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ESSENCIAL CELSO FURTADO

CELSO FURTADO nasceu em Pombal, Paraíba, em 1920. Estudou direito na Universidade do Brasil e doutorou-se em economia na
Universidade de Paris (1948). Fez estudos de pós-graduação na Universidade de Cambridge. Foi diretor da Divisão de
Desenvolvimento Econômico (1949-57) da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), no Chile; criador e primeiro
superintendente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste/Sudene (1958-64); primeiro ministro do Planejamento do
Brasil (1962-3). Em 1964, cassado pelo golpe militar, instalou-se na França, onde foi por vinte anos professor de economia da
Universidade de Paris-I/ Sorbonne, tendo lecionado também nas universidades de Yale, Columbia, American University e
Cambridge. Foi ministro da Cultura do Brasil (1986-8). Publicou cerca de trinta livros, majoritariamente sobre teoria, história e
política econômicas, traduzidos numa dúzia de idiomas. Faleceu no Rio de Janeiro em novembro 2004.

ROSA FREIRE D’AGUIAR nasceu no Rio de Janeiro. Formou-se em jornalismo pela PUC do Rio de Janeiro. Nos anos 1970 e 1980 foi
correspondente em Paris das revistas Manchete e IstoÉ e do Jornal da República. Em 1986 retornou ao Brasil e desde então trabalha
no mercado editorial. Traduziu do francês, espanhol e italiano cerca de cem títulos nas áreas de literatura e ciências humanas, de
autores como Céline, Lévi-Strauss, Sabato, Balzac, Montaigne e Stendhal. É autora de Memória de tradutora (2004) e editora da
coleção Arquivos Celso Furtado (Contraponto/ Centro Celso Furtado), na qual já publicou cinco títulos. Entre os prêmios que recebeu
estão o da União Latina de Tradução Técnica e Científica (2001) por O universo, os deuses, os homens, de Jean-Pierre Vernant, e o
Jabuti (2009) por A elegância do ouriço, de Muriel Barbery, ambos da Companhia das Letras. É presidente do Conselho Deliberativo
do Centro Internacional Celso Furtado.

CARLOS BRANDÃO é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ. Suas atividades de docência,
pesquisa e extensão se concentram na área do Desenvolvimento Socioeconômico e do Planejamento Urbano e Regional. É doutor,
livre-docente e professor titular de economia pela Unicamp. Seu mestrado foi defendido na UFMG e seu pós-doutorado, no Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É, ainda, coordenador do site <www.interpretesdobrasil.org> e do Observatório Celso
Furtado para o Desenvolvimento Regional, vinculado ao Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
Reflexões sobre
a cultura brasileira*

A formação histórica brasileira tem suas raízes no processo de mundialização da civilização europeia.
O deslocamento da fronteira agrícola do velho continente para as terras americanas, o transplante
intercontinental de grandes massas de mão de obra africana, a implantação de linhas regulares de
comércio interoceânicas são episódios de um processo histórico sem precedentes, que tem seu
epicentro na Europa ocidental e serve de moldura à formação do Brasil como nação e como sistema de
cultura.
Uma reflexão sobre as raízes de nossa cultura deve ter como referência inicial a vaga expansionista
europeia do século XVI, essa época de transição, interregno entre dois mundos ordenados: o da fé e o
do conhecimento científico. Nenhum conceito é mais representativo desse período em que o homem
transita entre dois sistemas de certezas do que o de Fortuna, a incerteza que o espreita por todos os
lados e estimula a audácia.
Somos em verdade a criação de uma época em que o conhecimento fundava-se mais na compreensão
do que na explicação das coisas, que confiava mais na analogia do que na lógica, que substitui a
consciência de pecado pela ideia de dignidade humana.
Nessa época de intensa criatividade cultural assinalam-se dois processos de particular relevo. O
primeiro tem como ponto de partida uma nova leitura da cultura clássica e conduz à secularização da
vida civil, ao neoplatonismo galileano, que identifica o mundo exterior como estruturas racionais
traduzíveis em linguagem matemática, à legitimação do poder pela eficiência, finalmente à ampliação
do espaço em que age e pensa o homem. Essa autêntica revolução cultural, que irradia da Itália, abarca
todas as manifestações da criatividade, estendendo-se dos estudos de anatomia, com Vesalius, aos de
arquitetura, com Bramante. A penetração progressiva do discurso racional somente se explica tendo
em conta o avanço realizado nos dois séculos anteriores pela economia de mercado em detrimento das
formas feudais de organização econômica e social. O cálculo econômico, que transforma a natureza e
o próprio homem em fatores de produção, reforçava a visão racional do mundo exterior e era por esta
legitimado.
A segunda manifestação cultural de grande poder germinativo assume a forma de avanço da
fronteira geográfica mediante a abertura de linhas de navegação intercontinentais. Por esse meio,
amplia-se consideravelmente a base do processo de acumulação na Europa e estabelecem-se de forma
permanente contatos entre grandes civilizações contemporâneas do Ocidente e do Oriente. O foco de
onde parte esse segundo vetor conducente à mundialização da cultura europeia é Portugal.
A cultura brasileira é um dos múltiplos frutos desse processo de desdobramento geográfico da
civilização europeia a partir dos inícios do século XVI. Tem, contudo, a particularidade de integrar-se
na área de ação imediata de Portugal, foco de uma das vertentes a que fizemos referência.
O rápido avanço das fronteiras geográficas e econômica da Europa no século XVI é quiçá a primeira
grande vitória política obtida não pela força militar, mas mediante o uso de inovações tecnológicas.
Durante três quartos de século os portugueses aplicaram-se em acumular conhecimentos teóricos e
práticos com vistas a capacitarem-se para alcançar e explorar terras longínquas, utilizando meios
econômicos escassos. Tudo foi concebido e executado no quadro de um projeto, e aí reside a
extraordinária antecipação da modernidade. Realizou-se um esforço coordenado em múltiplas frentes,
pois se tratava de, ao mesmo tempo, desenvolver a técnica de construção de barcos para a navegação
de longo curso, formar navegantes e outros especialistas, elaborar a técnica de navegação de alto-mar,
acumular conhecimentos cartográficos, abrir novas rotas marítimas e terrestres.
Um projeto dessa grandeza somente pôde ser concebido e concretizado porque circunstâncias
históricas particulares conduziram a uma aliança precoce entre a monarquia portuguesa, ameaçada
pelo movimento unificador da península, liderado pelos castelhanos, e a burguesia de Lisboa. Não
vem ao caso detalhar esse tema, tão bem estudado pelo historiador português António Sérgio, mas
convém assinalar que foi relevante para a história europeia que o sentido de continuidade,
característica da ação dos governos monárquicos, fosse posto a serviço de um ambicioso projeto de
expansão comercial, cuja execução somente podia ser assegurada por homens de espírito mercantil.
O Estado português esteve presente em todas as fases do complexo desdobramento do projeto de
descoberta do caminho marítimo das Índias e de exploração comercial destas. Pode-se mesmo afirmar
que essa experiência de associação de um poder político, cuja legitimidade não tinha raízes mercantis,
com o espírito de empresa burguês, serviu de modelo para a criação das companhias de comércio e
navegação, que surgiram posteriormente na Holanda e na Inglaterra como instituições de direito
privado mas exercendo funções públicas.
Essa íntima articulação entre o Estado e grupos mercantis estará igualmente presente na ocupação,
na defesa e na exploração das terras americanas em que se constituíra o Brasil. A isso cabe atribuir o
sentido de continuidade que caracterizará a ação portuguesa, patente na permanente preocupação de
preservar e ampliar a integridade territorial, a despeito dos altos custos incorridos na defesa de vastas
áreas sem perspectiva de valia econômica.
Outra referência que nos ajuda a captar o perfil do ser cultural brasileiro é o fato de que os
portugueses não foram apenas o povo dominante, como os ingleses no Canadá, mas também o único
povo que, durante todo o processo formativo do Brasil, manteve-se em contato com suas matrizes,
delas se realimentando. Em todo o período colonial os portugueses foram uma minoria em face da
presença indígena e também da presença da população de origem africana, que logo começa a afluir
como força de trabalho. Mas o peso dessa minoria na formação da cultura brasileira é avassalador.
Não apenas porque os portugueses são os senhores, e os demais, escravos ou quase escravos, pois o
número dos que não são proprietários nem exercem funções de mando cresce rapidamente. O decisivo
esteve em que os portugueses não somente partiram de técnicas mais avançadas, mas continuavam a
alimentar-se de suas fontes culturais europeias. Ora, os aborígenes e os africanos haviam se isolados
de suas matrizes culturais respectivas e, ao serem posteriormente privados das próprias línguas,
perdiam o senso da identidade cultural.
Nos três séculos do período colonial desenvolve-se no Brasil uma cultura que, sendo portuguesa em
sua temática e estilo, incorpora não apenas motivos locais, mas também toda uma gama de valores das
culturas dos povos dominados. A expressão mais forte da nova cultura apresenta-se na arquitetura e na
escultura, o que não é de surpreender, tendo em conta o espaço que Estado e Igreja ocupam na
sociedade.
A apropriação e a exploração das terras brasileiras fizeram-se no quadro de empresas agrícolas
voltadas para a exportação. Contudo, as atividades mercantis permaneceram mediadas por agentes
metropolitanos, o que impedirá a formação no país de uma classe comerciante com consciência de
seus interesses específicos e capaz de disputar uma esfera de poder. À diferença de outros países da
América Latina, nos quais emergiu na época colonial uma burguesia mercantil que estará na origem
dos movimentos independentistas que se manifestam em Buenos Aires, Caracas e México em 1810, no
Brasil as atividades comerciais de algum vulto permanecerão sob estrito controle dos portugueses,
mesmo no período que se segue imediatamente à independência. O desdobramento da Coroa, ocorrido
e m 1822, foi obra de homens como José Bonifácio de Andrade e Silva, com larga experiência no
exercício de funções dentro do Estado português.
A permanência de certos traços da cultura brasileira — que nos séculos XVI e XVII apresenta sua
maior força em Olinda e Salvador da Bahia, implanta-se com vigor no Rio de Janeiro e nas Minas
Gerais do século XVIII, e ressurge nas terras maranhenses em fins desse século e começos do século
XIX — explica-se pela estabilidade do sistema de dominação social latifundiário-burocrático. Na
ausência de uma classe mercantil poderosa, tudo dependia do Estado e da Igreja. A criação cultural
reflete a preeminência dessas instituições.
O ciclo barroco brasileiro, cuja expressão mais rica é a integração da arquitetura com a escultura, a
pintura e a música ocorrida no século XVIII em Minas Gerais, constitui quiçá a última síntese cultural
no espírito da Europa do pré-Renascimento. Sua temática e seu poder morfogenético derivam da
mesma visão do mundo que nutriu os pintores flamengos do Quatrocentos e primeira metade do
Quinhentos ou, em época anterior, os construtores das catedrais góticas. Com o Renascimento
dissolve-se essa síntese cultural, cuja expressão mais pura encontra-se nos círculos concêntricos de
Dante. A eclosão do humanismo abre na Europa um processo criativo polifacético, que somente
produzirá uma nova ideia global do homem com o romantismo. O dinamismo desse novo quadro
cultural reflete o fundo móvel de uma sociedade competitiva, na qual a criatividade tecnológica é um
dos principais recursos de poder.
O quadro histórico em que se forma o Brasil — articulação precoce, em Portugal, do Estado com a
burguesia e total domínio da sociedade colonial pelo Estado e pela Igreja — congela o processo
cultural no universo europeu pré-humanismo. Daí que se haja dito com razão ser o Aleijadinho, esse
artesão e santeiro, o último grande gênio da Idade Média. Importa assinalar que, à semelhança da
síntese medieval europeia, o barroco brasileiro era a expressão da sociedade como um todo. Sua
mensagem atingia senhores e escravos. Mas a extraordinária performance do processo cultural
brasileiro nesse período teve, como contrapartida, crescente distanciamento de uma Europa em rápida
transformação cultural. A cultura brasileira do período colonial podia ser vista como uma dessas
subespécies que tendem a desaparecer pelo fato mesmo de que se diferenciam do ramo dominante.
A ruptura cultural brasileira pós-barroco não se explica sem se ter em conta as mudanças ocorridas
no contexto maior em que estava inserido o país. A Revolução Industrial que irrompe na Europa no
último quartel do século XVIII constitui autêntica mutação no processo acumulativo subjacente ao
conjunto das atividades sociais. Até essa época a acumulação não absorvia mais do que uma pequena
fração do produto social e, de preferência, ocorria fora das atividades produtivas. A mecanização abre
a porta a aumentos consideráveis na produtividade do trabalho e ao crescimento do excedente, fatores
que causam a intensificação da acumulação, na qual se fundam tanto a elevação do nível quanto a
diversificação dos padrões de consumo.
Os dois vetores que viabilizam a expansão do sistema produtivo são o incremento da produtividade
do trabalho social e a diversificação do consumo, vale dizer, o progresso tecnológico nos
procedimentos produtivos e na concepção dos bens e serviços de consumo final. Ora, o sistema de
divisão internacional do trabalho permitiu isolar esses dois processos. Um país que se especializasse
na produção agrícola para a exportação podia ter acesso à moderna tecnologia sob a forma de produtos
de consumo sem ter que investir para elevar a produtividade física do trabalho. As vantagens
comparativas estáticas criadas pela especialização e o acesso a um mercado em expansão davam
origem a um excedente que permitia pagar os bens de consumo sofisticados que estavam penetrando
no mercado internacional. Era o processo da modernização dependente, que outra coisa não é senão a
utilização do excedente gerado pela especialização na exportação de produtos primários e retido
localmente, para modelar os padrões de comportamento de forma a estimular a importação de
manufaturas destinadas ao consumo, cristalizando um certo padrão de divisão internacional do
trabalho. A modernização dependente fez que a ruptura da síntese barroca conduzisse a padrões de
comportamento imitativos, a um crescente bovarismo, e não a novo processo cultural criativo, à
diferença do ocorrido na Europa com a passagem da visão do mundo medieval para o humanismo. O
distanciamento entre elite e povo será o traço característico do quadro cultural que emerge nesse
período, produzido pela modernização dependente. As elites, como que hipnotizadas, voltam-se para
os centros da cultura europeia, de onde brotava o fluxo de bens de consumo que o excedente do
comércio exterior permitia adquirir. Na escala de valores desse quadro cultural, a simples visita de
uma companhia teatral europeia a uma cidade do país assumia a significação de acontecimento
cultural marcante na vida de uma geração. O povo era reduzido a uma referência negativa, símbolo do
atraso, atribuindo-se significado nulo à sua herança cultural não europeia e recusando-se valia à sua
criatividade artística. O indianismo de um Carlos Gomes ou de um Alencar, ao atribuir aos homens da
terra valores emprestados de outra cultura, expressa a rejeição do povo real. E a ironia sutil com que
Machado observa este tem o sabor de uma escusa em face de um tema proibido.
Assim desprezado pelas elites, o povo continua seu processo formativo com considerável autonomia,
o que permitirá que as raízes não europeias de sua cultura se consolidem e que sua força criativa se
expanda menos inibida, em face da cultura da classe dominante. A diferenciação regional do Brasil
deve-se essencialmente à autonomia criativa da cultura de raízes populares.
A descoberta, casual ou buscada, do país real pelas elites é certamente o traço mais saliente do
processo cultural brasileiro no século XX. Muitos são os fatores intervenientes, de origens interna e
externa. O isolamento provocado pelos conflitos mundiais e a crise da economia primário-
exportadora, que conduzem a uma industrialização tardia apoiada exclusivamente no mercado interno,
constituem a tela de fundo. A ascensão da economia norte-americana, impulsionando uma cultura de
massas dotada de meios extraordinários de difusão, opera contra esse fundo como principal fator de
desestabilização do quadro cultural baseado na dicotomia elite-povo.
A urbanização torna a presença do povo mais visível, e também mais difícil de escamotear a
criatividade cultural deste. Mas é a emergência de uma classe média de importância econômica
crescente que introduzirá elementos novos de peso na equação do processo cultural brasileiro. A
classe média forma-se no quadro da modernização dependente, mediada por uma industrialização que
segue as linhas da substituição de importações. Contudo, a grande maioria de seus elementos está
demasiado próxima do povo para poder ignorar a significação cultural deste. Mais ainda: o caráter de
massa da cultura da classe média faz que suas relações com o povo sejam não de exclusão, como era o
caso das elites bovaristas, e sim de envolvimento e penetração. Dessa forma, a ascensão da cultura de
classe média é o fim do isolamento do povo, mas também o começo da descaracterização deste como
força criativa. Uma visão panorâmica do processo cultural brasileiro neste final do século XX
descobre, num primeiro plano, o crescente papel da indústria transnacional da cultura, que opera como
instrumento da modernização dependente. Num segundo plano, assinala-se a incipiente autonomia
criativa de uma classe média assediada pelos valores que veicula essa indústria, mas que tem uma face
voltada para a massa popular. Em terceiro plano, abarcando todo o horizonte, perfila-se essa massa
popular sobre a qual pesa crescente ameaça de descaracterização. A emergência de uma consciência
crítica em alguns segmentos da classe média está contribuindo para elevar o grau de percepção dos
valores culturais de origem popular, criando áreas de resistência ao processo de descaracterização.
Uma nova síntese, capaz de expressar a personalidade cultural brasileira, depende, para definir-se, da
consolidação dessa consciência crítica, pois somente ela pode preservar os espaços de criatividade que
sobrevivem na massa popular. Na fase em que nos encontramos, o processo de globalização do
sistema de cultura tende a ser cada vez mais rápido. Todos os povos lutam para ter acesso ao
patrimônio cultural comum da humanidade, o qual se enriquece permanentemente. Resta saber quais
serão os povos que continuarão a contribuir para esse enriquecimento e quais aqueles que serão
relegados ao papel passivo de simples consumidores de bens culturais adquiridos nos mercados. Ter
ou não acesso à criatividade, essa é a questão.

* Capítulo 1 de Cultura e desenvolvimento em época de crise. São Paulo: Paz e Terra, 1984.

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