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1 INTRODUÇÃO
A proteção da parte e não do todo resulta não só em uma contradição teórica, mas em
procedimentos de intervenção contemporâneos de caráter problemático e descaracterizante na
estrutura da Igreja da Ordem Terceira do Carmo. O excepcional, valor cultivado e polinizado
dentro do SPHAN e atual IPHAN, justifica a seleção de apenas alguns bens representativos
entre vários de um mesmo tempo ou classe. O caráter arbitrário do tombamento elencado na
legislação brasileira é resultado da atribuição de valor caso a caso de competência do órgão
federal. R.M.F, inclusive, afirma que nos livros do tombo não deve ser inscrito nenhum bem
senão aqueles considerados de valor excepcional, posto que a avaliação deve ser feita em
comparação ás obras produzidas no Brasil, pois só assim seriam qualificadas como
condizentes à identidade nacional, já que este era um valor inegociável na atribuição do que
era patrimônio brasileiro (FONSECA, 2005).
O estudo, a pesquisa e os conhecimentos reservados a autoridade dos agentes do
Serviço do Patrimônio impediam o acesso da opinião pública aos processos institucionais
desenvolvidos pelo SPHAN. Com o objetivo de defender a capacidade intelectual e moral de
sua equipe técnica, Rodrigo Melo Franco divulgava em sua “menina dos olhos” – as
publicações do SPHAN – inventários balizados por um pensamento institucional
cuidadosamente articulado que passaria a ser o principal norteador dos debates em torno da
temática patrimonial no Brasil, ou seja: ao criar um pioneiro e próprio espaço de discussão, o
SPHAN divulgava as suas ações e a competência dos seus agentes ao tempo que se legitimava
como referência obrigatória no que tangem as discussões de patrimônio (CHUVA, 2009).
Talvez, essa “retroalimentação” do órgão diante dos seus próprios feitos e divulgação limitada
a nichos sociais intelectuais e diminutos, garantiram a Rodrigo Melo Franco de Andrade
permanência até a sua aposentadoria no SPHAN.
No entanto, as transformações políticas, econômicas e sociais pós-Estado Novo
obrigaram o agora Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a mudar a
sua abordagem quanto ás políticas de preservação, principalmente no que concerne a escala
urbana de cidades consideradas históricas. O crescimento acelerado nesses locais, que
passavam de uma realidade de estagnação econômica para outra de ascensão muito
rapidamente, acarretava em muitos problemas relacionados a infraestrutura urbana e logística.
Até o governo Kubitschek, as cidades-monumento tinham, segundo o IPHAN, apenas
problemas de manutenção de suas características fisionômicas, mas com a industrialização
essas dificuldades se agravaram em muitas frentes. Como uma espécie de último ato da sua
gestão, Rodrigo M. E. de Andrade solicitou, em 1965, reforço técnico á UNESCO para a
proposição de novas resoluções. Em resposta, o órgão mundial envia ao Brasil Michel Parent,
Inspetor Principal dos Monumentos Franceses, com o objetivo de percorrer o país inteiro e
elaborar um relatório que seria basilar para a atuação futura de todo o governo federal no que
compete ao patrimônio (CHUVA, 2009).
A necessidade de preservação agregada ao planejamento urbano e aproveitamento
turístico foi o produto final do documento redigido pelo Inspetor que recomendou a proteção
de inúmeras cidades como Salvador, Olinda e Ouro Preto. No entanto, para abarcar as
sugestões feitas por Michel Parent era indispensável a reestruturação do Instituto, o aumento
do orçamento, e, sobretudo, a divisão do fardo da proteção do patrimônio com outras frentes
institucionais. A descentralização de um sistema foi vista como necessária para atender as
perspectivas da Carta de Veneza cujo texto recomendava a ampliação da gama de bens a
proteger. Claramente as instâncias estaduais e municipais responsáveis pelo planejamento,
turismo e habitação teriam que ser acionadas e o papel do IPHAN passaria de mais executivo
para mais orientador e controlador das intervenções (CHUVA, 2009).
Em 1967 o IPHAN mudou de gestão e o arquiteto Renato Soeiro assumiu o maior
cargo chefia. Em 1968, após as recomendações de Michel Parent, foram realizadas as
pesquisas para nortear a elaboração dos planos diretores das cidades de Paraty, Ouro Preto e
Salvador. Sendo essa última de caráter urgente e prioritário, não só pelo processo de
arruinamento físico e social do centro histórico, mas também pela capacidade da capital da
Bahia virar a maior atração urbana na América do Sul, segundo o inspetor. Cinco anos depois,
no período conhecido como “milagre econômico”, durante a ditadura civil-militar, o turismo
começou a se apresentar como uma atividade econômica frutífera para países
subdesenvolvidos. O chamado “valor econômico do patrimônio” não era só agradável ao
governo ditatorial pela arrecadação, mas também por que o campo cultural se apresentava
como importante componente para a manipulação ideológica, posição governamental essa
extremamente controversa pois ao tempo que era agente repressivo da cultura também era
incentivador das políticas de preservação cultural (CHUVA, 2009).
Um dos programas que causou mais impacto até hoje no que diz respeito a
investimento e preservação do patrimônio brasileiro foi o PCH. Criado em 1973, o programa
se implantou com o objetivo de reconstruir cidades históricas do Nordeste e promover o
desenvolvimento econômico delas através do turismo. Os principais critérios para seleção de
cidades integrantes e obras prioritárias era a possibilidade de integração imediata à atividade
turística, o potencial para turismo e o risco de arruinamento próximo. Em Salvador, por
exemplo, as fachadas das casas do Largo do Pelourinho tiveram sua decoração eclética
retirada, abraçando uma estética construtiva setecentista e colonial. No entanto, o desprezo
dos arquitetos pelas adições ecléticas na estrutura e a valorização exacerbada do valor artístico
original levava a intervenções não só agressivas quanto não-científicas. O restauro estilístico
pautado no image-making (LEITE, 2004) do um cenário idealizado de uma época era um
problema recorrente que acarretava em resultados bizarros como o da “nova” Igreja Matriz de
São Salvador ou a Sé de Olinda ou as cores das edificações do Largo do Pelourinho
(CHUVA, 2009).
A vontade de atingir um estado de pureza estilística que beirava a doutrina de Le-
Duc é adicionada a outro aspecto que contribuirá bastante para nos aprofundarmos na
discussão central desse artigo. Françoise Choay em ‘Alegoria do Patrimônio’ (2001) nos
mostra que tanto o monumento e a cidade histórica, quanto o patrimônio cultural e urbano nos
oferecem um esclarecimento único sobre como as sociedades ocidentais assumiram a sua
relação com o tempo e construíram sua identidade: a representação icônica e o benefício da
visão através da arquitetura trouxeram uma nova camada para nossa percepção cultural e
histórica, tornando o testemunho e a palavra suportes desvalorizados. O monumento ao ser
institucionalizado assume uma nova conduta temporal, pois está ao mesmo tempo imóvel,
protegido, resguardado no presente concreto, e instalado no passado definitivo e irrevogável
através da ação da história e da consciência.
A nossa inserção em uma sociedade de consumo desenfreado e o nível de
importância que a chancela garante para esses monumentos, entre outros fatores, contribuem
para a mercantilização da cultura que perde seu caráter de realização individual e torna-se
uma empresa e tão mais indústria. O culto aos monumentos e ao patrimônio histórico se torna
o culto a cultura onde os bens são única e exclusivamente produtos culturais para fins de
consumo. A mudança do valor de utilização para valor econômico é realizada pela engenharia
cultural e sua principal tarefa é multiplicar indefinidamente o número de visitantes ao
patrimônio. A suposta “valorização” desses locais ocorre através das mais variadas operações:
pela conservação e o restauro provocados pela institucionalização; através de reconstituições
fantasiosas de um cenário histórico que nunca existiu; pelas encenações que transformam a
materialidade em espetáculo e pelas animações que explicam exacerbadamente as funções e
acontecimentos históricos para quem visita (CHOAY, 2001).
Assim, mesmo os ambientes mais preservados são munidos de dispositivos que
atrapalham o real diálogo e compreensão do passado em nome do estímulo de consumo para o
visitante, resultando em uma relação superficial entre sujeito e objeto. Em alguns projetos que
podem ser considerados ecos produzidos pelo PCH, como a revitalização do Recife Antigo e
até mesmo a Requalificação do Pelourinho, é possível observar as estratégias e ferramentas do
mercado agindo sobre os monumentos na intenção de fomentar o turismo e, por conseguinte,
o consumo. Um exemplo disso são duas publicações da Revista Veja, de 1997 e 1998, onde
analisa-se a reforma feita no Recife Antigo, em Pernambuco, apoiada em inúmeras táticas
para atração de público. Primeiro, em 1997, a intervenção é vista como sinônimo de sucesso e
modelo para outros centros históricos, com uma pintura fantástica nos casarões e ‘limpeza’
das praças; depois, em 1998, como fracasso, sob alcunha de ‘pedaço sem vida’, o bairro é
comparado com o Pelourinho e a falta de público é atribuída a falta de eventos, de
efervescência cultural, de felicidade no geral. Mas quem gosta de consumir tristeza?
Pierre Nora, historiador francês, conceitua ‘lugar de memória’ como locais físicos
onde a memória social é ancorada e pode ser apreendida pelos sentidos; locais que detém
função porque sempre tiveram ou adquiriram a função de fundação das memórias coletivas,
além, é claro, dos locais simbólicos onde a memória coletiva e, por conseguinte, a identidade
é apresentada, ou seja, locais imbuídos de uma vontade de memória (NEVES, 2007). Já Le
Goff (2003) infere que a memória é um elemento vital do que se costuma chamar identidade,
seja ela individual ou coletiva, sendo a busca uma das atividades mais intrínsecas aos
indivíduos e, por conseguinte, das sociedades. A essa memória compartilhada dá-se o nome
de ‘coletiva’, conceito cunhado pelo sociólogo Maurice Halbwachs (1990) que consiste em
noções comuns a um conjunto de indivíduos que convivem na mesma comunidade e dividem
lembranças, bem como seu reconhecimento e rememoração sob um eixo comum.
Nesse aspecto, convém falar sobre um tipo de memória que costuma estar
constantemente relegada a posição de esquecimento: a memória traumática, utilizando o
conceito de Meneses (2018), é o rosto de maior força atualmente, é a herança de conflitos e
violências. O trauma é a evocação do evento ou da situação carregada de afeto negativo e, ao
se apresentar como um tipo memória, tem também locais que as despertam e simbolizam. Um
dos exemplos mais conhecidos de lugar de memória traumática – hoje musealizado – é o
Museu Estatal Auschwitz-Birkenau, na Alemanha onde, durante o regime nazista, foi campo
de concentração e extermínio de judeus, e tem, em seu objetivo principal de preservação
contar a história de maneira física para que não seja esquecida. Tombado pela Unesco como
patrimônio da humanidade em 1979 (MENEGUELLO, 2018), o museu nos suscita uma
questão: por que ainda são poucos, em âmbito federal, os processos de institucionalização que
contemplem locais de memória difícil?
Tradicionalmente, principalmente no que diz respeito ao processo de
institucionalização dos bens culturais no Brasil, o patrimônio esteve diretamente ligado a
formação de uma identidade cultural compartilhada pelas figuras de indivíduos
patriotas/nacionalistas e principalmente a atribuição de valor para o tombamento baseada em
valores artísticos, mas a crescente adesão de espaços de dor e sofrimento á acervos
patrimoniais nacionais, inclusive na América Latina, abre precedente para que o Instituto do
Patrimônio o deixe de ser uma instituição que se exime do dever de memória e reparação para
quaisquer vítimas. No Brasil, nos últimos anos, o IPHAN tombou cerca de 20 edifícios
relacionados ao patrimônio da saúde sensível, em especial hospícios, hospitais e igrejas
relacionados à hanseníase e ao isolamento (MENEGUELLO, 2018), no entanto, há um tema
recente da historiografia brasileira que permanece a margem das discussões dentro do
IPHAN: a ditadura civil-militar brasileira e os lugares de memória atrelados ao regime.
Embora alguns sejam tombados á nível estadual e municipal, a história de proteção
desses espaços de opressão brasileiros é recente e ainda não atingiu a relevância nacional que
poderia ter. Segundo Neves (2014) a ausência de políticas públicas acabou fomentando a
mobilização de atores que mantém a consciência e a memória do passado conservadas ao
tempo que os locais de memória não são: as iniciativas que se provaram relevantes e com
resultados sempre partiram de organizações da sociedade civil. Um desses exemplos é a
Casino de Oficiales, nas dependências da Escuela de Mecánica de la Armada – ESMA, em
Buenos Aires, Argentina e o DEOPS – Departamento Estadual de Ordem Política e Social,
em São Paulo, Brasil, onde a influência de organizações em prol da memória, como o
Memoria Abierta (AR) e o Núcleo Memória (BR), foram fundamentais para
institucionalização.
Mas por que é necessário lembrar de algo que traz tanta dor a tantas pessoas? Segundo
a historiadora Gabi Dolff-Bonekämper (2002): nós devemos refletir qual é a motivação que
impulsiona o desejo de não lembrar e, principalmente, entender o desejo de demolir um
prédio por parte da vítima em uma declaração pública de libertação, no entanto, a destruição
de evidências de crimes contra a humanidade é frequentemente um artifício utilizado por
aqueles que são perpetradores e, nesse caso, faz-se mais necessário ainda a preservação do
local como prova contra aqueles que se sentem no direito de negar a história. Segundo
Meneses (2018) é válido lembrar:
Nesse eixo temático, cabe a discussão sobre o caso do porão da ditadura no Piauí.
Berço da efervescência cultural e artística no centro da cidade de Teresina, a praça Pedro II
abriga inúmeros ícones da arquitetura do século XX: desde o Cine Rex, um dos primeiros
cinemas de rua com características Art Déco, até o Theatro 4 de Setembro, referência em
espetáculos teatrais, esse perímetro se destaca não só pelo abundante conjunto arquitetônico,
em sua maioria tombado (CAU, 2014), mas também pelo papel de protagonista
desempenhado nas inúmeras memórias vividas por gerações e gerações de piauienses. Em
posição privilegiada nesse contexto urbano está a Central de Artesanato Mestre Dezinho:
edifício de fachada principal eclética voltada para a praça supracitada.
Com o processo de transferência da capital do estado de Oeiras para Teresina, o
Governo Provincial do Piauí adquire o prédio para ser o Quartel da Polícia do Estado em
1851, no entanto, o espaço só assume esse fim anos mais tarde, abrigando àquela época a
Casa de Educandos Artíficies (FERNANDES, 2018). Em 1873, findado o projeto de
civilidade no local, tem início a ocupação do mesmo pela Polícia Militar do Estado do Piauí
que ali ficou por mais de um século (LOPES, 2009) e cuja a atuação no período da Ditadura
Civil-Militar ficou marcada não só na memória traumática daqueles que sofreram nas
dependências do quartel, mas também nas paredes de um porão localizado embaixo do box
43, concedido ao artesão Antonio Carlos de Oliveira.
Ao ser perguntado por que não há interesse na preservação do porão, o artesão
responde: “por que ninguém tem interesse em lembrar disso”. No cubículo subterrâneo úmido
é possível ver vestígios de sangue, arranhões e perfurações. Carlos, que atua como guardião e
guia “turístico”, frisa durante as visitas a impossibilidade do local ter abrigado outra função
senão de ambiente de tortura durante os anos de chumbo. Em entrevista concedida ao G1
Piauí, em 2014, durante o marco de 50 anos do início da ditadura, as memórias do artesão se
misturam ás relatadas em livros de História do Brasil: oriundo de Campo Maior, cidade no
interior do estado, se mudou com a família para Teresina motivado pelo medo da perseguição,
após um de seus familiares ter sido preso. Por ironia do destino, a loja de artesanato de Carlos
hoje ocupa o perímetro superior do lugar de memória símbolo do momento histórico cruel que
obrigou sua família a mudar de cidade.
Evidência da capilaridade da ditadura em locais nem sempre reconhecidos pelos
órgãos responsáveis é a ausência desse porão no Volume I do relatório da Comissão Nacional
da Verdade (2014) onde são apontados três lugares de graves violações de Direitos Humanos,
de 1964 a 1985, em Teresina. São eles: o 25° Batalhão de Caçadores (25° BC), o
Departamento de Ordem e Política Social (DOPS) e a Penitenciária Estadual do Piauí. É
importante citar que em nenhum desses lugares há qualquer artifício de identificação ou
mesmo menção da participação deles nesse capítulo tão nebuloso vivido na capital do Piauí: o
25° BC permanece no mesmo local e só é possível fotografar suas dependências mediante
solicitação e autorização prévia; o Departamento de Ordem e Política Social hoje abriga a
Delegacia Geral de Polícia Civil; já a Penitenciária Estadual mudou de local e, no lugar, foi
construído o Ginásio Verdão.
O memoricídio gradativo do porão do Centro de Artesanato é perceptível através da
ausência de estudos que o situem como local de memória e políticas públicas que o
reconheçam como bem patrimonial e objeto da História. É possível que o local seja, mesmo
que negligenciado, o único bem arquitetônico onde restaram rastros do período do golpe de 64
no Piauí e cujas práticas de “conservação” não se deram pelos recursos tradicionais de
patrimônio – inventário, tombamento, restauro – mas sim pelo processo de memorialização
inconsciente e intrínseco aos testemunhos das vítimas e frequentadores do local. Transformar
locais de memória em sítios de consciência (ABRAHAM, 2005) não só é listar e expor
acontecimentos traumáticos, mas compreender o paradigma do dever de lembrar e do direito
de esquecer. Esses espaços são, na verdade, um portal de possibilidades onde é possível
lembrar, mas também optar por esquecer, visto que o memorial continuará existindo
fisicamente para assumir o papel de agente da memória social.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O papel do SPHAN como “refrigério da cultura oficial”, como pontuado por Micelli
(1987), é evidente não apenas no que tange o patrimônio artístico e histórico brasileiro por ele
balizado quando ainda existia, mas também nos ecos da sua seletividade baseada na
valorização de determinados aspectos em detrimento de outros no atual órgão público. A
negligência ao patrimônio ligado a memória da ditadura civil-militar no Brasil é só mais um
exemplo de como a configuração do IPHAN e os movimentos anteriores que influenciaram o
seu pensamento institucional bem definido deixaram uma herança, aparentemente bem
preservada, quanto ao processo de escolha e análise daquilo que se convenciona como
patrimônio histórico brasileiro. Desde a adaptação da política francesa de proteção aos limites
do país, o que é possível perceber é ainda a amnésia relegada ás minorias brasileiras e o
direito a memória apenas a camadas bem definidas da sociedade.
As memórias felizes são privilegiadas institucionalmente não por serem um espelho
fiel do que delineia a nossa sociedade, mas sim em uma tentativa de ocultar aspectos
vergonhosos da nossa história. A partir da nova interpretação historiográfica do processo
predatório e violento empregado pelos portugueses na colonização do Brasil, é possível
compreender, por exemplo, a escolha do Barroco não só como o produto de uma visão dos
portugueses como salvadores e superiores, mas também como um desejo de esconder aspectos
execráveis da nossa composição como nação, como a violência, a escravidão e o genocídio. O
luxo e a suntuosidade das primeiras obras protegidas refletem a Europa que o Brasil queria
ser, e à mistura que o Brasil não quer ser é incumbida a missão de ser esquecida, posto que a
dinâmica social preferencial é sempre escolher os extremos da miscigenação, já que nenhum
deles é produto nacional autêntico.
Figuras semelhantes a Ricardo Severo e Rodrigo Melo Franco de Andrade continuam
ocupando posições de poder dentro do IPHAN e priorizando o belo, o bonito e o bom para
consumo como ideal para proteção. A memória coletiva nacional continua sendo simbolizada
apenas por aspectos artísticos e cidades turísticas: Ouro Preto, Salvador e Recife continuam
perpetuando um ideal de nação que não existe mais. É, definitivamente, um desafio a ser
superado a forma não só como o nosso patrimônio é escolhido, mas como lidamos com
memórias que muitas vezes não são aprazíveis. Em um contexto onde o Brasil é sempre
estereotipado internacionalmente como um ‘país feliz’ deve-se não se isolar e escorar apenas
em memórias tristes, difíceis e sensíveis, mas buscar sempre entender as justificativas de
cunho histórico do patrimônio mais profundamente, em uma perspectiva crítica e multi-
angular. Por exemplo: embora o cenário de muitas cidades históricas nos incline a destacar a
beleza estilística e aquilo que é bom, principalmente após revitalização ou restauração, faz-se
necessário compreender o que era aquele local, para quem ele era relevante e por que. Embora
centros históricos, como o Pelourinho ou Ouro Preto, estejam sempre abarrotados de gente
frequentando eventos e tirando fotos, foram espaços – hoje ressignificados – de bastante
violência para outros povos.
Cabe ressaltar ainda que as instâncias municipais e estaduais seguem fazendo um
trabalho distinto e, na medida do possível, eficiente na proteção de alguns locais de memória
sensível. O DEOPS, o DOI-CODI e o Arco do Presídio Tiradentes são exemplos de como a
participação da sociedade em processos de proteção é vital não apenas para acessibilizar o
conhecimento – concentrado por tanto nas elites intelectuais e brancas – mas também para
reivindicar a importância da proteção aos órgãos responsáveis. É reconhecida ainda a
dificuldade de inferir a importância histórica de um bem cuja época não é volumosa em
documentos e relatos, e a memória é dolorosa, mas é através da cooperação entre áreas,
contando com a disposição das instituições e, principalmente, a diversidade nas abordagens de
preservação que é garantido o direito a memória, a verdade, a justiça e a reparação.
REFERÊNCIAS
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do Carmo de Ouro Preto (MG): aspectos históricos, artísticos, iconográficos e
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Carmel of Ouro Preto (MG): historical, artistic, iconographic. Patrimônio e Memória, v.
12, n. 2, p. 177-207, 2016.
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CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed.UNESP; Estação Liberdade,
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DUARTE, Dina. Bonito e sem vida. Veja, São Paulo, n.1577, pp.110-111, 16. dez. 1998.
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