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HISTÓRIAS DA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

A CARTA-TESTAMENTO E O SUICÍDIO DE VARGAS

Um dos mais emblemáticos momentos políticos da História Brasileira foi


protagonizado pelo ditador Getúlio Vargas. No seu segundo mandato interrompido, ele se
matou no dia 24 de agosto de 1954. Ao lado do corpo de Getúlio Vargas foi encontrada a
cópia de uma carta com sua assinatura, dirigida ao povo brasileiro. Nessa carta ficavam
explícitas as razões que o tinham levado ao gesto extremo do suicídio e eram indicados
os responsáveis pelo desfecho trágico: grupos internacionais cujos interesses o governo
contrariara, aliados a grupos nacionais que se opunham ao que Vargas definia como "o
regime de garantia do trabalho”. Juntos, eles haviam deflagrado um bombardeio sem
tréguas ao qual o presidente não mais podia resistir e que, segundo suas palavras,
“visava derrotar as conquistas que o governo assegurara ao povo brasileiro”. No texto,
Vargas se colocava, enquanto governante, no papel de defensor, representante e
libertador do povo.

Com sua morte, ele consolidou seu nome no panteão político brasileiro, associando-o
definitivamente, como mártir, à bandeira dos interesses nacionais e do trabalhismo. A
intenção está clara na carta, como no trecho em que se lê: "Se as aves de rapina
querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu
ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre
convosco... Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira
de luta."

Muitas controvérsias cercaram a Carta. Segundo Lutero Vargas, filho do presidente,


um jornalista teria confirmado que datilografara o texto manuscrito que lhe fora entregue
pelo presidente. No arquivo de Getúlio encontram-se, de fato, duas cartas. Uma cópia
datilografada, que corresponde ao texto transmitido do Catete, por telefone, à Rádio
Nacional horas após o suicídio, e uma cópia manuscrita, de um texto mais conciso.
Ainda que a autoria da carta tenha sido questionada, sua leitura provocou reações
emocionadas da população, o que só pôde acontecer porque seu conteúdo fazia sentido,
era crível. O suicídio e a irradiação da carta para todo o território nacional foram capazes
de produzir sensíveis alterações nos rumos políticos do país. A atmosfera acusatória que
pairava contra o presidente e a queda de sua popularidade, especialmente após o
atentado contra Carlos Lacerda, deram lugar a manifestações violentas, principalmente
nos centros urbanos, nas quais a União Democrática Nacional (UDN) e toda a oposição,
bem como o governo norte-americano, eram responsabilizados pelo destino de Vargas.

Pouco antes do suicídio, o presidente recebera a notícia de que o comando das


Forças Armadas havia se somado ao movimento pela sua renúncia imediata.
Getúlio cumpriu então o que havia prometido ao país dias antes: Eleito pelo povo, só
sairia morto do palácio do Catete. O cortejo que acompanhou o corpo do presidente ao
aeroporto Santos Dumont, no dia 25 de agosto, de onde embarcou para São Borja, reuniu
uma multidão nunca vista na história do Rio de Janeiro.

A notícia do suicídio de Vargas chocou o país. A população, revoltada, saiu às ruas


para expressar sua indignação e homenagear o presidente morto. Em frente ao palácio do
Catete, um milhão de pessoas tentava ver o corpo do presidente. Muitos choravam
compulsivamente, outros desmaiavam, e havia aqueles que, ao entrar na sala onde
acontecia o velório, se agarravam ao caixão. A comoção nacional transformou
inteiramente a situação política. A oposição, diante da reação popular, teve que recuar,
perdendo a vantagem política acumulada antes do suicídio. As tropas voltaram aos
quartéis, e os líderes da oposição, inclusive Lacerda, preferiram se esconder da fúria
popular. Getúlio, o “pai dos pobres”, havia partido. O povo estava de luto.

A morte tem um papel importante na construção da idéia de um legado, na medida em


que ela é, ao mesmo tempo, fim de um percurso e condição de consolidação de uma
finalidade, um sentido, para esse percurso. Com a morte, especialmente a morte heróica,
os homens públicos fazem a passagem de uma forma de existência dominada pelas
vicissitudes conjunturais, pelas disputas que caracterizam o tempo da política, a outra,
marcada pela noção de continuidade, de superação da própria morte, que caracteriza o
tempo histórico. O suicídio de Getúlio é emblemático do ponto de vista de uma morte
heróica: para escapar aos embates políticos que lançavam pesadas acusações sobre seu
governo e pôr fim à crise que assolava o país, Getúlio dá um tiro no peito e produz o
texto que consagra sua própria epopéia, inscrita definitivamente, a partir de então,
no imaginário político brasileiro.

A produção de um legado político associado a um personagem depende, sem dúvida,


da relevância da trajetória desse personagem, mas também das estratégias e recursos
mobilizados na construção de uma imagem pública que, investida de forte carga
simbólica, é tornada exemplar ou fundadora de um projeto político, social ou ideológico. O
projeto, ao longo desse processo de investimento social, acaba dotado de uma
permanência que torna possível abstraí-lo de sua conjuntura e produzir apropriações
posteriores, efetuadas por outros atores sociais, que buscam se legitimar como os
herdeiros do legado.

João Goulart, O Jango, foi o herdeiro mais imediato de Vargas. Além de Goulart, o
próprio Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que imediatamente incorporou a Carta-
testamento ao seu programa político, herdaria as principais bandeiras de Vargas. Mas
também Juscelino, Brizola e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) – fundado após a
extinção do bipartidarismo em 1979 –, entre outros atores sociais, buscaram legitimar-se
apoiados no legado varguista, que durante muitas décadas constituiu uma das bases da
vida política brasileira.

“Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado
de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a
minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro
passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história” Esse trecho da
carta datilografada (havia uma segunda, manuscrita) teria sido do próprio Getulio Vargas?
Sua personalidade neurótica, seus arroubos de megalomania e ufanismo hipócrita,
aliados à obsessão messiânica pelo poder parecem encontrar eco nesse texto. Faz
sentido.

Texto: DIONILDO DANTAS

FONTES: VARGAS, Alzira. Getúlio Vargas, meu pai. Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2017.

NETO, Lira. Getúlio, Companhia das Letras, Rio de Janeiro, 2012, 3 volumes.

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