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04/06/2019 Vargas para todos os gostos - Revista de História

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Vargas para todos os gostos


De dez em dez anos, celebrações reconstruíram a memória de Getulio.
Marieta de Moraes Ferreira
6/8/2008  

O que é que Getulio tem? Como explicar que um líder falecido há mais de meio século continue
exercendo forte influência no cenário político do país? Por que, afinal, sua figura é lembrada e
relembrada – seja para o elogio, seja para a crítica – sempre que se discutem os grandes temas
nacionais?

Em agosto de 2004, quando o suicídio de Getulio Vargas completou 50 anos, o Brasil assistiu a uma
onda de celebrações em memória ao ex-presidente. Seminários, exposições, debates, construção de
memoriais, artigos em revistas especializadas, cadernos especiais nos jornais, programas de rádio e
televisão. O tom era francamente positivo, com as atenções voltadas para o seu segundo governo
(1951-1954) – tempos de crescimento econômico e de implantação de políticas industriais que
estimularam a ampliação do mercado de trabalho, o que possibilitou maior inclusão social. Tudo isso
sob a vigência de normas democráticas. Nos dias de hoje, é compreensível que esse cenário provoque
nostalgia naqueles que voltam o olhar para a década de 1950. Afinal, integrar o pleno funcionamento
da democracia com a retomada do crescimento econômico e a diminuição das desigualdades sociais
ainda é o grande desafio brasileiro.

Nem sempre a memória de Vargas recebeu tratamento tão nobre. Em primeiro lugar, porque se trata
de um personagem bastante ambíguo – se por um lado contribuiu com inegáveis avanços para o
desenvolvimento do país, por outro liderou um período autoritário e de repressão política em seu
primeiro governo (1930-1945). Além disso, no último meio século o Brasil atravessou grandes mudanças
políticas e institucionais. À experiência democrática iniciada em 1946 sucederam-se, a partir de 1964,
vinte anos de ditadura militar, até que em 1985 se iniciasse novo processo de construção da
democracia. Para cada um desses momentos veio à tona um Vargas diferente.

Agosto de 1964. Os dez anos do suicídio coincidem com o início de um novo regime: o golpe militar
havia ocorrido em 31 de março daquele ano. Não poderia haver momento pior para o cultivo da
memória de Vargas. Seu principal herdeiro, o presidente João Goulart, havia sido deposto, e um grande
número de partidários do PTB e do PSD, partidos que lhe deram sustentação no segundo governo,
foram afastados da vida pública. Os militares que tomaram o poder apresentavam-se como aqueles que
iriam pôr fim à Era Vargas.

“A queda do império getuliano” foi o título de um conjunto de textos publicado no Jornal do Brasil no
domingo, 23 de agosto de 1964. Três grandes reportagens procuravam enfocar sua trajetória sob
diferentes ângulos. A primeira tratava de aspectos pessoais, da infância até a formação na Faculdade
de Direito e o início da vida profissional como promotor. Ainda que de caráter pouco opinativo, o texto
deixava entrever simpatia pelo personagem. A seguir apresentava-se uma cronologia comentada dos
principais fatos políticos que contaram com a participação de Vargas, como a Revolução de 1930, o
golpe de 1937, a deposição em 1945 e a volta ao poder pelas urnas em 1950. Por fim, a matéria
intitulada “Memórias de agosto” fazia uma retrospectiva dos acontecimentos que antecederam o
suicídio. Em destaque, o depoimento de Café Filho – vice-presidente de Vargas e seu sucessor, cujo
breve governo se aproximou da oposicionista UDN –, que apenas relembrava os episódios, sem fazer
qualquer julgamento: “Um ex-presidente não deve julgar um ex-presidente”. Talvez os ex-presidentes
Kubitschek e Goulart não pensassem da mesma forma, mas eles estavam no exílio e não foram ouvidos.

Curioso é que, enquanto o golpe de 1964 foi visto por alguns como a “segunda morte de Vargas”, não
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demorou para que o governo adotasse um projeto autoritário que


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OCT exatamente
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Estado centralizado e de um sindicalismo corporativista – como se viu na tradição varguista. Por isso, ❎
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quando chegou 1974, vigésimo aniversário de sua morte, a memória 2013
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de Vargas
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tratamento. Na Câmara dos Deputados, os líderes dos novos partidos políticos (a Arena, de apoio ao
governo, e o MDB, de oposição consentida) proferiram discursos em sua homenagem. Naquele teatro
oficial, o tom era de ênfase no desenvolvimento econômico. Houve também algumas tímidas
manifestações nas ruas do país. No Rio de Janeiro, elas se concentraram na praça da Cinelândia, em
frente ao busto do presidente. Flores foram deixadas ao pé do monumento e duas mil cópias da carta-
testamento foram distribuídas, muitas trazendo também os nomes de candidatos ao Congresso
Nacional. Em Porto Alegre, o MDB homenageou Vargas com uma missa e uma concentração política
diante do monumento à carta-testamento.

Já a imprensa não produziu apenas conteúdos positivos. Um artigo do jornalista Carlos Castello Branco,
publicado em caderno especial do mesmo Jornal do Brasil, indica sua intenção crítica já pelo título: “A
ditadura”. O autor rememora a censura praticada no Estado Novo, a ação repressora do governo diante
das manifestações políticas e as prisões efetuadas. A figura que emerge é a do Vargas ditador, odiado
por aqueles que defendiam a liberdade de expressão e a democracia. Para Castello Branco, a ditadura
de Vargas propiciava a “corrupção sob todas as formas e se tornava ineficiente como fator de
mobilização para o trabalho. (...) A ditadura é por definição centralista, mas no Brasil daqueles
tempos, sem comunicações, havia, além de uma ditadura estadual, ditaduras culturais”.    Qualquer
semelhança com o contexto da época certamente não se deve a coincidência. Carlos Castello Branco se
utiliza da condenação ao autoritarismo do Estado Novo para realçar as arbitrariedades do regime em
vigor.

A partir do final de 1978, quando foi revogado o Ato Institucional n° 5, o mais drástico da legislação de
exceção editada pelo regime militar, os ventos da abertura começaram a soprar com mais força. No
ano seguinte, foi decretada a anistia política e a reforma partidária. Muitos exilados voltaram ao país,
e em 1982 houve eleições diretas para governador. Em 1983, um outro tipo de comemoração foi
preparado em torno de Vargas: celebrou-se o centenário de seu nascimento.

Os novos ares democráticos possibilitaram a realização de diversos debates sobre a Era Vargas. Pela
primeira vez sua memória alimentava análises sobre a história recente do país, a partir de
comparações entre diferentes períodos. A reestruturação dos partidos políticos desencadeada em 1979,
por exemplo, foi discutida à luz do cenário pós-1945, quando o país também viveu um retorno à
democracia. A diferença era que, no pós-Estado Novo, o getulismo e o antigetulismo eram
determinantes no jogo político, enquanto no início dos anos 1980 não havia nenhum partido ou núcleo
político declaradamente antigetulista. Ao contrário, o getulismo e sobretudo o trabalhismo passaram a
ser utilizados como trunfo eleitoral por vários partidos. A exploração eleitoral voltava-se para uma
parte específica da memória de Vargas: seu lado nacionalista e patriótico, tal qual exposto na carta-
testamento.

De modo geral, o centenário de 1983 redimiu a figura de Getulio Vargas associando-a ao seu segundo
governo, democrático e nacionalista. Ainda que alguns artigos mencionassem a face autoritária do
líder, o foco não se fixava nessa questão. No ano seguinte, a comemoração dos 30 anos da morte de
Vargas assumiu grande relevância no cenário político.

Assim que foi rejeitada a emenda das “Diretas Já”, a oposição lançou a candidatura de Tancredo Neves
para a eleição indireta à Presidência. Político conciliador, Tancredo era governador de Minas Gerais. E
ex-ministro de Vargas. Em agosto de 1984, o candidato da Aliança Democrática – formada pelo PMDB e
pelos dissidentes do governo – juntou-se a Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT,
herdeiro do antigo PTB), e a outros líderes em uma caravana rumo a São Borja (RS), cidade natal de
Getulio, para prestar-lhe uma homenagem. A memória de Vargas ajudou a costurar a aliança entre PDT
e PMDB. Unidos para reverenciar o passado, os dois partidos estavam de olho no futuro. “Getulio é
realmente aquele divisor de águas, aquele que havia dado mais que a sua vida, havia dado todo o seu
espírito a serviço da emancipação política, econômica e social do nosso povo. (...) Feliz a pátria que
pode possuir homens públicos da sua estatura; feliz a nação que pode se honrar de ter tido um filho
deste vulto e deste porte”, afirmou Tancredo Neves na ocasião. Brizola aproveitou para sugerir que,
dali em diante, 24 de agosto fosse considerado o “Dia da Carta-testamento”. “Mais que a morte do
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presidente Getulio Vargas, a referida data assinala o lançamentoGodaquele


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impacto e a posterior influência sobre os destinos do povo brasileiro são de uma profundidade que
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ainda não estamos em condição de avaliar. Divulgar o pensamento conclusivo
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século é uma questão cívica que interessa ao conjunto da Nação, com vistas às novas gerações”,
discursou o gaúcho, governador do Rio.

A redemocratização do país não transcorreu sem percalços. Eleito presidente em janeiro de 1985,
Tancredo morreu antes de tomar posse. No governo de seu sucessor, o vice José Sarney, todas as
atenções se voltaram para o combate à inflação, que progredia em ritmo alarmante. A memória de
Vargas também não navegaria em águas calmas.

“A Era Vargas acabou”. O mote, que reverbera o discurso dos militares do golpe de 1964, ressurgiu no
início dos anos 1990. Era o momento de questionar o modelo de desenvolvimento econômico
inaugurado por ele. Em 1994, analistas defendiam que a tendência mundial de abertura das economias,
de privatização das empresas estatais, redução da ação do Estado, controle das contas públicas e
ajuste fiscal resultaria, para o Brasil, na “terceira morte de Vargas”.
Este foi o título de um artigo assinado pelo cientista político Bolívar Lamounier naquele ano. Segundo o
autor, com novas instituições, uma opinião pública livre e novos meios de comunicação, o país vivia um
período de construção democrática, no qual desaparecia “a preocupação com a tutela das Forças
Armadas sobre o sistema político”. Por isso seria possível “afirmar que o getulismo e o antigetulismo
virulentos feneceram”. Outras críticas foram expressas na ocasião, como fez um editorial do Jornal do
Brasil (25/8/1994) que apontava o corporativismo como herança negativa do varguismo enraizada na
sociedade brasileira.

A oposição, por sua vez, tentava usar o mito a seu favor. Para a economista Maria da Conceição
Tavares, o então candidato à Presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva,
era o principal herdeiro do trabalhismo de Vargas, enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB), de Fernando Henrique Cardoso, poderia ser comparado à antiga UDN. Depois de eleito FHC,
muitas vozes da oposição continuaram a apregoar os valores positivos de um certo legado varguista. Na
luta contra as privatizações e no debate sobre a revisão da legislação trabalhista, a figura de Getulio
era acionada para contestar os novos rumos tomados pelo país.

O embate ganhou novas feições em 2004. Desde o ano anterior, o país vivia sob o governo de Luiz
Inácio Lula da Silva, ex-líder operário que iniciou sua carreira política no final do regime militar,
fundando o PT, e que jamais se declarou, ele próprio, herdeiro de alguém.

Contrariando certas expectativas de que o velho líder não mais despertaria grande interesse, naquele
ano Vargas ressurgiu com grande vigor. Os principais jornais do país prepararam alentados cadernos
especiais. As revistas de História dirigidas ao grande público saíram com fotos de Vargas estampadas na
capa. Políticos e intelectuais dedicaram-se a discutir o assunto.

Para alguns analistas, a vitória de Lula na eleição de 2002 poderia representar a retomada de alguns
ideais do nacional-estatismo. Cristóvam Buarque, ministro da Educação de Lula até janeiro de 2004, foi
um dos que colocaram 1954 em pauta: “Apesar da revolução que significou a eleição de Lula e o
governo do PT, 2004 ainda não deixou claro o novo rumo que o país precisa e espera desde 1954”. O
ex-ministro não chegava a defender as opções de Vargas, mas destacava a necessidade de conhecê-las
para criar um outro projeto nacional: “Ainda é tempo de mudar, de reorientar o Brasil. Lembrar o
passado em geral é o melhor passo para começar a construir o futuro. O futuro da continuação do
mesmo, dos últimos 50 anos, ou da construção do novo para o século XXI”, escreveu.

A idéia de “construção do novo” não era compartilhada por todos os setores do governo. O Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, criou o “Projeto Getulio
Vargas”, que realizou seminários e produziu documentário, livro, exposição, show e memorial com a
estátua de Vargas. O projeto manifestava a intenção de “contribuir para o fortalecimento da história
[de Vargas], a valorização de seu legado e, sobretudo, o resgate da memória de importantes conquistas
para o cidadão brasileiro”. Então presidente do banco, o economista Carlos Lessa defendia o
nacionalismo e as políticas econômicas de Vargas, em oposição ao projeto neoliberal do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso. Nas palavras de Lessa, “um presidente de alma seca achou que devíamos
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enterrar a Era Vargas. O que este presidente deixou de legado?”Go


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presidente com o antigo líder trabalhista, afirmava que “a agenda recuperada de Vargas nos aponta
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uma continuidade entre o nacional-desenvolvimentismo dele e de sua
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época e o desenvolvimentismo
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nacional democrático de Lula”.

Poucas vozes eram exclusivamente de críticas a Vargas. Uma delas foi a do Instituto Liberal, de
oposição ao governo Lula. Cândido Prunes, vice-presidente do Instituto, argumentava que o país
cometia um erro ao esquecer “a truculência política da era Vargas”. E ia além: “Neste ano em que se
registram os 50 anos do suicídio de Getulio Vargas, deveria se iniciar uma campanha pelo banimento do
seu nome de todas as ruas, avenidas, praças e locais públicos. Foi ele um caudilho sanguinário que
deveria merecer o opróbrio, como qualquer ditador. Ou então, por uma questão de justiça, comecemos
a homenagear os militares ‘linha dura’ de 1964”.

Mas, em geral, as opiniões críticas não expressavam um antigetulismo radical. Mesmo o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso afirmou, em palestra no jornal O Globo, que suas declarações ao tomar
posse em 1994, relativas ao “fim da Era Vargas”, foram mal interpretadas. Afirmou que nunca fora
antigetulista, apenas achava que o modelo varguista havia se tornado obsoleto nos novos tempos. E
tratou de elogiar o líder: “Getulio não era caudilho. Foi fruto das circunstâncias, mas tinha capacidade
tática, malícia, visão”.

De lá para cá, grandes temas da Era Vargas continuam na ordem do dia, como o desenvolvimentismo, o
nacionalismo e a intervenção do Estado na economia. Discussões que devem ganhar nova roupagem
com a chegada das eleições. Não se sabe ainda como a figura do líder vai reaparecer, mas uma coisa é
certa: 54 anos após 54, Getulio continua vivo. E bem na foto.

Marieta de Moraes Ferreira é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e


pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC).

Saiba Mais - Bibliografia:

BRANDI, Paulo. Da vida para a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.


GOMES, Ângela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves; ALBERTI, Verena (coord.). A República no Brasil.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira/CPDOC, 2002.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
SILVA, Hélio. Um tiro no coração. (1a ed., 1980). Porto Alegre: L&PM, 2004.

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