstrass em continuar trabalhando na teoria das funções analíticas, visando
construir toda base de fundamentação para as funções elípticas e abelianas. Neste sentido,
Weierstrass escolheu tratar as funções analíticas por meio da abordagem das séries de
potências, na medida em que tinha plena “[...] convicção de que as teoria das funções
analíticas tinham de ser fundadas sobre simples ‘verdades algébricas’[...]”171, verdades essas
que só seriam possíveis de serem alcançadas com absoluto rigor por meio de um caminho
sistemático construído sob bases puramente aritméticas, desvinculadas da intuição
geométrica172.
Até o final de sua vida, a realização desse objetivo tornou-se incessante para
Weierstrass que, visando ter êxito nos seus propósitos, mergulhou em um profundo estudo de
seus métodos, seguindo um ritual de trabalho, que fez com que Jules Henri Poincaré (1854-
1912), parafraseado por Umberto Bottazzini, resumisse-o da seguinte forma:
1) Desenvolver a teoria geral das funções, de uma, duas e várias variáveis.
Isso foi “a base sobre a qual toda pirâmide deveria ser construída”. 2)
Melhorar a teoria das funções elípticas e colocá-las em uma forma que
poderia ser facilmente generalizada para sua “extensão natural”, as funções
abelianas. 3) Finalmente, enfrentar as próprias funções abelianas..173
Essa rotina de trabalho, complementa Umberto Bottazini, foi usada por Weierstrass:
Da metade dos anos de 1860 ao final de sua carreira de professor [...] para
apresentar toda análise em um ciclo de palestras de dois anos como a seguir:
1. Intodução a teoria das funções analíticas,
2. Funções Elípticas,
3. Funções Abelianas,
4. Aplicações das funções elípticas ou, alternativamente, do Cálculo das
variações..174

171
[…] conviction that the theory of analytic functions had to be founded on simple “algebraic truths”[…].
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 925.
172
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, passim.
173
1) To develop the general theory of functions, of one, two and several variables. This was “the basis on which
the whole pyramid should be built”. 2) To improve the theory of the elliptic functions and to put them into a
form which could be easily generalized to their “natural extension”, the Abelian functions. 3) Eventually, to
tackle the Abelian functions themselves.. BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric
fantasies”…, p. 929.
174
From the mid-1860s to the end of his teaching career Weierstrass used to present the whole of analysis in a
two-year lecture cycle as follows: 1. Introduction to analytic function theory, 2. Elliptic functions, 3. Abelian
73

Contudo, conforme ainda Umberto Bottazzini, Weierstrass não conseguiu atingir


completamente o seu objetivo, apesar de seus imensos esforços. Por exemplo, não teve êxito
na sua tentativa de fazer com que o seu teorema da representação de uma função unívoca de
uma variável, provado como um quociente de duas séries de potências convergentes, fosse
estendido para funções unívocas de várias variáveis. Isto fez com que Weierstrass, em uma
carta de 16 de dezembro de 1874 à sua ex-aluna a russa Sofia Vasilyevna Kovalevskaya
(1850-1891), admitisse que “Isto é considerado como não provado na minha teoria das
funções abelianas”175. Tal teorema, nas palavras de Umberto Bottazini, “[...] foi relacionado à
seguinte questão: dada uma sequência infinita de constantes {an} com lim |an| = ∞ existe
sempre lá uma função transcendental inteira G(x) que desaparece em {an} e somente lá?”.176
Umberto Botazzini complementou que Weierstrass conseguiu obter uma resposta positiva
para essa questão
[...] expressando G(x) como o produto ∏n≥1 E(x,n) das “funções principais”
E(x, 0) = 1 + x,
...
E(x, n) = (1 + x) exp x + x2 +... + xn .. 177
1 2 n
Contudo, mesmo com algumas adversidades, Weierstrass, com base nos resultados
que já tinha conseguido estabelecer, mantinha plena convicção nos seus argumentos
algébricos para serem os fundamentos da teoria das funções analíticas, como podemos
observar nas próprias palavras de Weierstrass escritas em 1875 para o seu ex-aluno Hermann
Amandus Schwarz (1843-1921):

Quanto mais eu penso sobre os princípios da teoria da função – e eu faço isto


incessantemente – mais eu sou convencido de que essa deve ser construída
sobre a base das verdades algébricas, e que não é consequentemente correto
quando o ‘transcendental’, para me expressar brevemente, é tomado como a
base de proposições algébricas fundamentais e simples. Essa visão parece

functions, 4. Applications of elliptic functions or, alternatively, Calculus of variations.. BOTTAZZINI,


Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 929.
175
This is regarded as unproved in my theory of Abelian functions. Apud BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic
truths” vs “geometric fantasies”…, p. 932.
176
[…] was related to the following question: given an infinite sequence of constants {an} with lim|an| = ∞ does
there always exist an entire, transcendental function G(x) which vanishes at {an} and only there?
BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 931-932.
177
[…] by expressing G(x) as the product ∏n≥1 E(x,n) of ”prime functions”
E(x, 0) = 1 + x,
...
E(x, n) = (1 + x) exp ( x + x2 + xn ).. BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs “geometric
1 2 n
fantasies”…, p. 932.
74

tão atrativa numa primeira vista, que através dela Riemann foi capaz de
descobrir muitas das propriedades importantes das funções algébricas..178
Weierstrass compreendia, nas palavras de Umberto Bottazzini que:
[...] isto não era uma questão de métodos de descobertas. Isto era “apenas
uma questão de fundamentos sistemáticos” [...]. É válido observar que
Weierstrass adicionou que ele tinha sido “especialmente fortalecido” [em sua
crença] pelo seu estudo contínuo da teoria das funções analíticas de várias
variáveis”..179
Esse discurso de Weierstrass, acerca dos métodos geométricos de Riemann, tornou-se
bastante usual, conforme discutimos anteriormente, a partir do sec. XIX, entre os matemáticos
que defendiam a abordagem algébrica como base para as teorias da matemática, buscando
construí-la por meio dos princípios aritméticos. Essas divergências inclusive transcenderam
para a identidade das próprias instituições de que esses matemáticos faziam parte, ainda que
elas fizessem parte de uma mesma localidade. Isto aconteceu entre a Universidade de Berlim
e a Universidade de Göttingen, ambas pertencentes à Alemanha, nas quais trabalhavam,
respectivamente, os personagens centrais dessa nossa discussão, ou seja, Weierstrass e
Riemann. Nesse período, dentro do ambiente da Universidade de Berlim, compartilhado
também, dentre outros, por Leopold Kronecker (1823-1891)180, havia uma preferência pela
aritmetização do conhecimento matemático em detrimento da abordagem geométrica, que
notadamente foi defendida no contexto da Universidade de Göttingen, principalmente por
Felix Klein, a partir do ano da morte de Riemann, isto é, 1886 até 1913, ano de sua
aposentadoria.
Felix Klein, ao longo de toda a sua carreira profissional, sempre teve a sua atenção
voltada para a geometria, a exemplo de seu Programa de Erlangen, que tinha como uma de
suas bases de construção as geometrias não-euclidianas, influenciado principalmente pela
abordagem geométrica de Riemann181. De fato, Felix Klein não negava o seu fascínio por essa
abordagem, inclusive escreveu um livro, intitulado On Riemann’s theory of algebraic

178
The more I think about the principles of function theory - and I do it incessantly - the more I am convinced
that this must be built on the basis of algebraic truths, and that it is consequently not correct when the
‘transcendental’, to express myself briefly, is taken as the basis of simple and fundamental algebraic
propositions. This view seems so attractive at first sight, in that through it Riemann was able to discover so
many of the important properties of algebraic functions. Apud BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths” vs
“geometric fantasies”…, p. 932.
179
[…] it was not a matter of methods of discovery. It was “only a matter of systematic foundations” ([10], vol.
2, 235). It is worth remarking that Weierstrass added he had been “especially strengthened [in his belief] by
his continuing study of the theory of analytic functions of several variable”. BOTTAZZINI, Umberto.
“Algebraic truths” vs “geometric fantasies”…, p. 932.
180
As contribuições de Kronecker dadas, por exemplo, nas teorias das equações e álgebra superior, nas funções
elípticas, nas equações algébricas e na teoria dos números algébricos, ficaram restritas a uma aritmética finita.
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Karl Theodor Wilhelm Weierstrass. Leopold Kronecker.
School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
181
BABINI, José. Historia de las ideas modernas em matemática, passim.
75

functions and their integrals182, publicado em 1893, apresentando a sua versão acerca do
trabalho de Riemann sobre funções algébricas e suas integrais, notadamente fazendo
referência à primeira parte183 do artigo de Riemann sobre a teoria das funções abelianas. Tal
livro foi desenvolvido a partir de suas palestras acerca da teoria das funções discutidas sob um
tratamento geométrico, as quais foram realizadas em duas partes. A primeira aconteceu no
semestre do inverno de 1880-1881 e a outra no semestre do verão de 1881184.
Contudo, mesmo com todo o seu discurso favorável ao método de Riemann, Felix
Klein não pôde deixar de reconhecer que o ataque de Weierstrass ao já mencionado Princípio
de Dirichlet tornou frágeis as teorizações que foram feitas por Riemann utilizando tal
princípio, o qual provocou fortes reações de desconfianças em relação ao rigor dessas
teorizações185. Essas reações foram estendidas, inclusive, a todos aqueles que fizeram uso
delas. Dessa forma, com Felix Klein não foi diferente, tal como podemos observar na seguinte
afirmação de Freudenthal em relação ao referido livro186 de Felix Klein: “É um belo livro, e
seria interessante saber como ele foi recebido. Provavelmente muitos se ofenderam com a sua
falta de rigor: Klein foi muito na imagem de Riemann para ser convincente às pessoas que
não acreditariam nesse último [Riemann].”187.
Dentro desse contexto, cabe-nos fazer algumas considerações. Primeira, apesar de
haver um movimento crescente em torno da algebrização da matemática, consolidado e
desenvolvido ao longo do século XX, esse movimento não foi hegemônico,
concomitantemente a ele ainda prevalecia uma tradição geométrica de conceber e produzir
matemática que exerceu enorme influência no desenvolvimento posterior da matemática, tal

182
No original, em alemão: über Riemanns Theorie der algebräischen Funktioner und ihrer Integrale.
183
Em linhas gerais, nessa primeira parte, Riemann, segundo Umberto Bottazzini, desenvolveu uma teoria geral
das funções abelianas e das integrais sobre uma superfície de qualquer genus p, desde que não dependam das
considerações das séries-θ. Determinou as funções ou integrais abelianas em três classes conforme as suas
singularidades, para com isto, estabelecer as funções meromórficas sobre uma superfície e ainda para
formular, em novos termos, o teorema de Abel. Dessa forma, Riemann conseguiu lançar uma nova perspectiva
sobre a teoria geométrica das transformações birracionais. Veja: BOTTAZZINI, Umberto. “Algebraic truths”
vs “geometric fantasies”…, p. 928.
184
KLEIN, Felix. Preface. In: on Riemann’s theory of algebraic functions and their integrals, p. viii.
185
KLEIN, Felix. Development of mathematics in the 19th century, p.247.
186
Embora no texto de Jonh. J.O’CONNOR e Edmund. F. ROBERTSON, de onde retiramos a referência de
Freudenthal, faça referência a um livro de Felix Klein de 1892, acreditamos que tal livro seja a publicação de
1893, mencionada na nota 182, mediante as informações que constam no seu prefácio. Nela, Felix Klein
afirmou que o livro é fruto das suas palestras feitas no ano anterior, ou seja, as que foram realizadas, conforme
já colocamos, no semestre do inverno de 1880-1881 e no semestre do verão de 1881. Veja: O’CONNOR, Jonh
J.; ROBERTSON, Edmund F.. Georg Friedrich Bernhard Riemann. School of Mathematic and Statistics,
[n.p.]; KLEIN, Felix. Preface. In: on Riemann’s theory of algebraic functions and their integrals.
187
It is a beautiful book, and it would be interesting to know how it was received. Probably many took offence at
its lack of rigour: Klein was too much in Riemann's image to be convincing to people who would not believe
the latter.. Apud O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Georg Friedrich Bernhard Riemann.
School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
76

como aconteceu com os resultados de Riemann. Segunda, as críticas contra o método


geométrico de Riemann não impediram que os seus resultados deixassem de ser utilizados,
ainda que fosse sob tentativas de uma nova fundamentação. Terceira e última, a partir do séc.
XIX, começou haver uma forte batalha intelectual em torno do rigor matemático, gerada pelo
conflito entre o método geométrico e o algébrico, circunscrito por matemáticos e instituições
que faziam ou não parte de uma mesma região geográfica. Houve uma onda crescente de que
o rigor matemático – devido à produção de algumas teorias que já foram aqui abordadas – só
poderia ser obtido por meio do método algébrico, construído apenas sob princípios
aritméticos. Isto foi feito sob um discurso que associava o método geométrico a uma falta de
rigor, provocado por uma pouca preocupação com os detalhes formais das provas. Desejava-
se passar uma imagem, na nossa interpretação, de que o matemático, ao utilizar o método
geométrico, estava simplesmente preocupado em buscar produzir resultados novos, seduzido
apenas pelos seus aspectos intuitivos, objetivando atender a determinadas conveniências das
suas teorizações. Uma visão tão bem articulada que ainda hoje é difundida entre alguns
estudiosos que produzem uma determinada historiografia e sociologia da matemática, como
Fabrizio Catanese.
Em um de seus trabalhos, Fabrizio Catanese se propôs a construir uma argumentação
de que o matemático Abel se mostrava ser um algebrista em um primeiro plano, visto que teve
uma profunda preocupação em fazer provas “claras e satisfatórias” para as suas teorias,
transparecendo que isto não aconteceria se tivesse sido um autêntico geômetra. Nas suas
próprias palavras:
Eu já tomei a posição, com a minha escolha do título dessa seção188: Abel é
por dizer algebrista e eu estou contente por ouvir Christian Houzel ressaltar
na sua contribuição o papel do elevado senso de rigor de Abel. Os artigos de
Abel sobre coeficientes binomiais, sobre a soma de séries e sobre a solução
das equações algébricas testemunham a sua profunda preocupação pela
necessidade de provas claras e satisfatórias..189
Fabrizio Catanese parece ter se apropriado do ponto de vista de Hermann Weyl em
relação a sua afirmação de que existem duas classes de matemáticos: os algebristas – como
Weierstrass – e os geômetras-físicos, a exemplo de Riemann e Felix Klein.190 Nessa
classificação, enquanto os algebristas, para exercerem o seu trabalho foram colocados como
188
Denominou a seção de Abel, the algebraist?
189
I already took position, with my choice of the title of this section: Abel is for mean algebraist and I was glad
to hear Christian Houzel stressing in his contribution the role of Abel’s high sense of rigour. Abel’s articles on
the binomial coefficients,on the summation of series, and on the solution of algebraic equations testify his deep
concern for the need of clear and satisfactory proofs.. CATANESE, Fabrizio. From Abel’s heritage:
transcendental objects in algebraic geometric and their algebrization, p. 4.
190
CATANESE, Fabrizio. From Abel’s heritage: transcendental objects in algebraic geometric and their
algebrization, passim.
77

utilizando: “[...] argumentação lógica, fórmulas e [...] [as] manipulações engenhosas


algorítmicas [...]”, os geômetras-físicos foram caracterizados como sendo aqueles que
buscavam ter mais confiança “na intuição e nas impressões gráficas e visuais [...]”, isto
porque, nessa ótica exposta por Fabrizio Catanese, “Para eles é mais importante encontrar
uma nova verdade do que uma prova nova e elegante.”191.
Em suma, nessa nossa última consideração, não há como negar que houve fortes
embates entre os matemáticos que faziam uso do método geométrico ou do algébrico,
desencadeados pelos resultados que começaram a ser estabelecidos no arcabouço do
conhecimento matemático a partir do séc. XIX. É fato que esses embates aconteceram sob o
discurso do rigor matemático, inclusive fazendo com que determinadas instituições fossem
identificadas, em um determinado período histórico, por um ou por outro método. Não temos
dúvidas de que trabalhar com uma abordagem geométrica ou algébrica requer conceber e
produzir matemática de formas diferentes. Contudo, não nos parece que a escolha de trabalhar
com o método geométrico significava necessariamente optar em não dar a devida importância
ao rigor matemático, mas ter, em princípio, um estilo diferente de formular essas provas em
relação à que era utilizada no método algébrico. Dessa forma, supomos que os embates não
aconteceram apenas devido a esses elementos. Subjacentes a eles havia outros fatores que
estavam em jogo e que não traduzem uma objetividade que o matemático geralmente gosta de
fazer transparecer em seus discursos. Faz parte do universo do cientista, em especial do
matemático, a busca por algum tipo de reconhecimento acerca de suas teorizações, quer seja
de seus pares, quer seja de qualquer comunidade, científica ou não. Assim, estritamente em
relação a essa nossa discussão, tal reconhecimento perpassa por características de
convencimento, demarcação, legitimação e ascensão, nas quais está envolvido o olhar social e
individualizado do matemático acerca do que deve prevalecer dentro de sua área de
conhecimento.
De qualquer sorte, o fato é que as críticas unilaterais de Weierstrass fizeram com que
definitivamente a abordagem geométrica empregada por Riemann fosse amplamente
questionada, desencadeando tentativas de fundamentar as suas ideias pioneiras em uma base
considerada mais sólida do que a geometria, uma vez que tais resultados mostravam-se
profícuos para o desenvolvimento da matemática.

191
“[…] logical argumentation, formulae and their clever manipulation, algorithms […]”. “[…] on intuition, and
graphical and visual impressions […]”. “For them it is more important to find a new truth than an elegant new
proof.”. CATANESE, Fabrizio. From Abel’s heritage: transcendental objects in algebraic geometric and their
algebrization, p. 2-3.
78

Algo que inicialmente não foi possível de ser feito dentro da própria comunidade
alemã de matemáticos. Um dos motivos, conforme Jeremy Gray, foi a natureza complexa do
trabalho de Riemann que fazia com que, de maneira geral, os matemáticos encontrassem
dificuldades em ver e estabelecer uma conexão entre uma dada equação originada de uma
curva complexa com a superfície de Riemann. Outro motivo, também apontado por Jeremy
Gray, foi devido aos poucos alunos que Riemann teve no decorrer de sua carreira profissional,
dificultando a recepção, a apropriação e a divulgação de seu trabalho. Entre eles estavam o já
citado Hermann Hankel e Gustav Roch (1839-1866), os quais morreram, respectivamente,
sete anos depois e no mesmo ano que o próprio Riemann.192
A partir de 1862, a pessoa que mais se dedicou às ideias de Riemann, foi o matemático
alemão Rudolf Friedrich Alfred Clebsch (1833-1872). De fato, Alfred Clebsch utilizou os
resultados de Riemann nos teoremas clássicos da geometria sintética, que se referiam à
intersecção e à tangência de curvas, para mostrar que se poderiam obter, por meio da teoria
das funções, resultados sintéticos de forma mais simples. Já em colaboração com o
matemático alemão Albert Paul Gordan (1837-1912), Alfred Clebsch publicou um trabalho,
em 1866, sobre funções abelianas, no qual colocaram a teoria das curvas algébricas sobre
fundamentos conceituais inéditos quando estabeleceram uma conexão da teoria das funções
com a geometria. Em outros termos, as curvas algébricas foram estudadas por meio dos
métodos analíticos, em contraste ao que vinha sendo feito majoritariamente até a primeira
metade do séc. XIX, em que essas curvas eram abordadas fazendo uso da geometria
projetiva. Posteriormente, em 1874, essa teoria desenvolvida conjuntamente por Alfred
Clebsch e Paul Gordan foi revisada por Alexander Wilhelm von Brill (1842-1935) e Max
Noether que, motivados em dar uma fundamentação sólida a ela, buscaram livrá-la da teoria
das funções para reformulá-la algebricamente, na medida em foi colocada sub judice após o
princípio de Dirichlet, utilizado por Riemann, ter sido questionado. Para eles, era na álgebra
que seria possível garantir o rigor matemático. Contudo, nesse universo de constituição da
geometria algébrica, se, por um lado, havia uma interatividade entre a álgebra, a teoria das
funções e a geometria que nutria a geometria algébrica, por outro, havia ainda toda uma
tradição aritmética que tinha sido estabelecida por Dedekind e Weber, em 1882, a qual era
possível ser ligada à geometria. Desse modo, sob o desejo de colocar a teoria das funções
abelianas de Riemann em base segura, e por recorrência também à teoria de Alfred Clebsch e

192
GRAY, Jeremy. Worlds out of nothing: A course in the history of geometry in the 19th century, p. 185 e 189.
79

Paul Gordan, Dedekind e Weber, fazendo uso dessa tradição, criaram o campo aritmético da
geometria algébrica.193
Assim, a geometria algébrica, conforme pesquisa de Silke Slembek, na segunda metade
do século XIX, desenvolveu-se sob diferentes tradições, a saber, a geometria, a análise
complexa, a teoria dos números e a álgebra, as quais eram trabalhadas praticamente sem
nenhuma conexão até a primeira metade do séc. XIX. Naturalmente, portanto, possuíam
métodos e objetos diferentes de pesquisa, um quadro que começou a ser modificado
justamente na segunda metade do séc. XIX, quando os matemáticos se submeteram a
compreender e utilizar as ideias de Riemann propondo-se a determinar novas relações entre a
álgebra, análise e a geometria. Então, não causa estranheza que essa metade do séc. XIX
tenha vivenciado uma multiplicidade de abordagens no processo de formação da geometria
algébrica. Mais detalhadamente, no período de 1860 a 1895, foram estabelecidas para as
funções algébricas seis abordagens diferentes, cada uma dispondo de seu próprio foco
metodológico. Elas foram: álgebro-geométrica, algébrica, aritmética, forma - álgebro -teórico,
geométrica e função-teórica.194. Na síntese de Silke Slembek:
No início da última década do século XIX, uma multiplicidade de
abordagens na geometria algébrica utilizavam cada uma os seus próprios
métodos para estudar seus próprios objetos. Brill e M. Noether enumeraram
em sua exposição [...] de 1893 nada menos que cinco abordagens diferentes,
algumas das quais ainda são subdivididas. Além disso, o conflito entre os
métodos analíticos e sintéticos desgastados sobre a geometria nasciam na
geometria algébrica. No entanto, as ligações entre os objetos e os métodos
pareciam tão fortes que os matemáticos do final do século XIX, eles
próprios, viram diferentes formas da mesma teoria..195
Embora existissem todas essas abordagens, em mais um exemplo de que o movimento
a favor da algebrização da matemática a partir do séc. XIX não era homogêneo, a geometria
algébrica, conforme Silke Slembek, foi largamente identificada, principalmente entre as
últimas décadas do séc. XIX e os anos de 1920, com a abordagem geométrica dos

193
GRAY, Jeremy. Worlds out of nothing…, p.185; SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de
l’arithmétisation..., p. 11-12.
194
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 11; SLEMBEK, Silke. On the
arithmetization of algebraic geometry. In: GRAY, Jeremy J; PARSHALL, Karen H. (eds). Episodes in the
history of modern algebra (1800-1950), p.286.
195
Au début de la dernière décennie du XIXee siècle, une multitude d’approches dans la géométrie algébrique
utilisaient chacune leurs propres méthodes pour étudier leurs propres objets. Brill et M. Noether énumérèrent
dans leur récit [...] de 1893 pas moins de 5 approches différentes dont quelques unes sont encore subdivisées.
De plus, le conflit entre les méthodes analytiques et synthétiques deteignait sur la géométrie en la géométrie
algébrique naissante. Pourtant, les liens entre les objets et les méthodes semblaient tellement forts que les
mathématiciens de la fin du XIXe siècle y voyaient différentes formes de la même théorie.. SLEMBEK, Silke.
Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.12.
80

matemáticos italianos, notadamente com os trabalhos de Guido Castelnuovo, Federigo


Enriques e Francesco Severi196.
De fato, houve uma forte sintonia que, para Donald Babbitt e Judith Goodstein, deveu-
se ao estilo único de fazer matemática da escola italiana, justamente por conta do seu
acentuado apelo à intuição geométrica, algo que também foi compartilhado por Ciro Ciliberto
e Aldo Brigaglia, apesar de incluir ainda os resultados dessa escola na geometria algébrica.
Contudo, consideramos que essa identificação tenha sido provocada pelos resultados
alcançados pelos trabalhos desses matemáticos, independente do método utilizado, fazendo
com que matemáticos, de diversas localidades, manifestassem interesse em ir à Itália fazer ou
aprimorar os seus estudos matemáticos, em especial, nesse campo de conhecimento da
matemática. Neste sentido, destacam-se o americano Julian Lowell Coolidge (1873-1954), o
cidadão americano, nascido na Rússia, Solomon Lefschetz e o bielorusso Oscar Zariski, que
em momentos diferentes participaram diretamente do desenvolvimento da geometria algébrica
na Itália.197 A inserção desses matemáticos e tantos outros no cenário italiano, na concepção
de Ciro Ciliberto e Aldo Brigaglia, internacionalizou a escola italiana.
Conforme a pesquisa de Silke Slembek, no início do séc. XX, a geometria algébrica
assimilou-se com a geometria das superfícies algébricas de Guido Castelnuovo e Federigo
Enriques, cujos trabalhos, em uma parte, tinham sido fundamentados na teoria das funções
algébricas de uma variável de Alexander von Brill e Max Noether e, de outra, na própria
tradição italiana da geometria em dimensão superior de Giuseppe Veronese (1854-1917) e
Corrado Segre (1863-1924), conseguindo o apogeu de seus trabalhos em 1914, quando
estabeleceram a classificação das superfícies algébricas.198
Com efeito, Giuseppe Veronese, ainda em 1882, dava ênfase à importância de se
olharem os objetos geométricos como projeção de objetos em um espaço projetivo de
dimensão superior, chamando, inclusive a atenção de Corrado Segre, que se propôs a fazer
uma pesquisa visando procurar famílias de curvas que fossem capazes de produzir “[...] uma
inclusão de uma superfície em algum espaço projetivo conveniente.”199. Por sua vez, Corrado
Segre, que havia reconstruído alguns trabalhos algébricos de Max Noether e Alexander von
Brill, sob uma abordagem geométrica, incentivou Guido Castelnuovo e Federigo Enriques a

196
SLEMBEK, Silke. On the arithmetization of algebraic geometry, p.285.
197
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi: two personalities, two
letters, p. 800; CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the Italian and
American schools of algebraic geometry…, p. 311.
198
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.6.
199
[…] an embedding of a surface in some suitable projective space.. SLEMBEK, Silke. On the arithmetization
of algebraic geometry, p. 286.
81

se dedicarem em fazer estudos sistemáticos sobre as superfícies algébricas. Tal incentivo fez
com que Guido Castelnuovo e Federigo Enriques desenvolvessem uma série de artigos, em
conjunto, sobre a teoria das superfícies algébrica que, segundo Silke Slembek, “[...] em última
instância tornou-se sinônima da geometria algébrica [...]”200. Essa série de artigos, colocada
por Silke Slembek como uma das mais notáveis realizações de Guido Castelnuovo e Federigo
Enriques, atingiu seu ápice, em 1914, com a divulgação da classificação das superfícies
algébricas. Nela, apresentaram os sistemas lineares como o conceito central para o estudo
geométrico das variedades, os quais foram considerados como ferramentas no processo de
manipulação das curvas e superfícies em um espaço projetivo. 201
Além de Guido Castelnuovo e Federigo Enriques, Francesco Severi também foi aluno
de Corrado Segre e tal como os dois primeiros também se aprofundou em pesquisas sobre
superfícies. Contudo, os laços de amizade, familiares – Guido Castelnuovo se casou com a
irmã de Federigo Enriques, Elbina Enriques – que uniram esses dois matemáticos
profissionalmente não perduraram muito tempo com Francesco Severi. Entre os dois
primeiros matemáticos e Francesco Severi o que prevaleceu foram os atritos de cunho
profissional – disputas de reconhecimento acerca dos resultados produzidos na geometria
algébrica, particularmente na classificação das superfícies algébricas – entrelaçados com o
divergente posicionamento político em relação ao Regime Fascista, de inspiração hegeliana,
202
instaurado na Itália por Benito Mussolini (1883-1945), a partir de 1922. Em suma, em
nosso entendimento, esses elementos não só evidenciam a falta de unidade de grupo da escola
italiana de geometria algébrica, como também o fato de que tais disputas internas e
posicionamentos políticos presentes o interior de sua escola interferiram na descrição que era
feita acerca das características singulares de seus matemáticos. Neste sentido, Francesco
Severi tinha uma imagem de um toscano alto, pesado, sagaz, de difícil relação pessoal,
possuidor de um temperamento forte, inquietante e de estilo ditatorial, enfim, de alguém que
ao longo de sua vida passou uma imagem de ter sido, por exemplo, como a que foi descrita
por L. Roth, no ano de 1963, em um obituário publicado no Journal of the London
Mathematical Society:
As relações pessoais com Severi eram, contudo, complicadas na aparência,
sempre redutíveis a duas situações basicamente simples: ou ele havia
200
[…] that ultimately became synonymous with algebraic geometry […]. SLEMBEK, Silke. On the
arithmetization of algebraic geometry, p. 287.
201
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 6; SLEMBEK, Silke. On the
arithmetization of algebraic geometry, p. 286-287.
202
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi…, passim;
CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the Italian and American schools
of algebraic geometry…, p. 312.
82

acabado de ofender ou ele estava no processo de fazer isto – e muitas vezes


genuinamente ignorava que estava fazendo isso. Paradoxalmente, dotado de
uma sagacidade maior do que a maioria de seus colegas Toscanos, ele
demonstrava uma incapacidade infantil tanto para a autocrítica ou como para
o de julgamento correto. Assim, ele interferiu na política, ao passo que teria
sido muito melhor se ele tivesse deixado ela própria sozinha..203
Guido Castelnuovo, por sua vez, é descrito, poeticamente, como um sujeito de longa
barba, que mais parecia, segundo Oscar Zariski, o “Moisés de Michelangelo”, não muito
sociável, sério, um pouco distante das pessoas, mas que era capaz de abrir as portas de sua
aconchegante casa para realizar encontros acadêmicos.204 Local e momentos que foram
relembrados por Beniamino Segre (1903-1977) da seguinte forma:
... um centro onde todos os sábados por vários anos colegas e estudantes,
italianos ou visitantes estrangeiros, reuniam-se para uma conversa amigável
sobre uma ampla variedade de assuntos; sua influência sobre os presentes era
enorme, com sua demonstração de sabedoria calma, seu interesse em cada
ideia expressa, seu oferecimento de opiniões serenas e objetivas e atenciosos
aconselhamentos, sua presença cortês, a sua modéstia genuína. Essas
qualidades, ainda que castamente velada por uma certa reserva, fez dele
amado e apreciado por todos: você pode estar certo que ele não tinha
qualquer inimigos ou difamadores..205
Guido Castelnuovo, por essa lembrança, ainda que possa ser da memória seletiva de
Beniamino Segre, parece ter preservado as suas relações se não de amizade, mas de respeito
mútuo ao longo de sua vida, quer seja exercendo a sua docência – a exemplo do próprio
Federigo Enriques e Oscar Zariski – quer seja como colega de trabalho, particularmente na
Universidade de Roma – tal como aconteceu com Vito Volterra e Tullio Levi-Civita (1873-
1941). Contrariamente a Francesco Severi, que lecionava nesta mesma Universidade. Se no
início da carreira dedicou o seu primeiro trabalho ao seu professor Corrado Segre, chamando-
o de “professor incomparável”, por ter lhe ensinado apreciar as “investigações científicas
rigorosas”, na década de 1930, aparentemente negou essa admiração206. Em 1932, numa carta

203
Personal relationships with Severi, however complicated in appearance, were always reducible to two
basically simple situations: either he had just taken offence or else he was in the process of giving it – and
quite often genuinely unaware that he was doing so. Paradoxically, endowed as he was with even more wit
than most of his fellow Tuscans, he showed a childlike incapacity either for self-criticism or for cool
judgment. Thus he meddled in politics, whereas it would have been far better had he left them alone.. Apud
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi…, p. 801.
204
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi…, p. 801; PARIKH,
Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p.14.
205
… a center where every Saturday for several years colleagues and students, Italians or foreign visitors,
gathered for friendly conversation on a wide variety of subjects; his influence on those present was enormous,
with his display of calm wisdom, his interest in each idea expressed, his offering of serene and objective
opinions and thoughtful advice, his courtly presence, his genuine modesty. These qualities, even if chastely
veiled by a certain reserve, made him loved and appreciated by everybody: you can be certain that he did not
have any enemies or detractors.. Apud BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and
Francesco Severi…, p. 801.
206
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 802.
83

de resposta a Beniamino Segre207 sobre o esboço de uma aula, Francesco Severi afirmou
categoricamente que Beniamino Segre havia superestimado o trabalho de Corrado Segre, seu
primo distante e que também fora seu professor. Sem meias palavras, Francesco Severi disse:
O trabalho de C. Segre foi superestimado... Segre, por exemplo, não provou
nada importante no campo da geometria das curvas, embora tenha feito uma
revisão muito significativa do assunto. Suas contribuições para a geometria
projetiva de dimensão superior são superestimadas quando comparadas, por
exemplo, com as de Veronese. Essa avaliação exagerada é provavelmente
explicada pelo seu amor a ele como um discípulo..208
Essas passagens, breves, é verdade, revelam-nos dois homens, Guido Castelnuovo e
Francesco Severi, enquanto seres individuais, com características singulares, com posturas
diferentes diante de suas relações vividas e conquistadas ao longo de suas respectivas vidas.
Mas tal como argumentou Norbert Elias em seu já referido conceito de habitus social209, esse
mesmo ser individual é capaz de ter interesses comuns, que o fazem compartilhar e viver
socialmente e com Guido Castelnuovo e Francesco Severi, incluindo Federigo Enriques, não
foi diferente. Eles podem até ter tido alguma afinidade em outros aspectos de suas vidas –
algo que certamente aconteceu entre Guido Castelnuovo e Federigo Enriques. Contudo,
especificamente em relação à área de interesse profissional, todos três compartilharam o
mesmo interesse pela geometria algébrica. Seus trabalhos nesse campo de conhecimento
matemático tornaram-se referências não apenas dentro do cenário italiano, mas também
internacionalmente. Entretanto, o que poderia ter sido um forte elemento aglutinador para que
Francesco Severi, Guido Castelnuovo e Federigo Enriques – ao longo de suas carreiras –
tivessem dado continuidade em compartilhar as suas ideias em torno desse campo de
conhecimento matemático, foi transformado em um elemento de disputa de reconhecimento,
de demarcação de espaço, algumas vezes feita com certos tons de ironia.
Francesco Severi, em outra passagem de sua carta a Beniamino Segre, fez fortes
críticas em relação ao posicionamento de Beniamino Segre ao trabalho de Guido Catelnuovo
e Federigo Enriques. Na concepção de Francesco Severi, houve, por parte de Beniamino
Segre, um excesso de valorização das realizações desses dois matemáticos, principalmente,

207
Segundo Donald Babbittt e Judith Goodstein, Beniamino Segre escreveu uma carta para Francesco Severi,
que havia sido seu professor, para solicitar o seu parecer desse esboço de aula, na verdade um artigo, porque
seria ele o responsável pela aula inaugural da Universidade de Bolonha. Uma exigência dessa Universidade
quando ele foi nomeado para assumir a Cadeira de Geometria Superior no ano de 1931. BABBITTT, Donald;
GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi…, p. 803.
208
The work of C. Segre has been overrated…Segre, for example, did not prove anything major in the field of
geometry of curves although he did carry out a very significant revision of the subject. His contributions to
higher dimensional projective geometry are overrated when compared, for example, with those of Veronese.
This exaggerated evaluation is probably explained by your love of him as a disciple…. Apud BABBITTT,
Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi…, p. 803.
209
ELIAS, Norbert. Mudanças na balança nós-eu. In A Sociedade dos Indivíduos, p.150.
84

para ele, quando comparado ao trabalho de Max Noether sobre as superfícies que, na sua
ótica, foi completamente ignorado na abordagem de Beniamino Segre. Neste sentido,
Francesco Severi listou uma série de resultados importantes que já eram conhecidos na
geometria algébrica antes do trabalho sobre a classificação das superfícies de Guido
Castelnuovo e Federigo Enriques, inclusive afirmou que alguns desses resultados foram
essenciais para que fosse possível construir essa classificação. Na sua lista constavam: as
noções de genus geométrico e aritmético de uma superfície, dadas por Arthur Cayley (1821-
1895), Hieronymous Georg Zeuthen (1839-1920) e Max Noether; o invariante de Zeuthen-
Corrado Segre; o Teorema de Brill-Noether; além do trabalho de Picard sobre as superfícies.
Assim, Francesco Severi, na interpretação de Donald Babbitt e Judith Goodstein, sugeriu que
o trabalho sobre a classificação das superfícies de Guido Castelnuovo e Federigo Enriques foi
feito “sobre os ombros de gigantes” e que Beniamino Segre não teve a devida sensibilidade
para apreciar a importância desse fato no esboço de sua aula. Por fim afirmou: “[...] neste
artigo você escreve que antes de Castelnuovo-Enriques havia somente ‘alguns
desenvolvimentos que só criaram dificuldades’. Pobre [Max] Noether!”210.
No entanto, esses argumentos de Francesco Severi, na nossa ótica, não parecem ter
sido uma reação altruísta apenas para defender o reconhecimento das contribuições que foram
feitas por esses matemáticos no desenvolvimento da geometria algébrica e que, na sua visão,
foram negligenciadas por Beniamino Segre. Mais do que isto, tais argumentos pareciam mais
uma consequência do fato de que, para ele, Beniamino Segre subestimou os seus resultados
dentro do campo de conhecimento matemático, em um primeiro momento, para favorecer o
seu primeiro professor, Corrado Segre, o que lhe provocou uma reação de estranheza. Isto
porque ele próprio também havia sido professor de Beniamino Segre, quando este, ao seu
convite, tornou-se seu assistente, em 1927, dedicando-se, justamente, aos estudos da
geometria algébrica211.
Em outro, que é de certa forma, consequência do primeiro, Francesco Severi, pareceu
considerar que Beniamino Segre, por ter sido seu assistente e ter se dedicado à pesquisa em
geometria algébrica tal como ele, não apenas deveria saber, mas teria o dever de ter dado a
devida importância às ideias que ele tinha desenvolvido em 1904. Para ele, essas suas ideias
conseguiram resolver a maior parte dos problemas complicados que até então existiam na
geometria algébrica, como, por exemplo, a caracterização das superfícies irregulares, tanto do

210
[…] in this article you write that before Castelnuovo-Enriques there were only ‘a few developments that had
only created difficulties’. Poor Noether!. Apud BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido
Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 803.
211
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 803-804.
85

ponto de vista transcendental como do algébrico. Apesar de ter reconhecido que não deu
continuidade ao seu trabalho acerca das devidas clarificações conceituais, bem como ao seu
trabalho produzido conjuntamente com Federigo Enriques212 sobre superfícies hiper-elípticas,
mostrando-se disposto de ainda fazer, Francesco Severi não ficou nada contente em sentir que
as suas contribuições foram subestimadas por Beniamino Segre. Para ele, isto não justificava
o fato de Beniamino Segre ter feito, o que ele chamou, de “descrição humilhante” do status de
seu trabalho em geometria algébrica quando comparado ao tratamento que foi dado em seu
artigo ao trabalho de Guido Castelnuovo e Corrado Segre.213
Não satisfeito com essas críticas, Francesco Severi ainda reclamou, sem maiores
detalhes, do esquecimento de Beniamino Segre em relação ao seu teorema da base214, do seu
trabalho sobre a geometria de variedade de dimensão superior, levando-o a fazer o seguinte
questionamento a Beniamino Segre: “Como você pode ter feito isso quando discute geometria
italiana?”215. E, finalmente, parecendo revelar o real motivo de seus ressentimentos, disse
incrédulo “[...] não há menção do fato de que eu sou o único entre os geômetras algébricos
vivos que criou uma escola.”216. Assim, em um tom de superioridade de professor, sentenciou:
Você tem também subestimado minhas contribuições na geometria
enumerativa. Se apenas você podia entendê-las. Tudo isto não é para
repreender você, porque você certamente tem feito o seu melhor. Embora seu
conhecimento matemático é amplo, você atualmente não tem um
entendimento profundo o suficiente no vasto campo da geometria algébrica
para permitir a você ter uma perspectiva confiável sobre o assunto. Mas eu
estou também surpreso que as avaliações comparativas que nós discutimos
muitas vezes no passado não tiveram um efeito sobre você apesar de eu estar
sempre muito consciente de ser objetivo..217

212
Francesco Severi após terminar o seu doutorado, em 1900, na Universidade de Turim, foi assistente de alguns
matemáticos, entre eles, Federigo Enriques, durante a sua passagem a Bolonha.
213
Donald Babbittt e Judith Goodstein sugerem que Francesco Severi tenha se atrapalhado. Ao invés de dizer
Federigo Enriques mencionou Corrado Segre, mas conjecturamos que ele pode não ter se atrapalhado, uma
vez que também fez fortes comentários de que os seus trabalhos foram subestimados em relação ao de Corrado
Segre. BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 803-804.
214
Donald Babbittt e Judith Goodstein direcionam que este teorema citado por Francesco Severi está presente em
um artigo que ele publicou em 1906, intitulado Sull totalità delle curve algebriche tracciate sopra uma
superfície algébrica. BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi...,
p. 804 e 808.
215
How could you have done this when you discuss Italian geometry? Apud BABBITTT, Donald;
GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 804.
216
[…] there is no mention of the fact that I am the only one among living Italian algebraic geometers who has
created a school.. Apud BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco
Severi..., p. 804.
217
You have also underestimated my contributions to enumerative geometry. If only you could understand them.
All of this is not to reproach you, because you certainly have done your best. Although your mathematical
knowledge is wide, you currently do not have a deep enough understanding in the vast field of algebraic
geometry to allow you to have a reliable perspective on the subject. But I am also surprised that the
comparative evaluations that we discussed many times in the past did not have an effect on you even though I
was always very conscientious about being objective.. Apud BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith.
Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 804.
86

Talvez o próprio Beniamino Segre não tivesse imaginado que o seu pedido fosse gerar
tamanha reação de insatisfação por parte de seu ex-professor. Certamente ele fez esse pedido
na confiança dessa sua relação construída durante os quatros anos em que foi seu assistente.
Não se sabe ao certo a repercussão das críticas de Francesco Severi sobre a aula inaugural de
Beniamino Segre, em 1932, na Universidade de Bolonha. Donald Babbitt e Judith Goodstein,
por não possuírem a versão escrita final dessa aula que Beniamino Segre enviou para
Francesco Severi, afirmaram que não sabiam “[...] como as críticas de Severi afetaram o
conteúdos da aula inaugural de Segre.”218 No entanto, apontaram um artigo, originado dessa
aula, que está presente no Annali di Matematica de 1932, do próprio Beniamino Segre, como
um indicativo dessa repercussão. Privilegiando apenas uma perspectiva quantitativa,
colocaram que nesse artigo poderia-se notar que:

[...] Cremona é mencionado seis vezes (incluindo duas vezes em nota de


rodapé); Max Noether é mencionado duas vezes; Corrado Segre é
mencionado seis vezes, como é Guido Castelnuovo (e uma vez em nota de
rodapé); Enriques é mencionado em um total de sete vezes (quatro em nota
de rodapé). Severi é mencioando nove vezes, incluindo quatro notas de
rodapé. O fato que Noether é agora mencionado no artigo duas vezes indica
que Segre aceitou os comentários de Severi de coração pelo menos no que
diz respeito a Noether. É fácil conjecturar que Segre deu a Severi mais
atenção em sua palestra e nesse artigo que no esboço que provocou a carta
intimidante de Severi..219
Curiosamente, anos depois, em 1938, Beniamino Segre envolveu-se em outra situação
semelhante, agora com Guido Castelnuovo. Segundo Donald Babbitt e Judith Goodstein,
Guido Castelnuovo, também por meio de uma carta, teceu comentários, muito provavelmente
a pedido do próprio Beniamino Segre, sobre alguns trechos históricos que ele, Beniamino
Segre, havia publicado em um artigo, nesse mesmo ano, no Annali di Matematica Pura ed
Applicata. Diante dos trechos que aparecem no texto de Donald Babbitt e Judith Goodstein,
Guido Castelnuovo, em um tom um pouco mais benevolente, mas não menos franco do usado
por Francesco Severi, tratou de suas próprias contribuições com Federigo Enriques e
Francesco Severi, bem como aquelas que eram devidas apenas a Francesco Severi, no período

218
[…] how Severi’s criticisms affected the content of Segre’s inaugural lecture.. BABBITTT, Donald;
GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 804.
219
[…] Cremona is mentioned sixteen times (including twice in footnotes); Max Noether is mentioned twice;
Corrado Segre is mentioned six times, as is Guido Castelnuovo (and one footnote); Enriques is mentioned a
total of seven times (four in footnotes). Severi is mentioned nine times, including four footnotes. The fact that
Noether is now mentioned paper twice indicates that Segre took Severi’s comments to heart at least as far as
Noether is concerned. It is easy to conjecture that Segre gave Severi more attention in his lecture and in this
paper than in the draft that provoked Severi’s hectoring letter.. BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith.
Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 804.
87

de 1904 a 1908.220 Parece que Beniamino Segre, talvez ainda muito influenciado com os
comentários de Francesco Severi, em sua carta de 1932, tenha refletido nesse artigo o
desenvolvimento da geometria algébrica muito fortemente atrelado às contribuições de
Francesco Severi. Neste sentido, parece que ele diminuiu, confundiu ou negligenciou alguns
resultados que foram feitos por meio de uma troca mútua de ideias entre Guido Castelnuovo,
Federigo Enriques e Francesco Severi daqueles resultados que foram obtidos pela parceria de
Guido Castelnuovo e Federigo Enriques ou ainda daqueles que foram produzidos de forma
independente por Francesco Severi. Baseando-nos na discussão de Donald Babbitt e Judith
Goodstein, parece-nos que foi buscando colocar tudo isto em seus devidos lugares que Guido
Castelnuovo fez seus comentários.
Em um primeiro momento, Guido Castelnuovo esclareceu que a noção de um sistema
contínuo de curvas sobre algumas superfícies especiais, antes mesmo do trabalho de
Francesco Severi, já podia ser vista em alguns trabalhos dele próprio e Federigo Enriques.
Afirmou categoricamente que foi ele quem sugeriu a Francesco Severi, em uma carta não
publicada, que fizesse uso em alguns casos especiais da definição das séries características de
um sistema contínuo. Algo que Francesco Severi posteriormente acatou e que foi
desenvolvido, na concepção de Guido Castelnuovo, de forma brilhante. Apesar de admitir que
mencionou este assunto sem pretender reivindicar a prioridade desse resultado de Francesco
Severi, há, nas palavras de Guido Castelnuovo, a intenção de evidenciar a sua contribuição
nele. Na nossa leitura, essa intenção está também presente quando ainda enfatizou que só
trouxe esse assunto à tona visando chamar a atenção de Beniamino Segre para o fato de que se
deve ter mais cautela em fazer certas afirmações de prioridades dentro de um período em que
muitos resultados foram construídos em colaboração ou a partir de sugestões feitas por
matemáticos mais experientes aos seus colegas de profissão mais jovens. Dessa forma, Guido
Castelnuovo, parecendo ser irônico, sintetizou: “Foi a boa sorte da escola italiana de
geometria algébrica de ter essa desinteressada colaboração entre 1890 e 1910. Mas isto se faz
necessário para suavizar certas divisões demasiadamente muito claras entre o trabalho de um
e do outro.”.221
Desejando ser justo e imparcial, Guido Castelnuovo listou os resultados que foram, na
sua visão, devidos a Francesco Severi no período de 1904-1908, os quais, por si só, na sua

220
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 804.
221
It was the good fortune of the Italian school of algebraic geometry to have this disinterested collaboration
between 1890 and 1910. But this makes it necessary to smooth out certain overly clean divisions between the
work of one and the other.. Apud BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and
Francesco Severi..., p. 804.
88

análise, já eram suficientes para mostrar a grande capacidade intelectual de Francesco Severi.
Nas suas próprias palavras:
O que é sem dúvida devido a Severi no período 1904-08 são os seguintes: o
teorema que a existência das integrais de primeiro e segundo tipos de Picard
sobre uma superfície algébrica depende da irregularidade da superfície
(1904), um teorema que foi sucessivamente afirmado precisamente por nós
dois; a teoria da equivalência algébrica de curvas sobre uma superfície e o
Teorema da Base. Isso é mais do que suficiente para mostrar o seu grande
valor..222
Contudo, parece que Guido Castelnuovo não conseguiu essa imparcialidade desejada,
pelo menos quando mencionou essa primeira contribuição, isto é, o teorema fundamental das
superfícies irregulares, colocado por Donald Babbitt e Judith Goodstein, como um dos
triunfos conquistados dentro da geometria algébrica no início do séc. XX. Na análise desses
autores, esse teorema não foi sucessivamente estabelecido apenas pelo próprio Guido
Castelnuovo e Francesco Severi, mas sim um resultado construído coletivamente, tendo, além
deles dois, a colaboração de Pierre Humbert, Émile Picard e Federigo Enriques. Neste sentido,
definiu-se que irregularidade q de uma superfície algébrica F é a diferença pg - pa , sempre ≥
0, onde pg é denotado de genus geométrico de F e pa, por sua vez, de genus aritmético de F.
Assim, tal teorema afirmou que, se uma dada superfície algébrica F é definida sobre os
números complexos C de uma irregularidade q de F, sempre ≥ 0, então os espaços vetoriais I1
e I2, respectivamente, das integrais de primeiro e segundo tipos, têm, nessa ordem, dimensões
q e 2q. 223
Ainda dentro dessa discussão, Donald Babbitt e Judith Goodstein afirmaram que o
passo final na prova desse teorema, foi dado por Francesco Severi e Guido Castelnuovo, em
1905. Francesco Severi mostrou que a dimensão de um espaço vetorial das integrais de
primeiro tipo de Picard era menor ou igual à irregularidade q de F e, por sua vez, que a
dimensão de um espaço vetorial das integrais de segundo tipo de Picard era menor ou igual a
2q. Na notação utilizada pelos autores: dim (I1) ≤ q e dim (I2) ≤ 2q. Já Guido Castelnuovo
conseguiu provar que q≤ dim (I1), fazendo uso de um teorema, também provado neste mesmo
ano por Federigo Enriques, que ficou conhecido como teorema da completude. Como uma
‘cadeia’, Donald Babbitt e Judith Goodstein apontaram que Federigo Enriques pensou este
teorema a partir de uma sugestão dada por Francesco Severi em 1904. Ambos, Francesco
222
What is undoubtedly due to Severi in the period 1904–08 are the following: the theorem that the existence of
Picard integrals of the 1st and 2nd kind on an algebraic surface depends on the irregularity of the surface
(1904), a theorem that was successively stated precisely by both of us; the theory of the algebraic
equivalence of curves on a surface; and the Theorem of the Base. That is more than enough to show his great
worth.. Apud BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 804.
223
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 804-805;______.
Federigo Enrique’s quest to prove the “completeness theorem”, p. 240.
89

Severi e Federigo Enriques deram suas próprias provas, as quais foram de natureza álgebro-
geométrica, ou seja, não fizeram uso das técnicas transcendentais. Contudo, tanto um como o
outro cometeram falhas nas suas respectivas provas e estiveram envolvidos na controvérsia de
dar uma prova válida álgebro-geométrica para esse teorema, algo que só foi conseguido, em
1960, por Alexander Grothendieck (1928-), um bourbakista. Até esse ano, havia apenas a
prova que foi estabelecida satisfatoriamente por Poincaré no ano de 1910, mas sob uma
perspectiva transcendental.224
É verdade que um ambiente acadêmico, como qualquer outro contexto profissional, é
propício a disputas de reconhecimento, mas isto por si só não deveria impedir o trabalho
conjunto de profissionais de uma mesma área de conhecimento, neste caso específico, a
matemática, os quais estavam desenvolvendo pesquisa de repercussão internacional num
mesmo campo de conhecimento, ou seja, a geometria algébrica. Tanto é assim que em um
determinado período Guido Castelnuovo e Federigo Enriques compartilhavam ideias com
Francesco Severi e vice-versa. Segundo Angelo Guerraggio e Pietro Nastasi, os trabalhos
desses três matemáticos “[...] direcionaram para uma quase sistematização completa da teoria
das curvas para a completa classificação das superfícies e para as bases de uma teoria geral
das variedades algébricas.”225. Mais detalhadamente:

Matemáticos italianos conseguiram chegar a uma reformulação definitiva da


teoria de curvas com Castelnuovo e Severi, a criação da teoria de superfícies
com Castelnuovo e Enriques e à sua classificação birracional total
novamente com Enriques, bem como a individualização dos fundamentos de
uma teoria geral das variedades algébricas de dimensão superior e de seus
invariantes com Severi..226
Dessa forma, por um lado, a não existência de uma unidade de grupo entre Guido
Castelnuovo e Federigo Enriques em relação a Francesco Severi não impossibilitou que a
escola italiana de geometria algébrica se tornasse um centro de referência internacional. Tal
como podemos notar nas seguintes palavras de Carol Parikh:

No outono de 1921, a Universidade de Roma era o centro mais importante


da geometria algébrica do mundo. O que é agora conhecido como "a Escola
Italiana" havia sido iniciado por Luigi Cremona logo após a unificação do

224
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 805;______.
Federigo Enrique’s quest to prove the “completeness theorem”, p. 240-241.
225
[...] led to an almost complete systematization of the theory of curves to the complete classification of the
surfaces and to the bases of a general theory of algebraic varieties. GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI,
Pietro. Preface. In:. Italian mathematics between the Two World Wars, p.v.
226
Italian mathematicians had managed to arrive at a definitive reworking of the theory of curves with
Castelnuovo and Severi, to the creation of the theory of surfaces with Castelnuovo and Enriques and to their
total birational classification again with Enriques, as well as to the individualization of the basics of a general
theory of higher dimensional algebraic manifolds, and of their invariants with Severi.. GUERRAGGIO,
Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 104.
90

Reino da Itália, uma geração antes da chegada de Zariski, em Roma. Foi


somente depois de 1900, contudo, como resultado dos esforços combinados
de três grandes matemáticos italianos - Guido Castelnuovo, Federigo
Enriques e Francesco Severi - que os italianos levaram a geometria algébrica
para uma direção totalmente nova..227
Por outro, contribuiu para que não conseguisse sustentar esse status diante do
crescente aumento da ceticidade em torno do sua abordagem geométrica, principalmente, pela
escola bourbakista, a partir da década de 1930. Mesmo sob esse holofote Guido Catelnuovo e
Federigo Enriques não foram capazes de se unirem a Francesco Severi para que a sua escola
de geometria algébrica permanecesse no lugar de destaque que havia alcançado. Parece que
prevaleceram as divergências políticas que tiveram durante a vigência do regime fascista na
Itália, que com a sua crescente política totalitária, ultranacionalista e imperialista, de caráter
antidemocrática e repressiva, interferiu em toda esfera social e científica italiana,
especialmente as atividades de pesquisa da matemática.
Uma falta de sintonia coletiva não foi exposta no discurso público da escola
bourbakista, notadamente entre os integrantes do Grupo Bourbaki. Na construção de sua obra,
o Grupo Bourbaki seguia um ritual que envolvia o poder de persuasão em favor de uma
unidade coletiva, o qual desmistifica a ideia de que o Grupo produzia as suas obras de forma
dogmática. Com efeito, cada integrante do grupo tinha direito ao veto, nenhuma aprovação
sobre a redação da obra acontecia se não fosse por unanimidade. Esse consenso não era fácil
de ser obtido, uma vez que muitos dos bourbakistas tinham personalidades fortes, existindo,
frequentemente, discordâncias em torno das redações preliminares, feitas por um primeiro
redator previamente escolhido, que lia em voz alta a sua redação sobre a teoria matemática
proposta que poderia ser, entre outras, sobre a teoria dos conjuntos, álgebra e topologia, a qual
era fervorosamente debatida nas reuniões do grupo. Depois, nessas mesmas reuniões,
escolhia-se outro redator, normalmente, para cada capítulo, poderia ter até nove redatores.
Todo esse processo, que muitas vezes se tornava caótico, provocava o retardamento da
publicação dos volumes de sua obra, os primeiros só apareceram em 1939, ou seja, quatro
anos após a criação do grupo228.

227
In the fall of 1921 the University of Rome was the most important center of algebraic geometry in the world.
What is now known as "the Italian School" had been started by Luigi Cremona soon after the unification of the
Kingdom of Italy, a generation before Zariski's arrival in Rome. It was only after 1900, however, as a result of
the combined efforts of three great Italian mathematicians - Guido Castelnuovo, Federigo Enriques, and
Francesco Severi - that the Italians had carried algebraic geometry off in a startling new direction.. PARIKH,
Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p. 13.
228
Veja: BOREL, Armand. Twenty-five years with Nicolas Bourbaki, 1949 – 1973; JACKSON, Allyn.
Interview with Henri Cartan; BEAULIEU, Liliane. Bourbaki à Nancy.
91

Ao trabalhar dessa forma, o Grupo Bourbaki preservava a identidade individual dos


seus integrantes, enquanto seres singulares e independentes, ao mesmo tempo em que cada
um discutia a sua prática matemática com os demais integrantes do grupo havendo um
compartilhamento, uma universalização de pensamento divulgada através de sua obra
coletiva. Em suma, tal como defendeu Frédéric Patras, a personalidade intelectual e moral do
Grupo Bourbaki, ou seja, de Nicholas Bourbaki, não correspondia à soma das personalidades
de cada um de seus integrantes229. Na prática, houve, de fato, um Nicholas Bourbaki com
identidade própria, algo que está em consonância com a ideia de Norbert Elias em relação ao
seu conceito de habitus social, que associa a existência de uma pessoa, sendo ela individual,
de forma indissociável da sua existência enquanto ser social230.
Contudo, similarmente ao que aconteceu na escola italiana, mas sem provocar
divergências internas entre os seus integrantes, a forma de conceber e de fazer matemática da
escola bourbakista estiveram também imbricadas com questões de ordem filosófica, religiosa
e política. Por exemplo, com a eminência de uma nova Guerra Mundial, André Weil, que
tinha origem judia, tal como a maioria que fez parte da escola bourbakista, decidiu, em 1939,
deixar a França após o início da II Guerra Mundial (1939-1945), apesar de ser Tenente da
reserva e ter que servir ao seu País caso este fosse hostilizado. Essa decisão de André Weil foi
determinada pelos princípios filosóficos indianos presentes no Livro Sagrado Bhagavad Gita,
que se tornou a sua filosofia de vida. No entanto, André Weil sofreu várias consequências por
essa atitude. Logo depois foi preso na Finlândia, como espião. Retornou à França, como
prisioneiro, em 1940, depois de ter passado pelas prisões da Suécia e Inglaterra. Após pedir
para retornar ao exército francês para não passar cinco anos na prisão e ter a permissão
concedida, André Weil e sua esposa Eveline seguiram, em 1941, para os Estados Unidos,
onde viveu em condições adversas lecionando, como professor assistente, na Universidade de
Lehigh231, até ser contratado, em 1945, para vir ao Brasil ministrar aulas na Universidade de
São Paulo232, juntamente com Oscar Zariski. O que queremos dizer é que se na escola
bourbakista havia uma harmonia acerca das escolhas filosóficas, religiosas e políticas entre os
seus integrantes, esse consenso não predominou entre os matemáticos da escola italiana.

229
PATRAS, Frédéric. La pensée mathématique contemporaine, p.123.
230
ELIAS, Norbert. Mudanças na balança nós-eu. In A Sociedade dos Indivíduos, p.150.
231
A fase que passou na Universidade de Lehigh parece ter sido tão traumática que, mais tarde, André Weil e sua
esposa fizeram um pacto para nunca mais mencionar o nome dessa universidade. KNAPP, Anthony W. André
Weil: A prologue, p.438.
232
Veja: VARADARAJAN, V. S. The apprenticeship of a mathematician – autobiography of André Weil (book
review); KNAPP, Anthony W. André Weil: A prologue.
92

De fato, após a I Guerra Mundial estabeleceu-se uma ampla crise no capitalismo de


todo o mundo, marcado pelo bloqueio do desenvolvimento econômico, provocando o
aumento da desconfiança na forma de governar do sistema liberal, o que possibilitou a
abertura de brechas para a ascensão do fascismo, particularmente na Itália, por meio do Duce
Benito Mussolini, que deu o seu primeiro passo em 1919. Neste ano, Benito Mussolini fundou
o Fasci italiani di combattimento, tornando-se, em 1921, no Partito Nazionale Fascista,
liderando, em 1922, com os seus próprios militantes a chamada “Marcha sobre Roma” rumo à
tomada do poder. Era um momento propício, pois a Itália, mesmo tendo se colocado ao lado
dos vencedores233, vivia, tal como muitas outras localidades da Europa Ocidental, um cenário
desolador – greves, quebra do setor industrial, um alto índice inflacionário, aumento do
desemprego, invasões de terras e fábricas, enfim um grande colapso social-político e
econômico – que provocou um sentimento de desapontamento e perda em relação às suas
nostálgicas aspirações nacionalistas vividas em outros tempos de glória, tal como o Império
Romano. Assim, a implantação do fascismo, segundo Eric Hobsbawm “sublinhou a
insatisfação italiana” com os seus ganhos após o término da guerra234.235
Dessa forma, observemos que, no período das duas cartas, notadamente a carta de
Guido Castelnuovo de 1938, o regime fascista oficializava as restrições que estavam ainda
sendo exercidas de forma velada contra os judeus desde a sua implantação em 1922, os quais
eram considerados não italianos. Neste sentido, foi sancionada uma lei racial fascista que,
segundo Donald Babbitt e Judith Goodstein, barrava o acesso dos estudantes judeus tanto nas
escolas como nas universidades públicas; impossibilitava que autores judeus utilizassem os
seu próprios nomes em suas publicações; além de proibir que as academias judaicas
publicassem os seus resultados. Neste contexto, essa lei atingiu diretamente os judeus
matemáticos Guido Castelnuovo e Federigo Enriques e tantos outros matemáticos judeus, mas
não Francesco Severi, que além de não ser judeu, havia começado a sua relação com o regime
fascista em 1929, quando foi nomeado o único representante da comunidade de matemática
na nova academia criada por Benito Mussolini, em 1926, designada de Reale Accademia

233
Juntamente com os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França. Veja: HOBSBAWM, Eric. A era dos
extremos: o breve século XX, p. 38.
234
De acordo com Eric Hobsbawm, a Itália apesar de ter saído da I Guerra Mundial com ganhos territoriais
consideráveis nos Alpes, no Adriático e ainda no mar Egeu, não ficou satisfeita, pois não foram esses
territórios que lhe fora prometido pelos seus aliados para entrar na guerra em 1915. HOBSBAWM, Eric. A
era dos extremos: o breve século XX, p. 44.
235
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX, passim; CARNEIRO, Márcia Regina da Silva
Ramos Carneiro. Estados fascistas, Estado integralista, p.5; SOARES, João Bernardo Maia Viegas. Labirintos
do fascismo, passim; GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World
Wars, p. 83-85.
93

d’Italia. Tal Accademia foi criada para substituir a Accademia dei Lincei, que na leitura do
regime fascista, “[...] não estava muito disposta a tomar partido [...]”236, no caso, ser fiel a esse
regime.237 Francesco Severi, com esta nomeação, passou a ser “[...] um privilegiado
interlocutor escolhido pelo regime para representar essa comunidade [de matemática].”238.
Logo ele, um ex-socialista e antifascista em 1925, quando inclusive assinou o manifesto de
Croce. De fato, Francesco Severi, juntamente aos seus colegas Vito Volterra, Guido
Castelnuovo e Tullio Levi-Civita, assinou o manifesto do filósofo Benedetto Croce (1866-
1952), em que “[...] advogou a aceitação de uma cultura universal, não uma confinada a um
determinado sistema político.”239. Na verdade foi um contra manifesto, em resposta ao
manifesto do também filósofo Giovanni Gentile (1875-1944) publicado alguns dias antes
pelos intelectuais fascistas.240 Assim, fazemos nossos os seguintes questionamentos de Angelo
Guerraggio e Pietro Nastasi:
O que aconteceu nesse meio tempo, durante os anos que vão desde o
manifesto de Croce a constituição da Accademia d’Italia? Como Severi se
pôs para tornar-se o único homem a estar à frente e realizar a aspiração de
alguém que queria ser (e, em certa medida, era) o “mestre” da matemática
italiana durante o período fascista?.241
Angelo Guerraggio e Pietro Nastasi apontaram alguns indícios dos possíveis motivos
que levaram Francesco Severi a se engajar no fascismo de Benito Mussolini. Francesco Severi
já tinha uma carreira consolidada de pesquisador matemático, principalmente dentro do
campo da geometria algébrica, mas não exercia a liderança da matemática italiana que estava
nas mãos de Guido Castelnuovo e Federigo Enriques. Tal como aconteceu em outros setores
italianos, o desenvolvimento da pesquisa científica original, nos anos pós I Guerra Mundial,
diminuiu o seu ritmo, inclusive na geometria algébrica. Talvez de forma confusa e nem
sempre por meio de um plano muito bem planejado, o fato é que, para Angelo Guerragio e
Pietro Nastasi, isto favoreceu para que se realizasse uma ampla sistematização e reformulação
de tudo que tinha sido construído no período antes da I Guerra Mundial. Nessa conjuntura, os

236
GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 103.
237
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 805;
GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 102-104.
238
[…] a privileged interlocutor chosen by the regime to represent this community.. GUERRAGGIO, Angelo;
NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 104;
239
[…] advocated acceptance of a universal culture, not one confined to a particular political system..
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 802.
240
GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 104;
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 802.
241
What has happened in the meanwhile, during the years that go from the Croce manifesto to the constitution of
the Accademia d'Italia? How does Severi set himself up to become the only man in the lead and to realize the
aspiration of someone who "wanted to be (and, in a certain measure, was) the "master" of Italian mathematics
during the fascist period"?. GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two
World Wars, p.104.
94

geômetras-algébricos italianos começavam a sentir um princípio de ameaça ao predomínio


dessa sua escola. Dessa forma, nos últimos anos da década de 1920, havia a clara percepção
de que era necessário dar uma resposta às progressivas mudanças que estavam emergindo de
jovens pesquisadores, tais como, Oscar Zariski, formado na escola italiana, mas a partir de
1927 já representando a matemática americana; van der Waerden, representante da
matemática alemã e o da escola bourbakista, André Weil, da França. Tais matemáticos
inseriram na abordagem da geometria algébrica as linguagens algébricas e topológicas em
detrimento da abordagem geométrica dos italianos. 242
Assim, na metade de 1930, dava-se início um confronto de escolas, de demarcação de
espaços, principalmente desencadeada pelas escolas bourbakista e americana, tendo na
berlinda, segundo Donald Babbitt e Judith Goodstein, em complemento ao argumento de
Angelo Guerraggio e Pietro Nastasi, o questionamento sobre a precisão matemática da escola
italiana de geometria algébrica em relação a algumas de suas definições, bem como acerca do
rigor lógico utilizado nas provas de alguns de seus teoremas mais importantes. Para Donald
Babbitt e Judith Goodstein, Guido Castelnuovo refletiu essa preocupação no prefácio de uma
obra póstuma de Federigo Enriques, publicada em 1949, sobre as superfícies algébricas, em
que defendeu a prevalência na matemática italiana de uma abordagem mais intuitiva,
incluindo a que havia sido feita, notadamente geométrica, no auge da escola italiana de
geometria algébrica. Numa passagem longa, mas de extrema importância para essa nossa
discussão, Guido Castelnuovo nos deu, num tom entristecido, uma dimensão clara de sua
preocupação com os novos rumos que estavam sendo impostos na geometria algébrica, dos
quais a escola italiana estava sendo ou já era excluída:
Será que em breve alguém virá para continuar o trabalho das escolas italiana
e francesa que será bem sucedido em desenvolver a teoria das superfícies
algébricas que já tem sido realizado para a teoria das curvas algébricas?
Espero que sim, mas eu duvido disto... a matemática tem agora tomado um
rumo diferente daquele do passado. Fantasia e intuição caracterizaram as
pesquisas até então, mas agora são tratadas com suspeitas, pois há o temor de
que elas possam levar a erros. Teorias foram desenvolvidas por matemáticos
para tornar mais precisas muitas ideias que já estavam vagamente em sua
mente. Foi a exploração de um vasto território visto de um plano distante.
Desta forma, tais jóias da matemática como a teoria das funções analíticas,
funções elípticas e funções abelianas foram criadas durante esse século
passado [referindo-se ao séc. XIX]. Hoje há mais interesse na estrada que
leva para um campo de exploração do que o seu próprio campo. E essa
tendência não será de curta duração, como também podemos ver em outros
campos, como na música e nas artes, onde a fantasia é proibida e onde a

242
GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p.104.
95

técnica ou a forma de expressão é mais interessante do que o próprio


trabalho..243
Por fim, sentenciou:
Um dia, mais cedo ou mais tarde, o amor pelas grandes teorias nascerá
novamente e nesse dia as pessoas lerão o tratado de Henriques como um
relatório em que muitas pedras preciosas tem sido desenterradas e muitas
outras esperam para ser descobertas..244
Apesar de defender o método geométrico utilizado pela escola italiana de geometria
algébrica, Francesco Severi, pela pesquisa de Angelo Guerraggio e Pietro Nastasi, percebeu
que havia necessidade de reconfigurar de forma mais sólida e precisa esse método que tanto
sucesso havia dado à escola italiana de matemática, diferentemente de Guido Castelnuovo que
nesse excerto parecia não ter essa compreensão. Assim, nos anos de 1920, Francesco Severi
voltou a sua atenção para publicações que privilegiavam uma apresentação dos métodos e
resultados da escola italiana, 245 na verdade, aproveitando uma brecha para iniciar a sua
estratégia em se tornar o líder da matemática italiana, a princípio, sob os olhos do regime
fascista.
Neste sentido, por exemplo, em 1921, Francesco Severi publicou estrategicamente em
alemão, um livro246 que correspondia à tradução de suas palestras dadas em 1908, que haviam
sido editadas em Pádua. Conjecturamos que tenha feito essa opção, porque era na Alemanha
que estavam se desenvolvendo os principais resultados na álgebra moderna, por meio,
principalmente de Emil Artin e Emmy Noether. Tais resultados começavam a ser utilizados
como fundamentação da geometria algébrica, algo que foi feito posteriormente, por exemplo,
por van der Waerden, que, conforme já mencionamos anteriormente, havia sido aluno de Emil
Artin e Emmy Noether. Para tanto ainda foi escolhido para prefaciar essa sua obra o
matemático alemão Alexander von Brill. Em seu prefácio, Alexander von Brill, além de

243
Will someone come along soon who will continue the work of the Italian and French schools who will
succeed in developing the theory of algebraic surfaces that has already been accomplished for the theory of
algebraic curves? I hope so, but I doubt it… mathematics has now taken a different course from that of the
past. Fantasy and intuition characterized research then, but now these are treated with suspicion, as there is the
fear that they could lead to errors. Theories were developed by mathematicians to make more precise many
ideas that were already vaguely in their mind. It was the exploration of a vast territory seen from a distant
shore. In this way such jewels of mathematics as the theory of analytic functions, elliptic functions, and
Abelian functions were created during this past century. Nowadays there is more interest in the road that leads
to a field of exploration rather than to the field itself. And this tendency will not be short-lived, as we can also
see in other fields such as in music and in the arts, where fantasy is banned and where the technique or the way
of expression is more interesting than the work itself.. Apud BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith.
Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 807.
244
One day, sooner or later, the love for the great theories will be born again and on that day people will read the
treatise by Enriques as a report wherein many gems have been unearthed and many others wait to be
discovered. Apud BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p.
807.
245
GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p.104.
246
Denominado de Vorlesungen über algebraische Geometrie.
96

reconhecer a primazia italiana, convidou os jovens alemães que fizessem o reconhecimento


desse fato, a fim de poder enfrentá-lo e com isto recolocar a matemática alemã ao ponto
máximo no desenvolvimento da pesquisa em geometria algébrica247. Foi uma habilidosa
estratégia de Francesco Severi que mostrou, por um lado, dentro da Alemanha, em alemão, os
resultados que haviam sido alcançados na geometria algébrica por meio do método
geométrico; por outro, o reconhecimento dado a esses resultados por um importante
matemático alemão, ou seja, Alexander von Brill que, em companhia de Max Noether, tinha
contribuições significativas na geometria algébrica fazendo uso de métodos algébricos. Ainda,
Francesco Severi acrescentou nessa sua obra alguns apêndices, objetivando apresentar ao
público internacional uma visão geral desse campo de conhecimento. Assim, reuniu tópicos
frequentemente publicados em artigos dispersos e escritos em italiano.
Outro exemplo de obra seguindo essa linha foi a publicação do primeiro volume, em
1926, de seu livro intitulado Trattato di Geometria algebrica, dedicando-se à geometria das
séries lineares. Nela, segundo Angelo Guerraggio e Pietro Nastasi, Francesco Severi,
buscando um trabalho de sistematização, fez a seguinte reafirmação na introdução: “para
deduzir, coordenar, completar onde isto é necessário, tudo o que é importante dentro do
campo da geometria algébrica”248. Para isto, Francesco Severi se impôs a fazer um tratado de
forma metódica, desenvolvendo cada questão seguindo um caminho rigoroso e exaustivo,
para que, na sua concepção, fosse possível dissipar a ideia de que existe na geometria
algébrica falta de rigor e de precisão. Esses autores complementaram dizendo que:
[...] o rigor torna-se o objetivo prioritário. Todas as energias são endereçadas
para reduzir a desproporção, agora evidente, entre mais e mais problemas
complexos e as ferramentas que, em vez disso, em substância, continuam
aquelas de algumas décadas anteriores e deveriam, portanto, serem usadas
com uma certa “confiança” se a sua competitividade está a ser estendida...249
Somados a esse trabalho de sistematização feito por meio de tratados, Francesco
Severi, conforme Angelo Guerraggio e Pietro Nastasi, ainda buscou nesses tratados trazer
numerosas notas históricas acompanhando cada resultado importante, apresentado como um
resumo de um complexo processo histórico, não esquecendo de reivindicar os méritos da
escola italiana, em especial da geometria algébrica. Na sua luta para ascender como um

247
GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p.105.
248
to gather, to co-ordinate, to complete where it is necessary, all that is important within the Field of algebraic
geometry. Apud GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World
Wars, p. 105.
249
[...] rigour becomes the priority aim. All energies are addressed to reducing the disproportion, by now
evident, between more and more complex problems and tools that instead, in substance, remain those of some
previous decades and must therefore be used with a certain "confidence" if their competitiveness is to be
extended.. GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p.
105.
97

protagonista inquestionável da geometria algébrica, Francesco Severi ainda contou com o


sucesso de seus ex-alunos nesse campo, tais como Beniamino Segre, Annibale Comessatti
(1886-1945) e Giacomo Albanese (1890-1947). Esses elementos foram compreendidos por
Angelo Guerraggio e Pietro Nastasi como uma transição construída pelo próprio Francesco
Severi para que fosse possível pleitear a sua nomeação para a Accademia d’Italia. Contudo,
além de mostrar a sua capacidade intelectual, Francesco Severi ainda precisava ter a devida
habilidade política para que ele fosse designado no lugar do grande favorito para assumir esse
posto, ou seja, Federigo Enriques, que não havia assinado o manifesto de Croce, ao que tudo
indica, neste caso, por conta de divergências pessoais com o próprio Benedetto Croce. Até
então Federigo Enriques mostrava-se relutante, segundo Angelo Guerraggio e Pietro Nastasi,
em entrar no debate político. Com efeito, no mesmo ano do manifesto de Croce, ou seja, em
1925, Federigo Enriques foi nomeado diretor da Enciclopedia Italiana, tendo a
responsabilidade de organizar a seção de matemática. Uma consequência de sua aproximação
cortês no lugar de uma relação turbulenta que tinha iniciado com Giovanni Gentile, então
ministro da Educação do Governo de Benito Mussolini. Ainda, posteriormente, em 1933,
mesmo sendo judeu, mas sem ainda haver uma política explicitamente hostil aos judeus,
filiou-se ao Partido Fascista. Tal fato, contudo, não impediu que em 1938, com o vigor da lei
anti-semita, perdesse a sua posição de professor de geometria superior assumida desde 1923
na Universidade de Roma.250
A relação de Francesco Severi com o seu ex-professor Federigo Enriques, conforme
um trecho de correspondência de Tullio Levi-Civita para Vito Volterra e sem conseguirmos
maior detalhamento, estava mais deteriorada após divergências251 ligadas a interesses
econômicos referentes a livros didáticos.252 Dessa forma, Francesco Severi não mediu
esforços para conseguir um lugar de destaque, equiparável ao valor intelectual das suas
atividades matemáticas e assim quebrar definitivamente a sua relação que, para ele, era ainda
de subordinação a Federigo Enriques. Neste sentido, mais sagaz do que Federigo Enriques
talvez pudesse imaginar, mandou uma carta, em 1928, para o seu amigo Giovanni Gentile
comunicando a sua decisão em não mais colaborar com a Encyclopedia Italiana, cuja seção
de matemática ainda era coordenada justamente por Federigo Enriques. Argumentou que ele
como um homem que acreditava “[...] na honestidade, objetividade, moralidade e em muitas

250
GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 83-108.
251
Essas divergências abrangeram também ao matemático Ugo Amaldi (1875-1957). GUERRAGGIO, Angelo;
NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 112.
252
Apud GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 111-
112.
98

coisas terminadas em ‘dade’[...]” sentia-se decepcionado com Federigo Enriques, que para ele
tinha atitudes impróprias para realizar um trabalho objetivamente tal como era necessário na
Enciclopedia. Assim, afirmou: “[...] eu não posso ter mais nada em comum, muito menos uma
relação de subordinação.”253
Em outra carta endereçada também a Giovanni Gentile, em 1929, Francesco Severi
deixou claro o seu total engajamento com os interesses do fascismo, inclusive preocupado em
mostrar que estava disposto em se dedicar integralmente ao governo fascista de Benito
Mussolini, mas principalmente se colocando à disposição para o que fosse necessário. Assim,
sob esse discurso, sutilmente mostrava-se um homem de visão ampla e, portanto, possuidor da
capacidade de liderar, tal como podemos observar na seguinte passagem dessa sua carta para
Giovanni Gentile:
Eu desejei vir e saudá-lo antes de partir para Barcelona (onde vou ficar por
cerca de 3 meses); mas eu não consegui. Por isso eu envio minhas saudações
daqui, e eu calorosamente peço-lhe para que se lembre de "preparar a
atmosfera" para os membros do G.C.254 em que você pode mais facilmente
ter um efeito, de modo que quando, no próximo G.C., a questão dos
“intelectuais” venha, como é provável, ser resolvida da melhor forma e
definitivamente.
Eu do meu lado – e dentro dos limites de minhas escassas possibilidades –
tenho feito o máximo que pude para este fim e estou certo de pensar que o
Chefe do Governo está extremamente bem disposto. Razão sólida: sem ela, é
claro, eu não iria escrever sobre isso.. (grifo no original). 255
Dessa forma, Francesco Severi propôs que para resolver a questão dos intelectuais,
uma solução deliberativa do Conselho dos Ministros – caso fosse esse órgão a decidir e não o
Grande Conselho do Fascismo – não deveria ser resolutiva para conseguir uma fórmula mais
precisa de juramento. Caso contrário, na sua leitura, as pessoas que teriam interesse de
perpetuar essa situação dos intelectuais, facilmente poderiam argumentar que tal solução foi
única e exclusivamente uma decisão isolada do Ministro da Educação do Governo. Mas, de
outra parte, habilidosamente ponderou que se o Chefe do Governo deixasse que essa decisão
fosse tomada pelo Grande Conselho do Fascismo, colocado como um órgão político supremo,

253
[…] I cannot have anymore in common, let alone a relationship of subordination. Apud GUERRAGGIO,
Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 109.
254
Quer dizer Grande Conselho do Fascismo [Great Council of the Fascism]. GUERRAGGIO, Angelo;
NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 111.
255
I wished to come and greet you before leaving for Barcelona (where I will stay for about 3 months); but I
have not managed to. Therefore I send you my greetings from here, and I heartily ask you to remember to
"prepare the atmosphere" for the members of the G. C. on which you can more easily have an effect, so that
when, in the next G. C., the question of the “intellectuals” comes, as it is probable, it can be resolved in the
best way and definitively. I on my side – and within the limits of my scarce possibilities – have done as much
as I could for this purpose and I am right to think that the Head of Government is extremely well disposed.
Solid reason: without it, of course, I would not write you about it.. Apud GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI,
Pietro. Italian mathematics between the Two World Wars, p. 111.
99

representando o Partido e a imprensa, isto impediria que houvesse manifestos contrários tanto
abertamente como as escondidas, uma vez que o ato seria visto como uma ação de co-
responsabilidade. Neste caso, para Francesco Severi, a medida deveria ser sim um ato de
intransigência para que fosse possível obter a já muito solicitada fascitization das
universidades italianas. Isto seria conseguido por meio dos professores que deveriam fazer o
juramento de lealdade ao fascismo, caso contrário, receberiam sanções. Por sua vez, o Estado,
no exercício de suas atribuições técnicas, poderia fazer uso, sem restrições, dos professores
que tinham feito esse juramento. Para Francesco Severi isto eliminaria “[...] então a presente
situação absurda de muitos professores, que estão tão somente no meio caminho, não estando
sequer em condições de pertencer ao julgamento das Comissões!”256.
Ao desempenhar um papel de conselheiro, inclusive apresentando ideias para o
aumento do poder do fascismo, Francesco Severi conseguiu ser visto como um grande
estrategista aos olhos do regime fascista, livrando-se do estigma de ex-antifascista, ao
conquistar a confiança de seu amigo Giovanni Gentile. Dessa forma, conseguiu um forte
aliado para atingir o seu propósito de ser o representante da matemática na Accademia
d’Italia, posto que tinha o nome de Federigo Enriques como franco favorito. Isto foi de fato
concretizado, pois Giovanni Gentile, sensibilizado com as últimas atitudes de Francesco
Severi “[...] exerceu uma influência decisiva sobre Mussolini [...]”257 para que ele realmente
fosse o escolhido como o único membro da matemática italiana a pertencer a Accademia
d’Italia, tornando-se daí por diante uma liderança da matemática italiana.
É notório, no entanto, que independentemente da capacidade intelectual já
demonstrada por Francesco Severi, a lei fascista racial sancionada em 1938 contribuiu em
muito para que essa sua liderança se solidificasse, uma vez que os principais matemáticos
italianos, os quais eram judeus, perderam os seus respectivos cargos. Alguns viveram na
clandestinidade, tal como aconteceu com Guido Castelnuovo, que inicialmente, foi abrigado,
junto a sua esposa, pelo jovem matemático de Roma, Tullio Viola (1904-1985). Depois,
refugiou-se em um instituto religioso, chegando, por fim, a viver em uma pequena pensão nas
proximidades da Via Veneto, sob o sobrenome de Cafiero. Outros migraram para outros
países. Estes foram os casos, por exemplo, de Beppo Levi (1875-1961) e Alessandro Terracini
(1889-1968), que foram para a Argentina; de Guido Fubini (1879-1943), que se deslocou para

256
[…] then the absurd present situation of many professors, that are so only half way, not being even able to
belong to judging Commissions!. Apud GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics
between the Two World Wars, p. 111.
257
[…] exerced a decisive influence on Mussolini [...]. GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian
mathematics between the Two World Wars, p.113.
100

Princeton e de Gino Fano (1871-1952), que se abrigou na Suíça. Portanto, foi dentro desse
contexto que Francesco Severi ao se manter fiel ao regime fascista até a liberação de Roma
em 1944, tornou-se, na leitura de Donald Babbitt e Judith Goodstein, o mais proeminente
matemático da escola italiana, circunstancialmente muito beneficiado pelo fato de seus
principais concorrentes ou estarem na clandestinidade, ou haverem se refugiado em outros
países.258
Com a liberação de Roma em 1944, mudou-se a configuração da realidade até então
vivida na Itália, provocando um movimento de inversão da pirâmide ao estabelecer uma nova
conjuntura na relação antagônica entre Guido Castelnuovo e Francesco Severi. Guido
Castelnuovo, já com 74 anos, segundo Donald Babbitt e Judith Goodstein, resolveu sair da
sua aposentadoria para liderar a reconstituição da organização científica italiana vigente antes
do período do fascismo. Neste sentido, reintegrou-se formalmente como professor emérito da
Universidade de Roma, foi comissário geral do Italy’s National Research Council, exercendo
inclusive a presidência da sua comissão de matemática; teve forte participação no processo de
reabilitação da Accademia dei Lincei, tornando-se seu presidente de 1946 até 1952, ano de sua
morte. Ainda foi nomeado senador vitalício, em 1949, pelo parlamento italiano e, após a sua
morte, o prédio que abrigava o Instituto de Matemática da Universidade de Roma, em sua
homenagem, recebeu o seu nome.259
Já Francesco Severi, de acordo com Donald Babbitt e Judith Goodstein, era
inspecionado pela Comissão Superior de Sanções contra o fascismo. Criada um pouco depois
da liberação de Roma, essa Comissão tinha como objetivo específico averiguar as acusações
feitas contra os membros do Partido Fascista que se mantiveram fiéis a ele mesmo após a sua
derrocada. Inicialmente Francesco Severi foi suspenso de suas atividades de professor na
universidade. Contudo, depois de recorrer e, talvez mostrando ainda certa influência, tal
suspensão foi substituída por uma simples censura que se resumia a uma carta colocada no
seu arquivo pessoal da universidade.260
No entanto, se, por um lado, Francesco Severi não recebeu formalmente uma forte
censura aos seus atos durante o regime fascista, por outro, a sua imagem moral estava
abalada, caso contrário, diante da sua forte personalidade, ele não teria se preocupado ao
entrar em contato com Beniamino Segre, já no período pós II Guerra Mundial, em anexar em
sua carta um documento que havia sido emitido pelo Ministério Italiano da Instrução Pública.

258
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 805-806.
259
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 806.
260
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 806.
101

Neste documento, esse Ministério declarava que ele, Francesco Severi, não foi submetido “a
qualquer sanção prevista pela atual legislação relativa à limpeza do Serviço Civil Italiano” das
atividades consideradas fascistas261. Além dessa declaração, Francesco Severi ainda recebeu
um atestado de outra comissão que tinha como objetivo examinar o comportamento de ex-
membros da Accademia d’Italia. Mais uma vez Francesco Severi saiu ileso. Tal comissão
declarou que ele “não tinha recebido do fascismo nada mais do que lhe era devido como um
cientista ilustre.”262. Assim, nas palavras de Donald Babbitt e Judith Goodstein, “Sua ‘retidão
moral’, a Comissão acrescentou, nunca foi posta em questão.”.263 Em outra circunstância
Francesco Severi ainda se preocupou em justificar para Beniamino Segre os motivos do seu
comportamento durante a II Guerra Mundial. Assim, Donald Babbitt e Judith Goodstein
apresentaram que Francesco Severi justificou o seu comportamento mencionando “[...] que
ele havia diligentemente trabalhado para salvar os bens do banco local em Arezzo, sua cidade
natal.”264. Talvez esta preocupação de Francesco Severi em mostrar que não sofreu sanções
oficiais acerca das suas ações durante o regime fascista tenha sido provocada pelo fato de que,
na prática, ele tenha passado por algumas sanções. Por exemplo, teve sua candidatura a
Accademia dei Lincei recusada, conseguindo ser associado apenas em 1948, após uma anistia
geral dada pelo governo, que abrangia todo território italiano. Tal anistia também possibilitou
que Francesco Severi recuperasse a sua posição de presidente do Italian National Institute for
Higher Mathematics, cargo que permaneceu até a sua morte em 1961.265
Diante dessa nossa discussão, parece-nos que o paulatino processo de perda do
protagonismo da escola italiana de matemática, em particular, da sua tradição na geometria
algébrica, notadamente entre as duas guerras mundiais, não pode ser reduzido à memória
cristalizada, segundo a qual o método geométrico italiano era pouco rigoroso. Não há como
negar que a partir do séc. XIX começa haver um discurso crescente a favor do método
algébrico diante de alguns resultados que começaram a fazer parte do conhecimento
matemático. Para relembrar alguns deles: a concepção de números negativos e de números
reais e a nova estruturação da álgebra.

261
to any sanction provided for by current legislation on the cleansing of the Italian Civil Service. Apud
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 806.
262
had not received from Fascism anything more than was his due as a distinguished scientist.. Apud
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 806.
263
His “moral rectitude”, the commission added, was never called into question.. BABBITTT, Donald;
GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 806.
264
[…] that he had worked diligently to save the assets of the local bank in Arezzo, his hometown.. BABBITTT,
Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 806.
265
BABBITTT, Donald; GOODSTEIN, Judith. Guido Castelnuovo and Francesco Severi..., p. 806.
102

Da mesma forma não há como negar também que mesmo com esse discurso, a
matemática italiana, com o seu método geométrico, ainda conseguiu se posicionar no topo,
soberana, como uma escola de referência mundial, principalmente no contexto da geometria
algébrica até os anos de 1920. Basta-nos observar que neste período jovens matemáticos de
outras localidades ainda chegavam ao seu território, fascinados pelo seu método e resultados
alcançados, em especial na geometria algébrica, tal como aconteceu com Solomon Lefschetz
e Oscar Zariski, respectivamente nos anos de 1920 e 1921. Há ainda de se considerar que, no
período em que a geometria algébrica italiana começou a se destacar, conforme observamos
anteriormente, havia outras formas de abordagem. Matemáticos de outras localidades tinham
consciência disso, bem como do movimento de algebrização da geometria algébrica, inclusive
os próprios matemáticos italianos. Assim, da mesma forma que houve uma escolha consciente
por parte dos matemáticos italianos pelo método geométrico, houve também essa mesma
escolha pelos matemáticos de outras localidades quando desenvolveram as suas pesquisas
fazendo uso desse método ou dos resultados por ele alcançados.
O que parece realmente estranho, é que, posteriormente, as críticas à escola italiana,
principalmente em relação à geometria algébrica, o argumento central tenha sido a falta de
rigor de seu método. Estranho porque parecia ser senso comum a existência de estilos
diferentes, uma vez que havia o reconhecimento de outras abordagens. Então entendemos que
seria mais sensato ter se pensado que cada abordagem produziria um rigor específico,
justamente por ter uma forma peculiar de pensar e resolver as suas próprias teorizações, nas
quais nem sempre um dado problema formulado em uma abordagem pode ter sido pensado na
outra. Mas isto não quer dizer que o tal rigor, a priori não exista ou que não houve
preocupação com ele. Observamos que não estamos discutindo o mérito da questão se um
determinado método possibilitou construir mais ou menos teorias dentro do conhecimento
matemático. O que queremos dizer é que o discurso da falta de rigor do método geométrico
italiano só seria válido se as demonstrações feitas sob a sua fundamentação tivessem
contradições lógicas. Mas este não foi o caso.
É certo que começou haver um forte questionamento acerca das demonstrações feitas
na geometria algébrica pelos matemáticos italianos, mas não no sentido de que eles
cometeram contradições. Baseando-nos na pesquisa de Silke Slembek, as críticas giravam em
torno do fato de que como os matemáticos italianos utilizavam o método geométrico, as suas
definições careciam de uma melhor precisão, fazendo com que se começasse a propagar que
os seus teoremas eram excessivamente restritos, desencadeando demonstrações cheias de
lacunas. Enfim, os resultados obtidos pela escola italiana de matemática, na geometria
103

algébrica, passaram a ser equiparados muito mais a uma coleção de exemplos do que a uma
teoria propriamente dita.266 Foi essa compreensão que passou a prevalecer no círculo de
matemáticos no período das duas guerras mundiais, e, em alguns desses aspectos, inclusive
por Oscar Zariski, que, conforme já mencionamos, foi formado na escola italiana de
geometria algébrica. Esse é o discurso que ficou solidificado e que pode ser observado na
historiografia da matemática vigente, tal como na seguinte passagem do texto de Ciro
Ciliberto:

Uma das principais características da escola Italiana foi provavelmente o


contraste e a desproporção entre a profundidade das idéias desenvolvidas e
os resultados alcançados e as ferramentas técnicas relativamente ingênuas a
sua disposição, essencialmente baseadas nas engenhosas construções da
geometria projetiva. Isso causou uma considerável vunerabilidade de
argumentos e provas, direcionando ao longo dos anos, para a necessidade de
uma profunda revisão dos fundamentos e da linguagem da geometria
algébrica..267
Ou ainda em David Mumford:

A escola italiana de geometria algébrica foi criada no final do século XIX


por uma meia dúzia de gênios que eram altamente talentosos e que
pensavam profundamente e quase sempre corretamente sobre o seu campo.
Eles estenderam suas ideias sobre uma vasta nova área, especialmente o que
é chamada de teoria das superfícies algébricas [...]. Mas eles acharam as
idéias geométricas muito mais sedutoras do que os detalhes formais das
provas tinham que cobrir todos os casos especiais desagradáveis que tão
frequentemente surgem na geometria. Então, nos anos 20 e 30, eles
começaram a se desviar. Foi Zariski e, ao mesmo tempo, Weil que
começaram a domesticar sua intuição, a encontrar os princípios e técnicas
que poderiam verdadeiramente expressar a geometria, embora a
personificação do rigor matemático eventualmente devesse degenerar para a
fantasia..268
Todavia, no nosso entender, para fazer tal juízo de valor acerca do rigor geométrico da
escola italiana de geometria algébrica, algumas questões precisariam ser levantadas e

266
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.10.
267
One of the main characteristics of the Italian school has probably been the contrast and disproportion between
the deepness of the ideas developed and the results achieved and the relatively naive technical tools at its
disposal, essentially based on ingenious projective geometry constructions. This has caused considerable
vulnerability of arguments and proofs, leading in the course of the years, to the need of a profound revision of
the foundations and of the language of algebraic geometry.. Apud SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A
propôs de l’arithmétisation..., p.10.
268
The Italian school of algebraic geometry was created in the late 19th century by a half dozen geniuses who
were hugely gifted and who thought deeply and nearly always correctly about their field. They extended its
ideas over a huge new area, especially what is called the theory of algebraic surfaces […]. But they found the
geometric ideas much more seductive than the formal details of the proofs had to cover all the nasty special
cases that so often crop up in geometry. So, in the twenties and thirties, they began to go astray. It was
Zariski and, at about the same time, Weil who set about to tame their intuition, to find the principles and
techniques that could truly express the geometry while embodying the rigor without mathematics eventually
must degenerate to fantasy. MUMFORD, David. A foreword for non-mathematicians. In: PARIKH, Carol.
The unreal life of Oscar Zariski, p. xxii.
104

respondidas positivamente. Neste sentido, poderia-se indagar: Havia contradições nas


demonstrações italianas dentro do campo da geometria algébrica só porque eles utilizavam o
método geométrico? Uma teoria construída e demonstrada na década de 1920 pode ser
comparada com outra feita em décadas posteriores, notadamente nas décadas de 1940 e 1950
como se tivessem seguido os mesmos padrões de investigação, os mesmos objetivos e a
mesma linha de raciocínio? Em todos os momentos da história da matemática, o matemático
sempre fez uso dos mesmos questionamentos para provar as suas teorizações? Se ele não fez,
será que o processo de construção das teorias da matemática poderia ser feito usando as
mesmas ferramentas ou ainda uma única? Responder positivamente a essas perguntas, na
nossa concepção, passaria a imagem de que o rigor matemático sempre foi o mesmo ao longo
da construção das teorias matemáticas e assim ele seria absoluto. Algo que contradiz o
discurso de autoridade presente na própria comunidade de matemáticos, a exemplo daquele
proferido por Aleksandr Danilovich Aleksandrov e já citado aqui anteriormente, que
compreendia o rigor matemático como não absoluto269. Além disso, entendemos que o caráter
de não absolutidade do rigor é um fator que contribui justamente para a não estagnação do
conhecimento matemático, ou seja, é o que lhe ajuda a ter dinamicidade. Então, o que mudou
para que a escola italiana de matemática, em especial a de geometria algébrica, passasse a ser
vista como pouco rigorosa, sendo inclusive vista como parecendo ter alcançado o seu limite
de expansão de pesquisa diante dos resultados alcançados por meio da fundamentação dos
seus conceitos apoiados principalmente na álgebra moderna desenvolvida por Emmy
Noether?
Seguindo essa linha de raciocínio, além das divergências internas pela busca de
reconhecimento e pela prioridade nos resultados alcançados, tal como sublinhou Norbert
Schappacher, fatores políticos desempenharam “[...] um papel não negligenciável nessa
dinâmica.”270. Em convergência a esse pensamento de Norbert Schappacher, acreditamos,
baseando-nos na nossa discussão, que o posicionamento dos italianos, bem como de alguns de
seus matemáticos em relação ao regime fascista, perpassando ao período da II Guerra
Mundial, foram fatores importantes para a perda do protagonismo da tradição da escola
italiana e da sua geometria algébrica, principalmente entre as duas guerras mundiais. Talvez
tenha começado a vigorar a ideia de que trabalhar com a escola de matemática italiana, de
alguma forma, automaticamente estaria chancelando o seu próprio nome com o regime

269
ALEXSANDROV, Aleksandr Danilovich et al. Vision General de la Matemática, p. 19-20.
270
[...] a non-negligible part in this dynamic.. SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van der
Waerden’s work…, p. 249.
105

político que vigorou na Itália desde o ano de 1922 até 1944. Assim, dentro dessa conjuntura, o
exercício da geometria algébrica não poderia ser mais vinculado com a escola italiana. Parece
que é dentro desta lógica que o nome de van der Waerden não é comumente mencionado na
comunidade de matemáticos como um daqueles matemáticos que redirecionaram a geometria
algébrica. Para Norbert Schappacher, a forma como este matemático apresentou os seus
resultados se diferencia de André Weil menos por uma questão de qualidade matemática do
que de estilo. De acordo com Norbert Schappacher, “[...] vários matemáticos ou de escolas de
matemática diferentes, com objetivos e métodos diferentes, interagiram, cada um de uma
forma diferente, com a geometria algébrica italiana.”271.
Com van der Waerden não foi diferente, já que há algum tempo, deste a sua tese de
doutoramento defendida em 1926, em que tratou sobre geometria enumerativa, preocupava-se
com os estudos dos problemas da geometria algébrica.272 Assim, desejou passar algum tempo
na Itália, precisamente em Roma com Francesco Severi, vislumbrando que tal área de
conhecimento passasse a ser dominada na Alemanha, mas sob uma abordagem algébrica.
Contudo, conforme Norbert Schappacher, van der Waerden não conseguiu obter a concessão
de uma bolsa da Fundação Rockefeller, para que fosse passar uma temporada na Itália e nos
próprios Estados Unidos já nos anos de 1930, em parte devido às restrições de viagens
impostas a ele pelo regime nazista. 273 Isto só para observar que, apesar de viver já intensas
críticas, a escola de geometria algébrica ainda conseguia chamar atenção para os seus
resultados.
Contudo, independente de não ter ido à Itália e também de não ter conseguido ter um
bom relacionamento com Francesco Severi, van der Waerden, durante a primeira metade do
séc. XX, deu continuidade ao seu objetivo, ou seja, transformar o que para ele eram noções
intuitivas utilizadas pelos geômetras italianos desde a segunda metade do séc. XIX na
geometria algébrica para uma fundamentação por meio da álgebra abstrata moderna. Isso
irritou profundamente Francesco Severi, primeiro, porque van der Waerden, em seus artigos
que foram publicados antes de 1934, fez referências ocasionais à literatura italiana e a ele
próprio apenas uma única vez. E, em segundo, mas não de forma menos intensa, por causa
dos conteúdos sobre geometria algébrica que estavam sendo abordados nessa série de artigos
publicados por van der Waerden. Para se ter uma ideia de embate entre esses dois

271
[…] several different mathematicians or mathematical schools, with different goals and methods, interacted,
each in a different way, with Italian algebraic geometry.. SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B.
L. van der Waerden’s work…, p. 249.
272
FREI, Günther, TOP, Jaap, WALLING, Lynne. A short biography of B. L. van der Waerden, p.138
273
SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van der Waerden’s work…, p.264-265..
106

matemáticos, observamos que durante o Congresso Internacional de Matemáticos ocorrido em


Zurique no ano de 1932, van der Waerden questionou, talvez de forma provocativa, se
Francesco Severi poderia lhe dar “[...] uma boa definição algébrica da multiplicidade de um
ponto de intersecção de duas variedades A e B, de dimensões d e n – d, sobre uma variedade U
de dimensão n, sobre o qual o ponto em questão é simples.”274. A resposta de Francesco
275
Severi foi dada no dia seguinte, a qual foi publicada por ele em 1933. Num tom duro e
usando toda a sua autoridade já conquistada no assunto, Francesco Severi dá uma resposta a
van der Waerden, mas que pode ser estendida a Solomon Lefschetz, tal como podemos notar,
por exemplo, no seguinte trecho de seu artigo:
Eu afirmei que todos os elementos necessários para definir a noção de
"multiplicidade de intersecção" de forma completamente rigorosa e em torno
dos casos mais gerais, tem sido mais ou menos desenvolvidos, por um longo
tempo na geometria algébrica, e que a prova do princípio da conservação do
número que eu dei em 1912 é perfeitamente geral. Para estabelecer as bases
para esses conceitos de forma coberto contra todas as críticas, não é portanto
necessário, como o Sr. van der Waerden e o Sr. Lefschetz pensaram, recorrer
a topologia como um meio que possa ser particularmente adaptado para a
questão. Teoremas de Lefschetz ... e mesmo as aplicações de van der
Waerden... são sem dúvida de grande interesse já que eles demonstram
conclusivamente que os fatos fundamentais algébricos têm sua
fundamentação profunda e quase exclusiva na continuidade pura e simples
.... Como eu já disse em minha palestra no ICM [International Congress of
Mathematicians], é muita topologia que tem aprendido da álgebra e da
geometria algébrica mais do que o caminho contrário, pois essas duas
disciplinas têm servido a topologia como exemplos e inspirações..276
Não menos duro, van der Waerden deu uma resposta a Francesco Severi no seu artigo
publicado em 1934277, conforme podemos observar no seguinte trecho, que embora seja um
pouco longo, é de suma importância para melhor ratificar as nossas colocações anteriormente
expostas:

274
[...] a good algebraic definition of the multiplicity of a point of intersection of two varieties A and B, of
dimensions d and n – d, on a variety U of dimension n, on which the point in question is simple.. Apud
SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van der Waerden’s work…, p. 264.
275
SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van der Waerden’s work…, p. 264-266 e 280; FREI,
Günther, TOP, Jaap, WALLING, Lynne. A short biography of B. L. van der Waerden, p.138-140.
276
I claimed that all the elements required to define the notion of "intersection multiplicity" completely
rigorously and in the most general cases have been around, more or less well developed, for a long time in
algebraic geometry, and that the proof of the principle of the conservation of number that I gave in 1912 is
perfectly general. In order to lay the foundation for those concepts in a way covered against all criticism, it is
therefore not necessary, as Mr. van der Waerden and Mr. Lefschetz think, to resort to topology as means that
would be particularly adapted to the question. Lefschetz's theorems... and van der Waerden's applications
thereof... are undoubtedly of great interest already in that they demonstrate conclusively that fundamental
algebraic facts have their deep and almost exclusive foundation in pure and simple continuity.... As I already
said in my ICM talk, it is rather topology that has learned from algebra and algebraic geometry than the other
way around, because these two disciplines have served topology as examples and inspiration.. Apud
SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van der Waerden’s work…, p. 266.
277
Tal artigo foi intitulado Zur algebraischen geometrie VI: algebraische korrespondenzen und rationale
abbildungen.
107

O objetivo da série de meus artigos "Sobre geometria algébrica" (ZAG) não


é apenas estabelecer novos teoremas, mas também para tornar de longo
alcance os métodos e as concepções da escola geométrica italiana acessíveis
com uma fundamentação algébrica rigorosa para o círculo de leitores da
Math. Annalen. Se eu então talvez provar mais uma vez aqui o que já foi
provado mais ou menos corretamente em outros lugares, isso tem duas
razões. Em primeiro lugar, os geômetras italianos pressupõem em suas
provas um universo total de idéias e uma forma de raciocínio geométrico
com o qual, por exemplo, o homem alemão de hoje não é inteiramente
familiarizado. Mas por outro, é impossível para mim buscar, por cada
teorema, por meio de todas as provas na literatura, para verificar se há uma
entre elas que é perfeita. Prefiro formular e provar os teoremas da minha
própria forma. Assim, se eu ocasionalmente indicar deficiências na mais
ampla literatura circulada, eu não reclamo de nenhum modo que eu sou o
primeiro que agora apresenta as coisas realmente rigorosamente..278
Segundo Norbert Schappacher, van der Waerden, para construir essa sua
argumentação, fez uso de “conotações políticas”. Isto porque na época em que o artigo foi
submetido, ou seja, em 1933, o eixo Berlim-Roma ainda era algo a ser conquistado, visto que
para os interesses da Alemanha a política estrangeira dos italianos, tal como era para a
Áustria, parecia algo potencialmente ameaçador. Assim, na interpretação de Norbert
Schappacher:
[...] van der Waerden, momentaneamente esquecendo que ele próprio era um
estrangeiro na Alemanha, tendo sido criticado por um famoso colega
italiano, confortavelmente usou para o seu próprio bem o discurso da época:
que a Alemanha tinha que concentrar-se em si mesma para ser fortificada
contra ataques de estrangeiros..279
Contudo, independentemente da forte personalidade de ambos matemáticos
envolvidos nessa querela, que na nossa interpretação era mais por uma questão de vaidade e
de reconhecimento profissional do que propriamente devido a fatores políticos, van der
Waerden, na opinião de Norbert Schappacher, teve uma aproximação teórica com a escola
italiana de geometria algébrica. De certa forma, contrariamente ao que afirmava o próprio van
der Waerden, enfim, minimizando a repercussão de sua abordagem algébrica estruturalista,

278
The goal of the series of my articles "On algebraic Geometry" (ZAG) is not only to establish new theorems
but also to make the far-reaching methods and conceptions of the Italian geometric school accessible with a
rigorous algebraic foundation to the circle of readers of the Math. Annalen. If then perhaps prove again
something here which has already been proved more or less properly elsewhere, this has two reasons. Firstly,
the Italian geometers presuppose in their proofs a whole universe of ideas and a way of geometric reasoning
with which, for instance, the German man of today is not immediately familiar. But secondly, it is impossible
for me to search, for each theorem, through all the proofs in the literature in order to check whether there is
one among them which is flawless. I rather formulate and prove the theorems my own way. Thus, if I
occasionally indicate deficiencies in the most widely circulated literature, I do not claim in any way that I am
the first who now presents things really rigorously.. Apud SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B.
L. van der Waerden’s work…, p. 268.
279
[…] van der Waerden, momentarily forgetting that he was himself a foreigner in Germany, having been
criticized by a famous Italian colleague, comfortably used for his own sake the favorite of the day: that
Germany had to concentrate on herself to be fortified against attacks from abroad.. SCHAPPACHER, Norbert.
A historical sketch of B. L. van der Waerden’s work…, p. 268.
108

Norbert Schappacher afirmou que van der Waerden fez toda apresentação de seu artigo
tratando de algumas noções que eram centrais na escola geométrica italiana, a exemplo dos
sistemas lineares e de correspondência, fortemente próximo do estilo presente na literatura
italiana, recorrendo à álgebra moderna da forma mais sutil possível. Neste sentido apresentou,
por exemplo, a seguinte passagem do já mencionado artigo de van der Waerden:
os métodos de prova do presente estudo consiste primeiramente em uma
aplicação de relationstreue Spezialisierung várias vezes, e segundo em
subvariedades complementares arbitrárias de uma variedade de ambiente[...]
para completar intersecções [de uma variedade de ambiente] pelas
intersecções residuais adicionadas que não contém um dado ponto. Este
segundo método eu peguei de Severi [1933]..280
Na continuidade da sua argumentação Norbert Schappacher salientou que essas
palavras de van der Waerden poderiam servir como uma espécie de slogan para quase todos
os artigos que publicou sobre geometria algébrica, isto é, ZAG, durante os anos de 1930,
notadamente do ZAG VI ao ZAG XV, exceto o ZAG IX. Assim, concluiu:
O autor enriqueceu suas próprias motivações e recursos pelas ideias e
problemas italianos, e ele redigiu suas provas com o mais ameno uso
possível da álgebra moderna, essencialmente apenas usando pontos
genéricos e especializações para traduzir construções clássicas..281

3.1 Geometria algébrica de Oscar Zariski

As controvérsias que envolveram Federigo Enriques com o seu pupilo Francesco


Severi e deste com o seu discípulo Beniamino Segre, não tiveram lugar na relação que foi
estabelecida, a partir de 1921, entre Oscar Zariski e Guido Castelnuovo, seu principal
supervisor na aprendizagem científica da geometria algébrica. Ainda com Federigo Enriques,
teve, ao longo de suas frequentes conversas, lições de vida, e com o próprio Francesco Severi,
apesar das diferenças profissionais no campo da matemática e na política, sempre manteve um
relacionamento cordial. Oscar Zariski, um então jovem de 22 anos, ao sair da Rússia para
continuar os seus estudos em Roma, sequer imaginava que ele seria um dos responsáveis pela
transformação dos fundamentos da geometria algébrica ao construir, a partir dos anos de

280
[t]he methods of proof of present study consist firstly in a application of relationstreue Spezialisierung over
and over again, and secondly in supplementing arbitrary subvarieties of an ambient variety […] to complete
intersections [of an ambient variety] by adding residual intersections which do not contain a given point. This
second method I got from Severi [1933].. Apud SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van
der Waerden’s work…, p. 269.
281
The author enriched his own motivations and resources by Italian problems and ideas, and he wrote up his
proofs with the mildest possible use of modern algebra, essentially only using generic points and
specializations to translate classical constructions.. SCHAPPACHER, Norbert. A historical sketch of B. L. van
der Waerden’s work…, p. 269.
109

1930, poderosas ferramentas fazendo uso das ideias da álgebra moderna. 282 Isto permitiu que
ele, segundo Carol Parikh, penetrasse com mais profundidade e clareza nos problemas
clássicos trazendo um novo rigor para que os geômetras algébricos pudessem fazer as suas
provas.283
Nascido sob o nome de Ascher Zaritsky, Oscar Zariski – por sugestão de Federigo
Enriques, por soar melhor em italiano e talvez tentando omitir a sua origem judia – guardava
dentro de si múltiplas facetas que delineavam a sua capacidade de se adequar às várias
circunstâncias que às vezes foram a ele impostas pela vida e em outras porque ele mesmo as
escolheu. De personalidade curiosa, otimista, arrogante, teimosa e exigente, Oscar Zariski
teve sua vida cercada por movimentos políticos.284
De fato, conflitos já relacionados com a I Guerra Mundial fizeram com que a família
de Oscar Zariski deixasse Kobrin, hoje Bielorrússia, para se refugiar em Chernigov, Ucrânia,
em 1910. Durante os conflitos que envolveram a independência da Ucrânia, Oscar Zariski era
um aluno da graduação em filosofia no ano de 1918, da Universidade de Kiev.285 Em
Chernigov, Oscar Zariski, “[...] como um marxista convicto e hábil escritor [...]”286, ainda se
envolveu com a publicação de um jornal semanal, um dos projetos mais significativos
desenvolvidos nesta cidade. É verdade que ele não se filiou ao Partido Comunista, mas
tornou-se membro do Po’alei Zion, um partido de socialistas judeus, do qual faziam parte
tanto os proletariados quanto os estudantes. Seu objetivo, segundo Carol Parikh, não era
estabelecer uma pátria para os judeus, mas garantir igualdade de direitos independentemente
do lugar que eles escolhessem para viver, “[...] um ideal compartilhado por muitas
organizações políticas judaicas antes do Holocausto.”287.
Vivendo as dificuldades de cidades devastadas pela guerra, primeiro na Bielorrússia,
depois na Ucrânia e já demonstrando uma devoção aos estudos matemáticos, Oscar Zariski,
talvez não tendo uma dimensão real da situação política que estava se configurando na Itália,
optou em ir para esse país. Isto aconteceu em 1921, apenas um ano antes de vigorar o regime
fascista italiano de Benito Mussolini. Lá se dedicou aos estudos da geometria algébrica,

282
CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the Italian and American schools
of algebraic geometry…, p. 316; PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p.ix e 18.
283
PARIKH, Carol. Preface. In: The unreal life of Oscar Zariski, p.ix.
284
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Oscar Zariski. School of Mathematic and Statistics, [n.p.];
PARIKH, Carol. Preface. In: The unreal life of Oscar Zariski, p.ix.
285
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Oscar Zariski. School of Mathematic and Statistics, [n.p.];
PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p.ix e 9.
286
PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p.9.
287
[…] an ideal shared by many Jewish political organizations before the Holocaust.. PARIKH, Carol. The
unreal life of Oscar Zariski, p.9.
110

iniciando um casamento com esta área de conhecimento que durou mais de 60 anos. Como já
frisamos anteriormente, as crescentes censuras impostas aos judeus tornaram a vida dos
matemáticos judeus bastante complicada e com Oscar Zariski, judeu de nascimento, não foi
diferente, com um agravante, ele não era italiano. Durante a Grande Depressão, lá se
encontrava Oscar Zariski como professor assistente em Baltimore e, em 1945, encontrava-se
na Universidade de São Paulo, no Brasil, como professor visitante, quando recebeu a notícia
de que os nazistas haviam assassinado a sua família em Kobrin. Em linhas gerais, este é o
Oscar Zariski descrito nas literaturas vigentes, um homem que em seus 87 anos de vida, nas
palavras de Carol Parikh, “contribuiu para a transformação radical não apenas da geometria
algébrica, mas também do que significava ser um judeu, um comunista e um professor
universitário.”288.289
Após esse período na Itália, Oscar Zariski, em 1927, vai para a Universidade Johns
Hopkins – Baltimore – inicialmente como bolsista, depois, a partir de 1937, como professor
titular. Nesse período de cerca de dez anos, Oscar Zariski, que tinha como objeto de sua
pesquisa, na geometria algébrica, as curvas algébricas, seguindo a tradição da escola italiana,
começou a se aproximar dos métodos da álgebra moderna, bem como da teoria dos ideais e da
teoria das variedades. Oscar Zariski, até dez anos de sua saída de Roma, tinha se voltado para
os métodos topológicos empregados por Solomon Lefschetz, como o caminho que a
geometria algébrica deveria seguir.290
Solomon Lefschetz, já com reputação internacional na matemática, em 1920, saiu dos
Estados Unidos para passar uma temporada na Europa, notadamente na França e na Itália. Sua
passagem na Itália deu início a uma importante e contínua relação profissional na pesquisa em
geometria algébrica com os Estados Unidos, interrompida nos anos de 1950. Durante toda a
sua vida profissional, sempre reconheceu a sua dívida com os geômetras italianos, que
tiveram influência no seu trabalho. Por exemplo, o seu trabalho sobre superfícies hiper-
elípticas e variedades abelianas, que ganhou o Prix Bordin pela Académie des Sciences de
Paris, em 1919, foi inspirado na escola de geometria algébrica italiana, em especial, pelas
pesquisas de Federigo Enriques, Francesco Severi, Giuseppe Bagnera (1865-1927), Michele
De Franchis (1875-1946), Gaetano Scorza (1876-1939) e Carlo Rosati (1876-1929). Neste
ínterim Solomon Lefschetz começou a inserir o método topológico no estudo da geometria

288
[…] contributed to the radical transformation not only of algebraic geometry,but also of what it meant to be a
Jew, a communist, and a university professor.. PARIKH, Carol. Preface. In: The unreal life of Oscar Zariski,
p.ix.
289
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Oscar Zariski. School of Mathematic and Statistics, [n.p.];
PARIKH, Carol. Preface. In: The unreal life of Oscar Zariski, p.ix.
290
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 8.
111

algébrica, objetivando renovar a teoria dessa área de conhecimento matemático, talvez já


acalentando a ideia de que a geometria algébrica italiana, na sua concepção, tivesse alcançado
o seu limite de expansão por meio de seu método geométrico.291 Na leitura de Silke Slembek,
Solomon Lefschetz passou a ter a visão de que o método geométrico italiano mesmo sendo
impressionante, era feito sob medida para resolver problemas específicos, exigindo uma
grande habilidade prática292. Isto porque, após beber na fonte, não só notou, mas também
ficou surpreendido que os geômetras da escola italiana não haviam sequer tentado fazer uso
da topologia na geometria algébrica, esquecendo-se, certamente, de que isto foi uma opção
dos matemáticos italianos. Assim, escreveu: “[...] é um fato bastante notável que em seus
trabalhos considerações topológicas estejam quase ausentes, praticamente nunca vão além do
estudo dos ciclos lineares”293. Então, para preencher o que para ele era uma lacuna no
desenvolvimento da geometria algébrica italiana, Solomon Lefschetz formulou o seu
programa que, segundo Ciro Ciliberto e Aldo Brigaglia, foi celebrado na sua seguinte frase:
“Para plantar o arpão da topologia no corpo da baleia da geometria algébrica”294.
É perfeitamente aceitável que Solomon Lefschetz reivindicasse que a topologia fosse
mais bem valorizada, não por acaso, pela escola italiana, algo que na nossa ótica
potencializaria ainda mais a importância da sua pesquisa nessa área de conhecimento, dado
que teria o aval da escola que até então era referência na geometria algébrica. Mas, ele,
Solomon Lefschetz não poderia esperar ou mesmo acreditar que a escolha de usar ou não a
topologia na geometria algébrica poderia ser feita simplesmente pela sensibilização dos
matemáticos italianos via argumentos lógicos ou evidenciando os resultados obtidos por meio
de ferramentas topológicas. Os matemáticos italianos, pelo menos até os anos de 1920, eram
considerados os grandes mestres no desenvolvimento da geometria algébrica fazendo uso do
método geométrico. Tal como André Weil manifestou em sua discussão sobre geometria
algébrica abstrata versus clássica – feita em 1954 durante o Congresso Internacional de
Matemáticos, realizado em Amsterdam – acreditamos que as ferramentas topológicas, assim
como as transcendentais, fazendo uso das próprias palavras de André Weil, “[...] de vários

291
CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the Italian and American schools
of algebraic geometry…, p. 314-315 e 317.
292
SLEMBEK, Silke. On the arithmetization of algebraic geometry. p.288.
293
[…] a rather remarkable fact that in their work topological considerations are all but absent, practically never
going beyond the study of linear cycles. Apud CILIBERTO, Ciro, BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the
relations between the Italian and American schools of algebraic geometry…, p. 314.
294
To plant the harpoon of topology in the whale body of algebraic geometry.. Apud CILIBERTO, Ciro,
BRIGAGLIA, Aldo. Remarks on the relations between the Italian and American schools of algebraic
geometry…, p. 314.
112

tipos foram disponibilizadas e isto foi apenas uma questão de gosto individual, inclinação
pessoal ou conveniência se usá-las ou não em qualquer ocasião dada.”295
Ainda para André Weil, o alcance dos vários métodos que vinham sendo
disponibilizados na geometria algébrica estava diretamente relacionado à questão de eles
serem de cunho clássico ou abstrato. No seu entendimento, os métodos clássicos “[…] pela
sua própria natureza, dependem das propriedades dos corpos de números reais e dos
complexos; tais métodos podem ser derivados da topologia, do cálculo, das séries
convergentes, das equações diferenciais parciais ou da teoria da função analítica.”. Assim,
apresentou como exemplos desses métodos “[…] o uso do cálculo diferencial na prova do
teorema de Kronecker-Castelnuovo, das funções tetas na teoria das curvas elípticas e
variedades abelianas, da topologia na prova do ‘princípio da degeneração’.” Por sua vez
definiu métodos abstratos como sendo “[…] aqueles métodos que, sendo basicamente
algébricos, são essencialmente aplicáveis em corpos de bases arbitrárias [...]”. Neste caso,
para André Weil, tais métodos, por exemplo, poderiam ser aplicáveis na “[...] teoria dos
diferenciais do primeiro, segundo e terceiro tipos (mas certamente não a de suas integrais) e a
maior parte das provas geométricas da escola italiana.” Neste sentido, nitidamente, como não
poderia deixar de ser diferente, André Weil deixou clara a sua preferência pelo método que
ele classificou como abstrato, ao pontuar que ele poderia ser aplicado em corpos de bases
arbitrárias. E mais ainda, quando complementou que “[...] Assim, se é evidente que em todos
os casos onde uma prova abstrata está disponível, pode ser esperado que ela produza mais do
que qualquer prova clássica para o mesmo resultado.”.296
Dentro dessa ótica, fortalece-nos mais uma vez afirmar o quão importante foram os
intercâmbios estabelecidos entre os matemáticos dessa época para a construção ou
verticalização de tais métodos, inclusive no momento de fazer as suas escolhas na
continuidade do desenvolvimento de um ramo do conhecimento matemático, que nesse caso
específico, referiu-se à geometria algébrica. Esse foi, por exemplo, o resultado do contato

295
“[…] of various kinds were available and it was merely a matter of individual taste, personal inclination or
expediency whether to use them or not on any given occasion.”. WEIL, André. Abstract versus classical
algebraic geometry, p.550.
296
[...] by their very nature, depend upon the properties of the real and of the complex number-fields; such
methods may be derived from topology, calculus, convergent series, partial differential equations or analytic
function-theory.”. “[…] the use of the differential calculus in the proof of the Kronecker-Castelnuovo theorem,
of theta-functions in the theory of elliptic curves and abelian varieties, of topology in the proof of the
‘principle of degeneracy’.” “[…] those methods which, being basically algebraic, are essentially applicable to
arbitrary ground-fields […]”.“[…] theory of differentials of the first, second and third kinds (but of course not
that of their integrals) and [in] the greater part of the ‘geometric’ proofs of the Italian school.”. “[...] Thus if is
plain that in all cases where an abstract proof is available, it may be expected to yield more than any classical
proof for the same result.”. WEIL, André. Abstract versus classical algebraic geometry, p.551.
113

direto de Solomon Lefschetz com a escola italiana, em especial com a sua escola de geometria
algébrica, mais precisamente com Guido Castelnuovo, que posteriormente proporcionou uma
aproximação teórica dele com Oscar Zariski quando este último, por uma conjuntura de
fatores, resolveu ir morar nos Estados Unidos em 1927.
Oscar Zariski, desde a época em que cursava filosofia na Universidade de Kiev, já
tinha um especial interesse por teoria dos números e álgebra e, talvez pelas suas lembranças
nada felizes da época em vivia na Ucrânia, invadida pelos alemães, preferiu não ir para a
Alemanha, onde os estudos da álgebra moderna estavam se destacando principalmente por
meio de Emmy Noether. Essa sua inclinação pela álgebra foi percebida por Guido
Castelnuovo que lhe sugeriu como tema da sua tese de doutoramento, defendida em 1924, a
tradição francesa de resolubilidade por radicais, algo que estava dentro da teoria de Galois.297
Segundo Carol Parikh a pergunta a ser respondida foi: “Quando uma equação polinomial pode
ser resolvida, a partir das funções racionais de seus coeficientes, tendo radicais, em seguida
tendo mais funções racionais destes, em seguida tendo radicais novamente, e assim por
diante?”298. Ainda de acordo com Carol Parikh, após trabalhar com esse tema, Oscar Zariski
ainda se manteve interessado nele até provar a conjectura de Federigo Enriques acerca de que
uma curva geral de genus 6 não poderia ser representada por uma equação da forma f(x,y) =
0, na qual y poderia ser resolvido por radicais em termos de x. Dessa forma, para Carol
Parikh: “Mesmo cedo nesse seu desenvolvimento nós podemos ver sua tendência de combinar
ideias algébricas e topológicas com as ideias sintéticas da geometria clássica.”299 Talvez
pensando essa tendência de Oscar Zariski, Guido Castelnuovo afirmou: “Zariski, você está
aqui conosco mas não é um de nós”300. Este foi um fator que envolvia interesse por uma
determinada abordagem que a escola italiana não seguia.
Mas parece que a decisão de Oscar Zariski em sair da Itália também perpassou por
questões que envolveram principalmente uma melhor qualidade de vida, visto que no contexto
de uma Itália sob o regime fascista, a sua posição de judeu e estrangeiro tornava a sua
sobrevivência tanto profissional quanto pessoal muito difícil. Oscar Zariski, em 1925, já
estava casado com Yole Cagli e havia se tornado pai de seu primeiro filho, Raphael. Apesar

297
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Oscar Zariski. School of Mathematic and Statistics, [n.p.];
DOLD-SAMPLONIUS, Yvonne. Interview with Bartel Leendert van der Waerden, p.315; PARIKH, Carol.
The unreal life of Oscar Zariski, p. 9 e 25.
298
When can a polynomial equation be solved, starting from rational functions of its coefficients, taking,
radicals, then taking more rational functions of these, then taking radicals again, and so on?. PARIKH, Carol.
The unreal life of Oscar Zariski, p. 25.
299
Even this early in his development we can see his tendency to combine algebraic insights and topological
ideas with the synthetic ideas of classical geometry.. PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p. 25.
300
Zariski, you are here with us but are not one of us. PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p. 25.
114

de ter obtido o título de doutor e ser reconhecido como um jovem profissional talentoso, não
tinha conseguido uma posição em nenhuma universidade italiana, pois havia tomado a decisão
de não se tornar um cidadão italiano, talvez já imaginando que isto não adiantaria nada diante
dos olhos do regime fascista. Assim, passava por momentos financeiramente difíceis, apesar
de ter contado sempre com o apoio e ajuda de seus ex-professores, por exemplo, de Federigo
Enriques, que o contratou para fazer a tradução de dois livros de Dedekind. Sua esposa
trabalhava o dia inteiro e ele fazia malabarismos para dar conta de seus vários empregos. Era
uma vida difícil. Assim, parece que o interesse de Oscar Zariski por métodos algébricos e
topológicos, bem como a sua difícil situação financeira na Itália, tenham levado Guido
Castelnuovo, seu eterno mentor, a encorajá-lo explorar o método topológico de Solomon
Lefschetz que estava nos Estados Unidos. Desse modo, claramente indicava que ele deveria
sair da Itália. Guido Castelnuovo considerava que Solomon Lefschetz, por também ter
nascido na Rússia, entenderia a situação de Oscar Zariski. E assim foi, prontamente Solomon
Lefschetz deu todo o suporte para que Oscar Zariski conseguisse uma bolsa de estudos para
pós-graduados, chamada de Johnston Scholarship da Universidade de Johns Hopkins,
localizada na cidade de Baltimore.301
A partir de 1938, Oscar Zariski, segundo Silke Slembek, “[...] abandona
temporariamente os métodos topológicos [...]”302 para começar a aplicar, como fundamento
desse campo de conhecimento matemático, princípios da álgebra moderna e da teoria dos
ideais, distanciando-se definitivamente dos métodos utilizados por seus mestres italianos.
Assim, enquanto o método geométrico da escola italiana de geometria algébrica perdia quase
todo o seu prestígio junto ao cenário internacional, em meados do século XX, Oscar Zariski,
já na Universidade de Harvard desde 1947, passou a ser considerado, pelo meio acadêmico da
matemática da época, como a grande referência dessa “nova” geometria algébrica, criando
uma prestigiada escola de seguidores, na qual figuram nomes, dentre outros, do japonês
Heisuke Hironaka (1931-) e do inglês David Bryant Mumford (1937-), ganhadores da
Medalha Fields, respectivamente, nos anos de 1970 e 1974.303
Isso foi um processo paulatino e não foi para rejeitar o conhecimento italiano. Essa
afirmação é baseada, principalmente, na análise argumentativa de Silke Slembek presente na

301
PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p.21; 26-27; 31.
302
[...] abandonna temporairement les méthodes topologiques […]. SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A
propôs de l’arithmétisation..., p. 8.
303
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 8; SLEMBEK, Silke. On the
arithmetization of algebraic geometry. p.288; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Heisuke
Hironaka. School of Mathematic and Statistics, [n.p.]; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F..
David Bryant Mumford. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
115

sua tese de doutoramento, da qual trazemos dois pontos centrais, ou seja, a publicação de seu
livro sobre superfícies algébricas e a nova prova do teorema da dessingularização das
superfícies algébricas.
Ainda nos primeiros anos de 1930, Oscar Zariski recebeu um convite para escrever
uma monografia sobre a teoria das superfícies algébricas, que foi publicada em 1935. Oscar
Zariski já tinha uma ampla conscientização das fortes críticas em relação à abordagem
geométrica da geometria algébrica de seus mentores italianos. Assim, na introdução desse
livro, Oscar Zariski afirmou que o seu objetivo foi “[...] dar uma exposição sistemática da
teoria das superfícies algébricas enfatizando as inter-relações entre os vários aspectos da
teoria: álgebro-geométrica; topológica e transcendental.”304.
Oscar Zariski enfatizou que não pretendia fazer uma exposição completa desse tema,
mas de cobrir boa parte de seus pontos centrais, preocupado não apenas com os resultados
alcançados, mas também com o domínio dos métodos utilizados, uma vez que compreendia,
talvez diante das críticas sofridas pelos matemáticos italianos, que na geometria algébrica, os
métodos eram tão importantes quanto os resultados. Fez questão de frisar que devido a razões
de espaços, as suas provas, sem perder a inteligibilidade, foram apresentadas de forma suscita.
Enfatizou ainda que “[...] devido às exigências de simplicidade e rigor, as provas dadas no
texto diferem, para uma maior ou menor extensão, das provas dadas nos documentos
originais.”305. Dentro desse contexto, concordamos com Silke Slembek quando ela afirmou
que Oscar Zariski, em seu texto, não colocou em evidência a equivalência dos resultados, mas
sim os diferentes métodos utilizados306. Mais explicitamente, na nossa leitura, pareceu-nos
que Oscar Zariski entendia que os diferentes métodos eram equivalentes na medida em que
construíam resultados equivalentes, mas não produziam provas em um grau similar de rigor.
Isto pode ser observado, por exemplo, quando Oscar Zariski tratou da redução das
singularidades de uma superfície algébrica presente em seu primeiro capítulo sobre teoria e
redução das singularidades. Logo no início desse tópico, Oscar Zariski chamou atenção de
que o problema da redução das singularidades de uma curva algébrica deu origem a dois
teoremas. Eles foram:

304
[...] to give a systematic exposition of the theory of algebraic surfaces emphasing the interralations between
the various aspects of the theory: algebra-geometric, topological and transcendental.. ZARISKI, Oscar.
Preface. Algebraic surfaces, p.v.
305
[...] due to exigencies of simplicity and rigor, the proofs given in the text differ, to a greater or less extent,
from the proofs given in the original papers.. ZARISKI, Oscar. Preface. Algebraic surfaces, p.v.
306
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 15.
116

1. Uma curva algébrica pode sempre ser transformada birracionalmente


numa curva em S3 livre de singularidades e em seguida, por projeção, numa
curva plana com apenas pontos duplos comuns.
2. Uma curva algébrica plana pode sempre ser transformada por uma
transformação de CREMONA em uma curva plana com apenas pontos
múltiplos comuns.. (grifo no original). 307
Em seguida Oscar Zariski afirmou que havia numerosas provas referentes ao primeiro
teorema que ele as dividiu em dois grupos: (1) as provas geométricas, que foram produzidas
por Max Noether, George Henri Halphen (1844-1889) e Eugenio Bertini (1846-1933); (2) as
provas algébricas, baseadas na teoria da eliminação de Leopold Kronecker e na teoria
aritmética das funções algébricas de Kurt Hensel (1861-1941) e Georg Landsgerg (1865-
1912).308 Na continuidade, Oscar Zariski expôs que foi construído um teorema análogo ao já
mencionado primeiro teorema, que ele apresentou sob o seguinte enunciado:
Cada superfície algébrica f pode ser transformada birracionalmente em uma
superfície em S3, livre de singularidades e em seguida, por projeção, em
uma superfície S3 com uma única singularidade em comum, isto é, uma
curva nodal, sobre a qual existe um número finito de pontos pontiagudos
comuns e de pontos triplos para a curva, que são também pontos triplos e
triplanar para a superfície.. (grifo no original).309
As provas desse teorema, segundo Oscar Zariski, foram estabelecidas por Pasquale
Del Pezzo (1859-1936) Beppo Levi, Francesco Severi e Giacomo Albanese. Na mesma
medida, afirmou que existia o teorema análogo ao segundo teorema, o qual fora obtido por
Oscar Chisini (1889-1967). Tal teorema foi apresentado como segue:
Cada superfície algébrica f em S3 pode ser transformada por uma
transformação de CREMONA em uma superfície tendo uma única curva
múltipla em comum (isto é, com distintos planos tangentes) livre de
singularidades e possuindo um número finito de pontos pontiagudos
comuns; além disso quaisquer duas curvas múltipas distintas a qualquer de
seus pontos comuns P distintas tangentes e P não é um ponto base das
curvas polares de f..(grifo no original).310
Antes de fazer a sua análise das provas das versões análogas do primeiro e segundo
teoremas, Oscar Zariski buscou deixar bastante claras as suas intenções quando se propôs a

307
1. An algebraic curve can always be birationally transformed into a curve in S free from singularities and
then, by projection, into a plane curve with ordinary double points only; 2. A plane algebraic curve can always
be transformed by a CREMONA transformation into a plane curve with ordinary multiple points only..
ZARISKI, Oscar. Algebraic surfaces, p.17-18.
308
ZARISKI, Oscar. Algebraic surfaces, p. 18.
309
Every algebraic surface f can be birationally transformed into a surface in S, free from singularities, and
then, by projection, into a surface in S with ordinary singularities only, i.e. a nodal number of ordinary
cuspidal points and of triple points for the curve, which are also triple and triplanar points for the surface..
ZARISKI, Oscar. Algebraic surfaces, p. 18.
310
Every algebraic surface f in S can be transformed by a CREMONA transformation into a surface having only
ordinary multiple curves (i.e. with distinct tangent planes) free from singularities and possessing a finite
number of ordinary cuspidal points; in addition any two distinct multiple curves have at any of their common
points P distinct tangents and P is not a base point of the polar curves of f.. ZARISKI, Oscar. Algebraic
surfaces, p. 18.
117

fazer a discussão das várias provas que existiam desses dois teoremas referentes ao problema
da redução das superfícies algébricas. Para ele “[...] na teoria das singularidades os detalhes
das provas adquirem uma importância especial e fazem toda a diferença entre os teoremas que
são rigorosamente provados e aqueles que são apenas considerados altamente plausíveis.”311.
Assim, após uma breve discussão de cada uma dessas provas, Oscar Zariski as considerou
apenas como altamente plausíveis, visto que as provas, pela sua análise, apresentavam
algumas lacunas. Apesar de ter chegado a essa conclusão, Oscar Zariski não teve a intenção
de rejeitar ou negar a tradição italiana de matemática, uma vez que ele, pela análise de Silke
Slembek, sempre explicitamente mostrava a sua devoção pelas tradições italianas312. Isto, de
certa forma, pode ser notado ainda no prefácio desse seu livro, quando lamentou não ter
incluído nesse seu trabalho, mais uma vez por limitações de espaços, o que ele nomeou de
“dois interessantes e importantes” desenvolvimentos da teoria das superfícies algébricas. O
primeiro foi a classificação das superfícies por meio de invariantes; o outro tratava-se da
teoria das superfícies algébricas reais. Para Oscar Zariski, esses resultados foram
estabelecidos, respectiva e principalmente, graças a Federigo Enriques e a Annibale
Comessatti313.
Em 1939, Oscar Zariski apresentou uma nova versão de demonstração para o teorema
da dessingularização das superfícies algébricas, que, na concepção de Silke Slembek,
correspondeu a uma das suas principais contribuições no desenvolvimento posterior da
geometria algébrica. A importância dessa demonstração para os rumos alcançados pela
geometria algébrica não foi devido ao ineditismo da prova de Oscar Zariski, ocasionando, se
assim ela fosse, a ampliação do saber matemático ao adicionar um novo resultado no
arcabouço do seu conhecimento. Isto levou Silke Slembek a questionar os motivos que
fizeram Oscar Zariski insistir em dar uma nova demonstração para um teorema que já tinha
uma prova analítica rigorosa, publicada, em 1935, por um estudante de Solomon Lefschetz,
Robert JohnWalker (1909-1992). Portanto, para a concepção da época e do próprio Oscar
Zariski, uma demonstração livre das provas geométricas, já consideradas pouco precisas. Tal
teorema foi demonstrado pela primeira vez, em 1895, por Beppo Levi, e, segundo Silke
Slembek, foi enunciado da seguinte forma: “Para toda superfície algébrica atingida por
quaisquer singularidades, pode-se construir uma superfície que lhe é birracionalmente

311
[…] in the theory of singularities the details of the proofs acquire a special importance and make all the
difference between theorems which are rigorously proved and those which are only rendered highly plausible..
ZARISKI, Oscar. Algebraic surfaces, p. 18.
312
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 21.
313
ZARISKI, Oscar. Preface. Algebraic surfaces, p.v.
118

equivalente e que não tem pontos singulares.”314. De acordo com Silke Slembek, a prova de
Beppo Levi foi muito mais aceita devido ao prestígio de seu professor Conrado Segre do que
o próprio valor científico da sua demonstração. Contudo, isto não impediu que posteriormente
a sua prova fosse muito questionada pelos seus contemporâneos matemáticos italianos, que
forneceram várias outras demonstrações. De qualquer sorte, Oscar Zariski já havia
reconhecido a rigorosidade da prova de Robert Walker ao referido teorema e, portanto,
teoricamente, não havia mais necessidade de construir novas demonstrações em resposta às
ressalvas, principalmente feitas por ele, às provas dadas pelos matemáticos italianos. Foi
então, devido a esse contexto, que Silke Slembek questionou sobre os motivos que fizeram
com que Oscar Zariski tivesse tomado a iniciativa de dar uma nova demonstração para o
teorema da dessingularidade, a qual o levou a produzir um novo método na geometria
algébrica.315
Silke Slembek visando responder a esse seu questionamento, além de ter optado em
fazer um estudo sistemático sobre a teoria das curvas e das superfícies algébricas; buscou
também investigar sobre a adoção de novos métodos na geometria algébrica e as crescentes
críticas em relação à tradição italiana, e ainda fez um estudo sobre o que ela chamou de
programa de aritmetização proposto por Oscar Zariski. Particularmente, dentro desse
programa de aritmetização, Silke Slembek analisou alguns dos artigos de Oscar Zariski. Em
um desses artigos, publicado em 1938, sob o título de Polynomial ideals defined by infinitely
near base points, Oscar Zariski afirmou que o seu objetivo era “[...] desenvolver uma teoria
aritmética paralela com a teoria geométrica dos pontos infinitamente próximos (no plano ou
sobre uma superfície sem singularidades).”316. Silke Slembek ainda enfatizou que Oscar
Zariski se reportou várias vezes e de diversas maneiras a esse paralelismo, algo que converge
com a sua argumentação feita na publicação de seu livro sobre superfíceis algébricas em que
ele destacou, como observamos, o paralelismo dos diversos métodos diferentes existentes na
abordagem da geometria algébrica. Nesse artigo, ponderou Silke Slembek, Oscar Zariski
conseguiu desenvolver “[...] uma teoria aritmética dos pontos infinitamente próximos
modelado sobre a teoria geométrica.”317.318

314
Pour toute surface algébrique affectée de singularités quelconques, on peut construire une surface qui lui est
birationnellement équivalente et qui n'a pas de points singuliers.. SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A
propôs de l’arithmétisation..., p. 9.
315
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 9-10.
316
[…] to develop an arithmetic theory parallel to the geometric theory of infinitely near points (in the plane or
on a surface without singularities).. Apud SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de
l’arithmétisation..., p. 17.
317
[...] une théorie arithmétique des points infiniment voisins modelé sur la théorie géométrique.. SLEMBEK,
Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 18.
119

Já em seu artigo de 1939 nomeado de Some results in the arithmetic theory of


algebraic varieties, ainda conforme Silke Slembek, Oscar Zariski abordou duas propriedades
dessas variedades consideradas importantes. A primeira propriedade, segundo Silke Slembek,
correspondeu a “[...] uma das chaves da demonstração aritmética da desingularização das
superfíceis.”319. Tal propriedade, nas palavras de Silke Slembek, afirmava que: “[...] o lugar
singular de uma variedade aritmeticamente normal de dimensão r é uma subvariedade de
dimensão r – 2 no máximo. As curvas normais não têm portanto singularidades e as
superfícies normais têm apenas pontos singulares isolados.”320. A segunda propriedade, que
assegurava a ligação da “[...] teoria aritmética a sua significação e a sua interpretação
geométrica [...]”321, foi assim apresentada por Silke Slembek : “[...] o sistema dos hiperplanos
do espaço circundante corta um completo sistema linear sobre uma variedade aritmeticamente
normal.”322. Na análise desse artigo de Oscar Zariski, por meio dessas duas propriedades,
Silke Slembek reconheceu que Zariski conseguiu estabelecer “[...] igualmente as relações com
a teoria geométrica [...]”323, no entanto, observou que “[...] os conceitos e operações não
tinham mais homológos na teoria geométrica.”324. Contudo, afirmou que, mesmo não
conseguindo estabelecer mais o paralelismo entre a teoria aritmética e a teoria geométrica,
Oscar Zariski continuou sempre fazendo frequentes referências à teoria geométrica. A autora
disse que observou isto na sua formulação do conceito de variedade aritmeticamente normal e
também nas suas demonstrações325.
Assim, após fazer uma análise de cada um desses pontos, Silke Slembek chegou à
conclusão de que Oscar Zariski, ao buscar dar uma nova demonstração ao teorema da
dessingularização das superfíceis algébricas, desejava reestabelecer, diante da comunidade

318
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.11-23. SLEMBEK, Silke.
Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 18.
319
[...] une des clefs de la démonstration arithmétique de la désingularisation des surfaces.. SLEMBEK, Silke.
Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 18.
320
[...] le lieu singulier d’une variété arithmétiquement normale de dimension r est une sous-variété de
dimension r – 2 au plus. Les courbes normales n’ont donc pas de singularités et les surfaces normales n’ont
que des points singuliers isoles.. SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation...,
p.18.
321
[...] théorie arithmétique à sa signification et à son interprétation géométriques [...]. SLEMBEK, Silke.
Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.18.
322
[…] le système des hyperplans de l'espace ambient découpe un système linéaire complet sur une varieté
arithmétiquement normale.. SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.18.
323
[...] également des rapports avec la théorie géométrique […]. SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A
propôs de l’arithmétisation..., p.18.
324
[...] les concepts et opérations n’ont plus d’homologue dans la théorie géométrique.. SLEMBEK, Silke.
Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.18.
325
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.22.
120

internacional de matemática, os trabalhos dos matemáticos italianos, que eram considerados


por ele os grandes fundadores da geometria algébrica.326
Para Silke Slembek, aparentemente Oscar Zariski se esforçou em fazer transparecer
que a sua teoria intersectava com a teoria clássica da escola italiana de geometria algébrica
“[...] de modo que a teoria aritmética aparecesse como uma continuação da geometria
algébrica italiana.”327. Depois de preparar o caminho com a publicação desses artigos e mais
um outro, denominado The resolution of the singularities of an algebraic surface, também
publicado em 1939, Oscar Zariski, ainda em 1939, no seu artigo The reduction of singularities
og algebraic surfaces realizou, então, a sua demonstração aritmética para o teorema da
dessingularização das superfícies algébricas sem se servir da literatura existente.328. Tal
teorema foi assim enunciado: “Após um finito número de transformações de integrais
fechadas e quadráticas, uma superfície normal Fi é obtida a qual é livre de
singularidades.”329. Dessa forma, Silke Slembek, sob o reforço do enunciado desse teorema,
que para ela mostrava a preocupação de Oscar Zariski em evitar o uso da nova linguagem,
ratificou e ampliou as suas considerações anteriores. Neste sentido, afirmou:
Evitando a nova linguagem, Zariski reforça a impressão que os resultados
dos antigos não são perdidos nesse desenvolvimento da geometria algébrica.
Assim é dado o sentimento de um desenvolvimento cumulativo da geometria
algébrica ao curso do qual os resultados clássicos são simplesmente
transformados, mas não rejeitados. Ao mesmo tempo, o novo método
permite adicionar objetos ao estudo..330
Essa linha de raciocínio que Silke Slembek diz ter permeado o programa de
aritmetização de Oscar Zariski parece ter traços de similitudes ao pensamento de Francesco
Severi que foi manifestado em 1954. Francesco Severi fez das palavras de um então jovem e,
como fez questão de enfatizar, geômetra francês de sobrenome Samuel331, para explicitar que

326
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.21.
327
[...] de sorte que la théorie arithmétique apparaisse comme une continuation de la géométrique algébrique
italienne.. SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 22.
328
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 18; SLEMBEK, Silke. On the
arithmetization of algebraic geometry. p.294.
329
After a finite number of quadratic and integral closure transformations, a normal surface Fi is obtained
which is free from singularities. Apud SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de
l’arithmétisation..., p. 22.
330
En évitant le nouveau langage, Zariski renforce l’impressão que les résultats des anciens ne sont pas perdus
dans ce développement de la géométrique algébrique. Ainsi est donné le sentiment d’un développement
cumulatif de la géométrie algébrique au cours duquel les résultats classiques sont simplement transformés
mais pas rejetés. En même temps, la nouvelle méthode de rajouter des objets à l’étud. SLEMBEK, Silke.
Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 22.
331
Ao que tudo indica parece se tratar de Pierre Samuel (1921-2009), visto que o nome desse matemático
aparece juntamente com o de van der Waerden e Francesco Severi em um texto intitulado On the definition of
rational equivalence of cycles on a variety. Tal texto, de autoria de van der Waerden, corresponde a um
resumo de uma correspondência entre esses três matemáticos, originada de uma discussão sobre os
121

ele, assim como Samuel formulou em sua previsão, desejava fortemente que fosse
estabelecida uma união cada vez mais próxima entre o espírito geométrico da escola italiana
e a álgebra abstrata. Assim, evocou as seguintes palavras de Samuel:

Toda uma linha de pesquisadores, desde Dedekind e Weber até a C.


Chevalley, A. Weil, O. Zariski e seus alunos, mostrou que era possível
aplicar na geometria algébrica os métodos da álgebra abstrata. É igualmente
percebido que numerosos resultados obtidos pelos “lampejos” de intuição
dos italianos privilegidos se podiam demonstrar pelos métodos rigorosos da
álgebra; dessa forma, atenuou-se pouco a pouco a desconfiança constatada
pelos algebristas diante dos métodos italianos; e o tempo talvez não esteja
tão distante onde um método universal de tradução permitirá, sem alterar as
ideias gerais, de fazer colocar toda demonstração “italiana” no quadro
rigoroso da álgebra. Essa época verá provavelmente uma florescência de
recordações, de exploração “bastante análoga a super produção
contemporânea de hiper axiomatização em busca de generalização..332
No entanto, Silke Slembek detectou um caso em que para ela Oscar Zariski se
desligou, mesmo que de forma inconsciente, da tradição italiana na sua abordagem da
dessingularização das superfícies algébricas. Isto porque, na compreensão de Silke Slembek,
Guido Castelnuovo e Federigo Enriques partiram do estudo de uma classe de equivalência
birracional de variedades, visto que eles estavam convencidos que se poderia considerar “[...]
o estudo de uma classe de variedades como o estudo de um campo de racionalidade (após
Kronecker) ou de um corpo de funções algébricas (após Dedekind e Weber).”333. Enquanto
para Oscar Zariski foi “[...] justamente o estudo dos corpos das funções algébricas que
constitui a virada decisiva, permitindo ter uma visão suficientemente penetrante para permitir
resolver o problema geométrico da dessingularização.”334.
Dessa forma, é fato que abordagens diferentes determinavam perspectivas diferentes
de definir e construir uma determinada teoria no campo da geometria algébrica pelos

fundamentos feita durante o simpósio de geometria algébrica no International Congress of Mathematicians de


1954. WAERDEN, Bartel Leendert. On the definition of rational equivalence of cycles on a variety, p.545.
332
Toute une ligne de chercheurs, dépuis Dedekind et Weber jusqu’à C. Chevalley, A. Weil, O. Zariski et leurs
élèves, a montré qu’il était possible d’appliquer à la géométrie algébrique les méthodes de l’algèbre abstraite.
On s’est également apercu que maints résultats obtenus par “des éclairs d’intuition d’Italiens privilégiés” se
pouvaient démontrer par les méthodes rigoureuses de l’algèbre; ainsi s’est tempérée peu à peu la méfiance
éprouvée par les algébristes vis-à-vis des méthodes italiennes; et le temps n’est peut-être pas si éloigne où une
méthode universelle de traduction permettra, sans changer les idées générales, de faire rentrer toute
démonstration “italienne” dans le cadre rigoureux de l’algèbre. Ce temps verra probablement une floraison de
mémoires, “d’esploitation” assez analogue à la superproduction contemporaine de hyperaxiomatisateur en mal
généralisation.. Apud SEVERI, Francesco. Problèmes résolus et problèmes nouveaux dans la théorie des
systémes d’équivalence, p. 541.
333
[...] l’étude d’une classe de variétés comme l’étude d’un champ de rationnalité (d’après Kronecker) ou d’un
corps de fonctions algébriques (d’après Dedekind et Weber).. Apud SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture?
A propôs de l’arithmétisation..., p. 22.
334
[...] justement l’étude du corps des fonctions algébriques qui constitue le tournant décisif, en permettant
d'avoir une vue suffisamment pénétrante pour permettre de résoudre le problème géométrique de la
désingularisation.. SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 22.
122

matemáticos da escola italiana e da bourbakista, ainda que tais teorias e definições já viessem
sendo amplamente discutida, ou ainda que se chegasse a resultados análogos aos que há
tempo tinham sido estabelecidos. Tornou-se natural, portanto, a busca do estabelecimento de
uma nova fundamentação para a geometria algébrica, tal como aconteceu com a definição de
variedades algébricas, um dos seus principais objetos de estudo.
Se a geometria algébrica, desenvolvida pela escola italiana, que passou a ser
denominada de clássica – pelos motivos que apresentamos aqui por meio do entendimento de
André Weil – lidava essencialmente, conforme Beniamino Segre, com as variedades
algébricas dentro do corpo complexo, isto não prevalecia entre van der Waerden, Oscar
Zariski e o próprio André Weil. Para estes, ainda segundo Beniamino Segre, o estudo das
variedades algébricas era feito dentro de um corpo comutativo arbitrário, plausível de não ser
fechado algebricamente e de característica arbitrária.335
De fato, por exemplo, para Oscar Zariski, a geometria algébrica passou por mudanças
impactantes a partir da crescente inserção em seu campo de ação de ideias e métodos da
álgebra moderna. Neste caso, em mais uma explícita defesa da institucionalização do seu
programa de aritmetização, Oscar Zariski categoricamente afimou que “O que aconteceu é
que este velho e venerável setor da geometria pura sofreu (e ainda está sofrendo) um processo
de aritmetização.”336. No entanto, fez questão de enfatizar que o processo de aritmetização da
geometria algébrica, tal como foi constatado por Silke Slembek em seus estudos e ratificado
por nós, não buscava uma ruptura com o passado. Em momento algum, disse Oscar Zariski,
pretendeu mostrar que os seus antigos mestres estavam errados, muito pelo contrário. O seu
propósito foi justamente “[...] provar que nossos mestres estavam corretos.”337.
Assim, mesmo transparecendo o contrário, visto a sua forte preocupação em mostrar
um novo método e fazendo sim julgamentos acerca do rigor da escola italiana de geometria
algébrica, Oscar Zariski entendia como injustificadas as críticas que giravam em torno de um
suposto abandono da geometria ou da subordinação desse seu programa de aritmetização da
geometria algébrica em relação à descoberta do rigor. Tais críticas, na sua concepção,
surgiram por causa de algumas incompreensões acerca do objeto que ele disse pertencer à
geometria algébrica moderna, que, por sua vez, foi nomeada por André Weil como sendo
geometria algébrica abstrata. Em suas palavras, “Este objeto não é para banir a geometria ou a

335
SEGRE, Beniamino. Arithmetical properties of algebraic varieties, p. 490.
336
What has happened is that this old and venerable sector of pure geometry underwent (and is still undergoing)
a process of arithmetization.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas of abstract
algebraic geometry, p. 77.
337
[…] to prove that our fathers were right.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p.
88.
123

intuição geométrica, mas para equipar o geômetra com as ferramentas mais precisas possível
e de controles eficazes.”338. Com esta afirmação, Oscar Zariski parecia não só justificar o
estudo da geometria, mas também evidenciar a sua importância para o desenvolvimento e
para uma melhor compreensão e estruturação das teorias algébricas, que eram construídas de
forma cada vez mais abstrata. Para ele, “[...] a aritmetização da geometria algébrica representa
um avanço substancial da álgebra em si. Ao ajudar a geometria, a álgebra moderna está
ajudando a si mesma acima de tudo.”339. No entanto, mostrando certa oscilação em seus
propósitos, talvez até sem ter uma noção real de que estivesse fazendo isto, reconheceu, logo
em seguida, que:
[...] a falta de rigor na geometria algébrica criou um estado de eventos que
não podia ser tolerado indefinidamente. Efetivos controles sobre o vôo livre
da imaginação geométrica foram insuficientemente precisado, e uma
completa revisão e a aritmetização dos fundamentos da geometria algébrica
era a única solução possível. Esta tarefa preliminar fundamental da
geometria algébrica moderna pode agora ser considerada como realizada em
toda sua essência..340
Assim, apesar de Oscar Zariski reconhecer a importância da dita imaginação
geométrica para impulsionar fortemente a criação de novas teorias e novos teoremas dentro do
campo da geometria algébrica, para ele, essa imaginação geométrica não era suficiente para
conseguir produzir demonstrações que não fossem apenas altamente plausíveis. De fato, a
tarefa de Oscar Zariski era realmente árdua. Por um lado, havia o seu reconhecimento pela
escola italiana de matemática, notadamente pela sua escola de geometria algébrica e, por
outro, tinha sucumbido às críticas acerca da falta de rigor dessa sua antiga e primeira escola.
Tentando harmonizar os seus dois grandes desejos, Oscar Zariski buscou, segundo Silke
Slembek, fazer um paralelo ou um continuísmo entre as contribuições dos geômetras italianos
e o emprendimento da aritmetização. Mas, para que isto acontecesse de forma satisfatória,
para ele, fazia-se necessário que fosse realizado um processo simultâneo de generalização,
visto entender, por exemplo, que uma teoria aritmética para as variedades algébricas só seria
possível se fosse sobre corpos de bases arbitrárias e não necessariamente sobre o corpo dos
complexos. Assim, tornou-se inevitável se fazerem revisões nas definições que já faziam parte

338
This object is not to banish geometry or geometric intuition, but to equip the geometer with the sharpest
possible tools and effective controls.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p. 77.
339
[…] the arithmetization of algebraic geometry represents a substantial advance of algebra itself. In helping
geometry, modern algebra is helping itself above all.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental
ideas…, p. 89.
340
[…] the lack of rigor in algebraic geometry has created a state of affairs that could not be tolerated
indefinitely. Effective controls over the free flight of geometric imagination were badly needed, and a
complete overhauling and arithmetization of the foundations of algebraic geometry was the only possible
solution. This preliminary foundational task of modern algebraic geometry can now be regarded as
accomplished in all its essentials.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p. 77.
124

tradicionalmente no campo da geometria algébrica para que fosse possível serem instauradas
com sucesso tendências, tal como o programa de aritmetização. Esse contexto levou Oscar
Zariski a considerar que os últimos desenvolvimentos alcançados nesse campo de
conhecimento matemático foram marcados por uma ampla generalização. Na sua concepção,
isto delineou “[...] a transição da geometria algébrica clássica, enraizada no domínio
complexo, para o que podemos agora corretamente designar como geometria algébrica
abstrata, em que a ênfase está sobre os corpos de bases abstratas.”341.
Exemplificando, antes, no sentido que passou a ser denominado de clássico, a
definição de variedade algébrica, enraizada na geometria projetiva, era comumente entendida
tal como aparece na definição de Francesco Severi, que ratifica as considerações de
Beniamino Segre e Oscar Zariski, aqui discutidas anteriomente. No texto de Francesco Severi,
variedade algébrica foi definida da seguinte forma:
Chama-se forma hipersuperfície ρ de um espaço linear Sr o lugar dos pontos
de Sr que com suas coordenadas homogêneas (x0, ..., xr) satisfazem a uma
equação algébrica homogênea não idêntica f(x0, ..., xr) = 0 nas variáveis (x0,
..., xr). A forma é dita irredutível ou redutível conforme f é ao menos um
polinômio primo (no corpo complexo)..342
Já em direção ao chamado método abstrato, fazendo uso de argumentações algébricas,
inclusive da teoria dos ideais e da teoria da valorização, a definição de variedade algébrica se
centralizou notadamente na teoria dos ideais em anéis polinomiais, tal como podemos
observar, por exemplo, na definição de variedades algébricas no espaço afim apresentada por
Oscar Zariski e Pierre Samuel em uma obra publicada em 1960:
Seja k um corpo e seja K uma extensão algebricamente fechada de k. O
corpo k será referido como o corpo de base, enquanto K será chamado de
domínio das coordenadas. Dado um ideal U no anel polinomial R = k[X1,
X2, …, Xn] recordamos [...] que a variedade de U no espaço afim Ank é
aquele conjunto V de todos os pontos (x) = (x1, x2, …, xn) (xi ϵ K) tal que
f(x) = 0 para todo f em U. Denotaremos esta variedade por V (U). O fato de
que U é um ideal no anel polinomial sobre k é expressado para dizer que V,
a variedade de U, é definida sobre k. Qualquer ponto (x) de V é dito ser um
zero do ideal U. Para cada subconjunto E de Ank denotamos por F(E) o
conjunto de todos os polinômios em k[X1, X2, …, Xn], que desaparecem em

341
[…] the transition from classical algebraic geometry, rooted in the complex domain, to what we may now
properly designate as abstract algebraic geometry, where the emphasis is on abstract ground fields.. ZARISKI,
Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p. 77.
342
Chiamasi forma ρ ipersuperficie di uno spazio lineare Sr il luogo dei punti di Sr che colle loro coordinate
omogenee ( x0, ..., xr) soddisfanno ad una equazione algebrica omogenea non identica f(x0, ..., xr) = 0 nelle
variabili ( x0, ..., xr). La forma si dice irreducibile o riducibile secondoché f é o meno un polinomio primo (nel
corpo complesso).. SEVERI, Francesco. Fondamenti di geometria algebrica, p.1.
125

cada ponto (x) de E. Claramente, F(E) é um ideal. Denotaremos por I o


conjunto de todos os ideais da forma F(E), E  Ank.. (grifo no original).343
Vale salientar que, ainda no final da década de 1930, no período da escrita dos artigos
em que apresentou uma prova aritmética da resolução das singularidades de uma superfície
algébrica, Oscar Zariski, segundo Silke Slembek, já havia construído uma definição de
variedade que já era bastante diferente da definição comumente usada na época. Na sua
análise, Oscar Zariski pensava uma variedade algébrica afim ou projetiva como “[...] the locus
dos zeros dos polinômios (homogêneos).”344. Para isto, continuou Silke Slembek, Oscar
Zariski:
[…] adotou o ponto de vista que van der Waerden promoveu em seus
trabalhos, isto é, uma variedade algébrica irredutível V é dada por seus
pontos genéricos (ou geral) (1,…, n ), onde a noção de “ponto genérico” era
inspirado pela concepção de Emmy Noether de “zerogenérico [allgemeine
Nullstelle]” de um ideal primo. Se k é um corpo e se ∑ = k(1,…, n ) é um
corpo de extensão, os polinômios f(x1,…,xn) que desaparecem em (1,…, n )
formam um ideal primo ρ  k[x1,…,xn].. (grifo no original). 345
Dessa forma, sob o ponto de vista da aritmética, a revisão da definição de variedade,
afirmou Oscar Zariski, já em tons comparativos, possibilitou a revelação de aspectos que não
eram possíveis de serem vistos em sua definição clássica. Em seu próprio detalhamento:
O que eu quero discutir nesas conexões diz respeito aos seguintes dois
tópicos: (1) as modificações conjunto-teóricos na nossa concepção de uma
variedade como um conjunto de pontos, modificações que foram feitas
metodologicamente necessárias, pela introdução da bem conhecida noção de
um ponto geral de uma variedade irredutível, devido ao Emmy Noether e
van der Waerden; (2) a distinção entre as propriedades absolutas e relativas
de uma variedade, uma distinção que foi feita possível apenas pela admissão
de corpos de bases arbitrárias..346

343
Let k be a field and let K be an algebraically closed extension of k. The field k will be referred to as the
ground field, while K will be called the cöordinate domain. Given an ideal U in the polynomial ring R = k[X1,
X2, …, Xn] we recall […] that the variety of U in the affine space Ank is that set V of all points (x) = (x1, x2,
…, xn) (xi ϵ K) such that f(x) = 0 for all f in U. We shall denote this variety by V (U). The fact that U is an
ideal in the polynomial ring over k is expressed by saying that V, the variety of U, is defined over k. Any point
(x) of V is said to be a zero of the ideal U. For every subset E of Ank we denote by F(E) the set of all
polynomials in k[X1, X2, …, Xn] which vanish at every point (x) of E. Clearly, F(E) is an ideal. We shall
denote by I the set of all ideals of the form F(E), E  Ank.. ZARISKI, Oscar; PIERRE, Samuel. Commutative
algebra, p. 160.
344
“[...] the locus of zeros of (homogeneous) polynomials.. SLEMBEK, Silke. On the arithmetization of
algebraic geometry, p. 295.
345
[…] adopted the point view that van der Waerden promoted in his works, that is, an irreducible algebraic
variety V is given by its generic ( or general) point ( 1,…, n ), where the notion of “generic point” was
inspired by Emmy Noether’s conception of the “generic zero [allgemeine Nullstelle]” of a prime ideal. If k is a
field and if ∑ = k(1,…, n ) is a field extension, the polynomials f(x1,…,xn) that vanish at (1,…, n ) form a
prime ideal ρ  k[x1,…,xn].. SLEMBEK, Silke. On the arithmetization of algebraic geometry, p. 295.
346
What I want to discuss in this connection concerns the following two topics: (1) the set-theoretic
modifications in our conception of a variety as a set of points, modifications which were made
methodologically necessary by the introduction of the well-known notion of a general point of an irreducible
126

Para o primeiro tópico, Oscar Zariski argumentou que, se fosse desejado organizar as
coisas de modo que o ponto geral de uma variedade irredutível pudesse ser um ponto real da
variedade, era preciso permitir que as coordenadas do ponto fossem elementos de alguma
extensão transcendental do corpo de base. Ainda chamou atenção que era essencial dentro da
teoria das correspondências algébricas que se operasse de forma concomitante “[...] com
qualquer número finito de pontos gerais independentes de uma única e mesma variedade.”347.
Dessa forma, para Oscar Zariski, tornou-se conveniente, tal como ele disse que pensava
Herbert Busemann (1905-1994) e André Weil, fixar de uma vez por todas um domínio
universal de coordenadas, ou seja, colocar esse domínio para ser um corpo algebricamente
fechado contendo grau de transcendência infinita sobre um particular corpo de base que se
esteja interessado. Complementou a sua argumentação dizendo que:

Uma vez que este domínio universal tenha sido bem fixado, apenas tais
corpos de bases, serão permitidos que sejam subcorpos do domínio universal
e sobre os quais o domínio universal tem um grau de transcendência infinita.
Lidamos então com espaços projetivos sobre o domínio universal, e todas as
nossas variedades serão imersas nesses espaços..348
Dessa forma, Oscar Zariski expôs que se k fosse qualquer corpo de base permitido e V
fosse uma variedade que admitisse uma definição de sistema de equações com k coeficientes,
neste caso, k seria um corpo de definição da variedade V. Ressalvou ainda que qualquer
variedade V possuiria, naturalmente, uma infinitude de muitos corpos de definição. Isto
possibilitava, na sua opinião, que uma propriedade de V fosse relativa ou absoluta, conforme
a escolha do corpo de definição da variedade V. Assim, Oscar Zariski exemplificou que a
irredubilidade de uma variedade correspondia a uma propriedade relativa. Continuou
afirmando que: “Mas também temos as então chamadas variedades absolutamente irredutíveis
que são irredutíveis sobre cada um de seus corpos de definição.”349. Por fim complementou:

variety, due to Emmy Noether and van der Waerden; (2) the distinction between absolute and relative
properties of a variety, a distinction which was made possible only by the.admission of arbitrary ground
fields.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p. 78.
347
[…] with any finite number of independent general points of one and the same variety.. ZARISKI, Oscar.
Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p. 78.
348
Once this universal domain has been fixed, only such ground fields will be allowable which are subfields of
the universal domain and over which the universal domain has infinite transcendence degree. We deal then
with projective spaces over the universal domain, and all our varieties will be immersed in these spaces..
ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p. 78.
349
But we also have the so-called absolutely irreducible varieties which are irreducible over each one of their
fields of definition.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p. 78.
127

“A condição necessária e suficiente para que uma variedade V seja absolutamente irredutível
é que ela seja irredutível sobre algum corpo algebricamente fechado de definição.”350
Dentro do contexto dessa sua discussão, Oscar Zariski não deixou de tecer alguns
comentários sobre a inserção de aspectos topológicos nessa sua abordagem acerca da revisão
da definição das variedades algébricas. Em linhas gerais, afirmou que dada uma variedade V
e um corpo qualquer k também dado – o qual não seria necessariamente um corpo de
definição da variedade V – há, em relação a esse corpo k, uma topologia natural em V. Ainda,
essa topologia corresponderia àquela em que os conjuntos fechados são formados pela
intersecção da variedade V com as variedades definidas sobre k. Particularmente, quando a
própria variedade V é definida sobre k, os conjuntos fechados nessa variedade, segundo Oscar
Zariski, são ditos subvariedades de V, as quais também estariam definidas em k.351
No entanto, para Oscar Zariski, a revisão mais radical feita na definição de uma
variedade foi dada por André Weil. As chamadas variedades abstratas de André Weil,
segundo Oscar Zariski, “[...] não são definidas como subconjuntos do espaço projetivo, mas
são construídas a partir de partes de variedades comuns, partes que devem ficar juntas de
alguma forma bem definida.”352. Neste sentido, André Weil deu uma definição de variedades
abstratas tendo notademente como pontos centrais a definição de fronteiras e de
correspondências birracionais353. Para ele: “[...] as variedades V, as fronteiras F, as

350
A necessary and sufficient condition that a variety V be absolutely irreducible is that it be irreducible over
some algebraically closed field of definition.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…,
p. 78.
351
ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental ideas…, p. 79.
352
[…] are not defined as subsets of the projective space, but are built out of pieces of ordinary varieties, pieces
that must hang together in some well-defined fashion.. ZARISKI, Oscar. Algebraic geometry: the fundamental
ideas…, p. 80.
353
Para André Weil “[...] se V é qualquer variedade, nós devemos entender, por uma fronteira em V, um grupo
de variedades, contido em V e exceto V; e, se F é uma fronteira, nós devemos dizer que um ponto é em V – F,
ou que é um ponto de V – F, se ele estiver em V e não em F.”. E, ainda: Por outro lado, permitir que V, para
1   h, seja h variedades, no mesmo ou em espaços diferentes, e permitir, para 1   h, 1   h , T
seja uma correspondência birracional entre V e V; então dizemos que essas correspondências birracionais
são coerentes se, sempre que k é um corpo comum de definição para toda T e V, temos, para todos os
valores de , , , e para cada ponto genérico M de V sobre k, T (M) = T [T(M)]. Se isto é assim,
e se, nessa última relação, colocamos  = , vemos que T(M) = M; podemos então colocar M = T(M),
para 1   h, este sendo um ponto genérico deV sobre k [...] então dizemos que os pontos M1, ..., Mh são
pontos correspondentes genéricos da V sobre k pelas correspondências birracionais coerentes T; isso
implica [...] que temos k (M) = k (M) para todos  e .”. In the first place, if V is any variety, we shall
understand, by a frontier on V, a bunch of varieties, contained in V and other than V; and, if F is such a
frontier, we shall say that a point is in V – F, or that it is a point of V – F, if it is in V and not in F. On the other
hand, let the V, for 1   h, be h varieties, in the same or in different spaces; and let, for 1   h, 1  
h , T be a birational correspondence between V and V; then we say that these birational correspondences
are coherent if, whenever k is a common field of definition for all the T , and the V, we have, for all values
of , , , and for every generic point M of V over k, T (M) = T [T(M)]. If that is so, and if, in the
latter relation, we put  = , we seen that T(M) = M; we may then put M = T(M), for 1   h, this
128

correspondências birracionais T define uma variedade algébrica, da qual a V são


chamadas as representantes, e que denotamos por [V; F; T] [...]”354. Complementou
afirmando que:
[...] se, além disso, k é um corpo comum de definição para toda T, portanto
também para toda V, e se F são todas algébricas normalmente sobre k,
então dizemos que k é um corpo de definição para variedade abstrata [V;
F; T], e que este último é definido sobre k. A variedade abstrata [V; F;
T] sendo dada, sempre tem corpos de definição, isto é, qualquer corpo
comum de definição para T e para todos as componentes da F, mas há
necessidade de não existir um corpo menor de definição para ela. Contudo,
se k é um corpo de definição para uma variedade abstrata, então [...] todo
corpo contendo k é também um corpo de definição para essa variedade
abstrata.. (grifo no original).355
O fato é que, diante de todos esses elementos, para Silke Slembek, o distanciamento
de Oscar Zariski da literatura italiana significou igualmente a sua separação das
demonstrações italianas, concluindo que: “Se Zariski desejou mostrar que seus antepassados
estavam certos, o preço para salvar os seus resultados foi o abandono dos seus métodos de
pesquisa, isso causa uma ruptura irreversível com a tradição italiana.”356.
Concordamos com Silke Slembek, e, neste caso, com uma ampla literatura nesse
assunto, ao afirmar que Oscar Zariski, ao ter construído uma nova postura diante das teorias
da geometria algébrica, ao inserir no seu estudo novas ferramentas, ainda que isto não tenha
sido sua intenção, rompeu com a tradição geométrica italiana. Ainda concordamos que ele não
teria buscado essa alternativa se também não tivesse internalizado as críticas acerca da escola
italiana de geometria algébrica, e, em um sentido mais amplo, a própria escola italiana de
matemática. Contudo, só concordamos se a palavra “crítica”, pelo menos quando tiver se
referindo a ele, tiver sido utilizada no sentido de examinar, julgar, visando destacar as

being a generic point of V over k […] then we say the points M1, ..., Mh are corresponding generic points of
the V over k by the coherent birational correspondences T; this implies […] that we have k (M) = k (M)
for all  and .. WEIL, André. Foundations of algebraic geometry, p. 166.
354
[…] the varieties V, the frontiers F, and the birational correspondences T, define an abstract variety, of
which the V are called the representatives, and which we denote by por [V; F; T] [...].WEIL, André.
Foundations of algebraic geometry, p. 167.
355
[…] if, moreover, k is a common field of definition for all the T, hence also for all the V, and if the F are
all normally algebraic over k, then we say that k is a field of definition for the abstract variety [V; F; T],
and that the latter is definition over k. The abstract variety [V; F; T] being given, it always has fields of
definition, e. g. any common field of definition for the T and for all the components of the F; but there need
not exist a smallest field of definition for it. However, if k is a field of definition for an abstract variety, then
[…] every field containing k is also a field of definition for that abstract variety.. WEIL, André. Foundations
of algebraic geometry, p. 167.
356
Si Zariski a voulu montrer que ses pères avaient raison, le prix pour sauver leur résultat fut l’abandon de
leurs méthodes de recherche, ce qui causa une rupture irréversible avec la tradition italienne.. SLEMBEK,
Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.23.
129

qualidades e/ou defeitos, mas não se ela tiver sido empregada como uma forma de
desaprovação, de condenação, ou ainda de censura357.
Para além dessas questões, o fato é que o programa de aritmetização para a geometria
algébrica, construído por Oscar Zariski, fazendo uso de ideias da álgebra moderna, passou a
ser considerado pela comunidade de matemáticos adeptos a abordagem algébrica, apesar dos
embates com a escola italiana de geometria algébrica, como uma referência de novo rigor para
os fundamentos da geometria algébrica. Além das próprias publicações de Oscar Zariski,
contribuíram para esse processo os cursos e palestras que ele ministrou ao longo de sua vida,
especialmente nas localidades em que viveu após sair da Itália. Neste caso, além dos Estados
Unidos, estamos nos referindo a sua curta e intensa passagem pelo Brasil, mais
especificamente pela subsecção das ciências matemáticas da FFCL durante todo o ano de
1945.
Em janeiro de 1945, junto a sua esposa e filha, Oscar Zariski partiu para São Paulo,
onde assumira uma posição na subsecção das ciências matemáticas da FFCL.358 No entanto,
lembrou que, ao receber o convite, em um primeiro momento, não ficou muito empolgado,
pois pensou: “Qual seria a vantagem de ir para um lugar tão remoto?”359. No entanto, quando
soube que André Weil também iria para São Paulo nesse mesmo período, logo mudou de
ideia e disse: “Por que não?”360. Mas, apesar de se desfazer da dúvida, por que aceitar um
convite simplesmente por ter sabido sobre a ida de André Weil? A conveniência de poderem
trabalharem juntos era suficiente? Afinal, por que dois matemáticos, no auge de suas
carreiras, aceitaram um convite para trabalhar em São Paulo, um lugar, como o próprio Oscar
Zariski reconheceu, remoto, se ambos viviam nos Estados Unidos, já naquela época o
principal centro mundial de ensino e pesquisa em matemática?
Foi para dar conta destes – e de outros – questionamentos que desenvolvemos a
segunda parte dessa pesquisa com foco na USP, que recebeu entre 1934 e 1958,
representantes das escolas matemáticas italiana e bourbakista. De fato, entre 1934 e 1942, lá
estiveram os italianos Luigi Fantappiè e Giacomo Albanese, e depois, após a vinda de André
Weil e Oscar Zariski, ambos da escola bourbakista, vieram também os bourbakistas Jean
Dieudonné, Jean Delsarte, Laurent Schwartz (1915-2002), Charles Ehresmann, Jean-Louis

357
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: Dicionário da Língua Portuguesa, p.
582-583.
358
PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p.79.
359
What would be the point in going to such a remote place? Apud PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar
Zariski, p.79.
360
Apud PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p.79.
130

Koszul (1921-), o polonês Samuel Eilenberg (1913-1998) e o alemão Alexander


Grothendieck.
Assim, analogamente aos questionamentos anteriores, indagamos, por que outros
matemáticos da escola bourbakista continuaram a vir para a USP? E os matemáticos italianos,
quais motivos fizeram com que aceitassem a participar do processo de formação do
Departamento de Matemática da FFCL? De imediato, cabe-nos pontuar que, com essa
configuração de matemáticos, a USP entrou no cenário do intenso embate internacional, visto
na primeira parte dessa pesquisa entre a abordagem geométrica e a algébrica, protagonizado,
respectivamente, pelas escolas italiana e bourbakista, em especial circunscrito ao campo da
geometria algébrica. Esse embate foi marcado pelos problemas políticos internacionais do
período, envolvendo inclusive questões que estavam relacionadas ao fascismo, nazismo e
matemáticos de nacionalidade judia, que pareceram ter influenciado fortemente a memória e a
historiografia desse campo de conhecimento matemático. Repercutiu ainda na carreira e nos
deslocamentos feitos por alguns dos principais matemáticos que estavam participando
ativamente nesse processo desde o final do séc. XIX até a década de 1950.
Todos esses aspectos influenciaram a formação das primeiras gerações de matemáticos
brasileiros, em conformidade à sua própria identidade cultural e à sua forma de pensar e fazer
matemática, algo que não aconteceu apenas pela vinda daqueles matemáticos das escolas
italiana e bourbakista, mas também devido à própria realidade política, social e econômica
brasileira entre as décadas de 1930 e 1950. O Brasil, e São Paulo, em particular, passava por
profundas mudanças e as ideias de progresso e de modernização circulavam na sociedade.
Nesse cenário, ocorreu a quebra do monopólio do poder dos barões do café, em decorrência
da crise econômica mundial de 1929; a emergência de uma nova classe social hegemônica,
urbana e industrial; o golpe de estado liderado por Getúlio Dorneles Vargas (1882-1954), que
encerrou a política do café-com-leite da Primeira República e instaurou um governo
centralizador e autoritário, provococando a reação das “elites” ou “oligarquias” paulistas,
derrotadas sucessivamente em 1930 e em 1932. Foram estas “elites” paulistas derrotadas
politicamente que criaram a USP e a sua FFCL, em 1934, alterando substancialmente o rumo
das ciências brasileiras, introduzindo novas perspectivas para o ensino superior, que estava
centrado nas faculdades de Medicina e Direito e na Escola Politécnica. A seguir
apresentaremos este processo sumariamente, de modo a cumprir o objetivo dessa nossa
segunda parte que é caracterizar como se deu a apropriação das primeiras gerações de
matemáticos formados na USP em relação as abordagens geométricas e a algébrica
131

enfatizadas pelas escolas italiana e bourbakista, respectivamente, particularmente nas


polêmicas desenvolvidas no campo da geometria algébrica.
II PARTE
133

4 A ESCOLA MATEMÁTICA ITALIANA NA FFCL DA USP

A influência marcante do modelo da escola italiana no Curso de Matemática da FFCL


foi estabelecida com a vinda de dois de seus professores e pesquisadores para lecionar nessa
Instituição, a partir de 1934. Luigi Fantappiè (1901-1956), que ocupou a cadeira de análise
matemática e Giacomo Albanese, responsável pela cadeira de geometria. Esses dois
matemáticos foram peças chaves no processo de organização estrutural da 1ª subsecção das
ciências matemáticas pertencente à FFCL, a qual foi delineada em conformidade ao que
estava em vigência na escola matemática italiana, que, nesta época, apesar das crescentes
críticas, ainda tinha certo respaldo internacional diante dos resultados que continuavam sendo
produzidos pela sua comunidade de matemáticos, a exemplo do próprio Luigi Fantappiè.
Quando chegou ao Brasil, Luigi Fantappiè, que tinha um pouco mais de trinta anos, já
havia produzido mais de 54 trabalhos científicos361, inclusive a sua obra de maior repercussão
internacional, qual seja, a teoria dos funcionais analíticos362. Com esse prestígio, Luigi
Fantappiè teve autonomia para implementar, desde o primeiro ano de ingresso no Curso de
Matemática da FFCL, o ensino da análise matemática. Essa disciplina era inovadora para a
estrutura antes estabelecida nas escolas politécnicas ou de engenharias, nas quais escolhia-se
ver apenas o estudo das regras de derivação e integração do cálculo infinitesimal na
perspectiva de Leibniz e Newton , ou seja, o estudo do cálculo que era vigente na matemática
até o século XIX.363
No curso iniciado por Fantappiè, a partir de 1934, além de o estudo do cálculo ser
visto na perspectiva de Cauchy e seus contemporâneos, o seu ensino não visava apenas à
memorização das regras para a mera aplicabilidade dos seus conteúdos, mas principalmente à
conceitualização e fundamentação das teorias expostas num curso de cálculo. Não raramente,
para fazer esse tipo de exposição, era necessário recorrer a outras teorias, como a construção
dos números reais por meio dos cortes de Dedekind, que não eram habitualmente vistas até
então no ensino do cálculo oferecido pelas escolas superiores brasileiras. Assim, foi instituída
no Curso de Matemática da FFCL a disciplina de análise matemática como parte do que se

361
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1935, p. 297-
299.
362
Maiores detalhes sobre as atividades de Luigi Fantappiè no Brasil, em particular na USP, veja: LIMA, Eliene
Barbosa. Dos infinitésimos aos limites...; TÁBOAS, Plínio Zornoff. Influências de Fantappiè na ciência e
tecnologia brasileira. Um pouco de história oral, p. 174-184; TÁBOAS, Plínio. Z. Luigi Fantappiè: influências
na matemática brasileira: um estudo de história como contribuição para a educação matemática.
363
LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites..., p. 81.
134

passou a ser institucionalizado no conhecimento matemático a partir do séc. XIX. Contudo,


mesmo se valendo das teorias desenvolvidas a partir do séc. XIX, que conduziam o ensino da
matemática para ser essencialmente analítico, Luigi Fantappiè, convervando a sua cultura
matemática formada dentro da escola italiana, ministrava as suas aulas fazendo recorrência a
uma abordagem geométrica, uma prática que estava em consonância com a matemática que
era praticada naquela época pela bem prestigiada escola italiana.364
Neste sentido, Luigi Fantappiè, por exemplo, quando abordou sobre os números
irracionais, fez uma construção geométrica, que ele atribuiu, um tanto anacronicamente, a
Euclides, na qual os números são concebidos como grandezas. Para fazer essa exposição,
Fantappiè explicava que já em casos bastante elementares existiam segmentos retilíneos que
não são comensuráveis com a unidade adotada, como a diagonal do quadrado construída
sobre um segmento unitário. Segundo Fantappiè, Euclides, para ampliar o campo de números,
primeiramente estendeu a definição de proporcionalidade entre dois pares de grandezas. A
partir disso, Euclides, no entender de Luigi Fantappiè, deu a definição de número irracional
por abstração como “medida de grandeza incomensurável com a unidade”. Essa definição,
ainda de acordo com Fantappiè, foi aceita até meados do século XIX. Tal posição, para
Fantappiè, começou a ser modificada “quando Dedekind e Cantor procuraram estabelecer as
bases da aritmética de maneira completamente independente da geometria”.365 Apesar de ter
esse conhecimento e posteriormente definir e fazer uso da definição de Dedekind para os
números irracionais, Fantappiè não deixou de apresentar a sua definição, dita nominal de
número irracional, e notadamente geométrica , mas que para ele era análoga à definição que
foi dada por Dedekind, contudo“[...] sem a consideração prévia de medidas de grandezas.”366:
[...] os dois pares de grandezas considerados A,B e C,D têm em comum
duas classes bem definidas de números racionais: a classe H das medidas por
falta e a classe H’ das medidas por excesso, da primeira grandeza em relação
á segunda, em cada par. Esse par de classes de números racionais, chamamos
numero irracional , que diremos definido pelas duas classes H e H’. Este
numero irracional será a razão A: B ou C:D, ou a medida de A em relação a
B ou de C em relação a D.. (grifo no original). 367
Assim, parece que Fantappiè, quando fez uma incursão histórica a respeito dos
números irracionais, desde a definição geométrica supostamente dada por Euclides até a de
Dedekind, que construiu os números irracionais buscando desvinculá-los de uma referência

364
LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites..., p. 28 e 81.
365
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda...,
p.215.
366
FANTAPPIÈ, Luigi. Curso de Análise Matemática, p. 3.
367
Apud LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda...,
216.
135

geométrica, quis evidenciar mais do que uma mudança de enfoque dado a esse conceito. Na
nossa ótica, Fantappiè parecia entender que não havia problema algum em utilizar ambas as
definições, que eram, na sua concepção, essencialmente iguais, apesar de terem bases de
fundamentação diferentes, ou seja, a sua definição era geométrica e a de Dedekind
analítica.368
Enquanto Giacomo Albanese, inserido no contexto brasileiro a partir de 1936, tendo já
uma sólida e experiente carreira profissional voltada aos estudos da geometria, dedicou-se a
dar aulas e organizar a Cadeira de Geometria do curso de matemática da FFCL. De fato,
Giacomo Albanese até chegar a USP no Brasil havia exercido atividades docentes e de
pesquisas em um razoável número de universidades italianas. Isto aconteceu imediatamente
após ter recebido, em 1913, o título de doutor pela Scuola Normale Superiore de Pisa ao
defender com distinção sua tese sobre Sistemas de curvas contínuas sobre uma superfície
algébrica369, sob a supervisão de Eugenio Bertini (1846-1933), que fazia pesquisa em
geometria algébrica e projetiva. Dessa forma, ainda em 1913, iniciou a sua carreira docente
como assistente na própria Scuola Normale de Pisa, primeiro de Ulisse Dini (1845-1918) e
depois, após a morte deste, tornou-se assistente de Onorato Nicolleti (1872-1929), que
desenvolvia pesquisas na teoria das formas hermitianas. Exerceu essa função até 1919, com
um pequeno intervalo compreendido entre 1917 e 1918 para servir a Itália na I Guerra
Mundial, que havia aderido ao combate em 1915. Após reassumir a sua posição em Pisa,
transferiu-se, em 1919 para Pádua, tornando-se assistente de Francesco Severi por alguns
meses.370
Essa breve convivência com Francesco Severi, que já era uma referência na
matemática italiana, possibilitou que Giacomo Albanese desse um significativo
direcionamento à sua pesquisa, bem como na sua produção científica, que teve um sensível
aumento. Apesar desse pouco período de convivência, Francesco Severi, segundo Angelo
Guerraggio e Pietro Nastasi, influenciou um dos primeiros trabalhos de Giacomo Albanese
sobre os sistemas algébricos de curvas em superfícies algébricas, que pertence ao campo da
geometria algébrica. Posteriormente, ainda conforme esses autores, Giacomo Albanese,
dentro da geometria algébrica, voltou-se:
[...] para o problema da resolução das singularidades de uma superfície e
para a teoria de equivalências de grupos de pontos sobre uma variedade (e,

368
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda...,
p.216.
369
Em italiano Sistemi continui di curve sopra una superficie algebrica.
370
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Giacomo Albanese. School of Mathematic and Statistics,
[n.p.].
136

ainda, para a teoria de correspondências). Uma nota de sua [Trasformazione


birazionale di una Algébrica qualunque em un'altra priva di Punti
multiplicação] de 1924 apresenta um método - estendido mais tarde para
superfícies - para transformar birracionalmente uma curva plana para uma
suave no espaço, sem singularidades. Em outras notas de 1924-1927
Albanese prova as condições suficientes para que uma superfície seja
racional; ele resolve o problema da base para as curvas em uma superfície e
compromete-se com um estudo geral da geometria das variedades..371
Giacomo Albanese também produziu resultados, considerados pioneiros, no problema
de Riemann-Roch. Hodiernamente, o seu nome é lembrado em uma ferramenta da geometria
algébrica denominada variedades de Albanese, uma homenagem feita por André Weil.372
Em 1920, Giacomo Albanese deixou Pádua para assumir, na Academia Naval de
Livorno, a posição de professor em análise e álgebra, permanecendo até 1925, quando foi
nomeado para a Cadeira de Geometria Projetiva e Descritiva, assumindo o ensino de
geometria superior e de balística externa da Universidade de Catânia. A partir de 1927, foi
professor de Geometria Descritiva já pela Universidade de Palermo, cidade em que havia
concluído os seus estudos preparatórios antes de entrar na Scuola Normale Superiore de Pisa
como um estudante do curso de matemática. Em mais um deslocamento, e último antes de vir
para o Brasil, Giacomo Albanese, no período de 1929 a 1936, regeu, agora como professor
nomeado, a Cadeira de Geometria Analítica, Projetiva e Descritiva da Scuola Normale
Superiore de Pisa.373
Dentro desse contexto, tanto Luigi Fantappiè como Giacomo Albanese, foram
contratados para lecionar no curso de matemática da FFCL para que pudessem constituir
nessa Faculdade um ambiente de pesquisa matemática equiparável ao desenvolvido na
Europa, em particular na Itália. Assim, os seus encargos não ficaram restritos a ministrar
aulas, mas também a participar ativa e diretamente de todo o processo de formação desse
ambiente. Este foi o critério determinante para a contratação de professores não só do curso
de matemática, mas de todas as outras subsecções da FFCL.

371
[…] to the problem of the resolution of the singularities of a surface and to the theory of equivalences of
groups of points on a variety (and, still, to the theory of correspondences). One note of his [Trasformazione
birazionale di una curva algebrica qualunque in un'altra priva di punti multipli] from 1924 presents a method -
extended later to surfaces - to birationally transform a plane curve to a smooth one in the space, without
singularities. In other notes from 1924-1927 Albanese proves sufficient conditions in order a surface is
rational; he resolves the problem of the base for the curves on a surface and undertakes a general study of the
geometry of manifolds.. GUERRAGGIO, Angelo; NASTASI, Pietro. Italian mathematics between the Two
World Wars, p.108.
372
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Giacomo Albanese. School of Mathematic and Statistics,
[n.p.].
373
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Giacomo Albanese. School of Mathematic and Statistics,
[n.p.]; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p. 293.
137

Sob a tarefa de dar vida à recém criada FFCL, estabeleceu-se em um primeiro


momento um plano de diagnóstico. Após um ano de funcionamento da FFCL, todos os
professores contratados pelo Governo do Estado de São Paulo, na tutela do interventor
Armando de Salles Oliveira (1887-1945), foram solicitados a dar um parecer não apenas
sobre as deficiências encontradas na organização da Faculdade e das dificuldades dos alunos
durante as aulas ministradas, mas também a apontar rumos ao ensino a ser ministrado nessa
Faculdade em suas respectivas subsecções. Numa série de artigos e de palestras, dentre elas a
de Luigi Fantappiè, apontou-se, com o intuito de colaborar na qualidade do ensino superior
que estava sendo inaugurado na FFCL, que os problemas cruciais vivenciados durante o
primeiro ano de funcionamento de seus cursos foi, sobretudo, devido à organização do ensino
secundário e superior que eles encontraram como vigente no País. Dessa forma, os rumos que
foram propostos a cada uma das cadeiras que faziam parte das subsecções da FFCL foram
traçados pelos seus respectivos professores, visando superar as dificuldades dos alunos recém-
chegados na universidade em relação aos conteúdos com que estavam tendo contato pela
primeira vez e, em um sentido mais amplo, para que esses alunos pudessem intervir no
progresso social e cultural de seu país.374
Representando a Cátedra de Análise Matemática, Luigi Fantappiè, na sua
conferência375 realizada em 15 de outubro de 1935 – na sala João Mendes da Faculdade de
Direito – apontou algumas orientações tanto para o ensino secundário como para o superior.
Particularmente, em relação ao superior, dentre outras coisas, defendeu que os programas dos
cursos não fossem fixos, que pudessem ser modificados sempre que fosse necessário para
atender com mais proximidade o progresso da ciência. Era dessa forma, afirmou Fantappiè,
que as antigas universidades europeias faziam, nas quais certos cursos de nível mais elevado
não possuíam um programa previamente estabelecido. Ainda sugeriu, nas suas próprias
palavras, que “Seria, igualmente, muito útil suprimir a rigidez dos regulamentos, que tira ao
ensino tôda a maleabilidade de que necessita para atingir os fins essenciais da
Universidade.”376. Em suma, explicitamente Luigi Fantappiè dirigiu as suas argumentações
em defesa do ensino formativo377, por meio da qual, na sua concepção, o Brasil elevaria o
nível cultural de seu povo, bem como a sua pesquisa científica, equiparável aos países mais
374
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1935, [n.p.].
375
O texto dessa conferência encontra-se em: FANTAPPIÈ, Luigi. Da organização do ensino secundário e
universitário. In: FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),
1934-1935, p.34-42.
376
FANTAPPIÈ, Luigi. Da organização do ensino secundário e universitário, p.42.
377
Para Luigi Fantappiè tal ensino era o que seria destinado à formação dos cientistas, dos literatos e artistas,
além dos médicos, engenheiros, advogados, etc. Apud LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites...,
p. 31.
138

desenvolvidos da Europa até aquele momento, tais como Itália, Alemanha e França. Na sua
síntese: “[...] penso que a orientação formativa, no ensino dos ginásios e das universidades,
corresponde, ainda, a um ato de vontade com que cada país pode contribuir para dar melhor
direção à chamada civilização ocidental.”378. Em um tom que misturava questionamento e
instigação, complementou e concluiu com as seguintes palavras:
Deveremos todos nos deixar mecanizar passivamente, reduzindo a nova vida
de homens a uma pura sucessão de atos mais ou menos materiais, com
restrito objetivo? Evidentemente não! E justamente nós, latinos, devemos,
neste momento, reagir segundo a nossa índole, harmonizando novamente os
maravilhosos meios de que dispomos, pondo-os ao serviço do maior bem
estar de todos, o que deve constituir, não um fim em si mesmo, mas base
firme e segura para o vigoroso ressurgimento de novas, mais numerosas, mas
completas e mais altas personalidades..379
Os reflexos das críticas em relação à organização do ensino brasileiro em todos os seus
âmbitos pelos professores da FFCL e o desejo dos que viviam em São Paulo para que esse
Estado retomasse a sua posição dos tempos áureos da política café-com-leite dominada pela
sua elite oligárquica pareceram ter sido fortes fatores para que o seu governo solicitasse a
todos os professores da FFCL que dessem contribuições para um plano de reforma do
Regulamento da FFCL. Uma decisão que foi comunicada aos professores da FFCL na reunião
de 28 de setembro de 1936 pelo seu diretor Antônio de Almeida Prado (1889-1962), que
também exercia a função de vice- reitor da USP.
Na sala da Congregação da Faculdade de Medicina, às 10:00h, sentaram-se à mesa o
diretor da FFCL, Antônio de Almeida Prado e o secretário dessa Faculdade, Rui Bloem
(1906-1962), para dar início a reunião e conduzi-la, em forma de congregação didática380,
com os professores e assistentes científicos que formavam o corpo docente dessa Faculdade
até aquela presente data, entre eles, da matemática, Luigi Fantappiè, diretor da subsecção das
Ciências Matemáticas; Giacomo Albanese, integrado a FFCL a partir desse ano, ambos
professores; e o assistente científico, Omar Catunda. Nessa reunião, foi acordado que os
professores deveriam manifestar as suas colaborações em forma de artigos, que seriam
publicados no Anuário da Faculdade, que já se encontrava no prelo. Estabeleceu-se que os
artigos dos professores deveriam, tão somente, ter como objetivo dar um subsídio para a
realização do estudo dos problemas educacionais, tal como já havia sido feito em 1935, em
que os professores trataram das deficiências encontradas na organização da FFCL, das

378
FANTAPPIÈ, Luigi. Da organização do ensino secundário e universitário, p.42.
379
FANTAPPIÈ, Luigi. Da organização do ensino secundário e universitário, p.42.
380
Não havia, de fato, uma congregação da FFCL, visto que todos os professores, ali presente, eram contratados.
Neste caso, normalmente o Conselho Universitário funcionava como uma congregação. FACULDADE DE
FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p. 122.
139

dificuldades dos alunos e apontaram sugestões para resolver esse problema a partir de críticas
proferidas em relação à organização do ensino superior, expandidas para o profissional e
secundário, que estava vigente nessa época no Brasil.381
Em particular, o ensino de matemática superior no Brasil até a criação da FFCL se
restringia aos cursos de engenharia fornecidos pelas escolas politécnicas. A matemática que
fazia parte da formação e do exercício profissional do engenheiro consistia basicamente na
mecânica racional, na geometria analítica, descritiva e projetiva, no cálculo infinitesimal,
além da aritmética, da álgebra, da trigonometria e da geometria euclidiana ensinadas no
secundário. Era essa a formação necessária para a obtenção dos graus de bacharel e de doutor
em matemática, atribuídos nas escolas de engenharias. Por exemplo, na Escola Politécnica de
São Paulo, de 1904 a 1932, o professor catedrático Rodolfo Baptista de San Thiago (1870-
1933) adotava o livro Premiers Èlements du Calcul Infinitesimal de Hyppolite Sonnet e
dedicava a maior parte do tempo do curso que ministrava ao estudo das regras de derivação e
integração fundamentadas nas concepções infinitesimais de Newton e Leibniz. Isto acontecia
embora engenheiros como Otto de Alencar Silva (1874-1912), Manuel Amoroso Costa (1885-
1928), Theodoro Augusto Ramos (1895-1935) e Luiz de Barros Freire (1896-1963),
professores também de escolas de engenharia no Brasil, já possuíssem um conhecimento
atualizado e defendessem a modernização dos seus currículos e atividades matemáticas.382
Contudo, tratar e resolver os problemas apontados pelos professores da FFCL em
relação ao sistema educacional brasileiro vigente, não era algo tão simples dentro de um
Brasil que estava sob o poder de um regime político altamente centralizador e autoritário,
comandado pelo seu chefe maior Getúlio Vargas, muitas vezes comparado, devido às suas
ações repressivas e ditatoriais, a um autêntico representante do caudilhismo da América
espanhola, uma área estranha ao Brasil monárquico e aristocrático agrário da época da
colonização portuguesa, da mistura, enfim, da mestiçagem. Um Brasil que só conheceu,
segundo Gilberto Freire, “[...] o caudilhismo depois da República de 1889 [...]”. Assim, sem
citar nomes, Gilberto Freire383, de espírito oposicionista, vivendo todo o período da era
Vargas, escreveu:

381
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p. 122-123.
382
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda..., p.
213; SILVA, Circe Mary Silva da. Politécnicos ou matemáticos?, passim.
383
O pernambucano Gilberto de Melo Freire, bacharelado em ciências políticas e sociais, em 1920, pela
Universidade de Baylor, nos Estados Unidos, após o movimento revolucionário de 1930 que levou Getúlio
Vargas a assumir o Governo Federal, exilou-se voluntariamente, inicialmente em Portugal e depois nos
Estados Unidos, retornando ao Brasil em 1933. Vários de seus artigos, identificados como fazendo oposição
ao Governo Vargas, foram publicados nos jornais que mantinham ligações com a Aliança Nacional
Libertadora (ANL), a qual era presidida por Luís Carlos Prestes, dirigente do então Partido Comunista do
140

[...] no Brasil nem o sistema de plantação nem o sistema monárquico se


fecharam duramente à democracia social ou à igualdade política. A atual
tendência anti-democrática na política brasileira significa, como
sistematização de idéias fascistas ou quase fascistas, fato novo e contrário
não sòmente aos pendores republicanos mas às próprias tradições
desenvolvidas à sombra da monarquia e do velho sistema rural do Brasil..384
O caudilhismo, tal como considerou Sérgio Buarque de Holanda, é então colocado
numa posição oposta “à despersonalização democrática”, mas que, para ele, “[...] muitas
vêzes se encontra no mesmo círculo de idéias a que pertencem os princípios do liberalismo.”.
A tese de Sérgio Buarque de Holanda era que o caudilhismo poderia corresponder à forma
negativa dos ideais liberais, na medida em que na história nunca houve um exemplo de
movimento social sem que nele contivessem “os germes de sua negação”.385 Neste sentido
sintetizou:
A negação do liberalismo, inconsciente em um Rosas, um Melgarejo, um
Porfírio Diaz386, afirma-se hoje como corpo de doutrina no fascismo
europeu, que nada mais é do que uma crítica do liberalismo na sua forma
parlamentarista, erigida em sistema político positivo. Uma superação da
doutrina democrática só será efetivamente possível, entre nós, quando tenha
sido vencida a antítese liberalismo-caudilhismo..387
Assim, o sonho de concretizar uma nova estruturação para o ensino brasileiro, em
particular para o ensino superior, precisava, até mesmo para ser colocado em pauta, da
benevolência do Governo Federal, contrariando um discurso388 de que a USP com a sua FFCL
foram criadas sem a participação direta desse governo.
De fato, São Paulo, assim como os outros estados da Federação, desde 1930, estava
sob o comando do governo provisório de Getúlio Vargas, notadamente um modelo de
governo centralizador e autoritário. Foi nesse período que foi desencadeado o processo de
insatisfação dos paulistas.
Em São Paulo pairava o inconformismo da elite oligárquica paulista diante da
decadência, da quebra do monopólio do poder dos barões do café – afetado pela crise
econômica mundial de 1929 – que dera a esse Estado um rápido processo de industrialização

Brasil (PCB). Isto ocasionou, em 1935, a acusação indevida, por parte da política, de que Gilberto Freire
pertencia ao setor cultural da ANL, que correspondia nada menos à frente única, organizada em âmbito
nacional, que fazia oposição ao Governo de Getúlio Vargas e tinha como seus integrantes comunistas,
socialistas, socialdemocratas, antifascistas e ainda de militares descontentes. Cf. CPDOC/FGV, verbete
“Gilberto Freire”. Disponível em: http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx.
384
FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil, p.115.
385
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, p.134.
386
Juan Manuel de Rosas (1793-1871), Mariano Melgarejo Valencia (1820-1871) e Perfírio Diaz (1830-1915)
foram líderes considerados caudilhistas, respectivamente, na Argentina, Bolívia e México.
387
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, p.134-135.
388
Sobre alguns discursos de fundação da USP e da sua FFCL, veja: FREITAS, Sônia Maria de. Reminiscências.
Contribuiçãoà Memória da FFCL/USP: 1934-1954.
141

proporcionado também pela articulação da política café-com-leite, na qual se alternava no


poder ora um presidente de Minas Gerais, ora um de São Paulo. A situação acirrou-se com a
quebra desse pacto, feito desde 1913, por São Paulo, ao lançar, em 1930, a candidatura de
Júlio Prestes de Albuquerque (1882-1946), outro paulista, ao Governo Federal, abrindo
caminho para fortes reações. A bancada política mineira, sentido-se traída, alia-se à do Rio
Grande do Sul, à da Paraíba e ao Partido Democrático (PD) de São Paulo, formando a Aliança
Liberal. A união foi estabelecida para lutar contra as pretensões políticas do Partido
Republicano Paulista (PRP), reduto da classe dominante paulista. Derrotados nas eleições de
1º de março de 1930, grupos dessa Aliança, que aspiravam reformas sociais, econômicas e
políticas no País, representados, principalmente, por uma elite empresarial urbana, pela classe
média, pelos tenentistas e pelas oligarquias de outros Estados, conspiraram para a tomada do
Governo Federal. Vitoriosos, instauraram nesse mesmo ano, marcando o fim da Primeira
República, o governo provisório sob o comando de Getúlio Vargas.389
Os que viveram esse momento histórico, tal como Omar Catunda, mesmo não tendo
sido um estudioso científico no assunto, defenderam a ideia, muito comum entre os paulistas,
de que São Paulo não teve o devido respeito do governo de Vargas. Essa opinião de Omar
Catunda, externalizada numa autobiografia nunca publicada e escrita já com mais de 70 anos
– ou seja, por volta do final da década de 1970 – corresponde, como ele guardou nas suas
lembranças, ao que vivenciou e percebeu no cenário político brasileiro protagonizado por
Getúlio Vargas. É verdade que se trata de uma memória, mas não por isto menos importante
no diálogo com outras fontes de pesquisa, ainda que seja uma memória seletiva.
Dentro desse contexto histórico, o paulista Omar Catunda, nascido em Santos, fez a
leitura de que em São Paulo existia um universo cultural que destoava do resto do País, o que
provocou um contingente de divergências junto às forças que tomaram o poder, composto, em
sua maioria, por regiões mais pobres e atrasadas, mesmo aquelas provenientes dos pampas e
coxilhas, nas quais predominavam “[...] o espírito do caudilhismo, a tradição da revolta
separatista de Bento Gonçalves e dos feitos heroicos de Giuseppe e Anita Garibaldi.”390. Ao
passo que São Paulo era:
[...] o mais rico da Federação, berço da independência e dos primeiros
presidentes civis da República, com um curso jurídico já centenário, com
intensa movimentação artística desde a “semana de 22”, as famílias
tradicionais mantinham frequentes contatos com os meios culturais
europeus, viajando pelo velho continente e atraindo grandes artistas e

389
Veja: BORIS, Fausto. História do Brasil; BORIS, Fausto (org.). História da civilização brasileira: tomo III
o Brasil Republicano/ Sociedade e instituições (1889-1930), v.2.
390
CATUNDA, Omar. Memória autobiográfica, p.20.
142

pensadores. Tudo isto havia criado uma cultura mais refinada, em geral, que
no resto do país e essa cultura se transmitia para outras camadas da
população – classe média, estudantes, militares, etc..391
Esses traços culturais apresentados por Omar Catunda como presentes na formação de
São Paulo foram, para ele, determinantes para a rejeição desse Estado aos interventores
militares que foram nomeados para ali comandar, vistos como não tendo tradição política e
gozando de facilidades que muitas vezes culminavam em corrupção e nepotismo. Nas
lembranças de Catunda, esse ambiente de repulsa foi se agravando gerando o levante de 1932,
comandado por políticos e militares, inclusive pelos saudosistas do antigo regime deposto,
pertencentes ao Partido Republicano Paulista. Catunda, nessas suas lembranças, mostrou-se
compreensível e até mesmo favorável aos propósitos do levante – que exigia uma nova
Constituição para o Brasil e eleições livres – apesar de configurarem na sua liderança alguns
dos mais tradicionais elementos do Partido Republicano, despertando-lhe certa desconfiança
tal como ele diz ter acontecido com a grande parte da classe operária e dos trabalhadores do
campo, que se mantiveram indiferentes às ações do levante. Argumentou que contribuiu para
isso a hostilidade que os proletariados de outros estados tinham em relação ao enriquecimento
unilateral de São Paulo e o receio ao retorno à Primeira República, como se esses grupos não
tivessem outra visão em relação ao levante ou mesmo outros interesses. Assim, disse que o
levante de 1932 foi:

[...] sem dúvida, um levante de opinião, que empolgou toda a alta, média e a
pequena burguesia de S. Paulo, com moças e senhoras da sociedade fazendo
coleta de dinheiro nas ruas centrais, com intenso alistamento de voluntários
que seguiram para as linhas de frente e com a mobilização, inclusive, das
escolas superiores, onde professores e estudantes uniam-se para fabricar
material de guerra.. 392
Esses elementos apresentados por Omar Catunda corroboram com a tese de que os
diversos grupos paulistas, compondo um quadro heterogêneo de interesses econômicos,
sociais e políticos, formados pela elite oligárquica ou da nova elite urbana ou das camadas
médias ou ainda dos setores intelectuais repudiaram a perda da autonomia de São Paulo, que
ficou subordinado – tal como os outros Estados, com exceção de Minas Gerais – à ação de
interventores. Muito desses interventores, como no caso de São Paulo, eram de origem
nordestina, o que ocasionava revolta entre aqueles que defendiam a importância e
superioridade desse Estado diante dos outros. Assim, consideraram que o governo provisório,
com essa tomada de decisão, fez pouco caso de São Paulo quando nomeou, em um primeiro
momento, para o seu comando, o tenente, depois coronel, João Alberto Lins de Barros (1897-
391
CATUNDA, Omar. Memória autobiográfica, p.20.
392
CATUNDA, Omar. Memória autobiográfica, p. 21.
143

1955), visto como um forasteiro e plebeu pela oligarquia paulista. Os ânimos não se
acalmaram, mesmo quando Getúlio Vargas nomeou, em 1932, um paulista, Pedro Manoel de
Toledo (1860-1935), como o seu interventor, delineando que esses grupos, na verdade,
almejavam, acima de tudo, a retomada da declamada supremacia política de São Paulo. No
entanto, foi através de um discurso que proclamava uma democracia liberal, numa clara
tentativa de sensibilização de apoio de outras correntes regionais, que tais grupos – falando
em nome de toda São Paulo, como se ela fosse uma unidade fechada pelo mesmo propósito –
exigiram uma nova Constituição para o Brasil e a queda do governo provisório, dando início,
em 09 de julho, à revolução de 1932, que ficou conhecida como a Revolução
Constitucionalista de 1932 ou a Guerra Paulista, rendida três meses depois do seu início.393
Mesmo fracassando no seu intento, os revoltosos paulistas, em contrapartida,
conseguiram um novo olhar de Getúlio Vargas para São Paulo, que nomeou como interventor,
não por acaso, o paulista e civil Armando de Sales Oliveira, que era nada menos cunhado do
diretor do Jornal O Estado de São Paulo, Júlio de Mesquita Filho (1892-1969), militante da
Revolução de 1932, ambos ligados ao Partido Democrático Paulista – partido esse que
inicialmente havia apoiado a Aliança Liberal – mas que estava engajado na Revolução de
1932. Resumidamente, era alguém que, por ter essas caaracterizações, agradava tanto aos
interesses da causa da Revolta como também aos do governo provisório.394
Em suma, foi dentro desse momento da História do Brasil, caracterizado,
primordialmente, por um discurso nacionalista; fechamento do Congresso Nacional, dos
legislativos estaduais e dos partidos políticos; mas também pela criação dos Ministérios da
Saúde, do Trabalho e suas leis trabalhistas, que foi dado um novo rumo para a educação
superior brasileira e, de um modo geral, para todo o sistema educacional brasileiro. Sob a
égide de Armando Sales Oliveira, em meio à resistência de união das escolas profissionais,
sobretudo, as de Medicina, Direito e da Politécnica, foi fundada, em 1934, a USP com a sua
FFCL, por setores da elite cultural paulista, voltada, essencialmente, para a formação de
professores para o ensino básico e para a pesquisa. Ligados ao Partido Democrático Paulista,
esses setores defendiam, desde a década de 1920 e durante a Revolução de 1932, uma reforma
social alicerçada na educação da população brasileira, o que desencadearia, no entender

393
Veja: BORIS, Fausto. História do Brasil. 4; BORIS, Fausto (org.). História da civilização brasileira: tomo
III...
394
Veja: BORIS, Fausto. História do Brasil. 4; BORIS, Fausto (org.). História da civilização brasileira: tomo
III...
144

desses setores, a construção de uma cultura própria no Brasil, enfim, a construção de uma
identidade nacional.395
Foi dentro desse cenário que foi fundada a USP e a sua FFCL em 1934, tornando-se
sem sombra de dúvida, um marco para o início da transformação do ensino superior das
ciências no Brasil. Para tanto, algumas ações foram tomadas pelo governo brasileiro. A
principal delas foi a sua política de trazer, para formar o primeiro quadro de profissionais da
USP, notáveis professores estrangeiros.
Nesse contexto, havia o entendimento de que a vinda de professores estrangeiros era
uma medida necessária que, segundo Maria Amélia Dantes, visava “[...] suprir as
necessidades de um meio em que a comunidade científica era ainda muito restrita, mas
significava, também, um rompimento com o sistema de ensino até então existente no país.”396.
Particularmente, as contratações do matemático italiano Luigi Fantappiè e do físico, nascido
na Rússia, mas de cidadania italiana, Gleb Wataghin (1899-1986)397 foram feitas sob o
intermédio de Theodoro Augusto Ramos (1895-1936)398, que chefiou a missão oficial,
nomeada pelo governo paulista, para ir à Europa com o intuito de contratar professores
estrangeiros para virem trabalhar na recém criada FFCL. 399 A vinda desses professores,
notadamente aqueles provenientes da Itália, pareceu, por um lado, ter sido motivada pelas
garantias que foram oferecidas pelo governo brasileiro, tal como autonomia para estruturar e
organizar as atividades de ensino e de pesquisa na FFCL. E, por outro, pela política cultural
expansionista, a qual se confundia com as próprias ideias fascistas, empregada pela Itália de
Benito Mussolini que ainda contava, nessa conjuntura, com uma relação cordial junto ao
Governo de Getúlio Vargas. Parece que o exercício dessa política levou o governo italiano
não só a apoiar, mas principalmente, ao que se leva a crer, dar incentivo para que os seus
professores aceitassem vir para a USP.400 Isto porque, conforme notícia divulgada no jornal
Diário de São Paulo:

395
LIMA, Eliene Barbosa; Dias, André Luis Mattedi. Concepções modernas de rigor..., p. 171-172.
396
DANTES, Maria Amélia M. Fases da implantação da ciência no Brasil, p.273.
397
Para maiores detalhes sobre a presença de Gleb Wataghin no Brasil e seu campo de pesquisa, veja:
SALMERON, Roberto A. Gleb Wataghin.
398
Theodoro Augusto Ramos formou-se em Engenharia Civil pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em
1917 e, em 1918, obteve o grau de doutor em Ciências Físicas e Matemáticas após apresentar a sua tese ‘Sobre
as funções de variáveis reais’, donde mostrou já ter conhecimento da matemática dita moderna. Veja:
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1934-1936; SILVA,
Clóvis Pereira. Sobre Theodoro Augusto Ramos.
399
Veja: SILVA, Clóvis Pereira. Sobre Theodoro Augusto Ramos.
400
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1935, [n.p.];
SILVA, Circe Mary Silva da. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e a formação de professores
de matemática, p. 2-3; LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites..., p. 81; SANTOS, Viviane
Teresinha. Os seguidores do Duce: os italianos fascistas no Estado de São Paulo, p. 17.
145

o governo italiano ofereceu aos professores que quisessem vir para a USP
todas as facilidades entre as quais: contagem do tempo [de serviço] em
dobro, manutenção dos ordenados e passagens [...]. O secretário telegrafou
autorizando Theodoro Ramos a concluir os entendimentos com esses
professores.. (grifo no original).401
Enfim, se para a USP foi extremamente importante a vinda desses professores
estrangeiros, notadamente os matemáticos italianos para a subsecção das ciências matemáticas
da sua FFCL, em contrapartida, para esses professores vir para a USP significou, além das
boas condições de permanência e uma maior visibilidade do regime fascista, também a
possibilidade de exercer as suas funções de professores concomitantemente com as suas
atividades de pesquisas. Portanto, de um modo geral, foi dentro desse cenário que os
professores estrangeiros exerceram importância significativa para fazer da USP um grande
centro científico de ensino e de pesquisas em áreas como a Matemática, Física, Química e
Zoologia, afirmação que foi corroborada por André Luis Mattedi Dias quando afirmou que:
A fundação das universidades brasileiras nas primeiras décadas do século
XX foi sem dúvida um importante marco da história das ciências no Brasil,
dentre outras razões, porque também foram fundadas simultaneamente
faculdades de filosofia, unidades universitárias onde começaram a funcionar
de forma sistemática e generalizada os primeiros cursos superiores
independentes de matemática, física, química, história natural, história,
geografia, ciências sociais, filosofia e letras, com o objetivo de formar
professores especialistas nessas áreas, que atuariam ora no ensino ora na
pesquisa..402
Nessa conjuntura, a FFCL, que era uma instituição inteiramente nova em seus
propósitos educacionais e de pesquisa científica, via-se embaraçada com a farta legislação,
principalmente, a federal – mandada e representada unicamente pelo poder executivo nas
mãos de Getúlio Vargas – que não lhe permitia a devida liberdade para executar as suas ações
como realmente desejava. De qualquer sorte, pelo canal estabelecido entre o governo
provisório de Getúlio Vargas com o Governo Estadual de São Paulo, sob a intervenção de
Armando de Sales Oliveira, houve a autorização, deste último, para que a FFCL
desenvolvesse um amplo plano de reforma, de modo que ela fosse reorganizada dentro dos
padrões “mais úteis do ensino” e que, devemos completar, da pesquisa científica também.
Para isto, sugeriu-se que os professores organizassem um plano ideal, ou seja, como se não
existisse, na legislação brasileira, nenhuma lei restritiva federal ou estadual. Então, a partir da
existência desse plano, estudar-se-iam as reformas que seriam solicitadas ao Governo

401
Apud SILVA, Circe Mary Silva da. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e a formação de
professores de matemática, p. 3.
402
DIAS, André L. Mattedi. Um estudo da trajetória da historiografia, p.172.
146

Estadual, e que passariam ao Governo Federal. Tal sugestão foi aprovada por unanimidade
pelos professores que estavam presentes na reunião.403
Portanto, em um segundo momento, para dar continuidade à tarefa de dar vida à recém
criada FFCL nos seus propósitos educacionais e de pesquisa científica, todos os professores
começaram a elaborar um plano de reforma do ensino brasileiro desde o ensino secundário,
perpassando ao ensino profissional, até o nível superior.
Particularmente, Giacomo Albanese, já no Brasil em 1936 e representando, tal como
aparece no anuário desse ano, a Cadeira de Geometria (Analítica e Projetiva)404 e o ensino de
História das matemáticas da subsecção das ciências matemáticas da FFCL, apresentou, em
forma de artigo, as suas impressões e sugestões em relação ao ensino de geometria, tanto no
âmbito do secundário como no superior. Não negando as suas raízes italianas, Giacomo
Albanese, logo no início de seu artigo, salientou a importância dos estudos geométricos, visto
que para ele: “A geometria, com as suas ousadas especulações, ricas de fascínio e de fantasia,
é a ciência que, mais que qualquer outra, harmoniza o surto inventivo da inteligência e o rigor
lógico do raciocínio, o desenvolvimento da intuição e o das fôrças dedutivas de
pensamento.”405.
Ao tratar, em particular, do ensino universitário, Giacomo Albanese afirmou sobre a
necessidade de se fazer uma distinção entre o ensino propedêutico – preliminar – do ensino
realmente superior, ou seja, de formação especializada em uma dada ciência. Como defendia
os interesses da Cadeira de Geometria, Giacomo Albanese considerou que o ensino
propedêutico compreenderia a geometria analítica, a geometria projetiva e a geometria
descritiva, que fazia parte do primeiro ano do Curso de Matemática da FFCL e dos cursos de
engenharia vigentes no Brasil até então. Para ele, desde que convenientemente desenvolvidas,
essas geometrias se adequavam tanto aos candidatos que desejavam fazer estudos de
engenharia, quanto àqueles que aspirariam ao grau acadêmico em matemática e física.
Inclusive exigiu particular atenção ao ensino de geometria projetiva. Neste sentido, afirmou
que aos alunos de engenharia era suficiente tratar da parte mais geral, mesmo a parte com
orientação analítica. Giacomo Albanese entendia que, para os alunos de engenharia, era

403
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p. 123.
404
De acordo com Benedito Castrucci, Giacomo Albanese, no primeiro período que ficou no Brasil, ou seja, de
1936 a 1942, regeu também a Cadeira de Geometria Analítica e Projetiva da Escola Politécnica de São Paulo.
Essa sua saída, tal como ocorreu com Luigi Fantappiè em 1939, foi devida às circunstâncias da II Guerra
Mundial. Quando regressou, em 1946, ao Brasil, voltou lecionar apenas nessa cadeira pertencente à Escola
Politécnica de São Paulo, permanecendo até o ano de sua morte, em 1947. CASTRUCCI, Benedito. Prof.
Giacomo Albanese. Boletim da Sociedade de Matemática de São Paulo (1947), p. 2.
405
GIACOMO ALBANESE. Sôbre o ensino da geometria. In: FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E
LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p.27.
147

essencial ter o domínio dos problemas fundamentais, bem como das construções relativas às
projetividades, às cônicas e às quádricas, que poderiam ser usadas em aplicações da física e da
mecânica. Já para os alunos de matemática e física, Giacomo Albanese afirmou que o estudo
da geometria projetiva seria mais interessante se fosse desenvolvido pelo método puro de
Staudt406. Assim sentenciou: “Nenhum ramo da ciência oferece exemplo mais instrutivo de
amplas construções, rigorosamente lógicas e simples, partindo dos conceitos de ponto, reta e
plano e dos poucos postulados projetivos que a êles se referem.”. Na sua concepção, os
poucos elementos de partida da geometria projetiva fariam com que os alunos, durante o
desenvolvimento do curso, ficassem “[...] surpresos e maravilhados com as possibilidades do
pensamento humano, tão vasta e imponente é a colheita dos resultados que, aos poucos, se
vão alcançando.”.407
Para Giacomo Albanese, o ensino da geometria superior destinado unicamente aos
alunos do curso de matemática deveria ser obrigatoriamente precedido de um curso de
complemento de geometria projetiva. Na sua visão, serviria para que os alunos estudassem
alguns pontos que, por absoluta falta de tempo, não eram vistos no curso regular de geometria
projetiva, mas que não poderiam ser de forma alguma ignorados pelos estudantes, ainda que
desejassem, na opinião de Giacomo Albanese, seguir apenas o ensino de matemática no curso
superior. Neste sentido, citou como exemplo os seguintes pontos: os sistemas nulos, as
cúbicas planas e reversas, as quárticas reversas de 1ª e 2ª espécie, a geometria da reta, o
absoluto, a projeção estereográfica, a terceira polaridade, as fórmulas de Plüker, as superfícies
de terceira ordem, a superfície de Steiner e as transformações quadráticas. Esses conteúdos,
na sua opinião, seriam suficientes para cobrir um curso anual de três horas semanais. Ele
ainda afirmou que já havia trabalhado alguns desses conteúdos com os alunos do 2º e 3º anos
da matemática, incluindo os da física, embora tenha defendido no seu artigo que a geometria
superior, propriamente dita, deveria ser restrita ao curso de matemática. Fez isto no período de
agosto-outubro de 1936, ao mesmo tempo em que também manifestou interesse em
complementar os pontos trabalhados no ano seguinte, ou seja, em 1937. Giacomo Albanese
não entrou em detalhes como conseguiu fazer tais discussões no segundo ano, pois a
distribuição da grade curricular da 1ª subsecção das ciências matemática, pelo menos até

406
Em 1840, Karl Georg Christian von Staudt (1798-1867) buscou eliminar da geometria projetiva as ideias
métricas ao publicar a sua geometria da posição, na qual considerava que os fundamentos da geometria
projetiva deveriam repousar apenas sobre bases puramente geométricas. SANTOS, Maria Madalena;
GUEDES, Nadja Lisboa da Silveira. A teoria da perspectiva fundamentada pela geometria projetiva, [n.p.].
Veja ainda: ROSA, António Pereira. Geometrias não euclidianas; O’CONNOR, J.J; ROBERTSON, E.F. Karl
Georg Christian von Staudt. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
407
GIACOMO ALBANESE. Sôbre o ensino da geometria, p. 29.
148

1936, não oferecia nenhum curso de geometria para o seu segundo ano. Em tal ano, via-se
apenas: análise matemática (2ª parte); mecânica racional e física geral e experimental (2ª
parte).408
Giacomo Albanese buscou fazer todas essas considerações porque defendia a ideia de
que a geometria superior seria “[...] a parte característica do ensino geométrico [...]”, a qual
seria destinada aos alunos do terceiro ano do curso de matemática, bem como àqueles
candidatos à láurea409. Para tanto apontou que existiam várias teorias que poderiam fazer parte
de cursos anuais objetivando desenvolver o ensino de geometria superior, dentre as mais
importantes estariam:
[...] geometria dos hiperespaços, geometria dos espaços não euclidianos,
geometria algébrica, integrais abelianas e integrais de Picard, geometria
diferencial, geometria projetiva diferencial, geometria enumerativa, e, por
fim, a moderna topologia ou «analysis-situs», com as suas [...] aplicações
analíticas e geométricas..410
Ainda complementou: “São cursos que se podem alternar e, por vezes, entrelaçar, a fim de
colocar os estudantes, antes da láurea, em condições de seguir ao menos três dêles.”411
Dessa forma, pelos motivos apresentados, Giacomo Albanese esperava que já para o
ano seguinte, ou seja, 1937, conseguisse, a partir dessas suas sugestões, uma melhora na
situação vigente do estudo de geometria projetiva com a reorganização da estrutura do curso
de matemática da FFCL. Não causam estranheza essas considerações de Giacomo Albanese.
Fazendo parte da tradição da escola italiana de geometria, em particular da geometria
algébrica, Giacomo Albanese, naturalmente, buscou implementar, junto aos alunos do curso
de matemática da FFCL, o gosto pela pesquisa nessa área de conhecimento da matemática.
Assim, ao esperar tais melhorias, Giacomo Albanese projetou que a sua intenção, depois de
ministrar algumas noções, que para ele eram indispensáveis acerca da geometria
hiperespacial, era trabalhar com “[...] a geometria sôbre uma curva, segundo a moderna
orientação da escola geométrica italiana, e, até onde seja possível, desenvolver a teoria das
superfícies de Riemann e das respectivas integrais abelianas.”. Por fim, encerrou as suas
observações afirmando enfaticamente que:
[...] para maior eficiência do ensino, é necessário instituir em São Paulo,
como em tôdas as universidades européias, um gabinete de geometria com
uma coleção de modelos e de instrumentos geométricos, suficientemente

408
GIACOMO ALBANESE. Sôbre o ensino da geometria, p. 29-30; FACULDADE DE FILOSOFIA,
CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1935, p. 256.
409
GIACOMO ALBANESE. Sôbre o ensino da geometria, p. 30.
410
GIACOMO ALBANESE. Sôbre o ensino da geometria, p. 30.
411
GIACOMO ALBANESE. Sôbre o ensino da geometria, p. 30.
149

completa, que os futuros mestres de matemática não podem nem devem


desconhecer.
Tais modelos e instrumentos têm ainda valor formativo e educativo, pois
auxiliam a não fácil, antes pelo contrário, muitas vezes difícil, intuição das
figuras espaciais e convidam os jovens a observações e a construções de
notável importância..412
Para recolher as observações e sugestões feitas, em forma de artigos, pelos professores
da FFCL, foi composta – a pedido dos professores presentes na reunião – uma comissão que
foi nomeada pelo diretor dessa Faculdade, Antônio de Almeida Prado. Tal comissão, no final
de seus trabalhos, deveria apresentar um anteprojeto de reforma de ensino. Ela foi formada
pelos seguintes professores: (1) das subsecções: Ciências Sociais e Política413 (Antonio de
Sampaio Doria e Paul Arbousse-Bastide), Ciências Matemáticas (Luigi Fantappiè), Geografia
e História (Paul Vanorden Shaw), Ciências Naturais (Felix Rawitscher); (2) e das secções:
Francisco da Luz Rebêlo Gonçalves (Letras) e Jean Maugüé (Filosofia). Ainda foi nomeado
Ernesto Luiz de Oliveira Júnior, representante dos professores assistentes, para secretariar a
comissão.414
Essa comissão, após várias reuniões, apresentou uma declaração ao diretor da FFCL
informando que, por não terem conseguido um ponto de vista que contemplasse todas as
opiniões emitidas pelos seus membros, foi decidido que cada um desses membros desse, em
separado, o seu parecer.
Assim, Luigi Fantappiè, auxiliado por Ernesto Luiz de Oliveira Júnior, apresentou dois
projetos de reforma de ensino, um referente ao Regulamento da FFCL e o outro, de caráter
mais geral, para o ensino secundário. Apesar de a comissão ter feito a declaração
anteriormente citada, chamou-nos atenção que no Anuário de 1936 só consta essa proposta de
Luigi Fantappiè, levando-nos a sugerir que ela pode ter sido a única a ser apresentada ou
ainda porque tenha sido a proposta aprovada, ao que tudo indica ainda no ano de 1936, após
ser submetida ao Conselho Universitário. Isto porque no Anuário referente ao período 1937-
1938, pelo menos na subsecção de matemática, consta que no ano de 1937 o professor
Giacomo Albanese, além de ter ministrado aulas em Geometria Analítica e Projetiva para o
primeiro ano, ainda deu aulas no curso de Complementos de Geometria Projetiva, para o
segundo ano. Tal curso foi uma das suas sugestões para que fizesse parte da grade curricular
da subsecção das ciências matemáticas e que foi, dentre outras modificações que foram

412
GIACOMO ALBANESE. Sôbre o ensino da geometria, p. 31.
413
Segundo a justificativa dada pelo diretor da FFCL, Antonio de Sampaio Doria (1883-1964) foi escolhido para
fazer parte da comissão, não porque era professor da subsecção das Ciências Sociais e Política, mas por causa
do seu vasto conhecimento da legislação brasileira de ensino. FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E
LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p.124.
414
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1936, p.124.
150

propostas, acatada por Luigi Fantappiè em seu projeto de Regulamentação da FFCL. Até o
final do ano letivo de 1936 a distribuição da grade curricular da subsecção das ciências
matemáticas tinha a seguinte organização: 1º ano – Geometria (analítica e projetiva), Análise
Matemática (1ª parte), Física Geral e Experimental (1ª parte), Cálculo Vetorial; 2º ano –
Análise Matemática (2ª parte), Mecânica Racional, Física Geral e Experimental (2ª parte); 3º
ano – Análise Matemática (3ª parte), Geometria e História das Matemáticas. No projeto
apresentado por Fantappiè, em seu 17º artigo, foi colocado que ficariam sob a
responsabilidade da subsecção das ciências matemáticas os seguintes cursos: análise
matemática, complementos de análise matemática, geometria analítica e projetiva, geometria
descritiva e complementos de geometria projetiva, análise superior, geometria superior,
matemática complementar, cálculo vetorial, mecânica racional, física matemática, mecânica
superior, geodésica e astronomia, matemática para químicos e naturalistas e cálculo das
probabilidades e aplicações.415
Não há como negar que os primeiros anos de funcionamento da FFCL, em particular
da subsecção das ciências matemáticas, corresponderam, antes de qualquer coisa, a anos de
construção de uma nova realidade do ensino superior brasileiro. Mas, para isto, não era
suficiente aos professores contratados, tais como Giacomo Albanese e Luigi Fantappiè,
ministrarem aulas nas suas respectivas cadeiras ou ainda sugerirem as mudanças necessárias
na organização do curso de matemática ou ainda proferir conferências públicas416, para que
assim fosse possível estabelecer uma comunidade brasileira de matemática, apta a lecionar e a
fazer pesquisa, em conformidade aos princípios italianos de matemática. Nesse percurso,
muitas outras ações foram envolvidas.
Assim, em 1935, como uma dessas ações, foram instituídas as atividades do Seminário
Matemático e Físico, dirigido conjuntamente por Luigi Fantappiè e por Gleb Wataghin. As
atividades aconteciam semanalmente em um salão cedido pelo Instituto de Engenharia417. Um

415
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1935, p. 256;
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1936, p. 125, 128 e
217; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1937-1938, p.
157.
416
No ano de 1936, em conformidade ao que foi instituído nos anos anteriores, houve a realização de
conferências públicas pelos professores da FFCL. No primeiro semestre desse ano foram realizadas cerca de
oito conferências. No segundo semestre aconteceu a segunda série de conferências, que corresponderam a
treze conferências proferidas nos meses de setembro e outubro. A subsecção das ciências matemáticas foi
representada por Luigi Fantappiè que tratou das matemáticas na escola secundária. FACULDADE DE
FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1936, p. 94-95.
417
O Instituto de Engenharia, uma sociedade civil sem fins lucrativos e constituído por um quadro de
profissionais da engenharia, foi criado em 13 de outubro de 1916, durante reunião na Escola Politécnica de
São Paulo. Nessa reunião os engenheiros Francisco Pereira Macambira (1884-1982); Rodolpho Baptista de
San Thiago; João Pedro da Veiga Miranda (1881-1936) e Antônio Francisco de Paula Souza (1843-1917) –
151

dos objetivos desse seminário era expor em palestras ou conferências certos temas científicos
que não poderiam ser trabalhados em um curso normal, dando condições aos alunos de terem
contatos com resultados de pesquisas que estavam sendo recentemente divulgadas,
possibilitando-lhes perceber o então estado de desenvolvimento de determinadas teorias
científicas. Ainda, fazia-se a divulgação de experiências de física aplicada, bem como era
oportunizado que os estudantes, os assistentes e os professores apresentassem, para
discussões, os seus respectivos trabalhos inéditos que eles estavam desenvolvendo. Dentre as
conferências apresentadas em 1936, estava a do então assistente de Luigi Fantappiè, Omar
Catunda, na qual tratou das generalidades sobre funções elípticas, realizada em 10 de junho. A
do próprio Fantappiè, sobre os métodos modernos da teoria dos quanta, e do recém chegado
Giacomo Albanese, que, em 24 de setembro, correspondente à nona reunião do seminário,
abordou os conceitos fundamentais da geometria. Houve ainda a conferência de uma aluna do
segundo ano do curso de matemática, Yolanda Monteux, que discutiu sobre a generalização
de um teorema sobre diferenciais exatas.418
A partir de 1937, as atividades do Seminário Matemático e Físico sofreram
modificações. Sua realização passou a ter duas espécies de sessões, ou seja, uma pública,
realizada no Instituto de Engenharia, e outra privada, que acontecia na Escola Politécnica419.
Dessa forma, entendemos que essas modificações, além de ter preservado o seu intuito inicial
de fazer profundas discussões acerca das teorias que estavam sendo desenvolvidas e de
oportunizar a apresentação de trabalhos originais de seus professores, assistentes e alunos,
buscaram ainda dar uma maior visibilidade às atividades desse seminário. Isto pareceu-nos
uma medida para cativar estudantes de outros cursos para o universo da pesquisa matemática
e física.
Apesar de a matemática italiana ter priorizado a sua tradição geométrica, tal atitude
não significou a priori que os matemáticos dessa escola presentes no Brasil não tivessem
conhecimento do desenvolvimento de novas teorias ou dos novos campos institucionalizados
na matemática a partir do séc. XIX. Significou menos ainda que esse universo não tenha sido
constituído de momentos de debates em torno de outras literaturas que não fosse a italiana. Há
exemplos neste sentido. Nas sessões públicas que aconteceram no segundo semestre de 1937,

primeiro presidente desse Instituto e fundador da Escola Politécnica de São Paulo –; foram eleitos para
formarem a sua diretoria provisória, tendo a proposição de “defender os direitos da categoria e dos interesses
da classe, a regulamentação e a cooperação profissional e o posicionamento diante de questões nacionais”. Sua
primeira sede foi instalada no Largo da Sé. INSTITUTO DE ENGENHARIA. Disponível em:
<http://www.ie.org.br/site/instituto/index/id_sessao/18/id_texto/14>.
418
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1936, p. 91-92.
419
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1937-1938, p.158.
152

o professor Giacomo Albanese apresentou uma conferência sobre topologia. Já nas sessões
privadas, Omar Catunda, ainda assistente de Fantappiè, fez uma crítica do tratado de Karl
Johannes Herbert Seifert (1907-1996) e William Richard Maximilian Hugo Threlfall
denominado Lehrbuch der Topologie e Cândido Lima – a partir desse ano o segundo
assistente de Fantappiè – abordou o tratado do prof. Gaetano Scorza sobre Corpos Numéricos
e Álgebras420.
Outra ação importante foi a criação do Jornal de Matemática Pura e Aplicada,
pertencente à subsecção das ciências matemáticas, sob a administração de Ernesto Luiz de
Oliveira Júnior, então assistente científico da cadeira de geometria. No único volume
publicado em 1936, o sumário do jornal foi apresentado em duas partes. A primeira, sob o
tópico de Memórias e Notas originais, trouxe textos de Beniamino Segre e de Silvio
Cinquini421. Já na segunda parte, denominada de Notícias várias, foram publicadas as
conferências que haviam sido feitas em 1935 durante o Seminário Matemático e Físico.
Dentre elas estava a conferência Estudo dos pontos singulares das funções analíticas pelo
desenvolvimento em série de potências de autoria de Fernando Furquim de Almeida, que fazia
o segundo ano do curso de matemática. Incluía-se ainda a do aluno do terceiro ano, Cândido
Lima, que discutiu sobre o teorema de Lindemann.422
Além dessas duas ações, o diretor Antônio de Almeida Prado criou os Boletins,
correspondentes a cada cátedra, para que houvesse uma distribuição unificada e uniforme das
publicações científicas dos departamentos pertencentes à FFCL. Justificou-se que a criação
dessa variedade de publicação daria uma ampla liberdade à produção e permitiria haver
permutas como outros periódicos congêneres, algo que não seria possível, por exemplo, caso
nela fossem reunidos artigos das mais diversas áreas de conhecimento científico. Portanto,
não era apenas uma preocupação com o formato das produções inéditas.423 Nessa decisão
estava o desejo de não só construir um espaço institucionalizado de divulgação dos resultados
das pesquisas científicas realizadas pelos professores, mas também que eles estivessem
atrelados ao da FFCL como uma forma de expor para a sociedade vigente a dinamicidade
científica dessa Faculdade.

420
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1937-1938, p.158.
421
Respectivamente intitulados de “Proprietà in grande delle piane convesse” e “Sopra le equazioni funzionali
non lineari nel campo complesso”. FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de
São Paulo), 1936, p.92.
422
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p. 92-93 e 309-
310.
423
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p. 93.
153

A criação dos Boletins, em 1936, somar-se-ia ao já criado Anuário da FFCL, contudo,


com interesses diferentes, ainda que fosse exigido um grau de entrosamento entre essas duas
publicações de forma que o Anuário “[...] fosse o espelho vivo da Faculdade em seu conjunto
[...]” e o Boletins “[...] o reflexo das atividades científicas de cada cadeira.”. Para tanto,
estabeleceu-se indispensável existirem no Anuário as fichas bibliográficas de todos os artigos
que tivessem sido publicados nos diferentes Boletins no decorrer de todo o ano. Dessa forma,
o Anuário destinava-se “[...] à vida social e didática da Faculdade [...]”, enquanto o Boletins,
de tiragem máxima de mil exemplares para cada publicação, dos quais duzentos deveriam
pertencer à biblioteca da FFCL, era de caráter estritamente científico.424
Evidentemente que todas essas ações precisavam de respaldo teórico, de um ambiente
tranquilo, dotado das mais recentes obras produzidas internacionalmente sobre as teorias da
matemática. Com este propósito foi organizada a biblioteca da subsecção das ciências
matemáticas. Em diálogo com outras escolas de matemática, adquiriram-se, além de outras
aquisições diversas, a revista alemã Mathematische Annalen e a francesa Annales
Scientifiques, duas das mais importantes coleções científicas já publicadas nesse período425.
Particularmente, conforme Ciro Ciliberto e Edoardo Sernesi, Giacomo Albanese se preocupou
em suprir a biblioteca de obras sobre geometria algébrica, as quais eram frequentemente
fontes de inspiração para André Weil e Oscar Zariski, quando também estiveram na USP426.
Em linhas gerais, todas essas ações possibilitaram que a subsecção das ciências
matemáticas ganhasse corpo e reconhecimento não só junto à comunidade acadêmica, mas
também na sociedade, quando começou a formar os primeiros matemáticos, desvinculados do
curso de engenharia para o exercício do magistério e da pesquisa. Era um ambiente em que se
vivia unicamente sob o universo da escola italiana de matemática, seguindo a sua forma de
pensar e produzir matemática. Essa unicidade de influência, conforme ainda iremos discutir
mais adiante, continuou a perdurar mesmo após a saída dos matemáticos italianos,
principalmente devido aos trabalhos realizados por Omar Catunda e Benedito Castrucci, dois
dos seus discípulos mais devotados. Algo que vigorou em toda a sua plenitude até a chegada
dos primeiros integrantes da escola bourbakista na USP, a partir de 1945, quando esses
matemáticos brasileiros, assim como outros, passaram a ter as suas atividades matemáticas
também influenciadas por essa escola.

424
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1936, p. 93-94.
425
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1937-1938, p.158-
159.
426
Apud O’CONNOR, J.J; ROBERTSON, E.F. Giacomo Albanesi. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
154

5 A MATEMÁTICA BOURBAKISTA NA USP

Diferentemente da matemática da escola italiana, o Grupo Bourbaki estava interessado


em abordar a matemática numa perspectiva ampla, privilegiando os métodos algébricos e
abstratos que, segundo Leopoldo Nachbin (1922-1993), seriam “[...] justificados apenas pelas
aplicações básicas conhecidas dentro dessa ciência [...]”427.
Em linhas gerais, é esta forma de produzir a matemática que passou a influenciar o
Curso de Matemática da FFCL depois da saída dos italianos, através da vinda, nas décadas de
1940 e 1950, dos próprios integrantes do Grupo Bourbaki para ministrar cursos na subsecção
das ciências matemáticas da FFCL. Eles foram: Jean Dieudonné, André Weil, Jean Delsarte,
Laurent Schwartz, Charles Ehresmann, Jean-Louis Koszul, o polonês Samuel Eilenberg e o
alemão Alexander Grothendieck, bem como de Oscar Zariski, que nesse período já
compartilhava com as ideias matemáticas desse Grupo428. O primeiro deles a chegar ao Brasil
foi André Weil.
Em 1944, André Weil lecionando, como já foi mencionado anteriormente, em
péssimas condições na Universidade de Lehigh, foi apresentado ao então diretor da FFCL,
André Dreyfus (1897-1952), por intermédio de seu amigo, o sociólogo Claude Lévi-Strauss
(1908-2009), que havia ensinado na FFCL no período de 1935 a 1938. André Dreyfus estava
realizando uma viagem aos Estados Unidos e ao Canadá tanto para proferir conferências
acerca de suas pesquisas como também para contratar professores para ocupar algumas
cadeiras da FFCL que estavam vagas devido à saída de alguns professores, como, por
exemplo, dos matemáticos italianos em decorrência ao advento da II Guerra Mundial. Mas, ao
que tudo indica, não se tratava apenas de fazer contratações para preencher o quadro de
professores da FFCL, em particular da subsecção das ciências matemáticas, havia interesse de
que os matemáticos estivessem em níveis equiparáveis de relevância aos dos matemáticos
italianos, para que pudessem dar continuidade ao ambiente de ensino e pesquisa que já havia
sido institucionalizado por esses matemáticos, ainda que fosse sob uma perspectiva diferente.
Caso contrário, André Dreyfus não teria estabelecido contatos nos Estados Unidos, local para
onde haviam ido boa parte dos matemáticos hostilizados, de alguma forma, pela eclosão do
conflito mundial. Assim, Lévi-Strauss e André Dreyfus tiveram a ideia de convidar André
Weil para ocupar uma dessas cadeiras, notadamente a vaga deixada por Giacomo Albanese,

427
NACHBIN, Leopoldo. Ciência e sociedade, p.40.
428
PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p.65.
155

cuja nomeação foi concretizada logo depois, mas não sem antes passar por impedimentos.
André Weil vivia tempos difíceis, sem nenhuma perspectiva de melhora em seu horizonte.429
Março de 1941, André Weil e sua esposa Eveline chegavam à Nova Iorque. No seu
íntimo trazia a expectativa de que em solo americano finalmente deixaria para trás os
momentos difíceis que havia vivido e que envolviam questões de ordem filosóficas, religiosas
e políticas, impedindo que desse continuidade a sua vida profissional na França,
principalmente com o advento da II Guerra Mundial. Os Estados Unidos tornaram-se a
promessa de garantia de um brilhante futuro profissional, mas não demorou muito para que
percebesse o quanto seria difícil essa sua primeira estadia nesse país. Primeiro descobriu que
as suas funções na New School eram na verdade fictícias, uma manobra da Fundação
Rockefeller para viabilizar o seu visto de entrada. O salário de 2500 dólares prometido quem
pagaria, na verdade, era a própria Fundação, que possuía um amplo programa para salvar os
cientistas franceses. Existia todo um temor que os alemães cometessem dentro da França a
mesma atrocidade que haviam feito contra a elite intelectual da Polônia, principalmente a elite
judia.430
Muito provavelmente já conhecendo o histórico de André Weil, o bioquímico, de
origem canadense, Louis Rapkine (1904-1948), que estava em Nova Iorque, colocou o nome
dele na lista que preparou e entregou para a Fundação Rockefeller com os nomes de cientistas
franceses, judeus ou não, que deveriam sair da França o quanto antes possível. Era uma
situação desconfortável para André Weil, pois se encontrava sem nenhuma obrigação e
também instável, uma vez que os seus proventos recebidos pela Fundação seriam feitos pelo
tempo total de dois anos. André Weil se convenceu de que seria uma situação provisória. Mas
nada melhorou. Seus pais e sua irmã Simone Weil permaneceram na França, tornando-se
outra fonte de suas preocupações. Ainda, no mesmo mês que havia chegado a Nova Iorque, a
Fundação Rockefeller recebeu uma carta do Haverford College431. Nela, tal instituição
argumentava que, para André Weil obter experiência no sistema de ensino americano deveria,
gratuitamente, já que recebia pela Fundação, ministrar aulas em seu Departamento de
Matemática. André Weil tentou resistir ao convite dessa instituição, pois não lhe parecia uma
proposta muito generosa, mas foi convencido de que deveria aceitar. Algo que fez sem se

429
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 193-194 ; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E
LETRAS (Universidade de São Paulo),1934-1935, p.218; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E
LETRAS (Universidade de São Paulo),1937-1938, p. 209; PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas
Bourbaki na Universidade de São Paulo, p.233-234 e 236-237.
430
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 183-184.
431
Tal instituição, dentro do sistema de ensino americano, oferecia quatro anos de estudos para os alunos que
haviam terminado o ensino secundário feito nas high school. WEIL, Souvenirs d’apprentissage, p. 185.
156

lamentar, desta vez convencido de que poderia ser uma boa oportunidade de adentrar no
sistema de ensino universitário americano, mas nem por isso deixou de barganhar um
suplemento ao seu salário, conseguindo um acréscimo de honrosos 250 dólares à sua renda
familiar. Não foi morar em Haverford, na Pensilvânia, preferiu se deslocar para Princeton, no
Estado de New Jersei, buscando, talvez, suavizar esse período e superar de alguma forma o
seu isolamento, pois era em Princeton que estava boa parte dos matemáticos que conhecia,
inclusive os seus amigos Carl Ludwig Siegel (1896-1981)432 e Claude Chevalley433 que ali
residiam, após terem deixado os seus respectivos países, Alemanha e França, também por
circunstâncias da II Guerra Mundial.434
No início de 1942, André Weil recebera uma oferta de outra instituição universitária,
da já mencionada Universidade de Lehigh, localizada na Pensilvânia. Ao chegar lá, mais uma
vez sabia que seria deprimente a realidade que iria enfrentar, assumiria suas funções de
instrutor sobrecarregado por uma carga horária excessiva distribuída em inúmeros cursos,
ganhando um salário que, para ele, não atendia as suas necessidades, cuja a maior parte ainda
vinha da Fundação Rockefeller. Desejou prontamente recusar o convite sem pensar nas
consequências, mas não fez isto por causa da sua família. Negociou e conseguiu que fosse
trabalhar lá sob o título de professor assistente, obtendo ainda uma ligeira melhora no seu
salário. Trabalhava, mas buscando sempre mudar essa sua realidade. Após visitar a
Universidade do Centro-Oeste atendendo a um convite de um amigo435, André Weil recebeu
posteriormente desse mesmo amigo uma carta – muito provavelmente em resposta a uma
solicitação sua – esclarecendo os motivos de ele não conseguir uma nomeação nessa
Universidade. Nela, esse seu amigo disse que não havia “Nenhuma questão para você aqui de

432
Siegel, para usar a expressão que ele odiava, era ariano, mas nutria um forte repúdio às ideias nazistas, diante
disso sentiu que não poderia naquele momento permanecer mais na Alemanha. No verão de 1940, sob o
registro de refugiado político, deixou Göttingen e se dirigiu a Bergen. Lá conseguiu embarcar no último navio
com destino aos Estados Unidos, no mesmo dia em que as tropas alemãs entraram em Oslo. Siegel exerceu
suas atividades profissionais no Institute for Advanced Study de Princeton de 1940 a1951, obtendo inclusive
dentro desse período, em 1946, a nomeação de professor permanente. Mesmo assim, em 1951, preferiu
retornar para a Alemanha e reassumir o seu trabalho em Göttingen, onde ficou até a sua aposentadoria. Seu
principal interesse de pesquisa foi a teoria dos números. WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p.186;
O’CONNOR, J.J; ROBERTSON, E.F. Carl Ludwig Siegel. School of Mathematic and Statistics, [n.p.]
433
Claude Chevalley chegou aos Estados Unidos de forma um pouco mais tranquila que Siegel. De posse das
mais variadas informações que circulavam no ambiente francês logo no início da Guerra, Claude Chevalley
apresentou-se tranquilamente ao consulado francês, que por sua vez o orientou a ir para Princeton, onde estava
Solomon Lefschetz como professor assistente. Nesse período que permaneceu nos Estados Unidos, ainda foi
professor da Universidade da Columbia de 1949 até 1957, tornando-se, neste intervalo, um cidadão americano.
Retornou à França ainda em 1957 para assumir uma cadeira na Universidade de Paris VII. No âmbito geral,
desenvolveu pesquisas dentro da teoria do campo de classe, da teoria do grupo finito, da teoria dos grupos
algébricos e na geometria algébrica. WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p.186; O’CONNOR, J.J;
ROBERTSON, E.F. Claude Chevalley. School of Mathematic and Statistics, [n.p.]
434
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p.183-186.
435
André Weil não revelou o nome desse seu amigo.
157

uma nomeação; não que a sua conferência tenha desagradado, mas há as três razões habituais:
você é judeu, você é estrangeiro, você é muito bom matemático para aquelas pessoas”436. Se
ainda não havia notado, neste momento, André Weil percebeu claramente que só a sua
competência matemática não bastaria para conseguir uma boa posição nos Estados Unidos,
era preciso a priori uma rede de relações que tivesse não apenas boa vontade em lhe ajudar,
mas principalmente o poder de fazer isto. Mesmo com todos esses contratempos, ainda teve
ânimo de dar continuidade na escrita do seu livro sobre os fundamentos da geometria
algébrica, que acreditava ser a chave central para os trabalhos que seguiriam. Inclusive, nesse
ano, redigiu uma carta para Emil Artin tratando dessas suas ideias. Nesta altura tudo
transcorria bem na sua vida familiar, na medida em que conseguiu trazer seus pais e sua irmã
para morar nos Estados Unidos e nascia a sua primeira filha, Sylvie.437
No ano escolar de 1943-1944, estabeleceu-se toda uma conjuntura de situações
desforáveis para André Weil. Era o ano de 1943, as universidades, os colleges estavam em
vias de falência devido ao recrutamento de seus estudantes pelo exército, dos quais vinha boa
parte dos recursos que mantinham essas instituições funcionando. Os professores, que
estavam quase sem fazer nada, viram-se obrigados a dar aulas aos recrutas que estavam na
ociosidade dos acampamentos esperando serem transportados para a Europa e para a África.
Assim, durante quatorze horas semanais, André Weil disse que ministrou aulas de noções
elementares de álgebra e de geometria analítica para alunos-recrutas que não sabiam e nem
desejavam nada. Tendo que se submeter a essa circunstância, uma vez que não contava mais
com os proventos da Fundação Rockefeller, André Weil parecia viver o pior momento de sua
vida profissional nos Estados Unidos. Obstinado a sair dessa situação aceitou a sugestão de
seu amigo Louis Rapkine e escreveu uma carta para Warren Weaver (1894-1978), na época
um dos dirigentes da Fundação Rockefeller. Nessa carta André Weil, explicitamente
indagando-o se poderia usar sua influência para conseguir transferi-lo para alguma
universidade que tivesse um ambiente científico onde conseguisse ser minimante frutífero.
Prontamente, Warren Weaver respondeu incentivando-o a ter coragem, logo depois, já em
outra carta, aconselhou-o a ter paciência. Mas nada de concreto aconteceu. Somente mais
tarde André Weil soube que no intervalo entre as duas cartas Warren Weaver havia entrado
em contato com Solomon Lefschetz, que, segundo o próprio André Weil, parece ter tomado a
sua carta como sendo críticas endereçadas à pessoa dele. Isto porque, nas palavras de André

436
Pas question pour toi d'une nomination ici; non pas que ta conférence ait déplu, mais il y a les trois raisons
habituelles: tu es juif, tu es étranger, tu es trop bon mathématicien pour ces gens-lá. Apud WEIL, André.
Souvenirs d’apprentissage, p. 188.
437
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 187-189.
158

Weil, “Ele [Solomon Lefschetz] tinha a reputação de ser desses judeus que fugiam da
acusação de apoiar exclusivamente os companheiros acabando por se comportar como
antisemitas.”438. Em uma conversa posterior André Weil disse que teve oportunidade em
abordar o assunto com Solomon Lefschetz, que foi resumida por André Weil apenas na
seguinte palavra stupéfia, ou seja, espantado, só não esclareceu se foi positiva ou
negativamente.439
No entanto, dessa vez, independentemente das consequências, estava decidido a deixar
o seu cargo, tal como descreveu no seu S.O.S. enviado a Hermann Weyl no primeiro mês de
1944. Para André Weil, os dois anos vividos nos Estados Unidos foram como tivesse
realizado atividades equiparáveis à de uma prostituta. Nas suas próprias palavras:
“Prostituição consiste em desviar algo de valor alto para uso vil por motivos mercenários; isto
é o que eu tenho feito nesses dois anos”440. O objetivo desse seu S.O.S era solicitar a
Hermann Weyl uma ajuda para conseguir subsídios necessários para manter a sua família.
Não tardou muito, por seu intermédio, André Weil conseguiu, por um ano, uma bolsa de
estudos da Fundação Guggenheim, junto Henry Allen Moe (1894-1975), secretário que
detinha praticamente todos os poderes. Pelo regulamento da Fundação já não era mais
possível obter essa bolsa para o ano de 1944, pois ele já se encontrava em curso, mas mesmo
assim a Fundação a concedeu. Foi, portanto, sob todas essas insatisfações e dificuldades, as
quais André Weil disse ter vivenciado em sua primeira passagem pelos Estados Unidos, que
ele recebeu a proposta de André Dreyfus em nome da USP.441
Se pelo lado profissional estava profundamente insatisfeito, o lado pessoal também
recebeu um duro golpe. Ainda em 1943, no mês de agosto, André Weil afirmou ter recebido a
triste notícia de que a sua querida irmã, doente, morrera na Inglaterra, local em que foi residir
após sua breve estadia nos Estados Unidos. O resto do ano para André Weil transcorreu de
forma bastante triste, mais ainda para os seus pais, visto que absolutamente nada havia lhes
preparado para receber tal notícia, sua única alegria era a companhia de sua esposa e de sua
pequena Sylvie.442
Mas o ano de 1944 foi realmente o início da sua virada profissional. Porém, após
aceitar o convite de lecionar no Brasil na USP, André Weil ainda teve que enfrentar um

438
Il avait la réputation d’être de ces juifs qui, fuyant l’accusation de soutenir exclusivement des coreligionnaires
finissent par se comporter en antisémites. WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 191.
439
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p.191.
440
Prostitution consists in diverting something of high value to base uses for mercenary reasons; this is what I
have been doing these two years. WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 193.
441
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p.193.
442
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 192.
159

último empecilho. Direta ou indiretamente o mundo vivia um conflito mundial e esse estado
de guerra desencadeou medidas de seguranças. Assim, nos Estados Unidos nenhum
estrangeiro poderia deixar o país sem posse de um visto de saída emitido pelo serviço de
imigração. Sabendo disso, André Weil fez seu pedido de saída tanto para sua família como
para os seus pais que não desejavam mais permanecer isolados nos Estados Unidos. Para
surpresa de André Weil, seu visto fora negado. André Dreyfus tentou intervir junto ao
Departamento do Estado, assim como várias outras pessoas, inclusive Oscar Zariski, mas não
obtiveram sucesso. Foi então que André Weil resolveu apresentar o caso a Frank Aydelotte
(1880-1956), então diretor do Institut Advanced Study de Princeton, que o afirmou ser
indecente tal decisão, uma vez que entendia que os Estados Unidos, que nunca souberam o
que fazer com ele, não poderiam retê-lo à força em seu espaço territorial. Sob a sua
intervenção, fez valer esse argumento no serviço de imigração e o visto foi finalmente
concedido. André Weil afirmou que jamais soube o que de fato esteve por trás daquela recusa
e se informaram a André Dreyfus os motivos. Conjecturou que o mais provável foi que o
serviço de imigração tenha sido persuadido pelo adido cultural americano no Brasil para que a
vaga da cadeira da FFCL fosse para um de seus compatriotas, visto que ele tinha enviado um
relatório para o Washington neste sentido.443
Paralelo a tudo isso, André Weil conseguiu terminar o seu livro sobre os fundamentos
da geometria algébrica, deixando o manuscrito completo, na véspera de sua viagem ao Brasil,
na American Mathematical Society, esperando que aceitasse publicá-lo. Algo que de fato
aconteceu, mas não antes, conforme o próprio André Weil confessou, da retirada do seu
prefácio de uma passagem que a revista considerou um pouco amarga. Como se sentisse
encerrando um capítulo de sua vida profissional, André Weil disse que retirou o trecho
solicitado sem sofrimento. Tal passagem refletia o quanto se sentiu humilhado quando por
diversas vezes foi forçado a assumir empregos que nada lhe acrescentavam à sua vida
profissional, apenas serviam para conseguir sobreviver com um mínimo de dignidade. Ela
dizia exatamente o seguinte: “[Devo uma dívida duradoura de gratidão para...] e para aqueles
poucos que lutaram para libertar-me das obrigações desagradáveis e humilhantes de um
emprego que minha posição como um refugiado nos Estados Unidos tinha me obrigado a

443
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 194 ; PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p.72.
160

aceitar”444. Nos meses seguintes, já no Brasil, fez as correções que considerou necessárias nas
provas e em 1946 o livro foi publicado.445
Ainda nesse processo de saída dos Estados Unidos, André Weil soube que o seu amigo
Oscar Zariski também iria para São Paulo. Sem ter muita certeza, André Weil disse que a ida
de Oscar Zariski parece ter sido uma indicação sua, caso ele não conseguisse reverter a sua
situação. De qualquer sorte foi uma notícia que muito o alegrou. Em 1925 tinha conhecido
Oscar Zariski na sua passagem pela Itália, após ter sido contemplado com uma bolsa de
estudo oferecida pela École Normale de Paris para passar um ano letivo em Roma.
Desfrutando de tal bolsa, André Weil também bebeu na fonte da escola italiana de
matemática. Lá constatou que não havia apenas ele e Michel Louis Guérard des Lauriers
(1898-1988), outro normalista, mas também, dentre outros nomes, Szolem Mandelbrojt –
futuro bourbakista – e Oscar Zariski. Segundo André Weil e sem dar maiores explicações,
Francesco Severi fez um favor a todos eles ao proferir algumas conferências tratando, em
linhas gerais, sobre a teoria das superfícies algébricas.446 De acordo com Carol Parikh, André
Weil tinha um especial interesse em um contato mais próximo com Oscar Zariski. Na nossa
leitura, parecia que havia entre os dois uma relação de amizade construída a partir da
admiração e confiança que mutuamente nutriam no exercício da pesquisa matemática. Isto
parece ser evidenciado no momento em que o próprio André Weil assumiu, na introdução de
seu livro Foundations of algebraic geometry, que o leitor não poderia dimensionar o quanto a
sua escrita foi beneficiada com as considerações não apenas de Oscar Zariski, mas também de
seu outro amigo Claude Chevalley no momento em que ainda escrevia o livro. Nas suas
próprias palavras:
O leitor atento também detectará em muitos lugares a influência de recentes
trabalhos de O. Zariski447; o que ele não pode facilmente imaginar é quanto
benefício eu tenho derivado, durante todo período de preparação desse livro,
de contatos pessoais tanto com Zariski quanto com Chevalley, de seus
conselhos e sugestões dados gratuitamente e de acesso aos seus manuscritos
não publicados..448

444
[I owe an enduring debt of gratitude to...] and to those few who strove to liberate me from the distateful and
humiliating duties of a job which my position as a refugee in the United States had compelled me to accept.
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage. Nota de rodapé, p. 195.
445
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p.195 ; KANAPP, Anthony W. André Weil: A prologue, p. 439.
446
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 45 ; p.48-49 e p. 194.
447
Refere-se aos artigos publicados desde 1940 até a data de publicação do seu livro, ou seja, 1946 no American
Journal Mathematics; Transaction American Mathematical Society e Annals of Mathematics. WEIL, André.
Introduction. In: Foundations of algebraic geometry, p. ix.
448
The attentive reader will also detect in many places the influence of O. Zariski's recent work; what he cannot
easily imagine is how much benefit I have derived, during the whole period of preparation of this book, from
personal contacts both with Zariski and with Chevalley, from their freely given advice and suggestions, and
161

Por sua vez, também havia reciprocidade da parte de Oscar Zariski em relação a André
Weil, a ponto de interferir na sua decisão de ir para São Paulo. Tal como André Weil, Oscar
Zariski também precisava lutar junto a Universidade de Johns Hopkins por tempo para se
dedicar à pesquisa. Dessa forma, se por um lado foi muito importante para a USP a
contratação desses dois professores para fazer parte do quadro docente da subsecção das
ciências matemáticas da sua FFCL, visando dar continuidade ao ambiente de ensino e
pesquisa que havia sido anteriormente insitucionalizado pela escola italiana, por outro, para
eles, significou a possibilidade de terem condições dignas para exercerem essas atividades,
algo que não tinham nos Estados Unidos.
Em janeiro de 1945, em plenas férias, André Weil e sua família chegaram ao Brasil.
Tudo o encantou; pelo lado pessoal: a hospitalidade, o local onde iria morar – uma casa
descrita como modesta, mas cômoda, de agradável jardim com rosas que floresciam o ano
todo, lindamente frequentado por beija-flores. Não contendo o seu ímpeto, exclamou: “Que
contraste com nosso triste apartamento de Bethlehem!”449. E, ainda no lado profissional, na
FFCL, observou que o próprio Departamento de Matemática tinha a sua biblioteca, montada
pelo seu predecessor, o geômetra italiano Giacomo Albanese, considerado por André Weil
como um matemático de grande mérito. A biblioteca agradou muito a André Weil, que, para
ele, era respeitável, sobretudo no campo da geometria algébrica, área de atuação de Giacomo
Albanese e que também era a sua. Adquiriu o hábito de beber cafezinhos, que eram fornecidos
por uma funcionária que tinha a incumbência de fazer toda a limpeza, mas principalmente de
servir a cada um dos professores antes e depois de seus respectivos cursos com tantos
cafezinhos desejassem tomar. Uma tradição que lamentou não existir mais quando retornou à
USP, em 1966. E lamentou ainda quando percebeu as mudanças que haviam sido feitas na
estruturação da USP, cujo departamento das subsecções das ciências matemáticas estava junto
a outros departamentos em edifícios contidos em um vasto campo, que, para ele, não tinha
personalidade.450
Sob o título de professor contratado, ou seja, nomeado por um contrato provisório,
André Weil, no mês de março de 1945, começou a ministrar aulas, conforme consta no
Anuário da FFCL, na disciplina de Análise Superior. Para ele, acostumado com uma elevada
carga horária que costumava assumir na sua primeira passagem nos Estados Unidos,

from access to their unpublished manuscripts.. WEIL, André. Introduction. In: Foundations of algebraic
geometry, p. ix.
449
Quel contraste avec notre triste appartement de Bethlehem!. WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 196.
450
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 196-197.
162

considerou que as suas obrigações de ensino junto à FFCL eram muito leves.451 Talvez André
Weil não tivesse percebido de imediato que a sua contratação transcendia a obrigação de dar
aulas. O que realmente se esperava, não apenas dele, mas também de Oscar Zariski e de todos
que vieram nos anos posteriores, era que estabelecessem na subsecção das ciências
matemáticas novas possibilidades de campos de pesquisas, que apresentassem e discutissem
as novas formas de pensar e fazer matemática que estavam inserindo no estudo desse
conhecimento científico. Enfim, que institucionalizassem na formação dos matemáticos
brasileiros as teorias da matemática que eles estavam trabalhando e que notadamente seguiam
um estilo diferente da abordagem geométrica italiana. Dessa forma, a circunstância fazia com
que os matemáticos brasileiros, em formação ou não, optassem ou não entre a abordagem
geométrica e a algébrica, para trabalharem as teorias da matemática, algo que não existia até a
chegada dos matemáticos da escola bourbakista em 1945, visto que havia apenas a
predominância absoluta da abordagem geométrica da escola matemática italiana.
André Weil não dominava o idioma italiano, língua que na época, apesar de pouco
dominada pela população paulistana, tinha uma sonoridade muito familiar em São Paulo, que
era constituída por uma grande quantidade de habitantes de descendência italiana. Isto foi em
decorrência da vinda dos primeiros italianos que chegaram a esse Estado, sob algumas
promessas, nem sempre cumpridas satisfatoriamente – tais como moradia, salário e
participação no lucro sobre a produção – para começarem a trabalhar na lavoura de café em
substituição à mão-de-obra dos escravos. Esse foi o idioma que Oscar Zariski, que viveu
alguns anos na Itália, inclusive casando-se com uma italiana, parece ter usado para se
comunicar com os estudantes brasileiros, já habituados com os matemáticos italianos. André
Weil, por sua vez, no seu primeiro ano de permanência no Brasil, ministrou aulas em francês
e, já no segundo ano, conseguiu dar suas aulas em português.452
A expectativa nutrida por um universo matemático movimentado a partir da vida de
André Weil foi se concretizando aos poucos. Desde 1944 com a liberação de Paris do domínio
alemão, André Weil conseguiu restabelecer, de forma sistemática, o seu contato, mesmo à
distância, com as atividades que estavam sendo realizadas pelo Grupo Bourbaki. Lembrou
que antes disso só havia conseguido, com muito sacrifício, receber uma única
correspondência referente a uma ata do Congresso de Liffré, que havia acontecido em
setembro de 1943, contando apenas com a participação de três bourbakistas. Eles foram:

451
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 197; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS
(Universidade de São Paulo), 1939-1949, v.II, p.615.
452
PETRI, Kátia Cristina. Terras e imigração em São Paulo: Política fundiária e trabalho rural. Revista Histórica,
1-9; WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 197.
163

Henri Cartan, Jean Dieudonné e Jean Delsarte. Logo depois, em junho de 1945, por meio de
seus amigos, obteve uma rara ordem de missão para ir a Paris com todas as despesas pagas
para que assim pudesse voltar a ter um contato direto com a França e o Grupo Bourbaki.
Chegou a Paris com um quilo de café na mala, sua mais nova paixão apropriada da cultura
brasileira, a qual tinha certeza que seria muito bem-vinda ao paladar parisiense. Lá foi
improvisado um Congresso Bourbaki, que foi nomeado de Congrès du café.453
Por todos esses elementos, é fato que André Weil se encantou pelo Brasil e, mais
ainda, que ele parecia ser uma peça importante na exequibilidade do Grupo Bourbaki, por ter
sido o seu grande idealizador454. E, por isto, mesmo após a sua saída da USP no outono de
1947, é muito plausível que foi em torno e por causa dele que outros matemáticos
pertencentes à escola bourbakista vieram para a USP e instituíram na subsecção das ciências
matemáticas a sua forma de pensar e fazer matemática. Em suma, um novo estilo de produção
matemática. Mas, apesar de todo o seu encantamento pelo ambiente brasileiro, sentia uma
inquietação. Sabia que a sua estadia não poderia se alongar por muito mais tempo, sentia falta
de um meio científico mais estimulante, ainda que nesse tempo tivesse contado com a
presença de Oscar Zariski em 1945 e depois com a de Jean Dieudonné nos anos de 1946 e
1947455. Contudo, ele estava em busca de um lugar que fosse considerado um centro de
pesquisa matemática, algo que o Brasil não era, apesar de ter lhe dado condições para realizar
as suas pesquisas, e que os Estados Unidos antes não lhe dera. Além disso, ele tinha plena
consciência de que estava ali para contribuir no processo de formação de uma nova geração
de matemáticos brasileiros, portanto, de uma comunidade de matemáticos brasileiros, para
que num futuro próximo assumisse em número cada vez mais crescente uma posição nessa
faculdade, inclusive reassumindo essa disciplina que ele estava ocupando provisoriamente.
Antes da chegada de André Weil, a disciplina Análise Superior, colocada como uma
disciplina criada para o terceiro ano, aparece em 1942, e apenas neste ano, a cargo do
professor Cândido Lima, que até então permanecia como assistente na Cadeira de Análise
Matemática, naquele momento de Omar Catunda, após a saída de Luigi Fantappiè. Ao que
tudo indica, pelas palavras de Cândido Lima, tal disciplina estava subjacente nos estudos da
análise matemática (3ª parte), presente na grade curricular da subsecção das ciências
matemáticas desde 1934 para ser ministrada justamente no seu terceiro ano. Isto porque
Cândido Lima afirmou que com a chegada de Giacomo Albanese, em 1936, Luigi Fantappiè,

453
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 197-198.
454
CARTAN,Henri. André Weil: Memories of a long friendship, p.634.
455
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 201.
164

que também ministrava aula em Geometria, pois não havia ainda um especialista, passou a
ministrar aulas apenas em Análise Matemática e Análise Superior, deixando as aulas de
Geometria para Giacomo Albanese.456 Contudo, voltamos a frisar, na grade curricular da
subsecção das ciências matemáticas, pelo menos de 1934 a 1936, não constava a denominação
de Análise Superior. A sua menção aparece apenas, conforme já discutimos anteriormente, em
1936, no projeto de Regulamentação da FFCL apresentado pelo próprio Luigi Fantappiè. No
entanto, não conseguimos identificar se ela foi de fato logo implementada sob essa
nomenclatura nos anos seguintes.457
Foi fazendo uso dessa ótica, que conjecturamos que Cândido Lima estivesse se
referindo a que Luigi Fantappié, no terceiro ano, dava aulas de análise superior, mas sob o
título de Análise Matemática (3ª parte). Neste sentido, consideramos que há dois outros
aspectos que parecem fortalecer ainda mais essa nossa conjectura. O primeiro diz respeito a
que no ano de 1942 a disciplina análise superior aparece sob a referência de ter sido “criada
para o 3º ano”, sugerindo, na nossa interpretação, que antes não existia sob esse nome. O
segundo aspecto, imbricado com o primeiro, corresponde ao fato de que da saída de Luigi
Fantappiè, no final de 1939, até o ano de 1942, não conseguimos localizar nenhuma menção
de quem ficou a cargo dessa disciplina, apenas que a cadeira de Análise Matemática tinha
ficado na responsabilidade do professor Omar Catunda, fortalecendo a nossa leitura de que
realmente a disciplina análise superior não existia sob essa nomeação específica até o ano de
1942. Ainda, não pode passar despercebido que nos dois anos seguintes, antes da chegada de
André Weil, ou seja, 1943 e 1944, essa disciplina aparece, sem maiores explicações, como
sendo ministrada por Omar Catunda, tendo como assistente Edison Farah.458
Nesse contexto, parecia bastante razoável que André Weil começasse articular a sua
saída. Obteve sucesso por meio de seu amigo Marshall Harvey Stone (1903-1989), que havia
assumido a chefia do Departamento de Matemática da Universidade de Chicago,
comprometendo-se a fazer nele uma ampla renovação. Marshall Stone, seguindo essa
orientação, ofereceu-lhe uma posição, que foi prontamente aceita por André Weil. Contudo, o
que parece ter sido determinante no oferecimento dessa posição a André Weil não foi a
amizade que existia entre ambos, mas os interesses políticos nutridos por Marshall Stone, que

456
DIAS, Cândido Lima da Silva. Cândido da Silva Dias: meio século como pesquisador, [n.p.].
457
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1935, p. 256;
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p. 217;
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v.II, p.
614.
458
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v.II, p.
614- 615.
165

exercia um papel destacado na política norte-americana de expansionismo cultural e


científico459. Assim, era interessante para esses propósitos de Marshal Stone ter alguém com a
competência matemática de André Weil fazendo parte do quadro de profissionais dos Estados
Unidos. Começou, então, o segundo e definitivo ciclo de André Weil nos Estados Unidos,
agora em condições que ele acreditava serem dignas do seu valor matemático. Permaneceu
nessa universidade até 1958, quando se transferiu para o Institut for Advanced Study de
Princeton, local em que permaneceu até a sua aposentadoria em 1976460.
André Weil, enquanto esteve no Brasil, ocupou interinamente a disciplina de Análise
Superior. Nela, em 1945, abordou sobre as formas diferenciais e espaços de Hilbert, uma
discussão diferente da que foi feita por Omar Catunda, que ministrou essa disciplina em 1944.
Seguindo a tradição italiana de matemática, Omar Catunda tratou das equações diferenciais,
enquanto o seu assistente, Edison Farah, no segundo semestre, abordou séries de Fourier. Já
em 1946, nessa mesma disciplina, André Weil deu um curso sobre topologia geral e grupos
topológicos e, em 1947, tratou das integrais abelianas. Durante todo esse período, André Weil
teve ao seu lado, como assistente ainda, Edison Farah, que estava sendo preparado, tal como o
próprio André Weil previu, para assumir posteriormente essa disciplina. Assim, conforme já
era esperado, portanto sem surpresas, Edison Farah foi contratado como professor para
assumir a disciplina de análise superior logo após a saída de André Weil. Edison Farah
permaneceu como professor contratado dessa disciplina – que em 1948 passou a ser designada
de cadeira de Análise Superior – até o ano de 1954, quando prestou concurso para essa mesma
cadeira, apresentando, como um de seus requisitos, a tese intitulada Algumas proposições
equivalentes ao axioma da escolha.461
André Weil direcionou as aulas de Análise Superior para os princípios do Grupo
Bourbaki, ou seja, de uma abordagem estruturalista da matemática, tendo como sua
linguagem a teoria dos conjuntos. A partir desse momento, segundo Elza Furtado Gomide 462,

459
Maiores detalhes sobre a política de expansionismo cultural e científico, veja: DIAS, André Luis Mattedi. O
movimento da matemática moderna: uma rede internacional científica-pedagógica no período da Guerra Fria.
460
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 201.
461
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v.II, p.
614- 616; PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 226;
FARAH, Edison. Algumas proposições equivalentes do axioma da escolha, p. i.
462
Elza Furtado Gomide, nascida no ano de 1925, foi estudante do curso de física de 1942 a 1944. Em 1945 fez
o terceiro ano em ciências matemáticas, obtendo a formação de física-matemática. Durante todo o período de
demarcação desta nossa pesquisa, Elza Gomide, a partir de 1945, configurou como assistente de Omar
Catunda. Isto se prolonga, pelo menos, até o ano em que ele se aposentou, ou seja, 1962. Doutorou-se em 1950
defendendo uma tese em álgebra intitulada Sobre o teorema de Artin-Weil, trabalhando diretamente sob a
orientação, não oficial, do bourbakista Jean Delsarte. Tivemos esta compreensão porque o presidente da sua
banca examinadora foi Omar Catunda, posição sempre assumida pelos orientadores. Algo que é ratificado pelo
menos no termo de inscrição para o doutoramento em ciências a que Elza Gomide deu entrada em 1947. E
166

a formação dos matemáticos da USP também passou a ser fortemente influenciada pela forma
de fazer e praticar matemática defendida pelo Grupo Bourbaki.463 Sem dúvida, era o início da
inserção sistemática de novas teorias por meio de uma abordagem que seguia unicamente os
parâmetros algébricos inaugurados por David Hilbert e van der Waerden. Neste sentido, por
exemplo, podemos citar o teorema de Zorn464 que ele abordou em suas aulas referentes à
disciplina de análise superior.
Conforme as notas de Edison Farah, André Weil, para discutir tal teorema, fez uma
série de considerações importantes para que fosse possível defini-lo e demonstrá-lo com mais
clareza possível para os seus alunos. Assim, inicialmente chamou atenção de que se tratava de
um teorema importante, o qual intervinha na teoria dos conjuntos. Foi nomeado de teorema de
Zorn em homenagem a Max August Zorn (1906-1993). Depois, André Weil expôs que esse
teorema afirma a existência de pelo menos um elemento maximal em um conjunto dito
ordenado indutivo e que a sua demonstração se baseava no axioma da escolha ou, como ainda
é conhecido, no axioma de Zermelo. Para apresentar um enunciado desse axioma, André Weil
antes esclareceu que tal axioma era frequentemente citado sob várias formas, mas todas
mantendo a equivalência entre si. Assim, ponderou que o próprio teorema de Zorn poderia
constituir uma dessas várias formas do axioma de Zermelo. Posto isto, André Weil se sentiu à
vontade de enunciar o axioma de Zermelo que estava contido no livro Théorie des ensembles
do fictício autor Nicholas Bourbaki, ou seja, do seu próprio Grupo Bourbaki. Assim, o
enunciado do axioma de Zermelo foi o seguinte:

ainda na ata dos exames das matérias subsidiárias que foram realizadas por Elza Gomide. Nesses dois
documentos consta explicitamente o nome de Omar Catunda como o seu orientador, pelo menos oficialmente.
Em 1951, essa tese foi publicada no Boletim da Sociedade de Matemática. Obteve seu pós-doutorado pelo
Institut Henri Poincaré no ano de 1962. Aposentou-se compulsoriamente, em 1995, como professora
assistente doutora da USP, mas continuou prestando os seus serviços nos cursos de graduação e pós-graduação
dessa Instituição até por volta do ano de 2002. Dessa forma, consideramos que Elza Gomide, por apresentar
uma trajetória profissional singular, pouco comum para uma mulher numa sociedade brasileira da década de
1940, representa um interessante e importante personagem de pesquisa científica a ser ainda investigado.
GOMIDE, Elza Furtado. Emblema da matemática na USP. Ciência Hoje. São Paulo. Entrevista concedida a
Vera Rita da Costa, p. 37-38; GOMIDE, Elza Furtado. Currículo lattes. BOLETIM INFORMATIVO DO
IME, n.19, ano 4, ago./set. 2005; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de
São Paulo), 1939-1949, v. II, p.729; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade
de São Paulo), 1950, p. 157; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São
Paulo), 1951, p.308; PIRES, Rute da Cunha. Anexo: atas de doutoramentos em matemáticas de 1941 à1968.
In: A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, [n.p]. PIRES, Rute da Cunha. Anexo:
programas (matemática) aprovados pela congregação nos anos letivos de 1953, 1959, 1960, 1962, 1964, 1965,
1966, 1967 e 1968. In: A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, [n.p]; SILVA, Clóvis
Pereira da. Alguns aspectos históricos sobre o desenvolvimento da análise matemática no Brasil. Revista
Brasileira de História da Matemática, p. 266.
463
GOMIDE, Elza Furtado. Emblema da matemática na USP, p. 39.
464
A discussão desse teorema foi publicada no Boletim da Sociedade de Matemática de junho de 1946, v.1, fasc.
1 que está disponível no Acervo Virtual do IME da USP no seguinte endereço:
<http://www.ime.usp.br/acervovirtual/bsmsp.php>.
167

Seja R {x, y} uma relação entre um elemento genérico x de um conjunto E e


um elemento genérico y de um conjunto F. As relações “qualquer que seja x
ϵ E existe y ϵ F tal que R {x,y}”
e
“existe uma aplicação f de E em F tal que, qualquer que seja x ϵ E, R{x,
f(x)}”,
são equivalentes.. (grifo no original). 465
Explicou que o axioma de Zermelo consistia justamente “[...] na afirmação dessa
equivalência.”. Minucioso, André Weil não só ambicionava inserir novas discussões teóricas
na disciplina de Análise Superior, mas também procurava enfatizar a linguagem que iria e
gostaria que fosse adotada para e nas suas discussões, inclusive para as definições que já eram
conhecidas pelos alunos da subsecção das ciências matemáticas da FFCL. Parece que foi
seguindo essa postura que buscou detalhar o que para ele era “uma aplicação f de E em F”,
que, em suma, era nada mais do que uma função. Nas suas palavras: “Uma aplicação f de um
conjunto E num conjunto F é uma função definida em E, com valores em F; a cada x de E
corresponde, pela aplicação f, um único y de F, e escrevemos, então: y = f(x).”466.
Ao que tudo indica, apesar de os alunos já habitualmente conhecerem e trabalharem
com o conceito de função, para eles essa definição apresentada por André Weil tinha uma
linguagem nova e desconhecida, visto que até então estavam acostumados com uma definição
de função presente no livro Curso de Análise Matemática de Omar Catunda, oriundo das
notas de aulas467 que ele mesmo fez do curso de análise lecionado por Luigi Fantappiè na
cadeira de Análise Matemática a partir de 1934. Até aquela conjuntura, segundo Omar
Catunda, o seu livro, bem como o curso que ministrava na FFCL, seguia, em linhas gerais, a
orientação de Luigi Fantappiè468. Noutras palavras, tal publicação, iniciada em 1952, estava
ainda muito próxima às discussões que eram feitas por Fantappiè em sala de aula e que foram
por ele copiladas. Assim, por exemplo, na primeira parte do seu livro Curso de Análise
Matemática, em sua terceira edição, publicada em 1956, a definição de função apresentada
por Omar Catunda é ainda idêntica à que era dada por Luigi Fantappiè469. Enfim, era ainda

465
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah, p. 1.
466
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah. Nota de rodapé, p. 1.
467
Tais notas foram ampliadas e reformuladas posteriormente por Omar Catunda. Isto lhe possibilitou publicar
em seu próprio nome o referido livro, que foi uma das primeiras publicações sobre esse assunto no Brasil.
Inicialmente foram utilizadas apostilas mimeografadas até 1952, quando foi publicada a primeira parte na
forma de livro, ao todo foram sete partes. LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de
análise matemática de Omar Catunda..., p. 213.
468
CATUNDA, Omar. Prefácio. In: Curso de análise matemática, parte I, 1956, [n.p.].
469
Na apostila de Luigi Fantappiè: Consideremos um conjunto C de números x, com mais de um elemento. Se a
cada número x de C corresponde, de um modo bem determinado, um ou mais valores de uma outra quantidade
y, dizemos que y é uma de x definida no campo C, que se chama campo de definição, e indicamos essa
correspondência com a notação y = f(x) ou por outro simbolo semelhante em que a letra f seja substituída por
168

uma definição dentro da tradição da escola matemática italiana. Nele, afirmando que se
tratava do conceito segundo Dirichlet, função apareceu definida do seguinte modo:
Consideremos um conjunto linear C de números x. Se a cada número x de C
corresponde, de um modo bem determinado, um ou mais valores de uma
outra quantidade y, dizemos que y é uma função de x ao campo C, que se
chama campo de definição, e indicamos essa correspondência com a notação
y = f(x)
ou por outro símbolo semelhante em que a letra f seja substituída por outra
qualquer. Usa-se frequentemente, por exemplo, a notação y = y(x).. (grifo no
original)470
Observemos que essa definição de Omar Catunda, e, portanto, também a de Luigi
Fantappiè, associa de um modo bem determinado os números de um conjunto C, chamado de
campo de definição, com “um ou mais valores de uma outra quantidade y”471, isto é, há certa
identificação da noção de número com a noção de quantidade, assim como há a possibilidade
de uma associação plurívoca entre x e y.472
Então, de fato, a definição apresentada por André Weil para função não fazia parte até
aquele momento da subsecção das ciências matemáticas da FFCL. E, diante disso, fazia-se
necessário – tal como fez ao anunciar o axioma de Zermelo, preferindo o usado por Nicholas
Bourbaki – que expusesse uma definição de função que estivesse em conformidade com a sua
linha de pensamento. Isto era preciso para possibilitá-lo discutir as suas teorizações
matemáticas, que, em nosso caso específico, trata-se do teorema de Zorn.
Dando continuidade à sua discussão, André Weil, buscando exemplificar uma das
várias formas de se enunciar o axioma de Zermelo, mas não aleatoriamente, pois faria uso em
sua demonstração do teorema de Zorn, apresentou uma proposição que afirmou ser
equivalente ao enunciado por ele exposto do axioma de Zermelo. Tal proposição foi assim
enunciada: “Se I é um qualquer conjunto de índices e (Xi)i ϵ I é uma família de subconjuntos de
um conjunto C tais que Xi ≠ Ø, qualquer que seja i ϵ I, o produto IIi ϵ I Xi não é vazio.”473.
Parecia ser um universo tão novo para os alunos da subsecção das ciências matemáticas da
FFCL, que, em nota de rodapé, foi observado que o símbolo Ø designava conjunto vazio 474.
Em seguida André Weil mostrou que o primeiro enunciado do axioma de Zermelo por ele
apresentado implicava essa proposição e vice-versa. Fez parte ainda das suas considerações,

outra qualquer. Usa-se frequentemente, por exemplo, a notação y = y(x).. (grifo no original). FANTAPPIÈ,
Luigi. Conjuntos lineares. Funções e limites no campo real. In:______. Curso de análise matemática, p.6.
470
CATUNDA, Omar. Curso de análise matemática, parte I, 1956, p.69-70.
471
FANTAPPIÈ, Luigi. Curso de análise matemática, p.6.
472
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda..., p.
218.
473
Todas as citações no corpo do texto referentes às notas de aulas de Edison Farah sobre o teorema de Zorn os
grifos são do original.WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah, p. 2.
474
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah. Nota de rodapé, p. 2.
169

antes de demonstrar propriamente dito o teorema de Zorn, definir elemento maximal e


conjunto ordenado indutivo, os quais intervinham no enunciado desse teorema. Mais uma vez
fazendo divulgação do livro que ajudou a construir, explicitou que tais definições se
encontravam no já citado Théorie des ensembles, bem como todos os conceitos e algumas
notações de que fez uso para discutir e provar o teorema de Zorn. Particularmente, para
definir conjunto ordenado indutivo, André Weil ainda precisou definir extremo superior e
conjunto totalmente ordenado.475
Em linhas gerais, André Weil, ao terminar essas considerações, apresentou um dos
enunciados do teorema de Zorn, o qual foi colocado como: “Todo conjunto ordenado
indutivo, E, possui pelo menos um elemento maximal.”476, demonstrando-o em seguida por
meio do axioma de Zermelo e de um lema que ele nomeou de L, assim enunciado: “Seja E um
conjunto ordenado indutivo. Se, então, f é uma aplicação de E em E tal que, para todo x ϵ E,
f(x)≥ x, existe pelo menos um x ϵ E tal que f(x) = x, [ isto] independe [...] do axioma de
Zermelo.”477. Ainda expôs outras formulações do teorema de Zorn e as suas aplicações, sendo
que uma delas foi a seguinte: “Mostrar que todo conjunto infinito, E, é equipotente ao
conjunto E X E.”478, que foi sugerida por Jean Dieudonné, dando-nos mais um exemplo, tal
como aconteceu com os professores italianos, de que era praxe aulas e pesquisas conviverem
e se misturarem nesse ambiente da subsecção das ciências matemáticas da FFCL. 479 Por fim,
André Weil apontou onde os estudantes poderiam encontrar mais aplicações do teorema de
Zorn, inclusive afirmou que tal teorema poderia ser aplicado na álgebra, como, por exemplo,
na demonstração da existência de ideal máximo em um anel com elemento unitário, indicando
outra vez um livro de Nicholas Bourbaki, mas agora o Algèbre480. Entendemos que essa
postura de André Weil, ou seja, de fazer questão de indicar sempre um livro que não apenas
condizia com o seu estilo de pensar e produzir matemática, mas do qual ele também dividia os
créditos de autoria, exemplifica bem a estratégia adotada pela escola bourbakista para garantir
que os estudantes, em particular da subsecção das ciências matemáticas da FFCL,
divulgassem esse estilo e dele se apropriassem.
Por sua vez, Oscar Zariski foi contratado para ministrar aulas em cursos de extensão
da subsecção das ciências matemáticas. Durante o único ano em que ficou no Brasil, ou seja,
o ano de 1945, Oscar Zariski ministrou palestras sobre álgebra moderna e introdução à

475
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah, p. 2-5.
476
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah, p. 5.
477
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah, p. 5.
478
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah, p. 10.
479
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah, p. 2-5.
480
WEIL, André. Teorema de Zorn. Notas de aulas de Edison Farah, p. 13.
170

geometria algébrica481, mais especificamente, tendo como foco, segundo Circe Mary Silva da
Silva, o estudo da teoria dos anéis e dos corpos; da teoria dos ideais e da teoria dos valores482.
Nesse período, apesar de estar afastado da abordagem geométrica utilizada pelos matemáticos
italianos, como sempre, não deixou de reconhecer o mérito dessa escola. Neste sentido
afirmou:
A Geometria Algébrica teve grande desenvolvimento na escola italiana; os
trabalhos de Segre, Bertini e principalmente os de Castelnuovo, Enriques e
Severi deram um aspecto clássico a este ramo da Matemática. Estes mestres
desenvolviam a Geometria Algébrica do ponto de vista da intuição
geométrica..483
Certamente foi essa geometria algébrica que os matemáticos brasileiros até esse
período conheciam por meio das aulas ministradas por Giacomo Albanese. Então a questão
não era o campo de conhecimento abordado por Oscar Zariski não ser conhecido pelos
matemáticos brasileiros que faziam ou fizeram parte da subsecção das ciências matemáticas
da FFCL. O que era novo, por assim dizer, para esses matemáticos, foi a abordagem escolhida
por Oscar Zariski para discutir geometria algébrica, que foi feita pelas vias algébricas e não
mais pela geometria, uma vez que ele já tinha incorporado as críticas que eram feitas acerca
do rigor do método geométrico utilizado pelos matemáticos italianos, apesar de ele próprio ter
sempre deixado transparecer, como vimos, que para ele os diferentes métodos eram
equivalentes. O problema residia no fato de que tais métodos, para ele, não produziam provas
no mesmo grau de rigor e era este o caso do método geométrico escolhido pelos italianos.
Mais uma vez, isto pareceu ter sido determinante para que Oscar Zariski fizesse a seguinte
afirmação: “Deve-se assinalar que a Geometria Algébrica desenvolvida pela escola italiana
tinha um grande defeito: a falta de rigor. Por este motivo – por faltarem métodos rigorosos – a
escola italiana declinou e a Geometria Algébrica ficou isolada da Matemática Moderna.”484.
E, por sua vez, por ter novamente engrandecido os últimos rumos tomados pela geometria
algébrica fora do ambiente italiano, enfatizou que:
Nos últimos 15 anos apareceram trabalhos em que se desenvolveram novos
métodos e conceitos para o estudo da Geometria Algébrica. Os primeiros
trabalhos são devidos a van der Waerden, O. Zariski, Weyl, Chevalley, etc.
Temos um ressurgimento da Geometria Algébrica do qual vamos assinalar
duas conseqüências fundamentais: 1º o emprego dos métodos algébricos
garante-nos definições perfeitas e o rigor absoluto das demonstrações; 2º o
emprego destes métodos, conduz-nos a uma grande generalidade de estudo,
porque os teoremas de Geometria Algébrica, que serão demonstrados por

481
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v.II, p.
615; PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 238.
482
SILVA, Circe Mary da Silva. Oscar Zariski e os primórdios da álgebra no Brasil, p.385.
483
SILVA, Circe Mary da Silva. Oscar Zariski e os primórdios da álgebra no Brasil, p.385.
484
Apud SILVA, Circe Mary da Silva. Oscar Zariski e os primórdios da álgebra no Brasil, p.385.
171

vias algébricas são válidos não somente no corpo dos números complexos,
485
mas também nos corpos abstratos..
Na realização desses cursos, Oscar Zariski teve como auxiliar de ensino Jacy
Monteiro, que, desde o ano anterior, era assistente de Cândido Lima, na cadeira de
Complementos de Geometria e Geometria Superior. Ainda nesse ano foi realizada uma série
de seminários acerca de grupos topológicos, muito provavelmente devido à presença de Oscar
Zariski, que, conforme já abordamos anteriormente, também desenvolveu estudos fazendo uso
da topologia, influenciado por Solomon Lefschetz. Foi, portanto, dentro desse ambiente que
Oscar Zariski deu sua série de conferências no decorrer de todo o ano de 1945, cujas notas
dessas conferências foram feitas por Jacy Monteiro.486
Conhecendo bem de perto a escola italiana de matemática, Oscar Zariski sabia que era
necessário instituir no contexto da subsecção das ciências matemáticas da FFCL algumas
teorias que muito provavelmente não foram centrais ou mesmo abordadas pelos matemáticos
italianos, em particular, por Giacomo Albanese, no estudo da geometria algébrica pelo
método geométrico. Essas teorias seriam necessárias para que Oscar Zariski e os outros
matemáticos do Grupo Bourbaki que estiveram posteriormente de passagem na USP tivessem
condições de estabelecer sistematicamente um novo horizonte de pesquisa matemática, por
meio do método algébrico. Nesse sentido, por exemplo, podemos citar a definição de anel,
dada em conformidade aos princípios da estrutura matemática por Oscar Zariski no seu curso
intitulado Introdução à teoria dos ideais, realizado no primeiro semestre de 1945.
De fato, Oscar Zariski afirmou que um conjunto R não vazio com duas operações
binárias, ou seja, + (adição) e ● (multiplicação) é um anel se (R,+) for um grupo abeliano e (R,
●) for um semigrupo e ainda valer a distributividade em relação à adição (à esquerda e à
direita). Isto pode ser observado no próprio texto de Oscar Zariski:
Um anel R é um conjunto de elementos no qual duas operações + (adição) e
● (multiplicação) são dadas, as quais associam a cada par de elementos a, b
um único elemento a + b e um único elemento a ● b, contanto que as
seguintes condições sejam verificadas:
1- Se a, b ϵ R, então a + b ϵ R e a ● b ϵ R (isto é, R é fechado em
relação às operações + e ●).
2- Leis associativas:
(a + b) + c = a + (b + c);
(a ● b) ● c = a ● (b ● c).
3- Existe em R um elemento 0 com a propriedade a + 0 = a, para
qualquer a em R.

485
SILVA, Circe Mary da Silva. Oscar Zariski e os primórdios da álgebra no Brasil, p.385.
486
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v.II, p.
614- 615.
172

4- Para todo elemento a em R existe um inverso a direita em relação


a adição, isto é, um elemento – a com a propriedade: a + (-a) = 0.
5- Lei comutativa da adição: a + b = b + a.
6- Leis distributivas:
a) - a● (b + c) = a ● b + a ● c;
b) - (b+c) ● a = b ● a + c ● a..487
Em seguida pontuou que se em R tivesse, a lei da comutatividade da multiplicação,
isto é, a ● b=b ● a, então R seria dito um anel comutativo. Ainda, chamou atenção que os
axiomas do 1 ao 4, referentes à adição, são os axiomas usuais do que denominamos de grupo,
significando, portanto, que, neste caso, R é um grupo em relação à adição.488 Em outro
momento desse seu curso, Oscar Zariski definiu corpo, na medida em que já tinha trabalhado
com a definição de anel. Em suas palavras:
Um anel K é chamado um corpo se as três seguintes condições estão
verificadas:
1- K contem pelo menos dois elementos;
2- K tem um elemento 1;
3- Cada elemento a em K, a≠ 0, tem um inverso [em relação à
multiplicação]..489
Já na sua exposição sobre a teoria da dimensão, ao que tudo indica ocorrido no
segundo semestre de 1945, Oscar Zariski, pelas notas de aulas de Jacy Monteiro, iniciou-o
com o tópico sobre anéis topológicos. Na sua introdução, Oscar Zariski destacou que na
geometria algébrica clássica a maior parte dos seus resultados mais profundos foram
adquiridos por meio dos métodos transcendentes, ou seja, com a teoria das funções analíticas
e a teoria dos integrais. Oscar Zariski apresentou esses elementos para afirmar que “A
adaptação e o desenvolvimento dêstes métodos transcendentes às variedades algébricas
abstratas é por isso um problema de enorme importância.” Contudo, chamou a atenção para o
fato de que não se tratava de um problema simples, mas “[...] um vasto complexo de
problemas da Algebra Moderna [...]”, os quais convergiam para o problema da aritmetização
dos conceitos fundamentais da análise. Dentro desse contexto, Oscar Zariski disse que, na
série de conferências que iria realizar ao longo de 1945, iria tratar sobre a teoria dos ideais
referentes às pesquisas que estavam sendo desenvolvidas “[...] motivadas pela aspiração de
adaptar as variedades algébricas abstratas [a] alguns processos da teoria das funções
analíticas.” De modo geral, Oscar Zariski fez uso das pesquisas que essencialmente

487
ZARISKI, Oscar. Introdução à teoria dos ideais. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, [n.p].
488
ZARISKI, Oscar. Introdução à teoria dos ideais. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, [n.p].
489
ZARISKI, Oscar. Introdução à teoria dos ideais. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, [n.p].
173

generalizavam os resultados de Claude Chevalley apresentados no seu artigo On the theory of


local rings. 490
Diante da inevitável saída de Oscar Zariski no ano seguinte a sua chegada a USP, pois
havia aceitado uma proposta da Universidade de Illinois491 e, ainda, desejando-se dar
continuidade aos estudos algébricos na mesma linha de raciocínio da que foi feita por Oscar
Zariski, começou-se a articulação para a vinda de outro professor. Não coincidentemente foi
aprovado pela Congregação da FFCL, numa reunião realizada em outubro de 1945, o nome de
Jean Dieudonné, amigo de André Weil desde a época em que fizeram a École Normale de
Paris492. Nesse período André Weil já havia retornado da França para onde foi em junho desse
mesmo ano, tendo, inclusive, desfrutado da companhia de Jean Dieudonné no já referido
Congrès du café.
Jean Dieudonné parece não ter tido a sua trajetória profissional marcada por questões
de ordem política e religiosa, tal como aconteceu com André Weil e Oscar Zariski. Neste
sentido, ao que tudo indica, o que foi determinante para a vinda de Jean Dieudonné para o
ambiente da subsecção das ciências matemáticas da FFCL, além da muito provável
interferência de André Weil, foi o fato de que desde 1937 ele apenas exercia a função de
Maître de Conférence, junto à Faculdade de ciência em Nancy, uma posição que era
equivalente, segundo Armand Borel (1923-2003), à de professor assistente493. Após sair da
USP, em novembro de 1947 – fora contratado em maio de 1946 – Jean Dieudonné retornou a
Nancy, mas não mais para exercer a função de Maître de Conférence e sim para ser professor
da Faculdade de Ciência, permanecendo nessa faculdade de 1948 a 1952, quando se deslocou
para a Universidade de Michigan. Ainda, antes de retornar mais uma vez para a França, foi
professor da Northwestern University até o ano de 1959. Já em solo francês, Jean Dieudonné,
após trabalhar por cinco anos no Institut des hautes Études Scientifique, assumiu, até 1970,
uma cadeira na Faculdade de Ciência em Nice.494
Lembrado muitas vezes pelas pessoas com que conviveu, a exemplo de Armand Borel
e Pierre Emile Jean Cartier (1932-) – os quais se tornaram bourbakistas495, respectivamente

490
ZARISKI, Oscar. Teoria da dimensão. Notas de aula de Luiz Henrique Jacy Monteiro, p.1.
491
Mais detalhes dessa transferência, veja: PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p. 82.
492
JACKSON, Allyn. Interview with Henri Cartan, p. 785; PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas
Bourbaki na Universidade de São Paulo, p.266.
493
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Jean Alexandre Eugène Dieudonné. School of Mathematic
and Statistics, [n.p.]; BOREL, Armand. Twenty-five years with Nicolas Bourbaki, 1949-1973, p. 373.
494
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Jean Alexandre Eugène Dieudonné. School of Mathematic
and Statistics, [n.p.].
495
Já da terceira geração do Grupo Bourbaki. Cf. O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Bourbaki:
the post-war years. School of Mathematic and Statistics, [n.p.].
174

em 1949 e 1955 – como um homem de notável memória ou como um excelente pianista a


nível amador, ou ainda por ter sido o grande escriba dos textos finais do Grupo Bourbaki496,
Jean Dieudonné começou a sua carreira fazendo pesquisa em análise de polinômios. Ao longo
de sua carreira profissional, Jean Dieudonné produziu trabalhos individuais abordando
diversos assuntos do conhecimento matemático. Neles, estão inclusos trabalhos na topologia
geral, nos espaços vetoriais topológicos, na geometria algébrica, na teoria dos invariantes, e
também em história da matemática.497
Durante a sua permanência na subsecção das ciências matemáticas da FFCL, no ano
acadêmico de 1946, Jean Dieudonné ministrou um curso sobre álgebra moderna, em especial
sobre grupos de Galois e, no ano letivo de 1947, tratou de topologia plana. Tal como
aconteceu com Oscar Zariski, Jacy Monteiro foi seu auxiliar de ensino durante esse período,
também se responsabilizando em transcrever todas as suas notas de aulas.498 Particularmente,
a redação das notas de aula de Jean Dieudonné referentes ao seu curso sobre Álgebra
Moderna e Grupo de Galois foi, segundo Leopoldo Nachbin:
[...] uma primeira versão do livro de Bourbaki – naquela época, o pessoal do
grupo de Bourbaki ainda estava redigindo de forma preliminar o livro. [...]
Na minha opinião, o curso de Dieudonné, também publicado por Jacy
Monteiro, chega a ser melhor que o livro de Bourbaki. O curso de
Dieudonné é cheio de exemplos, foi feito de modo acessível. Já o livro de
Bourbaki expõe a matemática de cima para baixo, partindo do mais
complexo para chegar aos exemplos. 499
Essas notas de aulas, que foram publicadas em três volumes, sob o título geral de
Teoria dos Corpos Comutativos, tornaram-se segundo Ubiratan D’Ambrosio, “[...] um livro
básico para os cursos da Universidade [de] São Paulo”500. O primeiro e o segundo volumes
foram publicados, respectivamente, nos anos de 1946 e 1947 pela Sociedade de Matemática
de São Paulo. Já a edição do terceiro volume saiu apenas em 1958 sob os créditos do
Conselho Nacional de Pesquisas501 (CNPq).502

496
Veja ainda: BEAULIEU, Liliane. Bourbaki à Nancy, p.33.
497
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Jean Alexandre Eugène Dieudonné. School of Mathematic
and Statistics, [n.p.]; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Pierre Emile Jean Cartier. School of
Mathematic and Statistics, [n.p.]; JACKSON, Allyn. Interview with Henri Cartan, p. 785; BOREL, Armand.
Twenty-five years with Nicolas Bourbaki, 1949-1973, p. 373.
498
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v.II,
p.615-616.
499
NACHBIN, Leopoldo. Ciência e sociedade, p.23.
500
D’AMBROSIO, Ubiratan. História da matemática no Brasil: uma visão panorâmica até 1950, [n.p.].
501
A partir de 1974 por meio da Lei n. 6.129 passa a ser denominado de Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, preservando, contudo, a sua sigla, ou seja, CNPq. Veja: PORTAL DO CONSELHO
NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Disponível em: <
http://www.cnpq.br/web/guest/anos-70>.
502
Cf. DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos, v.I. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro
(1946); DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos: teoria de Galois v.II. Notas de aulas de Luiz
175

Na introdução do primeiro volume dessas notas, Jean Dieudonné expôs que, ao longo
desse curso, trabalhou com a já mencionada pesquisa de Ernst Steinitz sobre a teoria abstrata
dos corpos publicada em 1910. Isto porque esse matemático nessa sua obra, segundo o
próprio Jean Dieudonné, “[...] deu uma classificação completa de tôdas as estruturas possíveis
de corpo comutativo [...]”503, algo que estava em conformidade com o pensamento
estruturalista da matemática da escola bourbakista. No entanto, para fazer esse estudo, antes
recordou504, nos dois capítulos iniciais, apresentados no primeiro volume dessas notas, as
noções ditas fundamentais da álgebra moderna – grupos, anéis, espaços vetoriais e polinômios
– que seriam necessárias para atingir os seus propósitos. Ainda nesse volume, no terceiro
capítulo, foi estudada a teoria geral das extensões de um dado corpo. No segundo volume, o
seu quarto capítulo foi reservado para fazer os estudos da teoria dos isomorfismos das
extensões algébricas de um corpo, a qual permitia estabelecer a distinção entre extensões
separáveis e inseparáveis e que segundo o próprio Jean Dieudonné, teria aplicação na teoria
de Galois. Em seu capítulo VI desse mesmo volume e no sétimo capítulo presente já no III
volume de suas notas, Jean Dieudonné tratou basicamente de dois tipos particulares de corpos,
isto é, os corpos finitos e os ordenados. Na síntese de Jean Dieudonné, os dois últimos
capítulos foram direcionados para “[...] estudo das avaliações sôbre um corpo e sôbre suas
extensões algébricas, e às aplicações desta noção à teoria da divisibilidade nas extensões
algébricas de um corpo.”505.506
Como não poderia ser diferente, já que Jean Dieudonné era um bourbakista, todas as
suas discussões nesse curso sobre corpos comutativos tiveram como linguagem a teoria dos
conjuntos. Era algo que estava naturalmente imbricado no contexto das suas definições e
demonstrações, explicitado, desde a introdução de suas notas, na medida em que abriu nela
um tópico para tratar do que ele chamou de Noções gerais da teoria dos conjuntos507. Em
suma, havia uma clara necessidade de direcionar todos aqueles que assistiram ao seu curso,
assim como fez André Weil e Oscar Zariski, para um fazer matemático pelo método algébrico

Henrique Jacy Monteiro (1947); DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos: corpos ordenados e
teoria das avaliações, v.III. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro (1958).
503
DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos, v.I. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, p.2.
504
Jean Dieudonné pode ter dito isto por conta das passagens de André Weil e Oscar Zariski no ambiente da
subsecção das ciências matemáticas da FFCL. Em particular em relação ao curso que foi ministrado por Oscar
Zariski sobre a teoria dos ideais, o qual já expusemos alguns de seus aspectos.
505
DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos, v.I. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, p.
3.
506
DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos, v.I. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, p.
2-3.
507
DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos, v.I. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, p.
3.
176

fazendo uso do seu modelo estruturalista. Isto é notório diante das escolhas que foram feitas e
apresentadas por Jean Dieudonné na escrita da introdução desse referido curso.
Por exemplo, em uma breve discussão histórica sobre o processo de constituição do
conceito de corpo, Jean Dieudonné categoricamente considerou que durante o séc. XIX foi
possível estender o conceito de corpo, dentre outros estudos que convergiam com a sua linha
de pensamento, devido ao trabalho sobre corpos finitos que afirmou ter procedido das
pesquisas de Galois; ao método de Dedekind e Weber acerca das curvas algébricas,
fundamentado sobre a teoria dos corpos de funções algébricas e ao trabalho de Kurt Hensel
que introduziu a noção de “número p-ádico”.508
Há, portanto, uma clara escolha, das teorias que, para ele, Jean Dieudonné,
contribuíram para a formação do conceito de corpo. Isto pode ser especialmente observado
quando escolheu citar o trabalho de Dedekind e Weber sobre curvas algébricas ao invés dos
trabalhos de Riemann, que teve início com a defesa da sua tese, em 1851, na qual introduziu
as curvas complexas nos estudos das funções elípticas e abelianas, mas notadamente de cunho
geométrico. É ainda mais evidente se pararmos para pensar que Dedekind havia assistido,
pelo menos um curso que Riemann realizou em Göttingen no período de 1855-1856,
trabalhando as suas ideias sobre as ditas superfícies de Riemann, incluindo o estudo das
funções abelianas e funções elípticas. Ou seja, a teoria de Dedekind e Weber foi proveniente
dos estudos de Riemann, porém fazendo uma discussão algébrica tendo a aritmética como a
sua linguagem.509
Foi então dentro desse pensamento que Jean Dieudonné, logo no primeiro parágrafo
de seu tópico sobre a teoria dos conjuntos, de forma análoga à definição de função dada por
André Weil, apresentou a sua definição de função afirmando que:
[...] Uma aplicação de um conjunto E em um conjunto F é uma operação
que, a cada elemento x de E, faz corresponder um elemento e só um y de F,
se f desígna uma aplicação de E em F, indica-se com f(x) ou fx (notação
indicial) [que é] o elemento de F que corresponde à x pela aplicação f, e que
se chama a imágem de x por f, ou o valor de f para o elemento x. A
aplicação f se escreve também x→ f(x).. (grifo no original). 510
A definição de função na linguagem dos conjuntos era central para que o Grupo
Bourbaki, representado, nesse momento, na subsecção das ciências matemáticas por André
508
DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos, v.I. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, p.
2-3.
509
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Georg Friedrich Bernhard Riemann. School of Mathematic
and Statistics, [n.p.]; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Julius Wilhelm Richard Dedekind.
School of Mathematic and Statistics, [n.p.]; SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de
l’arithmétisation..., p. 12.
510
DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos, v.I. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, p.
3.
177

Weil e Jean Dieudonné, conseguisse estabelecer o seu estilo estruturalista de organizar e


elaborar as teorias da matemática. Isto pode ser observado, por exemplo, na definição de
grupo apresentada por Jean Dieudonné. Ela foi articulada a partir da definição de uma
aplicação, chamada de lei de composição do grupo, que nada mais é – baseando-nos no
próprio livro de Nicholas Bourbaki intitulado Algèbre511 – do que uma função, com a
peculiaridade de que tal função, dado um conjunto G, é definida de GXG em G, que verifica
os axiomas da associatividade, do elemento neutro e do elemento inverso. Nas suas próprias
palavras:
[...] Diremos que um conjunto G é um grupo quando for definida uma
aplicação (lei de composição do grupo) de GXG em G, que verifique os
seguintes axiomas:
a) - (x,y)z = x(x,z) para todos os elementos x,y,z de G, isto é, a lei de
composição entre os elementos do conjunto é associativa.
b) - Existe em G um elemento e (denominado elemento neutro ou
elemento unidade de G) tal que
ex = xe = x,
para todo x ϵ G.
c) - Para todo elemento x de G existe em G um elemento x-1 (denominado
inverso de x) tal que
xx-1 = x-1x = e..512
Com a saída de André Weil e Jean Dieudonné, deu-se a continuidade da inserção da
escola bourbakista na subsecção das ciências matemáticas da FFCL com a contratação de Jean
Delsarte que não se resumiu numa única participação. Jean Delsarte iniciou a sua participação
nessa faculdade em 1948 lecionando um curso sobre teoria das distribuições. Conforme Rute
da Cunha Pires, Jean Delsarte, nesse primeiro ano, veio ao Brasil formalmente como
professor contratado para assumir a cadeira de análise superior, mas, devido à sua
impossibilidade de permanecer regularmente à frente dessa cadeira, exerceu as suas atividades
como se fosse um professor visitante. Rute da Cunha Pires fez essa afirmação baseando-se nas
atas das reuniões da FFCL: duas referentes ao do Conselho Técnico Administrativo, ocorridas
em 25 de outubro de 1947 e em 31 de março de 1950; e mais outras duas, só que realizadas
pela Congregação, correspondentes às datas de 30 de agosto e 27 de outubro, ambas de
1948.513 Jean Delsarte ainda retornou a FFCL nos três anos subsequentes, mas, de fato, como
professor visitante; em 1949, ministrou um curso sobre espaços vetoriais topológicos e teoria
da integração; realizou, durante os meses de agosto, setembro e outubro de 1950, um curso

511
BOURBAKI, Nicholas. Introduction. In: Algèbre, p.xi-xii.
512
DIEUDONNÉ, Jean. Teoria dos corpos comutativos, v.I. Notas de aulas de Luiz Henrique Jacy Monteiro, p.
8.
513
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v. II,
p.616; PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 269-271.
178

sobre a teoria da integração; e, em 1951, mais precisamente de julho a início de outubro, deu
um curso sobre hipergrupos e álgebras de Lie. 514
Quando passou pelo Brasil, Jean Delsarte já tinha uma carreira consolidada. Desde
1927, trabalhava na Faculdade de Ciências de Nancy, onde permaneceu por toda a sua vida
profissional, o que não lhe impediu de fazer visitas regulares em outras instituições, tal como
aconteceu com a USP. Além de exercer as suas atividades de professor-pesquisador, Jean
Delsarte também teve uma forte inclinação pelas funções administrativas, dentre elas fez parte
do conselho de admissão da École Centrale de Paris nos anos de 1930 e foi, pelo período de
1932 a 1936, chefe de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique. Sua vida
também foi interceptada pelos dois maiores conflitos mundiais. Ainda criança, ele e toda a sua
família tiveram que sair de sua cidade natal, Fourmies, devido à invasão do exército alemão
na cidade, em 1914. Todos foram para Rouen, com exceção de seu pai – dono de uma fábrica
têxtil, que preferiu permanecer em Fourmies para tentar salvar o pouco que restou da sua
fábrica. Durante a Segunda Guerra Mundial, já adulto, Jean Delsarte, que havia feito o
treinamento militar obrigatório, tornando-se oficial de artilharia, foi encarregado, em 1939, de
comandar uma unidade, a 8ª Bateria. Fez isto até 1940, por ter sido o tempo necessário para
cumprir a sua obrigação de levar tal Bateria de Jura e Alpes para Alsace, sendo desmobilizada
em Nimes. Resumidamente essa foi a sua primeira participação na II Guerra Mundial. A
outra, de forma indireta, mas como uma consequência das ações dessa guerra, Jean Delsarte
direcionou-se para a Faculdade de Ciências de Grenoble em substituição a Jean Favard (1902-
1965), professor de matemática capturado e mantido como prisioneiro de guerra pelos
alemães na Alemanha. Naquela conjuntura o caminho mais seguro para Jean Delsarte era
permanecer em Grenoble, no entanto ele preferiu retornar, em 1941, a Nancy, que se
localizava em uma região já invadida pelos alemães.515
A participação bourbakista na USP tem continuidade ao longo de toda a década de
1950. Durante o mês de outubro de 1952, na FFCL, no seu Departamento de Matemática,
ocorreram conferências realizadas por Laurent Schwartz, bourbakista já da sua segunda
geração, que ministrou um curso sobre a teoria da distribuição e das funções médio-
periódicas; por Jean Dieudonné, que retornou ao Departamento de Matemática, dessa vez para
proferir um curso sobre grupos clássicos e acerca da matemática na antiga Grécia e por

514
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v. II,
p.616; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1950, p. 324;
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1951, p. 307; PIRES,
Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 271-272.
515
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Jean Frédéric Auguste Delsarte. School of Mathematic and
Statistics, [n.p.];
179

Charles Ehresmann – membro Bourbaki de 1935 a 1950 – que deu duas conferências sobre
espaços fibrados. Ainda, no segundo semestre desse mesmo ano, Samuel Eilenberg ministrou
um curso de topologia algébrica. Tal como Laurent Schwartz, também era da segunda geração
Bourbaki, participando ativamente das atividades desse grupo por quinze anos, isto é, de 1951
a 1966.516
Nos anos de 1953 e 1954, veio o bourbaki da terceira geração, o nascido na Alemanha
e de origem judia Alexander Grothendieck517, indicado pelo seu professor Laurent Schwartz,
que estava no Departamento de Matemática da FFCL em outubro de 1952, para ministrar um
curso. Nesse período em que permaneceu na USP, Alexander Grothendieck deu um curso
sobre espaços topológicos vetoriais518, escrevendo ele mesmo as suas notas que foram
publicadas, em 1954, numa ação conjunta519 do Departamento de Matemática da FFCL e do
Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA)520, que havia sido criado em 1952 pelo
CNPq. Tal publicação tem como autor do capítulo introdutório o então estudante do curso
José Barros Neto521, que tratou de alguns pré-requisitos para um melhor entendimento do
conteúdo abordado por Alexander Grothendieck. Não conseguimos obter informações se ele
teve um assistente para auxiliar em suas aulas, tal como foi praxe com outros matemáticos
estrangeiros que também passaram pela USP. Assim, o fato de ter escrito as suas próprias
notas pode ter sido uma consequência de não ter tido um assistente, seja por uma opção sua,

516
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1952, p. 26-27;
PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 283 e 288;
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Samuel Eilenberg. School of Mathematic and Statistics,
[n.p.]; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Laurent Schwartz. School of Mathematic and
Statistics, [n.p.]; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Charles Ehresmann. School of Mathematic
and Statistics, [n.p.]; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Bourbaki: the post-war years. School
of Mathematic and Statistics, [n.p.]; AGERON, Pierre. Autour d’Ehresmann: Bourbaki, Cavailles, Lautman.
In: Charles Ehresmann: 100 ans, p. 165-166; MASHAAL, Maurice. Bourbaki: A secret society of
mathematicians, p. 18.
517
Nasceu sob o nome de Alexander Raddatz, sobrenome do primeiro marido de sua mãe, que se chamava Alf
Raddatz. SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, p. 931.
518
Tanto no artigo de Allyn Jackson como no texto de Alberto de Azevedo, só há menção desse curso. Alberto
de Azevedo inclusive afirmou, diante do que conseguiu apurar, que esse curso foi o único que Alexander
Grothendieck ministrou na USP. JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void:
the life of Alexander Grothendieck (first part), p.1044; AZEVEDO, Alberto de. Grothendieck no Brasil, p. 41.
519
A informação da publicação dessa ação conjunta foi retirada do Banco de Dados Bibliográficos da USP.
520
Maiores informações sobre a criação do IMPA veja, por exemplo: SILVA, Circe Mary da. O IMPA e a
comunidade de matemáticos no Brasil; ______. A construção de um instituto de pesquisas matemáticas nos
trópicos – O IMPA.
521
José Barros Neto foi estudante do curso de matemática da FFCL no período de 1947 a 1949. Doutorou-se em
ciências por essa mesma Instituição em 1960, sob a orientação de Cândido Lima. Atualmente é professor
emérito do Departamento de Matemática de New Brunswick da Universty Rutgers nos Estados Unidos. Suas
linhas de pesquisas são em análise funcional e equações diferenciais parciais. FACULDADE DE FILOSOFIA,
CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v. II, p.730-731; PIRES, Rute da Cunha.
Anexo: atas de doutoramentos em matemáticas de 1941 à1968. In: A presença de Nicolas Bourbaki na
Universidade de São Paulo, [n.p]; RUTGERS, the State Universty of New Jersey. Disponível em:
http://www.math.rutgers.edu/grad/people/graduate_faculty.html.
180

seja porque a universidade não disponibilizou. Conjecturamos que, dessas duas


possibilidades, a mais provável foi de ter sido uma escolha do próprio Alexander
Grothendieck em não ter um assistente à sua disposição. Isto porque, no período em que
esteve no Brasil, as pessoas que tiveram um convívio mais próximo com ele, tornando-se
inclusive suas amigas, tal como Chaim Samuel Hönig (1926-) – ex-aluno e na época ainda
professor assistente do Departamento de Matemática da FFCL – caracterizou-o como um
homem de existência essencialmente espartana e solitária.522
Tal caracterização é muito apropriada para um homem que teve a sua vida desde muito
cedo marcada por desencontros, abandonos e luta pela sobrevivência, por ter sido filho de pais
anarquistas e ativistas revolucionários e ainda de pai judeu. É um período um tanto quanto
nebuloso na vida de Alexander Grothendieck, com poucas informações que não raramente são
incompletas. Segundo os trabalhos de Allyn Jackson e de Winfried Shcarlau, o seu pai, que
pode ter se chamado Alexander Shapiro (1889- 1942), depois de muitos anos preso – foi
condenado à prisão perpétua por volta dos seus dezessete anos de idade, devido ao seu
envolvimento em revoltas na Rússia czarista523– conseguiu fugir e sair desse seu país natal em
1921, para nunca mais voltar. Daí por diante, visando esconder o seu passado político, adotou
o nome de Alexander Tanaroff. A mãe de Alexander Grothendieck, a alemã Johanna (Hanka)
Grothendieck (1900- 1957), oriunda de uma família burguesa e luterana, rebelou-se contra a
sua educação tradicional e foi viver em Berlim, na época celeiro da cultura vanguardista
revolucionária e dos movimentos sociais. Suas vidas entrelaçaram-se por volta de 1924, nessa
cidade, local em que o já Alexander Tanaroff se encontrava novamente atuando, depois de ter
passado um tempo na França e na Bélgica, associado a anarquistas e a grupos revolucionários.
Ele tinha deixado para trás mulher e filho. Ela vivia em um casamento e era mãe de uma
menina chamada Maidi. Uniram-se e tiveram um filho, Alexander Grothendieck.524
Com a chegada dos nazistas ao poder em 1933, Alexander Tanaroff fugiu de Berlim
para Paris sozinho, deixando sua mulher e seu filho Alexander Grothendieck. Por sua vez, em
dezembro desse mesmo ano, Hanka Grothendieck, vai atrás de seu marido. Consciente que
viveria perigosamente como ativista política, Hanka Grothendieck deixou Maidi, embora ela
não tivesse nenhum problema físico, em uma instituição para crianças deficientes e Alexander
522
JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p.1044;
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1952, p. 27;
AZEVEDO, Alberto de. Grothendieck no Brasil, p. 41.
523
Inicialmente foi condenado à morte juntamente com todos os seus companheiros, mas devido a sua pouca
idade, foi perdoado e sentenciado à prisão perpétua, onde permaneceu por dez anos. SCHARLAU, Winfried.
Who is Alexander Grothendieck, p. 930.
524
SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, p. 930-931; JACKSON, Allyn. Comme appelé du
néant – as if summoned from the void…(first part), p.1040.
181

Grothendieck, até então com apenas cinco anos, sob os cuidados de uma família adotiva,
chefiada pelo ex-padre luterano e oficial do exército, Wilhelm Heydorn – que, juntamente
com a sua esposa, Dagmar Heydorn, cuidava de várias crianças que haviam sido separadas de
suas famílias no tumultuado período que antecedeu a II Guerra Mundial.525
Alexander Grothendieck viveu até os 11 anos com o casal Heydorn quando eles, em
1939, vivendo sob forte pressão política devido à eminência da II Guerra Mundial, não
tiveram mais condições de manter as suas crianças adotivas. O caso de Alexander
Grothendieck foi particularmente complicado, pois seus traços físicos eram característicos de
um judeu. Dessa forma, era extremamente perigosa a sua permanência na Alemanha. Assim,
com ajuda do consulado francês, conseguiram localizar e estabelecer um contato com os pais
de Grothendieck e, por conseguinte, embarcaram-no em um trem em direção a Paris.
Alexandre Grothendieck reuniu-se com os seus pais em maio desse mesmo ano. No entanto,
sua vida na França não foi menos sofrida, seus pais continuavam atuando em ações
revolucionárias e, por isso, eram vistos pelos franceses como estrangeiros perigosos, ou como
o próprio Alexander Grothendieck pontuou, “uns indesejáveis”526. Dessa forma, Alexander
Grothendieck e sua mãe eram às vezes evitados pelos franceses, que desconheciam a oposição
de sua mãe ao regime fascista. Logo depois seu pai foi preso, Alexander Grothendieck nunca
mais o veria novamente. Preso em um dos piores campos de concentração, o Le Vernet,
Alexander Tanaroff foi extraditado para a Alemanha, em 1942, e levado para Auschwitz. Seu
nome, Alexander Tanaroff, apareceu na lista de vítimas do Shoah (holocausto).527
O próprio destino de Alexander Grothendieck e de sua mãe só não foi mais dramático
do que o de Alexander Tanaroff porque conseguiram sair vivos após terem também sido
presos em um campo de concentração, mais precisamente no de Rieucros, em 1940528.
Mesmo vivendo nesse campo, Alexander Grothendieck, segundo Winfried Scharlau, teve
acesso à escola e algumas vezes teve, inclusive, aulas particulares.529 Apesar de não estar
claro como uma criança, nas condições em que ele se encontrava, conseguir ser aceita para
frequentar uma escola, a possibilidade de chegar a ela foi explicada pelo próprio Alexander
Grothendieck. Segundo ele:

525
SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, p. 931; JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant
– as if summoned from the void…, p.1040.
526
GROTHENDIECK, Alexander. Paseo por uma obra – o El niño y la madre. In: GROTHENDIECK,
Alexander. Cosechas y siembras: reflexiones y testimonios sobre un pasado de matemático, p. 9.
527
SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, p. 931; JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant
– as if summoned from the void… (first part), p.1040-1041.
528
JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1041.
529
SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, p. 931.
182

[...] a administração do campo fazia vista grossa com as crianças no


campo, por mais indesejáveis que fossem. Entrávamos e saíamos
quase quando queríamos. Eu era o mais velho e o único que ia à
escola, quatro ou cinco quilômetros dali, mesmo com neve ou vento,
com uns sapatos quaisquer que sempre se encharcavam..530
Ainda que a administração do campo fizesse vista grossa, Alexander Grothendieck não
tinha plena liberdade. Dessa forma, também não está muito claro, como Alexander
Grothendieck, por volta de 1942, foi parar sozinho na cidade de Le Chambon-sur-Lignon. Sua
mãe permaneceu no campo de concentração Rieucros. Tal cidade era um centro de resistência
contra os nazistas, que tinha no pastor protestante André Trocmé a figura central nesse
movimento de resistência coletiva. Lá eram acolhidos refugiados da guerra – não apenas
judeus – que conseguiam documentos falsos, alimentação e transporte para a Suíça. Foi dessa
forma que milhares de pessoas foram salvas dos campos de extermínio alemães. Winfried
Scharlau conjecturou que talvez tenha sido por meio de André Trocmé que Alexander
Grothendieck conseguiu chegar em Le Chambon-sur-Lignon, visto que ele viajava
sistematicamente aos campos de concentração franceses e tentava, em particular, retirar
quantas crianças fosse possível.531 Foi em Le Chambon-sur-Lignon que Alexander
Grothendieck, em 1945, concluiu a sua escolaridade com o baccalauréat532. Em 1945, com o
final da II Guerra Mundial, Alexander Grothendieck, já em companhia de sua mãe,533 vai para
Université de Montpellier fazer o curso de licenciatura em ciências. Em 1948, já tendo
concluído esse seu curso, foi para Paris, na época considerada o centro de ebulição da
matemática francesa. Lá conheceu alguns dos mais importantes matemáticos de então no
seminário de Henri Cartan. Eles foram: o próprio Henri Cartan, André Weil, Jean Leray,
Laurent Schwartz e Claude Chevalley. E ainda, outros promissores matemáticos da nova
geração, os seus contemporâneos Jean-Pierre Serre (1926-) – que se tornou o seu grande
amigo –, Pierre Cartier, François Georges René Bruhat (1929-) e Armand Borel. Esses

530
[...] la administración del campo hacía la vista grossa con los niños del campo, por más indeseables que
fuesen. Entrábamos y salíamos casi como queríamos. Yo era el mayor y el único que iba al instituto, a cuetro o
cinco kilómetros de allí, incluso con nieve o vento, con unos zapatos cualesquiera que siempre se calaban..
GROTHENDIECK, Alexander. Paseo por uma obra – o El niño y la madre. In: GROTHENDIECK,
Alexander. Cosechas y siembras..., p. 9.
531
SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, p. 931-932.
532
Um exame nacional que determina o fim do ensino secundário francês e dar acesso ao ensino superior.
533
Depois de todos os encontros e desencontros, Hanka Grothendieck se tornou uma pessoa constante na vida de
Alexandre Grothendieck só se separaram em 1957, ano em que ela morreu. JACKSON, Allyn. Comme appelé
du néant – as if summoned from the void…(first part), p. 1047.
183

matemáticos, tal como o próprio Alexander Grothendieck, formaram a terceira geração de


bourbakistas.534
Após ter participado do seminário de Henri Cartan, com a presença de todos esses
matemáticos, Alexander Grothendieck, que tinha algumas lacunas a ser preenchidas devido à
sua precária formação matemática e também por ter mostrado, na época, mais interesse pelos
estudos dos espaços vetoriais topológicos do que em geometria algébrica, aceitou o conselho
de André Weil e de Henri Cartan e foi para Nancy, local em que poderia não só aperfeiçoar a
sua matemática, mas também se aprofundar nesse seu tema de interesse. Isto porque, segundo
Paulo Ribenboim (1928-)535, o ritmo em Nancy era menos acelerado do que em Paris e os
professores dispunham de mais tempo para se dedicar aos seus alunos536. Na Faculdade de
Ciências de Nancy, encontravam-se no seu corpo docente, além de outros matemáticos
renomados, Jean Dieudonné e Laurent Schwartz, que trabalhavam na área de interesse de
Alexander Grothendieck. Foram eles que participaram ativamente no aprofundamento da
formação matemática de Alexander Grothendieck, inclusive Laurent Schwartz que, diante do
convívio diário com Alexander Grothendieck, começou a mostrar preocupação não apenas
com o lado profissional de seu pupilo, mas também com o pessoal.537 Também de origem
judia, mas um ateu confesso, Laurent Schwartz, não tão intensamente quanto foi na vida de
Alexander Grothendieck, também passou por momentos de perigo durante a II Guerra
Mundial. Isto foi devido ainda à sua relação com os trotskistas. Talvez por conta dessa
vivência, somada ao seu ativismo político e olhar humanitário, que Laurent Schwartz tenha
enxergado e se interessado em ajudar Alexander Grothendieck para além dos muros
538
acadêmicos. Neste sentido, certa vez, lembrou Paulo Ribenboim, Laurent Schwartz
solicitou-lhe que fizesse amizade com Alexander Grothendieck para que ele não fosse um
sujeito voltado apenas para o trabalho, algo que também, conforme já pontuamos, foi

534
SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, p. 932; JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant
– as if summoned from the void… (first part), p. 1041; GROTHENDIECK, Alexander. Paseo por uma obra –
o El niño y la madre. In: GROTHENDIECK, Alexander. Cosechas y siembras..., p. 9-11; O’CONNOR, Jonh
J.; ROBERTSON, Edmund F.. François Georges René Bruhat. School of Mathematic and Statistics, [n.p.];
535
Matemático brasileiro, formado em 1948 pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil,
que foi para Nancy, em 1950, por meio de uma bolsa de estudos, tornando-se aluno de Jean Dieudonné. Foi
nesse período que conheceu Alexander Grothendieck. Doutorou-se em ciências, em 1957, pela Universidade
de São Paulo, sob a orientação de Cândido Lima. Atualmente Paulo Ribenboim é professor emérito da
Queen’s University em Ontario, Canadá. JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from
the void… (first part), p. 1043; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Paulo Ribenboim. School of
Mathematic and Statistics, [n.p.]; PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de
São Paulo, p.333.
536
Apud JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1042-
1043
537
JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1043
538
Mais detalhes, veja: CHANDRASEKHARAN, K. The autobiography of Laurent Schwartz.
184

observado, posteriormente, por Chaim Samuel Hönig quando Alexander Grothendieck esteve
no Brasil. Na síntese de Allyn Jackson, a lembrança de Paulo Ribenboim foi apresentada da
seguinte forma: “Ribenboim lembrou Schwartz dizendo-lhe: Você parece ser um bom e bem
equilibrado homem jovem; você deveria fazer amizade com Grothendieck e fazer algo para
ele que não seja apenas trabalho.”.539
Outro momento de intervenção de Laurent Schwartz na vida de Alexander
Grotendieck, que podemos destacar, foi de ordem profissional. Foi por sua sugestão, como já
pontuamos anteriormente, que Alexander Grothendieck veio para o Brasil lecionar pelo
Departamento de Matemática da FFCL, muito provavelmente motivado pelas condições
favoráveis que essa instituição lhe deu para exercer as suas atividades de ensino e, sobretudo,
de pesquisa. Isto porque Alexander Grothendieck, que não tinha uma pátria definida, passava
por dificuldades em conseguir um vínculo empregatício que estivesse ao seu nível intelectual
e, mesmo quando terminasse o seu doutorado, essa situação muito provavelmente não se
modificaria. O seu único subsídio vinha de uma bolsa de estudos que tinha, desde 1950, no
Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Naquela conjuntura era bastante
complicado um cidadão não francês conseguir uma posição de qualidade no seu mercado de
trabalho. Ele poderia ter optado em obter a cidadania francesa, mas assim teria que
obrigatoriamente prestar serviço militar, algo a que veementemente se negava. Alexander
Grothendieck, já nessa época, mas ainda muito provavelmente sem ter consciência disso,
mostrava os primeiros sinais de que, cerca de quinze anos depois, deixaria a pesquisa
matemática em segundo plano, inclusive renunciando-a completamente para se tornar um
radical ativista político, lutando contra qualquer ação que levasse à destruição da raça humana
e do meio ambiente, enfim, aflorando os ideais de seus pais.540
Mas dando continuidade ao período em que se dedicava integralmente à pesquisa
matemática, em 1953 Alexander Grothendieck obtém o seu doutorado. Foi complicado
escolher o trabalho que representaria a sua tese, pois havia produzido seis artigos541, sendo

539
And he worked very hard. Ribenboim remembered Schwartz telling him: You seem to be a nice, well-
balanced young man; you should make friends with Grothendieck and do something so that he is not only
working.. JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p.1043.
540
JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p.1044; .
SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, passim.
541
Alexander Grothendieck produziu os seis trabalhos a partir da leitura de um artigo que Laurent Schwartz o
solicitou que lesse. Tal artigo era de autoria do próprio Laurent Schwartz e de Jean Dieudonné. Nele, eles
estavam investigando sobre os espaços localmente convexos, buscando uma teoria geral para a sua dualidade.
Era um estudo inicial, no qual traziam uma lista de quatorze problemas que precisava ainda ser resolvidos.
Tais problemas foram todos resolvidos por Alexander Grothendieck poucos meses depois, passando ainda a
trabalhar em outras questões envolvendo análise funcional. SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander
185

que qualquer um, segundo Jean Dieudonné, poderia representar muito bem a sua tese de
doutorado542. Não conseguimos obter informações dos motivos, mas foi escolhido o seu
trabalho intitulado Topologiques Produits et tensoriels nucléaires espaces, talvez porque, tal
texto, segundo Allyn Jackson, “[...] mostra os primeiros sinais da generalidade do
pensamento que viria caracterizar a obra inteira de Grothendieck. A noção de espaços
nucleares, que teve amplas aplicações, foi proposta pela primeira vez nesse trabalho.”543 A
intensidade da dedicação de Alexander Grothendieck à pesquisa matemática nesse período
pode ser, de certa forma, observada na sua passagem pelo Brasil, onde, no período de dois
anos de sua permanência, submeteu, segundo pesquisa de Alberto de Azevedo, quatro
artigos544 em revistas brasileiras545, excluindo dessa lista o seu já mencionado curso sobre
espaços vetoriais topológicos.
Foi justamente nesse período no Brasil, a partir de 1954, que Alexander Grothendieck
começou, segundo José Barros Neto, a pensar em mudar de campo de pesquisa, mais
precisamente a voltar-se para a geometria algébrica, que se tornou o seu foco de estudo nos
quinze anos seguintes. Já com essa ideia inserida no seu pensamento, Alexander
Grothendieck, do Brasil, foi para a Universidade de Kansas, em 1955. Retornou à França no
ano seguinte, integrando-se ao CNRS, que continuava lhe dando apoio financeiro. No
entanto, foi apenas em 1958, quando assumiu uma posição no Hautes Études Scientifiques
(IHES) que Alexander Grothendieck, juntamente com Jean Dieudonné – nesse momento seu
colega de profissão – começou a trabalhar formalmente na sua pesquisa sobre os Eléments de
géométrie algébrique, universalmente como EGA. Foi ainda nesse período em que
permaneceu no IHES, doze anos, que Alexander Grothendieck casou-se e teve três filhos,
antes já tinha um filho de uma outra relação.546
Na construção de seus trabalhos, mesmo sendo um bourbaki desde o final dos anos de
1950, Alexandre Grothendieck, segundo Allyn Jackson, seguia a “[...] sua própria visão

Grothendieck, p. 932; JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first
part), p.1043.
542
Apud JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1043.
543
[…] which shows the first signs of the generality of thinking that would come to characterize
Grothendieck’s entire oeuvre. The notion of nuclear spaces, which has had wide applications, was first
proposed in this paper.. JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first
part), p.1043.
544
Dois desses artigos estão disponíveis no Acervo HistóricoVirtual do IME da USP. Eles são: Resumé de la
théorie métrique des produits tensoriels topologiques e Sur certaines classes de suítes dans les espaces de
Banach, et le théorème de Dvoretzky-Rogers, ambos publicados no Boletim da Sociedade de Matemática de
São Paulo. <http://www.ime.usp.br/acervovirtual>
545
Mais detalhes, veja: AZEVEDO, Alberto de. Grothendieck no Brasil, p.40-41.
546
JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1044-1045 e
1050; SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck, p. 932.
186

interna, enquanto Bourbaki era um esforço colaborativo que produzia uma síntese do ponto de
vista de seus membros.”547. A acentuada característica de ser individualista, acrescida de certa
vaidade e ambição por reconhecimento, fazia com que Alexander Grothendieck tivesse não só
dificuldades em compartilhar as suas ideias no corpo do Grupo Bourbaki, mas também em dar
os devidos créditos em sua obra, notadamente o EGA, a alguns de seus interlocutores e
companheiros bourbakistas, tal como o seu ex-professor Jean Dieudonné e o seu amigo Jean-
Pierre Serre548. Dessa forma, é fato que, apesar do EGA de Alexander Grothendieck,
conforme pontuou Allyn Jackson, ter algumas semelhanças com os trabalhos do Grupo
Bourbaki, em “[...] nível de generalidade e abstração e também no objetivo de ser alicerce,
completa e sistemática [...]”549, ela não pode ser dita uma obra que seguia o princípios
bourbakistas, tal como acontecia com os trabalhos individuais de outros membros do grupo.
Isto porque, novamente frisando as palavras de Allyn Jackson, Alexandre Grothendieck
seguia a sua própria ótica, independente de que ela fosse também compartilhada com as
concepções e regras estabelecidas dentro do Grupo Bourbaki. Endossam esse pensamento as
seguintes palavras de Jean-Pierre Serre em relação a Alexander Grothendieck: “[ele] não
poderia realmente colaborar com Bourbaki porque ele tinha sua grande máquina, e Bourbaki
não era geral o suficiente para ele [...]”550. E ainda complementou: “Eu não acho que ele
gostasse muito do sistema de Bourbaki, onde nós discutiríamos realmente os esboços em
detalhes e criticá-los... Isto não era o seu modo de fazer matemática. Ele queria fazer isso
sozinho.”551.
Portanto, não foi por acaso ou ainda surpreendente que Alexander Grothendieck tenha
se desligado do Grupo Bourbaki alguns poucos anos de sua entrada, ou seja, em 1960,
evidenciando a notória incompatibilidade com o trabalho do Grupo. Contudo, essa sua atitude
não impediu que continuasse muito próximo de alguns dos integrantes do Grupo Bourbaki e
ter feito uso de algumas de suas teorias para construir o seu EGA. Não caracterizou, dessa
forma, uma ruptura total, tal com ele próprio explicitou em relação às pesquisas italianas de

547
[…] his own internal vision, whereas Bourbaki was a collaborative effort that forged a synthesis of the
viewpoints of its members.. JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void…
(first part), p. 1050-1051; ______. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (second part), p.
1208-1209.
548
JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1051.
549
[…] level of generality and abstraction and also in the aim of being foundational, thorough, and systematic
[…]. JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1051.
550
could not really collaborate with Bourbaki because he had his big machine, and Bourbaki was not general
enough for him […]. Apud JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void…
(first part), p. 1051.
551
I don’t think he liked very much the system of Bourbaki, where we would really discuss drafts in detail and
criticize them. …That was not his way of doing mathematics. He wanted to do it himself. Apud JACKSON,
Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1051.
187

um modo geral e, em particular, acerca da geometria algébrica.552 Este último caso pode ser
observado nas suas seguintes palavras:
Está além de nossa competência de dar nessa Introdução um panorama
histórico, mesmo sucinto, das noções e dos resultados expostos. O texto
conterá apenas as referências julgadas particularmente úteis para sua
compreensão, e nós indicaremos somente a origem dos resultados mais
importantes. Formalmente, ao menos, os objetos tratados em nossa obra são
bastante novos, o que explicará a raridade de referências feitas aos Pais da
Geometria algébrica do século XIX e início do século XX, que nós apenas
conhecemos os trabalhos por rumores..553
Com essas suas palavras, Alexander Grothendieck, em convergência ao pensamento
de Silke Slembek, deixou explícito que, ao longo de sua carreira profissional, não teve
interesse em saber com mais detalhes acerca do trabalho da escola italiana de matemática,
notadamente da sua geometria algébrica, algo que incomodou André Weil.554 De fato, a
concepção de geometria algébrica do Grupo Bourbaki era diferente da utilizada pela escola
italiana, mas em nenhum momento André Weil, como membro fundador desse grupo,
conforme já abordamos, mostrou ignorância ou não deu o devido reconhecimento às
realizações que foram feitas pelos matemáticos italianos no campo da geometria algébrica.
Havia, nesse caso, uma disputa pela hegemonia de uma determinada prática matemática, em
particular da geometria algébrica, por meio do discurso do rigor matemático, mas não de
desprezo.
Diante desses elementos, entendemos que a obra de Alexander Grothendieck sobre
geometria algébrica, com a sua linguagem dos feixes e dos esquemas, está num patamar em
que não pode ser inserida na concepção bourbakista e muito menos dentro da escola italiana
de geometria algébrica. Na verdade ela se constitui em um novo paradigma de geometria
algébrica. Portanto, transcendendo o objetivo desse nosso trabalho.
Enfim, estas são faces de um homem que sempre viveu os extremos da vida, seja por
circunstâncias que lhe foram impostas, seja por escolha: quando criança, sobrevivente da
guerra; quando jovem adulto, obstinação, quase à exaustão, pela matemática, chegando ao
topo em 1966 ao ganhar a medalha Fields e; a partir de 1970, com cerca de quarenta e dois

552
JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1051;
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 21.
553
Il est hors de notre compétence de donner dans cette Indroduction un aperçu historique, même sommaire, des
notions et des résultats exposés. Le texte ne contiendra que des références jugées particulièrement utiles pour
sa compréhension, et nous n'indiquerons l'origine que des résultats les plus importants. Formellement du
moins, les sujets traités dans notre ouvrage sont assez neufs, ce qui expliquera la rareté des références faites au
Pères de la Geométrie algébrique du XIX siècle et du début du XX siècle, dont nous ne connaissons les
travaux que par ouï-dire.. Apud SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p.
21-22.
554
SLEMBEK, Silke. Continuité ou rupture? A propôs de l’arithmétisation..., p. 21; JACKSON, Allyn. Comme
appelé du néant – as if summoned from the void… (first part), p. 1051.
188

anos, um fervoroso ativista político, pacifista, ora religioso ora exotérico, chegando ao topo
novamente, em 1991, mas dessa vez pela busca de paz espiritual. Isto o fez definitivamente se
retirar da sociedade para viver até os dias de hoje como um ermitão, praticamente isolado,
escrevendo as suas meditações.555 A primeira face certamente influenciou na sua forma de
fazer matemática e no trato com os seus colegas e amigos de profissão, sempre com muita
exigência, com traços muito fortes de individualismo e com uma acentuada inclinação em vê-
los como adversários, parecendo estar ainda numa guerra pela sobrevivência. A terceira
reflete o afloramento, em nível elevadíssimo, dos ideais de seus pais, aprendido ainda quando
era criança.
Ainda nessa década de 1950, esteve na subsecção das ciências matemáticas da FFCL
Jean-Louis Koszul, bourbakista da segunda geração de matemáticos556, para realizar uma série
de conferências e seminários. Sua presença é detectada em dois momentos. O primeiro parece
ter acontecido no ano de 1956, uma vez que conseguimos localizar notas de aulas escritas por
Jacy Monteiro de um curso ministrado por Jean-Louis Koszul sobre álgebra multilinear, com
data desse ano. Também encontramos as mesmas notas datadas no ano de 1964.
Consideramos o ano de 1956 como o mais provável, baseando-nos no fato de que só foram
localizados registros da presença de Jean-Louis Koszul na USP em duas ocasiões e ambas são
da década de 1950557. Levando em conta que esses são realmente os únicos registros de Jean-
Louis Koszul na USP e a sua segunda vinda foi no ano de 1958, conjecturamos que pode ter
havido um erro datilográfico em relação à data de 1964. Observamos que essa conjectura
continua sendo válida ainda que essas notas de 1956 tenham sido novamente datilografadas
em 1964, visto que as notas de aulas desse ano, novamente frisando, correspondem às
mesmas notas de aulas sobre álgebra multilinear de 1956. Acreditamos que tais notas de 1956
podem ter sido novamente datilografadas, porque, apesar de ambas terem os mesmos
conteúdos, a mesma sequência e o mesmo estilo de escrita, há algumas poucas diferenças no
registro de algumas informações, como, por exemplo, nas notas de 1956, a autoria da sua
redação, atribuída a Jacy Monteiro aparece no final, ao passo que nas notas de 1964 tal autoria

555
Mais detalhes desses aspectos, veja: JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the
void… (first part); JACKSON, Allyn. Comme appelé du néant – as if summoned from the void… (second
part); SCHARLAU, Winfried. Who is Alexander Grothendieck; GROTHENDIECK, Alexander. Cosechas y
siembras...
556
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Bourbaki: the post-war years. School of Mathematic and
Statistics, [n.p.].
557
Cf. PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 288;
O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Jean-Louis Koszul. School of Mathematic and Statistics,
[n.p.]; GORODSKI, Claudio. Élie Cartan, Jean-Louis Koszul e os espaços homogêneos simétricos, p. 4.
189

é logo apresentada na sua capa.558 Mais um ponto que ainda podemos observar, nesse sentido,
é o uso de algumas informações em notas de rodapé na versão de 1956, enquanto que nas
notas de aulas de 1964 as mesmas informações aparecem no próprio corpo do texto. Este é o
caso, por exemplo, da discussão de Jean-Louis Koszul em torno da definição de imagem e
núcleo de um dado homomorfismo h de dois módulos (grupos aditivos559) M em N, onde M e
N estão sobre um mesmo anel A dito comutativo com elemento unidade. Nessa discussão, a
informação que segue tem essa peculiaridade, isto é, nas notas de aulas de 1956 é colocada
como nota de rodapé e já na versão de 1964 aparece inserida no próprio corpo do trecho em
questão: “Seja M um grupo aditivo; diz-se que um subconjunto H de M é um subgrupo de M
se as seguintes condições estiverem satisfeitas: a) 0 ϵ M; b) se x ϵ H e y ϵ H, então x + y ϵ H;
c) se x ϵ H, então –x ϵ H.”560.
Outro elemento que fortalece a nossa tese de que Jean-Louis Koszul muito
provavelmente esteve pela primeira vez na USP no ano de 1956 diz respeito às suas notas de
aulas, redigidas por José de Barros Neto, referentes ao curso de extensão que ministrou sob o
título de Faisceaux et cohomologie, que aparecem como publicadas em 1957, numa iniciativa
do IMPA do CNPq561. Em linhas gerais, nesse curso tratou, conforme Claudio Gorodski562, da
co-homologia de Cech com coeficientes em um feixe; do teorema que trata da co-homologia
com coeficientes num feixe para um espaço para-compacto; do isomorfismo da co-homologia
ordinária de Cech com a co-homologia de De Rham e ainda da co-homologia de Alexander-
Spanier e da co-homologia singular.563
O segundo momento foi durante os meses de setembro e outubro de 1958. Nesse
período em que retornou à USP, mais precisamente no Departamento de Matemática da sua
FFCL, Jean-Louis Koszul realizou uma série de seminários que foram publicados em 1959

558
KOSZUL, Jean-Louis. Álgebra multilinear (1956), passim; KOSZUL, Jean-Louis. Álgebra multilinear
(1964), passim.
559
Segundo Jean-Louis Koszul, neste caso, leva-se em consideração apenas a seguinte condição: h(x + y) = h(x)
+ h(y), para todo x e y em M. A outra condição para que haja um homomorfismo h de M em N é: h( ax) =
ah(x), para todo a em A e x em M. KOSZUL, Jean-Louis. Álgebra multilinear (1956), p.4.
560
KOSZUL, Jean-Louis. Álgebra multilinear (1956), p.4; KOSZUL, Jean-Louis. Álgebra multilinear (1964),
p.4.
561
Informação retirada do Banco de Dados Bibliográficos da USP. E, ainda: PIRES, Rute da Cunha. A presença
de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 288; GORODSKI, Claudio. Élie Cartan, Jean-Louis
Koszul e os espaços homogêneos simétricos, p. 4; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Jean-
Louis Koszul. School of Mathematic and Statistics, [n.p.];
562
Ex-aluno e atualmente Professor Titular do Departamento de Matemática do Instituto de Matemática e
Estatística da USP.
563
GORODSKI, Claudio. Élie Cartan, Jean-Louis Koszul e os espaços homogêneos simétricos, p. 4.
Similarmente esses tópicos ainda aparecem em: PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na
Universidade de São Paulo, p. 288; O’CONNOR, Jonh J.; ROBERTSON, Edmund F.. Jean-Louis Koszul.
School of Mathematic and Statistics, [n.p.]
190

sob o título Exposés sur les espaces homogènes symétriques pela Sociedade de Matemática de
São Paulo564, gerando o seguinte comentário de Raoul Bott:
Estas são notas sobre espaços simétricos de um seminário conduzido pelo
autor em São Paulo durante o outono de 1958. As notas são dirigidas a
leitores que conhecem os rudimentos da geometria e teoria de grupos de Lie,
e são muito agradáveis. O ritmo é rápido, e uma quantidade considerável de
material é coberta elegantemente. A parte de alguns teoremas padrões sobre
espaços simétricos, o autor discute a geometria de geodésicas, a métrica de
Bergmann, e finalmente investiga domínios limitados em razoável
detalhe..565
Nessa publicação, o nome de Jean-Louis Koszul aparece como professor do Instituto
de Matemática Pura e Aplicada ligado ao CNPq, cuja contratação, tanto no ano de 1956 como
em 1958, foi feita via esse órgão. Isto porque, segundo Circe Mary Silva da Silva, existia
uma política do Conselho Orientador566 do IMPA em contratar matemáticos estrangeiros para
atuarem no IMPA. Uma política que muito beneficiou a USP, visto que muitos deles também
passavam um período por lá ministrando cursos. 567 Além de Jean-Louis Koszul, este também
foi o caso, por exemplo, de Alexander Grothendieck que, ainda de acordo com esta autora,
realizou “[...] diversos seminários sobre espaços vetoriais topológicos e análise funcional,
atuando na USP e no IMPA.”568. Algo que corrobora com o fato de suas notas de aulas sobre
espaços topológicos vetoriais, conforme pontuamos anteriormente, terem sido publicadas em
1954 numa ação conjunta do IMPA e do Departamento de Matemática da FFCL.
Segundo o próprio Jean-Louis Koszul, seus seminários diziam respeito a assuntos
variados, que estavam ligados à teoria dos espaços simétricos569. Afirmou ainda que: “As
matérias abordadas não cobrem todo o assunto. As questões relativas à determinação dos
domínios limitados homogêneos são tratadas de forma relativamente detalhada.”570. Para
trabalhar esse tema, além de referências de alguns integrantes do Grupo Bourbaki – Claude
Chevalley, Armand Borel, André Weil e dele próprio – Jean-Louis Koszul utilizou

564
Informação retirada do Banco de Dados Bibliográficos da USP.
565
Apud GORODSKI, Claudio. Élie Cartan, Jean-Louis Koszul e os espaços homogêneos simétricos. Tradução
em nota de rodapé, p. 5.
566
Segundo Circe Mary Silva da Silva, este Conselho Orientador, composto por seis membros, foi criado para
exercer a função “[...] de orientar científica, técnica e administrativamente o órgão.”. Posteriormente, recebeu
o nome de Conselho Técnico e Científico e, a partir de 1975, foi designado como Comissão Técnica e
Científica. SILVA, Circe Mary Silva da. O IMPA e a comunidade de matemáticos no Brasil, p. 900.
567
KOSZUL, Jean-Louis. Exposés sur les espaces homogènes symétriques, [n.p.]; SILVA, Circe Mary Silva da.
A construção de um instituto de pesquisas matemáticas nos trópicos – o IMPA, p. 43-44 e 49-50.
568
SILVA, Circe Mary Silva da. A construção de um instituto de pesquisas matemáticas nos trópicos – o
IMPA, p. 44.
569
KOSZUL, Jean-Louis. Exposés sur les espaces homogènes symétriques, [n.p.].
570
Les matières abordées ne couvrent pas tout le sujet. Les questions touchant à la détermination des domaines
bornés homogènes sont traitées de manière relativement détaillée.. KOSZUL, Jean-Louis. Exposés sur les
espaces homogènes symétriques, [n.p.].
191

principalmente referências dos trabalhos de Élie Cartan, pai de Henri Cartan, pelo qual André
Weil tinha muito respeito e consideração, indo além do profissional571.
Segundo Claudio Gorodski, Élie Cartan, entre os anos de 1925 e 1930, tinha
conseguido desenvolver a teoria de grupos semi-simples, bem como de uma categoria de
espaços homogêneos riemannianos, os ditos espaços simétricos, tema de estudo dos
seminários que foram ministrados por Jean-Louis Koszul em 1958. O desenvolvimento dessa
teoria, segundo ainda Claudio Gorodski, possibilitou ampliar “[...] enormemente o escopo e as
aplicações de grupos de Lie, com repercussões em áreas tão diversas como as geometrias
clássicas, teoria de funções analíticas de várias variáveis complexas, teoria dos números
analítica, topologia e física-matemática, entre outras.”572. Explica-se, dessa forma, o porquê
de Jean-Louis Koszul ter utilizado como a sua principal referência os trabalhos de Élie Cartan.
Nessa publicação, Jean-Louis Koszul abordou a teoria dos espaços simétricos,
excluindo o tópico dos exemplos e do apêndice, subdividida da seguinte forma: 1) Campos de
vetores sobre os espaços fibrados; 2) espaços homogêneos simétricos; 3) espaços
riemannianos simétricos; 4) grupos de isometrias focalmente completas; 5) métrica de
Bergman; 6) forma hermitiana canônica dos espaços homogêneos complexos; 7) espaços
homogêneos complexos cuja forma hermitiana canônica é definida, que tem continuidade no
tópico seguinte sob o mesmo nome.573. Nessa sua obra, preocupou-se em detalhar o máximo
possível o estilo de sua abordagem, algo que pode também ter acontecido na realização dos
seminários que deram origem a ela, supondo, evidentemente, que essa obra não seja apenas o
reflexo dos assuntos abordados, mas também da metodologia que empregou nos ditos
seminários. Isto pode realmente ter acontecido, na medida em que, tal como aconteceu com
pelo menos André Weil na discussão do teorema de Zorn, Jean-Louis Koszul muito
provavelmente lidou com um público que poderia ainda não dominar a teoria que ele estava se
propondo trabalhar, bem como a sua linguagem e as suas referências. Esses elementos, talvez,
justificam o fato de Jean-Louis Koszul, pelo menos nessa obra, ter apresentado, ao leitor, uma
introdução para cada um de seus tópicos, que, em linhas gerais, concentrou-se em expor a
definição, os objetivos, as aplicações e as principais referências para o estudo de cada um
deles, conforme podemos observar na introdução de seu primeiro tópico:
Exposição preliminar dando os fundamentos do cálculo tensorial sobre os
espaços homogêneos. Os resultados dessa exposição são sobretudo utilizados
nas exposições VI e VII (respetivamente forma hermitiana canônica dos

571
Quando André Weil retornou à França em 1940, como prisioneiro, Élie Cartan foi ao tribunal militar para
testemunhar a seu favor. WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 199.
572
GORODSKI, Claudio. Élie Cartan, Jean-Louis Koszul e os espaços homogêneos simétricos, p.1.
573
KOSZUL, Jean-Louis. Exposés sur les espaces homogènes symétriques, [n.p.].
192

espaços homogêneos complexos e espaços homogêneos complexos cuja


forma hermitiana canônica é definida). As demonstrações, geralmente muito
simples foram na maioria das vezes omitidas.
Bibliografia574:
Koszul............................[17]
Lichnerowicz.......[19] [20]
Nomizu..........................[25]..575
Ou ainda no seu quarto tópico:
A noção de grupo de isometrias focalmente completa, introduzido por R.
Bott, tem importantes aplicações para o estudo homológico das trajetórias
dos grupos de isometrias. Os espaços riemannianos simétricos dão uma
ampla classe de grupos de isometrias focalmente completas.
Bibliografia576:
R. Bott ...................[ 6]..577
Por fim, não poderíamos deixar de chamar a atenção, mais uma vez, para a abordagem
algébrica abstrata privilegiada por Jean-Louis Koszul, a qual foi buscada dentro do campo de
conhecimento da álgebra moderna, já, nesse momento, sistematicamente discutida na
subsecção das ciências matemáticas da FFCL devido à intervenção da escola bourbakista,
iniciada desde 1945. E mais ainda, o seu estilo de escrita adotado foi o modelo estruturalista
conjuntista empregado, conforme já pontuamos em diversas passagens nesse nosso texto, por
todos aqueles que seguiram as orientações da escola bourbakista. Nesse estilo, tal como
anteriormente observamos acerca da afirmação de Newton da Costa – isto é, que o
estruturalismo bourbakista seria equivalente a uma axiomática – Jean- Louis Koszul
evidenciou mais uma vez essa equivalência ao apresentar a definição de módulo nas suas
notas de aulas sobre álgebra multilinear. Em linhas anteriores, essa equivalência pode ser
percebida nas definições de grupo e de anel, na medida em que esse último conceito foi
construído tendo como sua base a definição de grupo, que funcionou como uma axiomática já
previamente estabelecida. O mesmo raciocínio foi utilizado por Jean-Louis Koszul para
definir módulo, apresentada a partir da definição de anel, determinando, dessa forma, um

574
As referências dizem respeito, respectivamente, aos seguintes textos: Koszul, Jean-Louis. Sur la forme
hermitienne canonique des espaces homogènes complexes (1955); LICHNEROWICZ, André. Théorie globale
des connexions et groupes d’holomonie (1955); ______. Géometrie des groupes de transformations (1958);
NOMIZU, Katsumi. Lie groups and differential geometry (1956). KOSZUL, Jean-Louis. Exposés sur les
espaces homogènes symétriques, p. II.
575
Exposé préliminaire donnant les fondements du calcul tensoriel sur les espaces homogènes. Les résultats de
cet exposé sont surtout utilisés dans les exposés VI et VII. Les démonstrations, généralement très simples ont
été le plus souvent omises. KOSZUL, Jean-Louis. Exposés sur les espaces homogènes symétriques, p.1.
576
Trata-se da seguinte referência: BOTT, Raoul. An application of the morse theory to the topology of lie
groups (1956).
577
La notion de groupe d’isométries focalement complet, introduite par R. Bott, a d’importantes applications à
l’étude homologique des trajectoires des groupes d’isométries. Les espaces riemanniens symétriques donnent
une large classe de groupes d’isométries focalement complets.. KOSZUL, Jean-Louis. Exposés sur les espaces
homogènes symétriques, p. 26.
193

encadeamento lógico. Em outras palavras, a unidade da matemática. Notemos então essas


nossas observações na própria definição de módulo apresentada por Jean-Louis Koszul:
Seja A um anel comutativo com elemento unidade 1, isto é, A é um conjunto
no qual estão definidas duas leis de composição internas, adição e
multiplicação, que satisfazem os seguintes axiomas:
A1- (a + b) + c = a + (b + c) (lei associativa da adição);
A2- Existe um elemento 0 (zero), em A, tal que a + 0 = 0 + a = a, qualquer
que seja a ϵ A;
A3- Se a ϵ A existe um elemento (-a), em A, tal que (-a) + a = a + (-a) = 0 (-a
é denominado oposto de a);
A4- a + b = b + a quaisquer que sejam a e b em A (lei comutativa da adição);
M1- (ab)c = a(bc), quaisquer que sejam a, b e c em A (lei Associativa da
multiplicação);
M2- ab = ba, quaisquer que sejam a e b em A (lei comutativa da
multiplicação);
M3- a(b + c) = ab + ac (lei distributiva da adição em relação à multiplicação)
quaisquer que sejam, a, b e c em A;
M4 – Existe um elemento 1 (elemento unidade) em A, tal que a.1 = 1.a = a,
qualquer que seja a em A.
Os axiomas A1, A2, A3, A4 mostram que a A é um grupo comutativo
(abeliano) em relação à adição.
Seja M um grupo abeliano em relação à adição (isto é, em M está definida
uma lei de composição interna, denominada adição, que satisfaz os axiomas
A1, A2, A3, A4) e suponhamos que esteja definida uma lei de composição
externa (a,x) ϵ A X M → ax ϵ M que satisfaz os seguintes axiomas:
a) (ab)x = a (bx);
b) a (x + y) = ax + ay;
c) (a + b) x = ax + bx;
d) 1.x = x, quaisquer que sejam x e y em M e a e b em A.
Diz-se então que M é um módulo sôbre A em relação as operações de adição
de M e à lei de composição externa; diz-se também que a lei de composição
externa define, em M, com a adição de M, uma estrutura de módulo sôbre o
anel A..578
A partir deste período, começaram a ser inseridas sistematicamente as ideias
matemáticas do Grupo Bourbaki nos conteúdos das Cadeiras do Curso de Matemática da
FFCL, como na de Complementos de Geometria e Geometria Superior, que trazia conteúdos
referentes à Álgebra Linear e à Álgebra Moderna. De acordo com Rute da Cunha Pires, nesta
cadeira, dos programas de 1953, lecionada pelo Prof. Catedrático Cândido Lima e pelo seu
assistente Jacy Monteiro, constavam assuntos que faziam parte da perspectiva bourbakista,
dentre eles, no segundo ano de Complementos de Geometria, estavam espaço vectorial,
transformações lineares sobre um espaço vectorial, matrizes, espaço vectorial normado,
álgebra de Grassmann e suas aplicações. E, no terceiro ano de Geometria Superior, estavam
presentes, entre outras, as seguintes teorias: teoria dos corpos comutativos, anéis de
polinômios, estudo geral das extensões de um corpo, extensões normais e teoria de Galois e

578
KOSZUL, Jean-Louis. Álgebra multilinear (1956), p.1-2.
194

579
suas aplicações. Aparecida Rodrigues Silva Duarte, ao comparar, respectivamente, estes
programas com as fichas de apontamento de Ubiratan D’Ambrosio, aluno dessas cadeiras
neste período, concluiu que embora os últimos tópicos não tenham sido ministrados, os
professores dessas cadeiras seguiram o programa oficial do curso580.
Assim, diante de todos esses elementos que discutimos, acreditamos que não há como
negar que devido à escolha da abordagem algébrica, muitas teorias e definições foram
apresentadas pela primeira vez no ambiente da subsecção das ciências matemáticas da FFCL a
partir da vinda dos dois primeiros matemáticos – André Weil e Oscar Zariski – em 1945,
equivalentemente ao que aconteceu com a chegada dos matemáticos italianos na USP em
1934. Porém, não se trata de dizer qual dos dois estilos era mais rigoroso ou não, mas sim de
enfatizar que a diferença de estilo entre essas escolas afetava diretamente as suas respectivas
formas de pensar e de fazer matemática. É igualmente importante enfatizar que o os
matemáticos italianos, isto é, Luigi Fantappiè e Giacomo Albanese, já não se faziam presentes
na subsecção das ciências matemáticas da FFCL para dialogar diretamente com os
matemáticos da escola bourbakista quando também estiveram nessa Faculdade, ou ainda com
a própria comunidade de matemáticos brasileiros. Isto, no nosso entendimento, contribuiu
para que o discurso algébrico e abstrato da escola bourbakista alcançasse uma ressonância
cada vez maior no universo da subsecção das ciências matemáticas da FFCL.
Portanto, ainda que tenhamos reconhecido a inserção sistematizada e a prioridade das
teorias da álgebra moderna nessa subsecção a partir da vinda de alguns integrantes da escola
bourbakista, em particular do Grupo Bourbaki, e o fato de que os matemáticos italianos
priorizavam a geometria, consideramos demasiadamente forte afirmar que o período da
presença da escola italiana nessa subsecção significou uma ausência total a priori de álgebra
moderna até a década de 1940. Inicialmente, em um primeiro momento, tem-se como
contraexemplo o próprio estudo da geometria algébrica, ainda que fosse pela abordagem
geométrica, promovido por Giacomo Albanese nessa Faculdade. No entanto, nesse sentido, há
poucas informações, que não vão além das que contemplamos nesse nosso trabalho. Dessa
forma, não é estranho que o seu nome seja raramente mencionado, dentro do contexto
brasileiro, como um matemático que exerceu um papel importante na inserção dessa área de
conhecimento na subsecção das ciências matemáticas da FFCL, antes da chegada de André
Weil e Oscar Zariski nessa faculdade em 1945. Algo que o diretor da FFCL da época, André

579
PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p.340.
580
DUARTE, Aparecida R. S. Matemática e Educação Matemática: a dinâmica de suas relações ao tempo do
Movimento da Matemática Moderna no Brasil, p. 324.
195

Dreyfus, deixou transparecer na Ata da Congregação da FFCL de 15 de dezembro de 1944,


quando justificou a contratação de Oscar Zariski fazendo uso de alguns trechos de uma carta
de Omar Catunda, que dizia:
Os seus trabalhos [de Oscar Zariski] versam todos sobre Geometria
Algébrica, sendo que o volume de sua autoria publicado em 1935, na
coleção Ergebnisse der Mathematischan Wissenchaften é considerado de
importância fundamental no Departamento de Matemática desta
universidade, pois os seus ensinamentos sobre Geometria algébrica virão
complementar o curso iniciado pelo professor Giacomo Albanese.581
Em outro momento, chamamos atenção para as discussões sobre determinados pontos
da álgebra dita moderna, como a teoria dos grupos de substituições e das equações
algébricas582, feitas por Luigi Fantappiè na subsecção das ciências matemáticas da FFCL, cuja
tese foi orientada por Luigi Bianchi (1856-1928). Este matemático juntamente com Giuseppe
Battaglini (1826-1892) e Francesco Gerbaldi (1858-1934) foram considerados, no trabalho de
Laura Martini, como os responsáveis pela introdução e difusão da pesquisa algébrica na Itália,
particularmente em Roma, Palermo e Pisa – no período que se inicia em torno da segunda
metade do séc. XIX até as primeiras décadas do séc. XX. Desta forma, esses tópicos
abordados por Luigi Fantappiè – certamente influência de seus estudos com Luigi Bianchi –
na FFCL, eram temas que foram profundamente discutidos na Itália nesse período e que
foram bases para a construção de novos objetos e campos de pesquisa desses e de outros
professores italianos dentro da álgebra583. Neste sentido, ainda podemos trazer Benedito
Castrucci que, enquanto aluno de Luigi Fantappiè, durante o período de 1937 a 1939, no curso
de Análise Matemática, afirmou que este professor tratou, neste seu curso, dentre outras
teorias, das estruturas algébricas. Fez isto utilizando como referência o livro de van der
Waerden intitulado Moderne Algebra, mesmo autor adotado por Fernando Furquim de
Almeida, em 1951, que, conforme apontamento de Ubiratan D’Ambrosio, era professor do
primeiro ano da cadeira de complementos de matemática do curso de matemática da FFCL.584
Outro indício dentro desse contexto é a tese de Omar Catunda intitulada Teoria das
formas diferenciais e suas aplicações, feita para atender a uma das exigências do concurso
para análise matemática. Como não há datação, ao que tudo indica, tal tese foi apresentada

581
Apud PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 246-247.
582
Veja: FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1936.
583
MARTINI, Laura. Algebraic research schools in Italy at the turno f the twentieth century: the cases of Rome,
Palermo, and Pisa. In: Historia Mathematica, p. 296-309.
584
DUARTE, Aparecida R. S. Matemática e Educação Matemática: a dinâmica de suas relações..., p. 323;
PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p.216.
196

para o concurso que deveria ter sido realizado no ano de 1939585, já que no concurso de 1944,
para essa mesma cadeira, este sim realizado, Omar Catunda defendeu a tese nomeada Sobre
os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos. Além desse fator, constam no termo de
inscrição de Omar Catunda do ano de 1939, os seguintes documentos:
Diploma de engenheiro pela Escola Politécnica de São Paulo, em 1930.
Juntou ainda, os seguintes trabalhos impressos de sua autoria: 1) “Sobre as
funções ou funções de matrizes”, separata do “Jornal de Matemática” da
Universidade de São Paulo; 2) “Un teorema sugl’insiemi, Che si riconnette
alla teoria dei funzionalli analitici”, separata dos “Rediconti della R.
Academia Nazionale Dei Lincei”. Juntou ainda os originais, em italiano, do
seu trabalho ainda não publicado, “Sui sistemi di equazioni alle variazioni
totali in piú funzionali incogniti”. O candidato apresentou cincoenta
exemplares impressos mimeograficamente da tese “Teoria das fórmas
diferenciais e sua aplicação” [...].586
Nessa sua tese, objetivando fazer uma exposição, dita por ele, da parte básica da teoria
das formas diferenciais, Omar Catunda, buscou antes, na sua introdução, delimitar muito
brevemente como, na sua concepção, essa teoria foi originada. Neste sentido, afirmou que:
O cálculo das formas diferenciais, que na sua parte algébrica pode ser
considerado como simples aplicação da álgebra de Grassmann, surgiu
naturalmente na matemática por intermédio de dois tipos de problemas bem
distintos: um, que se liga ao estudo das equações diferenciais [conhecido
como o problema de Plaff], outro, ao estudo das integrais múltiplas sobre
variedades quaisquer..587
Assim, de modo geral, Omar Catunda definiu as formas diferenciais e suas operações
e apresentou algumas de suas aplicações na teoria das integrais múltiplas, bem como na
introdução dos funcionais harmônicos. Fez parte desse seu estudo, mais precisamente em seu
primeiro capítulo nomeado de Introdução das formas diferenciais, uma discussão sobre
operações algébricas. Foi neste tópico, ao tratar de funções de um certo sistema A,

particularmente, sobre o sistema A cuja soma, diferença e o produto de duas funções desse
sistema A ainda continuam pertencendo a ele, que Omar Catunda expôs, em nota de rodapé, a
definição de anel. Tal definição foi apresentada do seguinte modo:
[...] Chama-se anel um conjunto de elementos para os quais são definidas as
operações: soma, comutativa e associativa, que admite sempre a operação
inversa, a diferença; e produto, associativo e distributivo em relação á soma.
Se o produto gosa tambem da propriedade comutativa, diz-se que o anel é
comutativo..588

585
Segundo Rute da Cunha Pires, nos livros de concursos, não há indicações que poderiam apontar os possíveis
motivos de esse concurso não ter sido realizado. PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na
Universidade de São Paulo, p.306.
586
Apud PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p.304.
587
CATUNDA, Omar. Teoria das formas diferenciais e suas aplicações, p. 1.
588
CATUNDA, Omar. Teoria das formas diferenciais e suas aplicações, p. 3.
197

Por fim, ainda dentro dessa discussão, temos a tese de Cândido Lima, intitulada de
Estudos sobre as homografias, a qual foi feita para ser submetida ao concurso da cadeira de
complementos de geometria analítica e projetiva da Escola Politécnica da USP no ano de
1943. Não conseguimos obter informações mais detalhadas sobre a participação de Cândido
Lima nesse concurso, além do fato de que ele, segundo Paulo César Xavier Duarte, retirou-se
das provas, “[...] mais tarde, juntamente com o outro candidato Prof. F. A. Lacaz Neto.”589. O
próprio Cândido Lima, quando interrogado em uma entrevista concedida à Revista Estudos
Avançados acerca da sua trajetória docente após o ano de 1937, não fez qualquer menção a
esse concurso. A sua trajetória docente foi por ele sintetizada da seguinte forma:
Como já me referi, em março daquele ano fui nomeado como assistente e
Fantappié encarregou-me de desenvolver o curso que era dado aos alunos do
primeiro ano. Quando de seu regresso à Itália, eu já estava bem entrosado no
curso de Matemática. Os docentes eram Albanese, Catunda, eu e o Furquim,
que também foi nomeado assistente. Dávamos aulas de Matemática também
no curso de Física. Fiz o doutoramento em 1942. Não prestei concurso para a
livre-docência porque naquele tempo não havia essa preocupação, mas em
1951 ocorreu o meu concurso para a cátedra. Em 1974 fui convidado para
dirigir o Instituto de Matemática da unidade da USP em São Carlos e, nesse
período, passei também a lecionar na recém-criada Universidade Federal de
São Carlos. Aposentei-me em 1978, depois de 42 anos como professor da
Universidade de São Paulo. Continuei, porém, como professor da
universidade federal. Sempre pensei que poderia lecionar até os oitenta anos,
mas em 1990 fui compulsoriamente aposentado, em razão de uma lei federal.
Essa é a minha história de mais de meio século como pesquisador e
professor de Matemática..590
Contudo, a questão que realmente nos interessou foi o tema escolhido por Cândido
Lima para abordar em sua tese, principalmente as referências que ele utilizou para dialogar e
conseguir articular a sua escrita. Tal tese, que está no campo de conhecimento da geometria
projetiva, trata de dois estudos sobre as homografias. Inicialmente, Cândido Lima chamou
atenção para o fato de que a teoria dessas transformações correspondia a um capítulo clássico
da Geometria, sendo assim, dificilmente teria condições de apresentar algo de fato original.
Para ele, a dificuldade não estava apenas restrita ao assunto que buscou abordar, mas ao fato
de construir um argumento que pudesse ser inserido no programa da cadeira que estava
pleiteando vaga de professor, o qual abrange, unicamente, a parte fundamental da geometria.
A primeira parte dessa tese constituiu um dos dois estudos de que iria se ocupar, isto é,
o estudo da classificação das homografias no espaço projetivo de n dimensões. Tal estudo,
afirmou, no âmbito da reta, do plano e do espaço, já era comumente abordado em ‘bons’
tratados de geometria projetiva. Contudo, salientou desconhecer a existência de algum tratado

589
DUARTE, Paulo César Xavier. Cândido Lima da Silva Dias – da Politécnica à FFCL da USP, p. 6.
590
DIAS, Cândido Lima da Silva. Cândido da Silva Dias: meio século como pesquisador, [n.p].
198

que fizesse esse estudo por meios puramente geométricos. Disse que essa peculiaridade já
havia lhe despertado interesse desde quando fez a leitura de uma carta de Stefan
Emmanuilovich Cohn-Vossen (1902-1936) endereçada a van der Waerden, publicada na
revista Mathematiche Annalen, pelo próprio van der Waerden, em 1937, sob o título de Die
Kollineationen des n-dimensionalen Raum. Dessa forma, na construção da tese, Cândido
Lima abordou os princípios do método de Stefan Cohn-Vossen para ser o fundamento desse
seu primeiro estudo. Na sua leitura desses princípios, disse que explicitou algumas
demonstrações de Cohn-Vossen, bem como deu uma feição mais geométrica a outras
demonstrações, o que, para Cândido Lima, preenchia uma lacuna que havia sido apontada por
van der Waerden no trabalho de Cohn-Vossen. Essa lacuna que Cândido Lima mencionou ter
sido assinalada por van der Waerden, muito provavelmente, deveria dizer respeito ao fato de
que as demonstrações de Cohn-Vossen careciam de mais detalhes e não em relação ao método
em si, visto que, conforme já pontuamos anteriormente, van der Waerden criticava o método
geométrico, justamente o método que foi adotado por Cândido Lima.
Dentro dessa sua opção de obter a classificação das homografias por meios puramente
geométricos, Cândido Lima, sabendo que era um argumento ainda não presente nos tratados
de geometria projetiva, buscou explicitar como se constituiria esse seu argumento. Neste
sentido, afirmou que o método geométrico adotado seria o geral, isto porque ele poderia ser
aplicado à classificação das colineares, na reta, no plano, no espaço projetivo ordinário e
ainda no espaço projetivo de n dimensões. Diante desse fato, Cândido Lima considerou
oportuno desenvolver os princípios desse método para ser aplicado no espaço projetivo geral.
Fez isto mesmo reconhecendo que perderia em intuição, evidenciando que dava importância à
intuição na construção de uma argumentação matemática, bem no estilo da escola italiana de
matemática. Na sua visão, a perda da intuição seria compensada com o ganho da generalidade
dos resultados. Dessa forma, considerou ser importante, para um melhor entendimento desse
método, introduzir algumas noções e teoremas do hiperespaço projetivo que mais faria uso ao
longo de toda a sua tese. Em linhas gerais, Cândido Lima fez uma breve explanação da teoria
sintética do espaço projetivo geral, que foi indicado pelo símbolo Sn, afirmando que tal teoria
foi substancialmente devida a Giuseppe Veronese. Além disso, definiu uma base de um
espaço projetivo geral e ainda expôs as condições em que um espaço projetivo geral poderia
ser um espaço de hiperplanos. Vale salientar que tais noções e teoremas certamente foram
apreendidos nas aulas de Giacomo Albanese, na medida em que a discussão de hiperespaço
199

projetivo esteve presente, pelo menos, no programa das suas aulas na cadeira de geometria
analítica, descritiva e projetiva no ano de 1936591.
Essas discussões foram seguidas de uma aplicação desse método desenvolvido em seu
trabalho na classificação das homografias do espaço projetivo ordinário, que Cândido Lima,
buscando mostrar indícios de originalidade dessa sua aplicação, afirmou que: “Esta aplicação
não se encontra na nota de Cohn-Vossen, o qual, aliás, tem como objectivo a redução, das
matrizes quadradas (correspondentes às homografias), à forma canónica de Jordan, problema
este que é equivalente ao que nos ocupa.”592. Depois, Cândido Lima demonstrou a existência
de homografias que eram correspondentes aos tipos classificados. Contudo, limitou-se às
homografias cuja existência não havia sido demonstrada ainda nos tratados de geometria
projetiva. Ainda observou que havia necessidade de tratar de outras questões, tal como
exemplo, sobre a realidade das homografias, dentro da sua abordagem do estudo da
classificação das homografias no espaço projetivo de n dimensões, mas, para não ampliar
mais ainda a extensão de sua tese, preferiu deixar essa discussão para outro momento.
Terminado esse primeiro estudo, Cândido Lima se ocupou do segundo estudo sobre
homografias, limitando-se à projetividade sobre uma reta. Mas, segundo o próprio Cândido
Lima, ao invés de fazer um estudo das propriedades projetivas no sentido ordinário, fixou o
seu olhar diretamente nas transformações, que na sua abordagem foram “[...] tomadas como
elementos (pontos) de uma variedade (espaço) de três dimensões.”593. Isto porque,
complementou:
Considerando êste espaço referido às coordenadas das canónicas
(correspondentes aos parâmetros canônicos do grupo projectivo), vemos que
êle pode ser interpretado como um espaço métrico. Êste resultado é um caso
particular da Geometria dos Grupos de Transformações, teoria esta criada
por Cartan e Schouten..594
Por fim, afirmou que: “O método seguido para precisar a natureza métrica do espaço, pelo que
nos consta é original.”595.
Em suma, explicitamente Cândido Lima buscou deixar muito claro que a sua escolha
de abordagem contrastava com o método normalmente visto nos tratados de geometria
projetiva quando discutiam esses dois estudos sobre as homografias. Particularmente, em
relação ao estudo da classificação das homografias no espaço projetivo de n dimensões, isto
pode ser observado, por exemplo, na nota de rodapé, colocada ao término da sua longa

591
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1936, p.219.
592
DIAS, Cândido Lima da Silva. Estudos sobre as homografias, p. II.
593
DIAS, Cândido Lima da Silva. Estudos sobre as homografias, p. III.
594
DIAS, Cândido Lima da Silva. Estudos sobre as homografias, p. III.
595
DIAS, Cândido Lima da Silva. Estudos sobre as homografias, p. III.
200

demonstração do seguinte teorema: “‘Um Sp e um Sq pertencentes a um mesmo Sn, têm, caso


p + q ≥ n, como intersecção um espaço linear Sd de dimensão d ≥ p + q – n.’”596. Nela
escreveu o seguinte: “Julgamos oportuno dar a demonstração completa deste teorema porque
a sua demonstração é geralmente feita com meios analíticos. – Ver: B. L. Van der Waerden –
Einführung in die Algebraische Geometrie e Bertini: Geometria Proiettiva degli iperspazi.”597.
Observamos que nessa sua nota Cândido Lima mostrou que tinha conhecimento e acesso à
obra de van der Waerden, evidenciando, mais uma vez, que o seu estilo de produzir
matemática foi trabalhado na subsecção das ciências matemáticas da FFCL pelos matemáticos
italianos, e não apenas as referências italianas, que também foram mencionadas em sua nota
de rodapé. Ainda, subentendido a essas informações, entendemos que Cândido Lima colocou
em um primeiro plano as constantes escolhas que o matemático faz para construir um estilo
próprio e defender as suas argumentações, enfim, uma identidade matemática.
Essas discussões nos levaram a dimensionar que a tão propagada falta de rigor do
método geométrico italiano, principalmente, no período entre as duas guerras mundiais,
quando comparado com a escola bourbakista, envolveram questões que estavam
condicionadas pela luta da supremacia de uma determinada forma de agir e pensar a
matemática, para assegurar prestígio e poder para aqueles que faziam parte dessa escola do
que propriamente com a constatação da fraqueza lógica da matemática italiana, que, nesse
caso, no nosso entender, analogamente à compreensão de Norbert Schappacher,
diferenciavam-se por uma questão de estilo do que de qualidade matemática, mas não apenas
essas questões. Nelas, ainda estavam envolvidos aspectos de ordem política, religiosa e de
reconhecimento, inclusive de disputas internas públicas entre os próprios matemáticos da
escola italiana, contrariamente ao que acontecia com a escola bourbakista, que, em público,
tinha um único discurso visando sempre engrandecer e fortalecer o seu estilo matemático
enquanto grupo, enfim, enquanto escola. Parece que foi por esses fatores que a escola italiana,
nos diversos contextos culturais, começou a perder o seu protagonismo matemático, em
particular da sua geometria algébrica. Isto aconteceu inclusive na subsecção das ciências
matemáticas da FFCL, que tem como marco inicial para os primeiros cursos sistemáticos
fazendo uso da álgebra moderna, como os de Álgebra Linear e de Topologia, o ano de 1945,
numa referência ao programa bourbakista, numa clara tentativa de minimizar ou ainda de
omitir qualquer iniciativa dos matemáticos italianos antes deste ano. É neste panorama que as
contribuições de André Weil e, principalmente, de Oscar Zariski, dentro do campo da

596
DIAS, Cândido Lima da Silva. Estudos sobre as homografias, p.4.
597
DIAS, Cândido Lima da Silva. Estudos sobre as homografias, p.9.
201

geometria algébrica, ganharam forte relevância na comunidade matemática mundial, em


particular, no cenário da subsecção das ciências matemáticas da FFCL. Algo que aconteceu,
principalmente, por meio da apropriação dessas contribuições pelos professores dessa
faculdade nos programas das disciplinas dos cursos que ministravam aulas.

6 MATEMÁTICOS BRASILEIROS DA FFCL

O cenário construído pela escola italiana e pela escola bourbakista, cada uma, em sua
devida época, legitimando a sua respectiva forma de fazer matemática, marcou,
significamente o processo de formação das primeiras gerações de matemáticos brasileiros da
USP, a partir de 1934. Existiram aqueles que tiveram a sua formação matemática diretamente
dentro da tradição da escola italiana construindo toda a sua carreira mais inclinada à
matemática italiana, a exemplo de Omar Catunda e Benedito Castrucci; outros, optaram, em
um determinado momento da sua trajetória de matemáticos, em voltar as suas pesquisas mais
para os princípios da escola bourbakista, como Cândido Lima. E, ainda outros, formados sem
o contato direto de toda plenitude da matemática italiana, desenvolveram todas as suas
atividades matemáticas dentro do estilo matemático do Grupo Bourbaki. Esse foi o caso de
Jacy Monteiro e Edison Farah. Este último começou a fazer o curso de matemática no ano de
retorno de Luigi Fantappiè à Itália, ou seja, em 1939. Enfim, cada um desses matemáticos
teve contatos de modo diferenciado com pelo menos duas escolas matemáticas e fizeram as
suas escolhas, construíram suas próprias maneiras de conceber e fazer matemática. Contudo,
apesar dessa geração de matemáticos brasileiros ter sido influenciada pelos principais
matemáticos da época no desenvolvimento da geometria algébrica – tal como poderemos
observar no decorrer dessa nova investigação – esse fator não se configurou na FFCL, na sua
subsecção das ciências matemáticas, pelo menos no período de 1934 a 1958, em explícitas
pesquisas matemáticas no campo da geometria algébrica.
Todos esses matemáticos brasileiros foram licenciados na subsecção das ciências
matemáticas da FFCL, com exceção de Omar Catunda, que era formado em engenharia civil
pela Escola Politécnica de São Paulo, desde 1930. Todos eles, em algum período de suas
vidas acadêmicas, além de terem tido contatos diretos com algum matemático da escola
italiana ou da escola bourbakista ou ainda com ambas as escolas, trabalharam diretamente
com esses matemáticos estrangeiros, exercendo a função de assistentes científicos ou de
202

auxiliares de ensino598. Omar Catunda e Cândido Lima foram assistentes de Luigi Fantappiè
na cadeira de análise matemática. Catunda entrou na subsecção das ciências matemáticas da
FFCL para ser assistente de primeira categoria de Luigi Fantappiè. Isto aconteceu desde a
chegada de Luigi Fantappiè nessa faculdade até o seu retorno à Itália devido às questões da II
Guerra Mundial, em suma, de 1934 até 1939. Então, de fato, Omar Catunda nunca fora aluno
da USP, apesar de ter complementado a sua formação matemática nessa instituição, mas isto
foi feito exercendo a sua função de assistente, algo que o colocava, hierarquicamente, numa
posição superior à de aluno do curso de matemática. Neste caso particular, Omar Catunda, sob
a orientação de Luigi Fantappiè, ajudou no próprio processo de formação das primeiras
gerações de matemáticos brasileiros. Dessa forma, seja inicialmente como assistente, depois
como professor interino e ainda como professor catedrático, Omar Catunda teve a
peculiaridade de ter participado ativamente desse processo desde a primeira turma de
matemática da FFCL, na qual estava Cândido Lima, perpassando as respectivas turmas de
Edison Farah e Jacy Monteiro, licenciados, respectivamente, em 1941 e 1943, até o ano de
1962, quando se aposentou por essa instituição.599
Já Cândido Lima, tornou-se assistente de segunda categoria a partir de 1937, ano
seguinte ao ter concluído o curso de matemática. Em linhas gerais, era responsável não só em
acompanhar as aulas ministradas pelo próprio Luigi Fantappiè, como também dar aulas de
exercícios, assistência e tirar dúvidas dos alunos do primeiro ano, enquanto Omar Catunda se
encarregava dos outros dois anos do curso, geralmente ministrados por Luigi Fantappiè, com
um programa que se modificava de um ano para outro, bem no estilo que era seguido pelas
universidades italianas. Mesmo após a saída de Luigi Fantappiè em 1939, a qual foi assumida
interinamente por Omar Catunda, em 1940, Cândido Lima, até o ano de 1942, permaneceu
como assistente dessa cadeira. O início da regência de Omar Catunda na cadeira de análise
matemática, ainda como professor interino, delineou outra peculiaridade. Tal regência marcou
o início da transição e a formação de uma nova comunidade de matemáticos brasileiros, a
qual exerceria as suas atividades de ensino imbricadas com as da pesquisa, em conformidade

598
Devido à escolha desses aspectos, não pudemos inserir Elza Gomide, visto que ela não exerceu função de
assistente ou de auxiliar de ensino com nenhum dos matemáticos estrangeiros que estiveram na USP no
período de 1934 a 1958, quer seja da escola italiana, quer seja da escola bourbakista. Contudo, consideramos
que investigar como e de que forma foi constituída a sua relação profissional com a escola bourbakista,
notadamente com o bourbakista Jean Delsarte, uma questão relevante para ser pesquisada.
599
Veja: FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1949,
passim; LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites..., passim.
203

ao que era preconizado tanto pela escola italiana como pela escola bourbakista, que nesse
ponto convergiam muito fortemente.600
Benedito Castrucci foi também assistente de um matemático da escola italiana, mas,
no caso dele, de Giacomo Albanese, na cadeira de geometria. Bacharel em ciências jurídicas e
sociais pela Faculdade de Direito da USP, em 1935, e aluno da subsecção das ciências
matemáticas da FFCL de 1937 a 1939, Benedito Castrucci foi assistente pelo período de 1940
a 1942, ano em que Giacomo Albanese teve que retornar à Itália, também devido à II Guerra
Mundial.
A permanência de Giacomo Albanese no Brasil se tornou intolerável, dada as novas
restrições do governo de Getúlio Vargas aos estrangeiros do Eixo Itália, Alemanha e Japão.
Segundo Viviane Teresinha dos Santos, existia uma relação cordial entre o governo de
Getúlio Vargas e a Itália de Benito Mussolini durante boa parte dos anos de 1930, mas isto
não perdurou até o final dessa década. Ainda, em 1938, insatisfeito com as campanhas
nacionalistas, inclusive as italianas, em solo brasileiro, o governo de Getúlio Vargas aprovou
o Decreto nº 383 de 18 de abril de 1938, em que proibia, nas palavras de Viviane Teresinha
dos Santos:
[...] a prática de atividades políticas por parte de estrangeiros que estivessem
em território nacional. De acordo com os termos legais, era-lhes vedado o
direito de organizar, criar ou manter qualquer estabelecimento de caráter
político, mesmo que tivesse por finalidade apenas a propaganda ou difusão,
entre seus compatriotas, de idéias ou programas de partidos políticos do país
de origem..601
Foi sob essas restrições que Luigi Fantappiè retornou à Itália, numa situação análoga
ao que aconteceu, por exemplo, com Oscar Zariski, diante dos desdobramentos da II Guerra
Mundial. No entanto, se Oscar Zariski saiu da Itália para os Estados Unidos tendo como um
dos seus principais motivos as leis anti-semita do governo de Benito Mussolini, Luigi
Fantappiè, por sua vez, seguindo um sentido inverso, retornou à Itália ao que tudo indica
devido principalmente às leis anti-fascistas impostas pelo governo de Getúlio Vargas. Após a
saída de Luigi Fantappiè, houve, por conseguinte, outras restrições mais extremistas. Em
1942, cessam as relações diplomáticas do Brasil com a Itália, Alemanha e Japão. Dessa
forma, em particular, durante o período em que o Brasil entrou em guerra contra a Itália, todo
italiano que estivesse em solo brasileiro passou a ser considerado um inimigo em potencial,
“[...] identificados como ‘súditos do Eixo’, fossem adeptos ou não da ideologia fascista.”602

600
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1949, passim.
601
SANTOS, Viviane Teresinha. Os seguidores do Duce: os italianos fascistas no Estado de São Paulo, p. 17.
602
SANTOS, Viviane Teresinha. Os seguidores do Duce: os italianos fascistas no Estado de São Paulo, p. 18.
204

Dentro desse espírito, o governo de Getúlio Vargas colocou em vigor o Decreto nº 4.166 de
11 de março de 1942. Tal decreto, segundo Viviane Teresinha dos Santos, estabelecia que:
[...] os bens pertencentes aos italianos, alemães e japoneses (pessoas físicas e
jurídicas) poderiam ser confiscados e empregados pelo governo brasileiro
para compensar os prejuízos resultantes de atos de agressão praticados pelos
países em guerra contra o Brasil. Ainda no mesmo ano, em 8 de dezembro, o
governo Vargas determinou censura postal a toda correspondência
proveniente do exterior..603
Portanto, já não havia nenhuma condição para que Giacomo Albanese permanecesse
no Brasil. Ao longo dessa sua passagem na USP, Giacomo Albanese, teve ainda como
assistente Ernesto Luiz de Oliveira Júnior, que aparece exercendo essa função a partir de
1934, ou seja, antes mesmo da chegada de Giacomo Albanese em solo brasileiro,
permanecendo até o primeiro semestre de 1937 dando aulas de exercícios. Durante o segundo
semestre, essas aulas foram assumidas por Yolanda Monteux, aluna do terceiro ano do curso
de matemática. Em 1939, a assistência da cadeira de geometria foi atrelada ao nome de
Narcísio Menciassi Luppi, retirando-se dessa função em 1942, juntamente com Giacomo
Albanese, ficando apenas Benedito Castrucci, o seu outro assistente.604
Com a saída de Giacomo Albanese, em abril de 1942, a cadeira de geometria foi
desmembrada em duas, sendo uma de geometria analítica, projetiva e descritiva, assumida
automaticamente por Benedito Castrucci, que, tal como havia acontecido com Omar Catunda,
foi contratado como professor interino. A outra foi nomeada de complementos de geometria e
geometria superior. Em relação a essa cadeira, particularmente nesse ano, o curso de
complementos de geometria, dado para os alunos do segundo ano, foi assumido por Omar
Catunda e a parte de geometria superior, pertencente à grade curricular do terceiro ano, foi
ministrada por Cândido Lima, que, também como professor interino, já havia assumido a
disciplina de análise superior. O seu substituto na função de assistente da cadeira de análise
matemática foi Edison Farah. A partir de 1943, Cândido Lima ficou à frente da cadeira de
complementos de geometria e geometria superior. Tanto Cândido Lima como Benedito
Castrucci tornaram-se catedráticos de suas respectivas cadeiras, em dezembro de 1951, após
ambos terem sido aprovados em concurso público realizado em novembro desse mesmo ano.
Assim, com a estratégia da vinda de alguns dos principais pesquisadores estrangeiros, já
notadamente reconhecidos pelo desenvolvimento de suas pesquisas no cenário internacional
pelos seus pares, o projeto de 1934, ou seja, de construir um ambiente acadêmico de cientistas
e professores brasileiros, em particular em matemática, enfim começou a ganhar corpo na

603
SANTOS, Viviane Teresinha. Os seguidores do Duce: os italianos fascistas no Estado de São Paulo, p. 18.
604
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1949, passim.
205

USP. Nesse ambiente se inseriu Jacy Monteiro, em 1944, como assistente de Cândido Lima
na cadeira de complementos de geometria e geometria superior, especificamente, no curso de
geometria superior lidando com os alunos do terceiro ano.605
Posteriormente, conforme já pontuamos, a partir de 1945, tanto Edison Farah como
Jacy Monteiro auxiliaram cursos que foram ministrados dentro dos princípios da escola
bourbakista, inaugurando uma nova concepção de matemática, feita pela abordagem
algébrica, na subsecção das ciências matemáticas da FFCL, que até então só era influenciada
pela tradição da escola italiana de matemática.606.
Até mesmo pela própria percepção da dinamicidade do conhecimento matemático,
iniciava-se, a partir desse momento, no contexto brasileiro da USP, a possibilidade de fazer
apropriações, escolhas ou não entre uma tradição ou outra, desencadeando, inevitavelmente,
comparações entre a abordagem geométrica italiana e a abordagem algébrica da escola
bourbakista. Essas comparações, muitas vezes, recaiam em um discurso que fazia críticas a
essa abordagem utilizada pelos matemáticos italianos, tal como já vinha acontecendo em
outras localidades, a exemplo da própria França, Alemanha e Estados Unidos. Era mais um
lugar para os matemáticos da escola bourbakista buscar o estabelecimento da hegemonia de
um método sobre o outro e, como consequência, a supremacia de um estilo de fazer
matemática, que nesse caso seria o da escola bourbakista. Isto aconteceu, por exemplo, com
Leopoldo Nachbin. De fato, Leopoldo Nachbin, numa construção a posteriori ao seu convívio
com os matemáticos das escolas italiana e bourbakista na Faculdade de Filosofia Nacional da
Universidade do Brasil607, reconheceu Jean Dieudonné e Laurent Schwartz, juntamente com o
português Antônio Aniceto Monteiro (1907-1980) e o americano Marshall Harvey Stone
(1903-1989) como os matemáticos que mais serviram de modelo para a sua formação
matemática, fazendo, notadamente, uma escolha pelo estilo de pensar e fazer matemática da
escola bourbakista. Externalizou essa escolha apesar de ter destacado os matemáticos italianos
Grabielle Mammana (1893-1942) e Luigi Sobrero como professores marcantes e que
exerceram sobre ele muita influência.608 Parece-nos que foi dentro desse contexto que fez a
seguinte afirmação:

605
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1949, passim.
606
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1934-1952, passim;
PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, passim.
607
Leopoldo Nachbin assistiu às aulas na Faculdade Nacional de Filosofia como ouvinte, visto que já era aluno
da Escola Nacional de Engenharia e naquela época não era permitido fazer matrícula em dois cursos
pertencentes a uma mesma instituição. NACHBIN, Leopoldo. Entrevista com Leopoldo Nachbin. Entrevista
concedida a Roberto de Andrade Martins e Hiro Barros Kumasaka, p. 2.
608
NACHBIN, Leopoldo. Entrevista com Leopoldo Nachbin. Entrevista concedida a Roberto de Andrade
Martins e Hiro Barros Kumasaka, p. 2 e 7.
206

Quando esteve no Brasil, André Weil se interessou pelo ensino da


matemática e procurou eliminar a má influência que os italianos haviam
deixado entre nós. Má influência em termos, porque na Itália se dava muita
atenção à geometria descritiva e os franceses praticamente a haviam abolido.
Os italianos também davam uma atenção excessiva ao estudo da geometria
projetiva..609
No entendimento de Leopoldo Nachbin, “Weil e Dieudonné estavam interessados num
ensino de matemática mais didático, na exposição da matemática através do método de
Bourbaki, e influenciaram beneficamente São Paulo e Rio de Janeiro.”.610 Assim, na nossa
leitura, parece que Leopoldo Nachbin acreditava que a abolição praticamente feita pelos
matemáticos da escola bourbakista em relação à geometria descritiva e projetiva, tão
enfatizada na escola italiana, possibilitava uma exposição da matemática mais propícia para o
ensino de suas teorias, na medida em que parecia compreender que o método geométrico
italiano não tinha condições de dar uma explicação formal para todo o processo de construção
das teorias matemáticas.
E ainda podemos perceber a inserção do discurso sobre as comparações entre a
abordagem geométrica da escola italiana e a abordagem algébrica da escola bourbakista,
numa imagem construída também a posteriori de Elza Furtado Gomide, que só teve contato
direto com a escola bourbakista. Dessa forma, talvez devido a essa peculiaridade, que Elza
Furtado Gomide, quando interrogada numa entrevista por Vera Rita da Costa sobre os
motivos que fizeram com que os matemáticos franceses (referindo-se à escola bourbakista)
tivessem sucedidos os italianos, tenha feito a seguinte afirmação:
A matemática sofreu uma transformação no começo do século passado,
principalmente a partir da álgebra e dos trabalhos pioneiros de [David]
Hilbert. A escola alemã, a que ele pertencia, modificou totalmente a maneira
dos matemáticos encararem os problemas. A matemática italiana, no entanto,
permaneceu usando os argumentos do século 19 e não incorporou os novos
desenvolvimentos introduzidos por Hilbert. Por isso, a ‘escola italiana’
passou a ser vista como ultrapassada e, de certa maneira, se atrasou em
relação à ‘escola alemã’. [...] Ou seja, a vinda de italianos e depois de
franceses para o Brasil, para ensinar matemática espelha a sucessão que
houve na própria história da disciplina ao longo do século passado: italianos,
franceses e, mais recentemente, alemães e norte-americanos... Curiosamente,
apesar da antipatia francesa aos alemães, por razões políticas e nacionalistas,
os franceses mesmo assim, não se isolaram da matemática alemã e foram
muito influenciados pela linha de Hilbert e de outros alemães..611
Na nossa concepção, Leopoldo Nachbin e Elza Furtado Gomide refletiram uma
memória cristalizada da comunidade internacional de matemáticos sobre as críticas acerca da

609
NACHBIN, Leopoldo. Ciência e sociedade, p.23.
610
NACHBIN, Leopoldo. Ciência e sociedade, p.23.
611
GOMIDE, Elza Furtado. Emblema da matemática na USP, p. 40.
207

abordagem geométrica da escola italiana intensificadas principalmente nas décadas de 1930 e


1940. Uma memória muito influenciada do momento político pós-II Guerra Mundial e do
posicionamento fascista dos italianos, equiparável, no nosso entendimento, às dificuldades
profissionais sofridas por van der Waerden, ligado à Alemanha, berço do nazismo. Tal como
já pontuamos anteriormente, acreditamos que foi o imbricamento desses fatores nessa
memória que prevaleceu nos argumentos contra a tradição da matemática italiana, em especial
da sua geometria algébrica, inclusive no cenário brasileiro. No entanto, consideramos que,
pelo menos entre as primeiras gerações de matemáticos brasileiros, a apropriação ou não das
críticas feitas em relação à abordagem geométrica da escola italiana foi determinada pelo
vínculo profissional e pessoal que essa geração teve com os matemáticos que faziam parte ou
da escola italiana ou da escola bourbakista. Entretanto, cabe-nos ponderar que a apropriação
dessas críticas no cenário brasileiro, em um primeiro momento, não deveria ofuscar, conforme
mostramos nessa pesquisa, o reconhecimento da diversidade e da riqueza da escola italiana,
notadamente da sua geometria algébrica, manifestadas inclusive nos diálogos que manteve
com a matemática algébrica alemã, tal como observamos que foi feito, por exemplo, em
relação aos trabalhos de van der Waerden, ainda que tenha preferido manter um estilo
geométrico em suas teorizações. E, em um segundo, o próprio processo de formação do
Departamento de Matemática da FFCL e, ainda, as atividades matemáticas que foram
realizadas pelos seus matemáticos brasileiros quando estavam apenas sob a influência da
escola italiana.
De qualquer sorte, parece que foi por conta da aparente viabilidade em construir novas
teorias por meio da abordagem algébrica da escola bourbakista inserido na subsecção das
ciências matemáticas da FFCL, que passou a vincular, dentro da comunidade recém formada
de matemáticos brasileiros, a ideia de que a influência da escola italiana foi, em certo sentido,
prejudicial à pesquisa brasileira devido à sua ênfase a uma abordagem geométrica. Nessa
conjuntura, pouco ou nenhuma importância era dada ao fato de que estavam na berlinda duas
posturas diferentes de trabalhar e produzir matemática. Portanto, havia olhares diferentes
acerca do objeto que se pretendia estudar, particularmente em relação à geometria algébrica.
Em outras palavras, notadamente partindo de abordagens diferentes, as teorias pensadas, os
objetos discutidos e as demonstrações construídas no método geométrico não seguiam o
mesmo padrão, as mesmas conjecturas que eram feitas dentro do método algébrico e vice-
versa. A utilização de tais métodos poderia chegar a resultados análogos, como de fato
aconteceu quando se propôs a tratar de um mesmo objeto de pesquisa, mas isto não quer dizer
que foi seguindo categoricamente um mesmo questionamento, ainda que fosse usado o
208

mesmo método. Então, entendemos que não se poderia construir um discurso sobre a falta de
rigor do método geométrico italiano projetando para esse método perguntas que, muito
provavelmente, foram formuladas e/ou pensadas para categorizar uma teoria construída sob
outro método.
Nesse novo ambiente, Edison Farah, após ter exercido a função de assistente de
ensino, nos anos de 1943 e 1944, ainda na disciplina de análise superior, a qual havia sido
assumida por Omar Catunda, permaneceu nela, ainda como assistente, após a chegada de
André Weil em 1945. Como professor interino, assumiu as aulas dessa disciplina em 1948, já
designada, a partir desse ano, de cadeira de análise superior. Analogamente aconteceu com
Jacy Monteiro, mas em número de vezes maior em relação à vivência de Edison Farah, que
trabalhou somente com André Weil. Jacy Monteiro, além de continuar sendo assistente de
Cândido Lima na cadeira de complementos de geometria e geometria superior, assumiu ser
auxiliar de ensino dos cursos que foram desenvolvidos por Oscar Zariski e Jean Dieudonné,
escrevendo inclusive as suas notas de aulas, algo que também aconteceu com Jean-Louis
Koszul, pelo menos em relação às notas de aulas de álgebra multilinear, já no ano de 1956.
Jacy Monteiro foi o único entre Omar Catunda, Benedito Castrucci, Cândido Lima e Edison
Farah, que não se tornou catedrático da FFCL, dentro desse período que estamos pesquisando,
ou seja, de 1934 a 1958. Conforme pesquisa de Rute da Cunha Pires, ainda até o ano de 1958,
era assistente de Cândido Lima na cadeira de complementos de geometria e geometria
superior612. Todos eles, com exceção de Edison Farah e Benedito Castrucci, ganharam bolsas
de estudos nos Estados Unidos, um período que, de certa forma, influenciou também na
concepção matemática de cada um deles.
Omar Catunda, ainda no período de seu convívio com Luigi Fantappiè, segundo consta
em seu curriculum vitae, fez estudos de pós-graduação, por quatro meses, entre os anos de
1938-1939, na Universidade de Roma, assistindo aulas com Francesco Severi, em plena
efervescência do regime fascista na Itália.613 Foi logo após esse período, na Itália, que Omar
Catunda publicou dois trabalhos matemáticos em revistas especializadas italianas de
circulação internacional, que estão entre os primeiros resultados originais da pesquisa sobre
teoria dos funcionais analíticos sob a liderança de Luigi Fantappiè em solo brasileiro. Um

612
PIRES, Rute da Cunha. Anexo: programas (matemática) aprovados pela congregação nos anos letivos de
1953, 1959, 1960, 1962, 1964, 1965, 1966, 1967 e 1968. In: A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade
de São Paulo, [n.p].
613
CATUNDA, Omar. Curriculum vitae. In: Memória autobiográfica, p. 1; LIMA, Eliene Barbosa. Dos
infinitésimos aos limites..., p.33; LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. A Análise Matemática no
Ensino Universitário Brasileiro: a contribuição de Omar Catunda, p. 456.
209

deles614 foi publicado nos anais da Reale Accademia dei Lincei, em 1939. E, o outro615, em
1941, nas atas da Reale Accademia d'Italia Roma.616
Apesar de Omar Catunda ter ido à Itália no auge do regime fascista, parece que ele não
teve problemas para não só entrar nesse País, mas também para participar do seu ambiente
acadêmico, notadamente em Roma, o principal centro de produção da matemática italiana.
Talvez porque Luigi Fantappiè fora aluno de Francesco Severi, que, além disso, era um
entusiasmado simpatizante do regime fascista.
Desde os primeiros anos de vigência do regime fascista na Itália, ainda na década de
1920, Luigi Fantappiè já circulava pelas ruas da Itália com um distintivo fascista no peito,
exibindo explicitamente a sua posição política. 617 No Brasil, não foi diferente, também não
escondeu o seu entusiasmo pelas ideias do regime fascista. Segundo Patrick Petitjean, Luigi
Fantappiè, além de ter sido responsável pelas reuniões do grupo fascista no Brasil,
comumente iniciava as suas aulas com a saudação fascista, invariavelmente respondida pelos
seus alunos com ruídos, principalmente batendo as mãos sobre as mesas, e algazarras,
fazendo-o, ingenuamente, acreditar que se tratava de uma característica saudação brasileira
em resposta a sua saudação618. Essa ingenuidade de Luigi Fantappiè parecia ser um traço
característico de sua personalidade. Ela muitas vezes o levou a passar por momentos de
ilusões e desapontamentos, tal como foi pontuado por Omar Catunda, quando buscou definir
o seu mentor intelectual Luigi Fantappiè, ainda que isto tenha sido feito de uma forma que
pode ser considerada passional, devido ao seu envolvimento pessoal e profissional com ele.
Na sua síntese, Luigi Fantappiè, foi assim lembrado:
O professor Fantappiè era um homem de temperamento vibrante, impetuoso,
otimista e mesmo um tanto ingênuo (“un bambinone”, como o classificou
certa vez o físico Gleb Wataglin). Havia tomado parte na Juventude Fascista
e continuou acompanhando com entusiasmo as realizações do governo de
Mussolini. Sua primeira decepção deu-se por ocasião do pacto da Itália com
a Alemanha – o eixo Roma-Berlim – e a conseqüente adesão da Italia à
política anti-semita, que atingiu muitos dos seus mais queridos amigos e
colegas. Mas a respeito de sua repulsa e da impopularidade dessa política no
seio da nação italiana, a sua fidelidade ao regime persistiu, colocando-o na
incômoda posição de defensor de um sistema que ainda lhe d4spertava

614
Un Teorema sugl'Insiemi che si Riconnette alla Teoria dei Funzionali Analitici.
615
Sui Sistemi di Equazioni alle Variazioni Totali in Più Funzionali Incogniti.
616
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. A Análise Matemática no Ensino Universitário
Brasileiro..., p. 454-455.
617
WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p.48 ; LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites..., p.28;
618
Apud TÁBOAS, Plínio Zornoff. Influências de Fantappiè na ciência e tecnologia brasileira. Um pouco
de história oral, p.182; TÁBOAS, Plínio. Z. Luigi Fantappiè: influências na matemática brasileira: um estudo
de história como contribuição para a educação matemática, p. 56.
210

entusiasmo e admiração, embora profundamente ferido nos seus mais


íntimos sentimentos e convicções..619
Mais uma vez não há como negar que, de fato, o posicionamento político interferiu
durante esse período na carreira acadêmica dos matemáticos que faziam parte do eixo França,
Alemanha e Itália. Assim, se até as primeiras décadas do séc. XX a Itália era a principal rota
dos estudantes de matemática que desejavam aprofundar os seus conhecimentos matemáticos,
em particular na geometria algébrica, rota essa mantida, ainda que em menor ritmo, até a II
Guerra Mundial, isto já não era mais uma realidade após o término dessa grande guerra. Os
Estados Unidos passaram a ser a rota dos estudantes de matemática, bem como dos
profissionais dessa área que desejavam fazer capacitações.
Pelo cenário que estava se formando em alguns ambientes europeus, principalmente
Itália e Alemanha, com as suas respectivas políticas de caráter nacionalista extremista, que
envolviam intolerância racial e religiosa, os Estados Unidos, desde alguns anos antes da
oficialização da II Guerra Mundial, tornavam-se o destino dos principais matemáticos da
época, entre eles André Weil e Oscar Zariski. Tais matemáticos, após breve passagem ao
Brasil, para lá retornaram, somando-se a outros eminentes matemáticos já radicalizados há
muito tempo em terras norte-americanas, como Solomon Lefschetz. Além desse fator, os
matemáticos brasileiros, em particular Omar Catunda, Jacy Monteiro e Cândido Lima, por
ainda estarem ou já ter convivido diretamente com alguns desses matemáticos da escola
bourbakista, tiveram mais essa razão para terem se dirigido aos Estados Unidos. Suas
respectivas bolsas de estudos indicavam bem a importância dessa relação na subsecção das
ciências matemáticas da FFCL.
Omar Catunda e Jacy Monteiro, cada um, em períodos muito próximos, mas
diferentes, obtiveram uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller, que havia subsidiado a
permanência de André Weil nos Estados Unidos, por dois anos, quando lá chegou em 1941.
Portanto, muito provavelmente, mantiveram com essa Fundação fortes relações de influência.
O período de Omar Catunda teve início em setembro de 1946 e foi até setembro do ano
seguinte. As suas atividades docentes na subsecção das ciências matemáticas da FFCL, pelo
menos no ano de 1947, foram assumidas pela sua assistente Elza Furtado Gomide, que se
responsabilizou pelo curso de análise matemática dado aos alunos do primeiro ano e pelo
professor interino Fernando Furquim de Almeida (1913-1981)620, que assumiu o segundo ano.

619
CATUNDA, Omar. Memória autobiográfica, p.28.
620
Tal como Cândido Lima, Fernando Furquim de Almeida foi da primeira turma da subsecção das ciências
matemáticas da FFCL. Formou-se em 1936 e a partir do ano seguinte foi contratado como professor interino
para uma cadeira de matemática, ao que tudo indica, a cadeira de complementos de matemática, que era
211

Não encontramos indicações de quem ministrou esse curso, em substituição a Omar Catunda,
aos alunos do terceiro ano.621
Nos Estados Unidos, Omar Catunda fez estudos avançados no Graduate College da
Universidade de Princeton. Assistiu conferências, simpósios e cursos de matemáticos de
grande prestígio internacional, como Emil Artin, Heinz Hopf (1894-1971), John von
Neumann (1903-1957) e Solomon Lefschetz. Nesse período tinha cerca de quarenta anos,
idade considerada ainda hoje, pela própria comunidade matemática, avançada para um
matemático exercer, com todos os seus atributos intelectuais, a atividade de pesquisa na
matemática que é designada de pura. Isto ficou evidenciado para Omar Catunda ao perceber
que as aulas ministradas por professores que se aproximavam da sua faixa etária eram
frequentadas por estudantes muito mais jovens do que ele. Portanto, muito provavelmente
iriam alcançar o auge da sua carreira antes dos quarenta anos, como aconteceu, por exemplo,
com o brasileiro Leopoldo Nachbin, que também foi estudar nos Estados Unidos, de 1948 a
1950, e ganhou notoriedade matemática, a nível internacional, quando ainda não tinha
completado trinta anos.622
Sentindo-se desorientado dentro desse ambiente intenso e competitivo, que era
manipulado com naturalidade pelos seus jovens colegas, Omar Catunda optou por estudar
sozinho e frequentar vários cursos simultaneamente, em vez de procurar se entrosar com o
movimento dos pesquisadores. Mas isto não o impediu de que entrasse em conflito consigo
mesmo. Tal sentimento fez com que ficasse nostálgico, levando-o a refletir o momento da sua
opção em fazer engenharia, como se ela tivesse tirado a sua oportunidade de ficar em

destinada à subseção das ciências químicas. Em1940, tal cadeira surge como sendo também destinada aos
alunos das ciências sociais e da pedagogia. A partir de 1942, assumiu uma cadeira de crítica dos princípios e
complementos de matemática, criada nesse ano, para os alunos das ciências matemáticas. Em 1943, aparece
como seu assistente, assumindo as aulas de complementos de matemática destinada aos alunos das ciências
químicas, ciências sociais e pedagogia, João Batista Castanho, outro ex-aluno do curso de matemática formado
em 1941, portanto fora colega de Edison Farah. Após concurso de títulos e de provas, em 1951, para a cadeira
de crítica dos princípios e complementos de matemática, concomitantemente realizado para as cadeiras de
geometria analítica, projetiva e descritiva e para a cadeira de complementos de geometria e geometria
superior, Fernando Furquim de Almeida, que havia sido aprovado, foi nomeado, em dezembro desse mesmo
ano, professor catedrático da referida cadeira. Na ocasião do concurso, como um de seus pré-requisitos,
defendeu a tese intitulada Fundamentos da geometria absoluta no plano. FACULDADE DE FILOSOFIA,
CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1937-1938, p.209; FACULDADE DE FILOSOFIA,
CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v. II, p.613-614 e 727; FACULDADE DE
FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1951, p. 91-100 e 179.
621
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v. II, p.
615-616.
622
CATUNDA, Omar. Curriculum vitae. In: Memória autobiográfica. [S.l.: s.n.], p. 1; ______. Memória
autobiográfica, p. 41; LIMA, Eliene Barbosa. Dos infinitésimos aos limites..., p. 34; DIAS, André Luis
Mattedi. Anexo: Omar Catunda: alguns aspectos de sua trajetória e das suas concepções científicas e
educacionais. In: Engenheiros, mulheres, matemáticos: Interesses e disputas na profissionalização da
matemática na Bahia, 1896-1968, p.286; COIMBRA, Carlos Alberto. A pesquisa Matemática de Nachbin. In:
NACHBIN, Leopoldo. Ciência e sociedade, p.13-16.
212

igualdade de condições com os seus colegas matemáticos, talvez se esquecendo, na sua


seletividade das lembranças, que naquele momento, no Brasil da década de 1920, não havia
cursos específicos de formação em matemática. Portanto, a engenharia era o caminho natural
daqueles que tinham aptidão para os estudos matemáticos.623 Ao retornar dos Estados Unidos,
retomou as suas atividades imediatamente. Os matemáticos brasileiros, em particular esses
que estamos pesquisando, pareciam entender claramente a importância e a necessidade desses
intercâmbios para a continuação do desenvolvimento da matemática no Brasil, tanto que eles
sempre se disponibilizavam em cobrir as atividades docentes desses seus colegas, quando
surgiam essas oportunidades. Isto era viabilizado inclusive para os seus assistentes de ensino,
como foi o caso de Jacy Monteiro, que em setembro de 1947 deslocou-se para os Estados
Unidos, enquanto Omar Catunda de lá retornava.624
Jacy Monteiro fez estudos aprofundados de matemática em duas universidades
diferentes. Em um primeiro momento na Universidade de Harvard, acompanhou as aulas de
Oscar Zariski, que já se encontrava nessa instituição desde julho de 1947. Em um segundo
momento, na Universidade de Chicago, assistiu a um curso sobre funções algébricas
ministrado por Saunders Mac Lane (1909-2005).625
Ao reingressar ao Brasil, em março de 1949, Jacy Monteiro reassumiu as suas
atividades de assistente na cadeira de complementos de geometria e geometria superior. Os
cursos pertencentes a essa cadeira, a partir de 1948 até julho de 1949, foram ministrados por
dois professores diferentes, em substituição a Cândido Lima, professor interino dessa cadeira.
Mantendo o hábito de substituir o colega para que ele pudesse aprofundar os seus
conhecimentos matemáticos, o curso de complementos de geometria foi assumido por
Benedito Castrucci e Omar Catunda se responsabilizou pelo curso de geometria superior. Isto
porque, tal como havia acontecido com o próprio Omar Catunda e Jacy Monteiro, Cândido
Lima, nesse período, encontrava-se nos Estados Unidos mediante uma bolsa de estudos. No
caso dele, a bolsa foi fornecida pela Fundação Guggenheim, com a qual André Weil também
tinha uma relação de influência. Relembrando, tal Fundação foi a que havia dado, por um ano,
uma bolsa de estudos a André Weil, em 1944, para que ele e sua família pudessem ter a
mínima condição de sobrevivência nos Estados Unidos. Esta bolsa foi definitivamente
suspensa somente após André Weil ter se estabelecido oficialmente na subsecção das ciências

623
CATUNDA, Omar. Memória autobiográfica, p. 41.
624
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v. II, p.
615-616.
625
DUARTE, Aparecida R. S. Matemática e Educação Matemática: a dinâmica de suas relações..., p. 313;
PARIKH, Carol. The unreal life of Oscar Zariski, p. 85.
213

matemáticas da FFCL. Nos Estados Unidos, Cândido Lima teve passagem em Harvard,
Chicago e em Princeton, na época, segundo ele próprio, os principais centros de matemática.
Seguindo a mesma atitude de Omar Catunda e Jacy Monteiro, Cândido Lima, após ter
retornado ao Brasil, assumiu imediatamente as suas atividades de professor interino na cadeira
de complementos de geometria e geometria superior da subsecção das ciências matemáticas
da FFCL. 626
Esses foram momentos ímpares em que esses matemáticos brasileiros tiveram a
oportunidade de interagir e de se apropriar de um novo estilo de matemática, tendo a
possibilidade de trabalhar em suas respectivas cadeiras com outros olhares que não apenas
aquele que havia sido praticado pela escola italiana de matemática. Em suma, era dada a
possibilidade de escolhas para que cada um deles pudesse produzir um estilo próprio de
pensar e fazer matemática, sem que isto inviabilizasse a construção de uma sólida
comunidade de matemática brasileira, a qual seria formada, inspirando-nos novamente no
conceito de habitus social de Norbert Elias627, com as suas especificidades, ao concebermos
os matemáticos brasileiros como seres individuais, mas também com o compartilhamento dos
interesses comuns, na medida em que cada um deles ainda pode ser visto como um ser social.

6.1 Doutoramentos, teses e estilo matemático

Os estudos para o título de doutor da FFCL, segundo Clóvis Pereira da Silva, foram
iniciados a partir de 1942, antes mesmo da sua institucionalização pelo Governo Federal. Isto
foi feito por meio do Decreto Estadual nº 12.511, datado de 21 de janeiro de 1942, assinado
pelo então interventor federal do Estado de São Paulo Fernando Costa. Tal Decreto, que
reorganizava a FFCL, no seu Art.64, estabeleceu as seguintes condições para se obter o título
de doutor:
§ 1º. Será conferido o diploma de doutor ao bacharel que defender tese de
notável valor, depois de dois anos, pelo menos, de estudos sob a orientação
do professor catedrático da disciplina sobre que versarem os seus trabalhos,
e for aprovado no exame de duas disciplinas subsidiárias da mesma secção
ou de secção afim.
§ 2º. Será concedido o título de doutor igualmente a todos os aprovados em
concurso para catedrático.. (grifo no original). 628

626
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1949, v. II,
p.616; WEIL, André. Souvenirs d’apprentissage, p. 193-194; DIAS, Cândido Lima da Silva. Ciência Hoje.
São Paulo. Entrevista concedida à Vera Rita da Costa, [n.p.]
627
ELIAS, Norbert. Mudanças na balança nós-eu. In A Sociedade dos Indivíduos, p.150.
628
Apud SILVA, Clóvis Pereira da. Sobre a pesquisa matemática no Brasil, p. 82.
214

Em relação aos nossos cinco personagens matemáticos brasileiros, com exceção de


Omar Catunda, o primeiro parágrafo desse artigo prevaleceu para que Benedito Castrucci,
Cândido Lima, Edison Farah e Jacy Monteiro obtivessem os seus respectivos títulos de
doutores em ciências, num período em que todos ainda exerciam a função de assistentes, ou
seja, nenhum deles havia feito concurso público. Isto porque pelos anuários da FFCL de que
disponibilizamos e analisamos, e ainda pela pesquisa de Rute da Cunha Pires, pudemos
constatar uma equivalência entre o primeiro parágrafo do referido artigo e os procedimentos
realizados por esses professores para obterem os seus respectivos títulos de doutores em
ciências. Todos eles tiveram um orientador, fizeram disciplinas subsidiárias, realizaram
exames de arguição referentes a essas disciplinas e fizeram a defesa pública de suas
respectivas teses, sendo que, para cada uma dessas duas últimas etapas foram formadas
bancas examinadoras específicas para avaliação629.
Cândido Lima doutorou-se em novembro de 1942. Nesse processo, defendeu uma tese
intitulada Sôbre a regularidade dos funcionais definidos no campo das funções localmente
analíticas. Benedito Castrucci obteve o título de doutor no ano seguinte. A sua tese foi Sôbre
uma nova definição de cúbica plana. Na década de 1950, doutoraram-se Jacy Monteiro e
Edison Farah. Há uma divergência em relação ao ano de doutoramento de Jacy Monteiro. No
Anuário da FFCL do ano de 1951, consta que ele obteve o grau de doutor nesse ano, no
entanto, na sua tese, aparece o ano de 1950. Se não houve erro datilográfico do referido
Anuário ou ainda do próprio Jacy Monteiro em sua tese, podemos conjecturar que Jacy
Monteiro tenha terminado a sua tese em 1950 e apenas a defendido em abril de 1951, tal
como consta nesse Anuário. O que parece não haver dúvidas é que Jacy Monteiro tenha
defendido uma tese intitulada Sôbre as potências simbólicas de um ideal primo de um anel de
polinômios. Já Edison Farah obteve o seu doutorado em dezembro de 1950. Dentro desse
processo, defendeu a sua tese Sôbre a medida de Lebesgue.630
Já em relação a Omar Catunda, a situação foi diferente, visto que ele não defendeu
uma tese de doutoramento para obter o título de doutor. Neste sentido, em conformidade ao
que indica o segundo parágrafo do já referido Art. 64, o próprio Omar Catunda afirmou, em
um depoimento, ter obtido o título de doutor e de livre docência após ter sido aprovado no
concurso para a cátedra de análise matemática em 1944.631 Para tanto, defendeu uma tese

629
PIRES, Rute da Cunha. Anexo: atas de doutoramentos em matemáticas de 1941 à 1968. In: A presença de
Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, [n.p]; FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E
LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1951, passim.
630
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo), 1939-1951, passim.
631
CATUNDA, Omar. Depoimento, p. 91.
215

intitulada Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos. Não é surpresa que Omar
Catunda tenha escolhido como tema central a teoria dos funcionais analíticos, visto que foi
assistente de Luigi Fantappiè, assumira interinamente a cadeira que fora deixada por ele e,
ainda, até aquele ano, a subsecção das ciências matemáticas não estava sob a influência direta
de nenhuma outra escola, notadamente, a escola bourbakista de matemática.
Com efeito, nessa sua tese, Omar Catunda teve como objetivo principal estudar
sistematicamente a parte fundamental da teoria dos funcionais analíticos. Assim,
naturalmente, Omar Catunda expôs que o objeto de seu estudo foi um ramo da teoria dos
funcionais que foi inaugurado com bastante sucesso por Luigi Fantappiè. Nas suas próprias
palavras:
Este ramo da teoria dos funcionais, inaugurado pelo prof. Fantappiè, foi este
desenvolvido com bastante sucesso principalmente nas aplicações à teoria
das funções de matrizes e de operadores, à resolução explícita de certo tipos
de equações diferenciais, à fundamentação rigorosa do cálculo simbólico,
etc..632
Em seguida, mostrando admiração em relação ao método empregado por Luigi
Fantappiè para estabelecer esses resultados, Omar Catunda complementou essas suas
informações fazendo a seguinte afirmação:

Todos esses resultados se obtêm por meio de raciocínios de grandes


generalidades e relativamente simples, a partir de conceitos que se
apresentam naturalmente no estudo dos funcionais de funções analíticas. Em
particular, o conceito de indicatriz de um funcional linear, assim, como a
fórmula fundamental do prof. Fantappiè, são ricos de consequências para as
referidas aplicações..633
Parece-nos, portanto, que Omar Catunda refletia bem o conceito que os matemáticos e
estudantes brasileiros tinham em relação à escola italiana de matemática nesse período.
Essas considerações feitas por Omar Catunda serviram também para que ele pudesse
explicitar os motivos que o levaram a pensar e a fazer esse estudo para ser apresentado como
parte das exigências do concurso à cátedra de análise matemática realizado em 1944. Neste
sentido, Omar Catunda argumentou que a maior parte das dificuldades apresentadas dentro da
teoria dos funcionais analíticos residia justamente nos seus fundamentos, afirmação que para
ele, não causaria estranheza para alguém que já tivesse travado conhecimento com os diversos
espaços funcionais dentro do campo real. Isto porque, explicou Omar Catunda, tais espaços,
algumas vezes, exibiam complicações de grandes amplitudes.

632
CATUNDA, Omar. Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos, p.1.
633
CATUNDA, Omar. Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos, p.1.
216

Para atingir o objetivo que propôs, Omar Catunda, em uma primeira parte que
correspondeu ao primeiro e segundo capítulos da sua tese, fez um estudo que ele disse ter
tentado ser o mais completo quanto possível, sobre o espaço analítico. Inclusive buscou, nessa
discussão, aplicar, nesse espaço, os resultados da análise geral. Segundo Catunda,
evidenciando acesso e domínio de obras de matemáticos de outras escolas matemáticas, tais
resultados tiveram início com o francês Maurice René Fréchet (1878-1973) e com o alemão
Felix Hausdorff (1868-1942), que, por sua vez, foram desenvolvidos por matemáticos da
escola polonesa, tais como Kazimierz Kuratowski (1896-1980), Waclaw Spierpinski (1882-
1969) e Stefan Banach (1892-1945). Posteriormente, complementou Catunda, pelos
matemáticos russos Pavel Alexandrov e Andrey Nikolaevich Kolmogorov (1903-1987) e
pelos matemáticos americanos, dentre outros, GordonThomas Whyburn (1904-1969),
Raymond Louis Wilder (1896-1982) e John Wilder Tukey (1915-2000).
Na ótica de Omar Catunda, essa sua discussão tornava-se um grande problema, visto
que praticamente nenhuma das conhecidas definições introduzidas por Maurice Fréchet
poderiam ser aplicadas ao espaço analítico. Para dimensionar melhor a grandiosidade do seu
problema, Omar Catunda pontuou que o próprio Luigi Fantappiè, devido às dificuldades que
encontrou em seus primeiros trabalhos, em considerar as funções analíticas – no sentido de
Weierstrass – como elementos do espaço funcional – resolveu abandonar essa ideia. Preferiu
considerar as funções analíticas localmente como pontos desse espaço, as quais foram
definidas em regiões de um plano complexo ampliado, inclusive admitindo nessa sua
definição as regiões não convexas. Para Catunda, essa alteração feita por Luigi Fantappiè se,
por um lado, conseguiu simplificar os estudos em relação à continuidade nas linhas e
variedades analíticas, por outro, teve a capacidade de introduzir um importante elemento
complicador. Isto porque, na concepção de Omar Catunda:
[...] emquanto que para as funções analíticas, no sentido de Weierstrass,
dado um elemento, está completamente individualizado tanto o campo
natural de existência como o valor da função em todo esse campo, [já] para
as funções analíticas localmente é preciso considerar como ponto um
complexo constituido pela função e pela região em que esta se supõe
definida..634
Assim, para Omar Catunda: “[...] uma mesma função analítica em sentido restrito dá
origem a uma infinidade de pontos, que se obtêm tomando todas as regiões possíveis contidas
no seu campo natural de existência.”635. Esses elementos, na ótica de Omar Catunda,
complicavam consideravelmente o espaço funcional, dificultando então, o seu estudo

634
CATUNDA, Omar. Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos, p.2.
635
CATUNDA, Omar. Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos, p.2.
217

topológico. Omar Catunda, portanto, estabelecia um problema que ainda carecia uma
investigação, propondo-se a resolver justamente nessa sua tese, dando-lhe o caráter de
ineditismo. Neste sentido, introduziu, no segundo capítulo, o conceito de ponto (f, R)636 “[...]
com as noções de pontos distintos e essencialmente distintos [...]”637, que, no seu entender,
eram necessárias para que fosse possível fazer o estudo de algumas relações topológicas. Isto,
na nossa leitura, corresponde a uma evidência de que Omar Catunda teve acesso a essas
discussões pelo contato direto com os matemáticos da escola italiana na subsecção das
ciências matemáticas da FFCL, ou ainda fazendo uso da literatura existente na biblioteca do
Departamento de Matemática, que, por sinal, conforme já salientamos, foi organizada por
esses matemáticos italianos.
Para Omar Catunda, a definição dos pontos dessa forma, somada à inserção do
conceito de entorno, possibilitaria formar um espaço com propriedades que seriam muito
diferentes da grande maioria que estava presente nos espaços funcionais já tradicionalmente
estudados. Nesse espaço, segundo Omar Catunda, os conjuntos abertos ou regiões eram os
conjuntos mais importantes, visto que a noção de conjunto fechado, discutida ainda no seu
segundo capítulo, apresentou uma aparente contradição.
No último capítulo de sua tese, ou seja, no seu terceiro capítulo, Omar Catunda
introduziu o conceito de funcional contínuo. Para isto, Omar Catunda, mostrando que os
matemáticos brasileiros já estavam produzindo os seus próprios trabalhos originais de
pesquisa científica, afirmou que adaptou a definição de continuidade para sucessões que havia
sido proposta por Cândido Lima, em sua tese de doutoramento, em 1942, ao conceito geral de
continuidade de um espaço funcional, que era definido dentro de um espaço de entornos.
Cândido Lima, nesse período, ainda estava sob a influência direta apenas da escola italiana de
matemática. Nessa seara, Omar Catunda pontuou que os funcionais contínuos lineares eram
os que se caracterizavam como os mais simples entre os funcionais contínuos que eram
definidos no espaço funcional analítico.
Por fim, Omar Catunda ainda chamou atenção de que, para fazer esse seu estudo, fez
uso de algumas “[...] denominações e notações correntes na teoria dos conjuntos, como as

636
Tal ponto foi definido por Omar Catunda da seguinte forma: Chamaremos ponto do espaço funcional
analítico, o conjunto das funções f(z) analíticas em uma região R da esfera e que coincidem em todos os
pontos dessa região. Um ponto está assim perfeitamente determinado quando é dada a região R e uma função
f(z) analítica em R; por estão razão designaremos esse ponto como o símbolo (f,R), em que a função f pode ser
substituida por qualquer dos seus prolongamentos ou por qualquer função analítica em R, de que f(z) seja
prolongamento.. CATUNDA, Omar. Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos, p.21.
637
CATUNDA, Omar. Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos, p.2.
218

relações de pertinência, inclusão, diferença, reunião, produto, etc. [...]”638. Complementou,


afirmando que, para obter “[...] uniformidade da terminologia em português, restringimo-nos
em geral à linguágem do professor Lelio Gama na sua obra recente ‘Introdução à teoria dos
conjuntos’.”639. Havia, portanto, dentro da própria literatura brasileira, discussões que
envolviam a teoria dos conjuntos, ainda que não fosse seguindo o mesmo estilo adotado pela
escola bourbakista. Isto aconteceu antes mesmo da chegada dos primeiros bourbakistas e dos
matemáticos que compartilhavam com os seus princípios na subsecção das ciências
matemáticas da FFCL, visto que esse trabalho de Omar Catunda, mais uma vez enfatizando, é
datado no ano de 1944. A referida obra de Lélio Gama foi publicada em 1941. Esse é, então,
mais um elemento que evidencia que teorias, tal como a teoria dos conjuntos, estavam sim ao
alcance e faziam parte das discussões dos matemáticos brasileiros antes da vinda de
matemáticos que eram membros ou que convergiam com a linha de raciocínio do Grupo
Bourbaki.
Todavia, já na década de 1960, por certo, não apenas influenciado pela escola
bourbakista, mas também pela escola americana de matemática, Omar Catunda revolveu
publicar o livro Curso de Análise Matemática de Omar Catunda em uma nova e definitiva
edição revista e alterada, em dois volumes, na qual foram acrescentadas, por exemplo, as
estruturas de ordem, algébricas e topológicas, conteúdos apropriados principalmente do livro
Foundations of modern analysis de Jean Dieudonné, um dos matemáticos franceses do grupo
Bourbaki. Contudo, mesmo admitindo essas atualizações e modernizações no seu livro,
Catunda não deixou de registrar nessa versão do seu livro que, na medida do possível, sempre
procurou conciliar as suas demonstrações com a intuição geométrica. Sintetizou Catunda: “O
autor preocupou-se particularmente em dar demonstrações simples [...] sem sacrificar o rigor
matemático, mas mantendo constante a aproximação da Análise com a intuição
geométrica”640. Observamos que ainda que Catunda trabalhasse a suas teorias utilizando a
abordagem da escola italiana e a do Grupo Bourbaki, na maioria das vezes, a forma de expô-
las era diferente, a exemplo da construção dos campos numéricos. Catunda, nessa sua versão,
apesar de fazer uma apresentação construtiva dos campos numéricos, tal como Fantappiè fez,
sua abordagem se diferenciou da dele. Luigi Fantappiè alicerçou a sua discussão concebendo
número como grandeza e quantidade, ou seja, dependente da percepção sensorial, enquanto
Catunda primou a sua construção pela concepção de número como ente puramente abstrato, a

638
CATUNDA, Omar. Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos, p.4.
639
CATUNDA, Omar. Sobre os fundamentos da teoria dos funcionais analíticos, p.4.
640
CATUNDA, Omar. Prefácio. In: Curso de Análise Matemática, v.1, 1962, [n.p].
219

qual é feita a partir dos postulados de Peano, ao invés da apresentação axiomática do campo
real, no sentido que parece ter sido discutido pelo Grupo Bourbaki e, portanto, também
diferente da abordagem feita por esse último.641 Em suma, Omar Catunda fez uma construção
dos campos numéricos em conformidade a sua própria forma de pensar e fazer matemática.
Semelhantemente a Omar Catunda, a orientação matemática de Benedito Castrucci
sempre esteve mais inclinada à escola italiana de matemática. Indícios dessa sua opção podem
ser observados na organização do programa da cadeira de geometria analítica, projetiva e
descritiva, mas isto é, em certa medida, visto que não tivemos possibilidade de analisar de que
forma os assuntos contidos nesse programa foram trabalhados. Dentro dessa ótica, parece
que, sob a sua regência, o programa dessa cadeira, pelo menos dentro do período de nossa
pesquisa, convergindo com o pensamento de Rute da Cunha Pires, teve poucas variações em
relação ao mesmo curso que era ministrado por Giacomo Albanese642, ainda que tivesse se
apropriado de algumas orientações da escola bourbakista, tal como podemos observar na sua
tese.
Tal tese, intitulada de Fundamentos da geometria projetiva finita n-dimensional, foi
apresentada no ano de 1951 como um pré-requisito exigido pelo concurso para provimento da
cadeira de geometria analítica, projetiva e descritiva, da qual era professor interino desde abril
de 1942.
Benedito Castrucci, em um brevíssimo resgate histórico, feito logo na parte inicial de
sua tese, afirmou que as questões referentes à geometria finita pareciam ter surgido com os
trabalhos de Gino Fano, em 1892, no qual tratou dos postulados fundamentais da geometria
projetiva em um espaço linear em qualquer número de dimensões e de Beppo Levi, em 1904,
sobre os fundamentos da métrica projetiva643. Após um intervalo de cerca de vinte anos,
continuou Benedito Castrucci, houve, a partir de 1930, a retomada dessas investigações com a
publicação do trabalho de Robert Daniel Carmichael (1879-1967), no qual abordou as
geometrias finitas e a teoria dos grupos. Esse trabalho, afirmou Benedito Castrucci, foi
seguido por outras publicações feitas por matemáticos, dentre outros que foram citados por
Benedito Castrucci, como Ruth Moufang (1905-1977), Richard Dagobert Brauer (1901-
1977), Reinhold Baer (1902-1977), Friedrich Wilhelm Daniel Levi (1888-1966), e Chung-

641
CATUNDA, Omar. Prefácio. In: Curso de Análise Matemática, v.1, 1962; FANTAPPIÈ, Luigi. Curso de
análise matemática, p. 1-4; LIMA, Eliene Barbosa; Dias, André Luis Mattedi. Concepções modernas de
rigor..., p.180.
642
PIRES, Rute da Cunha. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo, p. 341.
643
Respectivamente nomeados: Sui postulati fondamentali della G. Proiettiva in uno spazio lineare a um
numero qualunque di dimensioni e Fondamenti della métrica proiettiva. CASTRUCCI, Benedito.
Fundamentos da geometria projetiva finita n-dimensional, p.81.
220

Tao Yang (1923-2005). Dessa forma, diante da intensa retomada dos matemáticos em
trabalhar com questões ligadas à geometria finita, Benedito Castrucci se sentiu motivado em
produzir uma tese tendo como tema central esse domínio da geometria.
Apesar de observarmos traços bem visíveis da influência da escola bourbakista no
desenvolvimento desse seu trabalho, devido às referências de obras de Bourbaki e ainda de
algumas outras de seus integrantes, Benedito Castrucci, para fazer essa sua discussão, mostrou
que foi fortemente influenciado por textos de autores que tiveram a sua produção publicada
antes mesmo da efervescência dessa escola. São obras que muito provavelmente faziam parte
do acervo da biblioteca que Giacomo Albanese ajudou a montar, o qual foi muito elogiado
por André Weil quando chegou ao Brasil. Estes foram os casos, por exemplo, dos textos de
Ruth Moufang e do trabalho de Otto Schreier (1901-1929) e Emanuel Sperner (1905-1980),
todos do período de 1931 a 1935. Segundo Jacob David Tamarkin, esse trabalho de Otto
Schreier e Emanuel Sperner tinha como principal característica a fusão completa dos
fundamentos da geometria analítica com a da álgebra. No segundo volume desse livro,
também utilizado por Benedito Castrucci, ainda conforme Jacob David Tamarkin, há uma
discussão, no seu terceiro capítulo sobre geometria projetiva, dos fundamentos da geometria
projetiva em um espaço n-dimensional644. Especificamente em relação a essa obra de Otto
Schreier e Emanuel Sperner, Benedito Castrucci afirmou que fez uso dela da seguinte forma:
“No capítulo I, aproveitamos o método empregado, no corpo real, por O. Schreier und E.
Sperner [...], da associação de um espaço vectorial ao espaço projetivo.”645. Além dessas
referências, Benedito Castrucci fez explícitos usos de referências da escola italiana de
matemática no corpo de suas discussões, tal como os estudos de Beniamino Segre sobre
homografias involutórias. Estes estudos faziam parte do programa do curso de geometria
analítica, projetiva e descritiva ministrado por Giacomo Albanese646.
Cândido Lima era estudante do terceiro ano de Engenharia da Escola Politécnica de
São Paulo, quando, em 1934, resolveu assistir às aulas de Luigi Fantappiè. A partir de 1935,
abandonou o curso de engenharia para dar continuidade apenas ao Curso de Matemática da
FFCL. 647 Após se formar, em 1936, conforme já observamos, tornou-se segundo assistente de
Luigi Fantappiè. Neste período, Cândido Lima começou a ter contato mais direto com a teoria

644
TAMARKIN, Jacob David. Review: O. Schreier and E. Sperner, Einführung in die analytische geometrie und
algebra, v.I, p.622; ______. Review: O. Schreier and V. Sperner, Einführung in die analytische geometrie und
algebra, v. II, p.759.
645
CASTRUCCI, Benedito. Fundamentos da geometria projetiva finita n-dimensional, p. i.
646
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (Universidade de São Paulo),1937-1938, p.281.
647
DIAS, Cândido Lima da Silva. Ciência Hoje. São Paulo. Entrevista concedida à Vera Rita da Costa, [n.p.];
______. Cândido da Silva Dias: meio século como pesquisador, [n.p.].
221

dos funcionais analíticos, que teve em Fantappiè o seu principal construtor. Ele mesmo
assumiu que, depois de formado, o seu primeiro trabalho acadêmico próprio, publicado em
1941, foi sobre essa teoria, tornando-se inclusive objeto de estudo da tese que lhe conferiu o
título de Doutor em Ciências, em 1942648.
Com a chegada da escola bourbakista na subsecção das ciências matemáticas da
FFCL, Cândido Lima passou a ter uma concepção de matemática fortemente influenciada
pelos princípios dessa escola. Em certa medida, essa influência pode ser percebida por meio
da sua tese, nomeada de Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos
espaços funcionais analíticos, desenvolvida em 1951, para fazer o concurso referente à
cadeira de complemento de geometria e geometria superior, da qual já era professor interino
na subsecção das ciências matemáticas da FFCL, tal como havia acontecido com Benedito
Castrucci, desde abril de 1942. Mesmo assim, Cândido Lima não deixou de reconhecer a
magnitude da criação de Luigi Fantappiè em relação à teoria dos espaços funcionais. Em suas
próprias palavras:
A teoria dos funcionais analíticos, magnífica criação do matemático Luigi
Fantappiè, apresenta um aspecto singular que talvez possa ser descrito,
dizendo-se que, para servir de base à teoria, falta-lhe a identificação de um
espaço topológico com estrutura bem definida e simples..649
Ainda, reconheceu que Luigi Fantappiè, desde a década de 1940, já havia conseguido
mostrar de que forma seria possível introduzir uma estrutura de espaço To, usando uma
nomenclatura de Alexandroff-Hopf, dentro do conjunto das funções localmente analíticas.
Contudo, visando evidenciar uma lacuna na argumentação de Luigi Fantappiè para que fosse
possível delimitar a importância da realização dessa sua tese, Cândido Lima afirmou que essa
teoria era demasiadamente geral para que efetivamente servisse. Foi, portanto, a partir desse
ponto, que Cândido Lima abriu espaço para introduzir a sua linha de raciocínio para resolver
essa problemática em conformidade a sua identidade matemática, construída sob a influência
da escola bourbakista, mas não exclusivamente, pois mantinha também laços com a
matemática italiana. Isto porque observamos que não há no texto de Cândido Lima uma
crítica em torno da falta de rigor do método utilizado por Luigi Fantappiè para conseguir
introduzir essa teorização no corpo da teoria dos funcionais analíticos, mas sim no fato de que
ela era muito geral. Uma ótica perfeitamente natural, visto que Cândido Lima optou em
advogar a favor da teoria dos espaços vetoriais topológicos. Para ele, o que deveria ser

648
DIAS, Cândido Lima da Silva. Cândido da Silva Dias: meio século como pesquisador, [n.p]; ______.
Ciência Hoje. São Paulo. Entrevista concedida à Vera Rita da Costa, [n.p.].
649
DIAS, Cândido Lima da Silva. Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p.I.
222

colocado em um primeiro plano ou que realmente deveria interessar nessa situação seria a
inserção de uma estrutura de espaço vetorial topológico como fundamento da teoria dos
funcionais analíticos lineares, diferentemente do estudo realizado por Luigi Fantappiè, que foi
feito a partir dos conceitos de região funcional linear e linha analítica.
Assim, Cândido Lima teve como objetivo de sua tese apresentar os resultados que
havia obtido na teoria dos espaços funcionais analíticos, por meio da aplicação da teoria
moderna dos espaços vetoriais topológicos. Afirmou ter escolhido abordar esse assunto para
apresentar como uma das exigências do concurso para a cadeira de complementos de
geometria e geometria superior, porque, em tal cadeira ministrada interinamente por ele
mesmo, já continha em seu programa um estudo extensivo de pontos sobre espaços vetoriais,
especialmente, sobre a noção de dualidade650. Dessa forma, na sua concepção, a tese não
passava “[...] de variações sôbre o tema da dualidade e seu principal resultado é,
essencialmente, a dualidade que se estabelece entre os espaços [O] e [F].”651 Tratava-se de um
trabalho cuja ideia central, conforme o próprio Cândido Lima, foi sugerida por André Weil
quando estava nos Estados Unidos realizando estudos avançados de matemática no Institute
for Advanced Study. Por sinal, um período de estudos somente concretizado, segundo
Cândido Lima, por meio de uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim, conseguida
devido à interferência do próprio André Weil652.
Em suma, era um olhar diferente do que foi estabelecido por Luigi Fantappiè, uma
nova perspectiva de trabalhar essa problemática, possível de ser realizado, na medida em que
o conhecimento científico, em particular o conhecimento matemático, não tem um único
processo de demonstração e nem uma única forma de ser discutido, uma vez que todos os
caminhos são válidos, desde que sejam feitos por argumentos passíveis de demonstrações que
não contenham imprecisões lógicas.
Dessa forma, visando atingir ao objetivo proposto, Cândido Lima começou a
apresentar as cartas que iria utilizar nesse seu jogo de argumentação. Em um primeiro
momento, disse que o conceito de linha analítica seria substituído pelo de sucessão
uniformemente convergente de funções analíticas em um adequado conjunto aberto, que para
ele adaptar-se-ia melhor aos métodos da topologia geral. Contextualizou que essa modificação
havia sido sugerida por Renato Cacciopoli (1904-1959), em 1931, e desenvolvida em sua tese

650
DIAS, Cândido Lima da Silva. Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p. III.
651
DIAS, Cândido Lima da Silva. Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p. III.
652
DIAS, Cândido Lima da Silva. Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p. IV.
223

de doutoramento em 1942, algo que, segundo Cândido Lima, também foi feito por José
Sebastião e Silva (1914-1972), em 1946. 653 Já em relação ao conceito de região funcional
linear, Cândido Lima inicialmente destacou que tal região era um espaço vetorial. Assim, para
ele, foi um grande avanço de José Sebastião e Silva ter substituído, em 1950, o conceito de
região funcional linear pelo de função analítica ligada a um conjunto. Segundo Cândido Lima,
“[...] a totalidade das funções analíticas ligadas a um conjunto, confunde-se com o espaço
vectorial [F] [...]”654 tal como ele expôs em sua tese. Depois, em outro momento, Cândido
Lima expôs os caminhos que ele teve que percorrer para conseguir introduzir a estrutura de
espaço vetorial topológico nessa sua tese, particularmente, a estrutura de espaço localmente
convexo no espaço vetorial [F]. Para Cândido Lima, um fator decisivo para que conseguisse
dar conta de seu objetivo foi o estudo que fez de um texto de George Whitelaw Mackey
(1916-2006) intitulado On convex topological linear spaces. Neste texto, pontuou Cândido
Lima, o autor resolveu um problema relacionado às topologias localmente convexas sobre um
espaço E, que eram compatíveis com uma parte de seu dual algébrico, ou seja, com as
topologias em que os funcionais lineares dados eram contínuos.
A partir do estudo desse texto, Cândido Lima afirmou que fez uso de seus teoremas os
quais foram mais bem precisados em relação ao espaço [F] por Richard Arens (1919-2000),
que, segundo Cândido Lima, apresentou “[...] necessàriamente a consideração simultânea do
espaço [O], que se identifica com o espaço vectorial constituido pelos funcionais analíticos
lineares e, dêste modo, introduz-se a noção de dualidade na teoria de Fantappiè.”655 Na sua
ótica, esse estudo teve como uma de suas consequências mais importantes “[...] a
identificação da topologia forte sôbre o espaço [O], como topologia de espaço de Montel e a
topologia de espaço dual, com a mesma propriedade de Montel, sôbre o espaço [F].”656. Por
sua vez, para fazer o estudo das propriedades do espaço [O] como um espaço de Fréchet e do
seu dual, Cândido Lima disse que fez uso dos resultados de Jean Dieudonné e Laurent
Schwartz obtidos em um texto nomeado de La dualité dans les espaces (F) et (LF). Neste
ponto, Cândido Lima buscou deixar clara, mais uma vez, a originalidade de sua tese ao dizer
que o problema relacionado à introdução de uma estrutura localmente convexa sobre o espaço

653
DIAS, Cândido Lima da Silva. Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p. I.
654
DIAS, Cândido Lima da Silva. Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p. I.
655
DIAS, Cândido Lima da Silva. Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p. II.
656
DIAS, Cândido Lima da Silva. Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p. II.
224

[F] foi resolvido, em sua tese, mais precisamente em seu segundo capítulo, de forma
independente da consideração do espaço dual [O]. Conseguiu fazer isto utilizando a noção de
espaço envoltória de espaços localmente convexos, desenvolvida por Gottfried Maria Hugo
Köthe (1905-1989). Inclusive chamou atenção para o fato de que o espaço envoltória se
identificava com o dual forte de [O]. Além desse resultado original obtido em sua tese,
Cândido Lima afirmou ainda que, por meio desse seu estudo, foi possível estabelecer, pela
primeira vez, portanto, de forma original, “[...] a relação íntima entre os funcionais analíticos
de Fantappiè e os funcionais analíticos sôbre [O], [O] com a topologia da convergência
uniforme sôbre os seus compactos [...]”657. Acompanhado desses resultados vieram outros.
Cândido Lima disse ter conseguido resolver uma questão que havia sido proposta por José
Sebastião e Silva, a qual se referia à possibilidade de fazer a introdução de uma topologia de
Banach em um espaço [F]. Para Cândido Lima não existia essa possibilidade.
Em complemento dessa teoria, desenvolvida no segundo capítulo de sua tese, Cândido
Lima conseguiu fazer uma aplicação, apresentada no apêndice desse seu trabalho. Mostrando
a sua influência pelo discurso da escola bourbakista acerca do rigor, Cândido Lima afirmou
que tal aplicação havia sido tentada por Cacciopoli, que, para ele, foi prematura e, portanto,
feita de forma não rigorosa, devido à ausência de uma teoria de espaço vetorial localmente
convexo sobre [O] e [F]. Ou seja, na ótica de Cândido Lima, Cacciopoli não tinha elementos
suficientes para fazer essa aplicação, o que, na sua leitura, desencadeou uma aplicação feita
sem o devido rigor. De qualquer sorte, essa compreensão, menos que uma crítica à escola
italiana de matemática, visto que em outras passagens ele não fez críticas ao rigor de
Fantappiè, pareceu-nos que serviu mais para valorizar os resultados que estava conseguindo
estabelecer em sua tese. De certa forma, isto, implicitamente, colocava a sua busca pelo
reconhecimento do valor matemático da sua teorização diante de seus pares, algo que só seria
conseguido por meio da demonstração da originalidade da sua argumentação construída sob
demonstrações livres de aspectos metafísicos.
É, então, para maior clareza de seus propósitos, que Cândido Lima, no seu primeiro
capítulo, apresentou todas as noções e teoremas sobre espaços vetoriais topológicos, voltando-
se prioritariamente para as questões de dualidade. Neste sentido, ainda fez uso de uma espécie
de índice, exposto em um segundo apêndice da sua tese. Nele, foram colocadas as noções de
topologia geral, que, segundo o próprio Cândido Lima, foram dadas tal como apareciam na
obra de Bourbaki. Especificamente em relação à escrita desse primeiro parágrafo, Cândido

657
DIAS, Cândido Lima da Silva. S Espaços vectoriais topológicos e sua aplicação na teoria dos espaços
funcionais analíticos, p. II.
225

Lima disse ter sido, de modo geral, influenciado pela obra de Bourbaki, em particular, muito
fortemente por um curso sobre espaços vetoriais topológicos, ministrado por Jean Delsarte,
em 1949, na subsecção das ciências matemáticas da FFCL. Salientou também a ajuda que
teve de Leopoldo Nachbin, por exemplo, na demonstração do teorema de Mackey-Arens, uma
vez que tal teorema não fez parte das discussões proferidas por Jean Delsarte no seu curso.
Cândido Lima ainda observou que, após ter redigido grande parte de sua tese, tomou
conhecimento de que o último trabalho desenvolvido por José Sebastião e Silva era voltado
também para a topologia dos espaços funcionais analíticos, ocupando-se do mesmo problema.
Contudo, Cândido Lima afirmou que deu continuidade à sua pesquisa porque, dentre outros
aspectos, José Sebastião e Silva não definiu o espaço [F] como espaço vetorial topológico,
mas apenas com o espaço [F]. E isto, por si só, já tornava as suas respectivas pesquisas em
âmbitos muito diferentes.
Diferentemente de Omar Catunda, Cândido Lima e Benedito Castrucci, que partiram
de assuntos amplamente debatidos no âmbito da escola italiana, Edison Farah optou por tratar,
em sua tese, do axioma da escolha, um assunto que já era amplamente discutido sob a
perspectiva da escola bourbakista. Tal axioma, segundo Edison Farah, introduzido por
Zermelo em 1908, estabelecia uma axiomatização para a teoria dos conjuntos, justamente a
linguagem do estruturalismo bourbakista.
Embora Edison Farah não tenha afirmado explicitamente, acreditamos que o embrião
dessa sua tese, na qual apresentou seis formas do axioma da escolha, tenha sido gerado
durante a sua assistência nas aulas de André Weil na subsecção das ciências matemáticas da
FFCL, mais precisamente quando abordou o teorema de Zorn, cujas notas de aulas, conforme
já apontamos anteriormente, foram feitas pelo próprio Edison Farah. Edison Farah fez essa
tese, intitulada Algumas proposições equivalentes ao axioma da escolha, também como uma
exigência de um concurso realizado em 1954, no caso dele, foi para ser professor catedrático
da cadeira de análise superior, sob a sua regência interina desde 1948.
Portanto, Edison Farah, já pela escolha do assunto, deixou claro que iria optar em
desenvolver a sua tese seguindo os princípios da escola bourbakista. Assim, logo nas
primeiras linhas do texto de sua introdução, apresentou o enunciado original do axioma da
escolha: “‘Dada uma classe F de conjuntos não vazios, dois a dois disjuntos, existe um
conjunto C, contido na reunião dos conjuntos de F, de modo que todo conjunto pertencente a
F contenha um e sòmente um elemento de C’.”658. Em seguida, deu a versão análoga

658
Grifo no original. FARAH, Edison. Algumas proposições equivalentes ao axioma da escolha, p. 1.
226

bourbakista, escrita fazendo uso do conceito de função, presente na obra théorie des
ensembles: “Sendo (Xʅ)ʅϵ I uma família qualquer de partes de um conjunto E, com todos os Xʅ
não vazios, existe uma aplicação f, de I em E, de modo a verificar-se f(ʅ) ϵ Xʅ para todo ʅ ϵ I.
(Em outras palavras: o produto cartesiano da referida família é não vazio).”659.
Na continuidade, bem no estilo das ideias propagadas pela escola bourbakista, Edison
Farah, buscou evidenciar as várias possibilidades de intervenção do axioma da escolha,
colocando assim, em primeiro plano, a importância de ter escolhido tratar de algumas
proposições equivalentes ao axioma da escolha para o desenvolvimento das teorias da
matemática. Para isto, Edison Farah afirmou que:
O Axioma da Escolha intervém, explícita ou implìcitamente, às vezes sob
formas particulares, não só na própria Teoria dos Conjuntos, como também
nos vários outros sectores da Matemática. Êle é utilizado, por exemplo, na
caracterização das funções contínuas nos espaços metrizáveis, por meio das
sequências de pontos; na noção de compacidade para os Espaços
Topológicos em geral (a fim de se estabelecer a equivalência entre certas
definições de espaço compacto); na prova da existência de uma base de
Hamel para os números reais (mais em geral, de uma base algébrica nos
espaços vetoriais de dimensão não finita); na demonstração de que todo anel
com elemento unitário contém um ideal maximal, etc..660
Analogamente foi o que também aconteceu com Jacy Monteiro, que também teve uma
formação matemática complementar sob o forte impacto de uma intensa convivência com a
escola bourbakista na subsecção de ciências matemáticas da FFCL. Tal convivência parece ter
aflorado em Jacy Monteiro não apenas o seu gosto pela álgebra, mas a opção de se apropriar
muito fortemente do estilo matemático da escola bourbakista. Algo que pode ser notado, em
um primeiro momento, em suas produções matemáticas, notadamente voltadas para esse ramo
do conhecimento matemática. Dentre outras, podemos citar Álgebra Linear, Álgebra Moderna
e Elementos de Álgebra, obras que ele começou a publicar a partir dos últimos anos da década
de 1950. Neste sentido, a definição de função que utilizou em seu livro Álgebra Linear,
publicado em 1959, é um bom exemplo para que seja percebida a sua acentuada apropriação
das ideias da escola bourbakista. Semelhante à definição que foi dada por André Weil e Jean
Dieudonné, ambas expostas nessa nossa pesquisa anteriormente, Jacy Monteiro definiu
função do seguinte modo:
Uma aplicação de um conjunto E num conjunto F é uma correspondência
que a cada elemento x de E associa um único elemento y de F; se f é uma
aplicação de E em F, indica-se por f(x) ou fx (notação indicial) o elemento de
F que corresponde a x pela aplicação f e que se chama imágem de x por f,

659
Grifo no original. FARAH, Edison. Algumas proposições equivalentes ao axioma da escolha, p.1.
660
FARAH, Edison. Algumas proposições equivalentes ao axioma da escolha, p. 2.
227

ou o valor de f para o elemento x. A aplicação f também se escreve x→ f(x),


ou ainda, f: E→ F..661
Esta é uma definição que não seguia o estilo do conceito de função que foi utilizado
por Omar Catunda no seu livro Curso de Análise Matemática, versão de 1962. Apesar de ter
tratado, nessa versão, função, de certa forma, diferente da definição apresentada por Luigi
Fantappiè, Omar Catunda ainda optou por seguir um estilo mais inclinado para a escola
italiana de matemática, tal como podemos observar:
Consideremos um conjunto linear C. Se a cada número x de C corresponde,
de um modo bem determinado, um número y, dizemos que y é uma função
de x, definida no campo C, e escreveremos
(1) y = f(x).
O conjunto C chama-se campo de definição da função f..662
Catunda apresentou uma definição moderna de função, embasada em leis de
associação entre números pertencentes a conjuntos, portanto, utilizando a linguagem dos
conjuntos. Ainda, Omar Catunda relacionou apenas números como elementos de um
conjunto, já diferentemente da definição de função apresentada por Luigi Fantappiè e que o
próprio Omar Catunda fez uso na publicação de 1956 de seu livro Curso de Análise
Matemática. Nessa definição de Omar Catunda não há mais certa identificação da noção de
número com a noção de quantidade, assim como não há a possibilidade de uma associação
plurívoca entre x e y – e sim unívoca.663
Em outro momento, a apropriação do estilo matemático da escola bourbakista feita por
Jacy Monteiro pode ser percebida dentro da cadeira de complementos de geometria e
geometria superior, a partir da maciça inserção em seu programa de teorias que foram
trabalhadas pelos matemáticos que faziam parte da escola bourbakista, tal como já
observamos anteriormente, baseando-nos nas pesquisas de Rute da Cunha Pires e Aparecida
Duarte664. Neste sentido, ainda podemos acrescentar, por exemplo, a já referida obra de Jacy
Monteiro Álgebra Linear. Em tal obra, Jacy Monteiro, explicitamente, assumiu que “Parte do
presente curso foi desenvolvido na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo, durante o ano de 1959, na Cadeira de Complementos de Geometria e Geometria
Superior.”.665 Complementa esses elementos, a sua tese de doutoramento. Isto porque Jacy
Monteiro produziu uma tese que tinha como foco de seu estudo as teorias algébricas, abrindo

661
MONTEIRO, Luiz H. Jacy. Álgebra Linear: espaços vectoriais, aplicações lineares e matrizes, dualidade, p.
III.
662
CATUNDA, Omar. Curso de Análise Matemática, v. 1, 1962, p.83.
663
LIMA, Eliene Barbosa; DIAS, André Luis Mattedi. O Curso de análise matemática de Omar Catunda..., p.
217-218.
664
Veja novamente as notas 579 e 580.
665
MONTEIRO, L. H. Jacy. Introdução. In: Álgebra Linear: Espaços vectoriais; aplicações lineares e matrizes;
dualidade.
228

margem para uma geometria algébrica fundamentada nessas teorias, tão valorizadas na
arquitetura das produções matemáticas da escola bourbakista. Em suma, Jacy Monteiro, no
Brasil, dentro da subsecção das ciências matemáticas da FFCL, foi o matemático brasileiro,
dentre os cincos que discutimos nessa nossa pesquisa, que preferiu desenvolver a sua pesquisa
voltada diretamente para o campo da álgebra, buscando a sua sistematização e
institucionalização no âmbito das instituições brasileiras superiores, em particular, na USP e
ainda nas atividades cotidianas do professor das escolas secundárias666. Esse interesse de Jacy
Monteiro pela álgebra fez com que ele fosse conhecido no cenário brasileiro da época com um
grande algebrista. Dessa forma, em tal tese, Jacy Monteiro tratou do seguinte problema,
sugerido, segundo ele mesmo, por Oscar Zariski:
[...] seja p um ideal primo de um anel de polinômios R n = k [X1,..., Xn] (p ≠
Rn, p ≠ (0)), determinar o conjunto S formado por zero e por todos os
polinômios f, f ≠ 0 e gr. f > 0, de R n, tais que todo ponto de V = v (p)
(variedade algébrica do Sn determinada pelo ideal p) seja um ponto múltiplo
de ordem pelo menos ρ (ρ inteiro, ρ ≥ 1) da hiper-superfície algébrica H = v
(Rn∙f)..667
Seguindo a sua linha de raciocínio que buscou imprimir para dar conta desse
problema, Jacy Monteiro, nos três primeiros capítulos, discutiu os principais resultados sobre
anéis noetherianos e anéis de quocientes, variedades algébricas e teoria da dimensão, assuntos
fortemente debatidos por Oscar Zariski, na época em que esteve no Brasil, os quais foram
acompanhados com muita proximidade por Jacy Monteiro. Feitas essas discussões, Jacy
Monteiro trouxe um aspecto central para que de fato conseguisse demonstrar este problema.
Estabeleceu uma condição necessária e suficiente de forma que possibilitasse que um
polinômio f de Rn pertencesse à potência simbólica ρ-ésima de p. Tal condição teve então o
seguinte enunciado: “f ϵ p (ρ) quando, e sòmente quando, tôdas as derivadas parciais mistas de
f e de ordens 0,1,..., ρ – 1 pertencem a p.”668 Na sua demonstração, Jacy Monteiro utilizou os
critérios das matrizes jacobianas, bem como das matrizes jacobianas mistas, as quais, segundo
o próprio Jacy Monteiro, “[...] caracterizam os pontos simples de uma variedade algébrica
[...]”669. Inclusive, chamou atenção de que expôs alguns resultados por meio do trabalho de

666
Para maiores detalhes sobre a intensa participação de Jacy Monteiro no ensino secundário de matemática
brasileiro, veja: DUARTE, Aparecida R. S. Matemática e Educação Matemática: a dinâmica de suas
relações..., p.308-354.
667
MONTEIRO, Luiz Henrique Jacy. Introdução. In: Sôbre as potências simbólicas de um ideal primo de um
anel de polinômios, [n.p].
668
MONTEIRO, Luiz Henrique Jacy. Introdução. In: Sôbre as potências simbólicas de um ideal primo de um
anel de polinômios, [n.p].
669
MONTEIRO, Luiz Henrique Jacy. Introdução. In: Sôbre as potências simbólicas de um ideal primo de um
anel de polinômios, [n.p].
229

Oscar Zariski, que já tinha abordado sobre esses pontos. No entanto, para isto, Jacy Monteiro
precisou ainda fazer um estudo das derivações de primeira ordem e dos anéis locais,
afirmando que eram necessários para o desenvolvimento do seu quinto capítulo, justamente
sobre pontos simples de uma variedade algébrica. Além dessas derivações, Jacy Monteiro
ainda expôs as derivações parciais e as derivações parciais mistas. Ainda observou que fez
uso da definição estabelecida por F. K. Schmidt sobre derivação de ordem superior para fazer
uma exposição absolutamente nova das propriedades dessas derivações. Assim, Jacy
Monteiro, no seu último capítulo, aplicando a sua condição necessária e suficiente, conseguiu
fazer uma nova demonstração de um resultado que havia sido estabelecido por Oscar Zariski.
Tal resultado, segundo Jacy Monteiro, era “[...] sôbre as funções de F (V) (corpo de funções
racionais sôbre a variedade algébrica irredutível V) que se anulam com uma dada ordem, em
quasi todos os pontos de uma sub-variedade W e V.”670.
Assim, seja em maior ou menor grau, o fato é que essa comunidade de matemáticos
brasileiros, que estava se formando, apropriou-se inicialmente das influências dessas duas
escolas não só já tendo uma base de matemática alicerçada pela cultura educacional que era
vigente no Brasil até a fundação da USP e da sua FFCL, mas também fazendo interpretações
das teorias que lhes eram transmitidas, conforme a linha de pesquisa que optaram seguir.
Interpretações essas, que perpassavam pelas representações que faziam acerca desses
matemáticos com quem tiveram contato - seja ela a de grandes cientistas ou a de exemplares
professores, ou ainda pela sua personalidade humanista. Portanto, na nossa leitura, baseando-
nos nos elementos abordados nessa nossa pesquisa, não foi uma questão de adesão ou de fazer
o movimento da escola italiana de matemática para a escola bourbakista, seguindo uma
direção unilateral e acultural, provocado pelo discurso acerca da falta de rigor do método
geométrico utilizado pelos matemáticos italianos. Se este fosse o critério adotado não
teríamos após a presença da escola bourbakista na subsecção das ciências matemáticas da
FFCL, pesquisas de matemáticos brasileiros que faziam uso de referências italianas ou ainda
que estavam mais inclinadas pela sua abordagem, tal como aconteceu com Omar Catunda e
Benedito Castrucci, ou ainda um pouco mais adiante com Domingos Pisanelli.
Em 1943, Domingos Pisanelli estava fazendo o primeiro ano do curso de matemática
da FFCL, assim, em 1945, ano de chegada de André Weil e Oscar Zariski na USP, estava
cursando o terceiro ano desse curso. Dessa forma, subentendemos que ele deve ter tido
contato com pelo menos esses dois professores, mais do que isto, que participou de seus

670
MONTEIRO, Luiz Henrique Jacy. Introdução. In: Sôbre as potências simbólicas de um ideal primo de um
anel de polinômios, [n.p].
230

cursos. No entanto, para obter o grau de doutor em ciências por essa mesma faculdade, já no
ano de 1956, preferiu como objeto central de sua tese abordar a teoria dos funcionais
analíticos. Sua finalidade, segundo o próprio Domingos Pisanelli, foi fazer um “[...] estudo
dos funcionais analíticos n-lineares, dos funcionais homogêneos que se podem definir a partir
destes e de várias questões dos fundamentos da teoria dos funcionais analíticos.”671. Além de
ter preferido trabalhar com uma teoria em que Luigi Fantappiè era considerado o seu grande
construtor, Domingos Pisanelli, ainda que tenha utilizado referências de autores da escola
bourbakista, afirmou que “Preferimos usar o espaço funcional
analítico segundo Fantappiè ao espaço estudado pelos profs. J. Sebastião e Silva [...] e
Candido Lima da Silva Dias [...]”672, trabalhos que já discutimos anteriormente.
Em suma, havia no cenário mundial uma grande efervescência na produção do
conhecimento matemático que envolvia diferentes formas de abordagens. Assim, na medida
em que esses nossos matemáticos brasileiros começaram a ter contato com outras escolas,
notadamente a escola bourbakista, criou-se a possibilidade de eles fazerem as suas escolhas e
apropriações em conformidade com a sua própria identidade de matemático.

671
PISANELLI, Domingos. Introdução. In: Alguns funcionais analíticos e seus campos de definição, p. 1.
672
PISANELLI, Domingos. Introdução. In: Alguns funcionais analíticos e seus campos de definição, p. 3.
231

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa buscamos compreender o lugar que a Universidade de São Paulo


ocupou na rede internacional que configurou o desenvolvimento da geometria algébrica,
durante o período de 1934 a 1958. Fizemos esse recorte temporal, tendo como início o ano de
chegada dos matemáticos italianos na subsecção das ciências matemáticas da FFCL e, como
término, o último ano em que um integrante da escola bourbakista esteve nessa faculdade
realizando atividades acadêmicas. Para tanto, buscamos responder os seguintes
questionamentos: 1) Quais foram os elementos que influenciaram no processo de constituição
do método geométrico e algébrico da matemática, em particular na geometria algébrica? 2)
Sob quais discursos foram estabelecidas as escolas italiana e bourbakista de matemática? 3)
Como as primeiras gerações de matemáticos brasileiros da USP construíram a sua cultura
matemática diante da influência da matemática da escola italiana e da escola bourbakista, no
intervalo de 1934 a 1958, período que melhor evidencia esta influência?
Para responder as duas primeiras perguntas foi necessário fazer uma forte revisão
bibliografia em relação à literatura vigente sobre essa temática. Fazendo uso de uma literatura
prioritariamente internacional, mas escassa, conseguimos, na nossa concepção, não apenas
fazer uma síntese dos principais argumentos que prevaleciam nessa literatura, mas ainda
estruturar algumas (re)leituras e interpretações que foram estabelecidas devido ao objetivo
que previamente propúnhamos alcançar ao realizar essa pesquisa.
Primeiramente, nesse sentido, destacamos que o conhecimento científico, incluindo a
matemática, está em constantes transformações. No entanto, tais transformações não
significam atualmente, e muito menos em um passado distante ou recente, uma passagem
linear e homogênea de um estágio contínuo de uma teorização anterior para uma posterior,
num sentido crescente e unívoco de evolução, sem rupturas, erros, enganos e retornos.
De forma análoga, referimo-nos também à questão do rigor matemático. Isto porque
ele não foi imutável ao longo da história da matemática, na medida em que era trabalhado
pelos matemáticos com significações diferentes para atender certo fazer ou padrão de
exercício matemático que acreditavam ser necessário para a construção das teorias da
matemática, tal como aconteceu dentro da escola italiana ao optar pela abordagem geométrica
e com a escola bourbakista, que preferiu fazer uso de uma abordagem algébrica. Assim,
entendemos que o rigor, além de estar atrelado a cada época, também depende da forma como
o matemático pensa e produz as suas teorizações. Particularmente, o rigor matemático
232

estabelecido no método algébrico a partir do séc. XIX foi desencadeado por alguns fatores
centrais, a saber, a quebra da hegemonia da certeza absolutista da geometria euclidiana e as
sucessivas generalizações e extensões do conceito de número, deixando de ser associados
meramente a qualquer referência à realidade concreta, para serem entendidos como símbolos
abstratos. Dessa forma, tornaram-se determinantes para começar uma busca dos matemáticos
em instituir um processo de aritmetização de toda a matemática.
Dentro desse contexto, a aritmetização foi instituída como sendo a própria linguagem
da álgebra, que passou assumir um novo status dentro desse desenvolvimento da matemática.
De fato, na medida em que começou a prevalecer o discurso de que o método geométrico não
estava mais dando conta das novas teorias que vinham sendo construídas e inseridas no
arcabouço do conhecimento matemático, a álgebra assumiu, paulatinamente, mas não
hegemonicamente – a partir do séc. XIX – o papel central que antes era ocupado pela
geometria no processo de fundamentação das teorias da matemática. Um fator importante, que
muito contribuiu para que esse processo fosse consolidado ao longo do séc. XX, foram, além
dos artigos científicos, as publicações de livros didáticos, que não apenas mostravam o
processo de uma nova concepção e de uma nova reorganização da álgebra, estabelecidas a
partir das novas teorias que estavam sendo construídas com caracterizações algébricas. Tais
livros também traziam olhares idiossincráticos e não raras vezes construções teóricas novas,
dadas pelos seus autores e, portanto, contribuições originais acerca da própria produção das
teorias algébricas. Essa visão colocou o papel dos livros didáticos em primeiro plano no
processo de desenvolvimento do conhecimento matemático, sem uma existência de duas
dimensões bem delimitadas e hierarquizadas em escala de valores acerca do ensino (função
secundária) e da pesquisa matemática (protagonista).
Um exemplo desses livros foi o Moderne Algebra, publicado no início da década de
1930 por van der Waerden que, impulsionado pelas aulas que havia tido com Emmy Noether
e Emil Artin trouxe, conforme discutimos em nosso texto, uma argumentação original acerca
da concepção estruturalista da álgebra. Outro exemplo foi a obra publicada pelo Grupo
Bourbaki, sob o pseudônimo de Nicholas Bourbaki, denominada de Éléments de
Mathématique, cujos primeiros volumes apareceram em 1939. Tal obra buscou reestruturar
toda a matemática, unificando-a por meio de uma axiomática estruturalista, construída sob a
linguagem da teoria dos conjuntos. Essa forma de pensar o conhecimento matemático acabou
influenciando por gerações a própria prática do exercício matemático, que ainda hoje está
presente na organização do conhecimento matemático em todos os seus níveis de ensino,
notadamente na articulação das disciplinas científicas para o ensino matemático superior.
233

Segundo, mesmo com todo esse panorama crescente a favor da abordagem algébrica,
consolidada na matemática no decorrer do séc. XX, a escola italiana de matemática,
notadamente a sua de geometria algébrica, preferiu continuar seguindo com uma abordagem
geométrica. Ao contrário do que se poderia imaginar, tal escolha não impediu, pelo menos por
um período, dessa escola ser vista pela própria comunidade de matemáticos da época como
sendo uma das mais importantes e influentes internacionalmente, em especial no campo da
geometria algébrica.
Com efeito, entre as últimas décadas do séc. XIX e as primeiras duas décadas do séc.
XX, foi ela quem dominou o campo da geometria algébrica, alcançando níveis de excelência
perante aos olhos dos matemáticos de diversos contextos mundiais, principalmente por meio
dos trabalhos produzidos por Guido Catelnuovo, Federigo Enriques e Francesco Severi. Foi
nesse período que Roma – local em que esses matemáticos trabalhavam – tornou-se o centro
mundial mais importante da geometria algébrica. Era para lá que se deslocavam jovens
estudantes e pesquisadores de várias localidades atraídos pelos notáveis resultados que os
matemáticos da escola italiana estavam alcançando dentro do campo da geometria algébrica.
Entre eles estavam Solomon Lefschetz (Estados Unidos), André Weil (França) e Oscar
Zariski (Bielorrússia), priorizados em nossa tese, porque posteriormente se tornaram
referência na pesquisa da geometria algébrica, fazendo, contudo, uso dos métodos topológicos
e algébricos, em detrimento do método geométrico da escola italiana de geometria algébrica.
Além disso, dois desses – André Weil e Oscar Zariski – tiveram uma participação ativa no
processo de formação das primeiras gerações de matemáticos da subsecção das ciências
matemáticas da FFCL, foco de nossa atenção para responder o nosso terceiro questionamento
que fizemos para nortear a nossa pesquisa, do qual trataremos um pouco mais adiante.
Em terceiro, foi possível perceber, pela análise da literatura vigente, que começou a
prevalecer um forte discurso entre os matemáticos contemporâneos da escola italiana de
geometria algébrica, que pertenciam a outras localidades, acerca da precisão matemática dessa
escola. Matemáticos, como van der Waerden, André Weil, Solomon Lefschetz e o próprio
Oscar Zariski – que teve a sua formação matemática na escola italiana de matemática, em
especial na sua escola de geometria algébrica – começaram a questionar o emprego do rigor
geométrico da escola italiana de geometria algébrica nas provas de alguns de seus teoremas
mais importantes. Isto aconteceu, por exemplo, com Oscar Zariski, quando resolveu dar uma
nova prova para o teorema da dessingularização das superfícies algébricas, ainda que não
tivesse sido motivado pela intenção de rejeitar ou negar a tradição italiana de matemática.
Pela literatura analisada, mais precisamente pelas pesquisas de Silke Slembek, Oscar Zariski,
234

ao fazer uma prova aritmética para esse teorema, que ajudou a impulsionar a construção do
seu programa de aritmetização, visou mostrar, em um plano mais amplo, o paralelismo dos
diversos métodos existentes na abordagem da geometria algébrica. Colocando mais
explicitamente esse argumento, pareceu-nos que Oscar Zariski entendia que existia uma
equivalência dos diferentes métodos porque eles produziam resultados equivalentes, mas que
isso não acontecia no mesmo nível de rigor. Este era o caso do método geométrico dos
geômetras algébricos da escola italiana. Todavia, esse fator, na ótica de Oscar Zariski, não
invalidava as provas feitas pela escola de seus mestres e, por sua vez, os seus resultados
alcançados, mas o reconhecimento de que elas eram apenas altamente plausíveis.
Dessa forma, ao terminar a nossa análise sobre os principais aspectos que
prevaleceram no discurso de Oscar Zariski em relação a sua nova postura acerca da
fundamentação da geometria algébrica, fomos levados a concordar com os pontos levantados
por Silke Slembek sobre esse assunto. Neste sentido, convergirmos com a sua afirmação de
que Oscar Zariski, ainda que não tivesse nenhuma intenção rompeu com a escola italiana de
matemática ao ter inserido novas ferramentas para o estudo das teorias da geometria
algébrica, isto é, quando fez uso de provas aritméticas para mostrar a validade de seus
teoremas. Também concordamos que isso foi buscado por Oscar Zariski porque ele absorveu
as críticas contra o método geométrico dos geômetras algébricos da escola italiana. No
entanto, nesse último caso, fizemos a ressalva que só tínhamos concordado com Silke
Slembek se a palavra crítica tiver sido utilizada para designar que Oscar Zariski criticou o
método geométrico da escola italiana de geometria algébrica no sentido de examinar e/ou
julgar, para que assim fosse possível enaltecer as suas qualidades e problemas.
E, por último, dentro do âmbito das duas primeiras perguntas, observamos que, se por
um lado houve um confronto entre a abordagem geométrica e a algébrica, delineado,
principalmente, entre as escolas de matemática italiana e a bourbakista circunscrito no campo
da geometria algébrica, por outro, esse confronto também foi marcado pelas disputas políticas
internacionais do período, envolvendo inclusive questões que estavam relacionadas ao
fascismo, nazismo e matemáticos de nacionalidade judia. Argumentamos que ambos os
fatores influenciaram no processo de construção e configuração da geometria algébrica,
inclusive, interferindo na carreira e nos deslocamentos feitos por alguns dos principais
matemáticos que estavam participando ativamente nesse processo. Essa dupla de fatores ainda
foi vivenciada no cenário brasileiro, em particular, na subsecção das ciências matemáticas da
FFCL, não apenas pela vinda de alguns dos matemáticos das escolas italiana e bourbakista,
mas também pela própria realidade política que havia sido estabelecida no Brasil entre as
235

décadas de 1930 e 1950. Tal realidade ficou conhecida como a era Vargas, um governo que
foi caracterizado, primordialmente, por um discurso nacionalista e por ações centralistas,
autoritárias e repressoras.
Todos esses aspectos fizeram parte do universo das discussões do terceiro e último
questionamento que fizemos para nortear esta nossa pesquisa de doutoramento. Dentro desse
contexto, após interrogarmos as fontes que escolhemos trabalhar para atingir o objetivo que
estabelecemos alcançar, abordamos o processo de formação das primeiras gerações de
matemáticos constituído a partir da criação, em 1934, da USP e da sua FFCL.
Nesse sentido, analisamos o processo de formação dos seguintes matemáticos: Omar
Catunda, Cândido Lima da Silva Dias, Benedito Castrucci, Edison Farah e Luiz Henrique
Jacy Monteiro. Esses matemáticos foram escolhidos porque, além de serem das primeiras
gerações de matemáticos da subsecção das ciências matemáticas da FFCL, tiveram contatos
diretos com algum matemático ou da escola italiana, ou da escola bourbakista, ou ainda com
ambas as escolas e, além disso, por terem exercido alguma função de caráter profissional
vinculada a esses matemáticos estrangeiros que faziam parte dessas escolas. Omar Catunda e
Cândido Lima foram assistentes de Luigi Fantappiè na cadeira de análise matemática.
Benedito Castrucci tornou-se assistente de Giacomo Albanese na cadeira de geometria.
Enquanto Edison Farah foi assistente de André Weil e Jacy Monteiro auxiliou os cursos que
foram ministrados por Jean Dieudonné e Oscar Zariski. Com exceção de Omar Catunda, que
era engenheiro civil formado pela Escola Politécnica de São Paulo em 1930, todos os outros
quatro matemáticos brasileiros foram licenciados na subseção das ciências matemáticas e
obtiveram os seus respectivos graus de doutor em ciências pela FFCL ao defenderem as suas
respectivas teses de doutoramento. Já Omar Catunda obteve tanto o título de doutor em
ciências como a sua livre-docência após realização de concurso em 1944. No decorrer da
segunda metade da década de 1940, todos eles, com exceção de Edison Farah e Benedito
Castrucci, ganharam bolsas de estudos nos Estados Unidos, local para onde retornaram Oscar
Zariski e André Weil. Em particular, Omar Catunda, além dessa bolsa, entre os anos de 1938-
1939, portanto ainda no período de seu convívio com Luigi Fantappiè, já tinha passado quatro
meses fazendo estudos de pós-graduação na Itália.
Dentro desse ambiente de formação, ainda tratamos, em um primeiro momento, da
influência dos matemáticos italianos Luigi Fantappiè – analista que assumiu a Cátedra de
Análise Matemática – e do geômetra Giacomo Albanese, que lecionou na Cadeira de
Geometria, a qual compreendia o estudo da geometria analítica, projetiva e descritiva.
Pontuamos que tal influência não ficou restrita ao ensino, mas também ao exercício das
236

diversas atividades que esses professores-pesquisadores fizeram no período que


permaneceram na subsecção das ciências matemáticas da FFCL. Dentre elas, houve a
organização estrutural dessa subsecção e da sua biblioteca, bem como a participação ativa na
reforma do ensino brasileiro desde o ensino secundário, perpassando ao ensino profissional,
até o nível superior e, ainda, a realização de conferências e a criação do Seminário
Matemático e Físico. Particularmente, este Seminário, criado em 1935, teve como uma de
suas funções propiciar aos jovens estudantes e assistentes do curso de matemática e de física
não apenas o mero contato com as pesquisas que estavam sendo construídas tanto na
matemática como na física, mas também a real possibilidade de desenvolverem pesquisas
inéditas, por intermédio dos seus professores.
Depois, após a saída desses matemáticos italianos – provocada pelos conflitos da II
Guerra Mundial – voltamos a nossa atenção para a chegada, a partir de 1945, de alguns
matemáticos que pertenciam à escola bourbakista, marcando, dessa forma, o início de sua
influência na subsecção das ciências matemáticas da FFCL. Além disso, a chegada desses
matemáticos abriu margem para a inserção, no cenário brasileiro, do discurso acerca da falta
de rigor do método geométrico da escola italiana, que já vinha sendo muito debatido e
criticado internacionalmente. Assim, em um movimento inverso dos matemáticos italianos,
mas desencadeado também pela eclosão da II Guerra Mundial, esses matemáticos da escola
bourbakista chegaram à USP. Alguns, motivados pelas condições profissionais e pessoais
adversas que estavam vivendo devido a esse conflito mundial ou por conta ainda de seus
reflexos. Neste sentido, analogamente ao que aconteceu aos matemáticos italianos,
consideramos que a USP exerceu um papel significativo para a carreira desses matemáticos ao
dar-lhes condições dignas para exercer as suas funções de ensino e, principalmente, de
pesquisa. Nessas circunstâncias vieram, logo no ano de 1945, André Weil e Oscar Zariski. E
assim prosseguiram as vindas, ainda que não tenham sido mais instigadas pelas consequências
da grande guerra. Dessa forma, nos anos seguintes, mais precisamente no intervalo de 1945 a
1958, estiveram na subsecção das ciências matemáticas da FFCL os seguintes matemáticos:
Jean Dieudonné, Jean Delsarte, Laurent Schwartz, Charles Ehresmann, Jean Louis Koszul,
Samuel Eilenberg e Alexander Grothendieck.
Por sua vez, em contrapartida, a principal incumbência desses matemáticos era abrir
novas possibilidades de campos de pesquisas para a comunidade de matemáticos brasileiros
da USP que estava se formando. Dessa forma, contribuía-se, tal como os matemáticos da
escola italiana, para que a subsecção das ciências matemáticas da FFCL se formasse como um
centro de pesquisa e ensino de matemática com a sua própria comunidade. Foi, então, sob a
237

influência dessas duas escolas que as primeiras gerações de matemáticos brasileiros foram
formadas, em particular ao obterem os primeiros contatos com teorias – privilegiadas
conforme a abordagem que cada escola utilizava – que eram importantes para a construção e
desenvolvimento dos diversos campos do conhecimento matemático. Isso evidenciou-se
inclusive e principalmente no campo da geometria algébrica, que, a essa altura da pesquisa, já
sabemos, era alvo de pesquisa tanto dos matemáticos da escola italiana como da escola
bourbakista. Nesse universo, começou a haver, por parte das primeiras gerações de
matemáticos brasileiros da USP, uma apropriação da matemática que foi praticada por ambas
as escolas, uns mais inclinados pela escola italiana, outros pela escola bourbakista. Essa foi
uma argumentação que construímos depois que analisamos alguns aspectos da trajetória
profissional de Omar Catunda, Cândido Lima da Silva Dias, Benedito Castrucci, Edison
Farah e Luiz Henrique Jacy Monteiro.
Assim, ao aglutinarmos todos esses elementos (re)construídos a partir dos três
questionamentos que fizemos para nortear essa pesquisa, consideramos que a paulatina perda
do protagonismo da escola italiana de matemática, em especial, o status da sua geometria
algébrica, notadamente entre as duas guerras mundiais, não poderia ser reduzido a apenas
uma historiografia que coloca que tal perda de protagonismo foi devido à falta de rigor do
método geométrico italiano. Defendemos esse posicionamento, mesmo que esse discurso
tenha sido fortemente utilizado entre os matemáticos que criticavam a abordagem geométrica
da escola italiana. Isto porque, ainda no séc. XIX, teve início um discurso crescente a favor da
abordagem algébrica, mas, mesmo assim, a escola italiana, com a sua abordagem geométrica,
conseguiu se posicionar no topo, como principal referência pelo menos na pesquisa da
geometria algébrica até os anos de 1920. Além disso, parecia ser senso comum a existência de
estilos diferentes, visto que havia o reconhecimento de outras abordagens na própria
comunidade mundial de matemáticos. Portanto, esses aspectos fizeram com que pensássemos
que os matemáticos de outras localidades tinham opções, mas, no entanto, preferiram se
deslocar para a Itália, mais precisamente para Roma, visando iniciar ou aprofundar os seus
estudos matemáticos, em particular no campo da geometria algébrica, a qual, já previamente
sabiam, era fundamentada pelos italianos na perspectiva geométrica.
Dentro desse contexto, salientamos também que as críticas feitas em relação ao
método geométrico da escola italiana não foram pautadas na existência de contradições em
suas demonstrações, mas no fato de que elas careciam de uma melhor precisão, pois possuíam
lacunas, uma conclusão que era feita tendo como o seu parâmetro a aplicação no método
algébrico de teorias que foram construídas sob o método geométrico. Dessa forma,
238

entendemos que o discurso da falta ou não de rigor do método geométrico da escola italiana
de geometria algébrica, principalmente no período entre as duas guerras mundiais, quando
comparado, por exemplo, com a escola bourbakista, não foi determinado pela constatação da
fraqueza lógica das demonstrações geométricas da escola italiana, notadamente dentro do
campo da geometria algébrica. Isto não foi questionado pelos matemáticos da escola
bourbakista ao defenderem o método algébrico. O que pareceu estar subentendido a esse
discurso foi uma nítida disputa pela supremacia de uma determinada forma de agir e pensar a
matemática, visando assegurar prestígio e poder para uma ou outra escola matemática, em
especial na geometria algébrica. Dito de outro modo, na nossa leitura, pareceu-nos estar em
jogo uma busca pela hegemonia e padrão matemático de uma escola em detrimento da outra,
o que proporcionaria à escola “vencedora” o reconhecimento social de suas respectivas
teorizações não só diante de seus pares, mas também diante de qualquer comunidade,
científica ou não. Dessa forma, a partir dessa linha de raciocínio delineada ao longo do
desenvolvimento dessa pesquisa, concluímos que não nos parecia que a escolha de trabalhar
com a abordagem geométrica significasse, necessariamente, optar em não dar a devida
importância ao rigor matemático, mas ter, em princípio, um estilo diferente de formular,
pensar e provar as teorias da matemática em relação ao que era similarmente feito na
abordagem algébrica. Nesse sentido, observamos que cada abordagem produzia um
determinado tipo de rigor, que atendia satisfatoriamente às questões de quem formulou uma
determinada teorização ou teorema. Assim, acreditamos que não havia como mensurar a falta
de rigor de um método atribuindo a ele questionamentos que foram feitos para serem
demonstrados sob a ótica de outro método, ainda que fossem teorizações e teoremas similares,
produzindo, por sua vez, resultados análogos.
Diante dessa nossa leitura, consideramos, portanto, que a perda do protagonismo da
escola italiana de matemática e da sua abordagem geométrica, em particular, no campo da
geometria algébrica, além daquelas questões subentendidas no discurso acerca do seu rigor,
perpassou por questões externas ao processo de construção de suas teorias e demonstrações de
seus teoremas. De fato, contrariamente à escola bourbakista – notadamente entre os
integrantes do Grupo Bourbaki – que apresentava um discurso social coeso, os matemáticos
italianos da escola italiana manifestavam publicamente as suas divergências internas, que na
sua grande maioria refletiam uma busca individualizada de seus membros por reconhecimento
e prioridade dos resultados alcançados, algo que parecia ultrapassar aos interesses comuns da
sua escola. Somaram-se ainda o posicionamento político e opções religiosas de alguns de
seus matemáticos diante da instauração do fascismo de Benito Mussolini, vigorado na Itália
239

no período de 1922 a 1944. Uns assumiram explicitamente os ideais desse regime, causando
rupturas nas suas relações profissionais, tal como parece ter acontecido entre Guido
Castelnuovo e Federigo Enriques, ambos judeus, em relação a Francesco Severi.
Simplesmente eles foram considerados, pela comunidade de matemáticos da época, três dos
principais matemáticos que atuaram intensamente no processo de desenvolvimento da
geometria algébrica. Entendemos que esse último fator pareceu ter instigado a concepção em
outros matemáticos pertencentes às diversas localidades, ainda que não fosse consciente, de
que trabalhar com a escola italiana, de alguma forma, produziria o efeito de que os seus
próprios nomes seriam associados ao regime fascista italiano e, consequentemente, que
estariam comungando com os seus ideais. Um entendimento que analogamente engloba o que
parece ter acontecido em relação à matemática alemã, neste caso, um efeito produzido pela
política nazista.
No entanto, toda essa conjuntura possibilitou, no nosso entendimento, uma abertura,
consolidação e desenvolvimento de novos espaços, de novos atores, voltados para a pesquisa
matemática, especialmente no campo da geometria algébrica. Uma nova realidade construída
fazendo um uso prioritário de ferramentas algébricas e topológicas para fundamentar antigas e
novas teorizações acerca desse campo de conhecimento matemático, alcançando resultados
equiparáveis aos da escola italiana de geometria algébrica. Algo que começou a seduzir um
número cada vez mais crescente de pesquisadores matemáticos, principalmente uma nova
geração que estava se configurando a partir da década de 1940, incluindo-se aí as primeiras
gerações de matemáticos brasileiros.
Neste sentido, por fim, argumentamos que as primeiras gerações de matemáticos
brasileiros, a partir da convivência com as escolas italiana e bourbakista fizeram apropriações
das concepções dessas duas escolas em conformidade à sua própria identidade de fazer e
pensar matemática. Perpassando inclusive pelo próprio vínculo profissional e pessoal que
haviam estabelecido com os matemáticos que faziam parte de uma ou outra escola. Estes
últimos fatores transcenderam ao próprio discurso da falta de rigor do método geométrico
italiano. Contribuiu para formularmos essa linha de raciocínio o fato de que os princípios
matemáticos da escola italiana podiam ser percebidos na subsecção das ciências matemáticas
da FFCL ainda na década de 1950, período em que a escola bourbakista já havia inserido as
suas concepções nessa subsecção. Notamos também que a USP continuou sendo o destino dos
principais matemáticos vinculados à escola bourbakista, mesmo no período posterior às
restrições impostas pelos conflitos da II Guerra Mundial. Este aspecto caracteriza a USP
como uma instituição que dava condições de trabalho equiparáveis a outros centros já
240

tradicionais de pesquisa e ensino de matemática. Dessa forma, consideramos que a USP pode
ser vista com um dos novos espaços que foram consolidados para o desenvolvimento
matemática. Contudo, ainda que tenha recebido os principais matemáticos no processo de
configuração do campo da geometria algébrica e tivessem trabalhado teorizações que
viabilizavam a pesquisa nesse campo de conhecimento matemático, essa mesma USP não
conseguiu estabelecer, pelo menos no período de 1934 a 1958, uma linha de pesquisa em
geometria algébrica, pelo menos foi o que transpareceu ao terminarmos essa nossa pesquisa.
241

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258

APÊNDICE: As relações em uma estrutura matemática

Em The architecture of mathematics, Nicholas Bourbaki fez uma análise de três


operações em torno de uma das mais antigas e, para ele, a mais simples das teorias
axiomáticas, isto é, a teoria dos grupos abstratos. As operações são: (1) adição de números
reais, cuja soma dos números reais é definida de forma usual; (2) a multiplicação “módulo de
um número primo p” dos números inteiros 1, 2, ..., p – 1, em que o resultado módulo p de dois
de seus elementos corresponde ao resto da divisão de p pelo produto usual desses elementos;
(3) a composição de deslocamento no espaço euclidiano tridimensional, no qual o resultado
de dois deslocamentos, por exemplo, x e y, nesta ordem, seria obtido fazendo o deslocamento
y antes de efetuar o deslocamento x673. Por conseguinte, tais operações poderiam ser
traduzidas abstratamente, sem precisar especificar a natureza dos seus elementos em um dado
conjunto. Na análise feita por Décio Krause, isso era equiparável a denotar por E o conjunto
sobre o qual seria estabelecida tal operação, que poderia ser considerada uma aplicação de E
X E em E. Então, na primeira operação, E seria o conjunto dos números reais e a notação x*y
significaria composto dos elementos x e y representando a soma x + y; já na segunda
operação, E seria o conjunto dos números inteiros 1, 2,..., p – 1 e o composto x*y
representaria o produto módulo p de x e y; e, na terceira, x*y seria o deslocamento produto e E
o conjunto de todos os deslocamentos674. Dessa forma, Bourbaki então chamou atenção para
que:
Se nós examinarmos agora as várias propriedades dessa “operação” em cada
uma das três teorias, nós descobriremos um notável paralelismo; mas, em
cada uma das teorias separadas, as propriedades estão interconectadas, e uma
análise de suas conexões lógicas direciona-nos para solucionar um pequeno
número das propriedades que são independentes (isto é, nenhuma delas é
uma conseqüência lógica de todas as outras).. (grifo no original). 675
Além disso, ponderou que essas propriedades independentes deveriam ser expressas
por meio de uma notação simbólica, comum às três teorias, de forma a facilitar uma tradução
para a linguagem própria de cada uma dessas teorias. Assim, na sua exemplificação,

673
BOURBAKI, Nicholas. The architecture of matethematics. In: The American Mathematical Monthly, vol.57,
n.4, apr., 1950, p.221- 232. Disponível em: <http://links.jstor.org/sici?sici=0002-
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674
KRAUSE, Décio. O conceito bourbakista de estrutura. Boletim da Sociedade Paranaense de Matemática.
Curitiba, v. 8, p.77-102, abr. 1987, p. 83.
675
If we now examine the various properties of this “operation” in each of the three theories, we discover a
remarkable parallelism; but, in each of the separate theories, the properties are interconnected, and an analysis
of their logical connections leads us to select a small number of them which are independent (i.e., none of
them is a logical consequence of all the others). BOURBAKI, Nicholas. The architecture of mathematics, p.
224.
259

apresentou as seguintes propriedades independentes, consideradas como axiomas: (a) para


todos os elementos x, y e z de um dado conjunto E, tem-se x*(y*z) = (x*y)*z, uma
associatividade da operação x*y; (b) existe um elemento e, tal que para todo elemento x do
conjunto E, tem-se e*x = x*e = x, em que, na teoria dos números reais com adição, e é o
número zero; na multiplicação “módulo p”, e é o número 1 e; na teoria da composição do
deslocamento, e é o deslocamento nulo; (c) para todo elemento x de E, existe um elemento x’
tal que x*x’ = x’*x = e. Neste caso, x’ é o número –x (oposto de x) na teoria dos números reais
com adição; na multiplicação “módulo p”, significa que, se a potência xm tem um resto da
divisão por p igual a 1, então x’ é o resto da divisão de xm-1 por p, assim o produto “módulo p”
de x e x’ é igual a 1 e; na composição de deslocamentos, x’ é o inverso do deslocamento de x,
ou seja, o deslocamento que recoloca na posição original cada ponto que foi deslocado por x.
Bourbaki apontou que uma das consequências dessas três propriedades, por exemplo, é a lei
do cancelamento, na qual x*y = y*z implica y = z, para todo x, y e z pertencentes a um dado
conjunto. Esta lei, tal como outras que são consequências das três propriedades apresentadas
anteriormente, pode ser expressa da mesma forma nas três teorias por meio da notação
comum empregada em cada uma dessas três teorias. Dessa forma, para Bourbaki, um
conjunto com uma operação bem definida x*y composta das propriedades (a), (b) e (c) é dito
um grupo ou constituído de uma estrutura de grupo, sem qualquer relação específica com a
natureza dos elementos de um dado conjunto.676
Assim, as relações que formam o ponto inicial de uma estrutura podem ter as mais
diversas caracterizações. Por exemplo, se as relações estabelecidas são as chamadas leis de
composição, diz-se que a estrutura assim definida corresponde a uma estrutura algébrica.
Essas caracterizações das relações eram feitas por meio da linguagem da teoria dos conjuntos,
tal como se pode notar em uma operação ou uma lei de composição, que foi definida por
Bourbaki, fazendo analogia à definição usual de função, da seguinte forma:
[...] efetuar uma operação algébrica sobre dois elementos a,b de um mesmo
conjunto E, é fazer corresponder ao par (a,b) um terceiro elemento bem
definido c do conjunto E. Em outras palavras, não existe mais nada nessa
noção que não aquela de função: dar uma operação algébrica é dar uma
função definida em E x E, e ter seus valores em E; a particularidade somente
reside no fato de que o conjunto de definição da função é o produto de dois
conjuntos idênticos ao conjunto onde a função toma seus valores; a tal
função damos o nome de lei de composição..677

676
Bourbaki, Nicholas. The architecture of mathematics, p. 224-226.
677
[...] effectuer une opération algébrique usuelles sur deux elements a,b d’un ensemble E, c’est faire
correspondre au couple (a,b) un traisème element c de l’ensemble E. Autrement dit, il n’y a rien de plus dans
cette notion que celle de fonction: se donner une operation algébrique, c’est se donner une fonction, définie
dans E x E, et prenant ses valeurs dans E; la seule particularité reside dans le fait que l’ensemble de définition
260

de la fonction est le produit de deux ensembles identiques à l’ensemble où la fonction prend ses valeurs; c’est
à une telle fonction que nous donnons le nom de loi de composition. BOURBAKI, Nicholas. Introduction. In:
Algèbre. Chapitres 1 à 3. Éléments de Mathématique. Paris: Hermann, 1970, p.xi-xii.

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