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46 ARTIGOS Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 80, p. 46-54, mar./abr. 2015
Administração Pública x Enchentes: a postura do Procurador do Estado ante os novos instrumentos urbanísticos introduzidos pela Lei Federal nº 12.608/12
é diversificada, com sistema hídrico contando com fluvial associados à dinâmica de escoamento das
oito grandes bacias hidrográficas que drenam para águas superficiais”.5 As águas da chuva, ao alcan-
o Atlântico.4 çarem um curso d’água, “causam o aumento na
A partir desse cenário continental, nas últimas vazão por certo período de tempo, temporariamente;
décadas acompanhou-se uma intensa densifica esse acréscimo na descarga d’água tem o nome de
ção e verticalização do assentamento urbano, com cheia ou enchente”.6
aumento da impermeabilização dos solos. Esse pro Vale observar que, embora exista controvérsia
cesso causou a impermeabilidade da terra dentro e, até mesmo, confusão no emprego dos termos
das bacias hidrográficas, de sorte que as áreas enchente e inundação, traduzidos dos termos flood
urbanas tornaram-se tanto as causas do aumento e flooding e, mais raramente, de inundation,7 ante
das enchentes quanto suas vítimas. E, não por outra a legislação pátria, ambos os termos podem ser
razão, nos últimos anos, o sistema de gestão das tidos como sinônimos enquanto fenômeno físico
águas passou a tomar a atenção das autoridades associado à dinâmica de escoamento das águas
públicas. superficiais, causador de consideráveis impactos
Para compreender a discussão, cumpre obser no ambiente urbano, exigindo ações e medidas
var que, apesar de a ocupação do território e a cons- específicas do Poder Público.
trução dos espaços urbanos terem sido marcadas Ao discorrer sobre a gestão de riscos, Fernando
por inúmeras barreiras ambientais e acidentes geo- Nogueira foi quem melhor apresentou o tema, assi
gráficos, a memória nacional relacionada à ocorrên- nalando que os desastres ambientais urbanos
cia e combate a desastres é pouco expressiva. brasileiros, em especial as enchentes, podem ser
Historicamente os desastres têm sido trata- atribuídos às seguintes causas:
dos como assuntos midiáticos que surpreendem
o grande público, repetem causalidades e buscam i) à grande concentração populacional nos aglome-
responsáveis a cada ocorrência, sendo que no rados urbanos do leste brasileiro [...];
caso das enchentes coincidem com os meses do ii) ao crescimento desorganizado das cidades re-
verão brasileiro. Concomitantemente, a produção sultante do intenso processo de urbanização das
de fartas estimativas das perdas e danos gerados últimas décadas [...];
por estes grandes eventos desastrosos não signi- iii) à inadequação (ou não aptidão) geotécnica das
áreas ocupadas para o uso urbano ou da sua posi-
ficou necessariamente ações diretas e eficientes
ção em relação às linhas de drenagem ou às planí-
para lidar com o tema.
cies de inundação;
É imprescindível compreender que as enchen
iv) à ocupação de áreas de menor valor imobiliário
tes representam um ônus coletivo, gerando graves por estarem situadas próximas a aterros sanitários,
problemas e conflitos no ambiente urbano. Diante depósitos de lixo e outros materiais contaminantes
disso, é essencial deixar de enxergar as cidades ou em áreas degradadas ou movimentação de terra;
apenas como união de equipamentos públicos v) à precariedade ou inadequação técnico-construti-
e privados e lugar de implementação de políticas va e de implantação das edificações;
públicas, para compreendê-las dentro de um con vi) à ausência ou insuficiência de infraestrutura e
junto de normas que as protejam também dos serviços públicos, como calçamento de acessos,
grandes desastres. drenagens, coleta de águas servidas, esgotos e co-
É fundamental convergir regras e diretrizes leta de lixo;
vii) ao déficit habitacional e ao descontrole da ocu-
que atenuem a questão da territorialização e per-
pação do solo [...];
mitam patrocinar uma articulação das medidas e
decisões a serem tomadas para o enfrentamento
das enchentes, que, além de se traduzir em ações, 5
ALBUQUERQUE FILHO, José Luiz et al. Levantamento e cadastro
situação que se acresce à comum ausência de pla- de áreas de risco de inundação, erosão e escorregamento na
nejamento e desenvolvimento urbano e de capaci- unidade hidrográfica de gerenciamento de recursos hídricos do
Piracicaba/Capivari/Jundiaí e parte do Pardo/Mogi-Guaçu e Tietê/
dade de gestão por parte dos órgãos responsáveis, Jacaré. In: DIVISÃO DE GEOLOGIA APLICADA AO MEIO AMBIENTE
demanda um olhar próprio. DE SÃO PAULO. Relatório Convênio DAEE - IPT Nº 20. Relatório
Técnico nº 77446-205. São Paulo, 2005. p. 25.
6
ALBUQUERQUE FILHO, José Luiz et al. Levantamento e cadastro
3 A definição e as causas de áreas de risco de inundação, erosão e escorregamento na
unidade hidrográfica de gerenciamento de recursos hídricos do
Piracicaba/Capivari/Jundiaí e parte do Pardo/Mogi-Guaçu e Tietê/
Primeiro é preciso compreender que “as en- Jacaré. In: DIVISÃO DE GEOLOGIA APLICADA AO MEIO AMBIENTE
chentes ou inundações são processos de natureza DE SÃO PAULO. Relatório Convênio DAEE - IPT Nº 20. Relatório
Técnico nº 77446-205. São Paulo, 2005. p. 25.
7
SOUZA, Célia Regina de Gouveia. Risco a inundações, enchentes e
alagamentos em regiões costeiras. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Disponível
4
DESASTRES NATURAIS, 2004, Florianópolis. Anais... Florianópolis:
em: <http://www.ibge.gov. br/home>. Acesso em: 2 maio 2014. GEDN/UFSC, 2004. p. 231-247.
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Fagner Vilas Boas Souza
viii) à deficiência de cultura preventiva [...]; existente em dado local num determinado momen-
ix) às fragilidades institucionais [...].8 to, podem provocar consequências danosas”.10
Cuidam-se de processos físicos naturais ou
Infelizmente, grande parcela das cidades bra socialmente produzidos, passíveis de serem iden-
sileiras abriga algum tipo de assentamento precá tificados, analisados e, “em sua maior parte, previ-
rio, normalmente distante, sem acesso, desprovido síveis, que só resultam em acidentes de dimensão
de infraestruturas e equipamentos mínimos. Essa não-aceitável (ou desastres) quando as comunida-
“é a realidade de milhares de brasileiros, entre eles des (população, infraestrutura, sistemas produti-
os excluídos dos sistemas financeiros formais da vos) estão vulneráveis a sofrerem seus impactos”.11
habitação e do acesso à terra regularizada e urba Trata-se de uma função do Poder Público, o
nizada, brasileiros que acabam ocupando as cha que importa nova configuração das normas, que
madas áreas de risco, como encostas e locais não podem mais ser concebidas como simples
inundáveis”.9 Ao mesmo tempo, em muitas cida regras de atuação do poder de polícia, nem como
des, principalmente em suas áreas centrais, uma mero capítulo do direito administrativo.
massa enorme de imóveis se encontra ociosa ou Nesse prisma, embora desde a década de
subutilizada. noventa tenham ocorrido importantes processos
Na verdade, a maior parte das ações públicas de discussões pretendendo melhorar a forma de
atuais está indevidamente voltada para medidas diagnosticar problemas existentes e previstos, bem
estruturais, como a canalização de córregos, obra como para criar soluções de um ponto de vista
que apenas transfere as enchentes para outro técnico, econômico e ambiental,12-13 foi somente
local, trazendo um prejuízo duplo, já que o pro com o grande desastre na região serrana do Rio de
blema não é resolvido, mas os recursos são dis Janeiro, em fevereiro de 2011, que se deu início
pendidos. Nem de longe, por exemplo, têm sido a uma série de medidas para buscar superar a
considerados os aspectos hidrológicos previstos fragilidade e o atraso institucional na constituição
nos planos diretores de desenvolvimento urbano de uma Plataforma Nacional de Redução de Riscos.
que, se bem elaborados, estabelecem índices de Iniciou-se um período de grandes mudanças
ocupação do solo compatíveis com a capacidade da legais e institucionais para a gestão de riscos,
macrodrenagem urbana. marcadamente com a edição da Lei Federal nº
Ou seja, apesar do cenário facilmente apre 12.593/12 e, pouco depois, com a Lei Federal nº
endido, ao invés de uma estratégia proativa de en- 12.608/12, inaugurando, assim, um novo período
frentamento adequado e eficiente em resposta a da história da gestão de riscos ambientais no
um fenômeno que repetidamente assola boa parte Brasil.14
das cidades brasileiras, o que se verifica é uma inca
pacidade do Poder Público de lidar adequadamente
com esse tipo de desastre que, irremediavelmente, 10
NOGUEIRA, Fernando Rocha. Gerenciamento de riscos ambientais
associados a escorregamentos: contribuição às políticas munici
transforma-se em tragédias. pais para áreas de ocupação subnormal. 2002. 260 f. Tese
(Doutorado) - Pós-Graduação em Geociências e Meio Ambiente -
IGCE, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, 2002.
4 A solução 11
NOGUEIRA, Fernando Rocha. Gerenciamento de riscos ambientais
associados a escorregamentos: contribuição às políticas muni
Ações que minimizem esses impactos são cipais para áreas de ocupação subnormal. 2002. 260 f. Tese
cada dia mais fundamentais à realidade de uma (Doutorado) - Pós-Graduação em Geociências e Meio Ambiente -
IGCE, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, 2002.
cidade, ainda que poucas cidades brasileiras, para 12
JOHNSSON, Rosa Maria Formiga; KEMPE, Karin Erika. Institucional
não dizer quase nenhuma, contem com um ade and policy analysis of river basin management – The Alto-Tietê
river Basin. The World Bank. 2005. Disponível em: <http://econ.
quado sistema de gestão de riscos. worldbank.org/external/default/main?pagePK=64165259&the
O gerenciamento de riscos é um processo que SitePK=469372&piPK=64165421&menuPK=64166093&entity
“se inicia quando a sociedade, ou parcela desta, ID=000016406_20050616092016>. Acesso em: 1º maio 2014.
13
Essa leitura humana faz parte de um contexto muito maior, com
adquire a percepção de que as manifestações apa- grande expressão nos idos de 2010, no episódio conhecido por
rentes ou efetivas de um certo perigo ou ameaça, Guerra da Água, caso paradigmático de tentativa de privatização
do sistema de abastecimento ocorrido em Cochabamba na Bolívia,
em que a água foi considerada – de forma expressa – um direito
humano, através da Resolução nº 64/292, de 28 de julho de
8
NOGUEIRA, Fernando Rocha. Gestão de riscos em conjuntura de 2010, editada pela Assembleia Geral da Organização das Nações
desenvolvimento no Brasil. Disponível em: <http://www.phdu. Unidas e, mais recentemente, ratificada com a Declaração do
comuv.com/attachments/article/18/Gest%C3%A3o%20de%20 Ano Internacional pela Cooperação da Água pela Organização das
Riscos %20em%20Conju ntura%20de%20Desenvolvimento%20 Nações Unidas – ONU, em 2013.
no%20Brasil%20-%20Fernando%20Roch~.pdf>. Acesso em: 22 14
Não se ignora que a partir da Constituição Federal de 1988 houve
maio 2014. uma grande mudança na questão do domínio das águas, pois
9
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Secretaria Nacional de Acessibili sob influência da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito
dade e Programas Urbanos. Disponível em: <http://www.cidades. do Mar de 1982 (convenção assinada em 10 de dezembro de
gov.br/index.php?option=com_content&view=section&layout= 1982, em Montego Bay – Jamaica, que entrou em vigor em âmbito
blog&id=7&I temid=64>. Acesso em: 30 maio 2014. internacional em 16 de novembro de 1994, e no Brasil em 1995,
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Administração Pública x Enchentes: a postura do Procurador do Estado ante os novos instrumentos urbanísticos introduzidos pela Lei Federal nº 12.608/12
Nesta mesma época (biênio 2011/2012) De fato, a PNPDEC tem por objetivo promo-
foram implantados, pelo Ministério da Ciência, ver uma série de ações que previnam a ocorrência
Tecnologia e Inovação, o CEMADEN – Centro de de desastres e mitiguem seus efeitos, se ocorridos.
Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, em Compõem-se, no caso, de objetivos traçados ao
Cachoeira Paulista/SP, e o CENAD – Centro Nacio longo dos quinze incisos do art. 5º, da referida lei,
nal de Gerenciamento de Riscos e Desastres, pelo que compreendem desde a prestação de socorro e
Ministério da Integração, bem assim metodologias assistência às populações atingidas por desastres
de cartografia geotécnica foram objetos de discus- até o moni toramento de eventos meteorológicos,
são e detalhamento para orientar as necessidades hidrológicos, geológicos, biológicos, nucleares, quí-
de mapeamento de riscos, suscetibilidade e apti- micos e outros potencialmente causadores de de-
dão à urbanização.15 sastres.
Um novo marco de gestão das enchentes Marcadamente, registre-se, a lei estabelece a
restou estabelecido. forma de atuação de cada um dos entes da federa-
ção para a redução de desastres e apoio às comu
5 A lei e as enchentes nidades atingidas, bem como fixa taxativamente
cada conjunto de competências atribuído a eles.
A Lei Federal nº 12.608/12 cria a Política
Em seu art. 2º, por exemplo, a lei aponta que
Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC e dis-
é “dever da União, dos Estados, do Distrito Federal
ciplina as ações de prevenção, mitigação, prepara-
e dos Municípios adotar as medidas necessárias
ção, resposta e recuperação voltadas à proteção e
à redução dos riscos de desastre”. E, no art. 3º,
defesa civil contra desastres no que toca aos seus
por sua vez, indica que a PNPDEC deve “integrar-se
aspectos relativos: i) à abrangência, ii) às diretrizes,
às políticas de ordenamento territorial, desenvolvi-
iii) aos fundamentos, e iv) às competências de cada
mento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças
ente. Compreendendo, nestas últimas, a compe
climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia,
tência exclusiva de cada um dos entes federais e
infraestrutura, educação, ciência e tecnologia e às
suas respectivas competências comuns.
demais políticas setoriais”.
De logo, vale registrar que o conceito de de-
Assim, a lei impõe a todos os entes a res-
sastre da referida lei aproxima-se daquele adota-
ponsabilidade pela prevenção de desastres. Veja,
do pela UM – ISDR, sigla do inglês para Estratégia
não se trata de mera obrigação distribuída ou par
Internacional para a Redução de Desastres – EIRD,
celada entre os entes, mas de verdadeira imputa-
de 2009, caracterizando-o como uma grave pertur-
ção de um único modus operandi, senão de forma
bação do funcionamento de uma comunidade ou
integrada e com o dever de compreender todos os
de uma sociedade, envolvendo perdas humanas,
materiais, econômicas ou ambientais de grande setores do meio urbano em busca de um desenvol-
extensão, cujos impactos excedem a capacidade vimento longe de riscos.
da comunidade ou da sociedade afetada de arcar E não é só. A lei, entre outras providências,
com seus próprios recursos.16 altera também a Lei de Parcelamento do Solo
Urbano e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Federal, introduzindo aos textos dos referidos diplo-
com o Decreto nº 1.530, datado de 22 de junho de 1995), o mas componentes da gestão das enchentes.
constituinte internalizou importantes institutos, transferindo Em especial, vale destacar a alteração promo
o domínio dos recursos hídricos à União ou às Unidades Fede
rativas, além de que a Lei de Recursos Hídricos incorporou uma vida no Estatuto da Cidade ao acrescer os arts. 42-A
concepção da água como direito humano, especialmente em e 42-B, estabelecendo uma série de requisitos a
função da leitura dos arts. 225, da Constituição Federal, e 2º, da
Lei nº 6.938/81- Política Nacional do Meio Ambiente, que juntos,
serem atendidos pelo plano diretor dos municípios,
justificam a qualificação da água como um direito fundamental no incluídos no cadastro nacional de municípios com
ordenamento pátrio, tendo em vista sua correlação com o direito áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de
à vida digna. Ocorre que diferentemente do que se esperava,
principalmente em relação à Lei da Política Nacional de Recursos grande impacto, inundações bruscas ou processos
Hídricos, o legislador não logrou êxito em resolver todas as geológicos ou hidrológicos correlatos.
incertezas legais relativas ao assunto, pois a política de recursos
hídricos deixa claro a que veio, senão a reforçar e estabelecer
as águas como verdadeiro bem econômico, um recurso hídrico; o
que claramente não resguarda a população sujeita às enchentes.
5.1 Modelo organizacional de combate às
15
BRASIL. Ministério da Integração. Disponível em: <http://www.phdu. enchentes
comuv.com/attachments/ article/ 18/Gest%C3%A3o%20de%20
Riscos%20em%20Conjuntura%20de%20Desenvolvimento% A política de proteção e defesa civil trazida
20no%20Brasil%20-%20Fernando%20Roch~.pdf>. Acesso em: 2
maio 2014.
pela Lei Federal nº 12.608/12 orienta que o
16
TOMINAGA L. K. et al. Avaliação de perigo a escorregamentos por gerenciamento de riscos e de desastres deve ser
meio da análise de múltiplos fatores geoambientais. CONGRESSO
BRASILEIRO DE GEOLOGIA DE ENGENHARIA E AMBIENTAL, 2008,
focado nas ações de prevenção, mitigação, prepa
Ipojuca/PE. Anais... p. 13. ração, resposta e recuperação e demais políticas
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setoriais, com o propósito de garantir a promoção nº 12.608/12 não prevê comitês de bacias hidro-
do desenvolvimento sustentável. gráficas (órgãos normativos e deliberativos, cuja
Além dos objetivos e diretrizes, a lei fixa a finalidade é promover o gerenciamento de recursos
competência dos entes da federação e cria o Siste hídricos nas suas respectivas áreas de atuação atra-
ma Nacional de Proteção e Defesa Civil – SINPDEC, vés de Planos Diretores), os quais incluem repre-
constituído pelos órgãos e entidades da Admi sentantes do Governo Federal, estados ou Distrito
nistração Pública Federal, dos estados, do Distrito Federal onde se situam (mesmo que parcialmente),
Federal e dos municípios e pelas entidades públicas municípios, usuários da água e organizações civis
e privadas de atuação significativa na área de pro de recursos hídricos com registro comprovado de
teção e defesa civil. ação na bacia. Igualmente, não há previsão de
No âmbito do Ministério da Integração, a agências dentro da bacia hidrográfica, estrutura que
Secretaria Nacional de Defesa Civil – SEDEC foi aparece na gestão de recursos hídricos, atuando
eleita o órgão central desse sistema, responsável como secretarias executivas dos Comitês de Bacias
por coordenar as ações de proteção e defesa civil Hidrográficas.
em todo o território nacional, bem como pelas ações
preventivas e pelas ações de atendimento aos afe 5.2 Os novos instrumentos urbanísticos
tados por desastres (resposta e recuperação), via
bilizadas por meio de transferência de recursos a O combate às enchentes não comporta outra
municípios e estados em situação de emergência visão senão a útil e concreta em vista dos desafios
ou estado de calamidade pública reconhecido. que devem ser enfrentados.
Além do seu órgão central, o SINPDEC é ge- Na verdade, a gestão das enchentes eleva
rido por um órgão consultivo, no caso, o Conselho um princípio que pode também ser considerado um
Nacional de Proteção e Defesa Civil – CONPDEC, método a serviço do útil: o princípio da prevenção,
além de órgãos regionais, estaduais, municipais e pois, diante da possibilidade de ocorrência de desa
setoriais, responsáveis pela articulação, coordena- tres, não pode haver inação. O risco obriga a adotar
ção e execução do SINPDEC dentro dos seus res- medidas efetivas e concretas para afastar os possí-
pectivos espaços de atuação. veis danos graves e irreversíveis. A incerteza quanto
No âmbito estadual, fixou-se a obrigação dos ao risco de desastre não pode constituir óbice para
estados de instituírem o Plano Estadual de Proteção a adoção das medidas preventivas e mitigadoras
e Defesa Civil e de identificarem e mapearem as da situação de risco.
áreas de risco, realizando estudos de identificação Impõe-se, portanto, um dever de evitar a con-
de ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades, sumação de desastres e é exatamente sobre tal
em articulação com a União e os municípios. E, a dogma que se consagra o princípio da prevenção.
estes últimos, coube ao chefe do executivo criar na Prevenir é a palavra de ordem, ou seja, devem ser
estrutura da prefeitura um órgão para realizar as priorizadas as medidas que evitem os riscos a de-
ações de defesa civil, implementando legislação sastres para que ao invés de “contabilizar e tentar
que, além de criar o órgão, estabeleça os recursos reparar os danos, sejam tomadas medidas para
orçamentários e a equipe que irá trabalhar na defe- evitar sua ocorrência”.18
sa civil, de acordo com suas particularidades. Esses cuidados devem ser ações planejadas,
Vale, ainda, registrar que andou bem a lei ao normalmente representadas por medidas estrutu-
adotar a bacia hidrográfica17 como unidade de aná- rais, que podem ser conceituadas como qualquer
lise das ações de prevenção de desastres relacio- construção física para evitar ou pelo menos reduzir
nados a corpos d’água. Isso porque, como unidade (mitigar) os possíveis impactos das ameaças ou,
básica para gestão dos recursos hídricos e até para ainda, com a aplicação de instrumentos urbanísti-
gestão ambiental como um todo, uma vez que os cos para se alcançar a resistência e a resiliência
elementos físicos naturais estão interligados pelo das cidades frente às enchentes.
ciclo da água, a opção pela bacia hidrográfica faci
lita a integração com a política de gestão de recur- 5.2.1 Desenvolvimento de cultura nacional
sos hídricos.
e comportamentos de prevenção de
A tempo, cumpre ressalvar que diferente
mente da Lei de Recursos Hídricos, a Lei Federal desastres
A Lei Federal nº 12.608/12 atribui aos entes
Segundo Granell-Pérez, a bacia hidrográfica ou bacia de drenagem
17
federais o dever de desenvolver cultura nacional de
é constituída pelo conjunto de superfícies que, através de canais
e tributários, drenam água da chuva, sedimentos e substâncias
dissolvidas para um canal principal (GRANELL-PÉREZ, M. D. C. NOGUEIRA, Ana Carolina Casagrande. Estado de Direito Ambiental:
18
Trabalhando geografia com as cartas topográficas. Ijuí-RS:UNIJUÍ, tendências, aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de
2004. p. 3). Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 199.
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Administração Pública x Enchentes: a postura do Procurador do Estado ante os novos instrumentos urbanísticos introduzidos pela Lei Federal nº 12.608/12
prevenção de desastres, destinada ao desenvolvi- Não por outra razão, a lei promove importante
mento da consciência acerca dos riscos de desas- alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
tre no país, bem como estimular comportamentos Nacional,19 incluindo os princípios da proteção e
de prevenção capazes de evitar ou minimizar a ocor- defesa civil e da educação ambiental nos currículos
rência de desastres (art. 9º, I e II, da lei). do ensino fundamental e médio de forma integrada
O que a lei quis dizer com isso? e obrigatória.
Significa o oferecimento de informações a res- Previsão, aliás, ratificada durante a IX Confe
peito de técnicas, comportamentos e atitudes que rência Nacional dos Direitos da Criança e do Ado
possam influenciar na qualidade de vida das popu- lescente,20 no Protocolo Nacional para a Proteção
lações vulneráveis a desastres. Esse estímulo deve Integral de Crianças e Adolescentes em Situação
incluir noções básicas de construção civil, seguran- de Riscos e Desastres, com o objetivo de orientar
ça, saúde, higiene, saneamento, disposição de resí os agentes públicos, a sociedade civil, o setor pri-
duos, organização social, preservação de espaços vado e as agências de cooperação internacional
públicos e áreas verdes, e tudo mais quanto possa que atuam em situação de risco e desastres no
aproximar a realidade dessa população dos ideais desenvolvimento de ações de preparação, preven-
de uma vida segura de desastres. ção, resposta e recuperação para esse grupo etário.
Nesse passo, o desenvolvimento de cultura Não distante, programas como o agente de
e estímulo de comportamentos contra desastres, defesa civil mirim, grupos de teatro e outras ativi
especialmente no caso das enchentes, ganha con- dades lúdicas também têm demonstrado grande
torno de efetivo instrumento urbanístico, como alcance para mudança cultural de comunidades
parte de um processo mais amplo que tende a atin- inteiras, em que a aproximação pela educação tem
gir os objetivos da lei e da Constituição Federal: proporcionado avanços no comportamento preven
proteção de vidas e de bens. tivo e reativo dos moradores de áreas de risco.21
É bem verdade que o instrumento em apreço Além disso, a cultura de prevenção de desas
não será capaz de suprimir por completo a ocor tres “deve ser vista como um processo de perma
rência de desastres, mas ao certo minimizará os nente aprendizagem que valoriza as diversas formas
riscos de ocorrência, de sorte que não basta colo de conhecimento e forma cidadãos com consciên
car lições teóricas ou simulações práticas relativas cia local e planetária”.22 Bem como deve ser con
à importância da recuperação e preservação do meio cebida, ainda, como um ato político, voltado para a
ambiente urbano à disposição de pequena parcela transformação social e determinante para a for
da população ou mesmo apenas das crianças que mação de sujeitos cidadãos.23
frequentam por algum tempo os bancos escolares. Cuida-se, enfim, de instrumento urbanístico do
É preciso sensibilizar, educar e engajar não só qual o Procurador do Estado, no desempenho de
as crianças ou a população das áreas de risco, suas funções, deve valer-se para patrocinar no
como também os adolescentes, adultos e toda a âmbito do seu Estado-membro uma política urbana
população do espaço urbano. organizada e projetada para longo prazo, inaugu
Por isso, o ideal é a existência de grupos de rando uma verdadeira mudança de comportamento
trabalho juntos à população, formados por membros desde os bancos escolares que, bem aplicada, pos
da população envolvida diretamente e por técnicos sivelmente propiciará em alguns anos uma geração
e profissionais, em espaços públicos ou privados, consciente e com maior capacidade de lidar com as
a fim de promover, em caráter permanente, cursos enchentes.
de formação e palestras, com o objetivo de não
apenas informar diretamente a população, mas
também criar uma verdadeira cultura de prevenção
de enchentes. 19
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as
Aliás, trata-se de medida essencial para as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://
cidades que querem ser tidas como resilientes, www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 13
jan. 2014.
isto é, com capacidade de resistir, absorver e se 20
UNICEF. IX Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do
recuperar de forma eficiente dos efeitos de um Adolescente. Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/pt/
br_9conferencia.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2014.
desastre e de maneira organizada prevenir que vidas 21
FURTADO, Janaína et al. Capacitação básica em defesa civil.
e bens sejam perdidos (direito fundamental). Ser Florianópolis: CAD UFSC, 2012. p. 92.
uma cidade resiliente requer uma união de esforços
22
JACOBI; Pedro Roberto. Meio ambiente e educação para a
cidadania: o que está em jogo nas grandes cidades? In: SATO,
entre governos locais e a sociedade civil, objetivando Michèle; SANTOS, José Eduardo dos. A contribuição da educação
aumentar o grau de consciência e compromisso ambiental à esperança de pandora. São Carlos: RIMA, 2003. p.
431-431.
em torno das práticas de desenvolvimento susten 23
CATHARINO, Rejane Conceição Arruda. Imagética dos livros
tável, como forma de diminuir as vulnerabilidades didáticos nas relações de gênero e educação ambiental. 2007.
e propiciar o bem-estar e segurança dos cidadãos. p. 92. Dissertação (Pós-Graduação em Educação) – Universidade
Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2007.
Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 80, p. 46-54, mar./abr. 2015 ARTIGOS 51
Fagner Vilas Boas Souza
5.2.2 Plano de Contingência de Proteção pelo art. 22 da Lei nº 12.608/12), para municípios
e Defesa Civil e Plano de incluídos no cadastro nacional de municípios com
Implantação de Obras e Serviços áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de
grande impacto, inundações bruscas ou processos
para a redução de riscos e
geológicos ou hidrológicos.
desastres Embora, é verdade, tratem de imposições
Para compreender esses dois novos instru- espe
cificamente dirigidas aos entes incluídos no
mentos urbanísticos, deve-se ter em mente que os cadastro nacional de municípios com áreas sus-
municípios sempre tiveram competência para ela- cetíveis à ocorrência dos desastres lá elencados,
borar planos urbanísticos e implantá-los, mas em nem por isso perdem sua natureza de instrumentos
matéria de enchentes, no entanto, poucos estabe- urbanísticos, enquanto veículos aptos a traçar os
leceram um processo de planejamento permanente, objetivos que devem ser atingidos para assegurar
na maioria das vezes por carência de meios técni- a melhor qualidade de vida da população e a inte
cos, recursos financeiros e recursos humanos. gridade de suas propriedades.
Ao lado disso, até então a União não dispunha Ademais, exigem que o Estado-membro pro-
de competência impositiva para obrigá-los a criar mova uma política articulada entre os municípios
e implantar planos urbanísticos, conseguindo a que experimentam essa situação.
implementação de medidas de gestão de enchen- O Plano de Contingência e o Plano de Implan
tes apenas por via indireta, nem sempre eficazes, tação de Obras e Serviços constituem um conjunto
porque nem sempre politicamente atraentes às de procedimentos e ações que nortearão os órgãos
administrações municipais. Na verdade, sempre fal- de defesa civil dos municípios no atendimento a
tou uma política urbana sistemática na gestão das situações de risco e emergências ocasionadas
enchentes. por fenômenos de natureza geológica, geotécnica
Somada às diferenças territoriais e geográfi- e hidráulica, que impliquem possibilidade de per-
cas que caracterizam a coletividade dos municí da de vidas, como as enchentes, possibilitando,
pios, para a conciliação e integração das medidas outrossim, a melhoria da capacidade de prevenção,
contra desastres em busca de um planejamento ur- impedindo que aconteçam ou reduzindo as suas
bano nacional, era imprescindível a vinculação dos consequências. Os planos devem traçar as ações
centros autônomos de poder em uma composição de resposta à ocorrência de desastres.
harmônica de valores locais e nacionais. O Plano de Contingência é a formalização de
Dentro desse propósito, a lei estabelece uma uma estratégia de enfrentamento dos desastres,
política nacional de gestão de enchentes calcada no qual estão descritas as características dos even-
na integração das políticas de ordenamento terri- tos a serem enfrentados, os locais possíveis de
torial, desenvolvimento urbano, saúde, meio am- acontecimento, o número provável de afetados e as
biente, mudanças climáticas, gestão de recursos ações de prevenção e resposta que o Poder Público
hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciên- estabeleceu para enfrentá-los. Dentro dessa estra-
cia, tecnologia e demais políticas setoriais, tendo tégia, todos os recursos disponíveis devem estar
em vista a promoção do desenvolvimento sustentá- catalogados e, cada setor, com sua vocação, deve
vel (parágrafo único, do art. 3º, da lei). ser listado e ter missões específicas de atuação.
Na sequência, fixa como diretriz, entre outras, Todas as disponibilidades logísticas e de recursos
a atuação articulada entre a União, os estados, o humanos devem estar catalogados, com os líderes
Distrito Federal e os municípios para redução de estabelecidos e os contatos registrados.24
desastres e apoio às comunidades atingidas (inc. I, Por sua vez, o Plano de Implantação de Obras
do art. 4, da lei). e Serviços pode ser considerado uma eficiente
E, por último, altera a Lei Federal nº 12.340/10, medida não estrutural de gerenciamento de risco,
para criar um mecanismo em que condiciona a estando consonante com o método e as técnicas
transferência de recursos oriundos de recursos da adotadas pelos mais adiantados sistemas de defe
União aos municípios incluídos no cadastro nacional sa civil internacionais e recomendadas pela Orga
de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência nização das Nações Unidas.25 Segue, aliás, o
de deslizamentos de grande impacto, inundações
bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos. 24
FURTADO, Janaína et al. Capacitação básica em Defesa Civil.
Ante esse contexto, cria dois importantes ins- Florianópolis: CAD UFSC, 2012, p. 91.
25
MACEDO, Eduardo; OGURA, Agostinho Tadashi; SANTORO, Jair. O
trumentos: i) o Plano de Contingência de Proteção e que é um Plano Preventivo de Defesa Civil. In: CARVALHO, Celso
Defesa Civil, e ii) o Plano de Implantação de Obras e Santos; GALVÃO, T. (Orgs.). Prevenção de riscos de deslizamentos em
Serviços para a redução de riscos de desastre (art. encostas: guias para elaboração de políticas municipais. Disponível
em: <http://www.defesacivil.gov.br/publicacoes/outrosautores/p
3-A, II e III, §2º, da Lei nº 12.340/10 – incluídos revencao.asp>. Acesso em: 7 jun. 2014.
52 ARTIGOS Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 80, p. 46-54, mar./abr. 2015
Administração Pública x Enchentes: a postura do Procurador do Estado ante os novos instrumentos urbanísticos introduzidos pela Lei Federal nº 12.608/12
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Fagner Vilas Boas Souza
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