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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

A QUESTÃO DA SECA NAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS


E A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE ASSISTÊNCIA
1824 - 1988

WENDERSON NOBIO RIBEIRO

SÃO GONÇALO
2021
A QUESTÃO DA SECA NAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS
E A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE ASSISTÊNCIA
1824 -1988

WENDERSON NOBIO RIBEIRO

Trabalho de conclusão de curso apresentado à


disciplina de Prática e Pesquisa em História
como parte dos requisitos para obtenção do
diploma de licenciatura em História sob
orientação do Professor Daniel Tadeu do
Amaral.

SÃO GONÇALO
2021
RESUMO

O semiárido constitui a maior área da Região Nordeste e por motivos geográficos e


climáticos é assolado por longos períodos de seca extrema desde os tempos
coloniais. Durante o Império, as medidas de socorro à população atingida eram de
natureza caritativa e emergencial, a fim de evitar maior mortalidade tanto de seres
humanos quanto da flora e da fauna. Na República, ocorreram as primeiras ações de
governo voltadas para a questão da seca como a construção de açudes e a perfuração
de poços, embora não fossem suficientes para a resolução do problema. Alguns
Estados vivenciavam um cenário nefasto: desemprego, fome, doença e morte. O
governo do Ceará, na seca de 1932 criou os campos de concentração para acolher
os migrantes, uma forma de impedir a entrada na capital de milhares de retirantes do
Sertão, agora denominados flagelados da seca. A política migratória foi estimulada
com a ilusão dos centros urbanos e da Amazônia, muitos jamais retornaram à terra
natal. As Constituições Federais dedicavam artigos específicos para a temática da
seca no semiárido nordestino, contudo, as realizações sempre ficavam aquém do
desejado. A criação de órgãos federais como a DNOCS e a SUDENE permitiram uma
efetividade maior na gestão do problema hídrico da região. A mobilização da
sociedade civil com os trabalhadores rurais promoveu uma mudança na perspectiva
de enfrentar o fenômeno da seca: aprender a conviver com a seca no semiárido e
usar os recursos tecnológicos como a transposição de bacias hidrográficas,
construção de cisternas para a captação da água da chuva, além de modernizar a
legislação no que se refere aos recursos hídricos. Este trabalho tem como objetivo
analisar a questão da seca no semiárido nordestino e a implementação das políticas
públicas de assistência nos textos das Constituições Federais, o recorte temporal será
de 1824 a 1988. A pesquisa espera demonstrar através da bibliografia e documentos
pesquisados que ocorreram falhas no planejamento das ações dos governos, e que
somente com a intervenção da sociedade civil em ações conjuntas com a população
houve uma mudança no entendimento quanto à convivência com a seca no semiárido.
Palavras-chave: Semiárido. Constituição Federal. Política Pública. Seca. Convivência.
ABSTRACT

The semi-arid is the largest area of the Northeast region and for geographical and
climatic reasons is beset by long periods of extreme drought since colonial times.
During the Empire, relief measures for the affected population were charitable and
emergency in nature, in order to avoid increased mortality of both humans and flora
and fauna. In the Republic, the first government actions focused on the issue of drought
such as the construction of dams and the drilling of wells took place, although they
were not enough to solve the problem. Some states experienced a nefarious scenario:
unemployment, hunger, disease and death. The government of Ceará, in the drought
of 1932 created the concentration camps to welcome migrants, a way to prevent the
entry into the capital of thousands of migrants from the Sertão, now called scourges of
drought. The migration policy was stimulated by the illusion of urban centers and the
Amazon, many have never returned to their homeland. The Federal Constitutions
dedicated specific articles to the theme of drought in the semi-arid northeast, however,
the achievements were always below the desired. The creation of federal agencies
such as DNOCS and SUDENE allowed a greater effectiveness in the management of
the region's water problem. The mobilization of civil society with rural workers
promoted a change in the perspective of facing the phenomenon of drought: learning
to live with drought in the semi-arid and using technological resources such as the
transposition of watersheds, construction of cisterns for the capture of rainwater, in
addition to modernizing legislation regarding water resources. This work aims to
analyze the issue of drought in the semi-arid northeast and the implementation of
public policies of assistance in the texts of the Federal Constitutions, the time frame
will be from 1824 to 1988. The research hopes to demonstrate through the bibliography
and researched documents that there were failures in the planning of government
actions, and that only with the intervention of civil society in joint actions with the
population there was a change in understanding regarding living with drought in the
semi-arid.
Keywords: Semiarid. Federal Constitution. Public Policy. Dry. Coexistence.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 5

2 CONTEXTUALIZANDO A QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL-REPÚBLICA ............ 6

2.1 O NORDESTE E SUAS DIVISÕES ................................................................... 7


2.2 O SEMIÁRIDO E A SECA ................................................................................. 7
2.3 CARIDADE E SOCORRO IMPERIAL ............................................................... 8
3 O ENFRENTAMENTO À SECA............................................................................. 10

4 A SECA DE 1932 ................................................................................................... 11

4.1 A SECA NAS CONSTITUIÇÕES DE 1934 E 1937 ......................................... 12


5 O REGIME MILITAR E A SECA ............................................................................ 15

6 A CONSTITUIÇÃO DE 1988.................................................................................. 16

7 NOVA PERSPECTIVA: CONVIVÊNCIA COM A SECA ........................................ 17

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 20

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 22
5

1 INTRODUÇÃO

A história constitucional do Brasil se inicia com a outorga da primeira


Constituição brasileira, no ano de 1824, ainda no período monárquico, sendo Dom
Pedro I imperador do Brasil. Essa Carta Imperial é a que teve maior duração, sua
vigência foi de sessenta e cinco anos, de 1824 a 1889. Certamente, foi uma inovação
para o cenário imperial, já que foi a partir do seu texto que alguns temas políticos,
econômicos e sociais foram introduzidos na sociedade da época, dentre eles as
garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros. Contudo, não havia
ainda o conceito de política pública, direitos sociais, política de assistência e bem-
estar social; todos esses temas foram introduzidos na agenda política muitos anos
depois da primeira Carta.
A mudança ocorrida em 1889 com a Proclamação da República fez nascer uma
nova Constituição, agora republicana. Posteriormente a essa, outras seis Cartas
Constitucionais foram elaboradas em diversos momentos históricos do país, mas
somente na Constituição de 1988, ocorre a efetivação de uma legislação voltada para
os direitos sociais e assistenciais tão necessários à sociedade brasileira.
As demandas sociais da população, especialmente a mais carente, não
recebiam a devida atenção dos governantes. A formulação de políticas públicas de
assistência não constava nos projetos governamentais de Estado, na maioria das
vezes eram tratados como práticas de caridade em períodos eleitorais. Dentre essas
demandas, a questão da seca no semiárido nordestino se destacava como um fato
social relevante no cenário político do país.
Não é pretensão de este autor adentrar nos aspectos climáticos e na
abordagem de uma área exclusivamente técnica, que certamente explicaria os
fenômenos relacionados a seca na região contemplada. A proposta deste trabalho é
abordar como foi tratada a questão da seca no semiárido nordestino na redação das
Constituições Federais, a partir de 1891, e analisar quais foram as políticas públicas
que foram implementadas nos eventos climáticos em que a região foi afetada. Este
estudo é relevante, no sentido histórico e social, já que esses eventos provocaram
diversas modificações na estrutura social da região por causa do alto índice de
mortalidade e também pelo fenômeno migratório da população denominada como
“flagelados da seca”.
6

Este trabalho também irá analisar o desenvolvimento de uma outra perspectiva


relacionada à questão da seca: a convivência com o fenômeno da estiagem no
semiárido nordestino. Espera-se demonstrar que ao mudar as perspectivas - de
combate para convivência - as políticas públicas idealizadas e as ações da sociedade
civil organizada obtiveram melhores resultados com soluções mais viáveis e
duradouras. O objetivo geral desse trabalho é apresentar um panorama da questão
social relacionada à seca no semiárido e às políticas públicas de assistência que foram
idealizadas e implementadas, tendo suas redações nas Constituições federais.
Para o desenvolvimento deste estudo será utilizada a pesquisa bibliográfica de
referência para fundamentar os argumentos apresentados neste trabalho, além de
documentações oficiais, como as próprias Constituições, que são disponibilizadas no
site do Senado Federal. A pesquisa contará também com a legislação atinente ao
tema, e buscará os atos do Poder Executivo no que se refere a realização das políticas
públicas implementadas nos períodos abordados.

2 CONTEXTUALIZANDO A QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL-REPÚBLICA


O regime republicano teve início em 15 de novembro de 1889 e nessa época
o país enfrentava os desafios de ser uma nação que se preparava para o
desenvolvimento industrial com um forte apelo às atividades econômicas, pois o café,
o açúcar e a borracha eram os produtos que geravam muitas riquezas com sua
exportação. Foi um período também de intensa imigração de estrangeiros, que foram
estimulados a vir para o país para substituir a mão de obra escrava nas fazendas e
lavouras. Havia uma expectativa de crescimento e geração de emprego que não se
concretizou nos anos seguintes à proclamação da República, já que a política
econômica conhecida como Encilhamento, provocou uma enorme desordem
econômica e financeira, o que levou o país a um alto índice de inflação. Logicamente,
esse é um panorama social dos centros urbanos, como São Paulo e a capital da
República, o Rio de Janeiro; que enfrentavam dificuldades, e contava ainda com uma
grande massa de ex-escravizados que estavam desamparados socialmente, mas que
em nada se comparava a outras regiões, especialmente o Nordeste, onde a situação
era muito mais desafiadora, e por que não dizer, desoladora.
7

2.1 O NORDESTE E SUAS DIVISÕES

Em 1889, nove estados formavam a região nordeste: Pernambuco, Maranhão,


Ceará, Piauí, Bahia, Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte e Paraíba. 1 Não é
possível analisar esta região de forma única, já que existem diferenças consideráveis
nos aspectos políticos, econômicos, sociais e, por fim, climáticos. Para melhor definir
essas diferenças climáticas e de vegetação foram criadas as Sub-regiões
Nordestinas; a Zona da Mata, o Sertão, o Agreste e o Meio Norte, cada uma dessas
áreas tem suas peculiaridades próprias, mas para dar seguimento e foco ao objetivo
deste trabalho, cabe destacar o Sertão e o semiárido como ponto central.

2.2 O SEMIÁRIDO E A SECA

A existência dos longos períodos de estiagem não era incomum no Sertão


nordestino. De acordo com Rocha (2010, p. 138):

Mais da metade do complexo regional nordestino corresponde ao Sertão


semiárido. [...] na prática, a seca decorre da extrema irregularidade de
distribuição das chuvas. [...] no Sertão existiram secas históricas que duraram
vários anos, provocando grandes tragédias, até hoje lembradas.

Esses extensos períodos de seca ocorrem desde os tempos coloniais.


Influenciado por fatores do clima quente e seco, próprio do sertão, onde as chuvas
têm o outono e o verão como estações, porém os volumes das chuvas são poucos e
os intervalos sem as precipitações são variáveis, podendo passar longos anos sem
chover.

O drama das secas tem uma longa história: o primeiro registro da ocorrência
de seca nos documentos portugueses é de 1552, três anos após a chegada
do primeiro governador-geral, Tomé de Souza. [...] no decorrer do século XVII
houve seis grandes secas [...] que afetaram principalmente a paraíba, o Rio
Grande do Norte e o Ceará. [...]no século XVIII ocorreram sete grandes
secas...[...] os efeitos foram muito mais devastadores que os das secas do
século anterior, em parte devido ao crescimento da população vinculada à
atividade da pecuária, que acabara por ocupar parte significativa do sertão
nordestino. (VILLA, 2001, p. 18).

Ainda no século XVIII, as sucessivas secas castigavam a região. Além do


infortúnio da estiagem, havia outras dificuldades a serem enfrentadas como as
doenças, que segundo Villa (2001, p. 21) “a seca foi acompanhada também por uma

1Composição em mapa dos estados brasileiros em 1889:


https://novaescola.org.br/conteudo/201/como-foi-estabelecida-a-divisao-dos-estados-brasileiros
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epidemia de bexiga2 que devastou ainda mais as capitanias: só no Ceará as perdas


alcançaram mais de trinta mil habitantes.”
No sertão havia também alguns bons invernos, esses permitiam um avanço
econômico, o desenvolvimento das cidades, atividades de agricultura e pastoreio, o
que gerava um aumento da população. Essa prosperidade provisória durava até a
chegada de uma outra estiagem, o que aumentava os números da tragédia. O sertão
tinha pouca importância para o governo colonial, já que não tinha influência na
economia da colônia. Mais importante, sem dúvida, eram as províncias litorâneas.

2.3 CARIDADE E SOCORRO IMPERIAL

As primeiras ações de governo no enfrentamento a seca ocorreram no período


regencial, sob influência de políticos nordestinos, após a abdicação de Dom Pedro I.
Em 1833, o ministro do Império autorizou a abertura de fontes artesianas no
Ceará, na Paraíba e em Pernambuco. [...] em 1834, pela primeira vez o
governo provincial criou condições para que a população pudesse resistir aos
efeitos do terrível flagelo. Foram incentivadas as construções de açudes,
cacimbas e perfurações de poços. (VILLA, 2001, p. 23)

Algumas dessas ações tinham a característica da caridade, do socorro


praticado pelos políticos e pelo Imperador. Em sessão de abertura da legislatura de
1846, o Imperador Dom Pedro II relata aos deputados:

Lamento profundamente os males com que a seca tem flagelado algumas


províncias do Norte, principalmente a do Ceará. O meu governo acudiu, com
os meios de que podia dispor, para atenuar os males que afligiram os meus
súditos naquelas províncias. [...], mas nem será possível reparar prontamente
todos os estragos da seca, nem o meu governo poderá suspender os
socorros de que ainda necessitam aquelas províncias . (FALAS DO TRONO,
2019, p. 318).
A resposta da Câmara dos Deputados à fala do Imperador demonstra
claramente que os “flagelados” da seca somente poderiam contar com o olhar
caridoso do seu governante e dos seus representantes, e certamente muitos anos de
penúria viriam pela frente.

Bem penosa é para a Câmara dos Deputados a ideia do terrível flagelo que
caiu sobre algumas das províncias do Império; consoladora, porém lhe é a
segurança de que o governo de Vossa Majestade Imperial procurou minorar
males tão graves, enviando para aquelas províncias desoladas os socorros
de que podia dispor, e muito apraz à Câmara que o mesmo governo esteja
na intenção de continuar tais socorros enquanto forem necessários. (FALAS
DO TRONO, 2019, p. 320)

2Varíola: doença virótica infectocontagiosa. Era conhecida popularmente como “bexiga negra”, em
sua forma mais grave, e alastrim, em sua forma mais benigna.
9

Até mesmo o célebre escritor e deputado cearense José de Alencar, em uma


visita ao Ceará em 1873 afirma; “o Império, como um pai solícito, acudia com socorros
a indigência pública, mas da causa do mal e seu remédio não curava”. (VILLA, 2001,
p. 42). Alguns anos depois, entre 1877 e 1879, a região do semiárido, principalmente
o Ceará, enfrentaria um dos períodos mais secos da história do Brasil. Segundo
relatos de historiadores de várias épocas, a mortalidade e a migração de pessoas
foram um fenômeno social extremo, além da perda de praticamente toda flora e fauna
existentes.
A severidade da estiagem foi tanta que ficou conhecida como a “Grande Seca”,
o que levou o Império a organizar uma Comissão com estudiosos de várias áreas para
que percorressem a região e apresentassem sugestões para ajudar aos habitantes
impactados pela seca. Até mesmo entre os membros da Comissão havia divergências
quanto ao fenômeno: alguns vislumbravam a seca como um problema humanitário,
social e econômico; outros a viam como um acontecimento natural.
Desde o momento inaugural (1877), quando a seca traz a miséria para o
centro de formação da sociedade de bases europeias que se queria para o
Brasil, os sentidos conferidos à tragédia pelos intelectuais e políticos do
Império trataram de “naturalizar” a seca, isto é, entendê-la como resultado de
mudanças climáticas imprevisíveis que produzem “efeitos” desastrosos entre
a população sertaneja. (NEVES, 2001)

Nos anos posteriores, já no período republicano, também houve episódios de


graves secas na região e mesmo com a promulgação da Constituição de 1891 não
houve em sua redação nenhuma política pública que tratasse especificamente dos
graves problemas relacionados à seca no sertão. Contudo, o artigo 5º da Constituição
de 1891, apresenta a seguinte redação: 3“Art. 5º - Incumbe a cada Estado prover, a
expensas próprias, as necessidades de seu Governo e administração; a União,
porém, prestará socorros ao Estado que, em caso de calamidade pública, os solicitar.”
Esse artigo, embora inespecífico quanto ao termo “calamidade pública”, deixa
subtendido que a calamidade pública decorre de desastres naturais, e a seca severa,
com todos os agravamentos provocados por ela, se enquadrava nesse item.
As dificuldades enfrentadas pela população do semiárido, relacionadas à seca,
ainda permaneceram no final da década de 1890, quando ocorreu a seca de 1898 e
1900. Apesar de ser um problema recorrente e histórico, o governo republicano ainda
o tratava como um fato circunstancial e não oferecia medidas realmente efetivas para

3 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (24 de fevereiro de 1891).


10

resolvê-lo. Uma das medidas, um tanto quanto questionável, era o oferecimento de


transporte gratuito para quem quisesse se retirar da sua terra e buscar abrigo ou
trabalho em outra região do país, daí o termo retirante, que passou a denominar
aqueles que migravam para outras regiões, principalmente para o centro-sul ou para
a Amazônia.
Segundo Villa (2001, p. 91), o governador do Ceará, à época, questionou o
governo federal sobre as ações socorristas “[...] o conjunto de medidas tenentes a
neutralizar os efeitos da calamidade em qualquer tempo ou período em que ela venha
a renovar-se, ter-se á apenas atacado o mal, quando surge, para abandoná-lo quando
cessa, sem cuidar do futuro.”

3 O ENFRENTAMENTO À SECA
A presidência da República sob o comando de Rodrigues Alves (1902-1906),
se diferenciou dos governos anteriores no entendimento da questão da seca. A partir
da Grande Seca de 1877-1879, houve uma mudança no tratamento que se dava a
esse fenômeno climático. Não era mais possível apenas remediar os problemas
advindos com a estiagem prolongada; era necessário um enfrentamento do problema
com obras de infraestrutura hidráulica permanentes, como “[...] a criação de açudes,
abertura de poços e estradas de ferro”. (VILLA, 2001, p. 92).
Para consolidar esse entendimento, em 1905 o governo editou o Decreto que
4“dispunha sobre as obras preventivas, feitas por conta da União contra os efeitos da
seca”, e já bem no final do mandato, criou a Superintendência de Estudos e Obras
Contra os Efeitos da Seca, que em conjunto com a Comissão de Açudes e Irrigação
se tornaram os órgãos do governo que efetivamente cuidavam do combate à seca.
Após alguns anos de existência e desenvolvimento de perfuração de poços em vários
estados do Nordeste, a Superintendência foi extinta em 1909, sendo substituída, no
mesmo ano pela Inspetoria federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) e manteve o
mesmo caráter institucional, que era bastante focado na construção de açudes, 5“a
açudagem ganhou nova força durante a presidência do paraibano Epitácio Pessoa
(1919-1922), mantendo-se até o final da década de 1920 como o principal meio de
combate à seca”.

4
DECRETO Nº 1.396, DE 10 DE OUTUBRO DE 1905
5Arquivo Nacional – MAPA: Memória da Administração Pública Brasileira
http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-primeira-republica/932-inspetoria-de-obras-contra-as-secas
11

Apesar de essa Superintendência contra a seca ter sido criada, pouco adiantou
para a prevenção de outra estiagem severa, como aconteceu em 1915.
Diferentemente da seca de 1877-1879 que afetou particularmente o Ceará, dessa vez,
praticamente todos os estados da região foram atingidos pela calamidade. A imprensa
fazia as principais denúncias da inércia do governo federal e da Câmara dos
Deputados que demoravam em atender aos apelos dos governadores; “o governo
federal não pode permanecer indiferente diante de tamanha calamidade. O seu dever
é agir quanto antes em socorro das populações flageladas, que não podem ficar no
desamparo”. (VILLA, 2001, p. 103). Os relatos se tornam cada vez mais
desesperadores e exigem esforços grandiosos, que não ocorrem como seria
necessário. De acordo com Villa (2001, p. 106), o bispo do Ceará relata aos jornais
cariocas:

Famílias inteiras mortas, estradas juncadas de cadáveres, povoações


abandonadas, lares destruídos, a capital e as cidades cheias de famintos. [...]
se os socorros não forem enviados com urgência, a fome matará
inevitavelmente mais de 600 mil pessoas.

Além de toda a tragédia humana provocada pela fome, havia a violência, que
crescera absurdamente com os saques, roubos e assassinatos. Diante de uma
situação de caos, havia por parte do governo e de alguns setores da sociedade uma
maior preocupação com o controle dos gastos públicos, que poderia “resultar em
danos maiores a reconstrução econômica e financeira do país”. (VILLA, 2001, p. 116).
Essa cautela financeira não foi demonstrada em 1925, quando “curiosamente, foram
destinados 83 mil contos de réis para novas obras em outras regiões do país” (p.139).
Em toda a década de 1920, o país passa por diversos momentos de ebulição,
seja na esfera política, econômica e social, e bem no final da década, as disputas
políticas se intensificam pela presidência da República. Há um contexto de revolução
em vários estados, sob a direção de Getúlio Vargas, candidato do Rio Grande do Sul.
A Revolução realmente acontece em outubro de 1930 e forma-se uma Junta
Provisória para governar o Brasil; em sequência transmitem o poder ao líder da
Revolução, Getúlio Vargas. Era o fim da Velha República e o começo da Era Vargas.

4 A SECA DE 1932
12

Um novo governo não era sinal de solução para o velho problema da seca.
Mais uma vez ela chegou intensa e castigante em 1932. Novamente foram criadas
algumas frentes de trabalho para construção de açudes, porém já ficara demonstrado
que essas obras emergenciais, pouco resolvia de fato. Em alguns locais, contratavam
homens que mal tinham forças para trabalhar, tão debilitados estavam pela fome e
desnutrição. Cada vez mais, os sertanejos do interior rumavam para a capital
Fortaleza; “pelas estradas do estado, milhares de retirantes se dirigiam aos maiores
centros em busca de trabalho e comida”. (VILLA, 2001, p.146). As ações do governo
federal se concentravam na contratação de retirantes para as frentes de trabalho e na
migração para outros estados, principalmente São Paulo. Em tempos de repressão
política, pouco se falava da ineficiência do Governo Provisório, mesmo assim, para
evitar mais exposição do flagelo, a política de migração para o sul foi retirada e a
população era mantida nos seus locais. Contudo, a conjuntura local era muito difícil.
Fortaleza estava repleta de famintos; e nesse cenário caótico foi criado o primeiro
campo de concentração de seres humanos no Brasil. Segundo Rios (2014, p. 30), “Em
meados de abril, sete Campos de Concentração foram construídos em todo Estado,
sendo dois na Capital”.
Os Campos de Concentração, também chamados de “currais”, receberam “185.000
mil pessoas no ápice da seca, distribuídos em sete campos.” (VILLA, 2001, p. 154).

4.1 A SECA NAS CONSTITUIÇÕES DE 1934 E 1937

Chegava ao fim o governo provisório instituído com a Revolução de 1930. A


promulgação da Carta Magna de 1934 iria substituir a Constituição de 1891. A
definição no texto constitucional do 6artigo 177 dedicado ao tema da seca levava a
crer que tempos mais amenos viriam, e os anos seguintes, de fato, não foram como
os anteriores. Em sequência, no ano de 1936 o governo delimitou sua área de
atuação definindo o Polígono das Secas, um espaço territorial que contemplava “o
semiárido do Ceará, de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, da Paraíba, do Rio Grande do
Norte e de Pernambuco, mas deixando, inexplicavelmente de fora o Piauí, que tinha
sido durante atingido pelas secas no século XX.” (VILLA, 2001. p. 161). Considerada

6
Art.177 - A defesa contra os efeitos das secas nos Estados do Norte obedecerá a um plano sistemático e será
permanente, ficando a cargo da União, que dependerá, com as obras e os serviços de assistência, quantia nunca
inferior a quatro por cento da sua receita tributária sem aplicação especial. (DOU de 16.7.1934 - Suplemento e
republicado em 19.12.1935).
13

uma Constituição inovadora em direitos civis, especialmente por contemplar às


mulheres o direito de votar e serem votadas, sua vigência se deu por apenas três
anos; em 1937, Getúlio Vargas instaura o Estado Novo e outorga ao país uma nova
Constituição que estabelece um retrocesso no atendimento ao povo das regiões
afetadas, já que as iniciativas de governos anteriores no combate à seca foram
excluídas do novo texto constitucional.
Os anos finais da década de 1930 foram, relativamente, menos secos que os
anteriores, não há registro de estiagem rigorosa neste período. Os anos 1940 se
iniciam com escassez de chuvas e falta de trabalho na região, o que mais uma vez
leva a solução emergencial de “transportar os flagelados para o Sul e para a
Amazônia, como já tinha ocorrido em secas anteriores”. (VILLA, 2001, p. 161). No
entanto, vale ressaltar, que o mundo vivia o contexto da Segunda Guerra Mundial e
dessa vez havia um componente político no envio de nordestinos para a Amazônia: a
declaração de guerra do Brasil aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Por
parte do governo de Getúlio Vargas que durante algum tempo ficara neutro no conflito,
em 1942 se junta aos Aliados e se compromete com os Estados Unidos a “ampliar
rapidamente a produção de borracha, vendendo o excedente para os Estados Unidos,
que o empregaria na indústria militar”. (VILLA, 2001, p.162). O resultado dessa
“política” migratória foi um fracasso em todos os aspectos. De acordo com Villa (2001):

[...] De 1942 a 1945 foram levados oficialmente para a região 48.765


nordestinos especialmente para a extração da borracha. [...] muitos morreram
durante a jornada – pois não havia assistência médica – na “obra civilizadora”
propugnada por Vargas. [...] os nordestinos foram abandonados pelo
governo...[...] centenas morreram tentando fugir dos seringais. [...] é difícil ter
um número exato de mortos na “Batalha da Borracha”, porém dada a
quantidade de doentes de lepra, tuberculose, malária, beribéri e a ausência
de um serviço efetivo de assistência médica, não é difícil estimar o número
de mortos em dez mil, ou seja, de cada cinco retirantes levados para a
Amazônia, um acabou morrendo ainda durante a Segunda Guerra Mundial.
(p. 165).

Em outubro de 1945, depois de muitas pressões, chega ao fim o Estado Novo


com a renúncia do presidente Getúlio Vargas. Foi na interinidade da presidência que
um importante passo foi dado na elaboração de políticas públicas contra a seca,
conforme demonstra o decreto-lei emitido em dezembro de 1945 criando o
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).
14

A Constituição de 1946 retoma na sua redação, no artigo 198, o compromisso


de destinar recursos financeiros para criar um caixa especial para socorrer as
populações atingidas, realizar obras, etc. Mas, como já havia ocorrido em outros
governos, a lei não foi cumprida fielmente, com a justificativa de equilíbrio do
orçamento; entretanto, essa “justificativa não foi lembrada quando dos enormes
gastos em obras na região Sudeste”. (VILLA, 2001, p. 167). O Departamento de Obras
Contra as Secas (DNOCS), não alcançou êxito no objetivo para o qual havia sido
criado, ao contrário; “nos momentos de seca, o órgão privilegiou as reivindicações dos
poderosos da região, usando como instrumento de pressão a miséria de centenas de
milhares de flagelados”. (VILLA, 2001, p. 167).
A década de 1950 iniciou-se com o retorno de Getúlio Vargas a presidência da
República, agora o país redemocratizado, mas com os mesmos problemas sociais no
sertão nordestino. A seca nos anos de 1951-1953 repetia o mesmo enredo das secas
anteriores: morte, fome, desemprego, migração. Desta vez havia uma diferença no
processo migratório, conforme relata Villa (2001, p. 170):

[...] a melhoria dos meios de transporte, especialmente do transporte


rodoviário, facilitou a viagem em busca de uma vida melhor, longe dos
latifúndios, da prepotência dos coronéis e do flagelo da seca. [...] Utilizando
diversos meios de transporte; e sem contar com o apoio oficial, centenas de
milhares de nordestinos deslocaram-se para o Sul, na maior migração da
História do Brasil”.

Neste ambiente de intenso fluxo migratório, muitos permaneciam no sofrimento


do flagelo da seca, em busca de alimento e trabalho. A Legião Brasileira de
Assistência (LBA), criada em 1942 através de 7Decreto presidencial, foi a primeira
política pública de aspecto assistencial desenvolvida para “prestar serviços de
assistência social, diretamente ou em colaboração com instituições especializadas”.
No cenário caótico em que se encontrava a região do semiárido, a ajuda da LBA na
figura de sua presidente, a Primeira Dama Darcy Vargas, prestou grande auxílio aos
desamparados. Em conjunto com outros voluntários, Dona Darcy Vargas criou em
1951 a A.V.I.S – Assistência as Vítimas da Seca - cuja missão era 8 “atuar
especificamente na assistência aos desamparados do Polígono da Seca”.

7 DECRETO-LEI Nº 4.830, DE 15 DE OUTUBRO DE 1942. Estabelece contribuição especial para a Legião


Brasileira de Assistência, e dá outras providências. (Diário Oficial da União - Seção 1 - 17/10/1942, Página 15489).
8 Correspondência sobre a seca de 1951 no Nordeste (www.fgv.br/Cpdoc/Acervo/arquivo-pessoal/GV/textual).
15

Apesar de algumas políticas terem sido efetivadas ao longo dos anos, a cada
período de seca ficava demonstrado que essas políticas não resolviam os problemas
definitivamente, eram políticas de emergência e de assistência por um tempo
determinado. Depois da morte de Vargas em 1954 e já na presidência de Juscelino
Kubitscheck, o antigo DNOCS estava despreparado para enfrentar mais uma seca,
no ano de 1958. Havia relatos de desvio de verbas, e no Ceará “a oligarquia tinha
tomado conta do DNOCS e transformado o órgão em um apêndice de seus interesses
políticos e econômicos.” (VILLA, 2001. p.190). Ao final da década de 1950, alguns
atos do governo de Juscelino evidenciavam relevante interesse pela região
nordestina: criou-se o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste
(GTDN) e em 1959 a 9SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste),
os órgãos foram criados sob a inspiração do economista Celso Furtado que após
longo período de estudo e trabalho na região, afirmava: “o flagelo [da seca] tinha
origem social e não ambiental”. (GODOY,2016, apud FURTADO,1963). Todavia, o
projeto de levar desenvolvimento à região nordeste que se iniciara em anos anteriores
tomou um rumo diferente, posto que “a evolução política do Brasil acabou
enfraquecendo a Sudene e o planejamento regional, ao recentralizar o poder no
Governo Federal após 1964”. (NYS, Erwin de. et al. 2016, p. 29).

5 O REGIME MILITAR E A SECA


A chegada dos militares ao governo se deu através do golpe militar contra o
governo de João Goulart em 31 de março de 1964. Sob as letras de uma nova
Constituição Federal, promulgada em janeiro de 1967, o novo texto somente fazia
referência à seca no artigo oitavo, inciso XII: “organizar a defesa permanente contra
as calamidades públicas, especialmente a seca e as inundações.” Havia por parte dos
militares uma expectativa de incentivos para investimentos no Nordeste objetivando o
desenvolvimento regional daquela que era considerada uma região problemática.
Porém, a grave seca de 1970 promoveu um retrocesso no planejamento
governamental. Segundo o discurso do presidente Emílio Garrastazu Médici:

9
LEI No 3.692, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1959: Institui a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste e
dá outras providências.
16

Desde 1958, não sofria o Nordeste seca tão ampla, insistente, penosa e
devastadora: 8 Estados, 605 municípios, quase 600 mil quilômetros
quadrados de terra calcinada, meio milhão de homens deixando o chão de
seu trabalho, 3 milhões de criaturas atingidas, rebanhos descarnados e
tristes, lavouras perdidas e, todo dia, o ano inteiro, um milhão de cruzeiros
injetados para acudir o infortúnio. (BIBLIOTECA DA PRESIDÊNCIA DA
REPÚBLICA. Discurso “A seca que se foi”. 08/06/1971, p.23.)

A intenção de continuar retirando os nordestinos de sua terra, como forma de


amenizar o problema da fome e da falta de trabalho, foi mais intensificada neste
período de pouca ou nenhuma atuação da imprensa, devido ao estado de exceção
vivido no país. Como marco desta política de incentivo à migração para a Amazônia
se destaca a construção da rodovia Transamazônica; conforme Villa (2001, p. 209):

Justamente no auge da seca o governo federal fez ampla campanha de


divulgação da estrada Transamazônica. [...] a construção da rodovia tinha
sido antecipada devido à seca e que serviria para fixar os nordestinos na
Amazônia, além de oferecer “condições para fugir dos fantasmas eventuais
da seca”. A estrada ia de Recife e João Pessoa até Cruzeiro do Sul no Acre,
passando por oito estados.

O mesmo ritual de outras secas se repetia entre as décadas de 1970 e 1980:


ajuda aos flagelados, migração, frentes de trabalho, etc. Não havia novidade nas
políticas implementadas pelos militares, até que em 1974 o presidente Ernesto Geisel
cria o 10 POLONORDESTE, “o programa segundo seus formuladores visará
primordialmente à previsão de secas e chuvas artificiais, melhoramento genético
vegetal e animal, uso e conservação de água, irrigação...”. (VILLA, 2001, p. 215.).
Alguns anos à frente constatou-se que os planos para região não obtiveram o
resultado desejado, até porque as questões político-partidárias influenciavam
diretamente nestes resultados. Seguiram-se vários episódios de seca extrema durante
a década de 1980 no semiárido nordestino, no entanto as intervenções oficiais foram
as mesmas de outros tempos.

6 A CONSTITUIÇÃO DE 1988
Após vinte e um anos de Ditadura Militar e um longo processo de
redemocratização, a nova Carta Magna trouxe um vigor democrático ao país e às
instituições públicas, além de representar um recomeço para a população brasileira.

10DECRETO Nº 74.794, DE 30 DE OUTUBRO DE 1974: Dispõe sobre a criação do Programa de


Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste (POLONORDESTE). Diário Oficial da União -
Seção 1 - 31/10/1974, Página 12391.
17

Inovadora na questão dos direitos sociais, a Constituição de 1988, no seu 11artigo 42,
define que parte dos recursos destinados à irrigação, 50% para o nordeste, sejam
aplicados “preferencialmente no semiárido”. É a primeira vez que o termo semiárido é
citado nominalmente como área de preferência de recursos financeiros e
posteriormente, a região do semiárido é 12 “inserida na área de atuação da
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene”.
A ECO-92, Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente realizada no Rio de
Janeiro, consolida o termo 13“desertificação” e surge um planejamento de combate a
esse fenômeno que atinge diversas áreas no Brasil. No capítulo 12 da 14Agenda 21,
o foco é a “ luta contra a desertificação e a seca”, logicamente, o documento enfatiza
o “fortalecimento da base de conhecimentos e desenvolvimento de sistemas de
informação e monitoramento para regiões propensas à desertificação e seca, sem
esquecer os aspectos econômicos e sociais desses ecossistemas”.(SENADO
FEDERAL, Agenda 21, p. 13). Em 1993, ano seguinte a Conferência, mais uma seca
severa assola a região. Dessa vez, porém, uma forte mobilização de trabalhadores
rurais exigiu medidas eficazes para o enfrentamento de mais um período difícil. A
população experimentava uma nova realidade em que a participação popular iria
ajudar a formular políticas para a região, fato diferente do que ocorria no passado em
que a população atingida pela seca eram apenas os atores sofridos de um drama
recorrente.

7 NOVA PERSPECTIVA: CONVIVÊNCIA COM A SECA


Ao escrever em Os Sertões que o “sertanejo é, antes de tudo, um forte”; o
escritor nordestino Euclides da Cunha sabia exatamente a que se referia. A força
dessa população, após diversos episódios de seca, de miséria, de descaso; buscava
neste novo tempo uma nova perspectiva frente à recorrência do fenômeno climático.
A participação de trabalhadores e da sociedade civil nas discussões a respeito do
tema deu origem ao Fórum Nordeste e, posteriormente, ao Programa “Um milhão de
Cisternas”, elaborado pelo antigo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e
conduzido pela Articulação Semiárido Brasileiro. Conforme a própria instituição define:

11 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988: Brasília, 5 de outubro de 1988.


12 LEI Nº 7.827, DE 27 DE SETEMBRO DE 1989.
13 “degradação das terras em áreas áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultante de vários fatores, incluindo

variações climáticas e atividades humanas”.


14 A Agenda 21 reúne uma série de encontros e debates promovidos pelas Nações Unidas sobre o meio ambiente

e suas relações com o desenvolvimento.


18

O semiárido brasileiro é a região prioritária do programa. Para essa região, o


programa está voltado à estruturação das famílias para promover a
convivência com a escassez de chuva, característica do clima na região,
utilizando principalmente a tecnologia de cisternas de placas, reservatórios
que armazenam água de chuva para utilização nos oito meses de período
mais crítico de estiagem na região. (BRASIL. Ministério da Cidadania,2013).

A contribuição das organizações da sociedade civil em parceria com o poder


público permitiu um direcionamento das políticas públicas para questões mais
profundas vivenciadas no semiárido. Não é somente a falta de água que causa os
problemas sociais da região, outros aspectos necessitam ser considerados:

[...] antes da falta de água, é a falta de terra a causa da baixa inclusão social
da maior parte da população desta parte do Nordeste brasileiro. Sem terra
suficiente, parte das famílias fica no círculo vicioso de fome, sede,
degradação ambiental, abandono da terra e migração para os centros
urbanos. (GNADLINGER, SILVA, BRITO. Teresina, 2005.)

A partir dos anos 1990 algumas ações de governo em relação ao semiárido


nordestino começaram a ganhar repercussão na sociedade, uma delas foi o Projeto
de Transposição do rio São Francisco, cujo objetivo era atender as necessidades de
recursos hídricos do povo da região afetada por estiagens severas. Uma obra
grandiosa, que já havia sido pensada em outros governos, mas somente no ano de
2003 saiu efetivamente do papel.
O desenvolvimento econômico do Nordeste sempre foi um grande desafio para
os governantes, especialmente em se tratando de áreas extremamente secas do
sertão nordestino. Entretanto, o Vale do São Francisco é um diferencial exatamente
por estar às margens do rio São Francisco e ter investido em um “sistema de irrigação
desde a década de 1970 por parte de órgãos públicos como a Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e a Companhia de Desenvolvimento dos
Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF)”. Atualmente, essa região é
produtora de frutas com fama internacional.
Em 2011 foi criado o 15 “Programa Água Para Todos”, embora não fosse
destinado ao semiárido nordestino, o programa indicava a mudança na perspectiva
governamental que - diferentemente do passado - procurava atender aos mais
vulneráveis e priorizava o “pleno desenvolvimento humano e à segurança alimentar e
nutricional de famílias em situação de vulnerabilidade social”. (DOU, 2011). Outro

15DECRETO Nº 7.535 DE 26 DE JULHO DE 2011.: Institui o Programa Nacional de Universalização do Acesso


e Uso da Água - “ÁGUA PARA TODOS”.
19

projeto implementado em conjunto com a Articulação Semiárido Brasileiro – ASA, foi


o “Programa Cisternas nas Escolas”, já que a região do semiárido é uma das mais
afetadas na área da educação por causa da seca. Segundo a ASA:
O Projeto Cisternas nas Escolas tem como objetivo levar água para as
escolas rurais do Semiárido, utilizando a cisterna de 52 mil litros como
tecnologia social para armazenamento da água de chuva. A chegada da água
na escola tem um significado especial porque possibilita o pleno
funcionamento deste espaço de aprendizado e convivência mesmo nos
períodos mais secos. O projeto abrange escolas dos nove estados do
Semiárido (PE, PB, AL, SE, BA, CE, RN, PI e MG) que não têm acesso à
água e que foram mapeadas pelo Governo Federal. Essa lista inclui as
escolas localizadas em aldeias indígenas e comunidades quilombolas, que
devem ser priorizadas nas ações do Cisternas nas Escolas. 16

As experiências das políticas públicas para o combate e enfrentamento à seca


implementadas nos séculos XIX e XX demonstraram serem ineficientes a longo prazo.
Apesar dos tropeços de vários governos, no decorrer dos anos observou-se a
necessidade de se criar programas duradouros que atendesse à demanda social que
a seca provocava. A falta de água impacta em áreas como a saúde, a educação, a
economia; além de promover a migração desordenada de pessoas para outras
regiões e intensifica o aumento da população vivendo em condição de miséria nas
periferias dos grandes centros.
Sendo assim, as políticas públicas formuladas a partir dos anos 2000, em
conjunto com instituições da sociedade civil seguiram para outro campo de
entendimento do fenômeno: não seria possível acabar com a seca, e os auxílios
emergenciais há muito se mostraram ineficazes, era preciso conviver com a seca e
achar maneiras efetivas de transformar a realidade de milhares de famílias do sertão
nordestino.
As secas severas ou estiagens prolongadas provocam perturbações cíclicas
nos agroecossistemas tropicais. No semiárido brasileiro, este fenômeno é
uma constante e vem sendo superado pelas famílias camponesas a cada
ciclo, a partir da aplicação de um conjunto de saberes, construído
coletivamente, dentro do processo convivência com o ambiente. (RIBEIRO,
et al. 2019, p. 327)

O desafio inicial foi se mostrando complexo assim como a região. Porém, com
programas de assistência voltados para a implementação de tecnologia e projetos de
convivência com o semiárido, a formação de uma consciência de participação em
todas as fases do processo mostrou que “é plenamente possível a vida no semiárido.

16 https://www.asabrasil.org.br/acoes/cisternas-nas-escolas#categoria_img
20

No entanto é preciso uma adaptação das famílias ao ambiente, respeitando-o em vez


de tentar combatê-lo”. (RANGEL; MARQUESAN, 2017).
É indiscutível que esse processo de mudança não se dará repentinamente,
como mágica. A população do semiárido em 2017 tinha um total aproximado de vinte
e sete milhões de pessoas, é grandioso em números e em problemas sociais. Diante
de uma sociedade que sempre foi vítima do assistencialismo dos governos, torna-se
imprescindível a construção da participação cidadã, da organização social e política
para reivindicar direitos há muito tempo negados a esta região.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão da seca no semiárido do Nordeste foi tratada durante muito tempo
como um problema regional localizado, até porque a seca não atingia toda a região
ao mesmo tempo. Alguns Estados sofreram com menos intensidade os períodos
secos; outros foram arrasados com longas estações sem chuvas. Por ser um
fenômeno recorrente, a população foi se adaptando àquela dura realidade e esperava
sempre o auxílio dos órgãos governamentais. Inicialmente, durante o Império,
enviavam o socorro como uma dádiva da família Imperial à população atingida pelo
flagelo da seca.

A Era Republicana, embora tenha envidado algum planejamento para o


problema, repetia a cada governo os mesmos modelos de políticas públicas de
enfrentamento emergencial da seca: construir açudes, perfurar poços, estimular a
migração para outras regiões, socorrer a população com o atendimento básico.
Algumas ações, no entanto, foram extremamente desumanas. Os campos de
concentração de migrantes no Ceará foi um dos mais tristes episódios da história do
Brasil e, aparentemente, ficou esquecido na História oficial do país. É possível afirmar,
com base nos documentos e textos pesquisados que a seca trazia benefício político -
eleitoral para as elites nordestinas. Havia um sistema de manutenção da dependência
do sertanejo em relação a essa elite, principalmente nos anos eleitorais. Quer dizer, a
seca produzia eleitores fiéis àqueles que enviavam o socorro na calamidade.

A mudança do ordenamento das políticas públicas em relação a questão da


seca promoveu também uma mudança no padrão imposto àquela região: o não
enfrentamento da seca, mas a convivência com ela no semiárido.
22

As iniciativas que uniram o governo, as instituições da sociedade civil e as


organizações não governamentais e a população nativa permitiram formular um pacto
social que beneficiaria a todos. O entendimento da proposta do desenvolvimento
sustentável, que é uma ideia inserida em um contexto mundial, também trouxe grande
contribuição para a mudança nas formulações de políticas públicas que abandonaram
o antigo conceito de “combate à seca”, e com isso buscaram outras alternativas e
novas tecnologias para conviver com o semiárido.

O processo de desertificação não é privilégio do Brasil. As mudanças climáticas


estão cada vez mais acentuadas e gerando catástrofes em várias partes do mundo.
É imprescindível, em tempos atuais, que a experiência adquirida em mais de um
século de enfrentamento a seca, oriente os governantes e a sociedade para a
manutenção de políticas que privilegiem o meio ambiente, especialmente os recursos
hídricos.

Em todo o trabalho foi possível observar que os termos “combate” e


“enfrentamento” a seca foram se deteriorando com o tempo. Além disso, a mudança
de perspectiva para a convivência com o semiárido ampliou as possiblidades de
renovação de uma região estigmatizada pela seca. Nesse contexto de renovação e
mudança, todos os esforços coletivos são importantes para efetivar políticas públicas
eficientes e permanentes que favoreçam a construção de uma nova realidade para a
população do semiárido nordestino.
22

REFERÊNCIAS

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P1+2: Programa uma terra e duas águas para um semiárido sustentável. 5º
Simpósio Brasileiro de Captação e Manejo de Água de Chuva, Teresina – PI, 2005.
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Sociedade. Florianópolis, Vol. 12, nº 24 – mai/ago. de 2013.
NEVES, Frederico de Castro. Getúlio e a seca: Políticas emergenciais na era
Vargas. Revista Brasileira de História, v. 21. Ed. ANPUH, 2001
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Centro de Gestão e Estudos Estratégicos; Banco Mundial, 2016.
RANGEL, José Messias; MARQUESAN, Fábio Freitas Schilling. A nova relação do
sertanejo nordestino brasileiro com a face visível da seca. Desenvolvimento em
Questão, v. 16, nº 42, 2018. Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
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Senado Federal, Conselho Editorial, 2019.
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