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“NA CASA DEFRONTE”: A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO BRASILEIRO PELO

IPHAN E O PRIVILÉGIO INSTITUCIONAL DAS MEMÓRIAS FELIZES

Maria Clara dos Santos Lima*

1 INTRODUÇÃO

O patrimônio cultural brasileiro chancelado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional (IPHAN) está inscrito em três livros do tombo, são eles: Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das
Belas Artes e Livro do Tombo das Artes Aplicadas. O bem ao ser registrado é elevado a um
novo status: mais do que um edifício, monumento ou saber-fazer, perante o Estado e a
sociedade, se consolida como a autêntica representação do povo e, por conseguinte, da
identidade nacional, uma relação indivisível que atrela á nação o poder no sentido de ter
influência em determinado meio ou sobre algo, e o poder por que possui a sua memória e
herança.
As ações de preservação de bens culturais tem raízes antigas: desde o século XV, o
estudo e as intervenções em obras de períodos passados ganham uma nova camada de
interpretação e passam a ter ordem sociocultural e não mais essencialmente prática ou
utilitária (KÜHL, 2006). Um exemplo disso é o recenseamento das chamadas “antiguidades
nacionais” onde eruditos buscavam por monumentos antigos erguidos ou produzidos na
Europa, antes e depois do colonato romano, a fim de afirmar a civilização ocidental como
original e excelente em suas particularidades se contrapondo à arquitetura cânone italiana
(CHOAY, 2001). No entanto, o registro como esforço institucional para a proteção de bens
patrimoniais e reforço de uma imagem coletiva de nação tem suas primeiras manifestações na
Europa, por volta do século XIX, em um momento de transição e mudanças sociais, políticas
e econômicas pós-Revolução Francesa onde se fazia necessário proteger o que restou para que
a França encontrasse o seu papel como civilização através do próprio passado.

Arquiteta e Urbanista. Pós-Graduanda em Patrimônio e Cidade. Faculdade Evangélica do Meio Norte
(FAEME). Mestranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo (FAU-USP). E-mail:
eucajuina@usp.br
Para muitos intelectuais e literatos da França pós-absolutista, os monumentos e as
ruínas assumiam o papel de historiadores de opiniões, fatos e tradições que compunham a
existência das próprias nações. No entanto, para que o acesso público a materialidade
histórica pudesse existir, era necessário que esta atravessasse a ruptura revolucionária que
ocorria: a história do patrimônio, alimentada pela literatura, se desdobrava em obras cujo os
autores colocavam os bens como protagonistas na tentativa de alertar à sociedade a iminência
do seu desaparecimento em virtude da profanação e apropriação por grupos reformadores.
Victor Hugo, conhecido como “poeta dos monumentos históricos”, constantemente
denunciava em suas obras os perigos atrelados a destruição dos bens que carregam a “glória
nacional” e reivindicava que embora o uso dos edifícios pertencesse aos donos, a beleza era
direito de todos (HUGO, 1997, p.45-47, apud POULOT, 2009, p.168).
A socialização dos bens, defendida com parcimônia pelo autor de ‘Notre-Dame de
Paris’ em um meio de campo onde os lados se dividiam entre a defesa da total desapropriação
e descaracterização dos monumentos e a proteção indispensável, mas completamente relegada
a quem os possuía, se tornou o pensamento mais comum após 1789, com a adição das noções
de nacionalização e vandalismo. Embora eclipsado pela desaprovação pública, François
Guizot, então Ministro do Interior, foi um dos grandes agentes do processo de
institucionalização do patrimônio na França. Ao criar o cargo de Inspetor Geral dos
Monumentos Históricos cujo objetivo principal era a elaboração do inventário dos
monumentos franceses, com análise e descrição, para posterior adoção de medidas e efetiva
preservação, Guizot corroborava com a ideia de que qualquer sociedade exige que a sua
memória seja bem cuidada (POULOT, 2009).
Embora as práticas de preservação patrimonial francesas tenham sido fonte de
inspiração para a implementação de estratégias semelhantes no Brasil, não há como traçar um
paralelo entre o panorama nacional e o europeu no decorrer do século XIX. Enquanto as
discussões no âmbito do patrimônio francês visavam reunir em um inventário, imaginado em
1834, monumentos que recapitulassem o passado nacional e estabelecessem o sentido da
civilização (POULOT, 2009), no Brasil o momento era outro: o passado retrógrado, colonial e
ancestral dava lugar a uma relação indissociável, que partiu das elites, entre modernidade e
Europa. Ou seja, tanto as artes, quanto os costumes e principalmente a arquitetura, única
capaz de emular integralmente um cenário metropolitano europeu, buscavam renegar as
características próprias que remetiam a então ‘brasilidade’ conhecida em detrimento do
aparente progresso (PINHEIRO, 2006).
As numerosas reformas urbanas que aconteceram nos primeiros anos do século XX,
como as promovidas pelo prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro, reafirmam a capacidade
de a arquitetura assumir um papel de forjadora de mitos, sentimentos e histórias que, em
efeito dominó, se transformam em realidade e, nesse caso, em uma identidade cultural
compartilhada. A aparente “modernização” sinônima de europeização partia das
individualidades para uma perspectiva coletiva: desde a atualização de fachadas até o
paisagismo “á inglesa” de largos e praças, tudo corroborava para estabelecer um ideal
inventado do que era moderno, bom e correto para a sociedade (PINHEIRO, 2006).
Em um contexto social onde se encorajava o esquecimento de qualquer manifestação
ou bem nativo, surge, na contramão, a figura do erudito e engenheiro português, radicado no
Brasil, Ricardo Severo. Rapidamente inserido nos ciclos sociais, empresariais e culturais da
elite do café paulistana, tanto pelo seu casamento com Francisca Santos Dumont, quanto pela
sua sociedade e parceria com Ramos de Azevedo no Escritório Técnico F. P. Ramos de
Azevedo, Severo acirrou um discurso nacionalista próprio de sua personalidade: um
português que ao se mudar e viver no Brasil, de 1908 a 1940, se dedicou a valorização do
legado luso no país e, principalmente, a “causa tradicionalista” cuja disseminação, no início
do século XX, também ocorria na Latinoamérica, Caribe, Estados Unidos e Europa através de
intelectuais e respectivos movimentos nacionalistas (MELLO, 2006).
Ao promover a conferência ‘A Arte Tradicional Brasileira’ dentro da Campanha de
Arte Tradicional, em 1914, Severo listou os objetivos e o papel da crítica ao defender uma
arte e arquitetura nacionais onde o desejo de existência era frívolo frente a indispensabilidade
de um programa para o pleno estabelecimento de ambas. Durante a convenção, Severo
sublinhou que a raiz da arte tradicional a ser procurada não estaria no que era considerado
primitivo ou indígena, mas sim no que foi construído após a partida do ocidente europeu em
direção ao resto do mundo (SOCIEDADE DE CULTURA ARTÍSTICA, 1916, p. 46-47 apud
PINHEIRO, 2006, p. 05). Á figura de Severo, na historiografia, é creditada o mérito da
abertura de caminhos para o estudo e preservação de uma arquitetura do passado com valores
e características bem definidos, posto que o viés nacionalista espertado pelo neocolonial
inspirou muitos dos intelectuais modernistas ligados à Semana de 22, e posteriormente, ao
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Esses ecos são sentidos até
hoje no privilégio institucional dentro do IPHAN, antigo SPHAN, na proteção de bens que
remetem não apenas a estilística da colonialidade e ao triunfo da nação, mas ao que fomos
ensinados ser sinônimo de belo, bonito e, por assim dizer, a projeção de uma memória
autêntica e, por conseguinte, gloriosa e feliz.

2 A BELEZA, O SPHAN E OS VALORES

A efervescência de debates promovidos por Ricardo Severo e o entusiasmo em torno


do neocolonial fomentaram a pesquisa e o estudo quanto ás características do estilo colonial
original. Ressalta-se que: o neocolonial tratado como ‘tradicional’ era uma convenção e sua
correspondência à arquitetura colonial brasileira verdadeira era insuficiente. As expressões
eram completamente maquiadas: ao corpo de tendência eclética dos edifícios eram
adicionados ornatos de aparência colonial que muito raramente tinham a fidelidade ao original
como objetivo. Esse cenário prescindível de autenticidade era um reflexo do desconhecimento
e, de maneira mais pungente, da rejeição da matriz do novo estilo que além de obliterada por
anos como sinônimo de atraso, ainda minguava refinamento de acordo com os valores
estéticos apreciados à época (PINHEIRO, 2006).
Talvez por isso, ao tempo que a figura de Ricardo Severo é relevante, vista como
mentora do movimento neocolonial e precursora de pesquisas nessa área em específico,
também é imputada o revés por críticos: a sua inaptidão como restaurador, a valorização
controversa de componentes da arquitetura colonial e portuguesa, e a produção leviana de
uma variante do ecletismo europeu colaboram para uma perspectiva dúbia da contribuição do
engenheiro (MELLO, 2006). Em contrapartida, essa ausência de referências do estilo matriz
para construções neocoloniais, estimulou a realização de inventários da arquitetura colonial
durante a década de 1920: o próprio Ricardo Severo patrocinou viagens, como as do pintor
José Wasth Rodrigues, á inúmeras regiões brasileiras cujo resultado se encontra no livro
Documentário Arquitetônico que, até hoje, figura no repertório de muitos estudantes de
arquitetura (PINHEIRO, 2006).
Outras experiências foram significativas para estabelecer as origens que
influenciaram o atual patrimônio institucionalizado brasileiro: a Sociedade Brasileira de Belas
Artes (SBBA) patrocinou viagens ás cidades mineiras para jovens, privilegiados e, por isso,
promissores no ano de 1924. Entre eles estava Lúcio Costa, arquiteto brasileiro pioneiro da
arquitetura modernista no país e íntimo de José Mariano Filho, outro grande entusiasta do
movimento neocolonial e presidente da SBBA. Em entrevista ao jornal ‘A Noite’, publicada
em 19/03/1924, Lúcio Costa manifestou a sua convicção de que o reconhecimento do
neocolonial era o ponto de partida para a construção de outros estilos:

Não vou ao extremo de achar que já devíamos ter uma arquitetura


nacional. [...] Deveríamos, porém, ter tornado, e isso há muito tempo, uma
diretriz, e iniciado a jornada aceitando como ponto de partida o passado que,
seja ele qual for, bom ou mau existe, existirá sempre, e nunca poderá ser
apagado. Para que tenhamos uma arquitetura logicamente nossa, é mister
procurar descobrir o fio da meada, isto é, recorrer ao passado, ao Brasil-
colônia. Todo esforço nesse sentido deve ser recebido com aplausos.
(COSTA, 1924 apud PINHEIRO, 2011, p. 183).

No contexto da década de 1920, ainda não era popularmente disseminada a


preocupação com o estabelecimento de políticas ou mesmo estratégias de preservação da arte
ou arquitetura brasileira, exceto pela crítica da mídia á recorrente evasão de obras de arte
locais que acontecia tanto dentro das fronteiras do país, onde as elites dissecavam edifícios em
processo de arruinamento e incorporavam alguns dos seus componentes ás suas casas, quanto
fora em direção aos museus do exterior. No entanto, a preocupação parecia se resignar a
exportação dessas obras e apenas ás obras: ao tomar conhecimento dos processos de
arruinamento de edifícios históricos, partes conhecidas da elite brasileira vistos como grandes
colecionadores se apropriavam dos objetos artísticos e condenavam as construções á completa
destruição (PINHEIRO, 2011).
Esse ímpeto de resguardo dos objetos artísticos em detrimento dos monumentos da
arquitetura pode ser explicado de inúmeras maneiras: o mais claro é o valor intrínseco das
obras que além de, em sua maioria, serem constituídas de metais nobres e caros, também
representavam uma determinada confirmação de status social a quem as adquiria pela
erudição artística e, é claro, opulência decorativa. Confirmação disso é a Casa Lusa, na Rua
Taguá, residência neocolonial de Ricardo Severo onde foram instaladas, entre outras peças,
um altar desapropriado da Igreja do Carmo e um forro, acima da sala de jantar, advindo do
Convento de Santa Teresa, dois edifícios localizados em São Paulo (PINHEIRO, 2006).
Contraste claro entre a europeização até então comum, o colecionismo de arte
brasileira e o descaso com os bens arquitetônicos que as hospedavam já naquela época davam
indícios da supervalorização e privilégios atrelados a proteção daqueles objetos
representativos do belo causando prejuízo a importância histórica e não estética de outros.
Oriundo da preocupação com a exportação das obras de arte e partes construtivas
arquitetônicas brasileiras – e apenas a saída dos limites territoriais – foram dados os primeiros
passos em relação aos projetos de lei que contemplassem algum tipo de salvaguarda do
patrimônio, dentre eles: o projeto complementar do deputado Augusto de Lima, em 1924, e no
final da década a criação de algumas Inspetorias Estaduais de Monumentos Nacionais, mas
ambos com alcance limitado e atuação mínima (PINHEIRO, 2006).
A partir de 1930, tem início no campo da preservação a conquista de alguns frutos no
que diz respeito a salvaguarda. Em 1933, Ouro Preto é declarada monumento nacional em
decorrência do seu rico passado histórico – em memória da luta nacionalista que foi a
Inconfidência Mineira – e, principalmente, do seu exuberante patrimônio edificado
(PINHEIRO, 2006). A antiga Vila Rica deve esse ‘título’ á uma figura importante para
compreendermos qual razão avulta nesse processo de institucionalização: Gustavo Barroso,
um advogado, folclorista e contista cearense que, embora tenha dirigido o Museu Histórico
Nacional entre 1920 e 1930, já lutava para o reconhecimento de Ouro Preto como a autêntica
continuidade dos costumes europeus muito antes. Inúmeros políticos e intelectuais apontavam
a cidade como herança artística e histórica desde 1900, principalmente pelo estado de
conservação se comparada a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, que foi alterada
esteticamente com as reformas anteriormente mencionadas (MAGALHÃES, 2017).
Embora a avaliação do estado das edificações relacionadas a Inconfidência Mineira
tenha demonstrado uma quantidade irreparável de danos na maior parte dos imóveis
relevantes, chama a atenção que ao final do parecer é citada a necessidade de recuperação dos
monumentos justificada pelo seu valor artístico, o que reitera a crescente valorização do
barroco (MAGALHÃES, 2017). Em 1934, o governo cria a Inspetoria dos Monumentos
Nacionais, no âmbito do Museu Histórico Nacional e, no mesmo ano, promulga uma nova
Constituição Federal que incluiu entre os deveres do Estado a proteção dos bens de interesse
histórico e artístico do Brasil. No ano seguinte, é criado o Departamento Municipal de Cultura
(DMC) da cidade de São Paulo cujo primeiro diretor foi o escritor e integrante do movimento
moderno brasileiro Mário de Andrade que buscava, futuramente, ampliar a atuação do órgão
criando o Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico (PINHEIRO, 2006).
Os planos de expansão foram adiados, pois em 1936, no Rio de Janeiro, era criado o
primeiro órgão nacional de preservação do patrimônio conhecido como Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) – no âmbito do Ministério da Educação e Saúde - na
gestão de Gustavo Capanema. A experiência de Mário de Andrade no DMC/SP motivou a
encomenda de um programa de proteção do patrimônio histórico e artístico brasileiro: o
escritor elaborou um inventário que descrevia os exemplares do patrimônio cultural paulista
observados durante suas viagens enquanto responsável pelo DMC. A regulamentação do
órgão foi executada pelo Decreto-lei 25/37, um documento inspirado no anteprojeto de Mário
de Andrade, mas com mudanças significativas realizadas pelo então diretor do SPHAN
Rodrigo Melo Franco de Andrade. No texto original é possível perceber alguns aspectos
próprios da preocupação de Mário ao conceituar patrimônio, fugindo do essencialmente
estético, físico e suntuoso, e abarcando expressões da cultura popular (PINHEIRO, 2006).
Mesmo que reconhecesse o acerto político feito para a plena execução das atividades
do SPHAN (FONSECA, 2005), Mário de Andrade também sabia que o conteúdo aprovado
não correspondia a sua proposta de serviço de patrimônio ideal que, segundo Micelli (2001, p.
01), “revelou-se descompassada das circunstâncias daquele momento, ao passo que a
entronização do barroco firmou-se como a pedra de toque da política preservacionista”. O
conteúdo redigido pelo diretor do DMC interessava preservar na categoria obras de arte
históricas aquelas que, independente do seu valor artístico, valessem como documentos para a
história: ao exemplificar o caso de bens que condessassem um autêntico valor artístico, Mário,
assim como Alois Riegl, afirmava que o valor histórico deveria prevalecer e seria esse que
atrairia as massas para apreciar os monumentos, interpretando eles como testemunho oficial
da vivência dos antepassados (FONSECA, 2005).
Já o decreto que norteou a ação do SPHAN pontuava com veemência as implicações
jurídicas, os efeitos legais do instrumento do tombo e a questão relacionada ao direito de
propriedade. No entanto, o foco a partir daqui é entender como o Serviço do Patrimônio,
futuro IPHAN, usou e usa dos seus critérios de proteção institucionais para privilegiar uma
ideia nacionalista e monumental de patrimônio e renegar outras. Muito dessa configuração foi
diretamente influenciada pelas características da onda neocolonial já pontuadas, mas
principalmente pela contemporaneidade da criação do órgão ao movimento modernista
brasileiro e o Estado Novo: ao estar submetido a hierarquia de um governo extremamente
autoritário e centralizador, o SPHAN absorveu e replicou questões ideológicas pertencentes
ao que pregava o varguismo, tais como o sentimento ultranacionalista e o compartilhamento
de uma identidade cultural balizada pelo o que era permitido interpretar como brasilidade
(PINHEIRO, 2006).
O movimento modernista brasileiro, que dividia muitos dos seus integrantes com a
equipe técnica selecionada para compor o SPHAN, impregnou o funcionamento e a
estruturação do órgão quanto ás atividades relacionadas a seleção e tombamento: além de
fazerem parte de uma elite acadêmica e econômica dominante, com critérios de escolha que
privilegiavam o valor artístico em detrimento do histórico, também transformavam em
patrimônio apenas bens que espelhassem sua experiência social tanto pessoal, quanto coletiva.
Um exemplo disso é a própria Semana Moderna de 22: mesmo apresentada como um
movimento anti-burguesia, acabou recebendo apoio desde o princípio de grandes aristocratas
do café como Paulo Prado visto que essas pessoas eram do convívio dos artistas e intelectuais
responsáveis (FONSECA, 2005).

3 A REDUNDÂNCIA DO PATRIMÔNIO BARROCO-TURÍSTICO (3 páginas)

Como a história dos objetos é, por consequência, a história dos agentes, é


fundamental a reflexão sobre quem antes balizava a ideia de patrimônio nacional estabelecida
na predileção pelo barroco, cujo os ecos se mantém até hoje. Já mencionado anteriormente, a
equipe técnica do órgão de preservação teve suas nomeações a partir daqueles que faziam
parte ou frequentavam o mesmo círculo social no qual estava circunscrito o movimento
modernista. Embora nem todos fossem mineiros, o estado de Minas Gerais se apresentava
como locus amoenus para muitos integrantes do Serviço do Patrimônio e assumia um papel
relevante na política brasileira ao catalisar e irradiar ideias e convenções: em uma viagem a
Minas que Rodrigo Melo Franco de Andrade “descobriu” o Barroco e se convenceu da
necessidade de proteger os monumentos históricos; em uma viagem a Minas que Lúcio Costa,
patrocinado pela SBBA, despertou a sua inspiração na arquitetura colonial brasileira; ou seja,
muitos nomes relevantes e sobre os quais estavam os holofotes discursivos daquele tempo
identificaram em Minas a manjedoura de uma civilização que, para eles, era a autêntica
brasileira, associando a proteção dos monumentos históricos e artísticos mineiros – ou, no
resto do país, os que se assemelhassem a eles – a construção do tradicional nacional
(FONSECA, 2005).
Mesmo que o primeiro número da Revista do SPHAN, publicado em 1937, divulgue
o sentido diverso da atividade desenvolvida pelo órgão – com artigos emblemáticos sobre a
proteção da habitação tradicional como ‘Mucambos do Nordeste’ de Gilberto Freire –
presente também no anteprojeto imaginado por Mário de Andrade, a prática institucional era
bem distinta: com a prioridade dada aos restos da arte colonial brasileira, de proteção urgente
pela iminência da perda pelos saques e exportações, outras expressões, histórias e tradições
ficaram esquecidas (FONSECA, 2005). O mito da mestiçagem, retroalimentado desde o
século XIX pela literatura, pelo movimento abolicionista e, principalmente, pela produção de
uma elite intelectual e política brasileira (DOMINGUES, 2005), justifica muitas escolhas que
contornam a divulgada face da expressão cultural brasileira.
A “descoberta” do Barroco pelos modernistas significava a marca da colonialidade
da construção da nossa sociedade: era possível ler os bens e conjuntos tombados a partir do
processo histórico de colonização das regiões do país. A presença portuguesa, segundo
Afonso Arinos de Melo Franco (1944 apud FONSECA, 2005, p. 118), predominava sobre as
influências negra e indígena cuja historiografia da época não explicava o predomínio pela
escravização e genocídio desses povos. Como o ‘valor histórico’ utilizado pelo SPHAN era
baseado na interpretação da história feita no momento, o heroísmo e a erudição portuguesa
admirados na época se avultavam no papel que os grupos étnicos exerceram na construção do
patrimônio e da sociedade. Rodrigo Melo Franco de Andrade creditava convicto a autoria da
civilização, em primeiro lugar, aos portugueses que se radicaram em Minas e, em segundo
lugar, aos escravos Angolas e Banguelas trazidos por eles (FONSECA, 2005).
Exemplo dessa priorização da herança barroca portuguesa em detrimento do que era
genuinamente fruto da miscigenação é o tombamento e restauração da Igreja de Nossa
Senhora do Carmo, em 1938, em Ouro Preto, sob justificativa da suntuosidade dos seus
retábulos de valoroso refinamento estilístico (BRUSADIN, 2016) em comparação ao processo
que acometeu a sua “irmã” paulista: a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em 1996. Além da
óbvia discrepância temporal entre o tombamento das duas, Pereira (2022) destaca os
problemas atrelados ao tombamento apenas parcial da segunda igreja justificado pela mistura
de elementos estéticos empregados ao longo do tempo cujo valor, para o IPHAN, é
questionável:

A inconveniência do tombamento “total” da edificação parece


derivar de uma compreensão do bem cultural como produto de uma
temporalidade específica, e não como processo, como materialização
documental de diversos tempos, linguagens, intenções e técnicas. Outro
aspecto que sugere o impedimento do “seu tombamento ‘no todo’” é o
emprego de elementos neocoloniais nas intervenções realizadas nos anos
1920, coordenadas pelo arquiteto Ricardo Severo (PEREIRA, 2022, p. 23).

A proteção da parte e não do todo resulta não só em uma contradição teórica, mas em
procedimentos de intervenção contemporâneos de caráter problemático e descaracterizante na
estrutura da Igreja da Ordem Terceira do Carmo. O excepcional, valor cultivado e polinizado
dentro do SPHAN e atual IPHAN, justifica a seleção de apenas alguns bens representativos
entre vários de um mesmo tempo ou classe. O caráter arbitrário do tombamento elencado na
legislação brasileira é resultado da atribuição de valor caso a caso de competência do órgão
federal. R.M.F, inclusive, afirma que nos livros do tombo não deve ser inscrito nenhum bem
senão aqueles considerados de valor excepcional, posto que a avaliação deve ser feita em
comparação ás obras produzidas no Brasil, pois só assim seriam qualificadas como
condizentes à identidade nacional, já que este era um valor inegociável na atribuição do que
era patrimônio brasileiro (FONSECA, 2005).
O estudo, a pesquisa e os conhecimentos reservados a autoridade dos agentes do
Serviço do Patrimônio impediam o acesso da opinião pública aos processos institucionais
desenvolvidos pelo SPHAN. Com o objetivo de defender a capacidade intelectual e moral de
sua equipe técnica, Rodrigo Melo Franco divulgava em sua “menina dos olhos” – as
publicações do SPHAN – inventários balizados por um pensamento institucional
cuidadosamente articulado que passaria a ser o principal norteador dos debates em torno da
temática patrimonial no Brasil, ou seja: ao criar um pioneiro e próprio espaço de discussão, o
SPHAN divulgava as suas ações e a competência dos seus agentes ao tempo que se legitimava
como referência obrigatória no que tangem as discussões de patrimônio (CHUVA, 2009).
Talvez, essa “retroalimentação” do órgão diante dos seus próprios feitos e divulgação limitada
a nichos sociais intelectuais e diminutos, garantiram a Rodrigo Melo Franco de Andrade
permanência até a sua aposentadoria no SPHAN.
No entanto, as transformações políticas, econômicas e sociais pós-Estado Novo
obrigaram o agora Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a mudar a
sua abordagem quanto ás políticas de preservação, principalmente no que concerne a escala
urbana de cidades consideradas históricas. O crescimento acelerado nesses locais, que
passavam de uma realidade de estagnação econômica para outra de ascensão muito
rapidamente, acarretava em muitos problemas relacionados a infraestrutura urbana e logística.
Até o governo Kubitschek, as cidades-monumento tinham, segundo o IPHAN, apenas
problemas de manutenção de suas características fisionômicas, mas com a industrialização
essas dificuldades se agravaram em muitas frentes. Como uma espécie de último ato da sua
gestão, Rodrigo M. E. de Andrade solicitou, em 1965, reforço técnico á UNESCO para a
proposição de novas resoluções. Em resposta, o órgão mundial envia ao Brasil Michel Parent,
Inspetor Principal dos Monumentos Franceses, com o objetivo de percorrer o país inteiro e
elaborar um relatório que seria basilar para a atuação futura de todo o governo federal no que
compete ao patrimônio (CHUVA, 2009).
A necessidade de preservação agregada ao planejamento urbano e aproveitamento
turístico foi o produto final do documento redigido pelo Inspetor que recomendou a proteção
de inúmeras cidades como Salvador, Olinda e Ouro Preto. No entanto, para abarcar as
sugestões feitas por Michel Parent era indispensável a reestruturação do Instituto, o aumento
do orçamento, e, sobretudo, a divisão do fardo da proteção do patrimônio com outras frentes
institucionais. A descentralização de um sistema foi vista como necessária para atender as
perspectivas da Carta de Veneza cujo texto recomendava a ampliação da gama de bens a
proteger. Claramente as instâncias estaduais e municipais responsáveis pelo planejamento,
turismo e habitação teriam que ser acionadas e o papel do IPHAN passaria de mais executivo
para mais orientador e controlador das intervenções (CHUVA, 2009).
Em 1967 o IPHAN mudou de gestão e o arquiteto Renato Soeiro assumiu o maior
cargo chefia. Em 1968, após as recomendações de Michel Parent, foram realizadas as
pesquisas para nortear a elaboração dos planos diretores das cidades de Paraty, Ouro Preto e
Salvador. Sendo essa última de caráter urgente e prioritário, não só pelo processo de
arruinamento físico e social do centro histórico, mas também pela capacidade da capital da
Bahia virar a maior atração urbana na América do Sul, segundo o inspetor. Cinco anos depois,
no período conhecido como “milagre econômico”, durante a ditadura civil-militar, o turismo
começou a se apresentar como uma atividade econômica frutífera para países
subdesenvolvidos. O chamado “valor econômico do patrimônio” não era só agradável ao
governo ditatorial pela arrecadação, mas também por que o campo cultural se apresentava
como importante componente para a manipulação ideológica, posição governamental essa
extremamente controversa pois ao tempo que era agente repressivo da cultura também era
incentivador das políticas de preservação cultural (CHUVA, 2009).
Um dos programas que causou mais impacto até hoje no que diz respeito a
investimento e preservação do patrimônio brasileiro foi o PCH. Criado em 1973, o programa
se implantou com o objetivo de reconstruir cidades históricas do Nordeste e promover o
desenvolvimento econômico delas através do turismo. Os principais critérios para seleção de
cidades integrantes e obras prioritárias era a possibilidade de integração imediata à atividade
turística, o potencial para turismo e o risco de arruinamento próximo. Em Salvador, por
exemplo, as fachadas das casas do Largo do Pelourinho tiveram sua decoração eclética
retirada, abraçando uma estética construtiva setecentista e colonial. No entanto, o desprezo
dos arquitetos pelas adições ecléticas na estrutura e a valorização exacerbada do valor artístico
original levava a intervenções não só agressivas quanto não-científicas. O restauro estilístico
pautado no image-making (LEITE, 2004) do um cenário idealizado de uma época era um
problema recorrente que acarretava em resultados bizarros como o da “nova” Igreja Matriz de
São Salvador ou a Sé de Olinda ou as cores das edificações do Largo do Pelourinho
(CHUVA, 2009).
A vontade de atingir um estado de pureza estilística que beirava a doutrina de Le-
Duc é adicionada a outro aspecto que contribuirá bastante para nos aprofundarmos na
discussão central desse artigo. Françoise Choay em ‘Alegoria do Patrimônio’ (2001) nos
mostra que tanto o monumento e a cidade histórica, quanto o patrimônio cultural e urbano nos
oferecem um esclarecimento único sobre como as sociedades ocidentais assumiram a sua
relação com o tempo e construíram sua identidade: a representação icônica e o benefício da
visão através da arquitetura trouxeram uma nova camada para nossa percepção cultural e
histórica, tornando o testemunho e a palavra suportes desvalorizados. O monumento ao ser
institucionalizado assume uma nova conduta temporal, pois está ao mesmo tempo imóvel,
protegido, resguardado no presente concreto, e instalado no passado definitivo e irrevogável
através da ação da história e da consciência.
A nossa inserção em uma sociedade de consumo desenfreado e o nível de
importância que a chancela garante para esses monumentos, entre outros fatores, contribuem
para a mercantilização da cultura que perde seu caráter de realização individual e torna-se
uma empresa e tão mais indústria. O culto aos monumentos e ao patrimônio histórico se torna
o culto a cultura onde os bens são única e exclusivamente produtos culturais para fins de
consumo. A mudança do valor de utilização para valor econômico é realizada pela engenharia
cultural e sua principal tarefa é multiplicar indefinidamente o número de visitantes ao
patrimônio. A suposta “valorização” desses locais ocorre através das mais variadas operações:
pela conservação e o restauro provocados pela institucionalização; através de reconstituições
fantasiosas de um cenário histórico que nunca existiu; pelas encenações que transformam a
materialidade em espetáculo e pelas animações que explicam exacerbadamente as funções e
acontecimentos históricos para quem visita (CHOAY, 2001).
Assim, mesmo os ambientes mais preservados são munidos de dispositivos que
atrapalham o real diálogo e compreensão do passado em nome do estímulo de consumo para o
visitante, resultando em uma relação superficial entre sujeito e objeto. Em alguns projetos que
podem ser considerados ecos produzidos pelo PCH, como a revitalização do Recife Antigo e
até mesmo a Requalificação do Pelourinho, é possível observar as estratégias e ferramentas do
mercado agindo sobre os monumentos na intenção de fomentar o turismo e, por conseguinte,
o consumo. Um exemplo disso são duas publicações da Revista Veja, de 1997 e 1998, onde
analisa-se a reforma feita no Recife Antigo, em Pernambuco, apoiada em inúmeras táticas
para atração de público. Primeiro, em 1997, a intervenção é vista como sinônimo de sucesso e
modelo para outros centros históricos, com uma pintura fantástica nos casarões e ‘limpeza’
das praças; depois, em 1998, como fracasso, sob alcunha de ‘pedaço sem vida’, o bairro é
comparado com o Pelourinho e a falta de público é atribuída a falta de eventos, de
efervescência cultural, de felicidade no geral. Mas quem gosta de consumir tristeza?

4 A MEMÓRIA ESCOLHIDA, O PORÃO DA DITADURA NO PIAUÍ E OUTROS


BENS QUE ESQUECEMOS

Pierre Nora, historiador francês, conceitua ‘lugar de memória’ como locais físicos
onde a memória social é ancorada e pode ser apreendida pelos sentidos; locais que detém
função porque sempre tiveram ou adquiriram a função de fundação das memórias coletivas,
além, é claro, dos locais simbólicos onde a memória coletiva e, por conseguinte, a identidade
é apresentada, ou seja, locais imbuídos de uma vontade de memória (NEVES, 2007). Já Le
Goff (2003) infere que a memória é um elemento vital do que se costuma chamar identidade,
seja ela individual ou coletiva, sendo a busca uma das atividades mais intrínsecas aos
indivíduos e, por conseguinte, das sociedades. A essa memória compartilhada dá-se o nome
de ‘coletiva’, conceito cunhado pelo sociólogo Maurice Halbwachs (1990) que consiste em
noções comuns a um conjunto de indivíduos que convivem na mesma comunidade e dividem
lembranças, bem como seu reconhecimento e rememoração sob um eixo comum.
Nesse aspecto, convém falar sobre um tipo de memória que costuma estar
constantemente relegada a posição de esquecimento: a memória traumática, utilizando o
conceito de Meneses (2018), é o rosto de maior força atualmente, é a herança de conflitos e
violências. O trauma é a evocação do evento ou da situação carregada de afeto negativo e, ao
se apresentar como um tipo memória, tem também locais que as despertam e simbolizam. Um
dos exemplos mais conhecidos de lugar de memória traumática – hoje musealizado – é o
Museu Estatal Auschwitz-Birkenau, na Alemanha onde, durante o regime nazista, foi campo
de concentração e extermínio de judeus, e tem, em seu objetivo principal de preservação
contar a história de maneira física para que não seja esquecida. Tombado pela Unesco como
patrimônio da humanidade em 1979 (MENEGUELLO, 2018), o museu nos suscita uma
questão: por que ainda são poucos, em âmbito federal, os processos de institucionalização que
contemplem locais de memória difícil?
Tradicionalmente, principalmente no que diz respeito ao processo de
institucionalização dos bens culturais no Brasil, o patrimônio esteve diretamente ligado a
formação de uma identidade cultural compartilhada pelas figuras de indivíduos
patriotas/nacionalistas e principalmente a atribuição de valor para o tombamento baseada em
valores artísticos, mas a crescente adesão de espaços de dor e sofrimento á acervos
patrimoniais nacionais, inclusive na América Latina, abre precedente para que o Instituto do
Patrimônio o deixe de ser uma instituição que se exime do dever de memória e reparação para
quaisquer vítimas. No Brasil, nos últimos anos, o IPHAN tombou cerca de 20 edifícios
relacionados ao patrimônio da saúde sensível, em especial hospícios, hospitais e igrejas
relacionados à hanseníase e ao isolamento (MENEGUELLO, 2018), no entanto, há um tema
recente da historiografia brasileira que permanece a margem das discussões dentro do
IPHAN: a ditadura civil-militar brasileira e os lugares de memória atrelados ao regime.
Embora alguns sejam tombados á nível estadual e municipal, a história de proteção
desses espaços de opressão brasileiros é recente e ainda não atingiu a relevância nacional que
poderia ter. Segundo Neves (2014) a ausência de políticas públicas acabou fomentando a
mobilização de atores que mantém a consciência e a memória do passado conservadas ao
tempo que os locais de memória não são: as iniciativas que se provaram relevantes e com
resultados sempre partiram de organizações da sociedade civil. Um desses exemplos é a
Casino de Oficiales, nas dependências da Escuela de Mecánica de la Armada – ESMA, em
Buenos Aires, Argentina e o DEOPS – Departamento Estadual de Ordem Política e Social,
em São Paulo, Brasil, onde a influência de organizações em prol da memória, como o
Memoria Abierta (AR) e o Núcleo Memória (BR), foram fundamentais para
institucionalização.
Mas por que é necessário lembrar de algo que traz tanta dor a tantas pessoas? Segundo
a historiadora Gabi Dolff-Bonekämper (2002): nós devemos refletir qual é a motivação que
impulsiona o desejo de não lembrar e, principalmente, entender o desejo de demolir um
prédio por parte da vítima em uma declaração pública de libertação, no entanto, a destruição
de evidências de crimes contra a humanidade é frequentemente um artifício utilizado por
aqueles que são perpetradores e, nesse caso, faz-se mais necessário ainda a preservação do
local como prova contra aqueles que se sentem no direito de negar a história. Segundo
Meneses (2018) é válido lembrar:

Crimes contra a humanidade não são prescritíveis. Não podem ser


esquecidos. O esquecimento sem justiça afeta não só o presente, mas o
futuro; o direito à memória não pode sofrer qualquer restrição. Inclui o
acesso do interessado à documentação e investigações; o trabalho da
memória, deve destinar-se menos a proferir sentenças do que providenciar
um espaço confessional e de completas elucidações; deve-se conceder espaço
a um direito à compaixão; finalmente, há um direito à História, ao
conhecimento das raízes dos traumas e seus efeitos. (MENESES, 2018, p.
05).

Nesse eixo temático, cabe a discussão sobre o caso do porão da ditadura no Piauí.
Berço da efervescência cultural e artística no centro da cidade de Teresina, a praça Pedro II
abriga inúmeros ícones da arquitetura do século XX: desde o Cine Rex, um dos primeiros
cinemas de rua com características Art Déco, até o Theatro 4 de Setembro, referência em
espetáculos teatrais, esse perímetro se destaca não só pelo abundante conjunto arquitetônico,
em sua maioria tombado (CAU, 2014), mas também pelo papel de protagonista
desempenhado nas inúmeras memórias vividas por gerações e gerações de piauienses. Em
posição privilegiada nesse contexto urbano está a Central de Artesanato Mestre Dezinho:
edifício de fachada principal eclética voltada para a praça supracitada.
Com o processo de transferência da capital do estado de Oeiras para Teresina, o
Governo Provincial do Piauí adquire o prédio para ser o Quartel da Polícia do Estado em
1851, no entanto, o espaço só assume esse fim anos mais tarde, abrigando àquela época a
Casa de Educandos Artíficies (FERNANDES, 2018). Em 1873, findado o projeto de
civilidade no local, tem início a ocupação do mesmo pela Polícia Militar do Estado do Piauí
que ali ficou por mais de um século (LOPES, 2009) e cuja a atuação no período da Ditadura
Civil-Militar ficou marcada não só na memória traumática daqueles que sofreram nas
dependências do quartel, mas também nas paredes de um porão localizado embaixo do box
43, concedido ao artesão Antonio Carlos de Oliveira.
Ao ser perguntado por que não há interesse na preservação do porão, o artesão
responde: “por que ninguém tem interesse em lembrar disso”. No cubículo subterrâneo úmido
é possível ver vestígios de sangue, arranhões e perfurações. Carlos, que atua como guardião e
guia “turístico”, frisa durante as visitas a impossibilidade do local ter abrigado outra função
senão de ambiente de tortura durante os anos de chumbo. Em entrevista concedida ao G1
Piauí, em 2014, durante o marco de 50 anos do início da ditadura, as memórias do artesão se
misturam ás relatadas em livros de História do Brasil: oriundo de Campo Maior, cidade no
interior do estado, se mudou com a família para Teresina motivado pelo medo da perseguição,
após um de seus familiares ter sido preso. Por ironia do destino, a loja de artesanato de Carlos
hoje ocupa o perímetro superior do lugar de memória símbolo do momento histórico cruel que
obrigou sua família a mudar de cidade.
Evidência da capilaridade da ditadura em locais nem sempre reconhecidos pelos
órgãos responsáveis é a ausência desse porão no Volume I do relatório da Comissão Nacional
da Verdade (2014) onde são apontados três lugares de graves violações de Direitos Humanos,
de 1964 a 1985, em Teresina. São eles: o 25° Batalhão de Caçadores (25° BC), o
Departamento de Ordem e Política Social (DOPS) e a Penitenciária Estadual do Piauí. É
importante citar que em nenhum desses lugares há qualquer artifício de identificação ou
mesmo menção da participação deles nesse capítulo tão nebuloso vivido na capital do Piauí: o
25° BC permanece no mesmo local e só é possível fotografar suas dependências mediante
solicitação e autorização prévia; o Departamento de Ordem e Política Social hoje abriga a
Delegacia Geral de Polícia Civil; já a Penitenciária Estadual mudou de local e, no lugar, foi
construído o Ginásio Verdão.
O memoricídio gradativo do porão do Centro de Artesanato é perceptível através da
ausência de estudos que o situem como local de memória e políticas públicas que o
reconheçam como bem patrimonial e objeto da História. É possível que o local seja, mesmo
que negligenciado, o único bem arquitetônico onde restaram rastros do período do golpe de 64
no Piauí e cujas práticas de “conservação” não se deram pelos recursos tradicionais de
patrimônio – inventário, tombamento, restauro – mas sim pelo processo de memorialização
inconsciente e intrínseco aos testemunhos das vítimas e frequentadores do local. Transformar
locais de memória em sítios de consciência (ABRAHAM, 2005) não só é listar e expor
acontecimentos traumáticos, mas compreender o paradigma do dever de lembrar e do direito
de esquecer. Esses espaços são, na verdade, um portal de possibilidades onde é possível
lembrar, mas também optar por esquecer, visto que o memorial continuará existindo
fisicamente para assumir o papel de agente da memória social.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O papel do SPHAN como “refrigério da cultura oficial”, como pontuado por Micelli
(1987), é evidente não apenas no que tange o patrimônio artístico e histórico brasileiro por ele
balizado quando ainda existia, mas também nos ecos da sua seletividade baseada na
valorização de determinados aspectos em detrimento de outros no atual órgão público. A
negligência ao patrimônio ligado a memória da ditadura civil-militar no Brasil é só mais um
exemplo de como a configuração do IPHAN e os movimentos anteriores que influenciaram o
seu pensamento institucional bem definido deixaram uma herança, aparentemente bem
preservada, quanto ao processo de escolha e análise daquilo que se convenciona como
patrimônio histórico brasileiro. Desde a adaptação da política francesa de proteção aos limites
do país, o que é possível perceber é ainda a amnésia relegada ás minorias brasileiras e o
direito a memória apenas a camadas bem definidas da sociedade.
As memórias felizes são privilegiadas institucionalmente não por serem um espelho
fiel do que delineia a nossa sociedade, mas sim em uma tentativa de ocultar aspectos
vergonhosos da nossa história. A partir da nova interpretação historiográfica do processo
predatório e violento empregado pelos portugueses na colonização do Brasil, é possível
compreender, por exemplo, a escolha do Barroco não só como o produto de uma visão dos
portugueses como salvadores e superiores, mas também como um desejo de esconder aspectos
execráveis da nossa composição como nação, como a violência, a escravidão e o genocídio. O
luxo e a suntuosidade das primeiras obras protegidas refletem a Europa que o Brasil queria
ser, e à mistura que o Brasil não quer ser é incumbida a missão de ser esquecida, posto que a
dinâmica social preferencial é sempre escolher os extremos da miscigenação, já que nenhum
deles é produto nacional autêntico.
Figuras semelhantes a Ricardo Severo e Rodrigo Melo Franco de Andrade continuam
ocupando posições de poder dentro do IPHAN e priorizando o belo, o bonito e o bom para
consumo como ideal para proteção. A memória coletiva nacional continua sendo simbolizada
apenas por aspectos artísticos e cidades turísticas: Ouro Preto, Salvador e Recife continuam
perpetuando um ideal de nação que não existe mais. É, definitivamente, um desafio a ser
superado a forma não só como o nosso patrimônio é escolhido, mas como lidamos com
memórias que muitas vezes não são aprazíveis. Em um contexto onde o Brasil é sempre
estereotipado internacionalmente como um ‘país feliz’ deve-se não se isolar e escorar apenas
em memórias tristes, difíceis e sensíveis, mas buscar sempre entender as justificativas de
cunho histórico do patrimônio mais profundamente, em uma perspectiva crítica e multi-
angular. Por exemplo: embora o cenário de muitas cidades históricas nos incline a destacar a
beleza estilística e aquilo que é bom, principalmente após revitalização ou restauração, faz-se
necessário compreender o que era aquele local, para quem ele era relevante e por que. Embora
centros históricos, como o Pelourinho ou Ouro Preto, estejam sempre abarrotados de gente
frequentando eventos e tirando fotos, foram espaços – hoje ressignificados – de bastante
violência para outros povos.
Cabe ressaltar ainda que as instâncias municipais e estaduais seguem fazendo um
trabalho distinto e, na medida do possível, eficiente na proteção de alguns locais de memória
sensível. O DEOPS, o DOI-CODI e o Arco do Presídio Tiradentes são exemplos de como a
participação da sociedade em processos de proteção é vital não apenas para acessibilizar o
conhecimento – concentrado por tanto nas elites intelectuais e brancas – mas também para
reivindicar a importância da proteção aos órgãos responsáveis. É reconhecida ainda a
dificuldade de inferir a importância histórica de um bem cuja época não é volumosa em
documentos e relatos, e a memória é dolorosa, mas é através da cooperação entre áreas,
contando com a disposição das instituições e, principalmente, a diversidade nas abordagens de
preservação que é garantido o direito a memória, a verdade, a justiça e a reparação.
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