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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de História

Professor: Pablo Mont Serrath


História Moderna I (FLH0231)
Aluna: Bruna Koerich Reitz - Nº USP: 11324583 - Noturno
Tema: 4. O Sistema-mundo Moderno

ESPAÇO, RELIGIÃO E ECONOMIA NA FORMAÇÃO DO SISTEMA-MUNDO


MODERNO

O italiano Botero, em uma das páginas mais significativas das Relazioni Universali
(publicada em 1596), define a civilização humana como dependente de consciência religiosa
cristã, mas também do desenvolvimento do pastoreio e da agricultura, do comércio, de
governos estáveis, da promulgação de leis e do estabelecimento de normas morais. Até a
chegada dos europeus no Novo Mundo, surge entre os escritores do século XVI, a
constatação de que seus habitantes não cumpriam nenhum desses critérios - não conheciam as
escrituras, nem pesos, nem medidas, nem comércio, nem agricultura e nem leis. As
discussões acerca da legitimidade do domínio e da condução à noção modernizadora e
civilizada permeou por muitos séculos seguintes.
Este ensaio tem como objetivo construir, de forma sintética, o papel das ideias
modernizadoras na justificativa e formação do sistema-mundo moderno e na dominação da
periferia mundial. Para isso, com base nas principais colocações teóricas de Fernand Braudel,
Immanuel Wallerstein, Vitorino Magalhães Godinho e Frédéric Chabod é realizada uma
compreensão do europeu e sua assimilação dentro da dinâmica global do sistema-mundo,
com divisão hierárquica entre o novo centro-periferia que acaba de se formar.
Dentro das análises da Época Moderna, da contribuição da expansão ultramarina e das
experiências por ela propiciadas no desenvolvimento do conhecimento, são desenvolvidas as
discussões dentro do que se passou a compreender por sistema-mundo. Para entender esse
conceito e sua dinâmica, não basta compreender somente as formas de comércio do período,
mas também a formação do modo de produção e a importância da sociabilidade mercantil em
escala global1.
O conceito de sistema-mundo - formulado por Wallerstein e baseado no conceito de
economia-mundo de Fernand Braudel - aparece como um reenquadramento do marxismo e
como um contraponto crítico à teoria do funcionalismo estrutural. O funcionalismo descreve
a modernização como um processo de divisão das atividades-chave, assim, nas sociedades
tradicionais as atividades fundamentais estariam concentradas em um número pequeno de

1 BRAUDEL:1998 (p.11-58)
instituições (família, parentesco), enquanto a modernização constituiria o aumento dessas
instituições. Dessa forma, bastaria para as sociedades tradicionais espelharem-se nas
modernas e modernizarem de forma igual, sendo guiados por elas. Isto é, ignora
completamente muitos anos de contato cultural, comércio e intervenções políticas feitas pela
Europa em prol de sua própria modernização dentro de uma hierarquia entre centro-periferia.
Fernand Braudel, ao trabalhar as questões do tempo longo (estrutura), do tempo
médio (conjuntura) e tempo curto (evento), é o primeiro a usar a ideia de economia-mundo
para se referir ao mediterrêneo. O autor desenvolve, no volume 3 de “civilização material,
economia e capitalismo” sua noção, inspirada nos historiadores alemães, desenvolvendo seu
próprio conceito, ao debater com Wallerstein. Primeiramente, é feita a distinção entre
economia mundial e economia-mundo, na qual a última se trata de “Espaços dentro do
planeta autônomos e capazes de bastarem a si próprios, não precisando necessariamente
estarem ocupando todo o globo”2. Assim, a economia mundial é aquela que se estende à terra
inteira, é o mercado mundial; enquanto as economias-mundo envolvem espaços do planeta
economicamente autônomos, nos quais suas ligações e trocas internas conferem certa unidade
orgânica.
Mas quando surgem as economias-mundo? Para Braudel, elas desde sempre
existiram. Gunder Frank e Barry K. Gills defendem a tese de que têm uma história de pelo
menos 5000 anos. Para Wallerstein, haviam dois tipos de sistemas sociais: mini sistemas e
sistemas-mundo. O segundo seria dividido entre impérios-mundo e economias-mundo.
Portanto, no período anterior a 8000 a.C, o território mundial era provavelmente composto
por um grande número de mini sistemas espalhados3. É possível ainda, recuar mais na
periodização: estudiosos da big history indicam a formação de uma “economia-mundo”
primária, ocorrida com a Revolução agrícola do período neolítico (10000 a.C) e, ao longo do
tempo, se tornando cada vez mais estável e coesa até atingir uma escala global - a partir das
navegações ultramarinas do século XVI.
No início do século, a economia-mundo europeia era representada basicamente pelo
mediterrêneo, com escala restrita. Apenas nos séculos seguintes, com os tentáculos do tráfico,
é que se estenderá ao mundo inteiro, tornando-se uma economia-mundo ao mesmo tempo
mundial. A expansão marítima nos séculos XV e XVI, segundo Godinho, aparece como
resultante e alavanca na passagem da sociedade senhorial e urbana da Idade Média para a
economia nacional de tendência capitalista. Esse impulso que provém da nova classe e das

2 GODINHO: 2008 (p.111-116)


3 COSTA; LACERDA: 2007 (p.51)
relações comerciais marítimas, é fator decisivo na dissolução, transformação e evolução
econômica e social do regime senhorial que preludia a época moderna. A acumulação de
riquezas em algumas cidades não era possível pelas simples trocas locais, mas apenas pela
aproximação de vastos meios geográficos, assim, o destino do comércio europeu dependia em
larga proporção do movimento de transações com a Ásia e o Sudão, onde os mercadores
buscavam pedras preciosas, porcelanas, seda e especiarias. Nesse primeiro momento dos
descobrimentos e conquistas além mar, constata-se que se tratava principalmente do comércio
com artigos de luxo, dado que a exportação em grandes quantidades encontrava insuperáveis
dificuldades de transportes4.
Seria só no reinado de D. Manuel que a ebriedade das riquezas orientais sufocaria a
abnegação dos que partiam a combater infiéis, dentro do argumento da expansão ultramarina,
desde seus primórdios, vista pelo preponderante “espírito de cruzada”. Esta dilatação
geográfica do século XV, continuaria então, na “tese reliogiosa”, a reconquista cristã da
Península Ibérica. De forma destoante, o historiador António Sérgio atribui à cobiça o papel
de mola expansiva, admitindo que não há qualquer relação inteligível entre o cristianismo e
as navegações de conquista. Vitorino Magalhães Godinho se opõe veementemente à ideia do
historiador, considerando-a anacrônica.
(...) Sérgio engana-se ao supor que não há tal relação inteligível, porquanto
interpreta a mensagem evangélica de uma maneira que não corresponde à
interpretação que ela se dava nos séculos XV e XVI. Antes de mais, é necessário
analisar quais eram as ideias e sentimentos religiosos dessa época ,
independentemente das novas concepções, para em seguida determinar se podiam
ou não mover os feitos guerreiros que para Sérgio são antagônicos ao cristianismo.
Este historiador vê-se obrigado , para harmonizar a realidade com seus princípios, a
atribuir à hipocrisia larga função na sociedade quatrocentista e quinhentista,
generalização certamente inadmissível de casos irrefutavelmente estabelecidos
(GODINHO: 2008. p.128)
Dentro desse amplo processo e dos múltiplos fatores citados anteriormente, em um
mundo aberto pelas navegações, o valor da fé cristã também se apregoa como norte das
ações, contra o infiel e pela salvação da cristandade. Deve-se, então, paralelamente discutir os
motivos conscientes dos personagens de uma época, analisar ideologias das correntes
intelectuais e das hierarquias de valores que caracterizam a cultura. Dessa forma, o “espírito
de cruzada” dos séculos XI ao XIII não se extingue completamente, mas sofre modificação

4 VITORIA: 1989 (p.86)


larga quando a noção de libertação da Terra Santa passa à ideia de aquisição de qualquer terra
detida pelos infiéis, no século XVI e adiante.
Em Portugal, há de um lado uma política de conquistas territoriais e de outro o
desbravamento do oceano desconhecido para desenvolver circuitos mercantis, colonizar
arquipélagos e posteriormente o Novo Mundo. A luz do modelo de conquista definido pelas
bulas papais, se compreende o persistente recurso à agressiva noção jurídica de
“descobrimento” e “conquista”. Na bula Dum Diversas de 1452, é dada a autorização “a
atacar, conquistar e submeter sarracenos, pagãos e outros infiéis inimigos de Cristo; a
capturar os bens e os territórios a eles pertencentes; a reduzi-los à escravidão perpétua e a
transferir suas teras e propriedades para o Rei de Portugal e seus sucessores”. De mesmo
modo, a bula Romanus Pontifex de 1455, permite o alargamento da fé católica até regiões
desconhecidas, permitindo o comércio com infiéis e admitindo o monopólio português sobre
as regiões conquistadas e por conquistar, sob pena de excomunhão aos que se intrometessem
nesses locais sem a permissão de Portugal.
Com o sucesso das viagens para a Índia e no posterior “descobrimento” do Novo
Mundo, se apresenta também a novidade dos povos indígenas habitantes da região, sob o
ponto de vista europeu. A imagem desse “outro” é muito marcada pelas diferenças
civilizacionais, uma vez que, ao contatar o Oriente, encontraram culturas cuja matriz era
semelhante, de certo modo, à europeia. Os orientais, no geral, se organizavam no espaço de
maneira semelhante aos europeus. Nas Américas, pela falta de referencial, a alteridade foi de
maior exigência. É possível observar nos relatos de viajantes, nos escritos sobre os índios e
sobre o “Novo Mundo” a presença do velho mito medieval do “Paraíso Terreno” e de certa
idealização de um mundo sem pecados, ao mesmo tempo que há o confronto com o “Outro”
contraposto à noção de civilização europeia, moldada sob a moral cristã.
Dessa maneira, quando observamos, por exemplo, a visão dos portugueses sobre os
índios brasileiros, estamos observando um discurso que se constrói a partir de um “vazio
referencial”5, a conceituação se dá baseada no ponto de vista dos renascentistas, na negação
da obscuridade e na construção de uma sociedade civilizada. Com efeito, a carta que Pero
Vaz de Caminha escreve, é o testemunho do deslumbramento perante ao mundo
desconhecido, primordial e virgem. João Paulo Costa e Teresa Lacerda acentuam, sobre a
carta de Caminha, que por ser direcionada ao Rei não esclarece muito sobre a visão europeia
sobre os indígenas:

5 CHABOD: 1967 (p.31-37)


A Carta de Pêro Vaz de Caminha é, de certa forma, um preâmbulo
enganador daquilo que foram as visões europeias sobre os Índios. O discurso
positivo da carta compreende-se pela sua qualidade de mensagem enviada ao rei,
que com ela via acrescido o rol dos seus domínios. Como mensageiro do
prometedor “achamento”, o escrivão desejava obter uma boa recompensa régia.
(COSTA; LACERDA: 2007. p.53)
Assim sendo, segundo os autores, a carta é mais estabelecida de forma a estabelecer
detalhes ao leitor do que demonstrar o estranhamento com o outro, ainda que perceptível.
Houveram múltiplos e dicotômicos relatos e reflexões dos europeus sobre os desconhecidos
povos habitantes das novas terras, debatendo se eram possuidores de alma, se eram homens e,
se sim, como elevá-los à civilização e ao Reino de Deus. Américo Vespúcio descreve o índio
como “monstro alvar e crudelíssimo, nutrido com carne dos inimigos”, José de Anchieta, em
carta, alega que “para este gênero de gente não há melhor pregão que espada e vara de ferro”.
A humanidade do índio foi alvo de tantas polêmicas que foi preciso que Bula Papal
Sublimis Deus, em 1537, o declarasse definitivamente como Homem. Francisco de Vitória,
desde antes da Bula, já concebia os indígenas do “Novo Mundo” como dignos de direito
comum, assim, o jus gentium de seus tempos, seria o que regia as relações entre todos os
povos e indivíduos, em condição de independência e de igualdade jurídica, consoante uma
visão verdadeiramente universalista e humanista: “nós não temos sobre os índios da América
mais direitos do que eles teriam sobre nós se nos tivessem descoberto”6.
Embora haja intelectuais que defendem o direito dos indígenas, como Vitoria, Las
Casas e Montaigne, ainda predomina na Europa o conceito do selvagem bárbaro em contraste
com o europeu civilizado. O próprio conceito de Europa, o conhecimento do que é ser
Europeu, se forma em contraposição e no exercício de alteridade com os Outros - primeiro
com a Ásia, depois com a América .
Assinalam-se o refinamento dos costumes, da moral, da organização política e
capacidade militar frente aos costumes “bárbaros” para se justificar o domínio e as ofensas
expansionistas7. Retomando Braudel e a ideia de que os limites espaciais se alargam ao longo
do tempo com a hierarquização do espaço entre centro e periferia, observamos o “centro”
mundial europeu se formando sob esse contexto da expansão ultramarina e dos
descobrimentos, com a exploração por meio do comércio da pilhagem, ante o pretexto
civilizatório da “periferia” através dos dogmas e da moral cristã europeizante. Os Estados
Modernos tiveram um papel fundamental na promoção do alargamento e do fortalecimento

6 WALLERSTEIN: 1995. (p. 15)


7 WALLERSTEIN: 1995. (p.29)
do comércio, sendo eles os futuros maiores empreendedores das maiores guerras, tal qual as
maiores empresas econômicas - a expansão ultramarina marcou a multiplicação e a circulação
dos bens de maneira jamais vista, explorando e apropriando a periferia mundial dentro do
sistema, assim como os que nelas habitam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo. Volume 3. São Paulo:


Martins Fontes, 1998 (1ª ed. francesa, 1979).

CHABOD, Federico. Historia de la idea de Europa. Madrid: Editorial Norte y Sul, 1967 (1ª ed.
italiana, 1962).

COSTA, João Paulo Oliveira e; LACERDA, Teresa. A Interculturalidade na Expansão


Portuguesa (séculos XV-XVIII). Lisboa: ACIME, 2007.

GODINHO, Vitorino Magalhães. A Expansão Quatrocentista Portuguesa. Lisboa: Dom


Quixote, 2008, 2ª ed. (1ª ed., 1962).

MARCOCCI, Giuseppe. A Consciência de um Império. Coimbra: Imprensa da Universidade


de Coimbra, 2012.

VITORIA, Francisco de. Relectio de indis: Corpus Hispanorum de Pace. Madrid: Consejo
superior de Investigaciones Científicas, 1989.

WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo Histórico e Civilização Capitalista. Rio de Janeiro:


Contraponto, 1995 (1ª ed. inglesa, 1983).

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