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CURSO DE BACHARELADO EM PSICOLOGIA

LUAN FIUZA

RELATÓRIO
ESTÁGIO SUPERVISIONADO I
Psicologia Sócio-Histórica: surgimento e desenvolvimento

Itumbiara
2021
LUAN FIUZA

RELATÓRIO
ESTÁGIO SUPERVISIONADO I
Psicologia Sócio-Histórica: surgimento, desenvolvimento e prática

Relatório apresentado ao curso de Bacharelado em


Psicologia, da Faculdade Santa Rita de Cássia, para
obtenção de aprovação na disciplina de Estágio
Supervisionado I.
Orientadora: Sheila Fernandes.

Itumbiara
2021
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................04
2. A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO........04
3. ABORDAGEM SÓCIO-HISTÓRICA NO ATENDIMENTO INFANTIL........................10
3.1 O CONCEITO HISTÓRICO-SOCIAL DE INFÂNCIA NO BRASIL...............................16
4. ABORDAGEM SÓCIO HISTÓRICA NO ATENDIMENTO DE ADULTOS..................18
5. REFERÊNCIAS...................................................................................................................22
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1 INTRODUÇÃO

Com a realização deste presente trabalho buscamos elencar os aspectos e processos


de construção do sujeito na perspectiva da psicologia sócio-histórica por meio de uma revisão
bibliográfica acerca do tema proposto, ‘’A psicologia Sócio-Histórica: surgimento,
desenvolvimento e abordagem prática’’. Para tanto, o principal foco é voltado ao estudo da
atividade, da consciência e da subjetividade como principais categorias para o conhecimento do
processo de construção do sujeito, o qual percebe-se em constante transformação e relação, tanto
com o mundo quanto com o outro.

No intuito de contribuir para a fundamentação do estudo, a revisão bibliográfica


realizada tem por objetivo apresentar os principais pontos da psicologia sócio-histórica trazidas
pela Ana M. Bahia Bock em seu livro ‘’Psicologia Sócio-Histórica (uma perspectiva crítica em
psicologia)’’, como também estudos realizados por Vygotsky, autor o qual na atualidade é uma
das maiores referências no que diz respeito ao embasamento do trabalho educacional. Para que
o objetivo proposto fosse de fato alcançado, este estudo está dividido em três grandes partes. Na
primeira, abordaremos o contexto histórico, formação e constituição, juntamente com os
principais aspectos envoltos na Psicologia Sócio-Histórica; na segunda, discorreremos sobre a
sua fundamentação e prática no atendimento de crianças e adultos, enaltecendo aspectos tanto
positivos quanto negativos em ambas as fases do desenvolvimento, e na última parte trataremos
das contribuições da psicologia Sócio-Histórica como um todo.

Antes de adentrarmos na complexidade da Psicologia-Sócio histórica, faz-se


importante conhecermos seus aspectos iniciais e primordiais, para que então sejamos capazes
de compreender toda a sua dinamicidade e funcionamento, dito isso, a seguir entraremos mais a
fundo em como se deu o seu surgimento.

2. A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO

O surgimento da psicologia sócio-histórica ocorreu por meio dos estudos de Vigotski (1896-
1934), um acadêmico russo e seus colaboradores, Luria (1902-1977) e Leontiev (1903-1977),
que faziam frente as teorias psicológicas, por meio de uma discussão aprofundada sobre suas
bases epistemológicas, metodológicas e filosóficas. A sua produção enfatiza essa revisão e
análise das teorias da psicologia, refere-se ao significado histórico da crise em psicologia. Um
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de seus textos, investigação metodológica, o qual foi escrito em 1927, que compõe, dentre
outros, a obra Teoria e Método em Psicologia.

Profundo conhecedor crítico da história da psicologia, Vigotski dedicou grande parte da sua vida
em prol dos seus estudos à construção de uma nova metodologia de pesquisa, que, baseando-se
no materialismo histórico e dialético de Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), busca a
integração de uma ciência amplamente fragmentada em diferentes e divergentes objetos de
estudo, técnicas, métodos e princípios explicativos. De tal modo, o autor aponta para a
impossibilidade de construir, com os sistemas teóricos existentes até então, uma psicologia
focada no geral, ressaltando os problemas filosóficos e científicos e consequentemente,
indicando uma grave crise nesse campo do conhecimento.

Embasado em tal perspectiva, Vigotski (1927/2004) é priorizada uma discussão sobre a relação
entre fatos empíricos e conceitos científicos e entre esses conceitos e as ideias explicativas, no
intuito de descrever a trajetória ideológica pela qual percorre variadas linhas de pensamento em
psicologia. Desse modo, o autor foi capaz de elaborar uma síntese em que explicita, por
exemplo, os princípios explicativos da psicanálise em relação ao conceito de sexualidade, sendo
capaz de decifrar e contextualizar sua emergência, a modificação em relação a uma visão do
senso-comum, a disputa por um reconhecimento e, por fim, mas não menos importante, sua
aceitação no meio acadêmico juntamente com a possibilidade de ser contestada pelo
aparecimento de outras ideologias. Conclusões de suma importância foram elaboradas pelo
psicólogo russo, definindo toda a trajetória de sua elaboração teórica, pois, como afirma Molon
(2003),

nessa síntese, Vigotski reconheceu o valor intrínseco a cada conjunto de idéias


explicativas presentes no seu corpo teórico de análise, mas as criticou como categorias
universais da psicologia geral e, além disso, evidenciou a impossibilidade de um
princípio explicativo conter a necessária compreensão da totalidade do comportamento
humano ... Vigotski, analisando a origem do problema da Psicologia geral, concebeu
a relação intrínseca entre conceito científico e realidade concreta, na qual conceito 11
científico incorpora sedimentos da realidade de onde o conhecimento surgiu, e o fato
empírico contém abstrações (MOLON, 2003, p. 41).

Neste momento, a autora se atenta para uma diferença que Vigotski elabora entre fato real e fato
científico, concepção a qual compreende que o processo de conhecimento implica em apreender
apenas signos do objeto e nunca a materialidade em si. Como resultado do pensamento e do
conceito, o material científico se torna mutável e, no caso da psicologia, a crise causada é
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revelada, seja pela fragmentação, ou pela junção de conceitos e epistemologias irreconciliáveis,


as quais resultam em problemas de pesquisa mal fundamentados e/ou equivocados. Ao explicitar
a apropriação mediada e pouco legítima que a ciência psicológica russa faz das ideias de Marx,
a autora traz ainda que Vigotski possuía como um de seus objetivos a redefinição dos problemas
da psicologia, a partir de uma base epistemológica bem definida e delimitada.

Por isso, o ecletismo e a miscelânea de conceitos e termos heterogêneos da psicologia são


considerados por Vigotski (1927/2004) como uma postura ingênua e pouco científica de alguns
profissionais que ignoram a incompatibilidade entre as bases filosóficas e epistemológicas das
diferentes elaborações teóricas. Tal postura, causada pela variabilidade no campo da psicologia,
revela uma tentativa inconseqüente de elaborar uma ciência geral com a adesão e aceitação de
todos os conhecimentos produzidos, ignorando as diferenças básicas e essenciais entre esses
conhecimentos.

Para Vigotski (1927/2004), a inexatidão teórica e a superposição de diferentes idéias conduzem


a uma posição não-crítica do psicólogo que se propõe a estudar e a conhecer “tudo”, mas que,
nessa proposição, acaba por não compreender “nada”. O autor ressalta ainda o cuidado que todo
psicólogo deve ter com a linguagem utilizada, pois cada terminologia representa a base teórico-
científica que a sustenta e, nesse sentido, os psicólogos têm demonstrado

uma linguagem cotidiana indeterminada, confusa, plurissemântica, vaga, uma


linguagem tal que o que nela é dito possa concordar com qualquer coisa – hoje com os
padres da Igreja, amanhã com Marx –; necessitam de termos que não ofereçam uma
qualificação filosófica clara da natureza do fenômeno e nem ao menos uma descrição
clara do mesmo, porque os psicólogos empíricos não compreendem com clareza e não
vêem com clareza seu objeto. (VIGOTSKI, 1927/2004, p. 304 – 305).

Assim, percebe-se que a linguagem confusa e pouco definida de um psicólogo reflete o


ecletismo adotado por ele e a conseqüente indefinição de seu objeto de estudo. Isso acontece,
porque, segundo Sirgado (1990), a psicologia caracteriza-se pelo uso, ora do experimentalismo
e 12 das bases materialistas mecanicistas que predominam no campo do conhecimento e das
ciências, ora das concepções idealistas e introspeccionistas sobre o homem.

No ocidente, essas diferentes influências tornaram-se a base para a definição de três principais
escolas que disputavam o campo psicológico: a introspeccionista, representada por Wundt
(1832-1928), propunha a descrição dos fenômenos da consciência através da análise de seus
elementos constituintes, a gestaltista propunha uma análise holística dos fenômenos psíquicos e
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contava com a colaboração de Wertheimer (1880-1943), Koffka (1871-1946) e Kohler (1887-


1946) e a funcionalista que, por sua vez, contrapunha essas tendências introspeccionistas e foi a
linha em que se manifestou a revolução behaviorista nos EUA. Nesse sentido, Sirgado (1995)
considera que a tendência funcionalista constituía um retorno ao modelo estímulo-resposta (S-
R), descartando a análise científica dos fenômenos da consciência e dos processos mentais, sem
abordar, entretanto, os processos neurofisiológicos, campo desenvolvido pela reflexologia
pavloviana, na qual Watson fundamentou sua base.

A propósito, a crítica de Vigotski (1927/2004) à reflexologia pavloviana é pontual e ressalta sua


oposição à utilização de uma ciência positivista e mecanicista para o conhecimento do ser
humano. Segundo o psicólogo russo, a tentativa dos funcionalistas de realizar uma análise
objetiva do psiquismo reduziu a complexidade humana a processos de condicionamento
baseados e equiparados à psicologia animal. Nesse sentido, Vigotski não concorda que a
psicologia deve compreender o “simples”, ou seja, o funcionamento animal, para,
posteriormente, assimilar processos complexos do ser humano, pois, sobre a reflexologia,
considera que

esse é um dos possíveis caminhos metodológicos, e há uma série de ciências


em que ele é suficientemente justificado. É aplicável à psicologia? Pávlov,
partindo precisamente de um ponto de vista metodológico, nega o caminho do
homem ao animal; não se trata de que os fenômenos humanos sejam
essencialmente diferentes dos animais, mas de que não se pode aplicar aos
animais as categorias e conceitos psicológicos humanos. Seria estéril, do ponto
de vista cognitivo, fazê-lo. (VIGOTSKI, 1927/2004, p. 208)

Essa crítica de Vigotski às idéias de Pávlov é embasada na afirmação de Marx de que “a


anatomia humana é a chave para a anatomia do macaco” (Vigotski, 1927/2004, p. 206) e na
concepção de que só é possível conhecer os processos psíquicos inferiores se já soubermos em
que consiste o funcionamento mental mais elevado. Embora teça com veemência uma crítica à
reflexologia, Vigotski não desconsidera as suas produções científicas, apenas aponta
contribuições através de uma análise cuidadosa que busca evitar a miscelânea de bases 13
fundamentais incompatíveis e tenta escapar dos erros que vários psicólogos cometeram na sua
época e ainda cometem na psicologia contemporânea.

Ao mesmo tempo em que o funcionalismo fincava seus conceitos nos EUA e na Europa, a
psicanálise de Freud (1856-1939) e a gestalt de Wertheimer (1880-1943), Koffka (1871-1946)
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e Kohler (1887-1946) também já se consolidavam como teorias reconhecidas no campo da


psicologia. Sendo assim, a crítica de Vigotski não se reduziu à linha materialista mecanicista da
reflexologia e do funcionalismo. Na verdade, a cada teoria e conceito defendido, Vigotski
pontuava suas contribuições e esclarecia possíveis reduções sobre a compreensão do ser
humano.

As diversas pontuações do psicólogo russo a essas teorias da psicologia podem ser resumidas
da seguinte forma: todas elas possuem um conteúdo cheio de valor, significado e sentido, mas
quando seus autores tentam elevar conceitos e idéias à categoria de leis universais, passam a ser
iguais entre si e sem valor nenhum. Como princípios universais, essas teorias não resistem à
crítica e a tentativa de situá-las como tais, revela a necessidade que os psicólogos têm de
formular e defender explicações gerais, mesmo que sejam consideradas falsas.

Por isso, em relação à psicanálise, Vigotski (1927/2004) afirma que o princípio da sexualidade
é adequado para explicar neuroses, mas não suficiente para compreender toda a natureza e a
produção humana que são, antes de tudo, históricas e sociais. À reflexologia, adverte-se que o
comportamento reflexo é também simples parte dos estudos em psicologia e à Gestalt afirma-se
que o mundo não se resume à fórmula gestáltica e que, pelo contrário, ele tem se revelado bem
mais complexo que isso.

Sirgado (1990), em seu estudo sobre os fundamentos epistemológicos da corrente sóciohistórica


afirma que a situação fragmentada da psicologia, não era diferente na Rússia, pois duas
influências constituíram a psicologia daquele tempo: uma no contexto da biologia evolucionista
representada por Vagner (1849-1934) e Severtsov (1866-1936) e uma no contexto da
Neurofisiologia na qual se originou a linha reflexológica em que se destacam Sechenov (1829-
1905) e os sucessores Beckterev e Pávlov.

O autor acentua ainda que, apesar das críticas, várias idéias de Vigotski, Luria e Leontiev
originaram-se dessa dupla tradição que contribuiu com alguns pressupostos da psicologia
sóciohistórica, tais como, por exemplo, os aspectos naturais e culturais no processo de
desenvolvimento humano, o papel dos instrumentos na atividade transformadora do homem, o
14 conceito de interiorização das funções psíquicas superiores e a função da linguagem para a
construção do sujeito.

Porém, como já foi explicitado, não só as teorias psicológicas foram influentes no


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desenvolvimento da corrente sócio-histórica e, visto que seus pressupostos variavam entre o


idealismo e o materialismo mecanicista, fica evidente a fragmentação no conhecimento
produzido pela psicologia. Na verdade, a maior contribuição da tríade de pesquisadores foi
definir o materialismo histórico dialético como base para a construção de uma nova psicologia
que busca superar as contradições e os paradoxos das teorias, integrando, por exemplo, os fatores
naturais e culturais; objetivos e subjetivos no processo de construção humana.

Nesse sentido, Sirgado (1995) aponta que o materialismo histórico tem como objetivo a
organização, o funcionamento e as transformações dos modos de produção. Já o materialismo
dialético apresenta a história da produção do conhecimento. Ambos foram utilizados para a
fundamentação da psicologia sócio-histórica; porém, esta utilização não se enquadra no uso e
adaptação superficial das ideias marxistas, hábito comum nas teorias psicológicas produzidas
na Rússia daquele tempo.

Com a Revolução Socialista de outubro de 1917, que transformou o Império Russo na União
Soviética, o materialismo dialético, uma corrente filosófica desenvolvida por Karl Marx (1818-
1883) e Friedrich Engels (1820-1895), passou a ser a orientação fundamental e geral da pesquisa
e da prática de vários estudiosos das ciências naturais e sociais. Na psicologia, não foi diferente,
e o problema maior apontado por Vigotski é que os autores da época apenas adaptavam os
conceitos marxistas em teorias que mantinham o idealismo ou o mecanicismo como base,
conduzindo a um erro já bem explicitado anteriormente: o ecletismo científico. Originada de
cadernos não publicados, Michael Cole e Sylvia Scribner referem-se, na Introdução do livro A
formação social da mente, à seguinte citação de Vigotski a esse respeito:

não quero descobrir a natureza da mente fazendo uma colcha de retalhos de inúmeras
citações. O que eu quero é, uma vez tendo apreendido a totalidade do método de Marx,
saber de que modo a ciência tem que ser elaborada para abordar o estudo da mente.
Para criar essa teoria-método de uma maneira científica de aceitação geral, é necessário
descobrir a essência desta determinada área de fenômenos, as leis que regulam as suas
mudanças, suas características qualitativas e quantitativas, além de suas causas. É
necessário, ainda, formular as categorias e os conceitos que lhes são especificamente
relevantes, ou seja, em outras palavras, criar seu próprio Capital. O Capital está escrito
de acordo com o seguinte método: Marx analisa uma única “célula” viva da sociedade
capitalista – por exemplo, a natureza do valor. Dentro dessa célula ele descobre a
estrutura de todo o sistema e de todas as instituições econômicas... 15 Alguém que
pode descobrir qual é a célula “psicológica” – o mecanismo produtor de uma única
resposta que seja – teria, portanto, encontrado a chave para a psicologia como um todo.
(VIGOTSKI, 1998, p. 10)

Por isso, a intenção de Vigotski não era aplicar as idéias de Marx na psicologia. Na verdade,
10

ele pretendia elaborar uma psicologia que se fundamentasse na dialética por considerá-la uma
ciência em geral, universal ao máximo. A teoria do marxismo psicológico ou a dialética da
psicologia é o que Vigotski considerava a psicologia geral. Nesse sentido, a orientação filosófica
materialista dialética possibilitou a criação de uma psicologia capaz de apresentar uma
metodologia e uma epistemologia que buscam a integração das visões psicológicas sobre o
homem, abordadas em uma nova perspectiva.

Este é o contexto em que surge a corrente sócio-histórica, que para superar a crise detectada no
conhecimento produzido pela psicologia, pretende-se uma ciência geral fundamentada nos
pressupostos do materialismo dialético. Assim, Molon (2003) explica que, para Vigotski, a
essência do problema da psicologia é a divergência entre teorias idealistas e materialistas e, ao
criticar o pensamento idealista, o psicólogo russo ressalta a importância de distinguir sujeito e
objeto, realidade e pensamento, sensação e conhecimento.

É nesta distinção que se configura o campo de investigação da psicologia. Porém, a autora


enfatiza que essa exigência não relega a importância de se estudar a subjetividade e aponta para
a necessidade de abordar as questões subjetivas a partir das relações que o homem estabelece
com aspectos objetivos e concretos da realidade, alertando todo pesquisador e profissional da
psicologia para a superficialidade deste conceito nas teorias idealistas.

Por isso, este capítulo pretendeu elaborar uma breve retrospectiva do pensamento vigotskiano
acerca da psicologia científica, suas críticas à metodologia aplicada pelas diversas abordagens
e, principalmente, suas contribuições para a construção de uma ciência mais bem fundamentada
em sua teoria e prática. Esse panorama geral é de fundamental importância a todo estudioso
interessado na psicologia sócio-histórica, especialmente àqueles que querem conhecer a
concepção dessa corrente teórica sobre a subjetividade, sem perder de vista os cuidados
epistemológicos, filosóficos e metodológicos pontuados com eloqüência nos textos de Vigotski.

3. ABORDAGEM SÓCIO HISTÓRICA NO ATENDIMENTO INFANTIL - O conceito


histórico-social de infância

Definir o termo infância é uma tarefa difícil, que pode se diferenciar de acordo com o referencial
que se escolhe. Segundo o dicionário Aurélio, a infância é definida como um “período de
crescimento do ser humano, que vai do nascimento até a puberdade”. A criança, no mesmo
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dicionário, é definida como um “ser humano de pouca idade” (Ferreira, 2004).


Etimologicamente, o termo ‘infância”, em latim in-fans, significa sem linguagem. Por sua vez,
na tradição filosófica ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter
conhecimento, e não ter racionalidade, ou seja, a criança é compreendida como um ser menor,
e como alguém a ser adestrado, a ser moralizado, e a ser educado (Castro, 2010).

Percebe-se, no entanto, que a idade cronológica não é suficiente para caracterizar a infância.
Khulmann Jr. (1998) afirma que a infância tem um significado genérico e, como qualquer outra
fase da vida, esse significado está vinculado às transformações sociais, visto que, cada sociedade
tem seu próprio sistema de classes etárias que estão associadas a um sistema de status e de papéis
desempenhados.

Silveira (2000) aponta para o fato de que a sociedade sempre está em movimento e, desse modo,
a vivência da infância transforma-se de acordo com os paradigmas do contexto histórico, ou
seja, pensar na infância é também articulá-la com outros domínios como a escola, a família e a
sociedade.

A importância da criança dentro de uma comunidade varia conforme o período histórico em que
ela é considerada, uma vez que cada período imprime na infância uma significação específica,
por vezes atrelada às condições sociais, e não apenas à sua condição de ser biológica (Silveira,
2000). A infância, sob essa ótica, registra-se como condição da criança, isto é, caracteriza-se
como uma condição social e historicamente construída (Kuhlmann, 1998).

Com efeito, a infância é um tempo específico o qual todos vivenciam, entretanto, sempre se
questionou qual era o tempo exato de abrangência da infância e como era percebida esta criança
(Castro, 2010). Dessa forma, resgatar os antecedentes da história é dar espaço a inúmeros
documentos que revelam o papel da criança desempenhado na sociedade ao longo dos anos.
Tais documentos agem como porta-vozes da construção da história da infância e surgem como
possibilidade para muitas reflexões sobre a forma de como compreendemos e nos relacionamos
atualmente com a criança.

A importância da construção do conceito de infância teve um grande avanço com os estudos do


pesquisador francês Philippe Ariès, por ele ser o pioneiro nesta temática, com a publicação da
obra História Social da Criança e da Família, em 1960. Foi ele quem formulou um novo olhar
historiográfico para o sentimento de infância no mundo ocidental, demonstrando que foi uma
12

concepção socialmente construída durante a época moderna, e destacando aspectos desde a


consciência da infância até as especificidades da criança, ou seja, aquilo que a diferencia do
adulto.

Segundo relata Ariès (1981), a infância foi um conceito historicamente construído e a criança,
por muito tempo, não foi vista como um ser em desenvolvimento, com características e
necessidades próprias, e sim como um adulto em miniatura. Este autor considera a infância como
uma invenção da modernidade, constituindo-se numa categoria social construída recentemente
na história da humanidade, onde a emergência do sentimento de infância, como uma consciência
da particularidade infantil, é decorrente de um longo processo histórico, não sendo uma herança
natural. Essa afirmação desencadeou grandes mudanças na compreensão da infância, já que ela
era pensada como uma fase da vida, como qualquer outra. Nesse sentido, a história da infância
surge como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma como entendemos e nos
relacionamos atualmente com ela.

Historiadores da infância como Charlot (1983), Sarmento e Pinto (1997) e Tomás (2001),
explicam que as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas na época pós-medieval,
geraram subsídios para a percepção moderna da infância, compreendida como campo da vida
social específico destacado do campo dos adultos. Assim, a infância passou a ser reconhecida
como uma fase diferenciada do ciclo da vida e como algo novo na história da humanidade.
Confirma-se então, que a história da infância só começou a ser narrada recentemente, por
consequência do anonimato em que a criança viveu no mundo ocidental até o século XVIII. A
partir desse século, a infância como categoria histórica, contextualizada cultural e socialmente
passou a apresentar diferentes imagens sociais ao longo da história.

A infância como conhecemos hoje foi uma criação de um tempo histórico e de condições
socioculturais determinadas, sendo um engano ousar analisar todas as infâncias de todas as
crianças com o mesmo enfoque. A compreensão da infância muda com o tempo e com os
diferentes contextos sociais, econômicos, geográficos, e até mesmo com as peculiaridades
individuais (Ariès, 1981).

Heywood (2004) assinala que por volta do século XII, as condições gerais de higiene e saúde
eram precárias, situação que contribuía para elevar o índice de mortalidade infantil, porém,
mesmo se as crianças sobrevivessem aos primeiros anos de vida e atingissem certa idade, ainda
assim, não possuiriam identidade própria, só vindo a tê-la quando conseguissem realizar
13

atividades semelhantes àquelas desempenhadas pelos adultos.

Sendo assim, os cuidados especiais que as crianças deveriam receber, ou mesmo quando os
recebiam, eram destinados apenas aos primeiros anos de vida e reservados aos que possuíam
uma situação socialmente e financeiramente privilegiada. Dos adultos, que cuidavam das
crianças, não se exigia nenhuma preparação, e esse cuidado era realizado pelas chamadas
criadeiras, amas de leite ou mães mercenárias.

Obviamente, isto não significa negar a existência social das crianças, significa reconhecer que,
antes do século XVI, a consciência social não admitia a existência autônoma da infância como
uma categoria diferenciada do gênero humano. Uma vez passado o estrito período de
dependência física da mãe, esses indivíduos se incorporavam plenamente ao mundo dos adultos
(Levin, 1997).

No século XIII, atribuía-se à criança modos de pensar e sentimentos anteriores à razão e aos
bons costumes. Era tarefa dos adultos desenvolver nela o caráter e a razão, e de modo
semelhante, a Igreja procurava cumprir a tarefa de educação, colocando-as a serviço do
monastério. Tais costumes podem ser observados facilmente através da arte e iconografias que
retratam este século (Heywood, 2004).

O sentimento de infância, presente na sociedade moderna, nem sempre foi valorizado durante a
idade média. Praticamente inexistia esse sentimento, tanto da infância como da adolescência,
fato que perdurou até o século XVIII. Nesse período, a criança logo que apresentasse algum
desenvolvimento misturava-se ao mundo dos adultos, participando de atividades semelhantes,
como festas, jogos e brincadeiras. A família na Idade Média não tinha a função afetiva que tem
hoje, “era uma realidade moral e social, mais que sentimental” (Ariès, 1981, p.67).

Nos séculos XVI e XVII existia uma consciência de que as percepções de uma criança eram
diferentes das percepções dos adultos. Porém, só a partir do século XVII foi possível seu
reconhecimento em maior número onde as representações da infância divergiam muito da
realidade, onde as crianças eram representadas com expressões de adultos, musculosas e
vestidas com trajes de adulto. De acordo com Ariès (1981), “a criança deixava os cueiros, ou
seja, a faixa de tecidos que era enrolada em torno de seu corpo, ela era vestida como os outros
homens e mulheres de sua condição” (p. 81). Isto demonstra o quanto as crianças não tinham
valor, e a infância era desconhecida, considerada apenas como um período de transição, que
14

logo se ultrapassava.

Foi durante o século XVII que se generalizou o hábito de pintar nos objetos e nas mobílias da
casa uma data solene para a família. Constata-se que foi na Idade Média que as idades da vida
começaram a ter importância. Durante esse período, então, existiam seis etapas de vida. As três
primeiras, que correspondiam à primeira idade (nascimento aos 7 anos), a segunda idade (7 a 14
anos) e terceira idade (14 a 21 anos), eram etapas não valorizadas pela sociedade. Somente a
partir da quarta idade, a juventude (21 a 45 anos), as pessoas começariam a ser reconhecidas
socialmente. Ainda existindo a quinta idade (a senectude), referente à pessoa que não era velha,
mas que já tinha passado da juventude e a sexta idade (a velhice), dos 60 anos em diante até a
morte. Tais etapas alimentavam desde esta época, a idéia de uma vida dividida em fases (Ariès,
1981).

Ainda no século XVII, nas classes dominantes, surgiu a primeira concepção real de infância, a
partir da observação dos movimentos de dependência das crianças muito pequenas. O adulto
passou, então, pouco a pouco, a preocupar-se com ela como um ser dependente e fraco (Levin,
1997). Comenta o autor, que ultrapassar esta fase da vida só para quem saísse da dependência,
ou pelo menos dos graus mais baixos de dependência, desse modo a palavra infância passou a
designar a primeira idade de vida, a idade da necessidade de proteção, que perdura até os dias
de hoje.

Percebe-se, portanto que até o século XVII, a ciência desconhecia a infância, não havia lugar
para esta na sociedade, fato caracterizado pela inexistência de uma expressão particular a ela.
Só então, a partir das idéias de proteção, amparo, dependência, que surge a infância. As crianças
passaram a ser vistas como seres biológicos, que necessitavam de grandes cuidados e de uma
rígida disciplina, a fim de transformá-las em adultos socialmente aceitos.

Segundo Heywood (2004), ao analisar o século XVIII, a emergência social da criança nesse
século aconteceu devido às obras de John Locke, Jean Jacques Rousseau e dos primeiros
românticos. Cita o autor que foi Locke que difundiu a idéia da tábula rasa para o
desenvolvimento infantil e de que a criança nascia apenas como uma folha em branco, na qual,
se poderia inscrever o que se quisesse.

Enquanto que, para Rousseau, existia a idéia de natureza boa, pura e ingênua da criança, e da
necessidade de respeitá-la e deixá-la livre para que a natureza pudesse agir no seu curso normal,
15

favorecendo o pleno desenvolvimento saudável das crianças. Já em relação às concepções


românticas da infância, apresentaram as crianças como portadoras de sabedoria, sensibilidade,
e estética apurada, necessitando que se criassem condições favoráveis para o seu pleno
desenvolvimento.

Assim, cabe destacar, que o tratamento diferenciado remetido à infância aparece entre os séculos
XVI e XVIII. Até essa época a educação das crianças confundia-se com sua inclusão nas
atividades da sociedade e nos espaços públicos, porém com a Revolução Industrial e a
conseqüente urbanização, inicia-se o processo da família nuclear extensa do período feudal
(Rabuske, Oliveira & Aripini, 2005).

Já no século XIX inaugura-se uma visão de criança sem valor econômico, mas de valor
emocional inquestionável, criando uma concepção de infância plenamente aceita no século XX.
Na verdade, como é possível perceber, “a história cultural da infância tem seus marcos, mas
também se move por linhas sinuosas com o passar dos séculos: a criança poderia ser considerada
impura no início do século XX tanto quanto na alta Idade Média” (Heywood, 2004, p. 45).

Pode-se então afirmar que, a mudança de paradigma no que se refere ao conceito de infância
está diretamente ligada ao fato de que as crianças sempre foram consideradas adultos
imperfeitos, sendo assim, essa etapa da vida seria de pouco interesse, visto que “somente em
épocas comparativamente recentes veio a surgir um sentimento de que as crianças são especiais
e diferentes, e, portanto, dignas de ser estudadas por si sós” (Heywood, 2004, p.10).

O que se observou no ocidente foi o movimento de particularização da infância, ganhando forças


a partir do século XVIII, a esse respeito:

A família sofre grandes transformações e criam-se novas necessidades


sociais nas quais a criança será valorizada enormemente, passando a
ocupar um lugar central na dinâmica familiar. A partir de então, o
conceito de infância se evidencia pelo valor do amor familiar: as
crianças passam dos cuidados das amas para o controle dos pais e,
posteriormente, da escola, passando pelo acompanhamento dos
diversos especialistas e das diferentes ciências como Psicologia,
Antropologia, Sociologia, Medicina, Fonoaudiologia, Pedagogia,
dentre outras tantas (Frota, 2007, p.152).

Nesse sentido, foi através de Rousseau, considerado um dos primeiros pedagogos da História,
16

que a criança começou a ser vista de maneira diferenciada do que até então existia, uma vez que
ele propôs uma educação infantil sem juízes, sem prisões e sem exércitos (Levin, 1997). Assim,
a partir da Revolução Francesa, em 1789, modificou-se a função do Estado e, com isso, a
responsabilidade para com as crianças e o interesse por elas. A partir desse momento os
governos começaram a se preocupar com o bem-estar e com a educação das mesmas. De fato, a
infância e a criança tornaram-se objetos de estudos e de saberes de diferentes áreas, constituindo-
se num campo temático de natureza interdisciplinar, independentemente da forma como era
analisada e do posicionamento teórico que se tinha sobre ela, a infância tornou-se visível como
um estatuto teórico.

Essa discussão nos remete à necessidade de pesquisas na área que possam aprofundar e elucidar
as questões da infância e as suas transformações, principalmente no que diz respeito às
concepções da condição da criança enquanto ser social e sujeito ativo, ou seja, uma criança
concreta que ocupa um lugar na história através de relações sociais que se estruturam a cada dia.
É importante perceber que as crianças concretas, na sua materialidade, no seu nascer, no seu
viver ou morrer, expressam a inevitabilidade da história (Kuhlmann, 1998).

Compreende-se então, que com a evolução nas relações sociais que se estabeleceram na Idade
Moderna, a criança passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A
nova percepção e organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e
filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser vista como indivíduo
social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com a sua saúde e a sua
educação.

A ciência moderna, ao elaborar um conjunto de características sobre a criança, reconhece a


infância como um momento do desenvolvimento humano, abrindo campo para vários estudos e
orientações no cuidado e educação desse grupo etário –o universo infantil–. Entretanto, a análise
da produção existente sobre a história da infância permite afirmar que a preocupação com a
criança se encontra presente somente a partir do século XIX, tanto no Brasil como em outros
lugares do mundo.

3.1 O CONCEITO HISTÓRICO-SOCIAL DE INFÂNCIA NO BRASIL

Resgatar a história social da infância no Brasil é um fato recente. Se na Europa a historiografia


sobre a criança só foi produzida a partir de 1960, através de Ariès, no Brasil, a compreensão da
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infância parece ter realmente começado no século XIX, intensificando-se nos séculos seguintes
(Frota, 2007). Portanto, é recente a preocupação dos historiadores brasileiros sobre este tema, e
apesar da História da Criança ter alçado destaque nos últimos anos, ainda está muito presa aos
temas da história contemporânea.

De fato, apenas a partir do ano de 1991 surgiu a primeira publicação na historiografia que se
propôs a escrever a história da criança brasileira. Esta obra foi organizada por Mary Del Priore
e reuniu uma coletânea de textos, de diversos autores, sob o título de História da Criança no
Brasil. Em seu trabalho, Del Priore analisou como o sentimento de valorização da criança,
corrente na Europa Moderna, identificado por Ariès, esteve presente na prática educativa dos
missionários jesuítas no Brasil Colônia. A infância, para estes, era vista como o momento
oportuno para a catequese, pois seria o período em que se daria a aprendizagem de princípios e
valores que seriam adotados e seguidos por toda a vida (Del Priore, 1991).

A constatação da crescente valorização social da criança, que culminou no que Ariès (1981)
denominou descoberta da infância, teve como fontes elementos provenientes da cultura
europeia. Os processos de colonização, em terras das Américas e da África, são repletos de
demonstrações das influências dos modelos europeus nas práticas sociais das populações
colonizadas.

Dentre os primeiros registros encontrados sobre este tema, enfatiza-se a iniciativa dos jesuítas.
No século XVI, estes implantaram um sistema de educação direcionado aos povos indígenas e
tinha o propósito de, através do convívio com a doutrina a ser difundida pelos jesuítas, promover
mudanças nos costumes da população indígena, considerados inadequados na visão da Colônia
e da Igreja (Cruz, 2006). Os cuidados especiais infância eram limitados e as regras e
recomendações acerca da vida e educação das crianças eram determinadas, principalmente, pela
Igreja (Ribeiro, 2006). O processo de transição do Brasil Colônia para o Império teve como
marco histórico a Declaração de Independência, em 1822. A luta pela independência do Brasil
contou com diversos segmentos sociais, entre eles os padres, os intelectuais e os escravos. Com
a emancipação política do País, no início do século XIX, fez-se necessário a criação de uma
Constituição. Assim, a primeira Constituição brasileira foi promulgada em 1824. Nesta,
contudo, mantiveram-se as características do Brasil Colônia, como: trabalho escravo,
dependência política do país em relação a Portugal e relações de poder centralizadas no domínio
dos grandes proprietários e não havia nenhuma referência à infância ou a práticas relacionadas
18

às crianças (Carvalho, 2008).

Mesmo assim, neste contexto, intensificaram-se as intervenções médicas nas questões de saúde
e higiene e, consequentemente, os cuidados dedicados à infância e à família. Este processo de
valorização da saúde ocorreu primeiro na Europa, depois no Brasil, chegando ao século XIX
com o foco na questão da mortalidade infantil e nas recomendações de cuidados com as crianças.
É neste período que se inicia a institucionalização dos saberes médicos e também psicológicos
aplicados à infância e, portanto, é quando podemos obter mais registros sobre práticas e políticas
dirigidas a meninas e meninos.

Assim, um processo a ser enfatizado na área de atendimento à infância no Brasil e no mundo,


caracteriza-se por medidas higienistas-eugênicas, emergentes no fim do século XIX e início do
século XX. Embora o higienismo e a eugenia advenham de movimentos diferentes e de
circunstâncias históricas e proposições teóricas próprias, suas idéias se aproximaram e se
sobrepuseram às políticas e práticas sociais brasileiras (Boarini & Yamamoto, 2004).

4. ABORDAGEM SÓCIO HISTÓRICA NO ATENDIMENTO DE ADULTOS

De acordo com a concepção teórica de Vygotsky a resposta da criança ao ambiente no início é


dominada por processos naturais, particularmente aquele que são disponibilizados pela herança
biológica. Mas através da constante mediação pelo adulto, os processos psicológicos mais
complexos começam a tomar forma. Inicialmente, este processo pode ocorrer apenas dentro da
relação da criança com o adulto. Os processos são Inter psíquicos, ou seja, são partilhados entre
dois sujeitos. Nesta fase, os adultos são agentes externos fazendo a mediação do contato da
criança com o mundo. Mas conforme a criança cresce, os processos que antes eram partilhados
com os adultos tornam-se internalizados e trabalhados internamente na criança, ou seja, as
respostas mediadas para o mundo transformam-se em processos intrapsíquicos.

Na psicoterapia estes processos podem ocorrer apenas na interação do paciente com o


psicoterapeuta. Estes processos são Inter psíquicos, ou seja, são partilhados entre dois sujeitos.
Nesta fase, o psicoterapeuta é um agente externo que medeia a relação do paciente com o mundo.
Mas porque a mudança ocorre, os processos que antes eram partilhados com o psicoterapeuta
tornam-se internalizados e acontecem dentro do paciente, as respostas mediadas para o mundo
tornam-se um processo intrapsíquico.

A interação externa dos humanos com outros humanos se for alterada, alterar-se-á a consciência,
atitude do humano com o meio, consigo próprio e com os outros.

Certamente não refiro que o paciente é uma criança. Mas alguns aspectos do seu Eu, a sua
consciência dos Outros e a sua consciência das relações com os eventos da vida não estão ainda
na sua consciência e não permitem que ele tome a sua vida nas suas mãos, o que significa que a
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resposta reflexiva não é ainda uma atitude. O desenvolvimento de si próprio pode ser indicador
da maturidade, da personalidade.

Como aparece nos trabalhos de Vygotsky e Luria é através do discurso, que uma função Inter
psicológica partilhada por duas pessoas, mais tarde se transforma num processo intra
psicológico de organização da atividade humana e, o humano controla a resposta impulsiva à
estimulação externa e o seu comportamento passa a ser determinado por uma rede semântica
interna (Vygotsky e Luria, 1999, p.221) e que reflete, geralmente, a situação envolvente,
reformula os motivos que estão na base do comportamento e dá o caráter consciente à atividade
humana.

No trabalho psicoterapêutico, o paciente modifica o campo psicológico ou cria para si próprio


uma nova situação no seu campo e muda o seu estado, absente de sentido, num outro, com
sentido.

O problema que é apresentado à psicoterapia é o problema da consciência. A consciência é a


forma mais elevada de reflexo da realidade: ela não é dada à priori, não é imutável nem é passiva,
mas sim construída pela atividade e usada pelos humanos para se relacionarem com o ambiente,
não só com a sua adaptação às diversas situações, mas também com uma nova estrutura.

Neste processo, tanto o paciente como o psicoterapeuta utilizam a linguagem. Na abordagem


sócio-histórica, a linguagem é o elemento mais importante na sistematização da percepção;
porque as palavras são elas próprias, um produto do desenvolvimento sócio-histórico, elas
tornam-se instrumentos para a formação de abstrações e generalizações e permitem a transição
de reflexos sensoriais imediatos (não mediados) para o pensamento mediado. Assim, estas
categorias surgem através da reorganização da atividade cognitiva que acontece sob o impacto
de um novo fator: o fator social / relacional.

Na teoria sócio-histórica de Vygotsky, a ideia de que o significado de uma palavra é um processo


evolutivo – que a palavra significa diferentes coisas em diferentes idades (estádios), refletindo
o fenômeno de diferentes formas – é suportada na suposição de que os processos psicológicos
que controlam o uso das palavras são eles próprios sujeitos à mudança.

Luria refere (1976) que nós podemos realmente acreditar que a autoconsciência é um produto
do desenvolvimento sócio-histórico. Primeiro o comportamento é um reflexo da realidade
externa natural e social; mais tarde, através da influência mediadora da linguagem, podemos
encontrar a autoconsciência nas suas formas complexas. Desta forma, temos que olhar para a
autoconsciência como um produto da consciência do mundo externo, do Eu e dos Outros.

Como escreveu Vygotsky (1934), a consciência não surge como um passo superior e necessário
no desenvolvimento de conceitos dentro da consciência, ela surge sim a partir do exterior.
(Vygotsky 1934, p. 282). E é este o papel que o psicoterapeuta desempenha, como Outro –
exterior – na psicoterapia. O social se constrói nos humanos através dos sistemas interiorizados
transpostos das relações sociais para a personalidade.

A psicoterapia é um contexto social/relacional que permite a construção de conceitos superiores,


como conceitos científicos (ou artificiais) na vida do paciente. Por vezes o humano tem
conceitos contraditórios sobre os seus acontecimentos de vida, como por exemplo, na neurose.
Durante a relação terapêutica, tal como no desenvolvimento, a contradição é compreendida
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quando ambos os conceitos, sobre os quais foi feito um julgamento contraditório, se


transformam numa estrutura única e superior de um conceito que está para além dos outros dois.
É nesta altura que nós percebemos que produzimos dois julgamentos opostos e que criamos um
novo sentido. Não porque alguém nos falou dele, mas porque elaboramos os dois. E para isto
nós precisamos de os verbalizar. E para isto precisamos de um Outro disponível em relação
dialógica conosco. É este o conceito de mudança no desenvolvimento, e também na psicoterapia.

A escolha do assunto é apresentada ao psicoterapeuta pelo paciente, na sua atividade principal.


O paciente fala de um assunto sobre o qual está a tentar criar um sentido. Isto ajuda o
psicoterapeuta a identificar zonas de próximo desenvolvimento e encontrar um caminho para
trabalhar com o seu paciente.

Tal como no desenvolvimento, os conceitos espontâneos necessitam de um sistema que lhes


permita tornarem-se conscientes e se transformarem em conceitos científicos (ou artificiais), o
trabalho psicoterapêutico permite criar esse sistema. E este sistema é o que é novo neste processo
de construção da mente. Como sabem, o significado de uma palavra é uma generalização que
separa o significado da palavra em si. O mesmo acontece com o sentido. E o sentido com muito
maior independência da palavra, como apresentado por Vygotsky e Mikhail Bakhtin. O
significado, enquanto forma dinâmica, é o instrumento para o trabalho do psicoterapeuta. A
linguagem não é um produto acabado do pensamento. Quando é transformado em linguagem, o
pensamento é reestruturado e altera-se. É isto que valida a psicoterapia.

Como escreveu Luria (1981), uma palavra pode ser utilizada para se referir a objetos e para
identificar propriedades, ações e relações. As palavras organizam as coisas em sistemas. Ou
seja, as palavras codificam a nossa experiência. (Luria 1981, apud Robbins, 2003, p.126).

Claro que nós temos diferentes tipos de trabalho com diferentes grupos de pacientes. Até porque
diferentes grupos têm diferentes usos da palavra, do significado e do sentido e, diferentes
histórias, que produzem diferentes culturas. Nós podemos reconhecer um enorme trabalho
utilização de signos na psicose, particularmente signos das próprias emoções: de construção de
significados na psicopatia, particularmente sobre os outros, e de sentidos na neurose,
particularmente sobre eventos da própria vida, mas a atitude é semelhante em ambos os grupos.

Para a compreensão do processo psicoterapêutico, é muito útil à distinção entre monólogo e


diálogo, ou seja, no monólogo, a proximidade com o discurso interno permite um discurso
predicativo com uma forte diferença entre a representação absoluta na linguagem interna e a
representação parcial na linguagem falada. O diálogo com o psicoterapeuta requer uma
representação absoluta na linguagem falada, que promove os conceitos na consciência, o
processo de ressignificação e a criação de sentido. Como escreveu Vygotsky (1934), da
linguagem interna para a linguagem externa ocorre uma transformação dinâmica complexa –
uma transformação de uma linguagem predicativa e idiomática para uma linguagem
sintaticamente decomposta, compreensível para todos (p. 474). É isto que ocorre na psicoterapia,
e o que é suposto e proposto que seja produzido na psicoterapia.

Com este trabalho, o psicoterapeuta sócio-histórico aguarda por uma mudança na atitude do seu
paciente para consigo próprio e para com o mundo que o rodeia, no pressuposto de B. V.
Zeigarkik (1976) de que um método que metaboliza a atividade cognitiva produz uma
atualização dos componentes pessoais (motivações e atitudes) (p. 32). As atitudes da pessoa
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estão em relação com sua estrutura de personalidade, as suas necessidades e as suas


particularidades emocionais e a sua vontade / volição.

As diferentes estruturas de personalidade (psicopatologias) são vistas pelo psicoterapeuta como


diferentes idades psicológicas. Como G. V. Burmenskaia (1997) escreveu, citado por Robbins
(2003): Vygotsky definiu idade psicológica como cada tipo de estruturas de personalidade e
atividade, com mudanças psíquicas e sociais que inicialmente surgiram num dado estádio de
idade psicológica e que determinam a consciência da criança, as suas atitudes perante o meio
exterior, a sua vida interior e exterior, e todo o conteúdo do seu desenvolvimento num dado
período (Burmenskaia, 1997, apud Robbins, 2003, p. 38).

Assim, o setting psicoterapêutico pode ser visto como um local mágico onde as
mentes se encontram, onde as coisas não são os mesmos para todos os que as vêem,
onde os significados são fluidos, e onde a construção de um indivíduo pode
preencher a de outro. Imaginem, duas pessoas cujas atividades são mutuamente
contingentes, seguindo ritmos, rotinas e iniciativas relativamente simples....
(Newman, Griffin e Cole, 1989, apud Robbins, 2003, p 234).

Para poder fazer o seu trabalho, o psicoterapeuta dispõe de algumas técnicas. Os propósitos de
melhorar o aspecto relacional (social) e promover a atividade verbal do paciente sobre o objeto
(ou instrumento) que aqui significa coisas, pessoas e eventos, eventos da vida do paciente e,
baseia-se na função de mediação que os caracteriza. Então, eles podem, numa perspectiva
psicológica, ser incluído na mesma categoria.

Nós agrupamos estas técnicas em dois grupos. Um grupo de Técnicas Gerais, que estabelecem
uma certa atitude relacional (social) entre o psicoterapeuta e o paciente, e devem estar presentes
em todos os momentos da psicoterapia; e Técnicas Específicas, que são selecionadas pelo
psicoterapeuta de acordo com o que está a acontecer em cada momento (aqui e agora) da
psicoterapia.

As Técnicas Gerais são: Intercurso Mutuamente Contingente, um padrão de interação social,


como estudado por Rita Leal (1975); Compreensão Empática, que assumindo a eigenwelt do
paciente reconhece a subjetividade e Pôr Verbo.

As Técnicas Específicas são: Repetição, com a intenção de produzir uma maior verbalização da
parte do paciente, Marcação, com o objetivo de apoiar o diálogo, mas sem o interromper;
Focagem, para aumentar a ansiedade, promovendo maior atividade; Generalização, para reduzir
a ansiedade; Eco Emocional, ou seja, dar nome às emoções do paciente; e expressão, ou seja,
descrever eventos de uma forma racional e objetiva.

Nos últimos 10 anos, um grupo de psicólogos clínicos e psicoterapeutas em Portugal e nos


últimos 3 (três) anos também no Brasil, um grupo interessado na abordagem sócio-histórica
através dos trabalhos de Lev Vygotsky, Alexander Luria, Alexis Leontiev e dos seus colegas,
tem tentado modificar a sua prática numa nova prática.

Este grupo, heterogêneo no início, porque provinham de diferentes escolas – psicanálise, terapia
cognitivo-comportamental, terapia sistêmica, fenomenologia, etc. – criou um grupo em volta da
teoria e prática de Rita Leal, o modelo de Relação Mutuamente Contingente, que lhes forneceu
uma boa base clínica para a abordagem sócio-histórica.
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5. REFERÊNCIAS

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Boarini, M. & Yamamoto, O. (2004). Higienismo e Eugenia: discursos que não envelhecem.
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Carvalho, J. (2008). Cidadania no Brasil: o longo caminho. (10ª ed.) Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.

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infância de criança no Brasil. Ed. Contexto.

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Ocidente. Porto Alegre: Artmed.

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VIGOTSKI, L. (1934) Construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo: Martins


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VIGOTSKI, L. Luria, A. (1996) Estudos sobre a história do comportamento. Porto Alegre:


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metodológica. (1927). In: Teoria e método em Psicologia. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes,
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