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LAURA DE MELLO E SOUZA: POR


QUE ESTUDAR HISTÓRIA?
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LAURA DE MELLO E SOUZA:

POR QUE ESTUDAR HISTÓRIA? [1]

Para responder esta pergunta, a primeira frase que me ocorre é


a resposta clássica dada pelo grande Marc Bloch a seu neto,
quando o menino lhe perguntou para que servia a História e ele
disse que, pelo menos, servia para divertir. Após 45 anos de
vida profissional efetiva, como pesquisadora durante seis anos

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e, desde então – 39 anos – também como docente do ensino


universitário, considero que a diversão é essencial, entendida
no sentido de prazer pessoal: a melhor coisa do mundo é fazer
algo que gostamos de fato, e eu sempre adorei História, sempre
foi minha matéria preferida na escola, junto com as línguas em
geral.
Mas a História é, tenho certeza disso, uma forma de
conhecimento essencial para a compreensão de tudo quanto
diz respeito ao que somos, aos homens. Os humanistas do
renascimento diziam que tudo o que era humano lhes
interessava. A História é a essência de um conhecimento
secularizado, toda reflexão sobre o destino humano passa, de
uma forma ou de outra, pela História. Sociologia, Antropologia,
Psicologia, Política, Filosofia, Economia, todas essas disciplinas
têm de se reportar à História incessantemente, e com tal
intensidade que o historiador francês Paul Veyne afirmou, com
boa dose de provocação, que como tudo era História, a História
não existia (em Como escrever a História). Quando os homens
da primeira Época Moderna começaram a enfrentar para valer a
questão de uma História secular, que pudesse reconstruir o
passado humano independente da história da criação – dos
livros sagrados, sobretudo da Bíblia – eles desenvolveram a
erudição e a preocupação com os detalhes, os fatos, os
vestígios humanos – as escavações arqueológicas, por exemplo
– e criaram as bases dos procedimentos que até hoje norteiam
os historiadores. Mesmo que hoje os historiadores sejam
reticentes quanto à possibilidade de reconstruir o passado tal
como ele foi, qualquer historiador responsável procura
compreender o passado do modo mais cuidadoso e acurado
possível, prestando atenção aos filtros que se interpõem entre
ele, historiador, e o passado. Qualquer historiador digno do
nome busca, como aprendi com meu mestre Fernando Novais,

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compreender, mesmo se por meio de aproximações.


Compreender importa muito mais do que arquitetar explicações
engenhosas ou espetaculares, e que podem ser datadas, pois
cada geração almeja se afirmar com relação às anteriores
ancorando-se numa pseudo-originalidade.
Sem querer provocar meus companheiros das outras
humanidades, eu diria que a Antropologia nasce a partir da
História, e porque os homens dos séculos XVI, XVII e XVIII
começaram a perceber que os povos tinham costumes
diferentes uns dos outros, e que esses costumes deviam ser
entendidos nas suas peculiaridades sem serem julgados
aprioristicamente. É justamente a partir desse conhecimento
específico que os observadores podem estabelecer relações
gerais comparativas e tecer considerações, enveredar por
reflexões mais abstratas. Portanto, a História permite lidar com
as duas pontas do fio que possibilita a compreensão do que é
humano: o particular e o geral.
A História é fundamental para o pleno exercício da cidadania.
Se conhecermos nosso passado, remoto e recente, teremos
melhores condições de refletir sobre nosso destino coletivo e de
tomar decisões. Quando dizemos que tal povo não tem
memória – dizemos isso frequentemente de nós mesmos,
brasileiros – estamos, a meu ver, querendo dizer que não nos
lembramos da nossa história, do que aconteceu, por que
aconteceu, e daí escolhermos nossos representantes de modo
um tanto irrefletido – para dizer o mínimo- , de nos sentirmos
livres para demolirmos monumentos significativos, fazermos
uma avenida suspensa que atravessa um dos trechos mais
eloquentes, em termos históricos, da cidade do Rio de Janeiro,
o coração da administração colonial a partir de 1763, o palácio
dos vice-reis. Quando olho para a cidade onde nasci, onde vivi
quase toda a vida e que amo profundamente, fico perplexa com

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a destruição sistemática do passado histórico dela, que foi


fundada em 1554 e é dos mais antigos centros urbanos da
América: refiro-me a São Paulo. Se administradores e elites
econômicas tivessem maior consciência histórica talvez São
Paulo pudesse ter um centro antigo como o de cidades mais
recentes que ela – Boston, Quebec, até Washington, para falar
das cidades grandes, que são mais difíceis de preservar.
Não acho que se toda a humanidade fosse alimentada desde o
berço com doses maciças de conhecimento histórico o mundo
poderia estar muito melhor do que está. Mas a falta do
conhecimento histórico é, a meu ver, uma limitação grave e, no
limite, desumanizadora. Acho interessante o fato de muitas
evidências indicarem que, excluindo os historiadores,
obviamente, o segmento profissional mais interessado em
História é o dos médicos. Justamente os médicos, que lidam
com pessoas doentes, frágeis e amedrontadas diante da
falibilidade de seu corpo e da inexorabilidade do destino
humano. E que têm que reconstituir a história da vida daquelas
pessoas, com base na anamnese, para poder ajudá-las a
enfrentar seus percalços. Carlo Ginzburg escreveu um ensaio
verdadeiramente genial, sobre as afinidades do conhecimento
médico e do conhecimento histórico, ambos assentados num
paradigma indiciário (refiro-me ao ensaio “Sinais – raízes de um
paradigma indiciário”, que faz parte do livro Mitos – emblemas –
sinais). Portanto, volto ao início, à diversão, e acrescento: o
conhecimento histórico humaniza no sentido mais amplo,
porque ajuda a enxergar os outros homens, a enfrentar a
própria condição humana.
Na minha adolescência, sonhei ser médica. No ensino médio,
tive boas relações com a Biologia, mas a Matemática e a Física
não me trataram bem. Acabei desistindo dessa profissão
extraordinária e cedendo à grande paixão pelo conhecimento

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histórico. É curioso constatar, a esta altura da vida, que nunca,


como hoje, o Brasil precisou tanto de médicos e de
historiadores competentes.

Laura de Mello e Souza


Professora Titular Aposentada da Universidade de São Paulo
Titular da Cátedra de História do Brasil da Universidade Paris
Sorbonne

Paris, 13 de maio de 2020.

nota:

[1] - Este texto foi originalmente escrito a pedido de alunos do


curso de História da UFF, há quase dez anos atrás. Apresento-o
aqui, com ligeiras modificações, porque ele se tornou
dramaticamente atual.

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