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Política, Economía y Geografía del Brasil

Texto para actividade – aula 30/3/2023


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Vargas para todos os gostos. Mal ou bem, só falam dele
Marieta de Moraes Ferreira*
O que é que Getúlio tem? Como explicar que um líder falecido há mais de meio século continue exercendo forte
influência no cenário político do país? Por que, afinal, sua figura é lembrada e relembrada – seja para o elogio,
seja para a crítica – sempre que se discutem os grandes temas nacionais?

Charge de Getúlio Vargas

Em agosto de 2004, quando o suicídio de Getúlio Vargas completou 50 anos, o Brasil assistiu a
uma onda de celebrações em memória ao ex-presidente. Seminários, exposições, debates,
construção de memoriais, artigos em revistas especializadas, cadernos especiais nos jornais,
programas de rádio e televisão. O tom era francamente positivo, com as atenções voltadas para o seu
segundo governo (1951-1954) – tempos de crescimento econômico e de implantação de políticas
industriais que estimularam a ampliação do mercado de trabalho, o que possibilitou maior inclusão
social. Tudo isso sob a vigência de normas democráticas. Nos dias de hoje, é compreensível que esse
cenário provoque nostalgia naqueles que voltam o olhar para a década de 1950. Afinal, integrar o
pleno funcionamento da democracia com a retomada do crescimento econômico e a diminuição das
desigualdades ainda é o grande desafio brasileiro.
Nem sempre a memória de Vargas recebeu tratamento tão nobre. Em primeiro lugar, porque
se trata de um personagem bastante ambíguo – se por um lado contribuiu com inegáveis avanços
para o desenvolvimento do país, por outro liderou um período autoritário e de repressão política em
seu primeiro governo (1930-1945). Além disso, no último meio século o Brasil atravessou grandes
mudanças políticas e institucionais. À experiência democrática iniciada em 1946 sucederam-se, a
partir de 1964, vinte anos de ditadura militar, até que em 1985 se iniciasse novo processo de
construção da democracia. Para cada um desses momentos veio à tona um Vargas diferente.
Agosto de 1964. Os dez anos do suicídio coincidem com o início de um novo regime: o golpe
militar havia ocorrido em 31 de março daquele ano. Não poderia haver momento pior para o cultivo
da memória de Vargas. Seu principal herdeiro, o presidente João Goulart, havia sido deposto, e um
grande número de partidários do PTB e do PSD, partidos que lhe deram sustentação no segundo
governo, foram afastados da vida pública. Os militares que tomaram o poder apresentavam-se como
aqueles que iriam pôr fim à Era Vargas.
“A queda do império getuliano” foi o título de um conjunto de textos publicado no Jornal do
Brasil no domingo, 23 de agosto de 1964. Três grandes reportagens procuravam enfocar sua
trajetória sob diferentes ângulos. A primeira tratava de aspectos pessoais, da infância até a formação
na Faculdade de Direito e o início da vida profissional como promotor. Ainda que de caráter pouco
opinativo, o texto deixava entrever simpatia pelo personagem. A seguir apresentava-se uma
cronologia comentada dos principais fatos políticos que contaram com a participação de Vargas,
como a Revolução de 1930, o golpe de 1937, a deposição em 1945 e a volta ao poder pelas urnas em
1950. Por fim, a matéria intitulada “Memórias de agosto” fazia uma retrospectiva dos
acontecimentos que antecederam o suicídio. Em destaque, o depoimento de Café Filho – vice-
presidente de Vargas e seu sucessor, cujo breve governo se aproximou da oposicionista UDN –, que
apenas relembrava os episódios, sem fazer qualquer julgamento: “Um ex-presidente não deve julgar
um ex-presidente”. Talvez os ex-presidentes Kubitschek e Goulart não pensassem da mesma forma,
mas eles estavam no exílio e não foram ouvidos.
Curioso é que, enquanto o golpe de 1964 foi visto por alguns como a “segunda morte de
Vargas”, não demorou para que o governo adotasse um projeto autoritário que incluía exatamente
as ideias de um Estado centralizado e de um sindicalismo corporativista – como se viu na tradição
varguista. Por isso, quando chegou 1974, vigésimo aniversário de sua morte, a memória de Vargas
ganhou outro tratamento. Na Câmara dos Deputados, os líderes dos novos partidos políticos (a
Arena, de apoio ao governo, e o MDB, de oposição consentida) proferiram discursos em sua
homenagem. Naquele teatro oficial, o tom era de ênfase no desenvolvimento econômico. Houve
também algumas tímidas manifestações nas ruas do país. No Rio de Janeiro, elas se concentraram na
praça da Cinelândia, em frente ao busto do presidente. Flores foram deixadas ao pé do monumento e
duas mil cópias da carta-testamento foram distribuídas, muitas trazendo também os nomes de
candidatos ao Congresso Nacional. Em Porto Alegre, o MDB homenageou Vargas com uma missa e
uma concentração política diante do monumento à carta-testamento.
Já a imprensa não produziu apenas conteúdos positivos. Um artigo do jornalista Carlos
Castello Branco, publicado em caderno especial do mesmo Jornal do Brasil, indica sua intenção crítica
já pelo título: “A ditadura”. O autor rememora a censura praticada no Estado Novo, a ação repressora
do governo diante das manifestações políticas e as prisões efetuadas. A figura que emerge é a do
Vargas ditador, odiado por aqueles que defendiam a liberdade de expressão e a democracia. Para
Castello Branco, a ditadura de Vargas propiciava a “corrupção sob todas as formas e se tornava
ineficiente como fator de mobilização para o trabalho. (...) A ditadura é por definição centralista, mas
no Brasil daqueles tempos, sem comunicações, havia, além de uma ditadura estadual, ditaduras
culturais”. Qualquer semelhança com o contexto da época certamente não se deve a coincidência.
Carlos Castello Branco se utiliza da condenação ao autoritarismo do Estado Novo para realçar as
arbitrariedades do regime em vigor.
A partir do final de 1978, quando foi revogado o Ato Institucional n° 5, o mais drástico da
legislação de exceção editada pelo regime militar, os ventos da abertura começaram a soprar com
mais força. No ano seguinte, foi decretada a anistia política e a reforma partidária. Muitos exilados
voltaram ao país, e em 1982 houve eleições diretas para governador. Em 1983, um outro tipo de
comemoração foi preparado em torno de Vargas: celebrou-se o centenário de seu nascimento.
Os novos ares democráticos possibilitaram a realização de diversos debates sobre a Era
Vargas. Pela primeira vez sua memória alimentava análises sobre a história recente do país, a partir
de comparações entre diferentes períodos. A reestruturação dos partidos políticos desencadeada em
1979, por exemplo, foi discutida à luz do cenário pós-1945, quando o país também viveu um retorno
à democracia. A diferença era que, no pós-Estado Novo, o getulismo e o antigetulismo eram
determinantes no jogo político, enquanto no início dos anos 1980 não havia nenhum partido ou
núcleo político declaradamente antigetulista. Ao contrário, o getulismo e sobretudo o trabalhismo
passaram a ser utilizados como trunfo eleitoral por vários partidos. A exploração eleitoral voltava-se
para uma parte específica da memória de Vargas: seu lado nacionalista e patriótico, tal qual exposto
na carta-testamento.
De modo geral, o centenário de 1983 redimiu a figura de Getúlio Vargas associando-a ao seu
segundo governo, democrático e nacionalista. Ainda que alguns artigos mencionassem a face
autoritária do líder, o foco não se fixava nessa questão. No ano seguinte, a comemoração dos 30 anos
da morte de Vargas assumiu grande relevância no cenário político.
Assim que foi rejeitada a emenda das “Diretas Já”, a oposição lançou a candidatura de
Tancredo Neves para a eleição indireta à Presidência. Político conciliador, Tancredo era governador
de Minas Gerais. E ex-ministro de Vargas. Em agosto de 1984, o candidato da Aliança Democrática –
formada pelo PMDB e pelos dissidentes do governo – juntou-se a Leonel Brizola, do Partido
Democrático Trabalhista (PDT, herdeiro do antigo PTB), e a outros líderes em uma caravana rumo a
São Borja (RS), cidade natal de Getúlio, para prestar-lhe uma homenagem. A memória de Vargas
ajudou a costurar a aliança entre PDT e PMDB. Unidos para reverenciar o passado, os dois partidos
estavam de olho no futuro. “Getúlio é realmente aquele divisor de águas, aquele que havia dado
mais que a sua vida, havia dado todo o seu espírito a serviço da emancipação política, econômica e
social do nosso povo. (...) Feliz a pátria que pode possuir homens públicos da sua estatura; feliz a
nação que pode se honrar de ter tido um filho deste vulto e deste porte”, afirmou Tancredo Neves na
ocasião. Brizola aproveitou para sugerir que, dali em diante, 24 de agosto fosse considerado o “Dia da
Carta-testamento”. “Mais que a morte do presidente Getúlio Vargas, a referida data assinala o
lançamento daquele grande manifesto, cujo impacto e a posterior influência sobre os destinos do
povo brasileiro são de uma profundidade que ainda não estamos em condição de avaliar. Divulgar o
pensamento conclusivo do maior estadista deste século é uma questão cívica que interessa ao
conjunto da Nação, com vistas às novas gerações”, discursou o gaúcho, governador do Rio.
A redemocratização do país não transcorreu sem percalços. Eleito presidente em janeiro de
1985, Tancredo morreu antes de tomar posse. No governo de seu sucessor, o vice José Sarney, todas
as atenções se voltaram para o combate à inflação, que progredia em ritmo alarmante. A memória de
Vargas também não navegaria em águas calmas.
“A Era Vargas acabou”. O mote, que reverbera o discurso dos militares do golpe de 1964,
ressurgiu no início dos anos 1990. Era o momento de questionar o modelo de desenvolvimento
econômico inaugurado por ele. Em 1994, analistas defendiam que a tendência mundial de abertura
das economias, de privatização das empresas estatais, redução da ação do Estado, controle das
contas públicas e ajuste fiscal resultaria, para o Brasil, na “terceira morte de Vargas”.
Este foi o título de um artigo assinado pelo cientista político Bolívar Lamounier naquele ano.
Segundo o autor, com novas instituições, uma opinião pública livre e novos meios de comunicação, o
país vivia um período de construção democrática, no qual desaparecia “a preocupação com a tutela
das Forças Armadas sobre o sistema político”. Por isso seria possível “afirmar que o getulismo e o
antigetulismo virulentos feneceram”. Outras críticas foram expressas na ocasião, como fez um
editorial do Jornal do Brasil (25/8/1994) que apontava o corporativismo como herança negativa do
varguismo enraizada na sociedade brasileira.
A oposição, por sua vez, tentava usar o mito a seu favor. Para a economista Maria da
Conceição Tavares, o então candidato à Presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio
Lula da Silva, era o principal herdeiro do trabalhismo de Vargas, enquanto o Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB), de Fernando Henrique Cardoso, poderia ser comparado à antiga UDN.
Depois de eleito FHC, muitas vozes da oposição continuaram a apregoar os valores positivos de um
certo legado varguista. Na luta contra as privatizações e no debate sobre a revisão da legislação
trabalhista, a figura de Getulio era acionada para contestar os novos rumos tomados pelo país.
O embate ganhou novas feições em 2004. Desde o ano anterior, o país vivia sob o governo de
Luiz Inácio Lula da Silva, ex-líder operário que iniciou sua carreira política no final do regime militar,
fundando o PT, e que jamais se declarou, ele próprio, herdeiro de alguém.
Contrariando certas expectativas de que o velho líder não mais despertaria grande interesse,
naquele ano Vargas ressurgiu com grande vigor. Os principais jornais do país prepararam alentados
cadernos especiais. As revistas de História dirigidas ao grande público saíram com fotos de Vargas
estampadas na capa. Políticos e intelectuais dedicaram-se a discutir o assunto.
Para alguns analistas, a vitória de Lula na eleição de 2002 poderia representar a retomada de
alguns ideais do nacional-estatismo. Cristóvam Buarque, ministro da Educação de Lula até janeiro de
2004, foi um dos que colocaram 1954 em pauta: “Apesar da revolução que significou a eleição de
Lula e o governo do PT, 2004 ainda não deixou claro o novo rumo que o país precisa e espera desde
1954”. O ex-ministro não chegava a defender as opções de Vargas, mas destacava a necessidade de
conhecê-las para criar um outro projeto nacional: “Ainda é tempo de mudar, de reorientar o Brasil.
Lembrar o passado em geral é o melhor passo para começar a construir o futuro. O futuro da
continuação do mesmo, dos últimos 50 anos, ou da construção do novo para o século XXI”, escreveu.
A idéia de “construção do novo” não era compartilhada por todos os setores do governo. O
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, criou o “Projeto
Getúlio Vargas”, que realizou seminários e produziu documentário, livro, exposição, show e memorial
com a estátua de Vargas. O projeto manifestava a intenção de “contribuir para o fortalecimento da
história [de Vargas], a valorização de seu legado e, sobretudo, o resgate da memória de importantes
conquistas para o cidadão brasileiro”. Então presidente do banco, o economista Carlos Lessa
defendia o nacionalismo e as políticas econômicas de Vargas, em oposição ao projeto neoliberal do
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Nas palavras de Lessa, “um presidente de alma seca
achou que devíamos enterrar a Era Vargas. O que este presidente deixou de legado?” Reforçando a
associação do novo presidente com o antigo líder trabalhista, afirmava que “a agenda recuperada de
Vargas nos aponta uma continuidade entre o nacional-desenvolvimentismo dele e de sua época e o
desenvolvimentismo nacional democrático de Lula”.
Poucas vozes eram exclusivamente de críticas a Vargas. Uma delas foi a do Instituto Liberal,
de oposição ao governo Lula. Cândido Prunes, vice-presidente do Instituto, argumentava que o país
cometia um erro ao esquecer “a truculência política da era Vargas”. E ia além: “Neste ano em que se
registram os 50 anos do suicídio de Getulio Vargas, deveria se iniciar uma campanha pelo banimento
do seu nome de todas as ruas, avenidas, praças e locais públicos. Foi ele um caudilho sanguinário que
deveria merecer o opróbrio, como qualquer ditador. Ou então, por uma questão de justiça,
comecemos a homenagear os militares ‘linha dura’ de 1964”.
Mas, em geral, as opiniões críticas não expressavam um antigetulismo radical. Mesmo o ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, em palestra no jornal O Globo, que suas declarações
ao tomar posse em 1994, relativas ao “fim da Era Vargas”, foram mal interpretadas. Afirmou que
nunca fora antigetulista, apenas achava que o modelo varguista havia se tornado obsoleto nos novos
tempos. E tratou de elogiar o líder: “Getulio não era caudilho. Foi fruto das circunstâncias, mas tinha
capacidade tática, malícia, visão”.
De lá para cá, grandes temas da Era Vargas continuam na ordem do dia, como o
desenvolvimentismo, o nacionalismo e a intervenção do Estado na economia. Discussões que devem
ganhar nova roupagem com a chegada das eleições. Não se sabe ainda como a figura do líder vai
reaparecer, mas uma coisa é certa: 54 anos após 54, Getulio continua vivo. E bem na foto.

*Marieta de Moraes Ferreira é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC).

Saiba Mais - Bibliografia:

BRANDI, Paulo. Da vida para a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.


GOMES, Ângela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves; ALBERTI, Verena (coord.). A República no Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira/CPDOC, 2002.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
SILVA, Hélio. Um tiro no coração. Porto Alegre: L&PM, 2004.

Fonte: Revista Brasileira da Biblioteca Nacional – agosto 2008 -


https://web.archive.org/web/20160412080331/http://www.revistadehistoria.co
m.br/secao/capa/vargas-para-todos-os-gostos

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