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SOCIEDADE, EDUCAÇÃO E SUBJETIVIDADE:

Reflexões Temáticas à Luz da Psicologia SOCIOISTÓRICA

Lígia Márcia Martins (org.)


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Apresentação

A coletânea de textos que ora se apresenta atende parte


importante dos anseios dos docentes que compõem o Grupo Sociedade,
Educação e Subjetividade, curso de Graduação em Psicologia
UNESP/Bauru, tendo em vista a ampliação de possibilidades para
maior integração entre as disciplinas que têm como fundamento o
materialismo histórico dialético.
Acreditamos que a existência de uma base filosófica comum a
um rol de disciplinas, além de favorecer as necessárias articulações
interdisciplinares, deve pode se colocar como estofo metodológico
dos processos de ensino e aprendizagem auxiliando a construção
do conhecimento por parte do aluno, objetivo maior de toda prática
pedagógica.
Mantém, também, uma relação bastante direta com a
reestruturação do Projeto Político Pedagógico do referido curso,
expressa numa nova organização curricular implementada desde
2007. O novo Projeto,visando a formação de bacharéis em psicologia
e de psicólogos, organiza-se em torno de eixos, núcleos, ênfases e
mediações teóricas.
Os eixos em torno dos quais se organizam os conjuntos
de disciplinas são Fundamentos Epistemológicos e Históricos da
Psicologia; Interfaces da Psicologia com Áreas Afins; Fenômenos
e Processos Psicológicos; Fundamentos Teóricos, Metodológicos e
Procedimentos Técnicos para a Investigação e Intervenção Científicas
na Prática Profissional do Psicólogo e Fundamentos da Prática
Psicológica.
Os núcleos de formação, que indicam a estruturação dos
conhecimentos científicos da psicologia ao longo da formação
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profissional dos alunos, são: Núcleo Comum de Formação em


Psicologia; Núcleo de Formação Científica e Núcleo de Formação do
Psicólogo.
As ênfases, compreendidas como modalidades de
conhecimentos teórico-técnicos norteadores da formação com vista à
prática profissional, abarcam: a Psicologia Clínica, Psicologia Social,
Psicologia e Educação e Psicologia e Trabalho.
As mediações teóricas por sua vez, compreendem as matrizes
do pensamento psicológico que balizam a psicologia como ciência
e profissão e que se fazem presentes na formação profissional em
pauta. São elas: Psicanálise, Behaviorismo Radical, Teoria Sistêmica,
Psicologia Existencial Humanista e Psicologia Socioistórica.
Os textos presentes nesta obra são representativos de todos
os eixos e núcleos, das ênfases Psicologia Social e Psicologia e
Educação à luz da mediação teórica da Psicologia Socioistórica.
Todos encerram conteúdos próprios a diferentes disciplinas que, por
sua vez, distribuem-se nos distintos períodos da formação do aluno.
Assim sendo, a seqüência dos capítulos atende à seriação das
disciplinas que representam bem como a ordenação dos conteúdos
abordados. Importante destacar que tais conteúdos são representativos
de temas específicos trabalhados nas diversas disciplinas e não
contemplam, portanto, a totalidade programática das mesmas.
O capítulo 1, de autoria do Prof. Dr. Ari Fernando Maia, intitulado
Reflexões sobre história e a história da psicologia, cujo conteúdo é
estudado na disciplina Constituição Histórica da Psicologia, alocada
no primeiro período (semestre) do curso, procura denunciar as forças
sociais que impedem que o saber histórico possa ser utilizado em favor
da emancipação humana, desenvolvendo reflexões sobre a dialética
do progresso, a fetichização das relações entre natureza e história e
da individualidade burguesa, visando fundamentar uma apreciação
crítica da história da psicologia.
No capítulo 2, Introdução aos fundamentos epistemológicos
da psicologia socioistórica, cuja autora é Profa. Dra Lígia Márcia
Martins, serão apresentados os pressupostos epistemológicos da
Psicologia Socioistórica, com especial destaque às seguintes questões:
momento histórico de surgimento, fundamentação materialista
histórico dialética e metodologia marxiana. Tais conteúdos integram a
disciplina Fundamentos Epistemológicos da Psicologia Socioistórica,
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presente no segundo período do curso.


Intitulado Políticas Públicas, Instituições e Saúde, o capítulo
3, de autoria do Prof. Dr. Osvaldo Gradella Júnior, apresenta a
compreensão e análise histórica do conceito de Políticas Públicas e
Instituições como expressão da luta de classes e da participação ativa
dos movimentos sociais e dos trabalhadores. Enfatiza as Políticas
em Saúde e Saúde Mental, bem como o processo Saúde/Doença,
suas mediações, os atores sociais envolvidos, suas relações com a
psicologia e as possibilidades de intervenção do psicólogo. Esta
temática é constitutiva da disciplina com o mesmo título, integrante
do quarto período do curso.
O existir humano não é sem educação é o título do capítulo
4, cujo autor Prof. Ms. Ângelo Antonio Abrantes, coloca em pauta,
na disciplina Psicologia da Educação: fundamentos filosóficos;
também integrante do quarto período do curso; a relação entre a
existência humana e a educação. Concebendo-a num sentido lata
procura demonstrar o processo no qual aprender e ensinar tornou-se
elemento constitutivo do ser humano na medida em que para produzir
e reproduzir sua existência necessita apropriar-se das conquistas
obtidas pelo trabalho das gerações passadas.
No capítulo 5, O social na perspectiva socioistórica e uma
didática para a sala de aula, a autora Profa. Dra. Nilma Renildes
da Silva, coloca em questão a importância da compreensão, pelos
alunos, da categoria sociedade na perspectiva marxiana, ao mesmo
tempo em que apresenta o percurso didático trilhado em face deste
objetivo. Esta temática é representativa do trabalho desenvolvido na
disciplina Psicologia Social, pertencente ao quinto período do curso.
A teoria de Vigotski: conceitos e implicações para a Psicologia
da Educação é o título do capítulo que finaliza esta coletânea de textos,
no qual a autora Profa. Dra. Marisa Eugênia M. Meira, apresenta alguns
dos principais conceitos da teoria de Lev Semenovick Vigotski, cuja
obra traz uma imensa contribuição para a educação em geral e para
a Psicologia da Educação em particular, na medida em que trata de
questões fundamentais para a compreensão do processo de formação
das características humanas e das relações entre aprendizagem,
desenvolvimento e educação escolar. Esta temática é integrante
da disciplina Psicologia Escolar, componente do quinto período do
curso.
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Esperamos, com este trabalho, contribuir para a formação


de nossos alunos, convidando-os a trilharem conosco os desafios
presentes na consolidação de uma psicologia comprometida com um
mundo mais justo e humano.

Lígia Márcia Martins


Departamento de Psicologia
Faculdade de Ciências UNESP/Bauru
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Reflexões sobre História e a História da Psicologia


Ari Fernando Maia1

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O grande desafio para quem pretende discutir a articulação
entre os conceitos de história e de psicologia, visando refletir sobre a
história da psicologia, se relaciona à configuração atual da sociedade
que, em virtude de um determinado desenvolvimento histórico, nega
sua própria história. Atualmente, em relação a grande parte da vida
social, predominam duas formas de relação com o passado que são
complementares: de um lado há uma brutal desconsideração por ele,
cuja conseqüência mais imediata é o adiamento das possibilidades
de desenvolvimento futuro de uma humanidade emancipada e
autoconsciente; este desprezo pela história acaba por culminar num
desenvolvimento histórico inconsciente de si mesmo, como o que,
paradoxalmente, o passado é reproduzido como ofuscamento, como
mito. De outro lado, um recorte sobre o passado é reiteradamente
proposto como ideologia, isto é, se busca em eventos passados
justificativas para a ordem social existente.
Historiadores e filósofos discutem se há algum sentido para a
história, se estamos ainda na modernidade ou na pós-modernidade,
enquanto ideólogos conservadores afirmam seu fim. Entrementes,
na experiência cotidiana dos sujeitos, se vive num presente imediato
sem sentido, ou seja, o tempo vazio e homogêneo de que falava W.
Benjamin tornou-se onipresente2. A bússola do tempo alienado aponta
sempre para o futuro, para onde a tempestade do progresso irrefreável
impulsiona o homem, por bem e por mal. A história ensinada e

1
Doutor em Psicologia pela USP/SP; Mestre em Psicologia Social pela PUC/SP. Professor do Departamento
de Psicologia da UNESP/Bauru, nas disciplinas Constituição Histórica da Psicologia e Ética Profissional.
2
Segundo Benjamin (1994): “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo vazio e
homogêneo, mas um tempo saturado de ‘agoras’” (p. 229). O tempo vazio e homogêneo é o tempo dos
relógios, em que cada minuto é exatamente igual aos demais, tal como uma unidade monetária é equivalente
a outra. A base dessa concepção de tempo é a ubiqüidade do fetiche das mercadorias. Mais do que nunca,
“tempo é dinheiro!”.
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estudada com base nessa concepção de tempo acaba por justificar a


permanência das relações sociais de exploração violenta do homem e
da natureza; ela é a história dos vencedores.
Nesse contexto é urgente restaurar o sentido histórico da vida
social, a história em aberto, a história como unidade entre passado,
presente e futuro, pois sem tal sentido não é possível apontar para
algo melhor do que o existente. No tempo vazio e homogêneo o
homem torna-se unidimensional (Marcuse 1968), incapaz de refletir
sobre si mesmo e sobre o mundo e incapaz de produzir uma prática
emancipatória. Não se trata de propor nenhuma volta ao passado,
mas de constatar que a aparente ausência de relação com o passado
reflete uma relação específica com ele: sua repetição como mito. A
sociedade é, desse modo, naturalizada, obviamente desconsiderando
que a própria natureza tem história e que na espécie humana ela se
torna consciente de si mesma.
Tampouco se trata de almejar alguma utopia positiva, resgatada
de um passado inventado com má fé e intencionalidade perversa. No
restabelecimento de uma relação crítica com a história e, assim, com
a esperança de um futuro melhor, a tarefa é encontrar os indícios das
formas de vida social que foram negadas pelo capitalismo tardio e
que, sendo possibilidades inseridas no seio do próprio capitalismo,
poderiam se realizar em sua superação. É também necessário produzir
fraturas na aparente ubiqüidade do existente, desvelando seu caráter
antagônico e sua natureza fetichista.
Abordando as questões apresentadas, E. Hobsbawn (1998)
identifica duas forças contra a história, isto é, forças que se opõem
a que as lições da história sejam aprendidas, e que fazem com que o
olhar para o passado seja, ele próprio, a fonte de engano que turva a
visão dos homens. A primeira delas, em suas palavras é: “a abordagem
a-histórica, manipuladora, de solução de problemas, que se vale
de modelos e dispositivos mecânicos” (Hobsbawn, 1998, p. 47). O
que ele quer dizer é que o predomínio de dispositivos mecânicos ou
burocráticos em praticamente todas as esferas da vida culmina numa
situação em que todas as soluções, todas as ações demandadas dos
homens em seu cotidiano se esgotam no campo técnico, não mais
implicando um processo reflexivo, ou mesmo o conhecimento do
passado, para serem realizadas. O apertar de um botão desencadeia
uma longa série de acontecimentos sobre os quais o sujeito não tem
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a mínima idéia quanto ao funcionamento, mas que efetivamente


produzem efeitos que são vivenciados como se fossem imediatos,
dispensando o sujeito de qualquer contato com a tradição, com o
passado.
Ao mesmo tempo, a ação técnica contém necessariamente um
telos mas, sem que este seja refletido na realização da ação esta se torna
uma pseudo-atividade, ou seja, as finalidades das ações humanas não
são produto de deliberação e de participação consciente dos sujeitos,
mas resultam de um conjunto de automatismos que, internalizados,
produzem a reprodução da vida também na esfera subjetiva como
um conjunto de hábitos irrefletidos. A técnica, um conjunto de meios,
se converte em ideologia porque se torna um fim em si mesma e,
de forma maliciosamente anistórica, contém de forma camuflada fins
alienados nas soluções que propõe para os problemas humanos.
A segunda força que se opõe à história é seu uso como ideologia
ou, nas palavras de Hobsbawn (1998): “a distorção sistemática da
história para fins irracionais” (p. 47). O nacionalismo com base
em uma narrativa histórica que descreve o ‘caráter nacional’,
por exemplo, ilustra essa questão. Não é por acaso que todos os
regimes contemporâneos contam com a história como disciplina na
formação básica dos cidadãos. Somente assim eles podem esperar
que se construa nos sujeitos uma identidade que passa pelo ideal de
nação, ou seja, somente assim eles podem se tornar cidadãos úteis e
adaptados à vida numa sociedade que aprendeu a identificar a história
como um conjunto de fatos sobre o passado, e o presente como mero
acontecimento casual, que não demanda a práxis dos sujeitos vivos.
Talvez existam ainda outras forças que impedem que o saber
histórico possa ser posto em prática em favor daqueles que foram
esquecidos pela história. A questão do sentido da história, a dialética
do progresso, a forma como as relações sociais impelem os sujeitos
em direção contrária a uma consideração detida da história, a
identificação com os vencedores, uma concepção distorcida sobre a
relação entre história e natureza, entre outras, são também questões
que precisam ser analisadas numa reflexão sobre a história e a
psicologia, pois para esta ciência, somente o reconhecimento de que
seu objeto é intrinsecamente histórico pode permitir a superação do
feitiço que, ainda hoje, permeia a história e se reproduz também pela
prática desta ciência.
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Não é possível fazer história sem filosofia, e toda historiografia


contém concepções filosóficas que nem sempre estão explicitadas, ou
seja, não é possível pensar sobre a história sem uma reflexão crítica
sobre um conjunto de problemas filosóficos que estão relacionados e,
ao mesmo tempo, é preciso identificar tais pressupostos subjacentes à
historiografia existente.
O primeiro deles é aquele que diz respeito ao sentido da história.
Na modernidade a principal noção que responde a esse problema é a de
progresso. Embora ela tenha raízes antigas, na concepção agostiniana3
que o vê como um caminho em direção à redenção, por exemplo,
atualmente predomina a noção de que o progresso é uma contínua
acumulação de habilidades e conhecimentos, fundamentalmente no
campo técnico e científico (Adorno, 1995). Mas pensar tal noção
implica superar as análises que meramente justapõem elementos
do desenrolar histórico do desenvolvimento das habilidades e
conhecimentos – apontando que isso ou aquilo progride, em favor
deste ou daquele sujeito – e remeter o progresso ao entrelaçamento
entre os momentos que o compõem. Em outras palavras, é preciso
pensar dialeticamente a noção de progresso.
Segundo Adorno (1995): “o conceito de história em que o
progresso encontraria seu lugar é, enfaticamente, o conceito kantiano
de uma história universal cosmopolita” (p. 39). Mas, para Kant, as
relações entre razão e sensibilidade, assim como entre particular e
universal, não são resolvidas em uma unidade superior; os termos são
mantidos em constante tensão e é somente com a filosofia hegeliana
que uma solução em termos de superação das contradições será
proposta na figura da ‘história universal’. Mas se a pretensão é remeter
o conceito de progresso a uma totalidade emancipada estaríamos
idealizando e falsificando o conceito, já que a humanidade ainda não
se realizou como tal, isto é, segundo Adorno (1995): “é impossível
aceitar qualquer progresso como se a humanidade já existisse como tal
e, portanto, pudesse progredir”. (p. 40) Por isso, a ‘história universal’

3
Relativa a Sto Agostinho (354-430), uma das principais fontes do pensamento cristão no ocidente.
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hegeliana é também inaceitável, já que a totalidade na sociedade


burguesa é um persistente antagonismo que, na medida em que exclui
tudo o que não se encaixa no modelo da troca de equivalentes, se
torna assim um particular transitório, isto é, contém em si mesma as
cifras de sua superação.
A história tem sido até hoje maculada pelo progresso da
dominação da natureza e do homem (Horkheimer; Adorno, 1985). No
esforço para escapar de uma relação com a natureza caracterizada pelo
medo ao seu poder superior, os homens se enrijeceram em formas da
razão que negam tudo o que não se encaixa no princípio de identidade;
a renúncia e o sacrifício, já presentes no mito, se tornam a base para
o desenvolvimento da razão que, por medo, se limita à lógica da
identidade. Assim, o esforço para escapar da natureza culmina numa
regressão à natureza dominada no homem, e a razão se torna irracional
ao ser intolerante como tudo o que é diverso, particular, frágil ou feliz.
Por outro lado, o progresso é uma força antimitológica e a realização
de uma humanidade emancipada não pode prescindir da razão. Esta,
outrossim, é única, tanto quando se volta para a dominação quanto
quando se volta para a reconciliação. Assim, é preciso compreender o
contexto histórico concreto em que a razão se aplica, tanto à natureza
quanto ao homem, e procurar desfazer o feitiço que a prende à pré-
história da humanidade.
Para os autores citados (Horkheimer; Adorno, 1985), a história,
tomada como dominação progressiva, está irremediavelmente
entrelaçada no mito; a história está ‘enfeitiçada’ por amor à lógica
da identidade. Somente uma razão que se aplicasse a si mesma e
àquilo que lhe é diverso reflexivamente poderia se emancipar do
mito da identidade. O esclarecimento tem origem no mito e, em sua
configuração iluminista, na modernidade, regride ao mito por persistir
em fundamentar sua lógica no princípio de identidade que, por sua
vez, é a base lógica da troca de equivalentes que orienta o desenrolar
da vida social na sociedade alienada.
Assim, é inócuo identificar o conceito de progresso à filosofia
positivista, já que a ilusão de que a classificação já coincide com
o conhecimento é, ela mesma, positivista. É preciso avançar para
uma dialética do conceito, desfazendo o feitiço que o caracteriza e
considerando que mesmo o desenvolvimento humano no campo
fetichista contém possibilidades que apontam para algo melhor que ele.
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Ao mesmo tempo, é preciso não esquecer que as recorrentes recaídas


na barbárie que ameaçam a própria noção de progresso – na verdade
ameaçam a própria humanidade – estão contidas necessariamente no
progresso que se identifica com o mero desenvolvimento das forças
produtivas. Mas, segundo Adorno:

A convergência de um progresso total com a negação do progresso,


na sociedade burguesa que criou esse conceito, origina-se do
princípio dessa sociedade: a troca. Na equivalência – igual por
igual – de toda operação de troca, um ato compensa outro, e vice-
versa; o saldo se reduz a zero. (Adorno, 1995, p. 59).

A inverdade da troca, o fato de que, se se trocassem equivalentes


tampouco haveria troca, se revela na desigualdade do resultado,
pois sempre o mais poderoso leva a melhor. Mas, a mera vingança
dos vencidos tampouco escaparia do contexto de ofuscamento
característico do feitiço mítico. Segundo Adorno (1995): “a vingança
é o arquétipo mítico da troca; enquanto houver dominação através
da troca, também dominará o mito” (p. 60). Nesse sentido, toda
história até hoje, porque a humanidade não se emancipou, tem sido
um entrelaçamento entre progresso e regressão, entre mudança e
permanência; a dominação se realiza como repetição, como afirmação
constante do mesmo, do invariável. Entretanto, isso não significa
que seja possível estancar o tempo, brecando o caráter transitório da
produção da cultura humana e, assim, a noção de progresso carrega
em si mesma a esperança de algo melhor, na medida em que seja
refletida em relação à sociedade alienada que a produziu. Nesse
sentido, o progresso só pode ser identificado como uma resistência
àquilo que produz uma recaída no mito a cada novo passo adiante no
desenvolvimento do humano, resistência que não se realiza somente
no campo da razão, pois esta não é imediatamente práxis, mas que
não se operacionaliza senão por meio dela.
O progresso seria, para dizer mais diretamente, uma ampliação
da consciência na liberdade. Mas, se observarmos as relações
entre o todo e os sujeitos na sociedade, não é difícil perceber que a
onipresença do fetichismo das mercadorias resulta na redução dos
sujeitos a funções e de sua liberdade à mera escolha dos meios para
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sua autoconservação. Subjetivamente, essa situação corresponde


a uma notória debilidade das faculdades críticas e a uma atitude
conformista. Ora, sem uma subjetividade capaz de desenvolver uma
atividade crítica não há liberdade na sociedade e, ao mesmo tempo,
somente uma sociedade que permita e estimule o desenvolvimento de
tais faculdades pode ser chamada de livre e democrática.
Essa questão explicita que a maior dificuldade com relação
às teorias da história que não se posicionam num campo crítico é a
tendência que têm de justificar a supremacia de um poder objetivo
sobre os homens, ou de considerar que eles são livres sem compreender
em que medida eles são determinados pelo todo. Coaduna-se com
essa perspectiva aquela que considera todas as ocorrências históricas
como ação de indivíduos excepcionais, ou que toma as tendências
globais (o zeitgeist) como a bússola para a interpretação da história.
Adorno (2006) procura escapar a essas invectivas tomando o conceito
de universalidade como negatividade, isto é, concebendo que a
humanidade ainda não corresponde ao seu conceito e que o todo
deve ser pensado como contradição em processo. Dessa forma, cada
particular tem de ser considerado não em seu caráter imediato, como
algo dado, mas como conjunto de mediações que se configurou em
uma dada forma única, ao mesmo tempo em que, como tal, não pode
ser simplesmente reduzido às mediações que o produziram.

Outro dos temas centrais na filosofia da história que tem


desdobramentos diretos para a história da psicologia é a questão da
relação entre natureza e história. Em geral, a primeira é pensada como
uma realidade estática, como o local onde vigoram leis imutáveis e
no qual é possível um alto grau de previsibilidade contanto que a
razão compreenda e a prática se amolde a tais leis. Mas, segundo
Adorno (1991), esta forma de conceber a natureza a torna idêntica
ao mito, isto é, àquilo que supostamente não se modifica, ao que
é inexorável. Dessa forma, o conceito de natureza como mito é
ideologia, justificando a permanência, na história, de formas variadas
de dominação dos homens e da natureza.
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Para tentar superar a antítese estática entre história e natureza,


Adorno (1991) elabora o conceito de ‘história natural’. No contexto
de uma oposição estática, a natureza é representada como aquilo que
aparece na história como já dado de antemão, como aquilo que é
inexorável. O histórico, por seu turno, é representado pela conduta
humana, uma conduta que é transmitida entre as gerações e que se
caracteriza pelo aparecimento do qualitativamente novo, ou seja,
por estar sempre em movimento e, nesse movimento, fugir à lógica
da pura identidade. Ambas as posições, entretanto, contém traços
idealistas que precisam ser confrontados para desfazer os equívocos
que carregam.
Uma noção estática de natureza aparece sempre que se propõe
uma ontologia estática do homem, isto é, sempre que se fala em uma
‘natureza humana’ subjacente, ou em alguma medida influenciável
pelas circunstâncias históricas. Por outro lado, simplesmente admitir
a historicidade como uma característica fundamental do humano
converte a história e sua mobilidade em uma espécie de “estrutura
ontológica fundamental” (Adorno 1991, p. 110), elidindo o problema
do acaso, da contingência, e perdendo de vista o caráter factual da
história. Um evento como a Revolução Francesa, por exemplo,
teria de ser interpretado a partir das experiências dos indivíduos
que a produziram, deixando de lado a intenção de conhecer o
desenvolvimento empírico dos fatos. Em suma, o historicismo segue
tomando a história como uma determinação ideal, para além dos
fatos que acontecem. O problema das determinações ideais é que
se estabelece uma cisão entre natural e histórico. Segundo Adorno
(1991): “a separação da estática natural da dinâmica histórica conduz
a absolutizações falsas” (p. 117).
A superação dessas absolutizações é a tarefa do pensamento
dialético, que postula o homem como ser natural que, ao transformar
a natureza, transforma sua própria natureza pelo trabalho social. Por
isso, segundo Adorno (1991), a questão da relação entre natureza
e história deve procurar tomar o homem como ser natural em sua
determinação histórica. Em suas palavras:
“Se é que a questão da relação entre natureza e história deve ser
estabelecida seriamente, então somente oferecerá um aspecto
responsável quando consiga captar o ser histórico como
ser natural em sua determinação histórica extrema, onde é
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maximamente histórico, ou quando consiga captar a natureza


como ser histórico onde em sua aparência persiste em si mesma
até o mais fundo como natureza4” (p. 117).

Assim ficam obsoletas as concepções que desejam fundamentar


o conhecimento do humano numa natureza humana pura, subjacente
ao desenrolar da história, ao mesmo tempo em que esta é tomada
como fato da disposição de um ser natural. As concepções idealistas,
que absolutizam o humano ou o natural em concepções estáticas,
ficam assim superadas.
Resta, entretanto, a questão de como é possível conhecer
a história natural em seu processo, em seu desenrolar que envolve
o homem e suas ações. O grande problema em relação a isso está
delineado, segundo Adorno (1991), por Lukács5 em seus conceitos
de primeira natureza e segunda natureza. A primeira indica a natureza
tal como é vista pelas chamadas ciências da natureza, enquanto a
segunda é produto humano, mas o problema central é que ambas
estão estranhadas do homem, isto é, ambas se apresentam a ele como
um conjunto de leis alheias a suas ações. O caráter convencional da
segunda natureza é produto de uma ordem social produzida, mas
perdida pelos homens, isto é, deles estranhada, alienada. As coisas
desse mundo alienado se apresentam aos homens como cifras, como
indícios de algo que não lhes é imediatamente transparente embora
seja produto de sua ação; elas são um conjunto de sentidos paralisado,
tornado estático pela ação transformadora do homem. Segundo
Adorno (1991): “a história paralisada é natureza ou o vivente da
natureza paralisado é um mero haver sido histórico” (p. 121). Somente
uma transformação social global, uma revolução transformadora, que
superasse o estranhamento característico da segunda natureza, poderia
tornar os homens novamente capazes de se reconhecerem em sua
obra. Enquanto ela não acontece, o mundo alienado se apresenta aos
homens como um conjunto de ameaças que precisam ser decifradas.
Para Adorno, é W. Benjamin quem aponta uma solução

4
Em itálico no texto de Adorno.
5
Segundo Adorno (1991), no livro “A Teoria do Romance” (Lukács, 2000) é que este filósofo desenvolve
essa concepção.
16

para os enigmas propostos por Lukács: se o sentido da história


alienada é ela ser tomada como natureza (segunda natureza), então
a própria natureza se converte em história, pois nela se destaca o
que é transitório. Sua intenção é interpretar a história em seus traços
fundamentais como natureza e tornar a natureza dialética tomando-a
como histórica. O significado dos fatos históricos envolvidos sob
o manto do feitiço mitológico se apresenta como alegoria, como
conjunto de símbolos que se combinam numa constelação6. Construir
uma constelação significa romper com o tempo vazio e homogêneo e
com a linearidade da repetição inexorável, produzindo uma fratura na
distância que separa a esperança que existiu no passado do presente
e elaborando um diálogo profícuo entre esses dois momentos, de tal
modo que o presente, com a aproximação do passado, ganha um novo
significado.
Segundo W. Benjamin (1997):

“O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre


vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por
ser causa, é por si só um fato histórico. Ele se transforma em fato
histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar
dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia
a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um
rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou
em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada.
Com isso ele funda um conceito do presente como um ‘agora’ no
qual se infiltram estilhaços do messiânico” (p. 232).

Tal conceito, portanto, não se localiza na grande distância, pois


tal como a luz das estrelas testemunha o tempo na medida em que
as vemos no presente tal como foram no passado7, as constelações

6
Este procedimento proposto por Benjamin tem analogias interessantes com o ‘paradigma indiciário’
proposto por C. Ginsburg (1989) . Neste caso, sua função é descobrir a conexão profunda que permite
compreender os fenômenos superficiais numa sociedade que se tornou opaca no capitalismo atual.
7
A alegoria é de Debord (1997).
17

de sentido que se produzem quando interpretamos os fatos históricos


constroem um diálogo entre o passado, o presente e o futuro, abrindo
uma brecha na temporalidade vazia e homogênea, característica da
sociedade fetichista, na máxima proximidade em relação aos sujeitos
humanos vivos.
Adorno não propõe que, com esse procedimento, história e
natureza simplesmente convirjam pacificamente uma para a outra. A
cisão é real, mas sendo histórica é também transitória e mesmo o
mito dá testemunho disso, na medida em que nele a narrativa não é
unívoca e estática. Além disso, a aparência socialmente necessária, a
ideologia que justifica a manutenção da ordem social alienada, tem
também a forma de mito. Toda aparência socialmente necessária,
então, contém em si o medo que, na origem do humano, impulsiona a
criação dos mitos como forma de aplaca-lo. Ao mesmo tempo, como
todo mito, esta aparência contém também índices de reconciliação, já
que todo mito tem um caráter transcendente, que aponta para além de
si mesmo.
Assim, para Adorno (1991): “A segunda natureza é na verdade a
primeira. A dialética histórica não é um mero retomar o protohistórico
reinterpretado, senão que os mesmos materiais históricos se
transformam em algo mítico e histórico-social”. (p. 134). Por isso,
uma interpretação como a de que Ulisses é o protótipo do indivíduo
burguês, feita por Horkheimer e Adorno (1985) não é um anacronismo,
pecado mortal para o historiador, mas o testemunho de que a história
ainda não superou a protohistória, ou, dito de outra forma, a história
ainda é melhor compreendida como dialética entre continuidade e
ruptura, isto é, continuidade na ruptura. Entrementes, a lembrança e a
interpretação de várias passagens da Odisséia se prestam a iluminar o
presente com luzes que consigam penetrar o contexto de ofuscamento
que caracteriza o capitalismo contemporâneo.
Esta concepção culmina na proposição de uma ‘História
Universal Negativa’, feita por Adorno (2006). O cerne dessa proposição
consiste em uma tomada de consciência aguda da descontinuidade da
história, isto é, de que é duvidoso que ela possa ser compreendida como
o desenvolvimento unitário da ‘idéia’, prevalecendo a consciência da
não identidade dos eventos com relação a um princípio continuísta
e idealista enquanto, ao mesmo tempo, se mantém a consciência
de que a continuidade, como uma tragédia constante, se mantém
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nas diferentes formas de sociabilidade constituídas pelos homens.


Segundo Adorno (2006): “A dominação da natureza (...) solda os
elementos desesperadamente estilhaçados e descontínuos, as fases
da história, em uma unidade enquanto ao mesmo tempo sua própria
pressão os despedaça novamente8” (p. 93).
A idéia de que a história está enredada no mito, e de que o
predomínio das relações sociais enfeitiçadas tem como base o
princípio de identidade, pressupõe que este princípio opera como
uma macro-estrutura na história. Assim, aquilo que é usualmente
imputado como descontinuidade na história, as revoluções, guerras e
mudanças tecnológicas, contém indícios das rupturas na continuidade
típicas do processo de dominação, ao passo que a contínua derrota das
vítimas do progresso contém os indícios da resistência e da ruptura
em relação ao continuum das relações de troca baseadas no princípio
de identidade.
Em vista disso, Adorno compreende que a ilusão de uma
subjetividade constitutiva, base de todo idealismo, é um correlato da
filosofia da identidade e, por isso, abre mão de construir um sistema
filosófico, assim como uma compreensão totalizante da história. Em
suas análises emergem constelações de sentido, que são produzidas
pela consideração detida do conjunto de mediações que o processo
histórico e social amalgamou no objeto. Além disso, Adorno procura
destacar o que, no objeto, é não-idêntico, ou seja, o mergulho
conceitual - que implica necessariamente pensar com os conceitos -
se dá em relação a um objeto determinado mas implica ir além de sua
forma dada, abarcando seu vir-a-ser.

Giuseppe Tomasi di Lampedusa, em seu romance ‘O


Gattopardo’, narra, a partir da vida de Fabrizio, um príncipe siciliano,
uma parte da história da Itália abarcando tanto as mudanças quanto as
permanências e contradições ocorridas no plano histórico. O pano de

8
Tradução de Ari F.Maia
19

fundo é o ano de 1860, quando as Duas Sicílias são anexadas ao novo


Reino da Itália pela ação de Garibaldi que, com pouco mais de mil
homens e com dois navios roubados, desembarca em Marsala e, após
poucos dias de combate, ocupa Palermo no dia 30 de maio, instalando
um governo provisório. No romance, no momento em que a invasão
está prestes a ocorrer, o autor narra o seguinte diálogo entre o Príncipe
Fabrizio e seu sobrinho Tancredi.

“‘Estão se armando coisas importantes, tiozão, e eu não quero


ficar em casa, onde, aliás, me agarrariam logo se ficasse’. (...)
‘Você está louco, meu filho! Ir se meter com aquela gente! São
todos mafiosos e salafrários. Um Falconeri deve estar conosco,
pelo Rei’. (...) ‘Pelo Rei, está certo. Mas que Rei?’ (...) ‘Se
nós não estivermos presentes, eles aprontam a república. Se
queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude.
Fui claro?’ (Lampedusa, 2000, p. 57).

O pragmatismo do sobrinho leva o tio a admirá-lo, e a oferecer


ainda um bocado de dinheiro para que ele seja feliz em sua empreitada.
Como um sujeito da modernidade, Tancredi adaptou sua razão e
suas ações à necessidade de mudar, mas para que tudo permaneça o
mesmo. Essa pequena passagem do livro ilustra algumas questões que
merecem ser consideradas. Sem dúvida, a permanência da dominação
de classe apesar das lutas e da resistência dos dominados, levaram
Marx e Engels (1993) a afirmar que toda a história, até hoje, tem sido
a história da luta de classes. Mas a história também se produz pela
ação dos seres humanos vivos, isto é, o todo se movimenta pela ação
dos indivíduos, tal como dá testemunho a citação acima. O ponto
nevrálgico é que há uma dialética entre indivíduo e cultura, entre
o todo e as singularidades que configuram determinada sociedade
particular, que precisa ser compreendida se não quisermos novamente
idealizar a história.
O que podemos observar na história é que predomina nela uma
natureza coercitiva que se expressa na cegueira das ações individuais
que produzem os eventos e as tendências gerais. A aparente
20

racionalidade na defesa dos interesses de sua classe, apresentada por


Tancredi no romance de Lampedusa, corresponde na verdade a uma
irracionalidade em relação às melhores possibilidades, aquelas que
apontam para a emancipação da humanidade. Torna-se duvidoso o
sentido das ações individuais se elas sempre respondem às tendências
gerais expressas pela história. Se a própria noção de individualidade
parece pressupor liberdade e autodeterminação, por outro lado, em
uma sociedade alienada, os indivíduos são socializados de modo a
atuarem como “máscaras do caráter” (Adorno, 2006), isto é, para
corresponderem às funções sociais que deles se espera enquanto
acreditam agir livremente. Mesmo os momentos da vida em que
os sujeitos podem agir com mais liberdade são possibilitados pelo
todo da vida social e, assim, concluímos que a individualidade é
um fenômeno histórico e, como tal, também é transitório, ou seja,
a verdadeira realização da individualidade pressupõe a superação
(aufhebung) da individualidade burguesa.
Essa reflexão tem uma enorme importância para a psicologia,
pois em geral é possível dizer que seu objeto de estudo é o indivíduo,
e que ela surgiu como ciência independente no século XIX justamente
porque foi nessa época que se disseminou o ideal da individualidade
nas nações capitalistas desenvolvidas. A vida burguesa não pode
se realizar sem o ideal da individualidade, mas ele está eivado
por contradições: por um lado, nele se concretiza a ideologia da
liberdade tal como foi proposta pelo liberalismo econômico, isto é,
a racionalidade que se espera dos indivíduos é a capacidade de se
moverem no campo dos negócios, de tomarem a si e aos demais como
peças do grande maquinário do capital, onde os homens constituem,
na verdade, o apêndice; por outro lado, as idéias de um uso autônomo
da razão, da livre expressão das idéias, de uma formação cultural
aprofundada, são importantes porque permitem aos indivíduos irem
além das formas dadas para suas ações. Assim, tal ideal, assim como a
realização da individuação na sociedade burguesa, são imanentemente
problemáticos, como já apontava Marx (2004):

“A sociedade – assim como aparece para o economista nacional


– é a sociedade burguesa, na qual cada indivíduo é um todo de
carências, e apenas é para o outro, assim como o outro apenas
21

é para ele na medida em que se tornam reciprocamente meio.


O economista nacional – tão bem quanto a política nos seus
direitos humanos – reduz tudo ao homem, isto é, ao indivíduo, do
qual retira toda determinidade, para o fixar como capitalista ou
trabalhador9” (p. 149).

A reprodução da sociedade se realiza na história pela


socialização dos sujeitos, por sua inserção e adaptação às formas
dadas da sociedade. Como esse processo é histórico, não diz respeito
somente às atitudes conscientes dos sujeitos em relação à cultura, mas
diz respeito também ao processo social de coerção que procura amoldar
a subjetividade à cultura em suas mais profundas determinações. Daí
que, quanto mais adaptado ao universal alienado, mais o indivíduo
age cegamente, na medida mesmo em que cede aos seus impulsos
mais aparentemente íntimos, e reproduz esse universal por sua ação
que, não obstante, parece ser livre. Por isso, Adorno (2006) afirma
que: “o reino específico da psicologia é o reino da irracionalidade”
(p. 71). Em outras palavras, a adaptação do sujeito a uma sociedade
alienada e irracional não pode se dar por meio da razão mas somente
por meio da construção de um caráter neurótico ou da anulação, em
si, das capacidades que permitem a crítica e a ação autônoma.
Por isso, se a psicologia quiser dar conta do sujeito histórico,
precisa contribuir para compreender sua configuração alienada
(Adorno, 1993), mesmo quando a manifestação do sujeito parece ser
a expressão de sua liberdade. Além disso, ela precisa compreender a
irracionalidade contida na própria noção de indivíduo tomado como
coisa independente da vida social, como uma noção ontologicamente
dada, que se desenvolve e age de forma intrinsecamente livre.
Evidentemente, uma vez que tais conceitos são parte inseparável
das teorias, técnicas e práticas psicológicas que se consolidaram
historicamente, a psicologia só pode contribuir para superar a
irracionalidade do todo se se constituir como crítica à condição do
sujeito, que é seu objeto, e de si mesma.

9
Itálicos do autor.
22

No plano da história da psicologia, este objetivo se concretiza


na denúncia da utilização dos saberes psicológicos tanto para adaptar
os sujeitos à sociedade quanto para silenciar o protesto daqueles mal
adaptados. Também se concretiza na crítica filosófica, que explicita as
concepções de homem e de mundo subjacentes às teorias psicológicas
e, assim, desfaz o encanto de concepções anistóricas do homem que
grassam nessa área do saber.

Comentando a concepção de história de W. Benjamin, Gagnebin


(1999) afirma que:

“O conhecimento do passado não é um fim em si; porém, se a


exatidão e a precisão históricas são imprescindíveis, é porque
devem permitir ao historiador interromper, com conhecimento de
causa, a história que hoje se conta, para inscrever nessa narrativa,
que parece se desenvolver por si mesma, silêncios e fraturas
eficazes” (p. 104)

Pouco há a acrescentar a essa proposição. Se a psicologia


se encontra também enredada no mito, ela não obstante participa do
progresso e este, em sua dialética, também aponta para algo melhor
que o existente. O passado, no entanto, não pode ser resgatado como
um todo, uma vez que a memória do que foi é sempre fragmentária,
e a ofensa feita no passado não pode ser simplesmente anulada, mas
sem essa memória tampouco há possibilidade de emancipação para
o homem que, existindo no tempo e produzindo a si mesmo em um
metabolismo com a natureza, pode fazer surgir o novo a qualquer
momento.
Daí que o grande desafio quando se pretende produzir uma
história da Psicologia relevante seja resgatar alguma relação com o
conjunto de conteúdos do passado que compõem esta ciência que
se revele em suas conexões com o presente, e que produza saberes
23

comprometidos com o futuro de uma humanidade emancipada.


Ou melhor, considerando a unidimensionalidade que caracteriza
o presente, o conhecimento sobre o passado visa romper o véu do
progresso, do tempo vazio e homogêneo, da história dos vencedores.
Além disso se, na orientação geral com relação ao passado, a
contínua tragédia da dominação é negada para que seja perenizada
e as mentiras da história oficial são reveladoras de uma utilização
da historiografia que deve ser denunciada e compreendida, para
que não seja reproduzida também no campo dos saberes da ciência
psicológica, então é preciso aproximar a reflexão filosófica sobre a
história da história da Psicologia. Esta aproximação seria possível por
meio da compreensão das várias mediações que compõem os dois
campos do saber, e nos parece que a mais profícua é aquela que reflete
sobre a constituição história do objeto dessa ciência: o indivíduo, em
suas conexões com a sociedade, no tempo.
Se, por um lado, é possível apontar as origens do indivíduo
muito antes da modernidade burguesa, por outro é importante
reconhecer que é somente nela que a “subjetividade privatizada” se
dissemina e se amplia, por meio de várias mudanças na natureza da
atividade realizada pelos sujeitos, ao lado de transformações ordem
social e nos sentidos que ela adquiria para eles. Tais transformações
estão mapeadas pelos historiadores da vida privada no século XIX, nos
grandes romances deste século, como Mademe Bovary, e são também
visíveis nas idéias de vários filósofos em séculos anteriores. Thomas
Hobbes e sua definição de liberdade como ausência de impedimento,
concebendo o ‘homem natural’ como um autômato egoísta, ou a
concepção kantiana de esclarecimento, por exemplo, testemunham,
em suas contradições, o conjunto de condições nas quais foi gestada
a concepção moderna de indivíduo. O psicólogo em formação precisa
ter a oportunidade de se apropriar aprofundadamente desses saberes
para não pensar e atuar ingenuamente.
A constituição do indivíduo burguês está eivada de contradições.
Ao mesmo tempo em que determinados aspectos da sociabilidade
moderna contribuíam para a intensificação do sentimento de
interioridade e de identidade privada, a vida real, caracterizada
pela concorrência entre sujeitos econômicos, e pela anulação das
características individuais no trabalho alienado, produziam crises e
fraturas que se expressavam, também, na interioridade psíquica dos
24

indivíduos.
Os vários projetos de psicologia se organizam a partir de
demandas orientadas por tais contradições: de um lado, os indivíduos
reduzidos à subjetividade privatizada eram perigosos porque,
desobrigados de seguir tradições, atentos a seus interesses e aptos a
se organizarem, ameaçavam constantemente a ordem estabelecida,
demandando conhecimentos sobre a subjetividade que produzissem
uma ‘ortopedia mental’ mais eficaz, uma educação moral adequada à
ordem estabelecida e um conjunto de parâmetros de normalidade que
excluíssem ações ou mesmo pensamentos que fossem ameaçadores,
reproduzindo a lógica e a prática social alienadas no campo do
conhecimento sobre a psique10. De outro, o sofrimento dos indivíduos
nessas condições era constantemente intensificado, demandando
tentativas de ‘curar’ por meio de técnicas que permitissem adaptar
os desadaptados e calar até mesmo o protesto. Como é evidente, em
todos os sentidos apontados, a psicologia servia à manutenção ou,
ao menos, à justificação da ordem burguesa, se configurando como
ideologia.
Mas esse não é o destino irremediável dessa ciência, uma
vez que há também a produção de saberes que, explicitamente, se
opõem à lógica e à prática burguesas, configurando teorias, técnicas
e práticas psicológicas emancipatórias. O desejo de praticar a
psicologia em favor da emancipação poderia ser traduzido na seguinte
questão: em que medida a psicologia pode ser útil à história? Se,
efetivamente, nas condições atuais, a economia têm preeminência
nas explicações sobre a conduta dos sujeitos, qual poderia ser sua
contribuição específica? Parece ser possível percorrer duas vertentes
nesse sentido: primeiramente, a psicologia pode contribuir apontando
aquilo que ainda escapa à lógica instrumental nos sujeitos: seus
impulsos, aspirações, habilidades, etc, que contenham um impulso
emancipatório. Ao lado dessa possibilidade, outra seria denunciar os
mecanismos psicológicos de adaptação a este mundo, o sofrimento
que os acompanha e a irracionalidade das ações do sujeito que, por

10
Tais parâmetros culminaram na nosografia psiquiátrica, na elaboração do conceito de raça, na identificação
entre ele e determinada conduta moral e na elaboração de movimentos conservadores que se utilizavam de
saberes supostamente científicos para justificar a dominação. O movimento higienista é um exemplo dessa
tendência.
25

demais adaptado à organização da sociedade alienada, age com cega


violência contra tudo o que ameaça romper esta ordem e, assim,
contribui para sua reprodução.

Proposta de Atividades.

1 - Leitura do conto “Desenredo”, de João Guimarães Rosa


(Rosa, 2001). Procure identificar, na narrativa, o tipo de relação com
o passado que caracteriza a personagem ‘Jó Joaquim’. De que modo
ele modifica a história?

2 – Leitura do artigo “O Sentido do Passado”, de E. Hobsbawn


(Hobsbawn, 1998). Como é possível caracterizar o tipo de relação
com o passado na modernidade segundo o autor do texto? Procure
exemplos que explicitem como esse tipo de relação com o passado
contém processos de continuidade e ruptura em relação a ele.

Referências Bibliográficas.

Adorno, Theodor Wiesengrund. Progresso. In: Palavras e Sinais:


modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis,
Ed. Vozes, 1995.
_______. La Idea de Historia Natural. In: Actualidad de la Filosofia.
Tradução de José Luís Arantegui Tamayo. Barcelona, Ed. Paidós,
1991.
_______. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada.
Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo, Ed. Ática, 2ª ed, 1993.
_______. History and Freedom. Cambridge, Potily Press, 2006.
Benjamin, Walter. Obras Escolhidas: Vol I. Magia e Técnica, Arte e
Política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet e Jeanne Marie Gagnebin.
São Paulo, Ed. Brasiliense, 7ª ed, 1994.
Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto,
26

1997.
Gagnebin, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin.
São Paulo, Perspectiva, 2ª ed., 1999.
Ginsburg, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história.
Tradução de Federico Carotti. São Paulo, Cia das Letras, 1989.
Hobsbawn, Eric. Sobre História.Tradução: Cid Knipel Moreira. São
Paulo, Cia das Letras, 1998.
Horkheimer, Max; Adorno, Theodor Wiesengrund. Dialética do
Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio
de Almeida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1985.
Lampedusa, Giuseppe Tomasi. O Gattopardo. Tradução de Marina
Colasanti. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2000.
Lukács, Georg. A Teoria do Romance. Tradução de José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo, Livraria Duas Cidades e Editora 34,
2000.
Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: o homem
unidimensional. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968.
Marx, Karl. Manuscritos Económico-filosóficos. Tradução de Jesus
Ranieri. São Paulo, Boitempo Ed. 2004.
Marx, Karl. Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
Tradução de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. Petrópolis,
Vozes, 4ª ed. 1993.
Rosa, João Guimarães. Tutaméia (terceiras histórias). Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 2001.
27

Introdução aos Fundamentos Epistemológicos da


Psicologia Socioistórica

Lígia Márcia Martins1

Este texto tem como objetivo central introduzir os estudos acerca


dos fundamentos epistemológicos da psicologia socioistórica e, para
tanto, procura contemplar questões gerais básicas que favoreçam a
compreensão de tais fundamentos. Assim, apresenta aspectos teórico-
metodológicos e históricos que permearam seu surgimento bem como
as premissas centrais da matriz filosófica que lhe confere sustentação,
isto é, do materialismo histórico dialético.
As categorias teórico-filosóficas expostas serão objetos
específicos de estudos subseqüentes, cujos conteúdos, pelos limites
impostos a um texto único, não serão por ora abordados. Portanto,
o estudo da temática em pauta não se esgota na presente exposição,
outrossim, apenas se inicia; representando o ponto de partida para
contínuas reflexões de complexificação progressiva.

Principiando a conversa...

A Psicologia, ciência datada do século XIX, desde sua origem


se fez marcada por um traço muito específico: contemplar uma vasta
gama de objetos, métodos e teorias. Esta abrangência epistemológica,
a rigor, coloca-nos diante de uma ciência multifacetada, ou, como
referem alguns de seus estudiosos, diante de “várias psicologias”.
Importante observar que esta abrangência, se por um lado reflete
a hegemonia lógico-formal característica do campo científico no
século XIX, por outro, reflete as demandas advindas da consolidação
histórico-social da classe burguesa no poder. Instituindo-se como
ciência no final do século XIX, início do século XX, a psicologia,

1
Doutora em Educação, professora do curso de Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia da
Faculdade de Ciências, UNESP/ Bauru e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Faculdade de
Ciências e Letras, UNESP/Araraquara. Integrante do Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”.
28

como bem analisa Tuleski (2004), carregou consigo, desde sua


origem... “a marca de dualismos rígidos e insuperáveis, tais como
objetividade / subjetividade, normal / patológico, social / individual,
orgânico / mental, entre outros” (p. 121).
No esteio de tais dualismos, dicotomizando a existência
objetiva e, conseqüentemente, psíquica dos indivíduos, a psicologia
avançou século XX adentro acumulando pesquisas, sistematizando
conhecimentos, formulando leis e teorias. Contudo, não obstante a
multiplicidade de fenômenos e métodos de investigação sobre os quais,
respectivamente, se debruçou e adotou, não logrou firmar-se na base
de preceitos gerais unificadores aptos a conferir-lhe uma identidade
epistemológica, ou seja, uma especificidade que nos permita dispensar-
lhe um tratamento no singular.
Lev SemenovichVigotski, em artigo intitulado “O significado
histórico da crise da Psicologia”, datado de 1927, analisou profundamente
esta questão destacando quão necessário era (já naquele momento
histórico!) a coordenação crítica de tantos dados heterogêneos, a
proposição de princípios gerais fundamentais e sobretudo, a construção
de coerência teórico-metodológica na ciência psicológica.
Nesse artigo, o autor coloca em questão os primeiros marcos
referenciais sobre os quais a psicologia encontrava-se edificada (e
com poucos avanços encontra-se até os dias de hoje), quais sejam:
inconsciente / consciente; normal / patológico, comportamento animal
/ comportamento humano, explicitando que a centralidade conferida
às dimensões parciais do psiquismo humano resulta na formulação de
sistemas teóricos com reduzidas chances de contemplar os fundamentos
desta ciência.
Para Vigotski, o papel diretivo desempenhado por dimensões
psicopatológicas e por preceitos advindos da psicologia comparada
animal; a exemplo do que se apresenta, respectivamente, no sistema
psicanalítico e derivados, bem como na reflexologia pavloviana e
no condutivismo; corrobora para a formulação de uma “psicologia”
constituída por inúmeras disciplinas particulares (ou abordagens) que,
desprovidas de unidade ou de princípios explicativos gerais, arvoram-
se uma suposta autonomia, no âmbito da qual se esvai a própria
psicologia.
Nesta direção, Vigotski (1997) tece uma consideração bastante
interessante:
29

Devemos ainda estender a disecção ao próprio nome da


psicologia. Porque os processos de divisão que vêm perfilando a
crise têm se refletido também no destino da denominação de nossa
ciência. Diversos sistemas têm rompido aos poucos com a velha
denominação utilizando a sua própria para designar a totalidade
da área de investigação. É freqüente, por exemplo, referir-se ao
behaviorismo como ciência do comportamento, como sinônimo
de toda a psicologia e não de uma de suas correntes. Da mesma
maneira pode-se falar da psicanálise ou da reactologia (p. 393)2.

Ou seja, a psicologia, na exata acepção desta palavra, ainda


não existe, dado que não deve ser considerado de menor importância
mais o maior desafio desta ciência. Ao lançar a pergunta: afinal, o que
é a psicologia? Vigotski (1997) afirma claramente: “uma considerável
divergência de opiniões”! (p. 265)
Diante do exposto, é possível que nos interroguemos em que
medida esta configuração representa um problema. Apreendendo
superficialmente o fato, nenhum. Entretanto, em se tratando de
ciência, as questões não podem ser abordadas superficialmente, mas
sim, do ponto de vista metodológico.
E é sob este prisma que as lacunas da psicologia se desnudam,
expondo divergências que revelam a inexistência de sua unidade
teórico-metodológica. Aquilo que Willian James constatava em 1911,
ao afirmar... “não existe em psicologia nem uma só lei, no sentido em
que utilizamos esta palavra no campo dos fenômenos físicos, nem um
só princípio do qual se possa extrair conseqüências por via dedutiva”
(apud Vigotski, 1997, p. 396), permanece como um desafio no campo
psicológico, determinante de grandes esforços acadêmicos até os dias
de hoje.
A assunção deste desafio é uma das características da psicologia
socioistórica desde seu surgimento e para Vigotski, um passo decisivo
nesta direção consistia na formulação de uma psicologia geral.
Fundamento que estaria para “as psicologias” tanto quanto a biologia

2
Todas as citações em língua espanhola foram traduzidas pela autora.
30

está para a botânica, para a fisiologia, para a zoologia, para a ecologia,


etc. Isto é... “para a disciplina geral o objeto de estudo é o geral, o que
é próprio de todos os objetos da ciência em questão” (Vigotski, 1997,
p. 265).
Para este autor, as várias disciplinas constitutivas da
psicologia (também denominadas sistemas ou correntes) se firmam
independentemente, calcadas num paradoxo interessante: ao se
afirmarem, cada uma delas, na base de preceitos gerais próprios,
reiteram, por um lado, a inexistência da verdadeira psicologia geral e
por outro, a impossibilidade da investigação científica em detrimento
dela.
Portanto, para Vigotski, as lacunas ou incompletudes da
psicologia não seriam superadas por proposições intermináveis de
outros e novos sistemas teóricos e, nesse sentido, foi enfático ao
afirmar que seus esforços não apontavam na direção da proposição de
uma “nova abordagem” psicológica ou de uma “psicologia marxista”,
outrossim, na luta pela sistemalização das bases gerais sobre as quais
pudesse ser edificada a psicologia científica.
Referindo-se à tarefa por ele assumida, Vigotski (1997)
afirma:

Porque esta não consiste em criar uma escola junto a outras


escolas. Nem delimita uma parte ou faceta determinada, nem um
problema, nem um procedimento de interpretação da psicologia,
junto com outras partes, escolas, etc, análogas. Se trata de toda a
psicologia em toda sua dimensão: de uma psicologia única, que
não admite nenhuma outra. Se trata de realizar a psicologia como
ciência {grifos do autor} (p.405).

Tais considerações significam, então, que Vigotski estaria


negando os demais estudos em prol da consolidação da denominada
ciência psicológica? De maneira alguma e pelo contrário. Mas
para a correta interpretação desta assertiva, duas observações são
fundamentais.
A primeira delas refere-se à compreensão de Vigotski acerca
da propriedade dos objetos assumidos pela psicologia. Ou seja,
31

indubitavelmente esta ciência deve debruçar-se sobre uma vasta


gama de fenômenos, tais como o psíquico e suas propriedades, o
inconsciente, o comportamento, etc. O problema presente na crise
da psicologia não advém dos fatos, ou fenômenos, aos quais tem
dedicado seus intentos explicativos e, assim sendo, o significado
histórico desta crise não é de objeto.
Ocorre porém, que tais fatos são sobejamente distintos e as
explicações tecidas nos limites de suas especificidades particulares
não conterão outra coisa senão, conceitos e explicações também
particulares e unitárias. A superação das interpretações fracionárias
que têm caracterizado a psicologia desde seu surgimento e ao longo
de todo seu desenvolvimento demanda mudanças radicais em sua
trajetória metodológica.
Segundo Vigotski (1997) na configuração multifacetada da
psicologia, qualquer fato psicológico expresso em cada um de seus
sistemas teóricos independentes assumirá formas totalmente distintas,
convertendo-se em fatos distintos! Daí que:

À medida que a ciência avance, à medida que se acumulem os


fatos, obteremos sucessivamente (...) generalizações distintas,
(...) classificações distintas, (...) sistemas distintos, (...) ciências
distintas, que se tornarão tanto mais distantes do fato comum que
as unia e tanto mais distantes uma das outras, quanto maior seja
o êxito com que se desenvolvam (p. 266/267).

Esta citação remete-nos à segunda observação concernente


à proposição vigotskiana acerca da necessidade de constituição da
psicologia científica, qual seja: a questão do método. Podemos afirmar,
ainda que de modo bastante geral, que toda ciência se estrutura na
base da delimitação de seu objeto e método. Conforme expresso
anteriormente, se o nó górgio da psicologia não é da alçada do objeto,
resta-nos então, identificá-lo em sua expressão metodológica. Este
foi o raciocínio seguido por Vigotski ao dissecar a referida crise da
psicologia. Vejamos, mais uma vez, o que nos ensina este autor.
32

A possibilidade da psicologia como ciência é, antes de tudo, um


problema metodológico. Em nenhuma ciência existem tantas
dificuldades, controvérsias irresolúveis, uniões de questões
diversas, como em psicologia. O objeto da psicologia é o mais
difícil que existe no mundo, o que menos se deixa estudar;
sua maneira de conhecer há de estar repleta de subterfúgios e
precauções especiais para proporcionar o que dela se espera
(1997, p. 387).

Com esta consideração, dentre outras, o autor amplia sua


análise sobre a psicologia apontando que à ela descortinavam-se duas
possibilidades: ou como ciência ou como conhecimento de visões
fragmentárias, e neste caso, impossível como uma ciência. Nesta
direção, propõe e defende a tese segundo a qual a psicologia, como
ciência dos fenômenos psíquicos reais, precisava ultrapassar-se a si
mesma, superando a abstração e a atomização lógico formal sobre a
qual se edificava.
Para tanto, Vigotski advoga um novo enfoque metodológico
para a psicologia, encontrando no materialismo histórico dialético
o estofo epistemológico de suas formulações teóricas. Para ele...
“a dialética abarca a natureza, o pensamento, a história: é a ciência
mais geral, universal até o máximo. Essa teoria do materialismo
psicológico ou dialética da psicologia é o que eu considero psicologia
geral” (1997, p. 389).
A formulação desta teoria foi perseguida por este autor em toda
a sua breve existência3, e a ele se uniram para essa empreitada outros
proeminentes psicólogos, dentre os quais, primeiramente, Alexis N.
Leontiev e Alexander Romamovich Luria. Vigotski, Luria e Leontiev,
integrantes da denominada “troika” (que em russo significa trio)
encabeçaram a elaboração da Psicologia Científica; que não obstante
os árduos esforços de seus proponentes na recusa de que se firmasse
como mais uma matriz do pensamento psicológico; consagrou-se
como Psicologia Histórico-Cultural ou Psicologia Sócio-Histórica.

3
L.S. Vigotski nasceu em 1896 e faleceu em 1934.
33

Mas, para a efetiva compreensão da análise tecida por Vigotski


acerca das expressões da psicologia nos primórdios do século XX, bem
como das bases sobre as quais se edifica a Psicologia Socioistórica,
outros fatores revelam-se fundamentais. Ou seja, como fatos
historicamente datados tais produções só podem ser verdadeiramente
compreendidas em suas relações mais amplas, em seus vínculos com
o momento histórico que lhes confere sustentação. Não se trata apenas
de identificar, superficialmente, sob quais circunstâncias esta ciência
se desenvolveu mas, sobretudo, apreender os nexos existentes entre
as esferas das relações políticas, econômicas e sociais e o referido
desenvolvimento.
A Revolução de Outubro ocorrida no ano de 1917 na Rússia
é um marco referencial de análise fundamental para a psicologia
socioistórica. A conjuntura pós-revolucionária, profundamente
marcada pela necessidade de (re)construção de toda uma sociedade, se
instituiu como um grande movimento de transformações, em relação
ao qual nenhuma ciência pôde isentar-se, em especial, as ciências
humanas.
Referindo-se especificamente aos rumos seguidos pela
psicologia neste contexto, a psicóloga Martha Shuare (1990) afirma:

A necessidade de resolver tarefas práticas na dimensão de


toda uma sociedade retira a psicologia dos marcos acadêmicos
tradicionais e esta deixa de ser uma ciência mais ou menos
“neutra” no sentido de suas investigações de laboratório e deve
não só verificar seus esquemas explicativos em situações reais,
como deve dar respostas a problemas de significação vital para
toda a sociedade (p. 25).

Ainda segundo esta autora, aos debates presentes na psicologia


russa na transição entre os séculos XIX e XX somaram-se outros, que
traziam consigo as demandas pela construção de uma nova psicologia,
requerida pelas circunstâncias históricas e consoante com a superação
da sociedade burguesa em prol de uma outra ordem social.
Tais debates, especialmente voltados para o problema da
natureza dos fenômenos psíquicos e para a delimitação do objeto e
34

métodos da psicologia, assumiram suas mais contundentes expressões


nos congressos nacionais de Psiconeurologia ocorridos nos anos de
1923 e 1924, respectivamente em Moscou e Petrogrado.
Esses eventos foram decisivos para as mudanças nos rumos
teórico-metodológicos trilhados pelos psicólogos soviéticos. Foi no
Congresso de 1923 que se formulou pela primeira vez a necessidade
de se fundamentar a psicologia nos pressupostos do materialismo
dialético, dado que se fez acompanhado pela mudança, ainda no
mesmo ano, na direção do Instituto de Psicologia da Universidade de
Moscou, que sob a condução de K. N. Kornilov passou a congregar
os esforços acadêmicos em prol das aproximações entre a psicologia
e o marxismo.
No centro dos debates travados neste período estavam a
questão da dialética como método de investigação e a delimitação do
objeto da psicologia, ainda fortemente marcada por duas posições: a
definição de psiquismo como produto do cérebro e a concepção social
da natureza da consciência e da personalidade humana.
No segundo Congresso ainda imperaram as discussões acerca
do método e objeto da psicologia tendo em vista a construção de
uma psicologia verdadeiramente científica. Não obstante os esforços,
em especial de K. N. Kornilov, as aproximações entre o marxismo
e a psicologia revelavam-se bastante incipientes, representando
pouco além de uma transposição linear do primeiro sobre a segunda.
Neste congresso Vigotski fez sua primeira apresentação de âmbito
acadêmico nacional. Graças à notória repercussão de sua exposição foi
convidado para trabalhar no Instituto de Psicologia da Universidade de
Moscou, somando-se a outros jovens pesquisadores comprometidos
com a elaboração efetiva de novos enfoques no campo da psicologia.
Assim surgia a “troika”, a quem concede-se o mérito histórico de,
pioneiramente, utilizar de modo criativo os princípios do materialismo
histórico dialético nas investigações dos fenômenos psicológicos.

Mas afinal, o que é materialismo histórico dialético...

Até o presente, procuramos evidenciar que a psicologia


35

socioistórica representa esforços em prol da formulação e


consolidação de uma nova psicologia, que busca numa concepção
filosófica determinada, o materialismo histórico dialético, os
princípios metodológicos que lhe conferem sustentação. Portanto,
a epistemologia marxiana, formulação filosófica cujos proponentes
formam Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), é o
esteio sobre o qual a psicologia socioistórica se desenvolve aliando-se
aos ideais de superação do sistema político-econômico capitalista.
Sabidamente, toda formulação filosófica contempla uma
concepção de homem, de sociedade, da relação entre esses pólos e,
sobretudo, acerca das possibilidades de construção do conhecimento.
Neste sentido, qualquer elaboração teórica, em especial nas ciências
humanas, traz em seu bojo preceitos filosóficos. Entretanto, nem
todas teorias evidenciam-nos e, muitas vezes, apenas pela via
analítica podemos desvelar suas concepções ocultas. Diferentemente,
a psicologia socioistórica não se omite de um claro posicionamento
político-filosófico, tendo a compreensão do mesmo como requisito
para seu efetivo domínio. Com esta assertiva procuramos alertar
para a impossibilidade de divórcio entre esta matriz do pensamento
psicológico e o sistema filosófico que medeia suas proposições.
Tecidas estas considerações, dediquemo-nos ao estudo do
materialismo histórico dialético que, por finalidades meramente
didáticas, será apresentado em dois sub-ítens: materialismo histórico
e materialismo dialético.

1 Materialismo Histórico...

Por materialismo histórico devemos conceber o núcleo teórico-


filosófico da epistemologia marxiana, produzido pela decodificação
materialista dialética dos fenômenos da realidade, no que se inclui a
natureza, a história, a vida social e o próprio homem. Preliminarmente
é importante destacar o significado conferindo às expressões
materialismo e histórico.
Marx e Engels partem do princípio de que a realidade; e todos
os fenômenos que a constituem; é material. Ou seja, existe objetiva
36

e independentemente da consciência.4 A matéria é, portanto, o dado


primário da existência e dela tudo depende, inclusive a consciência e
o próprio pensamento humano. As sensações, as idéias, os conceitos,
etc. não emergem da consciência a partir de si mesma mas originam-
se na materialidade do real. O mundo objetivo é que será captado
pelos sentidos e representado pela consciência, a quem competirá
torná-lo cognoscível.
A realidade objetiva por sua vez, não é estática e idêntica a si
mesma, pelo contrário, ela é uma miríade de fenômenos que resultam
da matéria em movimento, de processos naturais e sociais que se
transformam continuamente, do que se conclui: a realidade objetiva é
a história de suas mudanças. Mudanças que não se processam de modo
casual ou fortuito, mas que são produzidas na e pela relação ativa
homem-natureza e como expressa Shuare (1990) ... “o tempo humano
é história tanto na vida individual como social; e nesta última, como
história do desenvolvimento da sociedade, a atividade produtiva
(transformadora) dos homens é o ponto nodal na compreensão do
processo” (p.60).
Nesta concepção, a história é o produto dos modos pelos quais
os homens organizam sua existência ao longo do tempo e diz respeito
ao movimento e as contradições do mundo, dos homens e de suas
relações. Inclui o processo de evolução dos seres vivos, o processo de
complexificação pelo qual passa esse ser, que, superando-se como ser
biológico firma-se como ser social e histórico.
Portanto, se todo existente é movimento, a dialética se
apresenta no pensamento de Marx como a lógica pela qual ele deva
ser compreendido. A lógica dialética fornece o caminho (método) para
o conhecimento e interpretação da realidade em seu caráter material
e histórico, e sobre esta questão discorreremos no item Materialismo
Dialético.
Tecidas estas considerações preliminares vejamos, então, as
premissas centrais do materialismo histórico.

4
Para a correta interpretação desta tese é necessária uma brevíssima consideração sobre a posição filosófica
idealista, à qual Marx e Engels se contrapõem. Para o idealismo a consciência é o a priori da existência e
a realidade, a encarnação das idéias. Assim, apenas a consciência existe realmente e tudo o mais é por ela
condicionado.
37

1.1 Centralidade do Trabalho Social

Marx coloca o trabalho no cerne de suas formulações filosóficas.


Porém, para compreendermos esta proposição é imprescindível o
entendimento do trabalho em seu sentido ontológico. Na acepção
marxiana ele não é sinônimo de emprego (ou ocupação), outrossim,
representa a atividade vital do homem, pela qual ele se relaciona com
a natureza e com os outros homens criando as condições necessárias
de produção e reprodução da humanidade. Se o que caracteriza uma
espécie, para além de sua organização biológica, é a atividade que
ela executa para garantir sua vida e de seus descendentes, no caso
do homem essa atividade é o trabalho social, doravante denominado
também por atividade vital humana.
Vejamos o que nos diz Marx (1989) sobre esta questão:

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a


Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação,
medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele
mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural.
Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua
corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-
se da matéria natural numa forma para sua própria vida. Ao atuar,
por meio desse movimento sobre a Natureza externa a ele e ao
modificá-la, ele modifica ao mesmo tempo sua própria natureza
(p. 149).

Ou seja, o homem, como parte da natureza, só pode sobreviver


por seu constante metabolismo com ela. Esse metabolismo é
garantido por sua atividade vital, o que o torna um ser natural ativo.
Pertencendo à uma espécie animal e contando com determinado nível
de estruturação biológica, por meio do trabalho supera sua condição
primária como ser hominizado (que dispõe de dadas particularidades
estruturais orgânicas) em direção à condição de ser humanizado (que
dispõe de particularidades histórico-socialmente desenvolvidas).
Referindo-se a este movimento de superação Leontiev (1978, p.
38

262) destaca três grandes estágios evolutivos. O primeiro compreende


o estágio da evolução exclusivamente biológica, acentuadamente
marcada pelas relações naturais e adaptativas do ser à natureza.
Este estágio é seguido por aquele no qual, graças a um determinado
nível de desenvolvimento biológico já alcançado, principia um
desenvolvimento embrionário de vida social. Este segundo é
preparatório para o surgimento da espécie Homo sapiens, quando o
desenvolvimento humano já não é condicionado ou determinado pela
evolução biológica, mas sim, pelo estabelecimento de funções novas,
próprias da vida em sociedade. Assim, a partir do terceiro estágio,
o desenvolvimento humano passa a pressupor a superação de um
sistema de vida dominado por uma natureza dada (plano biológico)
em direção a um sistema de vida criador de uma natureza adquirida
(plano histórico-social).
Este processo ocorre por meio da atividade vital humana que,
para tanto, não pode ser determinada casualmente. As conquistas
do desenvolvimento referido só se verificaram na medida em que
encerraram ações intencionais. É esta dimensão teleológica que
distingue a atividade especificamente humana das demais formas
vivas de atividade. Toda ação verdadeiramente humana pressupõe a
consciência de uma finalidade que precede a transformação concreta
da realidade natural ou social e, desse modo, a atividade vital humana
é ação material consciente e objetiva, ou seja: é práxis.
A práxis compreende a dimensão autocriativa do homem,
sintetizando a dimensão objetiva (“prática”) e a dimensão subjetiva
(“teórica”) de seu ser, que se realiza na contínua transformação da
realidade e de si mesmo. Este processo formativo já não mais será
garantido por relações naturais, biológicas mas sim pela estruturação
da consciência. Ao superar as barreiras biológicas de sua espécie o
homem rompeu, também, a fusão necessidade/objeto (que permanece
própria dos demais animais), e na base deste salto qualitativo se
desenvolveram novas propriedades, dentre as quais se destacam as
funções cognitivas e afetivas.

O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital.


Não se distingue dela. É a sua própria atividade. Mas o homem
faz da atividade vital o objeto da vontade e da consciência. Possui
39

uma atividade vital consciente. Ela não é uma determinação com


a qual imediatamente coincide. A atividade vital consciente
distingue o homem da atividade vital dos animais. Só por
esta razão é que ele é um ser consciente (...) (Marx, 1989, p.
164/165).

Fica assim evidente que o trabalho engendra a estruturação da


consciência e essa, por sua vez, o regula. Apenas o homem pode fazer de
sua atividade objeto de suas intenções e análises, pode dela distanciar-
se, ampliando possibilidades e promovendo a autodeterminação de suas
ações. Marx rompe decisivamente com qualquer concepção idealista,
supra histórica de consciência, evidenciando a impossibilidade de sua
compreensão se não, na relação ativa que vincula o homem às suas
condições objetivas de existência.
Tais condições objetivas não podem ser simplesmente
identificadas como meio externo em que vive o homem. É fundamental
sabê-las produzidas pelas relações históricas e expressas sob a forma
de objetivações humanas . Tendo em vista melhor explicitação desta
idéia, recorramos à Duarte (1993, p. 133/135) ao caracterizar a
dinâmica própria da atividade vital pela relação entre apropriação e
objetivação.
Conforme exposto anteriormente o trabalho social operou, e
continua operando, decisivamente para a humanização do homem.
Dentre suas inúmeras propriedades duas, em especial, se destacam:
o trabalho demanda meios e resulta em produções, isto é, sintetiza
apropriações e objetivações. Segundo Duarte (1993):

A dinâmica própria da atividade vital humana, a relação entre


objetivação e apropriação, se realiza, portanto, sempre em
condições determinadas pela atividade passada de outros seres
humanos. A relação entre objetivação e apropriação não se realiza
sem a apropriação das objetivações existentes. “Os homens
fazem as circunstâncias”, isto é, se objetivam, mas as fazem a
partir de suas possibilidades objetivas e subjetivas resultantes do
processo de apropriação das circunstâncias existentes, isto é, “as
circunstâncias fazem os homens”. {grifos do autor} (p. 40).
40

As objetivações representam o resultado de uma ampla


prática social efetivada pela produção e utilização de instrumentos,
da linguagem, da ciência, da arte, da moral, etc; fixando-se
como produtos da história passada e esteio da história futura. As
apropriações na direção das aquisições desse patrimônio humano-
genérico e por esta via, promovem a formação em cada indivíduo
particular das características, possibilidades e condições objetivas de
desenvolvimento alicerçadas pelas objetivações já efetivadas.
Também referindo-se à importância da dinâmica entre
apropriação e objetivação, Leontiev (1978) afirma:

A principal característica do processo de apropriação ou de


“aquisição” que descrevemos é, portanto, criar no homem
aptidões novas, funções psíquicas novas. É nisto que se
diferencia do processo de aprendizagem dos animais. Enquanto
esse último é o resultado de uma adaptação individual do
comportamento genérico a condições de existência complexas e
mutantes, a assimilação no homem é um processo de reprodução,
nas propriedades do indivíduo, das propriedades e aptidões
historicamente formadas pela espécie humana {grifos do autor}
(p. 270).

Com estas considerações procuramos demonstrar a essência


da socialidade humana, isto é, que as condições objetivas de vida
de cada homem encerram as apropriações das objetivações que lhe
são acessíveis, ou, socialmente disponibilizadas. É no processo ativo
que vincula o homem à realidade objetiva que ele desenvolve suas
potencialidades e capacidades, apropriando-se do patrimônio humano-
genérico e objetivando-se nos seus atos, enfim, que ele conquista a
condição de e para ser humano.
41

1.2 As bases das relações sociais são as relações sociais de


produção

Pelo exposto, depreendemos que o homem se constitui como


tal graças às peculiaridades de sua atividade vital, isto é, graças ao
trabalho social. Dentre tais peculiaridades destacamos o processo
dinâmico que se estabelece entre apropriações e objetivações como
um de seus elementos centrais. Graças a este processo o homem,
historicamente, tem consolidado os modos pelos quais garante sua
sobrevivência, ou, na condição de ser social ativo, produz as suas
condições de vida.
Ocorre porém, que esta produção não é um ato solitário, os
homens não produzem individualmente os meios de sua sobrevivência,
pelo contrário, produzem em comum, interdependentemente. Por
mais reduzidas que pudessem ser as objetivações necessárias à vida
de um indivíduo, seria impossível pensá-lo criando-as e produzindo-
as por si mesmo. E é por isso que, sejam quais forem as condições,
a produção humana é sempre uma produção social. Nela e por meio
dela os homens estabelecem relações que não são imediatas e nem
circunscritas à produção de bens materiais, outrossim, edificam o
modo de ser da sociedade.
Portanto, na base de todas as relações sociais estão as relações
sociais de produção. Ou seja, o trabalho por sua natureza é uma
atividade coletiva e assim sendo, os homens organizam-se em
sociedade para produzirem suas condições de vida. E é exatamente
no bojo dessas relações de produção que os homens constroem não
apenas os meios para sua sobrevivência mas, sobretudo, edificam a
si mesmos. Neste sentido, o aspecto essencial em toda e qualquer
sociedade é o modo de produção sobre o qual se erige. A história de
seu desenvolvimento se revela na história do desenvolvimento das
forças produtivas - modos e meios pelos quais o homem produz - e
das relações que, para tanto, estabeleceram entre si.
São as mudanças nos modos de produção que provocam as
transformações dos modelos organizativos da sociedade, ou seja,
do sistema político e econômico que lhe dá sustentação. Por isso,
o elemento central na caracterização de uma sociedade não reside
nas idéias que os homens tecem sobre ela, mas no tipo de relação
42

de produção que nela se pratica. Em face destas idéias torna-se


necessária a distinção entre o que Marx e Engels caracterizam como
forças produtivas e relações de produção.
As forças produtivas indicam os instrumentos (objetivos e
subjetivos) por meio dos quais os homens produzem os bens materiais
que lhes são necessários, as relações de produção mostram na posse
ou a serviço de quem se encontram os meios de produção. Grosso
modo, o desenvolvimento das forças produtivas desde os primórdios
da humanidade até os nossos dias pode ser assim representado:
transição dos utensílios de pedra aos de metal; passagem à agricultura;
aprimoramento dos utensílios de metal e aparecimento da olaria;
surgimento de ocupações artesanais e separação destas da agricultura;
desenvolvimento da manufatura; transição dos instrumentos de
produção artesanal à maquina e transformação da produção artesanal-
manufaturada em indústria mecanizada; complexificação do sistema
de máquinas e expansão da mecanização moderna seguida da
automação do trabalho pelas sofisticadas conquistas tecnológicas.
É na base destas transformações que se desenvolvem, também,
as relações de produção, isto é, as bases econômicas da sociedade.
Marx (1986, p. 84/86) em análise da história das relações de produção
destaca a existência de dois grandes estágios, dos quais infere a
existência de um terceiro. O primeiro compreende as sociedades pré-
capitalistas (comunidades primitivas, escravatura e regime feudal); o
segundo, a sociedade capitalista e o terceiro, postula a superação da
sociedade burguesa. Tendo em vista os objetivos deste texto, vamos
nos ater às considerações por ele tecidas em relação ao segundo
estágio.
O capitalismo se institui superando a unidade imediata entre
os homens e suas condições de existência que caracteriza as formas
de organização pré-capitalistas. Nelas, o objetivo econômico era a
produção de valores de uso e as relações estabelecidas pelos homens
em face de suas condições sociais de existência não se diferenciavam,
substancialmente, daquelas estabelecidas entre eles e suas condições
naturais e contingentes de existência. Diferentemente, no sistema
capitalista a produção de valores de uso cede espaço (e importância)
para a produção de valores de troca e as condições de existência dos
homens já não lhes serão naturalmente dadas mas sim, condicionadas
pelas relações sociais das quais participam.
43

Marx (1986) afirma que no capitalismo... “a produção aparece


como objetivo do homem e a riqueza como objetivo da produção”
(p. 447), e assim sendo, absolutizando o valor de troca esse sistema
confere primazia total à produção de mercadorias. A propriedade
privada dos meios de produção (primitivamente instituída nos regimes
escravocrata e feudal) sofistica-se a passos largos, consolidando-
se como substrato, como base, das relações de produção. Portanto,
no capitalismo co-existem aqueles que detêm a posse dos meios de
produção e aqueles que delas são desprovidos, a quem resta apenas a
venda da força de trabalho. Assim, se instituem como características
inerentes a ele (capitalismo) a luta de classes e a alienação, que são
geradoras de contradições insolúveis na ausência de transformações
na relação capital-trabalho.
Na sociedade burguesa passam a imperar as condições para o
trabalho alienado (que não é o verdadeiro trabalho, em seu significado
marxiano filosófico) e por isso Marx deixa claro em toda sua obra
que a condição para conquista do terceiro estágio na história da
humanidade é a abolição-superação do trabalho alienado fundado na
propriedade privada dos meios de produção. Em análises que realiza
acerca do não-trabalho, este autor destaca a alienação na relação entre
o indivíduo e o produto de seu trabalho, na relação entre o indivíduo
e o processo de produção e na relação entre o indivíduo e o gênero
humano. Vejamos, ainda que brevemente, o que nos diz.
Todo trabalho implica objetivações, isto é, a objetivação
é a fixação do trabalho em objeto. O processo de objetivação do
trabalho parte dos homens, expressa capacidades humanas que ao se
materializarem sob a forma de objeto já não são mais elas mesmas,
tornam-se objetivadas. As objetivações, por sua vez, colocam-se como
conteúdos das apropriações para o atendimento dos carecimentos
humanos. Entretanto, se por conta de determinado modo de
organização social as objetivações do trabalhador não se constituem
em objetos de suas apropriações, o produto do trabalho deixa de ser o
engrandecimento de todos os homens, ou seja, o produto do trabalho
deixa de pertencer ao trabalhador tornando-se dele independente,
alienado. Eis o cerne da alienação entre o indivíduo e o produto de
seu trabalho.
Considerando-se que não existe produto sem um processo que
lhe possibilite, sob condições de alienação o curso trilhado na produção
44

também apartar-se do trabalhador, convertendo-se em ações que não


lhe pertencem. O processo de produção existe fora dos homens, ainda
que como manifestação de sua própria vitalidade. Esta exteriorização
é, portanto, a objetivação das capacidades humanas e ao mesmo
tempo a efetivação das possibilidades de seu desenvolvimento.
Porém, quando a exteriorização se converte em alheiamento, quando
o processo de produção demanda meramente ações conformadoras da
força de trabalho comprada pelo proprietário dos meios de produção,
o trabalho se empobrece, deixando de ser a condição fundante das
capacidades, das aptidões e habilidades humanas.
Desta forma, na medida em que a alienação se expressa tanto na
relação do indivíduo com o produto do seu trabalho quanto no processo
de produção ela promove, também, a ruptura, o distanciamento entre
o indivíduo e o gênero humano. Pelo trabalho alienado o trabalhador
enriquece o gênero humano (a totalidade social) na mesma medida
em que empobrece sua existência individual, cuja finalidade última
deveria ser a objetivação do sujeito como ser genérico.
Diante do exposto fica claro que para Marx, sob dadas
condições que são histórico-sociais (e não naturais), o homem deixa
de ser sujeito de sua atividade vital convertendo-se em objeto dela.
Nestas condições não são mais os autores do desenvolvimento de
suas capacidades e de seu crescimento como pessoas, convertendo-
se em mercadorias de um tipo especial, aptas à produção de outras
mercadorias.
Portanto, o esvaziamento da existência humana em condições
de alienação abarca tanto sua expressão no âmbito do trabalho social
quanto no âmbito da vida pessoal, uma vez que a ordem das relações
políticas e econômicas subordina a si o próprio desenvolvimento da
consciência dos homens. Enfim, como afirma Lucien Sève (1979, p.
279), a economia doméstica reflete a economia política!
Em suma, o materialismo histórico postula que apenas pela
apropriação das objetivações humano genéricas foi e continua a
ser possível a transformação do ser orgânico, do ser meramente
biológico, em ser social, devendo-se a Marx e Engels a originalidade
desse pressuposto; para quem o trabalho representa a gênese do ser
social, o fenômeno central e decisivo da humanização. Na base deste
pressuposto anunciam o trabalho em sua dimensão ontológica, meio
pelo qual o homem estabelece um intercâmbio com a natureza definido
45

intencionalmente, fundamento do salto qualitativo que se processa do


animal ao homem.
Este processo de transformação resulta da atividade vital
humana, condição imprescindível para a plena realização da
humanização dos homens. Entretanto, a efetivação da atividade
objetivadora, social e consciente só é possível pelo trabalho realizado
ontologicamente, a demandar a superação das relações determinadas
pela alienação, cujo fundamento reside na propriedade privada dos
meios de produção, no sistema do dinheiro - no capital.

2 Materialismo Dialético ...

Conforme afirmamos anteriormente, denomina-se materialismo


histórico dialético à epistemologia marxiana. Até o presente,
dedicamo-nos aos preceitos centrais que constituem o materialismo
histórico, procurando explicitar quais são os fatores que convertem as
relações sociais de produção em bases das relações sociais e a realidade
numa totalidade objetiva em contínuo movimento. É exatamente na
busca de decodificação da realidade no trânsito metabólico homem-
natureza que a lógica dialética desponta no pensamento marxiano
como método, ou, como instrumento gnosiológico para a apreensão
do real em sua historicidade. Segundo Kopnin (1978)

A dialética materialista reflete, deste modo, as leis do movimento


dos objetos e processos do mundo objetivo, incluindo o homem e
sua sociedade, que atuam como princípios e formas de atividade
do pensamento. E neste sentido a dialética marxista desempenha,
em nova base filosófica, as funções quer de ontologia, quer de
gnosiologia, lógica e antropologia filosófica, sem reduzir-se a
qualquer uma delas separadamente ou a soma de todas (p. 65).

O materialismo dialético como método, sistematiza princípios


que orientam a construção do conhecimento de todos os aspectos de
um fenômeno, da realidade e sobretudo, das relações mútuas, das
46

interdependências que entre eles existem e por isso prima por ser um
método de compreensão do real como totalidade.
Mas para a efetiva compreensão desta assertiva torna-se
necessária uma breve digressão acerca da relação sujeito-objeto na
construção do conhecimento. Conforme expusemos em outro texto
(Abrantes e Martins, 2007) a referida relação sintetiza as formas
pelas quais o homem se relaciona com os fenômenos da realidade
construindo os conhecimentos imprescindíveis a essa relação. O
sujeito cognoscitivo é o ser humano, entendido como ser social e
histórico, o objeto a ser conhecido é a realidade, entendida como
produto da ação humana. Ocorre porém, que inexiste sujeito sem
apropriação do real, da mesma forma que inexiste realidade humana
independente das objetivações dos sujeitos. Portanto:

(...) a unidade sujeito-objeto reitera o papel do pensamento no


processo de conhecer a realidade, ao mesmo tempo em que
afirma a primariedade da realidade em relação ao pensamento.
O conhecimento não emana nem do pólo concreto, representado
pelo objeto (realidade), nem do pólo abstrato, representado pelo
sujeito (pensamento), concentrando-se no movimento entre esses
pólos, na relação entre a realidade e a consciência sobre ela
(Abrantes e Martins, 2007, p. 315).

Estas considerações visaram favorecer a compreensão de que


a dialética é adotada por Marx como possibilidade de superação da
dicotomia, da separação sujeito-objeto, ou, em última instância, dos
dualimos lógico formais que imperaram durante séculos no campo
científico.
Assim, antes de avançarmos em direção aos preceitos gerais
do método materialista dialético apresentemos, ainda que em linhas
bastante gerais, as principais diferenças entre a lógica formal e a
lógica dialética.
47

2.1 Lógica: lógica formal e lógica dialética

A lógica, cujo esteio é a filosofia, é definida como ciência dos


processos de pensamento (Kopnin, 1978; Novack, 1993). Seu objeto
é o processo de pensamento presente na formulação de princípios
explicativos, ou seja, é o sistema de pensamento que conduz
determinado modo de raciocínio. Os filósofos que se dedicam à lógica
investigam como o pensamento se articula internamente ao visar a
construção do conhecimento, procurando identificar as premissas
presentes na formulação dos juízos acerca dos fenômenos.
Podemos afirmar que a lógica é tão antiga quanto a própria
filosofia, devendo-se aos trabalhos filosóficos dos antigos gregos
as suas primeiras formulações. Foi Aristóteles (384-322 a.C) quem
pioneiramente compilou, classificou e sistematizou-as num sistema
único denominado lógica formal. Porém, a proposição do sistema
aristotélico não é sinônimo de abrangência absoluta de todas as
formulações filosóficas que já existiam, pois ele, para assegurar a
coerência interna nesse sistema, descartou a dialética.
A palavra dialética advém do grego dialektiké que significa
debater ou conversar para se chegar à verdade descobrindo e
superando a contraditoriedade presente no raciocínio do interlocutor.
Seu proponente foi Heráclito (530-428 a.C.), para quem a divergência
era o fator determinante no movimento das idéias e a transformação
de todos os fenômenos, a implacável expressão da existência. A este
filósofo deve-se a tão conhecida frase acerca do fato que nenhum
homem poderá banhar-se duas vezes nas águas do rio, porque nem o
homem nem o rio serão mais os mesmos, embora em seu tempo suas
idéias não tenham recebido grandes atenções.
Foi muito posteriormente, com Hegel (1770-1831) que a
dialética ressurgiu na filosofia como importante objeto de estudo,
devendo-se a ele a formulação da dialética como método propositivo
do princípio da contradição, fundamento do movimento e da
transformação das idéias (dialética idealista).
Marx e Engels foram discípulos de Hegel mas, na busca por um
método de decodificação do real, para a formulação do materialismo
dialético, reinterpretaram a dialética hegeliana superando o viés
idealista e espiritualista que nela imperava. Marx considerava que
48

Hegel estava correto porém, suas idéias estavam colocadas de cabeça


para baixo. Para Hegel, o movimento do pensamento, a Idéia, cria
a realidade, ou seja: o real é a manifestação fenomênica do ideal.
Diferentemente para Marx, o movimento do pensamento é o reflexo
do movimento do mundo real, que existe por anterioridade em relação
à consciência.
Tecidas estas considerações históricas gerais sobre a lógica
formal e a lógica dialética, outra consideração é importante, qual seja:
a lógica dialética não descarta ou exclui a lógica formal, mas outrossim,
incorpora-na por superação. Referindo-se ao método materialista
histórico dialético em suas expressões lógicas, Saviani (1986, p. 11)
afirma que a lógica formal e a lógica dialética não se excluem porque
possuem, inclusive, objetos diferentes. O objeto da lógica dialética
é o processo de construção do concreto pelo pensamento, enquanto
o objeto da lógica formal é o processo de construção da forma do
pensamento. A primeira é, portanto, lógica concreta, a segunda, lógica
abstrata. Como a apreensão do concreto não ocorre sem a mediação
do abstrato, a lógica formal integra-se à lógica dialética, tornando-se
parte dela.
Tal como afirmado por Hegel (apud Novack, 1993, p. 12) ... “nada
se conhece realmente até que se conheça seu oposto”. Portanto, o real
conhecimento e utilização da lógica dialética demanda o conhecimento
e utilização da lógica formal e vice-versa. Nesta direção, vejamos
quais são as principais leis da lógica formal e, na seqüência, da lógica
dialética. Cabe observar que o tratamento sintético ora dispensado
às referidas leis decorre do objetivo introdutório deste texto, uma
vez que complexidade das mesmas comportaria, indiscutivelmente,
estudos específicos.

2.1.1 A lógica formal e suas leis básicas

Segundo Kopnin (1978, p.71/73), os princípios básicos da


lógica formal são: lei da identidade; lei da inadmissibilidade da
contradição e lei do terceiro excluído.
A lei da identidade, seu princípio central, aponta que qualquer
dado é sempre igual a si mesmo. Se A é igual a A, permanecerá
49

como tal sob qualquer circunstância. De acordo com esta lei, nada
pode ser e não ser ao mesmo tempo, isto é, ser a si mesmo e a algo
distinto concomitantemente. Suas mais significativas expressões na
construção do conhecimento residem na classificação e identificação
dos fenômenos. Graças ao princípio da identidade os dados podem
ser agrupados, categorizados e classificados mediante a identificação,
por comparação, de suas semelhanças e diferenças.
A lei da inadmissibilidade da contradição afirma a absoluta
distinção entre identidade e diferença, operando como corolário
da lei da identidade. Se A é igual a A (princípio da identidade),
não pode ser Não A, ou seja, nega-se a diferença na essência das
coisas. Este princípio, possibilitando o discernimento da diferença,
subsidia a análise, auxiliando a parcialização (ou “recorte”) dos
distintos aspectos de um fenômeno apreendendo-se cada um deles
em sua essencialidade particular. Conforme esta lei, se A é um juízo
(proposição do pensamento) verdadeiro, no mesmo sistema dedutivo
não pode ser verdadeiro o juízo contrário a A, ou seja, nesta forma de
raciocínio subtrai-se um entre vários juízos preterindo-se os outros
que o contrariam.
A lei do terceiro excluído postula que se dois juízos que se
contrariam não podem ser verdadeiros e falsos ao mesmo tempo
(inadmissibilidade da contradição), se um deles é verdadeiro o outro
é falso e vice-versa. Assim, um juízo é e só pode ser ele mesmo,
isto é, não pode ser parte de duas classes opostas ao mesmo tempo.
Quando duas proposições opostas se confrontam, ambas não podem
ser verdadeiras e falsas concomitantemente.
Os princípios da lógica formal como recursos metodológicos
para a construção do conhecimento alcançam seu apogeu a partir
do século XVII pelas mãos de Francis Bacon (1561-1626) e Renée
Descartes, ou, Renato Cartesius, como ele assinava em latim (1596-
1650) que elegeram a veracidade do conhecimento como objeto de
suas reflexões filosóficas. Ao primeiro deve-se a proposição pioneira
da experimentação como critério de cientificidade e ao segundo, a
ênfase na razão e a afirmação do universo constituído por apenas duas
substâncias, mente e matéria, a partir da qual instalam-se os inúmeros
dualismos característicos do pensamento científico, isto é, a ciência
cartesiana.
50

2.1.2 A lógica dialética e suas leis básicas

Nas formulações epistemológicas modernas, a lógica formal


conserva seu significado como fundamento do conhecimento
dedutivo, não obstante promover a apreensão da realidade como dado
estático e parcial. Entretanto, o real, aquilo que existe de fato, não
se institui em alternativas excludentes (lógica do ou isso ou aquilo),
mas sim, na alternância entre, que se efetiva pelas contradições que
encerra. Diferentemente da lógica formal, a lógica dialética volta-se
para o estudo do movimento, da contradição e das mudanças que elas
promovem. Dentre suas leis básicas destacam-se: a lei da totalidade;
a lei da contradição e a lei do movimento.
Ao apreender os fenômenos em sua totalidade a dialética os
afirma como sínteses de múltiplas determinações, ou seja, a realidade
congrega fenômenos que são essencialmente intervinculados e
interdependentes e, assim sendo, é impossível construir qualquer
conhecimento objetivo, explicar de fato o real, levando-se em conta
as partes ou os aspectos isolados que lhe constituem. Por esta razão,
o método dialético abarca o existente como um todo único no qual
os fenômenos articulam-se organicamente. Postula que para serem
compreendidos objetivamente os dados precisam ser reconhecidos
sob o ângulo dos condicionantes que os cercam.
A lei da contradição parte do princípio que todos os objetos e
fenômenos da natureza encerram contradições internas. Ao contrário
do pressuposto formal da identidade, postula que tudo é e não é
ao mesmo tempo. Entretanto, não se trata de reconhecer opostos
confrontados exteriormente, mas tê-los como interiores um ao outro,
no que reside a denominada identidade dos contrários. Trata-se da
afirmação da unidade indissolúvel dos opostos que contrapondo-se
a si mesmos, transformam-se continuamente. Tomemos, a título de
exemplo, uma dada afirmação A: como tal, a afirmação A se sustenta
na unidade com seu oposto, na unidade com a afirmação B. Na tensão
entre seus opostos as afirmações A e B se transformam. Negando-
se mutuamente revelam-se em outra positividade, afirmação C, que
conterá igualmente o germe de sua negação e assim, sucessivamente.
Dai que todo e qualquer desenvolvimento não é outra coisa, senão, o
movimento sintetizado pela luta dos contrários.
51

A lei do movimento reflete a constatação da realidade como


incessante transformação e renovação. Por isso, o método dialético,
além de pressupor sua apreensão como totalidade e luta de opostos,
exige seu reconhecimento do ponto de vista de seu movimento e
desenvolvimento.
Cada fenômeno, cada objeto, deve ser captado em seu
trânsito, naquilo que congrega não apenas em seu estado atual mas,
especialmente, como chegou a ser o que é e como poderá ser diferente.
Assim, o desenvolvimento revela-se como resultado da acumulação
de mudanças quantitativas expressas em mudanças qualitativas.
Toda transformação é uma passagem da quantidade à qualidade, é
um movimento progressivo, ascendente, que perpassa do simples ao
complexo.
Em suma, a lógica formal e a lógica dialética apresentam
enfoques distintos no estudo científico dos fenômenos e para se
expressarem em suas máximas possibilidades devem operar em
unidade. A lógica dialética como lógica da totalidade não prescinde
da lógica formal mas revela os limites nela presentes ao se pretender
como metodologia universal para a elaboração do conhecimento
científico, e é neste sentido que a incorpora por superação.

2.2 Premissas gerais do método materialista histórico


dialético

Uma vez apresentadas as premissas que balizam a epistemologia


marxiana, vejamos agora quais são as suas formulações metodológicas
gerais.
Para o materialismo histórico dialético a construção do
conhecimento objetivo demanda a superação da apreensão aparente
em direção à apreensão essencial do fenômeno. Postula que o
mundo empírico representa apenas a manifestação fenomênica da
realidade em suas definibilidades exteriores, isto é, os fenômenos
imediatamente perceptíveis desenvolvem-se à superfície da essência
do próprio fenômeno. Fundamentando-se neste princípio marxiano,
Kosik (1976, p.168) afirma que a essência do fenômeno não está posta
explicitamente em sua pseudoconcreticidade (concretude aparente) e
52

não se revela de modo imediato, mas sim, pelo desvelamento de suas


mediações e de suas contradições internas fundamentais.
A construção do conhecimento demanda então, a apreensão
do conteúdo do fenômeno, prenhe de mediações históricas concretas
que só podem ser reconhecidas à luz das abstrações do pensamento,
isto é, do pensamento teórico. Portanto, o conhecimento calcado na
superação da aparência em direção à essência requer a descoberta
das tensões imanentes nas intervinculações entre forma e conteúdo.
Desse modo, se queremos descobrir a essência de um dado objeto,
precisamos caminhar das representações primárias e das significações
evidentes em sua imediatez sensível em direção à descoberta das suas
múltiplas determinações ontológicas do real. Assim, não nos basta
o que é visível aos olhos pois o conhecimento da realidade em sua
objetividade requer a visibilidade promovida pela máxima inteligência
dos homens.
Uma outra exigência para o estudo dos fenômenos em sua
essencialidade concreta diz respeito à sua decodificação à luz da
dialeticidade singular-particular-universal. Segundo Lukács (1970)
nos nexos existentes nessa dialeticidade residem os fundamentos para
a autêntica compreensão da realidade. Em sua expressão singular, o
fenômeno revela o que é em sua imediaticidade e, em sua expressão
universal revela sua complexidade, suas conexões internas, as leis de
seu desenvolvimento e evolução, enfim, a sua totalidade histórico-
social.
Ocorre que nenhum fenômeno se expressa apenas em sua
singularidade ou universalidade. Como opostos, se identificam, e a
contínua tensão entre eles se manifesta na configuração particular
do fenômeno. É apenas na particularidade que ele (fenômeno)
assume as especificidades pelas quais a singularidade se constitui em
dada realidade e de modo determinado, porém, não completo, não
universal.
Em suma, a implementação do método marxiano pressupõe
como ponto de partida a apreensão do real empírico, imediato, que
convertido em objeto de análise por meio dos processos de abstração
resulta numa apreensão de tipo superior, expressa-se como concreto
pensado. Porém, esta não é a etapa final do processo, uma vez que
as categorias interpretativas, as estruturas analíticas constitutivas
do concreto pensado serão contrapostas em face do objeto inicial,
53

agora captado não mais em sua imediatez mas, em sua totalidade


concreta. Este processo pode ser assim sintetizado: parte-se do real
aparente (empírico), procede-se à sua exegese analítica (mediações
do pensamento), retorna-se ao real, agora captado como real concreto
... como síntese de múltiplas determinações. Neste sentido, o método
marxiano tem a prática social como referência nuclear da construção
do conhecimento e nela residem os seus critérios de validação.

Finalizando...

A psicologia socioistórica representa os inúmeros esforços


para a formulação de explicações acerca do psiquismo sem desgarrá-
lo das condições objetivas que sustentam sua formação, encontrando
no materialismo histórico dialético o aporte filosófico de suas
proposições.
Os postulados da epistemologia marxiana se concretizam nela
tanto no plano teórico, como estofo de seus princípios e concepções
científicas gerais, quanto no plano metodológico, isto é, nas
articulações entre os fundamentos teóricos e os dados empíricos de
investigação.
Neste sentido, o estudo dos fundamentos epistemológicos
da psicologia socioistórica representa o primeiro passo para a
compreensão de seus postulados. Portanto, tendo em vista a orientação
desse estudo, apresentamos algumas questões que possam auxiliá-lo:

1 – Em “O significado histórico da crise da psicologia” Vigotski


destaca que o problema desta ciência não é de objeto mas de método.
Explique esta afirmação.

2 – Para uma efetiva compreensão do desenvolvimento humano


devem ser levados em conta, sempre, os seus constituintes bio – psico
- sociais. Esta afirmação é representativa da lógica formal ou da lógica
dialética. Justifique sua resposta.

3 – Na realidade, uma pessoa nunca é igual a si mesma, pois,


todos os fenômenos mudam constantemente. Quais leis da lógica
54

formal são contrariadas nesta afirmação. Explique-as.

4 - Interprete o poema musical indicado fundamentando-se nas


leis da lógica dialética: “Debulhar o trigo. Recolher cada bago do
trigo. Forjar do trigo o milagre do pão e se fartar de pão. Decepar a
cana. Recolher a garapa da cana. Roubar da cana a doçura do mel,
se lambuzar de mel. Afagar a terra. Conhecer os desejos da terra.
Cio da terra, propícia estação, de fecundar o chão” (Cio da Terra,
Milton Nascimento).

5 – Analise, fundamentando-se no estudo do texto em pauta:

“O que eu acho é que nunca vivemos tanto na caverna de Platão


como hoje. Porque as próprias imagens que nos mostram da
realidade, de tal maneira, substituem a realidade. Nós estamos
no mundo a que chamamos mundo audiovisual. Nós estamos
repetidamente a repetir a situação das pessoas aprisionadas
ou atadas na caverna de Platão, olhando em frente, vendo
sombras e acreditando que estas sombras são realidade” (José
Saramago).

Referências Bibliográficas:

Abrantes, A. e Martins, L.M. A produção do conhecimento científico:


relação sujeito-objeto e desenvolvimento do pensamento. Botucatu:
Interface – Comunicação, Saúde e Educação, v. 11, n. 22, p.
313/325.
Duarte, N. A individualidade para si: contribuição a uma teoria
histórico-social da formação do indivíduo. Campinas: Autores
Associados, 1993.
Kopnin, P.V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Kosik, K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1976.
55

Leontiev, A.N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros


Horizonte, 1978.
Lukács, G. Introdução a uma Estética Marxista. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1970.
Marx, K. Elementos fundamentales para la crítica de la economia
política. México: Siglo Veintiuno Editores, 1986.
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70,
1989.
Novack, G. Introdução À Lógica Marxista. Belém: Universidade
Federal do Pará, 1993.
Saviani, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São
Paulo: Cortez/Autores Associados, 1986.
Sève, L. Marxismo e a teoria da Personalidade. Lisboa: Horizonte
Universitário, v. 2, 1979.
Shuare, M. La psicología soviética tal como yo la veo. Moscú:
Editorial Progresso, 1990.
Tuleski, S. Reflexões sobre a Gênese da Psicologia Científica. In:
Duarte, N. (org.) Crítica ao Fetichismo da Individualidade. Campinas:
Autores Associados, 2004, p. 121/144.
Vigotski, L.S. Obras Escogidas. Tomo I. Madrid: Visor, 1997.
56
57

POLÍTICAS PÚBLICAS, INSTITUIÇÕES e SAÚDE

Osvaldo Gradella Júnior1

INTRODUÇÃO

Esse texto tem uma função introdutória em relação às


discussões necessárias para a compreensão das Políticas Públicas, a
relação com o Estado liberal, com as instituições organizadas para sua
viabilização, bem como para a organização da sociedade capitalista.
Recorremos aos pressupostos teóricos do materialismo histórico-
dialético, porém não temos a pretensão de esgotar essas discussões
pelo seu caráter polêmico e contraditório. Apresentamos também as
políticas públicas no Brasil, com destaque especial para a saúde e
saúde mental, articulando-as com as intervenções dos profissionais
de Psicologia.
A sociedade burguesa que vinha se preparando desde o
século XVI, começa se tornar hegemônica no século XVIII com
a consolidação do modo de produção capitalista (MARX, 1983).
A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América
(E.U.A.) de 1776, que reivindicava a liberdade, e igualdade para
todos os seres humanos, bem como aqueles direitos considerados
inerentes ao homem como ser social, independentemente de sua raça,
sexo, idade e religião, em sua primeira versão dos direitos do homem
é a expressão materializada do ideário liberal burguês, com sua
concepção de natureza humana. Assim são lançados os fundamentos
teóricos das modernas democracias liberais e social-democratas.
Inspiradas na Declaração de Independência dos E.U.A. (1776), as
declarações aprovadas por três assembléias constituintes francesas

1
Docente do Depto de Psicologia da UNESP/Bauru nas disciplinas de Saúde Pública e Saúde Mental,
Psicologia e Comunidade, Saúde e Trabalho, Políticas Públicas, Instituições e Saúde. Mestre em Educação
– IESAE-FGV/RJ e Doutor em Educação -FFC-UNESP/Marilia.
58

após a Revolução Francesa (em 1789, 1793 e 1795), estabelecem


os direitos civis na França pós-monárquica. Em 10 de dezembro de
1948, as prerrogativas universais aprovadas pela Assembléia Geral
das Nações Unidas (ONU) estabelecem os direitos fundamentais da
pessoa humana, atualizando o conteúdo das declarações burguesas
anteriores, com ênfase nos direitos individuais, como proscrição da
escravidão, da tortura, direito à cidadania e à liberdade de expressão,
direito de ir e vir, de consciência, direito à educação e direito à
saúde.
Esses fundamentos teóricos são determinados pelas necessidades
de consolidação do modo de produção capitalista, pois somente o
homem livre e sujeito da razão, dotado de direitos e deveres é que
estará capacitado para a sociedade contratual e para se adequar a
nova organização produtiva, ou seja, vender a sua força de trabalho,
posto que a burguesia ascendente é que vai se tornar a proprietária dos
meios de produção, restando aos outros homens, somente a sua força
de trabalho. Agora a sociedade passa a dividir-se em duas classes:
os possuidores da propriedade (burguesia) e os trabalhadores sem
propriedade (proletariado). Estas classes fundamentais e opostas em
relação aos interesses da sociedade são a força motriz que determinam
as transformações econômicas e sociais expressas pela luta de classes.
Essa forma de organização econômica se realiza pela divisão social
do trabalho, pela existência do trabalho alienado, ou seja, pelo “não
trabalho”(MARX, 1993).
Para Marx (1998, p. 26), “A divisão do trabalho só se torna
efetivamente divisão do trabalho a partir do momento em que se
opera uma divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual.”.
Acrescente-se ainda, que “... a atividade intelectual e a atividade
material - o gozo e o trabalho, a produção e o consumo - acabam
sendo destinados a indivíduos diferentes...”(1998, p.27). “Assim,
divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas -
na primeira se enuncia, em relação a atividade, aquilo que na segunda
é enunciado em relação ao produto dessa atividade” (MARX, 1993,
p. 27-28), ou seja, a propriedade privada só aparece com a divisão
social do trabalho que se consolida no modo de produção capitalista.
O trabalho se modifica ao perder o seu caráter concreto e agora terá
a forma abstrata de venda da força de trabalho. Aos trabalhadores
sem propriedade só restará a possibilidade da venda da sua força de
59

trabalho, pela qual realizam ações cujos fins não são por eles mesmos
definidos.
As conseqüências deste processo mostram as origens
estruturais da exclusão social, pois a princípio, as oportunidades
estavam garantidas para todos, mas isto nunca ocorreu na realidade
pois a essência do modo de produção capitalista é a exploração do
homem pelo homem, a mais valia e a propriedade privada. Ao não se
realizarem de forma igualitária, possibilitam a atribuição ao indivíduo
da responsabilidade pelo seu fracasso e naturalizam-se as relações de
desigualdade, mascarando esta situação. Diante dessa contradição, já
no séc. XVIII, os arautos da modernidade, alicerçados no discurso
médico cientificista, criaram as instituições de correção e ajuste moral.
Desta forma, todas as alterações, individuais e sociais produzidas pela
nova forma de organização da sociedade, são passíveis de tratamento
e cura (ALBUQUERQUE, 1978 e RESENDE, 1987).
A partir daí, todas as intervenções serão dirigidas ao indivíduo
que não se ajusta à nova lógica produtiva, abafando-se as contradições
sociais e tornando a desigualdade social e a exclusão em uma realidade
sofrida e parte da natureza do homem. Estes indivíduos serão os
loucos, os deficientes, os idosos, os mendigos e todos os deserdados
do capital.
Desta forma, constrói-se o espaço social necessário para
as práticas assistencialistas e filantrópicas enquanto contribuição
daqueles que se compadecem dos infortúnios vividos por sujeitos
que, de uma forma ou de outra, não conseguiram a sua ascensão
social. Estas práticas não são exclusivamente voltadas para as
classes populares. Elas emergem em função de que o Estado tem que
garantir a produção e reprodução do capital e necessita, para isso,
não só os sujeitos produtivos em si, mas garantir ideologicamente a
inserção desses sujeitos no processo produtivo e as condições de vida
minimamente adequadas para tal. O homem livre das Declarações de
Direitos já inexiste enquanto possibilidade no séc. XIX, pois “... essa
mesma sociedade, ao subsumir o indivíduo sob sua classe, ao submetê-
los às leis econômicas com se fossem naturais (...) fez dos indivíduos
livres nada mais que escravos da alienação...”(HELLER,1970, p. 75).
Assim, começam a se desenvolver não só os movimentos operários,
mas também a adesão dos intelectuais a esses movimentos. Esses
movimentos vão se confrontar com a burguesia e com o Estado,
60

seu representante, reivindicando, em geral, os equipamentos sociais


enquanto direito de cidadania e políticas públicas que assegurassem
as condições de vida adequada.

O ESTADO E AS INSTITUIÇÕES

Temos como ponto de partida duas afirmações apresentadas


por Marx no Prefácio da Introdução da Crítica da Economia Política,
que suscita uma gama variada de análises e interpretações, sejam em
relação ao Estado, como em relação às instituições produzidas no
capitalismo. São as seguintes:

A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de


fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente
assim: na produção social de sua existência, os homens
estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes
de sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas
materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre o qual se
eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem
determinadas formas de consciência social. O modo de produção
da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social,
política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens
que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente,
determina a sua consciência. (MARX, 1983, p. 24).

A transformação da base econômica altera, mais ou menos


rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais
alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração
material - que se pode comprovar de maneira cientificamente
rigorosa - das condições econômicas de produção, e as formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo,
as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência
61

deste conflito, levando-o às suas últimas conseqüências. (MARX,


1983, p. 25).

Ou seja, a base ou infra-estrutura é a estrutura econômica


da sociedade e a superestrutura são as formas do Estado e da
consciência social. Essas afirmações de Marx, ao mesmo tempo em
que compreendem as determinações econômicas e as instituições
que surgem para sua sustentação ideológica, impõe, para alguns
autores, a idéia de um reducionismo econômico. Porém, para Marx
ela é histórica, desigual e compatível com a eficácia própria da
superestrutura, ou seja, a produção material tem uma forma histórica
definida. Essa relação entre base material, a estrutura econômica da
sociedade e a superestrutura, instituições e ideologia, são os pontos
nevrálgicos das diferenças e divergências.
As instituições com função disciplinar são produtos das
mudanças estruturais no momento em que o modo de produção
capitalista se afirma enquanto modelo hegemônico e a burguesia
ascende ao poder. A organização do Estado vai utilizar da idéia de
neutralidade, ou seja, aquele que vai possibilitar a articulação de
todos os equipamentos sociais necessários ao progresso da sociedade
e garantir os direitos do cidadão como previstos nas Declarações
citadas anteriormente, compreendido como homem livre, a noção de
indivíduo, que agora será objeto de compreensão científica e sujeito
à disciplina, motivados pela filosofia iluminista e após, pela filosofia
positivista (ALTHUSSER, s.d. e ALBUQUERQUE, 1986).
Porém, o Estado não se limita à função repressiva, mas
tem um papel essencial nas relações de produção e na delimitação-
reprodução das classes sociais e atua também “...de maneira positiva,
cria, transforma, realiza.” (POULANTZAS, p.35), e ainda tem “...
um papel específico na organização das relações ideológicas e da
ideologia dominante.” (POULANTZAS, p. 33). Ideologia que não
consiste “simplesmente num sistema de idéias”, mas “... também
uma série de práticas materiais extensivas aos hábitos, aos costumes,
ao modo de vida dos agentes, e assim se molda como conjunto das
práticas sociais, aí compreendidas as práticas políticas e econômicas.”
(POULANTZAS, p.33). É nessa série de práticas materiais que vão se
inserir as políticas públicas com o Estado cumprindo sua função nas
62

relações de produção, bem como na relação com as classes sociais, ou


seja, no delineamento da sua presença na luta de classes.
Essa afirmação nos possibilita compreender a organização
do Estado burguês, as instituições construídas como mediações
necessárias para desenvolver as formas ideológicas, as políticas
públicas como uma das formas de expressão da luta de classes e o
processo saúde/doença como orientação principal na organização da
vida social no modo de produção capitalista.
A aparente harmonia entre as Declarações de Direitos do
Homem e o Estado liberal democrático, se revela foco constante
de contradições, pois o a função do Estado é garantir a produção e
reprodução do capital, capital esse que para sua manutenção tem na
sua gênese a exploração do homem pelo próprio homem. Portanto
essa relação de neutralidade e garantia de direitos do indivíduo se
mantém somente no aspecto formal em alguns casos e em outros
nem nesses aspectos, p.ex.: as ditaduras que proliferaram na América
Latina, as intervenções militares americanas em nome da liberdade,
etc. Mais ainda, o modo de produção capitalista dividiu a sociedade
em duas classes antagônicas e será a luta dessas classes - a burguesia
para a manutenção dessa ordem e o proletariado para a superação
dessa mesma ordem, os elementos constitutivos das lutas sociais e da
transformação da sociedade.
O Estado e a burguesia ao propagarem os valores do
liberalismo como instrumento da ideologia, possibilitaram por sua
vez, a apropriação desses valores pelo proletariado que, ao não tê-los
vai se organizar para conquistá-los. Por sua vez, o desenvolvimento
das forças produtivas impõe necessidades de transformações para
a manutenção do modo de produção capitalista, que possibilitará o
atendimento de determinadas reivindicações sociais. Será o nível de
organização do proletariado que garantirá a extensão e a manutenção
das conquistas sociais, tanto que, em alguns lugares com alto nível
de exploração da força de trabalho, as condições e os direitos sociais
são mínimos, p.ex.: China. Conseqüentemente nos países de maior
desenvolvimento do capitalismo, p.ex.: França, temos melhores
condições de vida e de direitos para a população. Porém, essas
conquistas não se transformam em direitos inalienáveis e necessitam
ser garantidos constantemente pela luta do proletariado, pois senão,
são retomados pelo capital.
63

Althusser (s.d.) compreende que para o Estado cumprir


a sua função no modo de produção capitalista que é assegurar a
reprodução das condições de produção e a reprodução das forças
produtivas, necessita da ideologia como forma de legitimação e
recorre a construção de um aparato Institucional que contribua para
produzir uma nova forma de organização social desde a família até
o Estado propriamente dito, pois só existe prática através e sob uma
ideologia e só existe ideologia através do sujeito e para sujeitos. Ou
seja, a ideologia tem uma base material e necessita dos sujeitos para
se produzirem e reproduzirem. Essa relação só se viabiliza com as
instituições construídas para esses fins.
Para isso conta com os Aparelhos Repressivos do Estado
(Governo, Administração, Polícia, Exército, Tribunais, Prisões e
Judiciário) e com os Aparelhos Ideológicos do Estado (Familiar,
Escolar, Religioso, Informação, Sindical, Político, Cultural, Jurídico)
que, por sua vez. É importante observar que essa separação refere-
se ao predomínio da função dos aparelhos, mas não funcionam
exclusivamente pela repressão e nem exclusivamente pela ideologia
(ALTHUSSER, s.d.).

ANÁLISE INSTITUCIONAL

Essas discussões possibilitaram a afirmação do movimento


institucionalista e da análise institucional que desde os anos 60,
surge na Europa como movimento de superação da Psicanálise, da
Psicossociologia e da Sociologia das Organizações. Conjuga naquele
momento histórico, todas as críticas que eram feitas no bojo de um
movimento mundial, que ia das críticas aos Partidos Comunistas após
o XX PCUS em 1956, ao elogio da Revolução Cubana como exemplo
a ser seguido, passando pelas críticas ao modelo universitário, ao
hospital psiquiátrico e chegando as questões feministas e de liberação
sexual. A questão do poder era o que aproximava essa diversidade de
questões e de referenciais teóricos (BARBIER, 1985; BAREMBLIT,
1992).
Tem como base histórica os movimentos de crítica institucional
que surgem principalmente nas áreas de Psiquiatria e da Pedagogia
64

e que podem ser divididos em dois grupos. O primeiro é daqueles


que buscam a renovação, modernização ou reforma das instituições a
“partir de dentro”, visando sua sobrevivência “em novas formas”. A
esse grupo pertencem os movimentos de “Comunidades Terapêuticas”
e “Psicoterapia Institucional”, na área de Psiquiatria e de “Pedagogia
Institucional”, na área de Pedagogia. Têm em comum a proposta
de adoção de metodologias ativas, de criação de grupos, conselhos,
cooperativas ou clubes auto-administrados que, no interior das escolas
e dos hospitais, favoreçam a socialização e a participação ativa dos
doentes e dos alunos nos processos de cura ou de aprendizagem.
Ao segundo grupo pertencem aqueles que, com base em uma
análise sócio-política, colocam em cheque a própria sobrevivência
dessas instituições, dando origem a corrente anti-institucional. A ela
pertencem as correntes da antipsiquiatria, da antipedagogia e da anti-
escola (GRADELLA, 1995, mimeo.).
A influência da Análise Institucional se faz sentir primeiramente,
na Europa, junto a organizações de ensino (escolas, universidades)
e entidades ou organismos assistenciais (principalmente na área de
saúde). Suas intervenções chegam a produzir modificações profundas
nos contextos onde atua. Os objetivos do treinamento ou formação
(nas intervenções sócio-analíticas) passam a ser a liberação das forças
instituintes, a análise e a transformação das instituições (GRADELLA,
1995, mimeo.).
Na América Latina a conjuntura sócio-político-econômica
específica, marcada pela depressão econômica, inflação incontrolável,
desequilíbrios entre preços e salários, incremento dos monopólios,
dependência externa, ascensão dos governos militares, violenta
repressão político-militar e uma pauperização geral, proporcionou
a agudização das contradições infra-estruturais e ideológicas e as
conseqüentes reações populares através de suas organizações civis,
sindicais e partidárias, em particular dos trabalhadores de saúde mental,
e um incremento (promissor, mas ainda incerto) de participação
político-cientifica da Psicanálise no processo de transformação da
sociedade e de suas instituições (GRADELLA, 1995, mimeo.).
Assim é que a partir da produção teórica de Enrique Pichón
Rivière e do pioneirismo da obra de José Bleger, seguidos por
trabalhos elaborados pelo Grupo Plataforma Argentino durante a
ruptura político-científica com a Associação Psicanalítica Argentina,
65

bem como, do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental da


Argentina na década de 1970, aparecem as origens e a continuidade
do pensamento grupalista e institucionalista psicanalítico, bem como,
a questão da consciência política, a crítica à família e às instituições
burguesas, entre outros temas semelhantes (GRADELLA, 1995,
mimeo.).
No Brasil vimos a Análise Institucional se instituindo como
prática e pensamento, a partir dos anos 70, procurando ligar às
práticas intervencionistas a questão do político - um campo que
por exigência das neutralizações sofridas na vigência de um regime
militarista e burocrático-ditatorial, foi excluído e negado em todos os
níveis de ação social. As análises e discussões surgidas no seio desses
movimentos contribuem decisivamente para a depuração do conceito
de Instituição, base teórica da análise institucional. Georges Lapassade
(1983) e René Lourau (1995) são os principais responsáveis por essa
sistematização. A partir desses autores define-se que:
- A Instituição não se confunde com o Estabelecimento. O
estabelecimento ou grupos de estabelecimento constituem o nível
das organizações que se definem como “conjuntos práticos-concretos
organizados para determinados fins”. Várias instituições podem
atravessar os estabelecimentos. Exemplificando, utilizaremos a
escola que, enquanto um estabelecimento em sua forma material,
produz e reproduz instituições como: quem sabe e quem não sabe;
quem aprende e quem não aprende; quem pensa e quem trabalha;
quem corrige e quem é corrigido; quem dirige e quem é dirigida e
inúmeras outras;
- A Instituição é um conceito que explica o modo pelo qual
se reproduzem, no seio das organizações de grupos, as formas de
relações sociais predominantes na sociedade. Como tal, está presente
ou atravessa todos os níveis de uma determinada formação social;
- O conceito de Instituição implica na análise dos processos
de institucionalização. Este processo supõe sempre uma relação
de oposição entre forças instituintes versus forças instituídas. O
instituído não se impõe como um dado exterior aos homens, mas
se conserva como tal por um processo ativo de manutenção que
permanentemente se opõe às novas forças institucionais que tendem
para desinstitucionalização e reinstitucionalização;
A ordem instituída produz como efeito, o esquecimento das
66

origens do instituído, a repressão social do conhecimento acerca dos


conflitos de interesse que presidiram o processo de institucionalização
e promove ou favorece a ignorância institucional. Em conseqüência,
as instituições se naturalizam. Produzidas pela história, acabam
sendo vistas como fixas, universais, como um dado social, como uma
condição necessária da vida das sociedades. Ao reduzir as instituições
ao sistema de leis, regras, normas, costumes, tradições, que o indivíduo
encontra na sociedade (o instituído), desconsideram (ou negam) a
ação das forças instituintes e colocam-se a serviço do instituído.

POLÍTICAS PÚBLICAS

Por sua vez, as políticas públicas se expressam através das


instituições, tendo como objetivo dar respostas, não só às reivindicações
da população, como também para organizar e reorganizar a sua função
ideológica, procurando garantir a reprodução do capital. O Estado
liberal burguês, tal como concebido no modo de produção capitalista,
afirma-se no sentido da representação de toda a população de um país
e responsável por suprir essa mesma população dos equipamentos
sociais de consumo coletivo necessários para a garantia da vida em
todas esferas de existência. Uma população com direitos e deveres de
cidadão garantidos constitucionalmente (FALEIROS, 1986).
Assim, as políticas públicas passam a ser um dos elementos
fundamentais para que sejam assegurados esses direitos. As Políticas
Públicas são os princípios norteadores das ações a serem implementadas
em uma determinada área social, tais como: saúde e educação. Esses
princípios norteiam qualquer ação, pública ou privada, e estão sob o
controle do Estado. Essas políticas nem sempre estão adequadamente
explicitadas e podem camuflar as intenções de determinadas ações,
tornando-as obscuras para a população que delas não se beneficiam.
As Políticas Públicas se afirmam enquanto práticas do Estado moderno
consolidado no modo de produção capitalista, principalmente nos
países em desenvolvimento e do capitalismo periférico (FALEIROS,
1986). Esses países passam a ser prioritários nessa nova fase de
expansão do capital, seja para impedir o desenvolvimento das idéias
67

socialistas, como para consolidar a hegemonia política e econômica


norte-americana surgida particularmente pós-Segunda Guerra
Mundial e na chamada Guerra Fria (confronto político, econômico,
ideológico, militar entre EUA/ antiga URSS).
Nesse período se propagam pelos países da América Latina
uma série de políticas desenvolvimentistas pelos organismos
internacionais, tais como Organização das Nações Unidas (ONU),
Organização do Estado Americano (OEA), Comissão Econômica
para América Latina e Caribe (CEPAL), Banco Interamericano para
o Desenvolvimento (BID) e a “Aliança para o Progresso”. Essas
políticas têm um caráter de política pública no sentido de que suas
ações dizem diretamente aos campos de consumo coletivo (transporte,
habitação, saúde, assistência social, lazer), porém expressam o alto
grau de ingerência e dependência dos países de capitalismo periférico
do imperialismo norte-americano. Mais ainda, essas ações tinham
como objetivo a modernização dos setores atrasados e pobres e sua
adaptação ao capitalismo avançado (SAWAIA, 1996).
No Brasil, essas iniciativas se articulam com o
desenvolvimentismo dos anos 50 mas que são interrompidas de uma
forma brusca pelo Golpe Militar de 1964. A partir daí, o investimento
em políticas de privatização nesses campos de consumo coletivo
passa a ser a política pública do Regime Militar. Apesar de sabermos
das políticas públicas existentes na Educação, em relação à criança
e ao adolescente, aos idosos e políticas sociais tal como a Bolsa
Família, nos deteremos em específico na saúde e saúde mental, por
compreendê-las como aquelas que foram e continuam sendo produzidas
e implementadas em um contexto que expressa as contradições do
Estado na relação público/privado, bem como os conflitos emanados
da luta de classes, representado pelos movimentos sociais urbanos.
Porém, os conflitos na relação Estado/movimentos sociais
necessitam que essas reivindicações sejam elaboradas a partir do
conhecimento da realidade pelos trabalhadores, posto que o “discurso
tecnicista” dos responsáveis pelos serviços públicos, é um recurso
importante e bastante utilizado como forma de dominação e controle.
Na saúde e saúde mental, os estudos que possam ser realizados para
instrumentalização dos movimentos sociais a partir da compreensão
de Breilh (1991) da Epidemiologia é um grande passo. O autor ao
procurar superar o modelo clínico-biologicista adotado até hoje pela
68

Medicina, inclusive na saúde pública, recorre ao materialismo histórico


para propor a reformulação das bases teóricas e metodológicas.
Ao compreender que “... atrás do objeto empírico “doença” há um
material biológico e uma interpretação do mesmo, que socialmente
falando, determina se o que se observa é “doença” ou “saúde”, Laurel
(apud Breilh, 1991) nos remete às questões ideológicas que, no modo
de produção capitalista, são determinadas nas relações de dominação
estabelecidas pela divisão social do trabalho.
Laurel (apud Breilh, 1991) reafirma essa discussão ao apontar
o reconhecimento quase universal do caráter social no processo
de geração da doença, mas também a sua negação na prática, pois
essa desqualificaria a burguesia como organizadora da sociedade.
Mais do que isso, desvelaria as contradições da relação Capital –
Trabalho e as condições desumanas de trabalho, de precarização da
saúde e das condições de vida da população agudizada nos países
capitalistas periféricos. Esses estudos são de importância ímpar
para o fortalecimento desses atores sociais que lutam por essas
reivindicações.

POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE

A preocupação com a saúde no Brasil nos remete ao


descobrimento, porém ainda voltada exclusivamente para a aristocracia
e para o exército, responsáveis pela administração e proteção da
colônia (MACHADO, 1978). Mesmo após a Proclamação da
República, quando o conhecimento médico passa a ser o organizador
das instituições assistenciais e de uma iniciativa de saúde pública
(Osvaldo Cruz) e de saúde mental (Franco da Rocha), essa política só
se apresentou como iniciativas pontuais. Esse pressuposto do Estado
liberal (já aparecia na Constituição Americana de 1776) só vai se
concretizar no Brasil com a Constituição Federal de 1988.
Atendendo ao disposto no Artigo 196, da Constituição Federal
de 1988, de que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco da doença e de outros agravos e ao acesso universal
69

e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e


recuperação”, essa Política foi explicitada por meio do Sistema Único
de Saúde (SUS) em que a universalidade, a integralidade e o controle
social são os norteadores para a implementação da atenção a saúde
pública no país (DIMITROV, 1994). Mais ainda, procura romper com
o secular “modelo curativo”, em que a doença é concebida enquanto
algo natural dos agrupamentos humanos e produto de uma falha do
organismo. Esse modelo coloca o profissional médico como o único
responsável pela saúde/doença do sujeito e privilegia somente a
medicação e hospitalização, tornando o sistema ineficaz e custoso.
O SUS, com o objetivo de cumprir a Constituição, muda
o foco de atenção, que era centrado somente na doença, para o de
promoção de saúde e qualidade de vida. Assim, a saúde passa a ser
compreendida enquanto um processo multideterminado, superando a
visão organicista e pressupondo a atenção multidisciplinar ao sujeito
que procura os serviços de saúde. Aponta também para a elaboração
e implementação de uma política de saúde pautada na ação preventiva,
privilegiando o modelo proposto pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), já na década de 1960, para países de 3º mundo.
Historicamente, as questões de saúde pública e saúde mental
tornam-se uma preocupação de estado somente após a vinda da
Família Real para o Brasil em 1808. A proibição do ensino superior
nas colônias, um número reduzido de médicos (geralmente ligados
à Tropa e à Câmara), a pouca eficácia dos medicamentos europeus
e o desconhecimento das doenças tropicais eram impedimentos para
o desenvolvimento dos conhecimentos em saúde. A população em
geral recorria aos conhecimentos dos índios, dos negros escravos e
dos jesuítas. As questões de saúde mental pouco apareciam, seja por
falta de notificação, seja pela extensão geográfica do país, a pequena
ocupação das cidades, a inexistência de atividades produtivas para
além daquelas realizadas por escravos, enfim, uma colônia de
exploração. Após a chegada da Família Real e durante o século XIX,
essas questões surgem de uma maneira abrupta no cotidiano das
cidades, que agora fervilhantes de atividades, passam a exigir ações
da Coroa e depois da República (MACHADO, 1978; RESENDE,
1987).
Mas até a década de 1920 a Assistência Médica se resumia
a compra de serviços de profissionais liberais e a medicina popular
70

ou ao auxílio das Santa Casas de Misericórdia. Em 1923 criam-


se as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAP’s) , organizada e
administrada por empresas, financiada por empresários (1% da renda)
e trabalhadores (3%), em que a assistência médica era o objetivo
central e obrigatório. Em 1933, há uma ampliação dessas caixas para
a formação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP’s), que
passam a ser organizados por categorias profissionais e financiados
não só pelas Empresa e Trabalhadores, mas também pelo Estado,
pois agora a finalidade principal é o desenvolvimento da Indústria de
base. A assistência médica torna-se função secundária. Nos anos 60,
adota-se o modelo americano em que a saúde se baseia no modelo
hospitalocêntrico, de alto custo e que tinha também como objetivo
o fortalecimento da indústria de medicamentos e de equipamentos
hospitalares. Antes de se tornar direito do cidadão, a saúde no Brasil
começa a ser encarada como mercadoria e consumo, fruto do modelo
privatista que foi adotado pelo Regime Militar (CHIORO e SCAFF,
2006).
Em 1966, teremos a fusão dos IAP’s que criará o Instituto
Nacional de Previdência Social (INPS) que agora estenderá a cobertura
previdenciária para todos, incluindo as empregadas domésticas e a
criação do FUNRURAL, para os trabalhadores do campo. Porém
manterá a prática médica curativa individual assistencialista e assim
garantirá o aumento do complexo médico industrial, bem como a
lucratividade e privilégios para os produtos privados de serviços de
saúde (CHIORO e SCAFF, 2006). Abrirá o mercado para os planos
de saúde que aumentarão exponencialmente nos anos vindouros
(ANDREAZZI, OCKÉ-REIS e SILVEIRA, 2005). Até esse momento,
a saúde está vinculada às questões do trabalho para garantir a
expansão do capital. Apesar da existência do Ministério da Saúde, sua
influência é pequena, sua verba também e se limitava às campanhas
nacionais de vacinação, etc. Em 1974, com a criação do Ministério da
Previdência Social teremos a separação entre o trabalho e da saúde
e o Ministério da Saúde elabora o Plano de Pronta Ação (PPA) que
terá como objetivo a universalização da atenção às urgências, aos
contratos e aos credenciamentos. Porém ainda manterá o Modelo
médico assistencial privatista (CHIORO E SCAFF, 2006).
Esse momento histórico (fins dos anos 60 e década de 1970) é de
especial importância, não só no Brasil como também no mundo todo,
71

por seu imenso teor contestatório. No Brasil, havia uma conjunção de


forças no sentido de combater um único inimigo – a Ditadura Militar
imposta pelo Golpe de 1964 - e constituiu-se num momento impar da
história das lutas populares no país e de processos mais democráticos.
A vitória do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) nas eleições
de 1974, partido que congregava toda a oposição à Ditadura, os
protestos contra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog e do
operário Manoel Fiel Filho nas dependências dos órgãos de repressão
política (DOI-CODI), as greves de trabalhadores principalmente no
chamado ABC paulista, a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, a
reconstrução da União Nacional dos Estudantes (UNE), a legalização
dos partidos políticos clandestinos e várias outras lutas contra o
Regime Militar, são os elementos principais da conjuntura política
desse período.
Na saúde, o movimento da Reforma Sanitária, o Movimento
de Renovação Médica (REME), a criação do Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde (CEBES) em 1976, os Conselhos Populares de
Saúde que reivindicam a presença e o cumprimento da função do
Estado, amplificam essas mobilizações (AMARANTE, 1998). Em
1978, com a realização da Conferência Internacional de Saúde da
Organização Mundial de Saúde (OMS) em Alma-Ata no Cazaquistão,
as deliberações passam a ter como foco a saúde de toda a população
expresso no lema “Saúde para todos no ano 2000”. A complexidade
do fenômeno saúde/doença e sua multideterminação biopsicossocial
passam a integrar a nova concepção de saúde, expressa na já tornada
clássica expressão “Saúde é o completo bem estar físico, mental e social
e não a ausência de doenças, assegurada por políticas econômicas e
sociais”. Possibilitava a incorporação a essa concepção do modelo de
atenção baseados em Níveis de Atendimento assim organizados:

Serviços Primários: Unidades Básicas de Saúde, Pronto


Socorro, Pronto-Atendimentos, que atenderia 80% das necessidades
em Saúde;

Serviços Secundários: Hospital Geral, Ambulatório de


Especialidades, responsável por 10% das necessidades em Saúde e;

Serviços Terciários: Hospitais Especializados. Hospitais de


72

Especialidades, Hospitais Universitários, responsável também por


10% das necessidades em Saúde. Essa concepção invertia a lógica
implementada até o momento pelo Estado brasileiro.
Nesse contexto, têm importância fundamental para a gestação
do Sistema Único de Saúde (SUS), os movimentos sociais que se
organizavam nos Conselhos Populares de Saúde, reivindicando
os serviços de saúde, questionando o papel do Estado que não
se responsabilizava pela saúde da população em geral, fazia
críticas ao atendimento reservado somente para as categorias de
trabalhadores e também a manutenção de relações assistencialistas
com a população que não tinham acesso aos serviços de saúde. O
desenvolvimento do parque industrial brasileiro nas grandes capitais
acelerou o processo migratório e o crescimento do espaço urbano pela
expansão das periferias em condições precárias, sem infra-estrutura
de equipamentos de consumo coletivo. Aliado a isso, os governos
“biônicos” (denominação que caracterizava os ocupantes dos cargos
públicos indicados pelo Regime Militar, pois não havia eleição para
esses cargos após o AI-5) não eram considerados representantes da
população e suas práticas eram objetos de desconfiança por parte
da população. Além disso, o chamado “milagre econômico” que
prometia o desenvolvimento e melhoria das condições de vida para
todos, retirando um imenso contingente da população do campo e
trazendo-os para as cidades não se realizam e ampliam os setores
descontentes com a política do regime militar, acirram as diferenças
sociais e aumentam os movimentos sociais reivindicando os direitos
de cidadania.
Nesse processo, em 1980, cria-se o Conselho Consultivo de
Administração de Saúde Previdenciária (CONASP) que passa a contar
com representantes da sociedade organizada pela primeira vez. Dois
grandes projetos contribuem para a organização do sistema de saúde:
a Autorização de Internação Hospitalar (AIH) e as Ações Integradas
de Saúde (AIS) (CHIORO E SCAFF, 2006).
A mobilização social vai produzir a transformação das ações de
saúde para a construção de uma verdadeira política pública de saúde.
Em 1986 na 8ª Conferência Nacional de Saúde, com a participação de
5000 pessoas e pela primeira vez incluem todos os segmentos sociais
e políticos. Foi formalizada a proposta dos Conselhos de Saúde,
bem como a Proposta do SUS. Essa mobilização vai garantir que em
73

1988 a Constituição Federal incorpore em seu texto que a “ SAÚDE


é DIREITO de todos e DEVER do Estado, assegurado através de
políticas sociais e econômicas.

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

Apresentarei somente algumas questões em relação ao SUS,


pois ele já é de conhecimento geral e devidamente explicitado em
outros textos. Os Princípios do SUS são: Universalidade – todo e
qualquer cidadão, a Eqüidade – ações e serviços de acordo com a
complexidade e a Integralidade – totalidade. As Ações e Serviços
de Saúde são em forma de rede regionalizada e hierarquizada. O
SUS constitui-se em função da resolutividade, descentralização e
participação da comunidade. Essa participação se garante através
dos Conselhos de Saúde, bem como das Conferências de Saúde em
três níveis: Federal, Estadual e Municipal (DIMITROV, 1994). O
financiamento, tal como previsto na Constituição Federal, deveria
conter: 30% da Previdência Social, 10% do Orçamento Federal,
Estadual e Municipal, administrado pelo Fundo Nacional de Saúde
e seus iguais nos estados e municípios da federação. Isso não é
realizado dessa forma e é um dos complicadores à implementação
do sistema. A institucionalização da Contribuição Provisória sobre
Movimentações Financeiras (CPMF) veio como um das tentativas de
burlar o estabelecido, dizendo das dificuldades financeiras do Estado
em garantir a responsabilidade pela saúde.
Para sua implementação articulou-se através das Normas
Operacionais Básicas (NOB) a chamada Municipalização da Saúde,
em que passa para os municípios a responsabilidade parcial e/ou total
do sistema de saúde. No parcial, o município fica responsável pelas
Unidades Básicas de Saúde, pelo Pronto-Atendimento, pelo Pronto
Socorro, pelos Laboratórios, H.G, Ambulatórios de Especialidades,
Atividades de Vigilância Sanitária e Epidemiológica.
Caberia ao Conselho Municipal de Saúde a fiscalização das
ações em saúde, o controle dos gastos e o respeito as prioridades do
Plano Municipal de Saúde, elaborado com base nas deliberações da
74

Conferência Municipal de Saúde. Deve ser formado por usuários


do sistema com 50% de membros e administração e funcionários
do sistema, conselhos profissionais, entidades formadoras, com os
outros 50%. Inclui ainda como forma de controle das unidades de
saúde os Conselhos Gestores formado por 50% de usuários e 50% de
funcionários. Em geral, essas são as questões principais que norteiam
o SUS (CARVALHO, 1995).
O controle social é um dos elementos que passa a ser integrado
nas políticas públicas após a conquista da participação popular no
SUS. O significado de controle social para a Sociologia é o controle
do Estado liberal burguês como representante da classe dominante
em relação as classe populares, aos trabalhadores, ao operariado para
manutenção da hegemonia dessa classe, como forma de controle da
luta de classes. No Brasil os movimentos populares de saúde fazem
a inversão desse conceito, pois em função da desconfiança dos
governantes em relação a utilização do dinheiro público, os conselhos
populares de saúde querem justamente o controle social dos cidadãos
sobre o Estado e os seus representantes. Há um significativo avanço,
pois na Constituição de 1988 faz a regulamentação em lei de vários
conselhos de controle social (Saúde, Educação, Transporte urbano,
Conselho de Direitos da Criança e Adolescente, etc.)
Alguns complicadores impossibilitam com que o SUS,
mesmo após 20 anos de existência, tenha sido implementado
integralmente. Ao ser regulamentado pela Lei Federal nº 8142 não foi
a expressão fiel da proposta do SUS deliberada pela 8ª Conferência,
tanto que a primeira lei federal de nº 8080 teve que ser alterada pois
vetava justamente o artigo II que se referia a participação popular.
Já se enunciava nesse momento o que se denominou como “contra
reforma” (LUZ, 1994), ou seja, a ação dos setores privatistas para
modificar o sistema de saúde, que tem como aliado um Estado que já
se demonstrou incapaz de assegurar devido atendimento de saúde para
a população. Essa tendência se amplifica nos anos 90, pois o processo
transformador que possibilitou o fim do regime militar e uma certa
normalização democrática já demonstra um certo esgotamento, seja
em função da crença, principalmente dos movimentos sociais, de que
conquistar a lei é conquistar o direito, bem como em função de que
historicamente, o Estado Brasileiro é avesso a participação cidadã
em políticas públicas, seja nas dificuldades de acesso a informações,
75

na linguagem tecnicista e meramente retórica. Essa tendência se


acirra dos anos 90 em diante pelas eleições sucessivas de governos
comprometidos com o projeto neoliberal e o já conhecido “Consenso
de Washington” de 1986. Esse projeto impõe a lógica do Estado
Mínimo, uma democracia representativa formal, legalista, em que
os equipamentos de consumo coletivo não mais considerados como
direito, mas como serviços e portanto sujeito as leis do mercado.
Aliado a isso, há uma ampliação dos espaços institucionais,
porém com a pulverização da participação e também a dificuldade
real de articulação de lutas e reivindicações dos movimentos sociais,
que sem poder real, perdem credibilidade e possibilitam um certo
esvaziamento na participação.
O investimento em Saúde Coletiva, orientação do SUS, retira
o foco da doença centrado no indivíduo e passa a compreendê-la
como um produto das relações sociais onde ele está inserido, ou seja,
compreendê-lo na sua totalidade, investindo em qualidade de vida para
a população e suprindo suas necessidades básicas. Essa compreensão
se choca diretamente com os interesses da indústria farmacêutica, dos
grandes laboratórios, dos planos de saúde e também com a categoria
médica, que nessa concepção de saúde coletiva, perde o lugar de
poder, fruto de sua inserção na lógica do capital.

POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL E LUTA


ANTIMANICOMIAL

A conjuntura que possibilitou a Reforma Psiquiátrica e o


Movimento Nacional da Luta Antimanicomial é a mesma que nos
referimos em relação à saúde. Porém apresentando algumas questões
específicas, seja do ponto de vista origem da conceituação da doença
mental, bem como das instituições psiquiátricas. Nesse aspecto, será
necessário introduzir essas discussões para compreensão da política
pública de saúde mental atual.
A denominada doença mental é uma produção histórica que
se afirma como categoria teórica com o advento e consolidação do
modo de produção capitalista, especialmente com a ascensão do
76

conhecimento médico que de restrito ao espaço da prática clínica, do


doente em si, assume o controle das instituições em geral e passa a
intervir no espaço urbano, a organizar as relações sociais a partir de
medidas higiênicas e preventivas e definir os parâmetros de normal e
anormal. Essa intervenção tem em Philippe Pinel, médico francês, o
seu principal artífice (AMARANTE, 1998; 1996; ALBUQUERQUE,
1978; RESENDE, 1987; GRADELLA, 2002a).
Nesse sentido, as instituições em geral surgem enquanto
estratégias de controle e disciplina da sociedade após a construção
de conhecimentos (p.ex.: a concepção de família) que as tornam
necessárias para a consolidação da superestrutura do modo de
produção capitalista. A instituição psiquiátrica é a única que inverte
a lógica, pois cria primeiro a instituição asilar e depois desenvolve
a busca de conceituação da doença mental. Nesse aspecto, o hospital
psiquiátrico não cumpre a função de assistência, tratamento,
recuperação e cura, mas sim a função de legitimar a exclusão daqueles
que não se adequam as normas. Ao localizar a origem do adoecimento
biologicamente ou como disfunção responsabiliza o indivíduo pelo
seu sofrimento e/ou incompetência. Mais ainda, a Psiquiatria utiliza-
se do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM) que não contém uma definição clara do que é o denominado
transtorno mental ao afirmar que “... embora este manual ofereça
uma classificação dos transtornos mentais, devemos admitir que
nenhuma definição especifica adequadamente os limites precisos para
o conceito de “transtornos mentais” (DSM IV,1995, p. XX e XXI)
(ALBUQUERQUE, 1978; RESENDE, 1987; GRADELLA, 2002;
2002ª; BASAGLIA, 1985).
Essa mesma compreensão vai se aplicar aos outros segmentos
que vão se constituindo no capitalismo em decorrência de sua forma
de exploração. Os denominados excluídos nada mais são do que o
subproduto das relações sociais-econômicas-políticas do capitalismo.
O modelo institucional a ser adotado será o de segregação nas
instituições construídas para esse fim. A cultura manicomial de excluir
e isolar os dejetos humanos produzidos por essa ordem econômica se
torna a única política pública concreta no capitalismo. As instituições
para adolescentes e jovens, asilo de idosos, casas da criança, presídios
e outras desse mesmo tipo e função proliferaram durante o século
XX e mantém-se no século XXI como única possibilidade de
77

resolução dos problemas sociais causados por essa ordem econômica


(LAPASSADE, 1983; SAIDON e KAMKHAGI, 1987).
Essa cultura manicomial se sustenta na compreensão e
naturalização do doente mental como um sujeito violento e capaz
de cometer atrocidades em que um diagnóstico psiquiátrico e
psicológico desfavorável, condena o seu portador a um estigma,
justificando inclusive a perda de todos os seus direitos civis e também
a sua tutela pelos técnicos e agentes psiquiátricos (ou da violência?)
(BASAGLIA,1985). Mais do que somente uma relação de opressão
e violência, a intervenção sobre a vida do sujeito, classificando-o de
normal ou anormal, constitui-se na afirmação de um poder médico que,
travestido de científico, nada mais é do que a imposição ideológica do
modelo de racionalidade burguesa. O doente mental, por não produzir,
perdeu necessariamente o seu lugar social, fazendo parte da imensa
maioria de excluídos gerados pelo capitalismo. Porém, torna-se fonte
de lucro para a indústria farmacêutica e para os hospitais psiquiátricos
privados. Essa mesma lógica institucional é determinada em sua
gênese, ou seja, a violência da exploração do homem pelo homem
tal como posto no modo de produção capitalista, do assujeitamento
do indivíduo ao possuidor da propriedade dos meios de produção na
venda da sua força de trabalho.
Essa organização social que se consolidou implica em
normatizar os sujeitos, estabelecer forma ou “forma” de viver a vida.
Ao fazer isso, valoriza-se uma determinada forma de viver a vida
em detrimento de outras. Para que essa determinada forma de viver
a vida seja aceita com naturalidade e como verdade, tem que ser a
forma de viver a vida daqueles que dominam o pensamento científico
hegemônico da sociedade. Pressupomos também que uma forma de
viver a vida subjugue todas as outras possibilidades ao seu domínio.
Assim, ao impor-se uma determinada forma de viver a vida, produziu-
se uma forma de exclusão e de adoecimento de outras formas de viver
a vida, portanto a vivência no cotidiano deve ser o objeto de reflexão
e não somente o tratamento do especialista, mesmo que não seja mais
exclusividade do médico psiquiatra.
No Brasil, a prática hegemônica de atenção aos portadores de
transtornos mentais foi a internação em hospitais psiquiátricos desde
o século XIX até os anos 80 do século XX (MACHADO, 1978;
RESENDE, 1987). O Movimento de Reforma Psiquiátrica, surge
78

a partir dos questionamentos a essa forma de atenção, bem como o


Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM, organizado
a partir do que se denominou de “Crise da DINSAM – Divisão
Nacional de Saúde Mental”, na qual se deflagrou uma greve (1978) e
foram demitidos cerca de 260 estagiários e profissionais. Denunciava-
se também os maus tratos na Colônia Juliano Moreira, no Hospital
Pinel e Pedro II, a privatização acelerada dos leitos configurando-
se em uma verdadeira “Indústria da Loucura” (AMARANTE, 1998;
1996; PAULIN e TURATO, 2006). Naquele período, as internações
eram em sua imensa maioria encaminhadas pela Previdência Social
aos hospitais psiquiátricos privados e era praticamente inexistente
outras formas de atenção ou hospitais públicos.
Vários eventos, congressos, simpósios na área de saúde
mental também denunciavam e debatiam as questões relativas aos
hospitais psiquiátricos como única forma de atenção ao portador de
transtornos mentais. O Congresso de Camboriú (1979) produziu um
manifesto em que denunciava as questões de saúde mental. O III
Congresso Mineiro de Psiquiatria em Belo Horizonte, Minas Gerais
(1979), contou com a participação de Robert Castel, Michel Foucault
e do psiquiatra Franco Basaglia, representante do Movimento de
Psiquiatria Democrática e autor da Lei nº 180 (Itália) que extinguia
o hospital psiquiátrico e propunha formas substitutivas de atenção
aos portadores de transtornos mentais. Com a divulgação do filme
do cineasta brasileiro Helvécio Ratton “Em nome da Razão” sobre o
Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais, Basaglia comparou-o
a um verdadeiro “campo de concentração” (AMARANTE, 1998;
1996; PAULIN e TURATO, 2006; DELGADO, 1987).
No decorrer dos anos 1980, várias experiências com modelos
substitutivos ao hospital p0siquiátrico foram realizadas em São Paulo,
Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Ceará (CEZARINO, 1989) Como
desdobramento da 8ª Conferência Nacional de Saúde foi realizada a
I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987). Suas deliberações
apontam para a mudança radical do modelo psiquiátrico vigente e o fim
da construção de hospitais psiquiátricos. Os termos são praticamente
os mesmos que constam da Lei elaborada pelo Deputado Paulo
Delgado em 1989 e aprovado com restrições em 2001 (CHIORO e
SCAFF, 2006) que passou a ser conhecida como a lei da Reforma
Psiquiátrica.
79

O II Congresso dos Trabalhadores em Saúde Mental realizado


em Bauru em 1987 foi um marco decisivo para a constituição do
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Nesse encontro, as
bandeiras históricas e constitutivas da radicalidade do movimento
se afirmaram, rompendo com o discurso na esfera meramente
técnica implementada pela Reforma Psiquiátrica para a amplitude
necessária à integração dos setores diretamente atingidos pelas
práticas excludentes e segregadoras das instituições psiquiátricas: os
usuários e seus familiares, bem como setores dos movimentos sociais
e sindicais, artistas e profissionais de saúde não médicos (PAULIN e
TURATO, 2006).
As principais deliberações foram: - a adoção do bandeira de
luta “Por uma sociedade sem manicômios”, a definição do dia 18
de maio como Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a fundação do
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial formado por familiares
e usuários dos serviços de saúde mental, trabalhadores, entidades
formadores, sindicatos, associações de moradores, conselhos
profissionais da,, área de saúde, parlamentares, artistas e todos
aqueles que encampassem a luta. Tinha como objetivo o fim dos
hospitais psiquiátricos pelo gasto inútil de verbas públicas e forma
de atenção ultrapassada, sem resolutividade, excludente e violenta.
Sua proposta era a criação de serviços substitutivos em saúde mental,
tais como: CAPS (Centro de Apoio Psicossocial), NAPS (Núcleo
de Apoio Psicossocial), Hospital-dia, Ambulatórios, Unidades
Básicas de Saúde com Equipes Mínimas (1 psiquiatra, 1 psicólogo,
1 assistente social), Emergência Psiquiátrica, Leitos Psiquiátricos em
Hospital Geral, Enfermaria Psiquiatra em Hospital Geral, Centro de
Convivência, bem como outras formas de atenção com conteúdo não
manicomial. A loucura concebida como desrazão, como erro, como
periculosidade (Iluminismo) transforma-se para a noção de diferença,
de produção de vida, de subjetividade.
Após a criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial
no Congresso de Bauru, várias propostas foram implementadas nesse
período, bem como publicadas várias portarias governamentais e
declarações de princípios em diversos eventos (Conselho Regional
de Psicologia, 1997). Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
já são mais de 1011, as Residências Terapêuticas somam 475, são
862 Ambulatórios de Saúde Mental, são 24 Hospitais Dia (hoje
80

substituídos pelo CAPS III) e 60 Centros de Convivência e Cultura


(Relatório de Saúde Mental / Ministério da Saúde, 2006). O Programa
“De Volta Para Casa” do Ministério da Saúde é um programa de
reintegração social de egressos de longas internações, segundo
critérios definidos na Lei nº 10.708, de 31 de julho de 2003, com
pagamento do auxílio-reabilitação psicossocial no valor de R$ 240,00,
mas que, até dezembro de 2006, só contemplou cerca de 2519 pessoas
de uma proposição de 15000 beneficiados. O Programa Nacional de
Avaliação do Sistema Hospitalar - PNASH/Psiquiatria, na avaliação
de 2004 aponta que 168 unidades foram vistoriadas, 52 (31%) delas
foram avaliadas com atendimento insatisfatório e 10 unidades seriam
descredenciados (Ministério da Saúde, 2004).
A participação dos usuários e familiares nas associações
construídas nesse processo foram um dos determinantes decisivos
na compreensão do transtorno mental por aqueles que o sofrem e
também na luta pela superação da cultura manicomial. Possibilitou
a expressão 0desses sujeitos nos eventos científicos e de troca de
experiências, mostrando um novo olhar sobre a questão, pois as
discussões desenvolvidas nos encontros do movimento da luta
antimanicomial, congressos científicos e específicos de saúde mental
construíram a discussão sobre essa cultura manicomial. Ela perpassa
pelos profissionais da área que, mesmo trabalhando com os modelos
substitutivos, acabavam por reproduzir essa cultura manicomial.
Portanto, os modelos substitutivos como mudança no espaço físico,
na infra-estrutura e mesmo em relação a implantação de equipes
multidisciplinares podem se apresentar como uma forma melhorada
de manter a exclusão e a segregação do modelo hospitalocêntrico
ao fazer a manutenção dessa cultura manicomial. Ou seja, perde-
se a discussão que questionou não só o modelo asilar mas também
as concepções cientificistas sobre o fenômeno e também a sua
origem histórica de exclusão e normatização (Conselho Regional de
Psicologia, 1997).
81

ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO

Esse processo de ampliação das discussões em saúde e saúde


mental, procurando superar o binômio saúde e doença e o modelo
curativo, para a compreensão do processo saúde/doença e suas
multideterminações, bem como as críticas ao modelo hospitalocêntrico
possibilitadas pela análise institucional e conseqüentemente as
políticas públicas originadas nesse processo, criam espaços de
intervenção de todos os profissionais não médicos. Os psicólogos
que, naquele momento e em sua grande maioria, se concentravam em
práticas de consultórios, passam a ocupar os espaços institucionais,
nas áreas de saúde e saúde mental, bem como outros também, p.ex.:
as escolas (CAMPOS, 1995).
Essa inserção do psicólogo como profissional da saúde e saúde
mental amplia consideravelmente a importância e a produção desse
conhecimento. Porém, coloca desafios que ainda estão distantes de
sua superação, pois os cursos de psicologia no Brasil não realizaram
as modificações necessárias para a formação desse profissional de
saúde. Mais do que uma orientação técnica, torna-se fundamental a
formação política, posto que agora, vamos trabalhar com os indivíduos
que participam, que intervém e são reconhecidos como cidadão. As
políticas públicas que nos colocam nesse espaço de atuação, impõem
a necessidade de conhecimentos que superem os limites das práticas
“clinicalistas” do espaço fechado dos consultórios, a concepção
idealista do psicológico e as práticas adaptativas que proliferaram nas
últimas décadas. Agora também nos tornamos sujeitos do processo,
implicados politicamente e na construção de um referencial teórico
que seja um instrumento que possibilite o desenvolvimento da
autonomia e a emancipação do homem.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Procuramos abordar as questões relativas às políticas públicas


no Estado liberal burguês, as questões das instituições enquanto
aparelhos ideológicos e a relação com a luta de classes capitaneada
82

pelos movimentos sociais, especificamente em saúde e saúde mental.


Apesar dos elementos positivos do Estado, como diz Poulantzas
(1985), esses elementos só se explicitam quando da intenção de
garantir a produção e reprodução do capital. Pensamos que não
poderia ser diferente, posto que o Estado foi constituído para tal.
O pressuposto de que é possível simplesmente exercer a
cidadania, em uma sociedade desigual e injusta, tais como os direitos
e deveres iguais explicitados nas Declarações dos Direitos Humanos,
se inserem na lógica das abstrações e do idealismo. Primeiro, por que
alguns são mais iguais que os outros, segundo, as oportunidades não
são iguais para todos. Porém, essas questões é que possibilitam com
que os movimentos sociais organizados possam fazer a luta política e
garantir parte desses direitos, que asseguram melhores condições de
vida. A melhoria das condições de vida em geral é fundamental para
que os trabalhadores possam avançar em um projeto de transformação
da sociedade e superação do modo de produção capitalista.
As políticas de saúde e saúde mental só se realizaram pela
mobilização da população e só se manterão se esses atores sociais
continuarem intervindo e apresentando proposições que avancem nas
práticas de saúde e saúde mental, inclusive ampliando e articulando o
movimento com as outras reivindicações dos trabalhadores em todos
os espaços de luta. A superação do Estado na forma que o conhecemos
só será possível em uma sociedade que não tenha como constitutiva
de sua organização a exploração do homem pelo homem, que seja
não mais uma pré-história do homem, mas a história dos homens
emancipados da sua própria dominação.

ORIENTAÇÃO DE ESTUDOS

- Cada tópico do texto será apresentado, discutido e


aprofundado durante o desenvolvimento da disciplina. Os textos que
fazem parte das referências bibliográficas serão indicados para leitura
e aprofundamento da discussão. Como vários autores apresentam as
discussões, será escolhido um deles para esse aprofundamento. Os
outros serão indicados como bibliografia complementar.
83

- As questões que servem como roteiro são as seguintes:

- A relação entre o Estado, os direitos do homem e a concepção


de indivíduo

- O que são as Políticas Públicas e sua relação com o Estado


liberal

- Quais as condições histórico-sociais e os elementos / determi-


nantes que possibilitaram a ascensão da loucura à categoria de doença
mental

- Qual a importância do estudo da Epidemiologia para os movi-


mentos sociais e nas Políticas Públicas

- Como se construiu a atual política pública em saúde, qual é a


doutrina do SUS, seus princípios organizativos, como se possibilita a
participação popular e controle social no SUS

- Como se construiu a reforma psiquiátrica e a política pública


de saúde mental

- O que é o movimento da luta antimanicomial: seus objetivos,


sua composição e suas propostas.

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87

O existir humano não é sem educação



Angelo Antonio Abrantes

O objetivo deste material é realizar uma aproximação inicial


sobre a relação entre a existência humana e a educação, concebendo
a educação no sentido lato. Procuraremos abordar, nos seus aspectos
fundamentais, o processo pelo qual a educação torna-se elemento
constitutivo do ser humano, na medida em que, para produzir e
reproduzir sua existência, esse não mais pode recorrer somente
às possibilidades contidas na natureza dada (biológica) e aos
aprendizados decorrentes da experiência individual, mas, cada vez
mais, necessita apropriar-se de uma segunda “natureza”, exterior ao
seu organismo, aquela que se refere às conquistas obtidas por meio
do trabalho.
O ser humano, para continuar existindo, necessita indefi-
nidamente produzir sua existência pelo trabalho, portanto, o modo
característico como organiza a produção é determinação central na
objetivação do seu existir. As conquistas objetivadas pelo trabalho
passado integram a produção, deste modo a existência humana se faz
a partir da apropriação do já realizado historicamente, movimento
que pressupõe a possibilidade de superação do modo estabelecido de
auto-realização humana.
Para que possamos, de forma introdutória, abordar o tema da
unidade entre o existir humano e a educação, realizaremos recuos,
para que alguns conceitos possam ser compreendidos e avanços,
considerando as contradições do modo capitalista de produzir e
reproduzir a existência humana.
Organizaremos nossa exposição apresentando, inicialmente,
uma reflexão sobre a relação sujeito – objeto considerando a própria
constituição da realidade, com a finalidade de explicitar, a partir do
aporte teórico do materialismo histórico dialético, como se concebe o
desenvolvimento da realidade na relação com o ser humano.
Em seguida, indicaremos algumas características centrais do
modo de produção capitalista para que a discussão ganhe concretude,
88

pois somente assim poderemos problematizar as contradições inerentes


aos processos educativos na especificidade de uma sociedade marcada
pela luta entre classes sociais.
Por último, abordaremos a relação educação – indivíduo
concebendo o processo de desenvolvimento individual a partir da
apropriação da cultura, sem desconsiderar, no entanto, a determinação
central do modo de produção. A discussão passa a se referir aos
contraditórios processos organizados pela sociedade para que os
indivíduos se apropriem da história humana, compreendendo a
educação como determinante no processo de formação individual.

Da natureza à realidade humana

A primeira das muitas armadilhas em que nos envolvemos


quando tomamos como objeto de reflexão a “relação sujeito – objeto”,
destacando a produção da realidade na relação com o ser humano, é
que somente podemos pensá-la a partir de um posicionamento sobre
o processo de pensar, ou seja, parte-se de uma dada solução para essa
relação e de suposições iniciais que demarcam e constituem o próprio
objeto, no caso, a “relação sujeito – objeto”.
A melhor forma de minimizar a dificuldade, mesmo que não
seja possível eliminá-la, é adiantar que nos situamos no campo
teórico metodológico do materialismo histórico dialético, afirmação
que explicita o sistema de categorias que se tem a intenção de utilizar
na “prática” de pensar o objeto.
Antecipamos desde já que nesta perspectiva supõe-se a
exterioridade e anterioridade do real em relação ao pensamento e
a mutabilidade das condições históricas, que inclusive determinam
a produção de conceitos e categorias teóricas que orientam o
pensamento, o que se aplica ao seu próprio sistema de categorias.
Por exemplo, a categoria “luta de classes” somente tem sentido e
validade numa sociedade em que existam classes em luta.
Analisar a relação sujeito – objeto partindo desses pressupostos
supõe, numa primeira aproximação, considerar o objeto como
realidade, observando que estamos provisoriamente deixando de
considerar a realidade no pensamento para considerar o objeto como
89

a realidade.
É evidente que somente pelo fato de nos referirmos à realidade
ela já se tornou realidade no pensamento, mas somente para iniciar
o raciocínio consideremos que atualmente algumas dimensões da
realidade não foram reproduzidas no pensamento e mesmo assim se
realizam e, ainda, que existiu realidade sem ser pensada, ou para dizer
de outra forma, houve um tempo em que o pensamento ainda não se
tinha feito realidade para o ser humano.
Deste modo podemos considerar que quando mencionamos a
realidade não estamos de forma alguma nos referindo à algo estático,
pois a realidade vem sofrendo processos de transformações constantes
mesmo antes do surgimento do ser humano. No entanto, como nossa
reflexão tem como tema a relação sujeito – objeto, ela somente pode
fazer sentido na medida em que na realidade exista ser humano, o que
pressupõe um ser em relação com o real.
Considerando o processo real de constituição da realidade,
incluindo aí a realidade humana, tomamos como relação inicial
básica ser humano – natureza, observando que o ser humano é aqui
entendido como ser social - humanidade. A questão se vincula a um
processo em que inicialmente o ser humano não existe como realidade
consciente1.
Podemos afirmar a relação ser humano – natureza e
problematizá-la já devido à um processo de transformação por que
passou a realidade, pois inicialmente não existia uma diferenciação do
ser humano com a natureza. Ele existia apenas como um ser natural,
integrante da natureza e submetido a leis biológicas. Há inicialmente
a identidade original entre ser humano – natureza e um processo de
desenvolvimento do homem biológico – o processo de hominização.
Ser humano é apenas um ser natural e, como os demais
organismos vivos, necessita da natureza para manter-se vivo, exerce
uma atividade vital que possibilita que as riquezas naturais supram
suas necessidades de subsistência. Mesmo que atualmente o ser
humano permaneça como organismo vivo, sujeito às determinações da

1
Mesmo considerando que o ser humano passou por um processo de transformação radical – de ser
biológico para ser social e histórico – manteremos a nomenclatura ser humano para os momentos de
transição no qual o humano como ser racional era apenas possibilidade.
90

natureza, ele não é mais exclusivamente um ser natural, é também ser


histórico. Retomaremos a discussão posteriormente, por ora estamos
nos referimos ao momento que se caracteriza como a realidade se
realizando de forma anterior ao pensamento sobre a realidade e sobre
a existência humana.
Nesse momento de unidade contraditória entre ser humano
e natureza o pólo prevalente é o da natureza, que impõe suas
determinações a um ser vivo que necessita adaptar-se a elas. As
mudanças que ocorreram na forma de relacionamento com a natureza
se deram devido a reorganizações do próprio sistema orgânico,
portanto, sujeito às leis naturais de hereditariedade, mesmo que elas
não existissem como leis.
É o momento da realidade se realizando a partir da atividade
vital, é desenvolvimento do ser humano sem se saber, portanto a
relação sujeito – objeto não se caracteriza ainda como uma relação do
sujeito que conhece com o objeto a ser conhecido e sim como relação
real da natureza agindo sobre o ser humano e do ser humano reagindo
à natureza.
Para avançarmos na compreensão do objeto de nosso interesse
necessitamos destacar justamente o processo de diferenciação do ser
humano em relação à natureza e, para isso, necessitamos fazer duas
observações antes que surjam questões referentes a uma suposta
necessidade de delimitarmos o início desta diferenciação e a causa
primordial.
Primeiro que os períodos qualitativamente distintos que
identificam uma fase particular da relação do ser humano com a
natureza não têm uma delimitação rígida e somente podem ser
entendidos como processo. A transição do momento de identidade
do ser humano com a natureza e o seu “descolamento” da natureza
são momentos qualitativamente distintos da relação humana com
a natureza, no entanto, esses momentos constituem uma unidade.
Mudanças quantitativas insensíveis se acumulam a tal ponto que
se transformam em mudanças qualitativas necessárias, significando
que, mesmo antes que uma superação ocorra, existem elementos de
negação na própria forma estabelecida; assim as chamadas fases não
são nítidas e tão-pouco independentes umas da outras.
A segunda observação é que dentre os múltiplos aspectos
determinantes de uma transformação existe uma hierarquia de
91

importância explicativa entre as categorias teóricas, no entanto elas


somente podem ter importância ou valor explicativo dentro de um
sistema que expresse as várias determinações, deste modo a questão
não é de identificar uma causa explicativa do processo e muito menos
de considerar uma causa fora da relação ser humano – natureza.
O ser humano, que no momento de identificação com a
natureza existia como um ser natural, existe como parte integrante
do processo em que se “liberta” da natureza, diferenciando-se dela,
num movimento que se por um lado, como afirmamos, não pode ser
pensado como tendo um início, por outro, não pode ser considerado
como tendo um fim que se efetive totalmente.
A relação ser humano – natureza é condição da existência
humana: mesmo que no processo histórico o ser humano consiga,
em parte, controlar e até destruir a natureza, ele continua dependente
dela, destruí-la é destruir ao próprio ser humano.
A libertação do ser humano em relação à natureza está ligada
ao desenvolvimento do seu modo de produzir a existência. A reflexão
sobre o processo de diferenciação do ser humano em relação à natureza
é um indicativo do movimento no qual seres humanos se constroem
ao construir sua existência material, base em que progressivamente
se produz a razão humana, a consciência sobre a realidade e sobre a
própria realidade humana.
Já afirmamos que o ser humano como organismo vivo
desempenha uma atividade sobre a natureza para satisfazer suas
necessidades básicas, aspecto que não o diferencia de qualquer outro
organismo vivo, pelo contrário, o identifica. Como nos interessam
seus aspectos diferenciais, operaremos com a relação igualdade
– diferença, pois mesmo que o ser humano no processo de relação
com a natureza tenha pautado inicialmente suas ações pela categoria
adaptação, igualando-se a outros organismos vivos, foi a partir deste
processo adaptativo que constituiu as bases sobre as quais foi possível
diferenciar-se e romper com aquela unidade inicial.
É a luta pela sobrevivência a imagem que melhor expressa a
relação ser humano com a natureza no momento a que nos referimos,
o que significa que há entre ser humano e natureza a mediação de uma
atividade, que, ao mesmo tempo, o identifica, na atividade adaptativa
à realidade, e o diferencia, como realidade organizada de tal forma
que continha, como possibilidade, perspectivas de desenvolver uma
92

atividade transformadora da natureza.


O processo da realidade se realizando (se trans-formando), na
delimitação da relação sujeito – objeto, somente pode ser considerado
na dinâmica da atividade vital humana, pois ser humano e natureza
existem simultaneamente como unidade contraditória. O processo de
diferenciação no qual o ser humano não mais existe como ser natural,
mas como um ser natural humano ocorreu, e continua ocorrendo,
pela acumulação de resultados advindos de sua atividade sobre a
natureza.
A possibilidade de acumulação histórica se deve à mudança
qualitativa da relação do ser humano com à natureza. A sua atividade
vital passa a se processar não mais como adaptativa a realidade
natural, mas como transformadora da natureza. A relação do ser
humano deixa de ser imediata, satisfazendo suas necessidades a partir
de um vínculo direto com a realidade natural, e passa a ser mediada,
pois para satisfazer uma necessidade produz um artefato técnico a
partir da natureza, transformando-a com a finalidade de qualificar a
sua relação com a natureza e melhor satisfazer suas necessidades.
Essa objetivação, que é natureza humanizada, passa a mediar
a relação do ser humano com a natureza. O instrumento seria então
a natureza transformada e a atividade humana em estado de objeto, a
fusão da atividade humana com a natureza, o que acaba por relacionar
a atividade humana a um movimento de conhecer a natureza para
poder transformá-la em seu benefício.
As possibilidades de transformação não são absolutas, a
natureza resiste, mas após o processo de intervenção humana, ela
existe numa nova forma, naquela em que carrega a intenção humana
e um modo social de utilização. O instrumento se apresenta como
solução possível, em um dado momento, para as dificuldades que se
apresentaram durante o processo de satisfação de uma necessidade.
Ele sintetiza a dinâmica de relacionamentos do ser humano com a
natureza, desta forma, é a expressão de uma realização humana já
abstraídas as tentativas frustradas, o que significa um dinâmico
processo de conhecer a realidade.
Importante observar que as possibilidades de transformação da
natureza também sofrem mudanças, pois o vínculo do ser humano
com a natureza passa a sofrer não apenas as determinações da
natureza, mas também as determinações relativas aos conhecimentos
93

e instrumentos acumulados para um dado período histórico, sendo


que as últimas, cada vez mais, ganham importância no processo de
produção da existência.
A produção de instrumentos nas suas formas rudimentares pode
ser encontrada na natureza também em outras espécies, no entanto,
no ser humano a forma rudimentar foi superada, ou seja, à medida
que o ser humano produz, na sua atividade coletiva, um instrumento
para satisfazer uma necessidade, desencadeia um processo no qual
transforma a natureza e modifica a própria natureza. Os resultados
se acumulam e um novo processo se inicia a partir de um ponto
qualitativamente superior.
A necessidade que mobiliza a atividade humana passa a não
ser mais uma necessidade natural, mas uma necessidade humana,
ela própria se transforma no decorrer da produção. As habilidades
e capacidades humanas se desenvolvem na prática de se relacionar
com a natureza por meio dos objetos criados pelo ser humano e da
estrutura social que se vai criando para produzir e reproduzir a própria
existência.
O gradual desenvolvimento das formas de relacionamento com
a natureza a partir das objetivações humanas gera a necessidade de
desenvolver formas de comunicação cada vez mais elaboradas para
que seja possível viabilizar o trabalho coletivo nas divisões técnicas
que vão se estabelecendo. Deste modo, produz-se, em unidade, o
desenvolvimento do pensar técnico e da linguagem que permite
expressar nuances da atividade humana, que cada vez mais complexa,
se cinde em ações e operações. (LEONTIEV, 1978)
A atividade humana produz a linguagem como pensamento
que vai se objetivando numa forma exteriorizada e desenvolve
o pensamento, que ganha em possibilidades pela apropriação da
linguagem, na medida em que a última, de certa forma, “armazena”
a história de relações sociais e participa vivamente das relações
que se objetivam entre os seres humanos ao reproduzirem a própria
existência.
A unidade contraditória entre pensamento e linguagem é um
tema por si só, nos interessa no momento apenas mencionar que o
processo de trabalho realizou objetivações com dimensões objetivas
e subjetivas e que a relativa autonomia do pensamento na produção
de conhecimentos foi resultado do processo de produzir a existência.
94

Neste movimento, as capacidades que são especificamente humanas


produziram-se e continuam a se re-produzir, ou seja, é na determinação
de um modo de produção que se produz a existência humana.
Neste processo de produção da realidade humana até mesmo
a natureza, que não sofreu diretamente sua intervenção, deixa de
ser natural, pois o ser humano acumula conhecimentos sobre suas
qualidades e ela existe como natureza e também como possibilidade
de realização humana. Na unidade ser humano – natureza o pólo
dominante passa a ser o primeiro.
Este movimento de produção e auto–produção, em que o início
de uma nova atividade ocorre a partir do acúmulo das atividades
anteriores, expressa o caráter histórico do ser humano. O ser humano
passa não mais à se adaptar a realidade e sim, num processo dinâmico
de objetivações e apropriações, a produzir uma realidade humana que
se diferencia da natural.
A sua relação com a realidade não é mais apenas a relação
com a natureza, é relação com a natureza e com os resultados do
que grupos humanos produziram anteriormente, ou seja, a atividade
do ser humano não se limita às possibilidades de sua natureza dada
e aos aprendizados da existência individual, mas é uma relação que
faz uso da história humana objetivada nas coisas produzidas pelo ser
humano, nas relações sociais e na linguagem.(LEONTIEV, 1978).
O processo a que nos referimos culminou na forma
característica do ser humano se relacionar com a natureza e que,
em seu desenvolvimento e elaboração cada vez mais complexa,
possibilitou que a atividade vital humana se caracterizasse como uma
atividade criadora.

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a


natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação,
media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele
mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural.
Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua
corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-
se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao
atuar, por meio desse movimento sobre a natureza externa à ele e ao
modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza.
95

(...) No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já


no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto
idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma
da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural
seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o
modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.
E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos
órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim,
que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho
(MARX, 1988: 142-143)

A citação, que de certo modo define trabalho, sintetiza toda


a discussão anterior, no entanto, gostaríamos de destacar que o
intercâmbio do ser humano com a natureza ocorre a partir de relações
sociais e com participação do pensamento, portanto sua atividade
pressupõe uma intenção inicial que determina o autocontrole do
comportamento, ou seja, o trabalho não ocorre de forma espontânea,
mas, cada vez mais, a partir de planejamento.
Podemos indicar o processo de trabalho como a forma humana
de produzir a existência, mas antes observamos que ele é elemento
definidor do ser humano e resultado de processos anteriores, pois o
ser humano produziu em seu desenvolvimento esta forma de existir
a partir de sua atividade. Esta forma de relacionamento não apenas
diferencia o ser humano em relação à natureza, mas possibilita que
este processo tenha continuidade.
Assim, quando consideramos o trabalho se realizando a partir
das características acima especificadas, não mais é possível tomar
o objeto como natureza, mas é necessário tomá-lo como realidade
em desenvolvimento e desdobrada como natureza, sociedade e
pensamento.
O trabalho, neste ponto da reflexão, é tratado e caracterizado
como um processo criativo, considerado em sua dimensão produtiva,
como realização do novo objetivado a partir do já existente.
Adiantamos que no modo de produção capitalista, que é o modo atual
de produzir a existência, o trabalho se apresenta também em seus
efeitos destrutivos.
Por ora, pretendemos reapresentar esquematicamente o
96

processo de trabalho, ainda em sua dimensão criativa, a partir de uma


outra perspectiva: o início continua a ser uma necessidade humana,
no entanto, como já constituída socialmente, ela é considerada no
pensamento e, por este processo, torna-se um problema humano
na medida em que os conhecimentos produzidos anteriormente e a
situação a ser resolvida em sua atualidade se fundem na dimensão
cognitiva.
Como problema social já contém uma perspectiva de solução,
assim se desencadeiam processos relacionados ao planejamento da
atividade que têm como intenção resolvê-lo. Gera-se um “produto”,
ainda na dimensão abstrata do pensamento, que envolve idealmente
a antecipação da objetivação que se pretende realizar e a organização
da atividade social para produzi-lo.
As operações de trabalho já “realizadas” abstratamente
pelas funções cognitivas em comunicação, finalmente realizam-se
externamente sofrendo as determinações do anteriormente planejado
e das surpresas que são inerentes ao processo produtivo em qualquer
dimensão. Materializa não apenas uma objetivação enquanto objeto
físico, mas ao mesmo tempo, relações sociais ou conceitos que se
fizeram necessários para a realização da atividade de solucionar um
problema social.
O resultado deste processo de objetivação são elementos novos
produzidos que passam a existir na realidade caracterizando-se como
forças ativas. O elemento novo produzido, como síntese do processo
em questão, irá integrar-se à atividade produtiva transformando a
realidade, tanto objetiva como subjetivamente (VIGOTSKY, 2003).

No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto,


mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto de
trabalho, pretendida desde o princípio. O processo extingue-se
no produto. Seu produto é um valor de uso, uma matéria natural
adaptada às necessidades humanas mediante transformação
da forma. O trabalho se uniu com seu objetivo. O trabalho
está objetivado e o objetivo trabalhado. O que do lado do
trabalhador aparecia na forma de mobilidade aparece agora
como propriedade imóvel na forma do ser, do lado do produto.
(MARX, 1988:144).
97

Observamos, desde já, que as características do trabalho


humano nos aspectos acima mencionados, que primariamente
estão relacionados ao metabolismo do ser humano com a natureza,
determinam as realizações humanas em outras dimensões da sua
existência, como por exemplo, nas atividades científicas, artísticas e
até mesmo nas atividades educativas.
Em virtude do que foi exposto, a relação sujeito – objeto não
deve mais ser entendida como relação ser humano – natureza, mas
ser humano – realidade, a última apresentando-se em seus diversos
aspectos e em unidade com a práxis humana de produzi-la.
Esta relação não pode ser considerada senão na movimentação
entre os seus pólos, pois da mesma forma que existe objeto no sujeito,
ou seja, o ser humano se apropria da história passada contida nas
objetivações humanas (instrumentos, relações sociais, linguagem,
conhecimentos, pensamentos), existe sujeito no objeto, visto que a
realidade necessita ser considerada também na dimensão das criações
humanas em seus vários campos de atividade.
Desta forma, mesmo mantendo a pressuposição da anterioridade
e exterioridade da realidade em relação ao pensamento, seria uma
simplificação afirmar que a realidade exista e se realize de forma
independente ao pensamento, visto que em muitos aspectos ela é
pensamento objetivado.
Por fim, ainda nesta primeira aproximação, gostaríamos de
salientar que considerar o sujeito como humanidade, como ser social,
no processo de realização do real não significa que a possibilidade
de uma relação consciente de grupos humanos com a humanidade,
tomada em seu conjunto, não seja algo relativamente recente na
história.
O processo de produção de uma realidade humana não se deu
de forma homogênea, como pode parecer em nosso raciocínio, pois
a relação ser humano – natureza ocorreu de formas singulares em
diferentes grupos humanos devido a modos específicos de reproduzir
a existência. A conseqüência desta diversidade foi a objetivação
de distintas culturas, o que significa maneiras também diversas de
produzir, pensar e dizer a realidade.
Do desenvolvimento da realidade em sua diversidade objetiva-se
a razão humana como resultado do que os seres humanos construíram
no processo de constituir a própria existência concreta, permitindo
98

progressivamente atribuir-se finalidades cada vez mais independentes


dos constrangimentos imediatos da vida material. Isto significa
também produzir conhecimentos sobre si (ser humano) que não se
limitam às relações sociais imediatas e às estruturas já estabelecidas,
pois tornou-se possível conhecer a realidade nas possibilidades de
realização futura e em sua totalidade.
Como síntese provisória deste primeiro momento de reflexão
podemos praticamente reproduzir a afirmação do primeiro parágrafo
deste texto, esperando que agora ela tenha maior significação: a
educação existe como elemento constitutivo do ser humano, na
medida em que para produzir e reproduzir sua existência, esse não
mais pode recorrer somente às possibilidades contidas na natureza
dada (biológica) e aos aprendizados decorrentes das experiências
de uma existência individual, mas, o ser humano, cada vez mais,
necessita apropriar-se de uma segunda “natureza”, exterior ao seu
organismo, da realidade naquilo que se refere às conquistas históricas
obtidas por meio do trabalho.

Educação e realidade na sociedade de classes.

O exercício do pensamento que procuramos descrever até o


momento tomou a relação sujeito – objeto considerando o próprio
processo de produção da realidade, privilegiando o desenvolvimento
do objeto e o seu desdobramento de realidade natural em realidade
natural e humana, em outros termos, nos referimos ao processo de
produção do sujeito teórico – prático à partir do desenvolvimento do
objeto. Neste processo indicamos como aspecto distintivo do existir
humano a possibilidade de objetivar pelo trabalho a realidade social,
determinando o seu modo de produzir a existência e indicando-o
como um ser que existe historicamente.
Como afirmamos anteriormente, o ser humano necessita
indefinidamente produzir sua existência pelo trabalho, portanto o
modo característico como organiza a produção é determinação central
na objetivação do seu existir, assim, ao considerar a relação entre o ser
e o existir, é o existir histórico que permite compreender a realidade
humana em seu desenvolvimento.
99

Para darmos seqüência à nossa reflexão tomaremos a relação


sujeito – objeto na singularidade da sociedade capitalista, assim
sendo, o sujeito na realização do real é a contradição inerente ao modo
de produção capitalista. O sujeito não é mais somente o agente de
determinação na produção do real, é também pensamento sobre o real,
atividade e consciência sociais em tensão que atuam na objetivação
da realidade. O objeto, da mesma forma, é a realidade contraditória
da sociedade capitalista, determinado pela luta entre classes sociais
distintas, contradição que move o processo de realização do real,
principalmente em sua dimensão humana.
Neste sentido, a luta entre classes sociais passa a desempenhar
papel central, visto que é por meio dos conflitos daí advindos que as
relações sociais se transformam, ou seja, que a realidade se objetiva
numa nova forma. Refletir sobre a realidade humana atual significa
considerar o existir humano a partir das classes sociais:

Dá-se o nome de classes a amplos grupos de homens que se


distinguem pelo lugar que ocupam em um sistema historicamente
definido de produção social, por sua relação (quase sempre fixada
e consagrada em leis) com os meios de produção, por seu papel
na organização social do trabalho; portanto, pelos modos de
obtenção e a importância da parte de riquezas sociais que dispõem
(BETTELHEIM, 1979:128 cita Lenin O C. tomo 29, p. 425).

Do esclarecimento acima, podemos destacar que as


diferenciações técnicas do processo de trabalho, já citadas
anteriormente, transformaram-se historicamente em divisões sociais
e políticas nas quais grupos humanos passam a se diferenciar pela
forma específica como se inserem no sistema produtivo. As classes
sociais se referem à objetivação de formas de relacionamentos sociais
em que uma parte da sociedade apropria-se do trabalho da outra. Com
o acontecimento histórico da propriedade privada surge a divisão da
sociedade em classes sociais.
Na sociedade capitalista as classes se constituem a partir da
forma como o trabalho se organiza e pelos objetivos da produção,
visto que ela existe fundamentalmente para produzir mercadorias que
100

se tornarão valores destinados a trocas no mercado. Sua finalidade


primordial não é beneficiar o existir humano, mas acumular valor
(capital), processo que acaba ocorrendo em detrimento da força de
trabalho, ou seja, daquela força viva que pode criar um valor novo.
Como a realidade não pode ser tratada de forma exterior aos
acontecimentos históricos, mas somente a partir do contexto, ela
necessariamente tem que ser considerada levando-se em consideração
a contradição entre capital e trabalho. Esta afirmação apenas perderia
sentido com a superação do modo de produzir capitalista.
O real como sociedade capitalista não existe somente como
objeto, ou seja, como resultado da prática social humana (dimensão
prática da luta entre classes), existe, também, como pensamento
acumulado sobre a realidade, incluindo o próprio funcionamento
da sociedade capitalista (dimensão teórica da luta entre classes), ou
seja, a realidade existe também como pensamento se realizando,
como prática que se objetiva a partir de sistemas explicativos sobre
a realidade.
Com estas considerações, podemos esclarecer que a realidade
que de certa forma foi identificada como sociedade capitalista foi,
na verdade, identificada com a contradição inerente a esta sociedade,
o que representa uma forma de abordagem que reconhece no seu
funcionamento as forças reprodutoras da realidade, mas que, no
entanto conhece os seus limites, visto que contém em si a sua própria
negação, produzindo neste sentido forças sociais que atuam a partir
da consciência de que dentro deste modo de produção os principais
problemas humanos não podem ser resolvidos, visto que por ele são
gerados.
O que estamos querendo destacar é que se na discussão
anterior a realidade havia se desdobrado como natureza, pensamento
e sociedade, neste momento é necessário considerar outro aspecto
do processo de diferenciação, aquele que se objetiva a partir da
propriedade privada e da divisão social do trabalho.
As contradições advindas desta forma histórica de
relacionamento acabaram por determinar tensões e antagonismos
no modo de pensar a natureza e a sociedade, na forma de existir em
sociedade e de reproduzir a existência humana.
Tanto a prática social humana como o pensamento que se
acumula sobre a realidade estruturam-se a partir de relações com
101

o modo de produção e passam a existir como objetivação, ou seja,


passam a desempenhar papel ativo nas contradições que movimentam
o real. Assim, apesar de hegemônica, a sociedade capitalista não se
caracteriza como sendo a realidade, mas uma realidade que vem
se concretizando a partir da luta entre possíveis, o que inclui a sua
própria superação.
O objeto na sua identificação como realidade da sociedade
capitalista, em virtude do que foi afirmado, não pode ser considerado
como estático, pois mesmo quando se realiza mantendo sua
estruturação básica, existe a partir de forças sociais em disputa que
realizam re-posicionamentos constantes em decorrência das tensões
advindas de suas contradições.
Se no momento anterior de nossa reflexão, ao abordar a
relação ser humano – natureza nos interessava o que era específico
do ser humano, neste momento nos interessa o que é específico do ser
humano no funcionamento da sociedade capitalista, que é a realidade
a partir da qual as relações se objetivam.
Realizaremos, no entanto, um recuo para fundamentar
algumas afirmações e identificar algumas características deste modo
de produção, destacando a singular combinação dos elementos do
trabalho no capitalismo, que está na base de estruturação das próprias
contradições sociais. A tarefa se refere a caracterização da atual forma
de relacionamento do ser humano com a natureza para produzir e
reproduzir sua existência, ou seja, como o trabalho existe.
A primeira especificidade é a de que o processo produtivo está
sob controle do capitalista, pois ele é proprietário dos elementos do
trabalho, ou seja, da atividade produtiva, dos meios de produção e do
objeto a ser transformado.
É propriedade do capitalista, definida inclusive juridicamente, o
objeto a ser trabalhado quer se trate da natureza em sua forma natural
ou transformada como matéria-prima. Também é ele, enquanto classe,
o proprietário dos meios de produção, ou seja, as realizações técnicas
que sintetizam a história acumulada de relações do ser humano com a
natureza tornaram-se, não sem luta, posse do capitalista.
Por fim, decorrente de toda uma reestruturação social, também
a força de trabalho passa a existir como uma de suas propriedades,
na medida em que paga por ela, com o salário, e a coloca em
funcionamento a seu favor tirando como pode o melhor proveito.
102

Na relação ser humano – natureza na sociedade capitalista o


trabalhador trabalha sob o controle do capitalista e o produto também
é de propriedade deste e não do produtor. O processo de trabalho,
do ponto de vista do capitalista, é um processo entre coisas que lhe
pertencem, inclusive a atividade do trabalhador.

Voltemos ao nosso capitalista in spe. Deixamo-lo logo depois de


ele ter comprado no mercado todos os fatores necessários a um
processo de trabalho, os fatores objetivos ou meios de produção
e o fator pessoal ou força de trabalho. Com o olhar sagaz de
conhecedor, ele escolheu os meios de produção e as forças
de trabalho adequadas para o seu negócio particular, fiação,
fabricação de botas etc. Nosso capitalista põe-se a consumir
a mercadoria que ele comprou, a força de trabalho, isto é, ele
faz o portador da força de trabalho, o trabalhador, consumir os
meios de produção mediante seu trabalho. A natureza geral do
processo de trabalho não se altera, naturalmente, por executá-lo
o trabalhador para o capitalista, em vez de para si mesmo. Mas
também o modo específico de fazer botas ou de fiar não pode
alterar-se de início pela intromissão do capitalista. Ele tem de
tomar a força de trabalho, de início, como a encontra no mercado
e, portanto, também seu trabalho da maneira como se originou em
um período em que ainda não havia capitalistas. A transformação
do próprio modo de produção mediante a subordinação do
trabalho ao capital só pode ocorrer mais tarde e deve por isso ser
considerado somente mais adiante. (MARX, 1988:147).

O trabalhador encontra-se submetido nesta relação, inicialmente


juridicamente, visto que não é proprietário dos meios de produção
e, na medida em que, existindo separado dos meios de produção e
sem condições para trabalhar individualmente, se vê obrigado a se
reproduzir pela venda da sua força de trabalho.
A subordinação inicial do trabalhador ao capitalista, num
primeiro momento, não se referia a capacidade de trabalho, visto que
o trabalho era de domínio do trabalhador. Estava subordinado porque
vendia sua força de trabalho, mas ainda possuía o domínio do modo
103

de processar a matéria, era conhecedor das técnicas, e o capitalista


explorava sua capacidade aumentando o tempo de produção a partir
de um rígido controle.
Com o desenvolvimento deste modo de produzir, o trabalhador
passa a ser duplamente submetido, pois perde o controle do próprio
sistema produtivo. As relações sociais de dominação, características
do modo de produzir capitalista, se objetivam inclusive na forma de
maquinaria e o trabalhador passa a se defrontar com uma situação em
que é obrigado a se submeter ao funcionamento da produção.
O aprofundamento das relações capitalistas significou um
processo de expropriação do trabalhador de sua capacidade de
controlar o trabalho e o desenvolvimento de uma luta constante
procurando reduzir o seu acesso ao mínimo possível para colocar os
meios de produção em funcionamento.
Podemos adiantar, considerando o tema educação, que o mínimo
significa não apenas as pressões por menor salário, mas também por
acesso restrito aos conhecimentos produzidos, limitando a “educação”
do trabalhador à pragmática de saber operar sob controle externo, no
caso, a classe capitalista.
Não apenas as relações de propriedade estão na base do
modo de produzir capitalista, mas também a separação no processo
produtivo das funções de execução e planejamento, significando que
o lugar ocupado na produção vai determinar relações específicas com
os meios de produção e papéis distintos na produção da existência
humana.
Portanto os seres humanos passam a diferenciar-se e a se definir
socialmente como grupos distintos e antagônicos pelo modo como
obtêm o necessário para a própria vida e pela importância social do
lugar que ocupam.
O trabalhador, para o capitalista, é apenas mais um elemento no
processo de trabalho, mas não qualquer elemento, pois, mesmo que
sua classe procure dissimular esta realidade, ele é fator decisivo na
produção do novo valor que é apropriado pelo capitalista (mais-valia).
Quem tem a possibilidade de acrescentar valor aos investimentos
iniciais do capitalista é o trabalhador, pelo trabalho vivo, que coloca
em funcionamento o trabalho passado acumulado nos meios de
produção.
Esta afirmação continua tendo validade mesmo que em certos
104

períodos o desenvolvimento tecnológico e, conseqüentemente, das


maquinarias ganhem importância no processo de diminuição de
custos e aumento dos lucros. No entanto, quando as taxas de lucro do
capitalista sofrem diminuição é sobre os trabalhadores que vão incidir
as chamadas reestruturações do processo produtivo.
As manobras ocorrem no sentido de elevar a taxa de lucro
e normalmente se caracterizam como soluções que em nada se
aproximam do nível de elaboração tecnológica alcançada, ou seja, têm
sempre a tendência de aumentar o tempo trabalhado e de minimizar
os gastos com salários, operação que pode significar maior número de
horas trabalhadas mensalmente ou maior tempo de vida trabalhando.
Sintetizando, podemos afirmar que os objetivos de trabalhadores
e capitalistas não são os mesmos, pois cabe ao último, como está
expresso na própria nomenclatura, acumular o capital, que somente
pode ser conseguido pelo trabalho não pago ao trabalhador, e ao
primeiro, reproduzir sua própria existência e lutar contra a dominação
que vem lhe sendo imposta.
A realidade social existe determinada por este processo, como
movimento decorrente da contradição entre capital e trabalho em suas
diversas dimensões. Deste modo, qualquer processo de reflexão sobre
a realidade deve partir da consideração de que a existência humana se
fundamenta em relações sociais de dominação.
Contradição inerente à realidade, como sociedade capitalista,
na medida em que capital e trabalho existem um em função do
outro. A negação do trabalhador é o desenvolvimento do capital, pois
o trabalhador é o meio de desenvolvimento do capital, do mesmo
modo, a negação do capital é o desenvolvimento do trabalhador, pois
o capital é o meio de desenvolvimento do trabalhador.
Apesar dessa implicação, há entre capital e trabalho uma
oposição na qual cada um dos pólos busca sua emancipação, visto
que são qualitativamente distintos e irredutíveis um ao outro. Como
pólos antagônicos somente podemos considerar a relação entre eles a
partir de uma mediação, no caso, a já citada luta de classes.
A dinâmica realidade se desenvolve a partir das objetivações
resultantes de lutas e tensões que vão se acumulando no processo de
realização do real. O capitalista busca negar as formas organizativas
da classe trabalhadora e esta se esforça para organizar suas ações;
o primeiro busca aumentar seu lucro pelo aumento da exploração
105

do trabalhador (mais trabalho, menos remuneração, maior controle


sobre o trabalho, menos direitos) ao passo que esta classe luta para
conquistar direitos e poder ter acesso às “riquezas” objetivas e
subjetivas produzidas pelo ser humano.
Podemos reafirmar assim, que as contradições decorrentes
da unidade dialética entre capital e trabalho se resolvem pelas lutas
concretas que se travam no processo de realização do real, que se
recoloca permanentemente como um momento novo de afirmação de
uma nova contradição.
A determinação desta contradição, apesar de sua centralidade,
não elimina outras determinações na produção do real, como por
exemplo, as decorrentes de formações culturais distintas, no entanto
consideramos a dimensão cultural aspecto mais imediato do que a
formação econômica estrutural. O capitalismo se constitui e se realiza
em diferentes culturas sem descaracterizar-se, mantendo aquela
singular combinação entre os elementos do processo de trabalho.
Estruturando-se como uma realidade em expansão tem a
capacidade de transfigurar-se para se manter, processo que só faz
aumentar a tensão e as conseqüências históricas de suas contradições.
Continua a desempenhar papel decisivo para sua realização a
correlação de forças entre capital e trabalho, não por acaso, atualmente
os capitalistas se dirijam a países como a China, cuja forma autoritária
de funcionamento permite uma super-exploração do trabalhador.
A realidade somente pode ser considerada levando-se em conta
os aspectos culturais que a constitui em sua diversidade, dimensão que
determina as formas de realização do trabalho, os relacionamentos
sociais na sua singularidade, mas que no entanto, ela própria somente
pode ser pensada em unidade com o modo de produção que lhe
determina a existência. No momento atual do capitalismo é necessário
considerar a realidade de diferentes culturas vinculadas ao papel que as
relações capitalistas globalizadas lhes atribui na economia mundial e
as resistências que vão se consolidando em relação a estes projetos.
Neste momento de nossa reflexão, o que tratamos por realidade
torna-se complexo, o que significa, por um lado, que não pode ser
apreendida imediatamente pelo ser humano, e por outro, que pode
ser conhecida a partir do pensar teórico. Seus desdobramentos se
multiplicam e àquela diferenciação inicial de natureza, pensamento
e sociedade, agregam-se determinações referentes ao modo de
106

produção capitalista, ou seja, da oposição entre classes sociais em


luta, apresentando-se a partir de relações políticas que existem na
diversidade das formações culturais.
Qualquer intervenção (atividade prática ou teórica) que se
realiza na sociedade de classes se dá a partir do lugar, enquanto
posicionamento ético - político, que se ocupa no sistema de produção
social e do papel que exerce na sociedade, o que representa integrar-se
a uma força social agindo em um sentido determinado da contradição
acima explicitada.
Assim sendo, consideramos a realidade como unidade entre as
dimensões do existir e do resistir e como permanente processo de
produção e reprodução. São parte integrante da realidade diferentes
possibilidades de existir futuro, aspecto que leva a necessidade de
constantes indagações sobre qual realidade se está comprometido em
produzir.
A possibilidade ou não de objetivar uma prática social a
partir da mediação de questionamentos sobre o existir humano na
produção da realidade já é resultado das contradições sociais que se
concretizaram e um aspecto dessa luta, visto que o existir consciente
vincula-se diretamente à formação dos indivíduos.
Podemos enfim retomar àquela afirmação de que a educação
existe como elemento constitutivo do ser humano, na medida em que
para produzir e reproduzir sua existência esse necessita apropriar-se
de uma segunda “natureza”, exterior ao seu organismo, e inserir a
consideração de que a realidade que o ser humano se apropria diz
respeito a atualização das lutas que se travam em diferentes campos
de atividade, determinados pela contradições decorrentes do modo de
produzir a existência.

Educação e existência individual

Se em nossa primeira aproximação visando compreender a


relação sujeito – objeto a realidade se desdobrou em natural e humana,
comportando a sociedade e o pensamento, no segundo momento,
ela se diferencia ainda mais, visto que necessariamente tem que ser
considerada a partir dos antagonismos entre classes sociais que a
107

constitui. Isto significa que ela se realiza como luta que se objetiva
no presente e, sendo assim, é portadora de possibilidades futuras de
realização.
O sujeito nessa relação perde a nitidez visto que a realização do
real se movimenta a partir de classes sociais em luta, o que significa
que o próprio pensar sobre a realidade, mesmo que indiretamente,
está determinado por esta contradição.
No entanto, conhecê-la tornou-se uma possibilidade humana,
visto que na sua história vem se objetivando um processo ininterrupto
de conhecimento e reconhecimento da realidade, no qual o pensamento
orientado por conteúdos acumulados ganha relativa autonomia em
relação ao real se realizando.
Construiu-se na história atividades relacionadas ao processo de
produção de conhecimentos, nas quais os vínculos com a realidade
passam a se constituir a partir de relações que envolvem três elementos,
quais sejam, o de um sujeito como pensamento científico, portanto
como atividade orientada por um método de conhecer, o de um objeto
a ser conhecido como conhecimento acumulado, ou seja, como
relação entre o pensamento realizado e pensamento se realizando e,
por fim, a realidade como objeto exterior e anterior ao pensamento,
que passa a constituir-se como critério de validade do conhecimento
produzido, na medida em que a ação sobre ela se pauta por aquilo que
se produziu no movimento de conhecer
Não nos aprofundaremos nesta discussão, apenas sintetizamos,
a partir da posição do materialismo histórico dialético, essa forma
de conceber a produção de conhecimentos para afirmar que cada vez
mais os resultados deste processo integram os modos como o trabalho
se objetiva, e dessa maneira o saber científico passa a ser condição da
existência humana. Sua apropriação é necessidade tanto para viabilizar
a participação no processo produtivo em si, como para qualificar
a atividade social humana como práxis, ou seja, como atividade
consciente de si e de sua participação na realização humana.
Reafirmamos assim que a realidade não pode ser apreendida
imediatamente pelo ser humano, e ao mesmo tempo, que ela pode
ser conhecida a partir do pensar teórico. Como fica evidente, essa
possibilidade histórica de se relacionar com a realidade somente pode
ocorrer como conseqüência de processos educativos.
Não podemos deixar de mencionar que, se no processo
108

de constituição do capitalismo as forças de trabalho podiam


ser encontradas no mercado e o capitalista as colocava para
produzir visando atender seus interesses particulares, como citado
anteriormente, com o aprofundamento deste sistema, a atividade
educativa sistemática2 passou a desempenhar importante papel no
funcionamento da produção, visto que é de interesse do capitalista a
objetivação de força de trabalho adequada ao seu modo de produzir.
Relembramos que o seu modo de produzir se caracteriza pela
propriedade privada e pela divisão social do trabalho, que se organiza
a partir da cisão entre funções de execução e de planejamento,
trazendo conseqüências para a forma como o capitalista concebe a
relação educação – trabalho.
Para não nos alongarmos, apenas citaremos que é uma
educação pragmática visando o funcionamento do modo de produção,
ou seja, como as funções desempenhadas no modo de produzir são
diferenciadas, o educar para o trabalho e para vida também se tornam
desiguais, estabelecendo assim, como força hegemônica, a histórica
dualidade na formação dos indivíduos a partir da objetivação de um
sistema em que convivem, não sem conflitos, os integrantes da escola
de elite e os da escola dos oprimidos, espaço destinado a propiciar o
mínimo de saber necessário para realização do trabalho nos limites
das ações fragmentadas. (SAVIANI, 2005)
Mas para além da diferença citada, o sistema guarda coerência
no que se refere aos objetivos de formar um ser individual que paute
suas ações pelo egoísmo, funcionando a partir de concepções que
naturalizam e dimensionam exageradamente as diferenças individuais
e justificam tanto a hierarquia social quanto ascensão por mérito de
grupos restritos da sociedade.
O que estamos querendo demonstrar é a contradição colocada
nos termos da atividade educativa. Existe um pólo de forças sociais
que concebe e realiza a educação a partir de metas justificadas
pelo pragmatismo de aumentar a produção e, conseqüentemente, a
riqueza, na promessa de que um dia será repartida, mas que de fato se

2
Não abordaremos neste texto detalhes de como a educação se desenvolveu de forma específica em diferentes
modos de produção até que a educação escolar se tornasse hegemônica na sociedade capitalista.
109

caracteriza como uma atuação sistemática na produção da passividade


dos indivíduos.
Resiste um outro pólo que concebe e luta pela educação pública,
vislumbrando a realização das possibilidades históricas de vínculo
com a realidade a partir do conhecimento cientifico, permitindo a
participação social dos indivíduos como atividade consciente da
própria participação na realização humana, ou seja, existem como
resistência forças sociais que vislumbram a produção do indivíduo
que não seja passivo e pragmático e consiga se relacionar com os
verdadeiros problemas humanos, como aquele de impedir que grupos
humanos permaneçam sob o domínio das condições imediatas.
Nesta perspectiva, pressupõe-se a formação de qualidade para
o conjunto de seres humanos, universalizando o saber constituído. O
indivíduo pela determinação dos processos educativos necessita se
reproduzir como realidade, não qualquer realidade, mas aquela do
estágio presente de possibilidades, como conhecimento científico,
filosófico e artístico, como pensamento impregnado de conteúdo
e autocontrolado por método de pensar, como criatividade, como
atividade prática mediada por sistemas teóricos em desenvolvimento,
como práxis produtora de realidade anteriormente antecipada, como
reflexão coletiva, como luta política. Necessita se reproduzir como
humanidade e existir politicamente com consciência do próprio
existir.
Apesar das diferenças que se apresentam, o processo de
autoprodução do existir humano está sempre demarcado pelas
atividades educativas que inserem as gerações na realidade a partir
das bases de um modo estabelecido de produzir a existência. A já
mencionada disputa neste campo ocorre como expressão de diferentes
posicionamentos no que se refere ao conteúdo das determinações que
a atividade educativa vai exercer sobre a formação dos indivíduos.
Evidente que a batalha se trava a partir dos sistemas educativos
existentes, cuja força hegemônica é a classe proprietária dos meios de
produção, deste modo nossa reflexão poderia prosseguir apontando
as batalhas concretas travadas neste campo, visto que estamos
sofrendo as conseqüências do processo de reestruturação do capital
com a imposição das chamadas políticas neoliberais, no entanto,
optamos por permanecer nas considerações gerais do processo de
desenvolvimento individual.
110

Ponto de destaque é que consideramos que é a realidade, como


unidade de existência e resistência, o objeto com o qual os indivíduos
irão se relacionar no processo de produção da existência. O sujeito
que se desenvolve é o indivíduo em relação com outros indivíduos, ou
seja, indivíduo e indivíduos mais experientes, que têm já uma história
de apropriação da experiência humana em suas contradições.
O indivíduo humano existe, ao mesmo tempo, como natureza e
como sociedade numa unidade contraditória em que o pólo prevalente
é o da sociedade. No processo de desenvolvimento individual, as
forças entre os pólos da contradição não são estáticas, pois quando
consideramos o indivíduo humano em sua plasticidade característica
pressupomos que ele sofre um processo de transformação tal que
modifica radicalmente seu modo de relacionamento com a realidade.
O indivíduo, considerado na sua singularidade, na gênese da
vida sofre forte determinação biológica em seu funcionamento, de
certa forma existe inicialmente como organismo vivo, funcionando a
partir dos processos biológicos mais primitivos, mas esta constatação
obvia não invalida, mesmo para estes momentos, a afirmação de que
o pólo prevalente da relação indivíduo – sociedade é o segundo, visto
que a criança sempre se encontrará numa situação sócio-cultural.
Nos períodos em que ainda existe nos limites da natureza dada,
a situação de que participa, sempre social, é dirigida e controlada pelo
adulto mais experiente, sua relação com a realidade se dá a partir
do outro social, portanto ela não é apenas estímulos aos órgãos do
sentido, é realidade de objetivações humanas que são postas em
funcionamento nas relações entre os seres humanos.
Aquilo com que o sujeito individual se relaciona como objeto
é a realidade, considerada já em seus desdobramentos como natureza,
sociedade, pensamento e em suas contradições. O real não é considerado
somente como determinação imediata de pessoas e coisas produzidas
pelo homem, acessíveis ao campo da sensação e da percepção, ela é
também, realidade de determinações não imediatamente percebidas,
mas que se mantém como determinação no processo de realização
do real. Existem acontecimentos que não são diretamente percebidos,
mas que, no entanto, continuam a determinar as formas de existir dos
indivíduos. O que se está afirmando é que no processo de tomar a
relação sujeito individual – realidade social como objeto de reflexão
visando conhecer o desenvolvimento do primeiro, não é possível se
111

limitar às situações empíricas, pois as determinações, mesmo quando


não conscientes pelos integrantes de uma dada situação, continuam
sendo determinação na produção do real.
O problema se desdobra, pois se de um lado existe a relação do
indivíduo com a sociedade num processo real de desenvolvimento,
que acontece mesmo que não se tenha total consciência, por outro,
existe a relação do indivíduo – sociedade como objeto do pensamento,
que no campo científico tem implicação necessária com a relação no
primeiro aspecto.
Observação não sem importância, porque os conhecimentos
elaborados sobre a dita relação, podem passar a ser e são mediadores da
própria relação no seu acontecimento factual. Os conhecimentos sobre
desenvolvimento humano constituídos historicamente interferem na
produção de objetos pedagógicos, nas relações com as crianças, na
formulação de propostas de ensino.
Os saberes do senso-comum, da sabedoria e da ciência referentes
ao processo de desenvolvimento individual, na tensão constante em
que se encontram, são determinações nas relações sociais a partir
das quais ocorre o desenvolvimento individual, neste sentido, são
realidade na medida em que se transformam em “soluções” práticas
para situações reais.
A tensão que move o processo de desenvolvimento se objetiva
na organização da atividade de que participa o indivíduo. Se o
cotidiano dos indivíduos da sociedade capitalista tem se pautado, não
por acaso, cada vez mais a partir de ações espontâneas e pragmáticas é
porque o próprio cotidiano assim está estruturado, visando reproduzir
relações capitalistas e impedir a participação consciente da classe
trabalhadora.
Relações espontâneas e pragmáticas, que caracterizam a
existência cotidiana, nas quais necessariamente o indivíduo irá se
inserir, têm na estruturação da sociedade capitalista invadido espaços
que deveriam se pautar pelas relações conscientes e intencionais com
a história. (HELLER, 1970)
Isso ocorre com as atividades relacionadas à educação formal,
em que, muitas vezes, as concepções de desenvolvimento e as
ações delas decorrentes passam a se constituir pela demarcação da
compreensão imediata, não elevada ao nível da teoria, e de soluções
pragmáticas, visando os menores atritos possíveis.
112

O caso é que o desenvolvimento individual ocorre por


processos educativos que se iniciam com o nascimento, momento
no qual a criança se insere na realidade e dá início a sua ativa
participação na sociedade. Discutir a relação ser humano com a
educação é problematizar os contraditórios processos organizados
pela sociedade para que os indivíduos se apropriem da história
humana, compreendendo educação como determinação necessária
no processo de formação individual.

Considerações finais

A discussão aqui exposta teve um caráter introdutório e uma


finalidade didática de iniciar a discussão da disciplina “Psicologia
da educação: fundamentos filosóficos”. Por este motivo, procuramos
apresentar uma visão de conjunto sem aprofundamentos e evitando
utilizar citações. Nos baseamos nos postulados do materialismo
histórico dialético principalmente como se apresentam nas produções
da Psicologia Histórico-cultural e da Pedagogia Histórico-critica
O movimento de reflexão exposto neste material parte da
consideração de que a existência humana necessita ser indefinidamente
reproduzida pelo trabalho, portanto somente a partir do modo
característico como organiza a produção é que podemos compreender
o existir humano. Como as conquistas objetivadas pelo trabalho
passado integram a produção é necessário educar as novas gerações
para dar continuidade à este processo. No caso específico de uma
sociedade de classe, a maioria dos integrantes da sociedade encontra-
se impedida de controlar os processos produtivos e de se beneficiar de
seus resultados, o que acaba objetivando uma contradição no próprio
campo da educação, visto que, da posição da classe trabalhadora, o
problema não mais se refere ao educar para dar continuidade ao modo
de produção, mas educar para conhecer o funcionamento deste modo
de produção e suas conseqüências, o que significa produzir condições
para um movimento de ruptura com as injustiças que provoca.
O aspecto que procuramos destacar é que a educação deve
ser voltada para a realidade, por este fato é que procuramos apontar,
a partir do materialismo histórico dialético, como a realidade se
113

constitui e se diferencia.
A realidade estrutura-se em suas diferentes dimensões, ou seja
como natureza, como sociedade e como pensamento. Ela se desenvolve
a partir das contradições atualizadas da sociedade, marcada pelos
antagonismos entre classes sociais, ou seja, a partir da luta de classes,
o que representa diferentes posições no modo de compreender e
existir em sociedade. A realidade é um todo que se estrutura a partir
de diferentes culturas que cada vez mais se comunicam e se articulam
como humanidade.
A realidade se produz como existência e resistência, e como
realização de uma certa hegemonia se afirma no presente. No entanto,
compreende possibilidades distintas de existir no futuro, aspecto que
torna necessário recolocar constantemente o problema filosófico de
qual realidade se tem a intenção de produzir.
Por fim, consideramos a formação dos indivíduos a partir
das relações que estabelecem com a realidade nos aspectos acima
retomados, considerando que quando a educação passa a se organizar
como trabalho educativo, ela começa a ser pautada pela antecipação
daquilo que se almeja produzir.
Novamente apontamos que as contradições da sociedade
demarcam diferentes posições quanto aos objetivos da educação,
indicando que o projeto de existir individual, em seu polo hegemonico,
vislumbra a realização de indivíduo pragmático e adaptado à realidade
estabelecida e, de outro lado, como resistência a ele luta-se pelo existir
do indivíduo contemprorâneo de seu tempo histórico e consciente
tanto da realidade que está inserido quanto daquela que mereça ser
realizada.

As Mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.


Com mãos tudo se faz e desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.


Não são de pedras estas casas mas
114

de mãos. E estão no fruto e na palavra


as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas


as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas

De mãos é cada flor cada cidade.


Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade

Manuel Alegre

Proposta de atividades

Releia a poesia acima, de Manuel Alegre (ALEGRE, 1997)


e procure relacioná-la com o conteúdo do texto nos seguintes
aspectos:

1- A produção da realidade humana a partir do trabalho;

2- A produção da realidade a partir de classes sociais em luta;

3- A educação das “mãos” humanas no contraditório processo


de existir;

4- O significado de liberdade.

Referencias bibliográficas

ALEGRE, Manuel. Trinta anos de poesia. Lisboa: Publicações Dom


Quixote, 1997.
BETTELHEIM, Charles. A luta de classes na União Soviética:
115

primeiro período (1917-1923). 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1979.
HELLER, A. O cotidiano e a História. São Paulo: Editora Paz e Terra,
1970.
LEONTIEV, A. Actividad, Consciência y Personalidad, Buenos Aires:
Ediciones Ciências del Hombre, 1978.
LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros
Horizonte. 1978.
SAVIANI, D. Educação Socialista, pedagogia histórico-crítica e
o desafio da sociedade de classes, in Saviani e Lombardi (Orgs).
Marxismo e educação: debates contemporâneos. Campinas: Autores
associados: Histedbr, 2005.
MARX, K. O capital. Volume I: O processo de produção do capital.
São Paulo: Nova cultural, 1988.
VIGOTSKY, L.S. La imaginación y el arte en la infância. Madrid:
Akal, 2003.
116
117

O SOCIAL NA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA E


UMA DIDÁTICA PARA A SALA DE AULA
Nilma Renildes da Silva1

“Educar es depositar en cada hombre

toda la obra humana que le ha

antecedido; e hacer a cada hombre

resumen del mundo viviente hasta el

día en que vive.” Jose Martí

Este texto terá como objetivo discutir o que compreendemos


por social na perspectiva da Psicologia Social Sócio-Histórica,
entrelaçada por uma discussão sobre a importância da didática na
sala de aula, no ensino superior, para que o aluno se aproprie dos
conteúdos científicos que lhe serão transmitidos. Os processos de
desenvolvimento e de educação, embora se inter-relacionem, não são
unilaterais. Compreendemos que a educação, ao colocar o discente
perante novos fins e tarefas, proporciona a ele a continuidade do
processo de formação de sua individualidade, que, em sua essência, é
um processo educativo.
Para isto, a educação serve-se do desenvolvimento do aluno,
do que ele já dispõe de conhecimentos e capacidades. Desta forma,
fica configurada uma relação de cumplicidade mútua entre ensino,
aprendizagem e desenvolvimento, destacando-se que, no início,
o primeiro tem a incumbência de provocar os demais. Portanto,
a Educação tem um fim que não deve fragmentar-se ou alienar-se
em outro, pelo risco de subsumir-se na ideologia, o que favoreceria
somente a reprodução da forma de organização social atual, em
detrimento do processo de humanização.
Como professora de Psicologia Social, considero de suma

1
Doutora em Psicologia da Educação PUC/SP, Mestre em Psicologia Social PUC/SP com especialização em
Violência Doméstica USP/SP. Professora de Psicologia Social I e II e Supervisora de Estágio em Psicologia
Social Comunitária do Departamento de Psicologia UNESP/BRU
118

importância a apropriação dos conhecimentos, não exclusivamente,


mas fundamentalmente os escolares/científicos, como fator
preponderante no processo de desenvolvimento de sujeitos históricos,
em nosso caso, de um educando futuro psicólogo.
Ao levar em consideração o exposto nos parágrafos anteriores,
esclareço que a maneira escolhida para escrever sobre o que é social?
na perspectiva da Psicologia Social Sócio-Histórica, será a mesma da
minha prática em sala de aula, na qual tenho tentado correlacionar
a teoria dialética do conhecimento, a apropriação da relação
aprendizagem - desenvolvimento e a correspondente metodologia de
ensino - aprendizagem, proposta por SAVIANI; GASPARIN (2003).
Todavia,lembrando KOSTIUK (1991), que aponta:

[...] o processo de reflexão e discussão em sala de aula, não poderia


ser outro que não o que parte da prática social do educando e
educador na direção de estabelecer um diálogo que possibilite
que o movimento ensino- aprendizagem vá da síncrese, uma visão
caótica do todo à síntese, uma rica totalidade de determinadas
e inúmeras relações, mediada pela análise. Garantindo assim, a
nosso ver, uma forma segura tanto para a condução da prática
pedagógica como para a apropriação e a objetivação de novos
conhecimentos. (p.118 ).

Nessa direção, entendemos ser fundamental a criação de


condições adequadas, na universidade, para garantir que, de fato, o
processo ensino - aprendizagem ocorra. Para isso, as ações precisam
ser planejadas consciente e intencionalmente para os fins da educação,
ou seja, as apropriações das experiências e conhecimentos acumulados
pela história do gênero humano, a fim de que os docentes e alunos
possam avançar às esferas mais elevadas do seu desenvolvimento.
(HELLER, 1977).
Ao pensarmos as atividades desenvolvidas com educandos do
ensino superior, é necessário explicitar como entendemos o processo
ensino - aprendizagem nesse nível de formação escolar. De acordo
com a metodologia proposta, ao trabalharmos com a disciplina
Psicologia Social, primeiramente se inicia o processo num diálogo
119

com os educandos, explicitando qual será a ação desenvolvida pelo


professor, a partir do seu programa. Os alunos terão oportunidade de
expor a visão que trazem dos conteúdos que serão desenvolvidos e
quais suas expectativas em referente a eles. “É a visão de totalidade
em relação a esse objeto [conteúdo] de estudo, expressando o senso
comum, o perceptível,... pois “as coisas são assim mesmo”. É a
explicação da totalidade empírica, do todo caótico.” (GASPARIN,
2003, p. 25).
Como docente da disciplina, solicito aos participantes da aula
que reflitam por alguns momentos sobre o que é social? Peço-lhes que
relacionem o termo como eles o ouvem no seu dia - a - dia, em quais
situações etc ou seja; iniciamos pela prática social dos educandos.
Dessa forma, facilita-se o movimento do pensamento, tornando
possível que eles estabeleçam algumas relações. “Nesta fase, todo o
trabalho do professor se orienta no intuito de mobilizar, predispor o
aluno para a construção do conhecimento.” (Idem).
Após esse momento de reflexão sobre o que é social? para
eles, é solicitado que escrevam o que pensaram. Apresento a seguir
uma síntese do que os discentes do quinto semestre noturno - 2008 -
UNESP-BRU escreveram sobre a questão: O que é social?

01- Tudo aquilo que envolve ou engloba questões que dizem


respeito à sociedade; que se relaciona à comunidade e/ou à população;
remete a grupos de indivíduos.

02- Toda ação, relação, contexto envolvendo um ser e seu


ambiente, outros seres ou fatos; o ser humano é um ser social;
aprendemos, absorvemos, em nossa singularidade, a parte do ambiente
social em que estamos inseridos.

03- Social é todo o contexto histórico-cultural em que todos os


indivíduos estão inseridos em conjunto e não individualmente; tem
a ver com a relação entre os indivíduos a partir do que a sociedade
ensina e a forma como esses indivíduos herdam os “ensinamentos”,
ou seja, a cultura que se modifica de local para local; o social não diz
respeito a um ser único.

04- É uma relação de cooperatividade e bem-estar comum;


120

é saber interagir de modo que haja a participação igual entre os


indivíduos; é um movimento mútuo de dar e receber, compartilhar;
um processo de simultaneidade e reflexividade.

05- É toda relação entre indivíduos em que se tem um contato


verbal e/ou físico, podendo afetar, modificando, o indivíduo em si.

06- É o processo pelo qual “algumas coisas” tornam-se comuns


aos indivíduos; quando as pessoas partilham de opiniões, idéias,
anseios e desejos etc. É quando o indivíduo deixa de ser um “eu”
isolado e passa a participar de um grupo, onde ele partilha de idéias
etc.

07- Aquilo que atua ou influencia um grupo social ou até


mesmo a sociedade como um todo, pode ser considerado social; um
trabalho com grupo minoritário, um fato de considerável repercussão,
uma mobilização por uma causa comum etc.

08- Relaciona-se com sociedade, comunidade, humanidade,


algo que remete ao bem comum dessas categorias; ser social é
participar de eventos, criar projetos, administrar grupos, ONGs, tudo
que beneficie a sociedade ou um determinado grupo; o social envolve
saúde pública, escolaridade, cultura; é a união do todo que envolve a
sociedade.

09- É comumente um determinado grupo de pessoas; é conviver


com outros seres na maior harmonia possível; em relação ao contexto
de anti-social, sociável, traje social, socialmente, socioeconômico... É
um grupo de indivíduos que interagem entre si.

10- É a característica de um grupo, de uma classe; o social


existe a partir de um todo e não apenas de um indivíduo único; a partir
da reunião de pessoas se dá o social, que é a relação e interação entre
os seres de tal grupo; o social ocorre também entre outros seres vivos:
abelha, formiga.

11- É uma palavra com amplo significado, mas pode ser definida
como sendo uma condição da vida humana, pois proporciona as
121

interações da sociedade; tudo o que ocorre entre duas ou mais pessoas


e também o que foi passado em gerações por meio da cultura.

12- Refere-se às várias instâncias de relacionamentos dentro da


sociedade... Existem várias profissões que estudam o social.

13- Toda atividade que envolve um grupo em que há interação


e troca de informação.

14- Remeto a relação a questões entre seres humanos, entre


grupos que se inter-relacionam nos mais diferentes níveis e situações;
um agregado em que os particulares integram-se em estritas relações,
sendo estas positivas (clãs, grupos de trabalho) ou negativas
(dominação, disputa de poder...)

15- É todo evento ou ação entre animais da mesma espécie;


relacionamento entre os seres e o que eles produzem ... Ampararmo-
nos mutuamente.

16- É tudo aquilo que faz referência à sociedade; referente


às relações entre os indivíduos e o aprendizado que surge por meio
dessas relações e de como essas relações influenciam as características
singulares do indivíduo.

17- É um modo de vida em que há o convívio entre os membros e


atividades envolvidas e interligadas, de certa forma; certa organização,
estabelecimento de regras, prevalece a vontade da maioria; subjuga-
se a vontade individual à da maioria.

18- Social tem a ver com grupal: social deve englobar aspectos
qualitativos e de relacionamento dentro de um grupo; o conjunto das
relações de um grupo com membros com características em comum...
no caso dos humanos, esse conjunto pode atingir uma complexidade
condizente com a natureza desse ser.

19- Social nos dá uma idéia de movimento, relações entre coisas


e situações... O ser humano está ligado a um processo que tem sua
dinâmica própria; cada indivíduo agindo sobre os demais e sofrendo
122

também a repercussão das ações destes; a idéia de relação pressupõe


uma interdependência entre os sujeitos, como uma engrenagem que
dá movimento a um grande sistema...após a construção das idéias de
movimento e relações, a inserção do ser humano parece pressupor
a sua intervenção neste movimento e relações com o propósito de
equilibrá-los, visando ao bem-estar comum.
Posteriormente peço-lhes que se reúnam em grupos e façam
uma discussão sobre o que cada um produziu. Se quiserem, podem
acrescentar ou tirar dados de sua reflexão. “Esse é o momento da
contextualização do conteúdo a ser estudado, buscando despertar a
consciência crítica sobre o que ocorre na sociedade em relação ao
tema”. (GASPARIN, 2003. p.29.) Ou seja: é um momento no qual
os discentes se mobilizam a partir de suas vivências sobre o assunto
e podem ir se colocando ativamente na construção do processo de
ensino-aprendizagem.
O momento de contextualização do conteúdo possibilita que o
processo grupal aconteça em sala de aula. Esse processo é fundamental
para garantir a troca de experiências entre os discentes, em relação ao
tema. O grupo possibilita que aqueles que encontram dificuldade em
refletir, com a assistência dos colegas possam chegar a uma resposta,
auxiliando assim a aprendizagem. Poderíamos dizer que, ao responder
individualmente, o aluno revela o que dispõe em termos de conteúdo,
sobre o assunto. Ao juntar-se com outros discentes, na discussão, o
aluno vai se aproximando da compreensão sobre suas possibilidades
de ampliação do conhecimento sobre o tema, que deverá se concretizar
nas fases seguintes da aprendizagem, conforme a ação do professor.
O desafio desta fase é envolver o educando na busca pelo
conhecimento. Esse processo pode gerar desconforto e sofrimento,
visto que é um momento crítico no qual são desconstruídos saberes,
antes da construção de um novo saber. Nesse sentido, professor e
aluno precisam despender esforços diferenciados.
A tarefa que se coloca ao professor é examinar quais os
conhecimentos mais significativos e que serão a base para subsidiar
as discussões subseqüentes. Os conteúdos selecionados não são os
da necessidade imediata do aluno como indivíduo, e sim aqueles
produzidos socialmente. “Inicia-se o desmonte da totalidade,
mostrando ao aluno que ela é formada por múltiplos aspectos
interligados [...] verificando sua pertinência e suas contradições,
123

bem como seu relacionamento com a prática.” (GASPARIN, 2003.


p.36).
Por se tratar de des-re-construção de conhecimento, é um fase
delicada, em que se questionam os conteúdos oriundos da prática
social. A qualidade da relação professor/aluno é fundamental, pois
os conteúdos expressos, que vêm carregados de afetos, ideologias,
preconceitos são reflexos do processo da alienação social e individual.
Enfim os conteúdos podem estar esvaziados do seu sentido real.
Nesse caso, quando o aluno está envolvido na análise das suas idéias
e conhecimentos, há um momento de confronto e, muitas vezes, de
resistência. Assim sendo, sua tarefa é buscar superar o caos que se
instala.
O segundo passo dessa metodologia é a explicitação dos
principais problemas da prática social: a problematização que é:

[...] um elemento-chave na transição entre a prática e a teoria, isto


é, entre o fazer cotidiano e a cultura elaborada [...] é o momento
em que se inicia o trabalho com o conteúdo sistematizado.
(GASPARIN, 2003. p. 35).

Para iniciar a problematização em relação ao conteúdo do


que é social? na perspectiva teórica que privilegiamos, entendemos
ser fundamental tratar da explicitação desse marco teórico, ou seja,
de onde partir para analisar esse conteúdo e que instrumentos se
utilizarão para isso? Porque compreendemos que há diversas teorias
que estudam um determinado fenômeno, muitas até mesmo que se
contradizem. E nesse momento a definição da teoria sócio - histórica
faz-se necessária.
Consideramos que a perspectiva teórica sócio-histórica, em
Psicologia Social, cuja matriz principal é a obra marxiana, parte de
uma visão de mundo e de homem comprometida com a transformação
da realidade social, buscando a humanização do homem. Nesse
sentido, o fazer psicológico deverá ser, de acordo com BOCK (2002),
pautado na:
124

[...] concepção de homem como ser ativo, social e histórico;


buscando superar a visão dicotomizada sobre os fenômenos
psicossociais. E também no entendimento de que a sociedade
é produção histórica dos homens, que, pelo trabalho, produzem
a sua vida material. Ainda visa compreender que as idéias são
representações da realidade material; e a realidade material
é fundada em contradições que se expressam nas idéias;
compreender a história, como o movimento contraditório
constante do fazer humano, no qual, partindo-se da base material,
deve ser compreendida toda produção de idéias, incluindo a
ciência. (p.17 -8).

Em relação ao aspecto metodológico, vale ressaltar que o


conhecimento científico não é coincidente com o conhecimento do
cotidiano2. Se assim fosse, não precisariamos da ciência. É importante
destacar também que o método pelo qual acessamos a essência de um
fenômeno é o método dialético3
A dialética parte da idéia de que o fenômeno sempre se nos
apresenta como aparência, e, para apreendê-lo é necessário desvelar
suas múltiplas relações, buscando apropriar-se de suas contradições.
Pois como nos aponta KOSIK (1976), “[...] o fenômeno indica a
essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no
fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos
ângulos e aspectos. O fenômeno indica algo que não é ele mesmo e
vive apenas graças ao seu contrário[...]” (p.9-11).

2
Definição mais adiante no corpo do próprio texto.

3
Se o desenvolvimento humano e social é histórico, é movimento de transformação constante, é dinâmico.
Assim, para apreender essa dinâmica, a lógica dialética é que vai possibilitar a apreensão histórica, uma vez
que a essência dos fenômenos históricos não é inerte nem passiva, como quer a lógica formal. Ressaltamos
que a lógica formal não é excluída pela dialética, mas incorporada à dialética, segundo a qual a contradição é
característica fundamental de tudo o que existe, de todas as coisas. Dessa forma, a contradição e sua superação
são a base do movimento de transformação constante da realidade; o movimento da realidade está expresso
nas leis da dialética: • Lei do movimento e relação universal;• Lei da unidade e luta dos contrários;• Lei da
transformação da quantidade em qualidade;• Lei da negação da negação. Nessa abordagem, os fenômenos não
pertencem à natureza humana, não são preexistentes ao homem e, sim, refletem a condição social, econômica
e cultural em que vivem os homens. Não podemos falar de subjetividade humana sem falar da objetividade
em que vivem os homens. A compreensão do “mundo interno” exige a compreensão do “mundo externo”:
são dois aspectos de um mesmo movimento, mundos estes que só existem em decorrência da atividade vital
humana – o trabalho.
125

Outra contribuição que a visão teórica-metodológica sócio-


histórica oferece, ao se analisarem os fenômenos, diz respeito à
perspectiva crítica, na qual se pretende a definição de uma ética e visão
política sobre a realidade na qual os fenômenos estudados se inserem.
Dessa forma, o mundo social e o psicológico caminham juntos em seu
movimento, pois a realidade social, econômica e cultural não é algo
estranho ao mundo psicológico.

Ou seja, buscar além da aparência do fenômeno, de sua mera


interpretação. E entendemos o termo crítica como situar o
conhecimento, ir a sua raiz, definir os seus compromissos sociais
e históricos, localizar a perspectiva que o construiu, descobrir
a maneira de pensar e interpretar a vida social da classe que
apresenta esse conhecimento como universal. (SILVA, 2006,
p.92).

Num segundo momento na problematização, parte-se


das respostas obtidas anteriormente, buscando classificá-las em
categorias e apontando as principais questões em relação ao conteúdo.
Porque importante agora é “que os alunos se conscientizem de
que problematizar significa questionar a realidade, pôr em dúvida
certezas [...] pôr em dúvida o cotidiano” (GASPARIN, 2003, p. 47).
Definimos, então, a partir das respostas obtidas, quatro categorias4
,que não necessariamente abrangem todas as respostas. São elas:

1- Definição de social pela relação entre indivíduos:


1.1 respostas que privilegiam o social;
1.2 respostas que privilegiam o indivíduo;
1.3. respostas nas quais desponta um embrião de dialética.

2- Definição de social que suprime o caráter histórico; definição


de social como ambiente “natural”.

4
Agradecimentos especiais: aos alunos do quinto termo noturno do primeiro semestre de 2008, à Profa. MS.
Eni de Fátima Martins e ao Prof. Dr. Ari Fernando Maia. Obrigado a todos pela colaboração.
126

3- Definição de social pela compreensão da harmonização das


relações sociais.

4- Definição metafísica de social. Algo transcendente que


influencia para se “ter o social”.

Inicialmente os principais problemas identificados nas


definições de O que é social? a partir da prática social dos discentes,
foram: definir social privilegiando apenas os aspectos individuais ou
sociais. Isto nos remete a questionar se não estaríamos reproduzindo
a dicotomia indivíduo/sociedade, não considerando que sociedade é a
mediação entre o indivíduo e o gênero humano?
O que o discente entende por social e histórico, quando
define que o social, é uma construção sócio-histórica? Quais outros
elementos são necessários numa definição de social e histórica para
o termo social?
Ao suprimir o caráter histórico do social, não estaríamos
biologizando o social e/ou psicologizando?
É possível, numa sociedade dividida em classes antagônicas,
definir social como harmonização?
Ao entender o social como sendo causa de uma “força externa”,
não estamos retornando à metafísica ou à religião?
Estas são algumas perguntas problematizadoras em relação
à prática social dos educandos. No decorrer das discussões, outras
questões poderão surgir. Não pretendemos neste texto, responder
todos os questionamentos, aqui foram utilizados como exemplos de
problematização. Em nossa prática, esta fase é preparatória para que
o aluno sinta interesse em comprometer-se com sua aprendizagem
e possa mobilizar-se para buscar respostas aos questionamentos
levantados. O conteúdo já começa a ser apropriado e passa a ter
para ele um significado social, para que posteriormente possa ter um
sentido pessoal.
A partir das questões levantadas inicialmente e sistematizadas
na problematização, o terceiro passo é a instrumentalização, que
compreende ações didático-pedagógicas para a apropriação dos
novos conteúdos, por parte dos alunos, e mediada pela atuação do
professor. Neste momento há uma relação tríade entre: discentes,
docentes e conteúdo a ser apropriado, a qual também apresenta as
127

suas contradições. Nesta etapa do processo ensino-aprendizagem,


o conteúdo científico apresenta-se em sua magnitude, visto que
facilitará a transição do conhecimento espontâneo em relação ao tema
estudado, para o conhecimento social e historicamente produzido, de
forma sistematizada e intencionalmente ministrado pelo educador.
Em relação a que é social? na instrumentalização, além do
marco teórico já referido na problematização, colocamos à disposição
dos alunos os textos nos quais nos subsidiamos, ao mesmo tempo que
preparamos a aula dialogada com ou sem auxílio de outros recursos
da prática pedagógica. Esta é uma fase muito importante, visto que
a aprendizagem de conhecimentos não cotidianos não se realiza
mecanicamente. Vale aqui abrir um espaço para afirmar que, em nosso
entendimento, conteúdos novos não devem ser de responsabilidade dos
discentes, cuja participação deve ser na apropriação do conhecimento,
a qual não acontece sem a mediação do docente, responsável por
apresentar e fomentar a discussão do novo conteúdo.
Principiamos a exposição dialogada objetivando discutir o
caráter histórico do desenvolvimento humano e social, visto que
para a concepção histórico-social, o homem em sua essência é um
ser social, uma síntese de múltiplas determinações. Foi por meio da
atividade que o homem, em relação com outros homens, apropriou-
se da natureza, transformando-a e transformando-se, garantindo
para si características essencialmente e exclusivamente do gênero
humano, ou seja, a atividade histórica: apropriação da natureza para
garantir a satisfação de suas necessidades, portanto, a produção de
sua existência. De acordo com MARX (1989),

Antes de tudo, o trabalho [atividade vital humana] é um processo


entre o Homem e a Natureza, um processo em que o homem, por
sua própria ação,media (sic), regula e controla seu metabolismo
com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural
como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais
pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e
mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma para
sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre a
Natureza externa a ele e ao modificá-la,ele modifica, ao mesmo
tempo, sua própria natureza (p. 149).
128

De acordo com MARX (1989a), portanto, a relação entre


a sociedade e a natureza é um intercâmbio que se desenvolve
historicamente por meio do trabalho humano, mediado pelo uso e
fabrico de instrumentos, que, ao mesmo tempo, cria e desenvolve
as relações sociais entre os seres humanos. Esse processo histórico
tem dois aspectos: o desenvolvimento das forças produtivas ou o
progresso tecnológico e a divisão social do trabalho em permanente
transformação. Este constitui as relações sociais de produção e,
sobretudo, as relações de classe, que marcam, em diferentes épocas,
diferentes tipos historicamente existentes de sociedade com suas
diferentes organizações.
Como vimos nos parágrafos anteriores, o homem se constitui
como ser social, em cooperação/relação com outros homens, por
meio de atividades produtivas: [...] “o primeiro ato histórico desses
indivíduos, pelo qual eles se diferenciam dos animais, é não o fato
de pensar, mas sim o de começar a produzir seus meios de vida”.
(MARX E ENGELS, 2007, p.87). Ou seja; o trabalho, fez com que
o homem não se adaptasse à natureza, mas sim a transformasse de
acordo com suas intenções. Portanto, desde o seu início, o trabalho é
mediado pelo uso e fabrico de instrumentos e pela sociedade.
A elaboração de instrumentos, ocorreu num longo processo e,
de acordo com VIGOTSKI (1991), a sua função é “ [...] servir como
condutor da influência humana sobre o objeto da atividade; ele é
orientado externamente; deve necessariamente levar a mudanças nos
objetos. Constitui um meio pelo qual a atividade humana externa é
dirigida para o controle e domínio da natureza.” (p.62).
LEONTIEV (1978), aponta que no desenvolvimento do
trabalho surgiram a linguagem e a consciência5, que só podem ser
compreendidas como produto das relações e mediações que emergem
no transcurso do desenvolvimento da sociedade, servindo também,
como instrumentos para a organização da vida social.

Assim se desenvolvia o homem, tornado sujeito do processo social

5
O conteúdo específico sobre a categoria consciência já foi trabalhado em outra disciplina. E, na Psicologia
Social, foi discutido após esse primeiro momento.
129

de trabalho, sob a ação de duas espécies de leis: em primeiro lugar


as leis biológicas, em virtude das quais os seus órgãos se adaptaram
às condições e às necessidades da produção; em segundo lugar,
às leis sócio-históricas que regiam o desenvolvimento da própria
produção e os fenômenos que ela engendra... o homem atual, o
homo sapiens... se liberta totalmente da sua dependência inicial
para com as mudanças biológicas inevitavelmente lentas, que se
transmitem por hereditariedade. Apenas as leis sócio-históricas
regerão doravante a evolução do homem. (p. 263-4).

A consciência humana, no início de seu desenvolvimento, não


reflete apenas as relações do homem com a natureza, mas também as
relações dos homens entre si. O mundo é refletido da mesma maneira,
tanto na consciência individual como na coletiva. A coincidência
dos sentidos e das significações fixadas na linguagem, constitui a
característica da consciência primitiva. LEONTIEV (1978).
Com o aparecimento da divisão social do trabalho e o
conseqüente desenvolvimento da sociedade a estrutura da consciência
se modifica, a relação que existia entre o plano dos sentidos e das
significações desintegrou-se. Modificando por sua vez as relações de
produção, incumbindo a pessoas diferentes a atividade espiritual e a
material.
Como vimos, o tornar-se humano resultou da passagem à
vida numa sociedade organizada com base no trabalho, dos homens
em relação com outros homens mediados pelo fabrico e uso de
instrumentos.HELLER (1977), nos aponta que os homens, ao
nascerem, estão inseridos em sua cotidianidade, em circunstâncias
determinadas e nela formulam finalidades que “são as relações e
situações sócio-humanas, as próprias relações e situações humanas
midiatizadas pelas coisas [...]. Sendo que a circunstância é a unidade
de forças produtivas, estrutura social e formas de pensamento”
(p.1-2).De acordo com a autora, a sociedade “[...] não dispõe de
nenhuma substância além dos homens, pois estes são os portadores
da objetividade social, cabendo-lhes exclusivamente a construção e
transmissão de cada estrutura social [...].” (p.1-2). Portanto, cabe
às novas gerações, se apropriarem do que as gerações anteriores
construíram. LEOTIEV (1978).
130

Tendo como base as postulações efetuadas, verificamos que,


pelo processo do trabalho, atividade vital humana, o homem “constrói
sua genericidade, de tal forma que a vida individual e a vida genérica
encontram-se sempre imbricadas uma na outra. Esse processo, por
sua vez, é um processo “ [...] essencialmente comunitário, realizado
pelos homens em inter-relações, é expressão de vida social.” (SILVA,
2006, p.103).

Nesta primeira parte da instrumentalização, vimos de acordo


com (MARX 1989a), que a antítese indivíduo e sociedade é apenas
aparente, uma vez que, o indivíduo é um ser social, linguagem,
consciência e os instrumentos fabricados pelo homem são produtos
do intercâmbio social humano e este, é visto como parte do mundo
natural, base de todas as suas atividades. A produção e reprodução da
vida material pelo trabalho e pela procriação são, assim, uma relação
ao mesmo tempo natural e social.
Ao concluir este aspecto da instrumentalização para refletirmos
sobre o que é social? na perspectiva sócio-histórica, colocamos-nos
diante de uma nova problemática: se o homem é um ser social; se o
desenvolvimento das forças produtivas e a divisão social do trabalho
em permanente transformação constituem as relações sociais de
produção; e se, em diferentes épocas, há diferentes tipos historicamente
existentes de sociedade com suas diferentes organizações, depreende-
se do exposto: a complexificação das relações sociais de produção
tem produzido tipos específicos de organização entre os homens
e estes, para se relacionarem com o produto das relações sociais
historicamente produzidas, fazem-no neste momento, de forma
mediada, por este tipo específico de sociedade. Uma nova questão
surge para nós. Quais são as conseqüências disso?
Iniciaremos esta segunda parte da instrumentalização
especificando qual é o tipo de sociedade na qual estamos inseridos.
A atual forma de organização das forças produtivas tem como
característica básica “ [...] ter simplificado os antagonismos de
classe. A sociedade inteira vai se dividindo cada vez mais em dois
grandes campos inimigos, em duas grandes classes que se enfrentam
diretamente: a burguesia e o proletariado.” (MARX, 1990, p.9). A
“moderna” sociedade capitalista não eliminou os antagonismos da
antiga sociedade feudal, apenas estabeleceu novas classes, novas
131

condições de opressão.
Dessa forma, a atual sociedade é o produto histórico de um
longo processo de desenvolvimento de uma série de revoluções nos
modos de produção e de troca. A grande indústria criou o mercado
mundial, cujo terreno foi preparado pela descoberta da América,
trazendo desenvolvimento para o comércio, a navegação e as
comunicações. A própria burguesia se desenvolvia nesta nova etapa
com o correspondente progresso político. Com isso todas as classes do
antigo regime foram colocadas em segundo plano, facilitando assim a
conquista do estado pela burguesia, que colocou este a serviço de sua
proteção e defesa de seus interesses.
Vimos anteriormente que foram os homens em relação com
os demais, na atividade do trabalho, que criaram os instrumentos, os
usos e os costumes de determinada época, correspondendo assim a
determinado modo de consciência, ou seja; “A propriedade coletiva
colocava os homens em relações idênticas em relação aos meios
e frutos da produção, sendo estes últimos, portanto refletidos de
maneira idêntica na consciência individual e coletiva” (LEONTIEV,
1978, p.114). Conseqüentemente, pela apropriação dessas “obras
humanas”, a espécie se humanizou. No entanto, MARX E ENGELS
(1990) afirmam:

A sociedade burguesa dilacerou de forma impiedosa os variados


laços feudais que ligavam o ser humano a seus “superiores
naturais” e não deixou subsistir entre homem e homem nenhum
outro vínculo além do mero interesse nu e cru e o insensível
“pagamento em dinheiro”. Afogou todos os sagrados frêmitos da
exaltação religiosa [...] fez da dignidade pessoal nada mais do
que um simples valor de troca...e no lugar de inúmeras liberdades
conquistadas colocou apenas a liberdade de comércio sem
escrúpulos ou seja: a exploração direta e brutal. (p. 44).

Em razão do descrito no parágrafo acima, decompôs-se a forma


de consciência descrita anteriormente, transformando essencialmente
a relação que existia entre o plano dos sentidos e o plano das
significações nas quais era produzida a consciência, alterando
132

também os fenômenos subjetivos que constituíam o seu conteúdo,


ou seja: uma mudança de estrutura interna, visto que “a grande
massa de produtores separou-se dos meios de produção e as relações
entre homens transformaram-se cada vez mais em puras relações
entre as coisas que se separam do próprio homem.” (LEONTIEV,
197,p.120-1). Resultou que a atividade humana deixa de ser para o
homem o que ela de verdade é, ou seja, a atividade se torna alienada.
O trabalho, meio pelo qual nos humanizamos, ao mesmo
tempo nos igualando como gênero humano, diferencia-nos em nossa
singularidade, pois cada um de nós, por meio de nossa atividade,
vamos todos construindo nossa subjetividade, constituindo-nos,
assim, seres únicos, agora transformado em trabalho alienado, que é
a expressão máxima da propriedade privada dos meios de produção,
suprime do trabalho, a sua expressão humanizadora.
Nesse sentido, compreender o que é social? na perspectiva
sócio-histórica, leva-nos a refletir sobre as diferentes formas de
organização social como mediação da ação dos homens em relação
com outros homens, neste momento histórico. E esta é uma mediação
realizada por uma forma de organização social, na qual o trabalho
está alienado. Vejamos o que vem a ser isto.

A alienação da vida cotidiana66

O termo alienação origina-se do latim alienus = outro. Vejamos


primeiramente como esse conceito chegou até nós, aceitando o
“Convite à Filosofia”, de CHAUÍ (1999). De acordo com a autora, o
filósofo Feuerbach:

Investigou o modo como se formam as religiões, isto é, o modo


como os seres humanos sentem necessidade de oferecer uma
explicação para a origem e a finalidade do mundo. Ao buscar essa
explicação, os homens projetam fora de si um ser superior dotado

6
O conteúdo sobre a alienação foi redigido para este texto baseado na minha tese de doutorado.
133

das qualidades que julgam as melhores: inteligência, vontade livre,


bondade, justiça, beleza, mas as fazem existir nesse ser supremo
como superlativas, isto é, onisciente e onipresente, sabe tudo, faz
tudo, pode tudo. Pouco a pouco, os humanos se esquecem de que
foram os criadores desse ser e passam a acreditar no inverso, ou
seja, esse ser foi quem os criou e os governa, passam a adorá-lo,
prestar-lhe culto e a temê-lo. Não se reconhecem nesse Outro que
criaram. Os homens se alienam e Feuerbach designou esse fato
com o nome de alienação. (CHAUÍ, 1999 , p. 170).

MARX (1989) interessou-se em compreender as causas pelas


quais os homens ignoram que são os criadores da sociedade, da
política, da cultura e agentes da história. Investigou por que os seres
humanos não acreditam que a sociedade foi instituída por eles. A ação
sociopolítica dos homens chama-se práxis, e o desconhecimento de
sua origem e de suas causas, alienação. Para o autor, a alienação do
trabalhador em relação a seu objeto é expressa da seguinte maneira:

Nas leis da Economia Política – quanto mais o trabalhador


produz, tanto menos tem para consumir, quanto mais valor ele
cria, tanto menos valioso se torna, quanto mais aperfeiçoado o
seu produto, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador, quanto
mais civilizado o produto, tão mais frágil o trabalhador, quanto
mais decai em inteligência mais se torna um escravo da natureza.
(MARX, 1989, p. 92).

A alienação é um fenômeno provocado pela divisão social do


trabalho, entre intelectual e manual, o que provoca, também, diversas
rupturas no nível social, visto que, na alienação, o trabalhador está
alienado (alheio, separado) dos produtos de seu trabalho e, ao ocorrer
esta cisão, ocorre também que o homem se aliena a si mesmo no
próprio ato de produção, pois:

O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o


134

trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza,


e por conseguinte, ele não se realiza em seu trabalho, mas nega
a si mesmo; ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-
estar, não desenvolver livremente suas energias mentais físicas,
mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O
trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de
folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho
não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não
é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para
satisfazer outras necessidades. (MARX, 1989, p. 93).

Devemos levar em consideração que MARX (1989) apresentou


o enfoque sociológico. MONTERO (1991) assinala que a alienação
é um processo passivo - exercido de fora – e ativo, exercido pelo
próprio sujeito:

A alienação produz uma negação e uma supressão dos aspectos


conscientes, com vistas a dar lugar a uma não consciência ou
inconsciência, socialmente aceita e imposta. Ou seja, que de
acordo com as oscilações da ideologia, ora latente, ora manifesta,
assim a consciência da alienação poderia ter um movimento de vai
e vem no qual priva, sem dúvida, esse fenômeno já comentado,
de aceitar a situação que produz tais fatos, como algo normal e
de atribuir-se as causas do desajuste a si-mesmo, culpabilizando-
se e responsabilizando-se pela incoerência vislumbrada.
(MONTERO,1991, p.65-6).

SEEMAN (1959) apud MONTERO (1991) apresenta um


enfoque psicossocial do fenômeno. Segundo seu ponto de vista, a
alienação pode assumir diferentes formas, o que se expressa mediante
diversas manifestações. Ele considera cinco formas de alienação, que
descrevem processos psicológicos. São eles:

1º - Sentimento de impotência, de falta de poder: consiste


em baixa expectativa ou probabilidade mantida pelo indivíduo: sua
135

própria conduta não pode determinar as ocorrências dos resultados,


ou seja, a incapacidade de reger seu próprio destino.

2º - Sentimento de absurdo: consiste em uma baixa expectativa


de que é possível haver predições satisfatórias acerca de futuros
resultados do comportamento. Tal sentimento pode derivar de duas
condições: o indivíduo chega a um grau de desapego a respeito do
meio que o rodeia, que se envolve com os recursos internos de que
dispõe, o que o leva a um isolamento, às fantasias e a ter projetos
que não são seguidos por ações concretas. Esse sentimento - de
absurdo - também conduz a situações nas quais os indivíduos estão
obrigados a viver, em decorrência de causas externas que se tornam
tão complexas que eles não podem compreendê-las. Recorrem à
estereotipação e, para tanto, simplificam as informações, acarretando
maior deformação da realidade e interferindo na aprendizagem das
leis que regulam as trocas sociais.

3º - Isolamento: consiste em assegurar um débil valor


remunerador aos objetivos ou crenças que, de maneira típica,
são altamente valorizados em uma dada sociedade. Equivale à
desesperança.

4° - Auto-estranhamento: definido como o grau de dependência


das condutas diante de futuras recompensas.

5º - Ausência de normas: caracteriza-se por uma alta


expectativa de condutas socialmente desaprovadas para alcançar
determinados objetivos (anomia).

HELLER (1985), a partir da teoria marxista, discutiu a


alienação na vida cotidiana, como um fenômeno segundo o qual
ocorre a expansão da vida cotidiana para as esferas não cotidianas.
Tal fenômeno se manifesta como uma incapacidade do indivíduo de
desnaturalizar as formas de pensamento e ação da vida cotidiana e de
superar essas formas em situações nas quais isso seria necessário:

[...] todos esses momentos característicos do comportamento


136

e do pensamento cotidianos formam uma conexão necessária,


apesar do caráter aparentemente casual da seleção em que aqui
se apresentam. Todos têm em comum o fato de serem necessários
para que o homem seja capaz de viver na cotidianidade. Não há
vida cotidiana sem espontaneidade, pragmatismo, economicismo,
analogia, precedentes, juízo provisório, ultrageneralização,
mimese e entonação 77. (HELLER, 1985, p. 37).

É importante para nosso trabalho compreender o concepção


de vida cotidiana dessa autora, frisando que a categoria central
desse conceito é a reprodução, que, para ela, vai além das relações
de dominação. A vida cotidiana é o conjunto de atividades que
caracterizam a reprodução dos homens singulares, a reprodução de si
mesmos, contribuindo para a reprodução da sociedade em que vivem.
Aquelas atividades que estão diretamente voltadas para a reprodução
da sociedade são consideradas não-cotidianas, mesmo que contribuam
para a reprodução do indivíduo.
Para HELLER (1985), existe alienação quando ocorre um
abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades
de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção
humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nessa
produção. Para alguns dos indivíduos isoladamente, este abismo
não é de todo intransponível, mas para a grande maioria, subsiste
o abismo, quer quando profundo, quer quando superficial, e, no
moderno desenvolvimento capitalista, exacerbou-se ao extremo essa
contradição.
Por isso, a estrutura da cotidianidade alienada começou a
expandir-se e a penetrar em esferas nas quais não é necessária, nem
constitui uma condição prévia da orientação, mas nas quais aparece até
mesmo como obstáculo para esta última. Não podemos desconsiderar
a existência do processo de alienação na ciência, filosofia, moral, arte
e política (objetivações genéricas para-si). Dependendo da natureza
que essas objetivações assumem em determinado momento histórico,
podem servir tanto à humanização dos indivíduos como também à

7
Conteúdos a serem desenvolvidos no decorrer da disciplina.
137

sua alienação.
Quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica
de uma dada sociedade, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua
própria alienação para as demais esferas. Mas se a estrutura da vida
cotidiana é um terreno propício para a alienação, não é de nenhum
modo necessariamente alienada; é possível que haja uma margem
de explicitação permitindo unidade consciente do humano genérico e
do indivíduo particular, em determinadas situações.
Podemos dizer o mesmo sobre a alienação e a humanização
na relação ensino-aprendizagem e na prática educativa, que, neste
trabalho, constitui-se também como alvo de nossa preocupação. Se
colocada apenas com fundamentos pragmáticos, aumenta a alienação
na prática educativa. No entanto, propomos, por meio da didática que
adotamos e da teoria na qual nos fundamentamos, que ela seja uma
ação para gerar, intencionalmente, no educador e em cada aluno, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto
dos homens, contribuindo assim para a diminuição do processo de
alienação do educador e dos futuros profissionais.
Nesta fase nos ocupamos em oferecer aos educandos os subsídios
teóricos para analisar os elementos necessários à compreensão de
como entendemos o que é social? na perspectiva sócio-histórica.
Outros conteúdos necessários para a ampliação e aprofundamento
dessa discussão serão ministrados no decorrer do semestre. Por
enquanto, vimos que foi por meio da atividade (trabalho) mediado
pelo fabrico e uso de instrumentos, que o homem se apropriou da
natureza, transformando-a e transformando-se, garantindo para si
características essencialmente e exclusivamente do gênero humano,
ou seja, a atividade histórica. Que o trabalho, se expressa por meio
de ações coletivas e supera a atividade vital dos animais, porque
o homem a submete a si como objeto de sua vontade e a da sua
consciência. Que ao se complexificar as relações sociais, diferentes
foram os modos de produção, gerando tipos de organizações sociais
diferentes. E que, entretanto, não podemos confundir o trabalho -
atividade vital humana – com o trabalho alienado.
Dessa forma, caminhamos para o quarto passo de nossa
metodologia, que é a catarse. Se na fase anterior os processos mentais
básicos foram analisar, abstrair, agora é necessário sintetizar. Para
SAVIANI (1999) apud GASPARIN (2003), catarse é:
138

[...] a expressão elaborada da nova forma de entendimento da


prática social a que se ascendeu” (p. 81). É a [apropriação por
parte dos educandos do conteúdo sobre o tema discutido]. É a
passagem da síncrese à síntese, é uma nova visão sobre o tema em
foco é o ponto de chegada. “Nesse momento, esse conhecimento
possui uma função explícita: a transformação social. Não é
neutro, nem natural. É um produto da ação humana [do trabalho
de educandos e educador], e atende a interesses de classes ou de
grupos sociais determinados. (p. 130. Acréscimo nosso).

Nesta etapa, em minha prática pedagógica, devolvo aos alunos


o seu primeiro texto e peço-lhes para acrescentar, retirar ou manter
conteúdos com base na discussão realizada, ou seja, eles irão construir
uma nova resposta para o que é social? agora mediada pelo conteúdo
teórico disponibilizado, pela mediação da ação docente e pelo
aprendizado por eles realizado. Como exemplo, selecionei algumas
respostas desta fase, que apresento a seguir:

Texto 01 - Social se aplica a um conjunto de fenômenos que


envolvem diferentes formas de organização dos indivíduos. Indivíduos
e sociedade não existem separados [...]. As diferentes relações humanas
constituem o social, ao mesmo tempo em que são constituídas por
ele. Tais relações sofrem transformações graduais vindas do trabalho,
mediado pela utilização de instrumentos que, por sua vez, o tornam
mais complexo e também passam por transformações, na medida em
que as relações são desenvolvidas. A linguagem é um dos fatores
fundamentais para que haja relações sociais, pois, por intermédio dela,
há a propagação dos conhecimentos adquiridos. Ao nos apropriarmos
de conhecimentos antigos – o mundo das significações - damos um
sentido pessoal a esses conhecimentos [...] ocorrendo a formação da
consciência [...] A consciência é o reflexo da realidade concreta e
produto das relações sociais, não é acabada, ou seja, vai sempre se
transformando.

Texto 02 - Social corresponde ao conjunto de interações humanas


nos mais diferentes níveis e situações. As relações entre os homens se
concretizam socialmente por meio das atividades sociais (trabalho) e
139

são frutos das multideterminações sócio-históricas que viabilizaram


o estabelecimento de tais relações. É sob a perspectiva dialética das
interações humanas que podemos compreender o indivíduo, enquanto
ser social, não só como produto, mas também como produtor e
transformador da realidade social, na medida em que a incorpora, via
relações sociais de produção, e a modifica pelos mesmos meios, só
que agora complemento-a com sentido pessoal e que correspondem
ao conteúdo da consciência subjetiva/particular (consciência em
si). Nesse sentido, a linguagem se constitui como um instrumento
mediador do processo de transformação da realidade, permitindo que
o conteúdo da consciência pessoal/subjetiva seja incorporado pelas
relações sociais e que tal consciência possa incorporar o produto dessas
transformações. A construção da personalidade e o desenvolvimento
psíquico estão diretamente relacionados à variabilidade e à qualidade
das interações sociais nas quais o ser humano se envolve. Tais relações,
como já havia sido dito, são intermediadas pelo trabalho. Existem
diversos tipos de atividades nas quais o homem pode se envolver,
algumas estruturadas para conformar-se ao sistema social e, outras,
para a humanização do indivíduo. Porém a atividade transformadora
é aquela cujas operações permitem que o próprio indivíduo se
aprimore, desenvolva suas capacidades, para que assim possa colocar
em prática o produto dessa evolução psíquica [...].É por meio dessas
práticas que se constitui a essência da prática social, caracterizada
pela atividade teórico-prática, que se concretiza por meio da ação
educacional e transformadora do homem e expande a consciência
humana de em si para si.

Texto 03 - Para entendermos o que é social, devemos levar


em conta a complexidade que tal envolve. É exclusividade da espécie
humana, que apreende, cria e é envolvida em todo processo de
relações sociais, considerando o caráter histórico e transitório dos
fatos, do vínculo entre o indivíduo e as sociedades. O indivíduo,
enquanto sujeito e objeto do conhecimento, não pode ser considerado
como um elemento isolado da sociedade, mas como parte integrante
da sua dinâmica. O homem age sobre a natureza e a sociedade, e cria,
pela sua ação/trabalho, novas condições para sua existência. Baseado
no pensamento de Vigotski, “estudar alguma coisa historicamente
significa estudá-la no processo de mudança”, que se concretiza na
140

ação, no movimento, na prática em relação a outros homens, e no


conjunto de relações concretas, objetivas, dentro de uma estrutura
social historicamente determinada. Contudo, compreender o
indivíduo significa conhecer os motivos e objetivos de suas ações, que,
mediadas pelo pensamento e linguagem, refletem a consciência social
dos indivíduos, a qual, na atividade prática concreta, não somente
se manifesta como também se desenvolve e, ao desenvolver-se,
transforma o mundo e se transforma. Não há como pensar “social” sem
pensar a própria história, que é uma construção humana. Sendo assim,
somente pela atividade dos homens [a sociedade] pode permanecer
estagnada, retroceder ou ser superada. Outra questão relevante no
entendimento de “social” é que, segundo Marx, a atividade humana
não se reduz a uma categoria meramente pragmática ou funcional. Ela
é, ao mesmo tempo, teórico-prática. A construção do conhecimento,
em nível teórico, das idéias, está intimamente vinculada à prática
social de seu produtor, isto é, não pode ser concebida como algo
desvinculado da forma como os homens se relacionam entre si e
com a natureza para a produção e reprodução de suas condições de
subsistência. O entendimento da atividade humana, da ação prática
dos homens pressupõe a análise do motivo e da finalidade dessa ação.
As ações humanas não são atos isolados, e sim atos engendrados no
conjunto das relações sociais, impulsionados por motivos específicos
e orientados para uma finalidade consciente.
Após a catarse, é hora do retorno à prática social. Educador
e educandos modificaram-se intelectual e qualitativamente em
relação ao conteúdo estudado. Num processo de discussão coletiva,
avaliamos quais foram as modificações ocorridas, além das respostas
obtidas na catarse. Avançar para o concreto pensado implica uma
leitura mais crítica da realidade, gerando uma nova “atitude mental”
que tem despertado o interesse de parte dos discentes, para a inserção
em projetos de extensão e pesquisa e outras formas de participação
estudantil. Também na avaliação sobre o tema estudado tenho
verificado que os discentes são capazes de: desnaturalizar o social,
compreender o processo histórico que engendra os diferentes tipos de
organização social e, portanto, a transitoriedade do sistema capitalista,
além de compreender o fenômeno do processo de alienação e entender
que a sociedade (particular) é a mediação entre o singular (indivíduo)
e o universal (gênero humano). E a constatação da necessidade de
141

construirmos relações sociais para a superação da sociedade burguesa


– o capitalismo – este tem sido o ponto de chegada e de partida para
novos conteúdos e ações.
Concluindo este texto, pensamos que, ao se apropriarem
desta forma de pensar o que é o social? educador e educandos terão
uma orientação “ [...] que poderá responder à questão de como o
homem é sujeito da História e transformador de sua própria vida e da
sua sociedade, [...]” (LANE, 1984, p. 19). Parafraseando OLIVEIRA
(2005), terão: “Uma direção de vida.” (p.50). No desenvolvimento
de nosso trabalho, enfrentamos diversas dificuldades e desconfianças
que, no decorrer das atividades, vão se diluindo. O importante é
garantir a relação ensino- aprendizagem, de uma perspectiva crítica,
para que educador e educandos possam, de fato, considerar-se num
processo de enfrentamento da alienação da vida cotidiana.

Questões para estudo

1-A dicotomia indivíduo/sociedade é apenas aparência. Discutir


a afirmação.

2- Como surge o processo de alienação?

3- Linguagem e Consciência surgiram a partir do trabalho.


Explique a afirmação.

4- Qual a importância da educação para a formação da


subjetividade?

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fontes, 1991.
144
145

A teoria de Vigotski: conceitos e implicações para a


Psicologia da Educação

Marisa Eugênia Melillo Meira

O objetivo desse trabalho é o de apresentar alguns dos principais


conceitos da teoria de Lev Semenovich Vigotski1, o qual, juntamente
com Alexei Nikolaievich Leontiev2 e Alexander Romanovich
Luria,3 desenvolveu um importante conjunto teórico que tem
sido conhecido como Psicologia Histórico-Cultural.
Vigotski nasceu em 1896, em Orsha, uma pequena
cidade da antiga União Soviética, e morreu em 1934, vítima
de tuberculose, com apenas 37 anos. Sua obra foi produzida na
União Soviética, no período pós-revolucionário até a década de
30 do século passado.4
De 1914 a 1917 estudou direito e literatura na Universidade
de Moscou e, nesta época, dedicou-se sistematicamente a pesquisas
literárias, que mais tarde deram origem ao seu primeiro livro intitulado
Psicologia da Arte. Nessa mesma época, freqüentou vários cursos
de história e filosofia na Universidade Popular de Shanyavskii, em
Moscou, e posteriormente estudou medicina.
Em 1924, apresentou uma conferência de grande impacto
no II Congresso de Psicologia, em Leningrado. Após esse evento
foi convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia de Moscou,

1
O nome do autor sem sido escrito de diferentes modos, tais como Vygotsky, Vygotski e Vigotskii. Neste
texto usaremos a grafia Vigotski.
2
Leontiev (1903-1979) foi membro da Academia Soviética de Ciências Pedagógicas e fundou a Faculdade de
Psicologia da Universidade de Moscou. Ao longo de sua vida, desenvolveu inúmeros estudos voltados para
duas questões principais: a natureza do psiquismo humano e os princípios que regem seu desenvolvimento.
Escreveu vários artigos e livros. Suas principais obras são O desenvolvimento do psiquismo (1978) e Actividad,
conciencia y personalidad (1978.)
3
Luria (1902-1977) dedicou-se ao estudo das funções psicológicas relacionadas ao sistema nervoso central
e se tornou um dos neuropsicólogos mais conhecidos do mundo. Escreveu vários artigos e livros nos quais
apresenta seus estudos sobre sensações, percepção, atenção, memória, linguagem e pensamento. No Brasil,
temos disponíveis os quatro volumes do Curso de Psicologia Geral (1979) e a obra Estudos sobre a história
do comportamento: símios, homem primitivo e criança (1996).
4
Para compreender melhor as relações entre a produção teórica de Vigotski e o contexto histórico no qual foi
construída, uma boa sugestão de leitura é a obra Vygotski — a construção de uma Psicologia Marxista (2002),
de Silvana Calvo Tuleski.
146

juntamente com Luria, Leontiev e outros grandes nomes da psicologia


soviética.
Ao longo de sua vida, Vigotski dedicou-se a atividades de
pesquisa, docência e ensino nas áreas de literatura, psicologia,
pedagogia, deficiências físicas e mentais, entre outras. Em consonância
com esta trajetória diversificada, sua produção é bastante rica,
abarcando vários temas e totalizando, aproximadamente, 200 textos
escritos entre 1924 e 1934.5
Durante muito tempo, as obras de Vigotski permaneceram
desconhecidas na maior parte do mundo, pois sofreram várias
restrições.
A partir de 1936, Stálin6 tomou várias medidas coercitivas
visando eliminar possíveis reações e idéias contrárias às ações de seu
governo, dentre as quais o veto à circulação dos livros de Vigotski. O
autor não agradava ao Partido Comunista por sua atitude de recusa em
aceitar os dogmas impostos à ciência pelo regime stalinista. A proibição
de suas obras vigorou até 1956, quando o seu livro Pensamento e
Linguagem foi reeditado.
No Ocidente Vigotski era censurado por sua vinculação ao
marxismo. Essa situação só se modificou a partir de 1962 com a
publicação de Pensamento e Linguagem nos EUA. No Brasil, seu
primeiro livro publicado foi A Formação Social da Mente, em 1984.
Essas duas obras, que se tornaram as mais conhecidas em nossos
meios, são traduções norte-americanas dos textos originais escritos
em russo pelo autor e apresentam apenas uma parte de suas idéias
principais.7 Só muito recentemente pudemos ter acesso a traduções
fidedignas e sem cortes de parte de suas obras.8
A obra de Vigotski traz uma imensa contribuição para a educação
em geral e para a Psicologia da Educação em particular, na medida

5
Para mais informações sobre a trajetória pessoal e profissional de Vigotski, você pode consultar a obra
Vygotsky, aprendizado e desenvolvimento — um processo sócio-histórico (1993), de Marta Kohl de
Oliveira.
6
Josepf Stálin (1879-1953) assumiu o poder na URSS pelo Partido Comunista, mas, contrariando os ideais
socialistas da Revolução Russa de 1917, tornou-se um ditador repressor e violento.
7
Devemos destacar que os trechos cortados foram, principalmente, os que continham as reflexões de explícita
fundamentação marxista.
8
Em 2001, a Editora Martins Fontes publicou a versão integral de Pensamento e Linguagem com o título A
Construção do Pensamento e da Linguagem.
147

em que trata de questões teóricas fundamentais para a compreensão


do processo de formação das características humanas e das relações
entre aprendizagem, desenvolvimento e educação escolar.

I. Principais conceitos da teoria de Vigotski



Para Vigotski, a Psicologia teria que, a exemplo de Marx,
construir o seu O Capital, analisando os fenômenos psicológicos
tendo como referência geral a concepção filosófica do materialismo
histórico dialético (Vigotski, 1996).
Partindo dessas premissas, ele se contrapôs a duas tendências
importantes na psicologia. Em primeiro lugar, discordou das teorias
subjetivistas9 que consideravam que os fenômenos psicológicos
eram criados pelos próprios homens de forma independente. Nessa
perspectiva, o comportamento dos indivíduos não seria determinado
pela sociedade. Em segundo lugar, discordou das teorias objetivistas10
que defendiam que o indivíduo sofria influências sociais de forma
passiva. Nessa perspectiva, o comportamento dos indivíduos seria
produto do ambiente, entendido como um conjunto de circunstâncias
ou contingências que, de acordo com suas características, poderiam
ou não fornecer elementos que facilitassem o desenvolvimento.
Vigotski superou tanto as vertentes subjetivistas quanto as
objetivistas, tratando do processo de formação dos indivíduos de uma
forma inteiramente nova. Para ele, o desenvolvimento do psiquismo
humano é sócio-histórico, já que é estruturado no seio da atividade
social dos indivíduos.
Ao afirmar que “o verdadeiro curso do desenvolvimento do
pensamento não vai do individual para o socializado, mas do social
para o individual”, (Vigotski, 1987, p.18) definiu sua tese central: as
origens das formas superiores de comportamento consciente deveriam

9
O subjetivismo considera que o mundo objetivo é uma criação dos homens. É como se os homens estivessem
“acima” do mundo, ou seja, sofressem pouca ou nenhuma influência do mundo exterior.
10
O objetivismo considera que os homens são produzidos pela sociedade. É como se o mundo estivesse
“acima” dos homens, ou seja, como se os homens apenas refletissem em seu interior as influências recebidas
do meio externo.
148

ser encontradas nas relações sociais que o indivíduo estabelece com


o mundo exterior.
Vigotski assinalava que homem e mundo estabelecem uma
relação de interdependência e multideterminação e que os processos
psicológicos humanos se realizam inicialmente no plano social como
processos interpessoais e interpsicológicos, para posteriormente
tornarem-se individuais, ou seja, intrapessoais ou intrapsicológicos.
Para Vigotski, a matéria-prima de todo o desenvolvimento
humano é a cultura. É da cultura que retiramos os sistemas simbólicos
de representação da realidade, ou seja, é ela que fornece os elementos
necessários para a formação de nossos valores e interesses.
No processo de constituição do ser humano, é possível
distinguir duas linhas de desenvolvimento que diferem em relação
a sua origem, mas que se entrelaçam na história dos indivíduos: “de
um lado, os processos elementares, que são de origem biológica; de
outro as funções psicológicas superiores de origem sócio-cultural”
(Vigotski, 1984, p. 52). No início da vida os fatores biológicos
desempenham um papel mais marcante, mas na medida em que a
criança intensifica suas relações com o mundo, todas as operações
psicológicas são determinadas pela vida social do grupo ao qual ela
pertence (Vigotski; Luria, 1996).

1. A formação do ser humano: objetivação e apropriação

Para a Psicologia Histórico-Cultural, o ser humano se forma


na relação com outros homens através de processos de objetivação e
apropriação.
Em consonância com o marxismo, esta teoria destaca que
os homens se formam no processo de trabalho no qual produzem
os meios necessários para a satisfação de suas necessidades, não
apenas as biológicas, mas também outras mais complexas, geradas
nas relações sociais. Através do trabalho, se objetivam nos produtos
que constroem, transferindo para os objetos (materiais ou não) sua
atividade física e mental. Através desse processo de objetivação, os
homens criam e transformam continuamente a cultura humana.
Mas, para se formarem, além de se objetivarem nos objetos
149

materiais e não materiais através de sua atividade social e histórica,


os indivíduos ainda têm de se apropriar da cultura já acumulada, já
que essa se constitui no processo mediador entre o processo histórico
de formação do gênero humano e a formação de cada indivíduo como
um ser humano (Duarte, 2004).
De modo diferente dos animais, o homem garante suas
aquisições, não se adaptando ao mundo dos objetos humanos, mas
sim apropriando-se deles. O processo de apropriação tem como
conseqüência a reprodução no indivíduo das qualidades, capacidades
e características humanas produzidas historicamente (Leontiev,
1978).
É o processo de apropriação da experiência acumulada pelo
gênero humano no decurso da história social que permite a aquisição
das qualidades, capacidades e características humanas, e a criação
contínua de novas aptidões e funções psíquicas. O indivíduo nasce
como um “candidato à humanidade”, mas precisa aprender a ser
homem e isso só ocorre quando, em contato com o mundo objetivo
e humanizado, transformado pela atividade real de outras gerações
e através da relação com outros homens, ele também aprende a ser
homem (Leontiev, 1978).

ATIVIDADE DE ESTUDO

Leia, atentamente, a história das meninas-lobo e, em seguida,


trechos do texto O Homem e a Cultura, de Alex Leontiev.

As meninas-lobo11

Em 1920, na Índia, foram encontradas duas crianças vivendo no


meio de uma família de lobos. Amala tinha um ano e meio e Kamala
oito anos quando foram encontradas. Amala morreu um ano mais tarde
e Kamala viveu até os dezenove anos. As meninas comportavam-
se de modo semelhante aos lobos: caminhavam de quatro; eram

11
Este é um resumo dos relatos apresentados por Reymond (1965)
150

incapazes de permanecer de pé e comiam e bebiam como os animais.


Na instituição para onde foram levadas, passavam o dia quietas e,
à noite, tornavam-se ativas e ruidosas e uivavam como lobos. Não
choravam, nem riam e nem apresentavam outras expressões humanas
de afetividade.

O homem e a cultura

O homem é um ser de natureza social, tudo o que tem de


humano nele provém da sua vida em sociedade, no seio da cultura
criada pela humanidade. [...]
As aptidões e caracteres especificamente humanos não se
transmitem de modo algum por hereditariedade biológica, mas
adquirem-se no decurso da vida por um processo de apropriação da
cultura criada pelas gerações precedentes. [...]
Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem.
O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver
em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado
no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana.
[...] (LEONTIEV, 1978, p. 261-273, grifo do autor)

Agora analise as seguintes questões:


O que o caso das meninas-lobo parece demonstrar em termos
de desenvolvimento humano, considerando a teoria de Vygotsky
sobre o processo de formação dos indivíduos?
Que relações você estabelece entre a história das meninas-lobo
e as idéias contidas no texto de Leontiev?

2. O processo de mediação

A relação do indivíduo com o mundo não é direta. Ela é mediada


por instrumentos e sistemas de signos que só os homens são capazes
de criar.
Mediação é o processo através do qual se dá a intervenção de
um elemento intermediário na relação entre dois outros elementos.
Vygotsky distinguiu dois tipos de elementos mediadores: os
instrumentos e os signos.
151

Os instrumentos são elementos que se interpõem entre o


trabalhador e o objeto de seu trabalho, e sua função é facilitar a
concretização das atividades materiais do homem. Por exemplo,
se queremos construir um determinado objeto (seja uma simples
caneta ou um supercomputador), precisamos necessariamente de
instrumentos que nos auxiliem nessa tarefa.
Os signos agem como um instrumento da atividade psicológica
de maneira análoga ao papel desempenhado pelo instrumento material
de trabalho. Os signos são instrumentos auxiliares nos processos
psicológicos e sua função é possibilitar a solução de problemas de
ordem psicológica, tais como lembrar, comparar, construir conceitos,
etc. Por exemplo, se tenho que tomar uma decisão, seja ela simples ou
complexa, terei de recorrer a elementos que se encontram no campo
psicológico, em busca da melhor alternativa.
Os signos são representações mentais da realidade exterior, ou
seja, eles representam, em nosso pensamento, os objetos, eventos e
situações do mundo real.
É na relação com o contexto, mediada pelos instrumentos e
símbolos desenvolvidos culturalmente que desenvolvemos formas de
pensamento e linguagem, os quais fornecem para a Psicologia a chave
necessária para a compreensão da natureza da consciência humana
(Vigostski, 2001).
Essa capacidade de mediação simbólica que desenvolvemos,
nos possibilita pensar, imaginar, criar e estabelecer relações com
uma infinidade de objetos e situações, mesmo que não estejam
imediatamente presentes.

3. Pensamento e linguagem

Vigotski considerava a linguagem um signo mediador
fundamental para a constituição das funções psicológicas superiores;
essencial para o processo de transmissão às novas gerações do
conhecimento acumulado pela humanidade, bem como para a
re-elaboração da realidade e o desenvolvimento de capacidades
humanas. O autor assinalava que a linguagem tem duas funções
básicas: comunicação e generalização do pensamento.
152

Inicialmente, o que impulsiona o desenvolvimento da


linguagem é a necessidade de comunicação. Desde pequenos, os
bebês comunicam seus desejos e estados emocionais através de
gestos, sons, expressões, etc.
Entretanto, no curso do desenvolvimento humano, essas
formas de comunicação vão se tornando insuficientes. A relação
da criança com os adultos e companheiros mais experientes torna
necessária a utilização de signos que possam traduzir os sentimentos
e pensamentos de forma mais precisa. A palavra “bola”, por exemplo,
tem um significado na língua portuguesa que é claro para qualquer
indivíduo, independente das experiências concretas que cada um
possa ter tido com o objeto bola.
Esta é exatamente a função generalizante da linguagem: ela
organiza o real de forma a agrupar todas as ocorrências de uma mesma
classe de objetos ou situações em uma mesma categoria conceitual.
(Oliveira, 1997)
A conquista da linguagem representa um marco especial no
desenvolvimento humano. Nas palavras de Vigotski:

“A capacitação especificamente humana para a linguagem


habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares
na solução de tarefas difíceis, a superarem a ação impulsiva, a
planejarem a solução para um problema antes de sua execução e
a controlarem seu próprio comportamento. Signos e palavras
constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio
de contato social com outras pessoas. As funções
cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se então, a
base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças,
distinguindo-as dos animais” (Vigotski, 1984, p.31)

A fala que inicialmente é social e externa, vai sendo internalizada


e promovendo a constituição do pensamento. Com a apreensão da
linguagem, os processos mais elementares vão se modificando e se
tornando mais complexos (Vigotski, 1987, 2001)
Para Vigotski, o pensamento e a linguagem têm origens
diferentes e, até determinado momento da história do indivíduo,
desenvolvem-se de modo particular.
A criança pequena apresenta expressões verbais (choro,
153

balbucio, riso, etc.), mas ainda não domina a linguagem. Entretanto,


é capaz de resolver alguns problemas práticos, tais como descobrir
objetos escondidos ou tentar alcançar brinquedos que estão longe
do seu alcance. Segundo Vigotski, nesse estágio pré-linguístico do
pensamento, existe uma inteligência prática que permite à criança
realizar ações mesmo sem utilizar a linguagem como um sistema
simbólico.
Por volta dos 2 anos de idade, o desenvolvimento da linguagem
e do pensamento se “encontram” e, nesse momento, tem início uma
nova forma de funcionamento psicológico: o pensamento torna-se
verbal, e a fala torna-se intelectual. A partir daí, o pensamento verbal
passa a ser predominante nas ações psicológicas.
O pensamento verbal e a linguagem racional permitem ao ser
humano pensar de modo qualitativamente diferente. A generalização
e a abstração só são possíveis pela utilização da linguagem.
Vigotski assinalava que a fala, como meio de comunicação
(que ele denominava de discurso socializado), aos poucos vai sendo
internalizada e faz surgir o discurso interior. É possível observar o
discurso interior quando a criança passa a apelar para si mesma na
tentativa de solucionar um problema. A criança, muitas vezes quando
está brincando, vai descrevendo (falando sozinha, para si mesma) o
que está fazendo e o que pretende fazer. Nesse momento, a fala passa
a ter uma função planejadora, funcionando como uma espécie de
auxílio para o desenvolvimento de um plano.
Vigotski dá o exemplo da criança desenhando para ilustrar
essa função planejadora da fala. A criança pequena desenha e depois
decide o que desenhou. A criança um pouco mais velha começa a
desenhar e, quando está prestes a terminar, nomeia aquilo que
desenhou. Mais tarde, ela já é capaz de planejar previamente o que
pretende desenhar (Rego, 1999, p. 67).
A linguagem, ao mesmo tempo, expressa o pensamento
(função de comunicação) e o organiza (função de generalização).
Essa transformação da linguagem é impulsionada pela interação da
criança com os membros da cultura que a rodeiam. Os adultos, que já
dominam a linguagem, não apenas interpretam e atribuem significados
aos gestos e expressões da criança, como também a inserem no modo
simbólico da cultura.
154

4. Pensamentos e emoções

Desde o nascimento, as crianças são “apresentadas” ao mundo


por intermédio dos adultos. Direta e indiretamente e de forma contínua,
ensinamos a elas nossa linguagem, nossos hábitos, nossos valores, o
que gostamos e o que não gostamos, o que consideramos correto e
o que não é permitido. Para fazermos, de fato, parte do mundo em
que vivemos, desde muito cedo, cada um de nós deve se apropriar da
cultura construída no contexto social no qual vivemos.
Vigotski chamava de internalização este processo a partir do
qual interiorizamos elementos da cultura que, a princípio, são externos,
transformando-os em atividades nossas, internas, intrapsicológicas.
Esse processo não se dá de forma passiva e mecânica, ele se constrói
nas relações do homem com o contexto social e também é determinado
pela singularidade de cada indivíduo.
O homem interioriza determinadas formas de funcionamento
que estão dadas pela cultura, mas, ao apropriarem-se delas, as
transformam em instrumentos de pensamento e ação.
Segundo Vigotski, o homem é ao mesmo tempo sujeito e
produtor das relações sociais. Para o autor, era preciso compreender
a relação entre os fenômenos psicológicos e o contexto histórico para
darmos conta de resgatarmos o sentido subjetivo e pessoal do homem,
situando-o, porém, na trama complexa das relações sociais. Embora
cada sujeito possa atribuir significados à sua vida e ao mundo, a
individualidade e a subjetividade continuam ligadas à objetividade, ou
seja, ao contexto sócio histórico, do que decorre que a individualidade
do homem, que só pode existir no social, é resultante de suas relações
sociais e das formas a partir das quais elas são elaboradas.
Vigotski defendia a existência de uma relação intrínseca e
de mútua determinação entre os pensamentos e as emoções. Os
pensamentos são orientados por determinados motivos e interesses
e, ao mesmo tempo, provocam reflexos na dimensão afetiva da vida
psíquica. Nas palavras do autor:

“Quando falamos da relação do pensamento e da linguagem


com os outros aspectos da vida da consciência, a primeira
questão a surgir é a relação entre o intelecto e ao afeto.
155

Como se sabe, a separação entre a parte intelectual


da nossa consciência e a sua parte afetiva e volitiva é um dos
defeitos radicais de toda a psicologia tradicional. Neste
caso, o pensamento se transforma inevitavelmente em
uma corrente autônoma de pensamentos que pensam a si
mesmos, dissocia-se de toda a plenitude da vida d i n â m i c a ,
das motivações vivas, dos interesses, dos envolvimentos
do homem pensante e, assim, se torna um epifenômeno
totalmente inútil, que nada pode modificar na vida e o
comportamento do homem, ou uma força antiga original e
autônoma que, ao interferir na vida da consciência e na
vida do indivíduo, acaba por influenciá-las de modo
incompreensível” (Vigotski, 2001, p.16)

5. Aprendizagem e desenvolvimento

Na teoria de Vigotski, o desenvolvimento humano não é
tratado como fenômeno universal, já que se refere a um conjunto
de possibilidades constituídas em determinadas condições sociais
concretas.
As diferentes transições que ocorrem ao longo do processo de
desenvolvimento caracterizam-se por crises e rupturas provocadas
por contradições entre o modo como a criança vive em determinado
momento e as possibilidades já existentes de superação. É desta
contradição que surge a necessidade da passagem para outro estágio
qualitativamente mais complexo (Vigotski, 1996).

ATIVIDADE DE ESTUDO

Imagine crianças nos seguintes contextos: em uma comunidade


judia em alguma pequena cidade da Europa Ocidental; em uma
comunidade hindu no norte da Índia; na periferia de Nova York; em
uma favela do Rio de Janeiro ou São Paulo; em uma comunidade
rural pobre do interior do Nordeste; em um condomínio de alto luxo
156

em uma cidade de porte médio da região sul ou sudeste do Brasil;


em uma comunidade indígena na Amazônia; em um bairro luxuoso
de Londres; em uma comunidade muçulmana no Paquistão; e em um
campo de refugiados na África. O que você acha que elas poderiam
ter em comum? Que tipos de diferenças seriam esperados?

De modo diverso de outras teorias, as características presentes


em determinadas etapas do desenvolvimento não são consideradas
naturais; não consistem na diferenciação de formas inatas de atividade
psíquica (Kostiuk,1977) . As funções psicológicas superiores são
historicamente produzidas e essa produção só é possível com
aprendizagem.
Essa relação entre desenvolvimento e aprendizagem foi tratada
por Vigotski de modo bastante peculiar. Ele introduziu uma grande
inovação teórica com a proposição da existência de dois níveis de
desenvolvimento: o nível de desenvolvimento atual ou real e a zona
de desenvolvimento próximo, proximal ou imediato.12
O nível de desenvolvimento real corresponde ao nível de
desenvolvimento da criança que foi conseguido como resultado de
um processo de desenvolvimento já realizado, ou seja, compreende
tudo aquilo que ela é capaz de fazer sozinha, sem a ajuda de outras
pessoas. Vejamos um exemplo.
Na sala de aula, um professor alfabetizador atento aos
seus alunos pode perceber o nível de desenvolvimento real de seu
grupo observando o que cada um é capaz de realizar de maneira
independente. Vamos imaginar as seguintes situações: alguns alunos
conseguem identificar letras ou sílabas; outros escrevem e lêem
pequenos textos; outros já são capazes de ler, redigir e interpretar
histórias completas. Um grupo consegue identificar os números; outro
já é capaz de realizar operações matemáticas. Alguns alunos ainda
não escrevem, não lêem e não dominam os códigos da matemática,
mas são capazes de realizar atividades que envolvam certas noções
matemáticas em situações concretas e fazem determinados registros

12
A expressão zona de desenvolvimento imediato foi proposta por Paulo Bezerra que realizou a tradução do
russo para o português do livro “Pensamento e Linguagem” de L.S. Vigotiski, publicado com o título “A
construção do pensamento e da Linguagem”.
157

gráficos (rabiscos, letras, desenhos, etc.). Todos estes casos referem-


se a atividades que são possíveis em um determinado momento,
em função do desenvolvimento que foi efetivado até então. Daí a
designação desenvolvimento real.
Em síntese, o nível de desenvolvimento real, atual ou efetivo
pode ser verificado através de situações nas quais o indivíduo resolve
problemas sem nenhum tipo de ajuda.
Entretanto, conhecer as capacidades já desenvolvidas não é
suficiente para compreender, de forma completa, o desenvolvimento
das crianças. Para Vigotski, temos de, também, nos voltar para aquilo
que ele denominou de zona de desenvolvimento próximo.
A zona de desenvolvimento próximo abarca tudo aquilo que
a criança não faz sozinha, mas é capaz de realizar com a ajuda de
adultos ou companheiros mais experientes.
Vigotski desenvolveu várias pesquisas (Vigotski, 1977)
e concluiu que duas crianças podem ter o mesmo nível de
desenvolvimento real, mas zonas de desenvolvimento próximo
diferentes. Com o auxílio de perguntas, exemplos e demonstrações,
algumas crianças iam mais além do que outras em suas respostas.
Nesses estudos, ele demonstrou que algumas crianças avaliadas como
tendo níveis de desenvolvimento semelhantes conseguiam superar de
modo diverso as capacidades apresentadas anteriormente.
Com base nesses dados, Vigotski defendia que o nível de
desenvolvimento de uma criança só pode, de fato, ser compreendido
se conseguirmos analisar o que já foi produzido (o que ela já faz
sozinha) e, ao mesmo tempo, captar aquilo que ainda está em processo
de formação (o que consegue fazer com ajuda).
Trazendo esta discussão para o universo da sala de aula, estas
reflexões demonstram que os alunos que não conseguem realizar
sozinhos determinadas atividades não podem ser considerados como
incapazes. O que ocorre é que, naquele momento, as capacidades
cognitivas necessárias à realização das tarefas propostas encontram-
se em processo de formação, razão pela qual estes alunos necessitam
do auxílio do professor, que pode vir em forma de novas explicações,
apoio afetivo, atividades diferenciadas, organização de trabalhos em
grupo, jogos, brincadeiras, etc.
Quando aquilo que é ensinado fica além da zona de
desenvolvimento próximo dos alunos, a aprendizagem torna-se
158

impossível e o ensino não se concretiza. Quando, ao contrário, o ensino


está aquém das possibilidades da criança, ele se torna superficial e até
inútil, já que não traz nem requer nada de novo.

“A investigação mostra sem lugar a dúvidas que o que se acha na


zona de desenvolvimento próximo num determinado estágio se
realiza e passa no estágio seguinte ao nível de desenvolvimento
atual. Com outras palavras, o que a criança é capaz de fazer hoje
em colaboração será capaz de fazê-lo por si mesma amanhã. Por
isso, parece verossímil que a instrução e o desenvolvimento na
escola guardem a mesma relação que a zona de desenvolvimento
próximo e o nível de desenvolvimento atual. Na idade infantil,
somente é boa a instrução que vá avante do desenvolvimento e
arrasta a este último. Porém à criança unicamente se pode ensinar
o que é capaz de aprender. (...) O ensino deve orientar-se não
ao ontem, mas sim ao amanhã do desenvolvimento infantil.
Somente então poderá a instrução provocar os processos de
desenvolvimento que se acham na zona de desenvolvimento
próximo (Vigotski,1993,p.241-242).

O desenvolvimento cria potencialidades, mas só a


aprendizagem as concretiza. Por isto, o professor deve voltar-se para
o futuro no sentido de dar condições para que todos os seus alunos
se desenvolvam, buscando intervir ativamente neste processo. Como
nos aponta Facci (2003), nesta perspectiva o professor é o elemento
mediador fundamental no processo de formação dos conceitos e dos
processos psicológicos superiores.

ATIVIDADE DE ESTUDO

Os instrumentais de avaliação desenvolvidos pela Psicologia


têm se voltado para a apreensão do nível de desenvolvimento real.
Como você considera que um psicólogo pode avaliar a zona de
desenvolvimento próximo de um indivíduo?
159

6. Conceitos espontâneos e científicos

Vigotski distinguia dois tipos de conceitos, os quais


representariam o elo de todo o processo de aprendizagem: os
espontâneos e os científicos.
Os conceitos espontâneos se constituem através da comunicação
direta da criança com as pessoas próximas a ela e não necessitam de
qualquer procedimento especial para serem ensinados e aprendidos.
Eles são construídos com base em observações e vivências diretas da
criança e expressam o nível mais elevado de generalização e abstração
em uma situação evidente e já conhecida. Nas palavras de Vigotski
(2001), eles constituem-se em “generalizações de coisas”, limitam-
se a descrições simples da realidade empírica e já existem antes do
ingresso da criança na escola.
Tomemos um exemplo bastante simples. Uma criança constrói,
de modo espontâneo e sem nenhuma dificuldade, o conceito de
cachorro e saberá generalizar suas características de tal forma que
se tornará capaz de distingui-lo de outros animais, mesmo que veja
cães de tamanhos, cores e pelagens diferentes. Esta generalização das
características dos cães permite que ela construa uma abstração que se
refere ao conceito de cão. Mesmo diante de raças bastante diferentes,
ela continuará sabendo que se trata de um cão.
Os conceitos espontâneos são representações genéricas que,
em sua formação, percorrem o caminho do concreto ao abstrato, isto
é, primeiro ocorre o contato direto com o objeto ou o fenômeno para,
depois, ocorrer a abstração. No exemplo que estamos utilizando, o
contato direto com um cachorro singular permite a construção do
conceito de cachorro. A palavra “cachorro” passa de, certa forma, a
sintetizar todas as características deste tipo de animal.
Os conceitos científicos formam-se de outro modo, são
generalizações do pensamento, não se relacionam a aspectos
particulares, mas a toda uma classe de fenômenos (que não podem
ser vistos de forma direta, já que têm de ser compreendidos através
do pensamento). Sua assimilação requer um trabalho de ensino-
aprendizagem sistemático.
Na constituição do conceito científico temos o caminho
contrário, que vai do abstrato ao concreto, já que, desde o início, a
160

criança é capaz de reconhecer o conceito que um determinado objeto


representa.
Voltemos ao nosso exemplo. Antes de entrar na escola, a criança
já construiu o conceito de cachorro. Com os novos conhecimentos
poderá ampliá-lo e incluí-lo em novos sistemas conceituais, tornando-o
muito mais abrangente. Poderá aprender, entre outras coisas, que o
cachorro é um animal mamífero, vertebrado, etc.
Em suas investigações, Vigotski verificou que os conceitos
científicos evoluem mais rapidamente que os demais. O grau
de assimilação dos conceitos cotidianos expressa o nível de
desenvolvimento atual enquanto que o de assimilação dos conceitos
científicos corresponde à sua zona de desenvolvimento próximo.
Para Vigotski, o limite que separa a formação destes dois tipos
de conceito é muito pequeno. Trata-se de processos interligados. Os
conceitos espontâneos constituem a base dos conceitos científicos,
assim como os conceitos científicos possibilitam a formação de novos
conceitos espontâneos.
Em síntese, os conceitos cotidianos desenvolvem-se de forma
espontânea enquanto os científicos dependem da instrução. Como
afirma Vigotski, a consciência reflexiva chega à criança através
dos conhecimentos científicos. Daí a importância vital da educação
escolar para o desenvolvimento humano.
O mero contato em sala de aula com os conceitos não é garantia
de aprendizagem por parte dos alunos. As capacidades intelectivas da
criança devem ser desenvolvidas e exercitadas. A tarefa de ensinar
cabe ao professor, mas o aluno deve ter condições de falar, interagir,
indagar, propor, refletir.
Para aprender um conceito, é preciso que ocorra a transmissão
de informações, mas também um trabalho intelectual ativo dos
alunos.
Para Vigotski, não se pode verdadeiramente aprender um
conceito de forma mecânica, nem através de meras exposições do
professor:
O ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um
professor que tenta fazer isto geralmente não obtém qualquer
resultado, exceto o verbalismo vazio, uma repetição de palavras pela
criança, semelhante a de um papagaio, que simula um conhecimento
dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo.
161

(Vigotski 1987, p. 72)

ATIVIDADE DE ESTUDO

Ao longo de sua história, a humanidade constrói e acumula uma


grande quantidade de conhecimentos. Estes conhecimentos devem ser
transmitidos às novas gerações. Na sociedade moderna, esta tarefa tem
sido cumprida primordialmente pela escola que transforma este saber
em conteúdos. Para dar conta desta função social, o professor tem
de promover a articulação entre conceitos espontâneos e conceitos
científicos. Procure pensar em algumas estratégias que ele poderia
utilizar para atingir este objetivo.

II. A teoria de Vigotski e a Psicologia da Educação

Podemos afirmar em síntese, que para Vigotski: o


desenvolvimento do psiquismo é um processo sócio-histórico que se
constitui através dos processos de objetivação e apropriação da cultura
humana, os quais permitem a formação da consciência e das capacidades
humanas; o pensamento é culturalmente mediado e a linguagem é o
principal meio desta mediação; os processos de aprendizagem, nos
quais se articulam as dimensões intelectuais e afetivas e os conceitos
espontâneos e científicos, produzem desenvolvimento e, por isto a
educação desempenha um papel decisivo em todo o desenvolvimento
intelectual da criança.
Vários autores vêm analisando conseqüências importantes
destes pressupostos para a educação13. Muito já foi dito, mas ainda
existem inúmeras questões a serem exploradas.
Neste texto não vamos apresentar implicações pontuais, mas

13
Para maiores esclarecimentos pode-se consultar, entre outros, Duarte (1996, 2000), Facci (2003); Meira
(1998,2007), Oliveira (2000), Pino (2000), Rego (1999) e Smolka (2000). É importante destacar que nem
todos estes autores seguem a mesma linha interpretativa na análise da Psicologia Histórico-Cultural e de suas
implicações para a educação.
162

destacaremos quatro contribuições importantes deste conjunto teórico


para a reflexão crítica no campo da Psicologia da Educação.

O compromisso da Psicologia com a transformação social

(...) uma Psicologia para a qual permanece fechado este livro,


isto é, justamente a parte mais sensorialmente atual e acessível
da história, não pode tornar-se uma ciência efetiva, provida
de conteúdo e real. O que se pode pensa de uma ciência que
orgulhosamente faz abstração esta grande parte do trabalho
humano e que não se sente incompleta, enquanto a tão propagada
riqueza do atuar humano não lhe diz outra coisa que não seja o
que se pode, talvez, dizer em uma só palavra: carecimento, vulgar
carecimento? Karl Marx

Se consideramos que o processo de apropriação se concretiza


nas relações reais do sujeito com o mundo, e que a maneira como
sua vida se constrói nestas condições é determinada pelas condições
históricas concretas, temos que necessariamente nos posicionar frente
à questão de como a sociedade se organiza.
Conforme aponta Leontiev (1978a), as perspectivas do
desenvolvimento psíquico do homem e da humanidade colocam de
forma incisiva o problema de uma organização social eqüitativa e
sensata da vida da sociedade humana que possibilite a cada indivíduo
a apropriação das objetivações do progresso histórico e a participação
neste processo como um sujeito criador de novas realizações.
A humanidade produziu inúmeras possibilidades de
desenvolvimento, entretanto a grande maioria dos indivíduos
encontra-se submetida a processos de empobrecimento material e
espiritual que lhes transformam em prisioneiros da necessidade.
Como destaca Martins (2002), o tema da exclusão social nos
coloca diante de um conjunto de incertezas em relação à sociedade
contemporânea e à nossa capacidade de sair do abismo que elas
representam. O desvelamento dessa situação demanda um trabalho
intelectual crítico, capaz de ultrapassar o senso comum.
163

A Psicologia tem que se comprometer com a humanização


dos indivíduos. Essa é uma tarefa histórica que envolve uma atitude de
permanente avaliação crítica da realidade e a organização consciente
e deliberada de ações que tenham como finalidade a garantia de
condições que permitam o máximo desenvolvimento possível do
homem.

O compromisso da Psicologia com uma educação de


qualidade para todos

“A educação deve desempenhar o papel central na transformação
do homem. Nesta estrada de formação social consciente de
gerações novas, a educação deve ser a base para alteração do tipo
humano histórico. As novas gerações e suas novas formas de
educação representam a rota principal que a história seguirá para
criar o novo tipo de homem” Vigotski.

Se a condição para a concretização da humanidade em cada
homem é a apropriação das aquisições da cultura humana, coloca-se
como central a questão da efetivação do direito de todos os cidadãos
a uma educação de qualidade.
Para a perspectiva histórico-cultural a educação não apenas
influencia processos de desenvolvimento. Mais que isto, ela é
capaz de orientar o desenvolvimento em uma direção determinada
e reestruturar as funções psicológicas em toda a sua amplitude
(Vigotski, 1987, 1991).
Mas não se trata de qualquer tipo de educação. Como ensina
Vigotski (2001) uma interferência inadequada no processo de formação
dos conceitos pode inclusive provocar prejuízos para a criança.
É preciso garantir que as novas gerações se apropriem dos
conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade,
construindo e ampliando a sua capacidade de pensamento crítico.
Como indica Leontiev (1978b) o mundo como produto da
atividade transformadora do homem não é dado imediatamente ao
indivíduo. Ele se apresenta a cada indivíduo como “um problema a
164

resolver¨.
Para dar conta desta tarefa de compreensão é preciso ferramentas
teórico-intelectuais. E a educação formal pode fornecê-las.
Podemos afirmar, utilizando a expressão que dá título a uma
das obras mais conhecidas de Vigotski, que a escola é de fato um
local de formação social da mente. O modo pelo qual se organiza o
processo educativo produz conseqüências importantes tanto no que se
refere ao processo de transmissão e apropriação dos conhecimentos,
quanto no que tange a formação de atitudes e valores.
Não é possível pensarmos em indivíduos plenamente
desenvolvidos, sem a apropriação do conhecimento. Assim, a educação
enquanto um processo ao mesmo tempo social e individual, genérico
e singular, é uma das condições fundamentais para que o homem se
constitua de fato como ser humano, humanizado e humanizador.

A redefinição das finalidades, a função social e o objeto de


estudo e atuação da Psicologia da Educação

¨...a tarefa fundamental da Psicologia dialética consiste preci-


samente em descobrir a conexão significativa entre as partes e o
todo, em saber considerar o processo psíquico em conexão
orgânica no marco de um processo integral mais complexo¨
Vigotski


Como resultado de uma visão liberal e ideologizada de indivíduo
e educação, a Psicologia Escolar tradicional tem partido de quatro
premissas fundamentais: os problemas educacionais são problemas
dos alunos; esses problemas14 devem ser diagnosticados e tratados;
o objeto de atuação da Psicologia Escolar é o aluno e a finalidade
do psicólogo escolar é contribuir para a eliminação de problemas e

14
A psicologia tem comumente atribuído problemas de aprendizagem a dificuldades orgânicas; características
individuais de personalidade, capacidade intelectual ou habilidades perceptivo-motoras; problemas afetivos e
vivenciais; comportamentos inadequados; carências psicológicas e culturais; dificuldades de linguagem; des-
nutrição; despreparo para enfrentar as tarefas da escola; falta de apoio da família; “desagregação” familiar.
165

conflitos. (Meira, 2000)


A apreensão adequada dos pressupostos da Psicologia Histórico-
Cultural contribui para rompermos com essa visão conservadora
que traduz desigualdades socialmente produzidas em problemas
individuais, culpabilizando e patologizando os alunos, e nos fornece
elementos importantes para a construção de um posicionamento
crítico da Psicologia da Educação.
Com base no referencial teórico delineado até momento
compreendemos que o objeto de estudo e atuação da Psicologia
Escolar é o encontro entre o sujeito humano e a educação. Assim, não
limitamos nosso olhar nem ao sujeito psicológico, nem ao contexto
educacional, mas nos voltamos para a compreensão das relações entre
os processos psicológicos e os pedagógicos, ou, em outras palavras,
para a compreensão do encontro entre a subjetividade humana e o
processo educacional. (Meira 2003a, 2003b)
A escola é a instância socializadora do conhecimento
historicamente acumulado e a finalidade da ação docente se
concretiza na tarefa de ensinar e ensinar bem. Conforme evidencia
Saviani (1991, p.21), “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta
e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens¨. Neste
sentido, coloca-se a necessidade de se identificar tanto os elementos
culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos para que se
tornem humanos, quanto as formas mais adequadas de atingir esse
objetivo.
Para cumprirem sua função de modo consistente, os
educadores devem realizar o trabalho de mediação entre o aluno e
os conhecimentos, os quais devem ser transformados em conteúdos
escolares para que possam ser apropriados pelos alunos mediante a
utilização de metodologias de ensino adequadas.
Esse trabalho do educador pressupõe o domínio de uma série
de mediações teóricas mais diretamente relacionadas ao ensino, mas
também a compreensão de aspectos psicológicos que lhe permitam
entender como os alunos aprendem. E, é neste espaço que podemos
compreender as contribuições da Psicologia da Educação: trabalhando
junto com os educadores conhecimentos psicológicos importantes
para o processo de ensino e aprendizagem.
A compreensão da natureza e da especificidade da educação
166

escolar fornece os elementos necessários para a proposição de que a


finalidade da Psicologia Escolar se situa no compromisso claro com
a tarefa de construção de um processo educacional qualitativamente
superior. Portanto, sua função social não poderia ser outra: contribuir
para que a escola cumpra de fato seu papel de socialização do saber e
de formação crítica.
Com isso, rompe-se com a idéia do psicólogo escolar como
um técnico resolvedor de problemas ou divulgador de teorias e
conhecimentos psicológicos e se torna possível pensá-lo como um
elemento mediador que, junto com educadores, alunos, funcionários,
direção, famílias e comunidade, poderá dentro de seus limites e
especificidades, ajudar a escola a avaliar criticamente o trabalho
pedagógico. Desse modo, ele pode participar de um esforço coletivo
voltado para o favorecimento de processos de humanização e
desenvolvimento do pensamento crítico e para a construção de um
processo pedagógico qualitativamente superior, fundamentado em
uma compreensão crítica do psiquismo, do desenvolvimento humano
e de suas articulações com a aprendizagem e as relações sociais.

Produção de mudanças nos ideários pedagógicos

As relações entre Psicologia e Educação no Brasil são estreitas


a tal ponto que ao longo da história, a Psicologia tornou-se parte
constitutiva do pensamento educacional. Por este motivo, é possível
localizar em práticas e propostas educacionais contribuições da
Psicologia, provenientes das mais variadas tendências teóricas.
Toda proposta pedagógica pressupõe necessariamente uma
teoria, ainda que não explícita, sobre como que as pessoas aprendem
e se desenvolvem, e de como esses processos se articulam. Analisar
criticamente o modo como estas idéias circulam nos meios educacionais
pela via dos ideários pedagógicos e a que fins elas servem é uma
tarefa importante e necessária.
Entre as muitas concepções equivocadas sobre fenômenos
psicológicos que podem ser superadas no contexto educacional
brasileiro a luz da teoria histórico-cultural, destacamos três que nos
parecem especialmente importantes: o maturacionismo, a natureza
167

humana e a inteligência como dom natural.

4.1. O maturacionismo

Um ensino orientado até uma etapa do desenvolvimento já


realizado é ineficaz sob o ponto de vista do desenvolvimento geral
da criança, não é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento,
mas vai atrás dele. A teoria do âmbito do desenvolvimento
potencial origina uma fórmula que contradiz exatamente a
orientação tradicional: o único bom ensino é o que se adianta ao
desenvolvimento .Vigotski


A teoria de Vigotski produz uma sensível transformação em
relação à compreensão da função social da prática pedagógica, e mais
especificamente, do papel do professor, e por isto pode contribuir para
o rompimento com a perspectiva maturacionista, ainda hegemônica
nos meios educacionais, que coloca a aprendizagem em uma situação
de dependência direta em relação ao desenvolvimento.
A abordagem maturacionista considera que os alunos só se
tornam capazes de aprender determinados conteúdos quando estão
“maduros” ou “prontos” para isto. Partindo deste ponto de vista,
quando um aluno apresenta dificuldades, se diz que ele ainda não
atingiu o nível de desenvolvimento psico-intelectual necessário, isto
é, não tem “prontidão” para a aprendizagem. Nas décadas de 60 e
70, surgiram vários testes com a finalidade de medir a prontidão dos
alunos para todos os tipos de aprendizagem, em especial aquelas
relacionadas com a leitura e a escrita de crianças em fase inicial de
alfabetização
Essa é uma concepção nefasta porque leva os professores
a se comportarem como expectadores passivos de algo que não diz
respeito a eles. O professor não pode ensinar porque estes alunos não
têm condições de aprender, não lhe restando outra alternativa a não
ser esperar que eles fiquem “maduros”, para só então cumprir sua
função social.
168

ATIVIDADE DE ESTUDO

Pergunte para 10 professores do ensino fundamental


quais seriam as principais causas do fracasso escolar. Analise
as respostas utilizando os principais conceitos da teoria de
Vigotski.

A natureza humana

¨A sociedade e a história social moldam a estrutura daquelas


formas de atividade que distinguem os homens dos animais¨ L.S.
Vigotsk

O homem tem sido pensado, tanto no campo da ciência quanto


no senso comum, a partir da idéia de natureza humana, fixa, imutável,
natural, dada a prori. Nessa perspectiva haveria em cada um de nós
uma “semente” de homem que vai desabrochando, conforme vamos
sendo estimulados adequadamente pelo meio cultural e social. (Bock,
2000)
Trata-se de uma abordagem naturalizante e a-histórica do
fenômeno psicológico sem nenhuma articulação com a vida, as
condições econômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os
homens. Essa concepção está na base de um falso pressuposto que
circula de modo sistemático nos meios educacionais de que as pessoas
“são como são” e que escola não tem como modificar a “natureza”
das pessoas.
A teoria de Vigotski traz a possibilidade de trabalharmos com
a idéia de condição humana, de construção social do psiquismo
humano, determinado pelas relações reais dos homens com o mundo
e com o conceito de plasticidade do sistema psicológico humano. E,
a possibilidade permanente de múltiplas transformações do sujeito
ao longo de seu processo de desenvolvimento, aponta, entre outras
coisas, para a importância da intervenção educativa.
Desta forma, podemos compreender o desenvolvimento de
169

forma prospectiva, de modo a que possamos estar atentos para a


emergência daquilo que é novo. Conforme ensinou Vigotski (1987), é
preciso transformar a direção de nosso olhar para que possamos não
apenas buscar colher os “frutos” do desenvolvimento, mas sobretudo
saber reconhecer seus “brotos” ou “flores”.

ATIVIDADE DE ESTUDO

Analise os provérbios “Pau que nasce torto morre torto” e


“Filho de peixe, peixinho é” a luz da teoria de Vigotski. De que modo
as idéias que os fundamentam encontram-se presentes no cotidiano
alienado em que vivemos?

4.3. A inteligência como um dom natural

“Se as circunstâncias em que um indivíduo evoluiu só lhe


permitem um desenvolvimento nilateral, de uma qualidade em
detrimento de outras; se estas circunstâncias apenas lhe fornecem
os elementos materiais e o tempo propícios ao desenvolvimento
desta única qualidade, este indivíduo só conseguirá alcançar um
desenvolvimento unilateral e mutilado” Karl Marx

Para muitos a inteligência é um atributo inato e imutável
do ser humano e a escola teria pouco ou nada a fazer em relação
aqueles que se considera como menos dotados. Esse mito tem
sido sistematicamente utilizado como argumento para justificar
o fracasso de muitas crianças. Acreditar que a constituição
genética determina a vida escolar dos indivíduos, permite
que se tome como naturais processos de exclusão produzidos
socialmente.
O pensamento está sempre intrinsecamente vinculado
à ação e suas possibilidades de avanço estão definidas e
170

limitadas pelas necessidades e possibilidades colocadas por


contextos históricos e sociais determinados. Compreender que
a inteligência é construída histórica e socialmente significa
compreender que crianças que tem seu acesso aos bens culturais
bloqueado não são menos inteligentes que outras, apenas
apresentam um desenvolvimento conformado por condições
sociais concretas. (Collares&Moysés,1997),
Como nos ensina Vigotski a aprendizagem dos conhecimentos
científicos propiciada pela educação escolar desempenha um papel
decisivo em todo o desenvolvimento intelectual da criança, já que
o antecipa, atuando em áreas nas quais as possibilidades da criança
ainda não estão inteiramente organizadas.
Para o autor todo processo de aprendizagem tem uma estrutura
interior e uma seqüência. Quando um aluno estuda toda uma rede
“subterrânea” de processos são desencadeados e movimentados. E,
para ele uma das tarefas fundamentais da Psicologia da Aprendizagem
escolar é exatamente esta: “descobrir esta lógica interna, esse código
interior de processos de desenvolvimento desencadeados por esse ou
aquele processo de aprendizagem” (Vigotski, 2001, p. 325).

ATIVIDADE DE ESTUDO

“Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que


determina a consciência”.
Faça uma articulação entre essa frase de Marx e Engels, a teoria
de Vigotski e as tendências subjetivistas presentes na Psicologia.

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