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Curso de Aperfeiçoamento

Bases legais para a Conservação de Áreas úmidas no Brasil

Conteúdo Programático

• Desafios socioambientais contemporâneos à conservação de


áreas úmidas,
• Meio Ambiente na Constituição Federal,
• Instrumentos da Política Ambiental relacionados à gestão de
áreas úmidas,
• Tratados e Convenções internacionais aplicáveis à conservação
de áreas úmidas,
• Direitos Indígenas e de Populações Tradicionais em áreas
úmidas,
• Política de Recursos Hídricos e tutela jurídica de áreas úmidas,
• Participação pública na gestão de áreas úmidas e instrumentos de
responsabilização por danos socioambientais.

Coordenação: Prof. Dr. Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray


Curso de Aperfeiçoamento
Bases legais para a Conservação de Áreas úmidas no Brasil

MÓDULO IV
Política de Recursos Hídricos e tutela jurídica das áreas úmidas

Conteúdo
Neste módulo serão abordadas as características fundamentais do
Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH)
estabelecido pela Lei nº 9.433/1997, bem como os principais
instrumentos de gestão e controle dos recursos hídricos, com
destaque para os mecanismos (nacionais e internacionais) de
proteção das áreas úmidas, principalmente o Comitê Nacional de
Zonas Úmidas. Serão analisados, também, os dispositivos legais de
maior relevância na proteção das áreas úmidas. Ao final serão
examinadas algumas decisões judiciais de Tribunais Superiores,
concernentes à proteção de recursos hídricos.

1 – Água: um valioso recurso que tende à escassez


Dentre os recursos ambientais, a água se destaca por sua essencialidade e pelos desafios
impostos para sua gestão sustentável, sobretudo em virtude de sua finitude. Na realidade,
mais que um recurso ambiental, a água constitui um bem com diferenciados valores
(religiosos, sociais, econômicos) até pouco tempo considerado renovável e abundante,
mas que na atualidade, dada sua escassez, suscita conflitos entre pessoas, comunidades e
países.
Com efeito, o aumento populacional, o agravamento da degradação ambiental e o
crescimento de grandes megalópoles provocaram uma situação global de escassez e
desequilíbrio em vários aspectos dos sistemas ecológicos, inclusive na quantidade e
qualidade da água disponível, trazendo para a agenda política a questão hídrica.
Nesse contexto, o Brasil — comparado a outros países — desfruta de posição confortável,
visto que no território brasileiro se encontra cerca de 17% de toda a água disponível para
o consumo humano, quer sob a forma de cursos d’água, quer sob a forma de aquíferos;
ou seja, o Brasil conta com uma disponibilidade hídrica excepcional, sendo que até
metade deste século o país terá consumindo menos de 10% dos recursos hídricos de que
dispõe.
Não obstante, a despeito desse superávit, a distribuição espacial das águas no solo
brasileiro não é uniforme e algumas regiões enfrentam sérios problemas de
abastecimento. Dados da Agência Nacional de Águas-ANA1 indicam que 68% das águas
no Brasil estão localizadas na região Norte onde há a menor densidade populacional,
enquanto que o Centro-Oeste detém 16%, as regiões Sul e Sudeste 6% e a região Nordeste
apenas 3%. Como consequência, atualmente seis Estados brasileiros (PE, PB, DF, SE,
AL e RN) enfrentam uma situação de estresse hídrico periódico e regular, e outros três
ocasionalmente podem sofrer problemas de falta d´água (CE, SP e BA). No semiárido, a
seca e a falta de políticas públicas consistentes fazem o flagelo de milhares de brasileiros
que sobrevivem em condições subumanas. Em metrópoles, como São Paulo, Recife e

1
Agência Nacional de Águas. Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil, ANA, 221. Disponível em <
https://relatorio-conjuntura-ana-2021.webflow.io/capitulos/quanti-quali >. Acesso em 19 jul. 2022.
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Distrito Federal, a falta de planejamento aliada à contaminação de cursos d’águas torna o


abastecimento humano uma delicada questão social.
Embora a lei federal nº 11.445/2007, ao estabelecer diretrizes nacionais para o
saneamento básico, tenha representando um avanço na resolução deste grave problema
socioambiental, o inadquado tratamento de esgoto ainda consiste no principal fator de
poluição das águas, sobretudo no contexto urbano. Também afetam a qualidade das águas
o desmatamento, os efluentes da agricultura (principalmente pesticidas), mineração,
resíduos da suinocultura, entre outros; ou seja, o problema da poluição não está restrito
ao meio urbano, também no meio rural a degradação ambiental afeta mananciais
demonstrando que a gestão ambiental e o gerenciamento das águas devem ser
implementados de forma interdependente e complementar.
Além desses fatores, Tucci2 enumera outros problemas relacionados à gestão dos recursos
hídricos no Brasil:
Ø Escassez de água em algumas regiões;
Ø Enchentes periódicas nos grandes centros urbanos;
Ø Inexistência de práticas efetivas de gestão de usos múltiplos e integrados dos recursos
hídricos;
Ø Distribuição injusta dos custos sociais associados ao uso intensivo da água;
Ø Pouca participação da sociedade na gestão da água, com excessiva dependência das
ações governamentais;
Ø Costume de tomada de decisões sem a utilização prévia de métodos quantitativos de
avaliação.
Cabe salientar que tanto os problemas das enchentes, quanto a questão da escassez, afetam
mais severamente as populações de baixa renda. São os pequenos produtores rurais que
mais perdem com a seca prolongada e nos centros urbanos é na periferia que são
registrados os piores índices de saneamento. Todos esses fatores de degradação afetam,
de uma forma ou de outra, as áreas úmidas.
Apesar do grande manancial de águas existente no país, os problemas persistem e com
eles o desafio de gerir de forma sustentável os recursos hídricos e as áreas úmidas,
assegurando sua conservação em benefício das gerações presentes e futuras.

2 – Sistema de gerenciamento dos recursos hídricos


Em nosso país, o primeiro diploma legal que tratou especificamente dos recursos hídricos
foi o Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934 (Código de Águas), que pode ser
identificado como um marco significativo na gestão dos recursos hídricos, em nosso país,
embora nesse diploma legal a gestão dos recursos hídricos seja abordada unicamente sob
o viés do aproveitamento econômico das águas, destinadas, sobretudo, à produção de
energia elétrica.
A promulgação da Constituição Federal de 1988 assinalou expressivo avanço na proteção
do meio ambiente. Manteve-se o domínio público sobre as águas (estaduais e federais),

2
TUCCI, Carlos E. M., et al. Gestão da Água no Brasil. 1. ed. Brasília: UNESCO, 2001. 192 p.
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atribuindo-se à União a competência para legislar sobre recursos hídricos. Coube à lei
nacional nº 9.433/1997, assim, instituir o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos - SINGREH.
A nova lei define alguns princípios basilares para o gerenciamento dos recursos hídricos
existentes em território brasileiro, prevendo uma estrutura administrativa e estabelecendo
os instrumentos que viabilizarão efetivamente a gestão das águas em nosso país.
São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos (art. 2º): I - assegurar à atual e
às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade
adequados aos respectivos usos; II - a utilização racional e integrada dos recursos
hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;
III - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou
decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais; IV - incentivar e promover a
captação, a preservação e o aproveitamento de águas pluviais.
Essa lei foi pontualmente alterada pela lei nº 9.984/2000, que criou a Agência Nacional
de Águas – ANA. Atualmente, o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos é integrado pelos seguintes órgãos:
A) Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH: órgão colegiado, consultivo e
deliberativo, da Administração direta, com natureza técnica, constituído por
representantes dos órgãos federais com atuação no gerenciamento ou no uso de recursos
hídricos, representantes dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, além de
representantes dos usuários dos recursos hídricos e das organizações civis de recursos
hídricos. A lei nº 9.433/97 prevê também a criação dos Conselhos de Recursos Hídricos
dos Estados e do Distrito Federal, que deverão se organizar tendo como parâmetro o
correspondente órgão federal. No caso específico da Agência Nacional de Águas-ANA,
criada como autarquia, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao
Ministério do Meio Ambiente, é dotada de poder de polícia, para gerir os recursos hídricos
de domínio da União.
B) Agência Nacional de Águas - ANA: as Agências de Água foram concebidas para
exercer a função de secretaria executiva dos Comitês de Bacia Hidrográfica, realizando o
controle sobre a disponibilidade dos recursos hídricos em sua área de atuação, efetuando
a cobrança pelo uso de recursos hídricos e a administração financeira dos recursos
arrecadados. Assim, as Agências de Água devem desempenhar, além da função
executiva, um papel financeiro, servindo como apoio às atividades dos Comitês de Bacia.
C) Conselhos de Recursos Hídricos dos Estados e do Distrito Federal: Seguem os
parâmetros do respectivo Conselho Nacional.
D) Comitês de Bacia Hidrográfica: concebidos para atuar como núcleo central dessa
política, esses órgãos colegiados, além do caráter técnico, possuem uma natureza política,
constituindo o fórum onde devem ser debatidas as principais questões relacionadas à
política de recursos hídricos e suas repercussões locais, sendo, por isso, identificados no
sistema europeu como “parlamentos da água”.
Decorridos mais de vinte anos desde a publicação da Lei de Política Nacional dos
Recursos Hídricos, poucos Comitês de Bacia estão efetivamente funcionando e sem eles
a gestão participativa dos recursos hídricos se torna mera expectativa.
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Também integram o SINGREH os órgãos dos poderes públicos federal, estaduais, do


Distrito Federal e municipais cujas competências se relacionem com a gestão de recurso
hídricos.

2.1 – Instrumentos da política de águas


São aplicáveis, à política de gerenciamento dos recursos hídricos, todos os instrumentos
da Política Nacional do Meio Ambiente (lei nº 6.938/1981, art. 9º), além dos instrumentos
específicos previstos na lei nº 9.433/97 (art. 5º), dentre os quais se destacam:
A) Planos de Recursos Hídricos: Trata-se de planos diretores que são elaborados por
bacia hidrográfica, por Estado e para o país. Elaborados com base em considerações
técnicas e científicas (tendo em visa, ainda, fatores políticos e socioculturais), consistem
na base de planejamento da gestão das águas, a longo prazo. Neste plano estarão
estipulados os dados a respeito da qualidade da água, usos prioritários, disponibilidade e
demanda, metas de racionalização, diretrizes para cobrança pelo uso dos recursos
hídricos, propostas para áreas de restrição de uso, etc. O Plano Nacional de Recursos
Hídricos (PNRH – 2022/2040) foi aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos
Hídricos em 22 de março de 2022.
B) Enquadramento dos corpos d’água em classes, segundo os usos preponderantes da
água: Funciona como instrumento de controle e planejamento, permitindo a definição de
metas, visando assegurar melhor controle e manutenção dos níveis de qualidade dos
recursos hídricos, segundo parâmetros objetivos. O enquadramento dos corpos d’água
consiste no estabelecimento do nível de qualidade (classe) a ser alcançado ou mantido em
um segmento de corpo d’água ao longo do tempo, definido de acordo com as
características do corpo hídrico e seus usos preponderantes. Assim, cada corpo d’água
recebe uma classificação de acordo com a Resolução CONAMA nº 357, de 17 de março
de 2005, que estipula os critérios para classificação dos corpos d’água em doces, salgadas,
salobras e salinas (ver também: Resolução CONAMA nº 396/2008 e Resolução CNRH
nº 91/2008). Nos termos do art. 9º da lei nº 9.433/1997, o enquadramento busca
“assegurar às águas qualidade compatível com os usos mais exigentes a que forem
destinadas” bem como “diminuir os custos de combate à poluição das águas, mediante
ações preventivas permanentes”.
C) Outorga dos direitos de uso de recursos hídricos: Trata-se de ato administrativo
autorizatório, através do qual o Poder Público, exercendo um controle quantitativo e
qualitativo dos usos da água, permite o exercício dos direitos de acesso a esse recurso,
tendo em vista a capacidade do corpo hídrico objeto da solicitação e as prioridades de uso
para ele definidas no respectivo Plano de Recursos Hídricos. Submete-se ao regime da
outorga a derivação ou captação de água (em volume significativo), o lançamento em
corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos; o aproveitamento dos
potenciais hidrelétricos; entre outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a
qualidade da água existente em um corpo d’água. Os critérios gerais para a outorga foram
estabelecidos pela Resolução n.º 7 de 21/07/00, CNRH (Conselho Nacional de Recursos
Hídricos). A efetivação das outorgas deve ocorrer por meio de ato da autoridade
competente do Poder Executivo Federal, dos Estados ou do Distrito Federal, em função
da dominialidade das águas.
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D) Cobrança pelo uso de recursos hídricos: Trata-se de instrumento econômico que visa
precipuamente aumentar a eficiência na utilização dos recursos hídricos. Essa cobrança
deve contemplar a captação, a acumulação, a diluição ou qualquer outro uso que implique
alteração qualitativa ou quantitativa da água, excluindo-se apenas o uso de recursos
hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais,
distribuídos no meio rural; bem como as derivações, acumulações, captações e
lançamentos considerados insignificantes. Nesse sentido, a lei nº 9.433/97, em seu art.
19, ao estabelecer a cobrança pelo uso da água, determina que esta cobrança terá como
objetivos reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu
real valor; além de incentivar a racionalização do uso da água, e obter recursos financeiros
para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos
hídricos.
Tal como preceituam os princípios do poluidor-pagador e do usuário-pagador, este
instrumento destina-se a viabilizar a internalização dos custos ambientais que qualquer
consumo de recursos naturais acarreta. Destaca-se que somente podem ser cobrados os
usos outorgados.
E) Sistema Nacional de Informações sobre os Recursos Hídricos - SNIRH: O SNIRH tem
o propósito de fornecer subsídios para a formulação dos Planos de Recursos Hídricos,
além de reunir, divulgar e atualizar permanentemente dados sobre qualidade, quantidade,
disponibilidade e demanda pelos recursos hídricos do país. Este instrumento é de
fundamental importância para a participação pública na gestão dos recursos hídricos
existentes no Brasil.
F) Compensação a municípios: Esse instrumento foi vetado quando da promulgação da
lei. Não obstante, os municípios se valem de outras formas para obter algum tipo de
compensação pela utilização dos recursos hídricos localizados em seu território, a
exemplo da compensação financeira pelo aproveitamento dos recursos hídricos para fins
de geração de energia elétrica.

2.2 – Desafios à efetivação da Política de Recursos Hídricos no Brasil


São diversos os fatores que desafiam a efetiva implementação da Política de Recursos
Hídricos em nosso país, podendo-se destacar os seguintes:
Ø Gerenciamento contínuo do uso da água de forma a induzir seu uso racional;
Ø Desenvolvimento de políticas públicas que recuperem as condições ambientais desse
recurso;
Ø Interação entre a gestão ambiental e gerenciamento dos recursos hídricos;
Ø Uso de tecnologias poupadoras que promovam seu uso racional (captação de águas
pluviais, reuso, outras medidas de economia).
Ø Mudança de padrões culturais.
Ø Governança na gestão.
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Governança dos Recursos Hídricos


O termo governança tem sido aplicado para designar a capacidade governativa num
sentido amplo, ou seja, como o setor público e outras instituições, se administram e
como administram suas relações com a sociedade em geral. A origem do vocábulo, em
grego, significa direção. Portanto a governança envolve os mecanismos através dos
quais a economia e a sociedade são dirigidas visando objetivos coletivos.
O avanço em governança dos recursos hídricos exige o envolvimento de uma ampla
gama de atores sociais, por meio de estruturas de governança inclusivas, que
reconheçam a dispersão da tomada de decisão através de vários níveis e entidades.
É imperativo reconhecer, por exemplo, a contribuição das mulheres para a gestão local
dos recursos hídricos e seu papel nas tomadas de decisão relacionadas à água (Relatório
UNESCO, 2015). No mesmo sentido, é fundamental que se reconheça a contribuição
e seja viabilizada a participação de todos os stakeholders, incluídos os povos indígenas
e as comunidades tradicionais.
Ressalta-se, aliás, que para os povos indígenas e comunidades tradicionais a água
constitui elemento fundamental para sua organização social, possuindo sentido
multidimensional, associando-se a crenças, religiosidade, ritos, mitos, memórias,
relações políticas e práticas de reciprocidade, economia, alimentação, com
desdobramentos, enfim, sobre todos os modos de ser, fazer e viver.
Não obstante, com frequência, os modelos e práticas indígenas de gestão da água têm
sido ignorados ou simplesmente desprezados e vistos como irracionais ou como não
adequados à hegemônica lógica econômica.
Além dos aspectos de ordem política e social o uso sustentável das áreas úmidas e dos
recursos hídricos indispensáveis à sua conservação exige um gerenciamento que
considere a capacidade de suporte dos corpos hídricos, a disponibilidade dos recursos
hídricos em quantidade e qualidade suficientes, capaz de atender às necessidades das
gerações presentes e futuras, propiciando a manutenção do equilíbrio biótico, sobretudo
— no caso das áreas úmidas — o pulso de inundação.

2.3 – Pilares essenciais ao manejo dos recursos hídricos e das áreas úmidas
Por si só, a existência de normas jurídicas e de um arcabouço institucional (embora
bastante importantes) não garantem a efetividade da Política Nacional de Recursos
Hídricos, sendo necessário que o manejo desse precioso recurso (sobretudo a
implementação das políticas públicas), bem como das áreas úmidas, seja realizado com
base nas seguintes diretrizes:
Ø Sensibilização e aprofundamento da consciência da coletividade em geral, mas
principalmente das populações que habitam essas áreas, acerca da importância dos
recursos hídricos, nas suas mais diversas dimensões (econômica, ambiental, social, etc.);
Ø Implementação de programas permanentes de monitoramento e estudo dos recursos
hídricos existentes em território brasileiro, mormente no que tange à qualidade e
disponibilidade;
Ø Produção de informações cientificamente consistentes e amplamente disponibilizadas;
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Ø Desenvolvimento, consecução e manutenção de programas e ações de educação e


capacitação, principalmente com o objetivo de fomentar a capacidades das populações
residentes de perpetuarem e implementarem formas sustentáveis de desenvolvimento
social e econômico, nos moldes do uso sábio preconizado pela Convenção de Ramsar;
Ø Manutenção e aperfeiçoamento da estrutura institucional necessária à efetivação dos
objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos;
Ø Aperfeiçoamento da capacidade estatal de regulamentação e implementação das
normas de comando e controle, bem como aporte dos recursos financeiros necessários à
realização das ações de fiscalização;
Ø Permanente fomento da participação pública na gestão dos recursos hídricos e das
zonas úmidas.

2.4 – Tutela jurídica das áreas úmidas


No ordenamento jurídico brasileiro, o primeiro diploma legal a dispor especificamente
sobre recursos hídricos foi o Decreto nº 24.643/1934. Conhecido como Código de Águas,
essa norma autorizava a dessecação de terrenos pantanosos os quais poderiam ser
declarados insalubres e locais de reprodução de vetores de doenças infecciosas,
determinando que nesses casos fossem dessecados pelos proprietários, sob pena de que a
Administração o fizesse (art. 113), prática que perdurou com o aterramento de
manguezais e drenagens de áreas úmidas.
Algumas décadas mais tarde o Código Florestal (Lei nº 4.771/65) estabeleceu como áreas
de preservação permanente as áreas úmidas formadas pelo alagamento da vegetação
ciliar, delimitadas a partir da linha das enchentes ordinárias dos cursos d’água. Sem
embargo das deficiências dessa lei, a proteção conferida às APPs ciliares e por
conseguinte às zonas úmidas exerceu importante papel na proteção dessas áreas.
A lei nº 12.651/2012, por sua vez, ao instituir o Novo Código Florestal, determinou, no
art. 4o, inc. I, que as APPs ciliares passam a ser medidas desde a borda da calha do leito
regular dos cursos d’água. Este código, como um todo, foi bastante criticado pelos
retrocessos que normatizou3. Mas especificamente o referido art. 4º, inc. I, representou
um duro golpe contra as áreas úmidas brasileiras, uma vez que a alteração do critério para
a definição das APPs ciliares desconsiderou totalmente a característica ecológica mais
fundamental da maioria das áreas úmidas: sua visceral dependência do pulso de
inundação, tal como no caso dos pantanais, várzeas de rios amazônicos, etc.
O novo Código Florestal, assim, “deixou a maior parte dessas AUs desprotegidas, com
consequências desastrosas para o ciclo hidrológico, a qualidade da água, a biodiversidade
e, a médio e longo prazo, a qualidade de vida das populações ribeirinhas,4 na medida em

3
Segundo Purvim Figueiredo: “[...] representou, insofismavelmente, uma vitória da bancada ruralista
representante da classe que há cinco séculos comanda os destinos de nosso país. Trata-se do mais grave
retrocesso político e jurídico para a cidadania ambiental.” PURVIM FIGUEIREDO, Guilherme José.
Capítulo 1. Art. 1. In: MILARÉ, Édis; LEME MACHADO, Paulo Afonso (Coord.) Novo código florestal:
comentários à Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do Decreto
7.830, de 17 de outubro de 2012. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 33.
4
JUNK, Wolfgang. O equilíbrio ambiental que vem das áreas úmidas. Revista do Instituto Humanitas
Unisinos, Edição 433. São Leopoldo: IHU, 2013, p. 06-10.
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que essa mudança removeu a proteção de extensas áreas sazonalmente alagáveis do


pantanal e outros ecossistemas, anteriormente considerados de preservação permanente.
Como uma ‘compensação’ para esse retrocesso no nível de proteção, o Código Florestal
em vigência criou uma nova categoria jurídica (‘áreas de uso restrito’), na qual é permitida
a exploração ecologicamente sustentável, considerando as recomendações técnicas dos
órgãos oficiais de pesquisa.5 Ocorre que o citado dispositivo não foi regulamentado, de
sorte que ainda não foram indicados os competentes órgãos oficiais de pesquisa,
inexistindo uma sistematização das pesquisas existentes, ou mesmo de regras que definam
os procedimentos para a edição de tais recomendações. Ou seja, trata-se de norma
meramente retórica, sem nenhuma efetividade.6 Acresça-se que as áreas úmidas foram
conceituadas como sendo ‘áreas de pantanais e superfícies terrestres cobertas de forma
periódica por águas, cobertas originalmente por florestas ou outras formas de vegetação
adaptados à inundação’ (Novo Código Florestal, art. 3º, inc. XXV), o que certamente não
contempla a diversidade de áreas consideradas úmidas segundo a Convenção de Ramsar7.
As limitações do marco regulatório se somam a outros fatores que colocam sob ameaça
as áreas úmidas, denotando a necessidade de um ordenamento infraconstitucional que
discipline, individualmente, esses ecossistemas, principalmente em virtude da
diversidade8 e especificidades que lhes são peculiares.”9
O atual cenário legislativo, portanto, é marcado por um vazio normativo em relação às
áreas úmidas que, de certa forma, acabam sendo contempladas por dispositivos genéricos
(insuficientes para dar conta das especificidades ecológicas que caracterizam essas áreas
nas suas mais variadas tipologias e multifuncionalidades), restando ao Poder Judiciário,
de certa forma, interpretar o ordenamento de modo a conferir uma mais ampla e efetiva
proteção a estes espaços tão importantes para a manutenção do equilíbrio ecológico.
Não bastasse esse vazio normativo, verifica-se, ainda, a existência de iniciativas
legislativas que se propõem a flexibilizar ainda mais as genéricas normas de proteção das
áreas úmidas, a exemplo do projeto de lei estadual nº 561, já aprovado pela Assembleia
Legislativa de Mato Grosso, pendente de sanção do Governador do Estado, que permite
a realização de diversas atividades agudamente degradadoras no Pantanal Mato-
Grossense (especificamente na parcela que se encontra no território desse Estado), tal
como mineração, utilização de agrotóxicos e outras.

5
Cf. previsto na Lei n° 12.651/2012: “Nos pantanais e planícies pantaneiras, é permitida a exploração
ecologicamente sustentável, devendo-se considerar as recomendações técnicas dos órgãos oficiais de
pesquisa, ficando novas supressões de vegetação nativa para uso alternativo do solo condicionadas à
autorização do órgão estadual do meio ambiente, com base nessas recomendações” (art. 10).
6
IRIGARAY. C. T. Áreas úmidas especialmente “des” protegidas no Direito Brasileiro: o caso do Pantanal
mato-grossense e os desafios e perspectivas para sua conservação. Revista de Estudos Sociais da UFMT
vol. 34. Cuiabá: EdUFMT, 2015.
7
O Brasil enquanto país contratante da Convenção de Ramsar instituiu em 2003 o Comitê Nacional de
Zonas Úmidas (CNZU), objetivando a criação de um Plano Nacional de Zonas Úmidas com nítido intuito
de promover a devida proteção dessas áreas, o que também ainda não se efetivou.
8
No ordenamento jurídico brasileiro pode-se encontrar mais de 100 (cem) terminologias concernentes às
áreas úmidas, dentre as quais se destacam as áreas de restinga, banhado (como bem preceituado no julgado
supra), carnaubal, igapó, lagoa, manguezal, mata ciliar, pântano, nascentes e várzeas. A um só tempo este
fato expressa a variabilidade e a versatilidade dessas zonas.
9
IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney. BRAUN, Adriano. DAROLD, Fernanda Ribeiro. A
aplicação do princípio in dubio pro natura à proteção das áreas úmidas brasileiras. No prelo.
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3 – Mecanismos nacionais e internacionais de proteção das áreas úmidas


Mecanismos nacionais
Pela própria configuração ecológica das áreas úmidas, por assim dizer, tem-se que todos
os instrumentos da política de recursos hídricos de uma forma ou de outra também as
compreenderão. Ou seja, todos esses instrumentos também se prestam à proteção das
áreas úmidas. Há entretanto, um órgão colegiado (não previsto dentre os instrumentos de
política hídrica) cuja finalidade se relaciona diretamente à proteção das áreas úmidas
localizadas em território brasileiro. É o Comitê Nacional de Zonas Úmidas.
Com o objetivo de implementar as obrigações decorrentes da Convenção de Ramsar, por
meio do Decreto não enumerado de 23 de outubro de 2003, publicado no Diário Oficial
da União de 24 de outubro de 2003, foi criado o Comitê Nacional de Zonas Úmidas
(CNZU). Este comitê chegou a ser extinto pelo Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019,
sendo novamente instituído pelo Decreto nº 10.141, de 28 de novembro de 2019.
Composto por representantes do governo federal e da sociedade civil organizada, suas
competências estão discriminadas no art. 2º do referido Decreto, dentre as quais: i) propor
ao Ministério do Meio Ambiente diretrizes e ações de execução, relativas à conservação,
ao manejo e ao uso racional dos recursos ambientais, referentes à gestão das áreas
incluídas na Lista de Zonas Úmidas de Importância Internacional e, nas demais zonas
úmidas brasileiras, quando couber; ii) contribuir para elaboração de diretrizes e na análise
do planejamento estratégico que subsidiará a elaboração de um Plano Nacional de Zonas
Úmidas; iii) sugerir e avaliar a inclusão de novos sítios na Lista de Zonas Úmidas de
Importância Internacional.

Mecanismos internacionais
Dentre os diversos mecanismos jurídico-institucionais, concebidos no âmbito do direito
internacional, relativos à proteção de áreas úmidas, pode-se destacar os seguintes:
A) Lista de zonas úmidas de importância internacional – ou apenas Lista de Ramsar: A
Convenção de Ramsar de 1971 determina que, ao aderir ao tratado, o Estado deve
designar ao menos uma zona úmida de seu território para integrar a lista. Uma vez
aprovada a indicação por um corpo técnico, este local receberá, então, o título de Sítio
Ramsar, passando a fazer parte da Lista de Ramsar.
Na prática, isto significa que a partir de então, essa localidade (já reconhecida como sítio
Ramsar) passará a ser priorizada na implementação de programas internacionais de
cooperação técnica e científica. Além disso, os recursos financeiros disponíveis serão
prioritariamente aportados nessas áreas, tanto para a preservação por meio de
fiscalização, como na realização de projetos de cunho socioambiental, que envolvam as
comunidades locais.
Atualmente existem 27 sítios Ramsar em território brasileiro, contemplando todos os
biomas existentes no Brasil: Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal. Até
o momento não existe nenhum sítio Ramsar no Bioma Caatinga.
Ressalta-se que, no âmbito do território brasileiro, caberá ao Comitê Nacional de Zonas
Úmidas (CNZU) atuar junto ao poder público na consecução dos preceitos da Convenção
de Ramsar, indicando, por exemplo, novos locais para a designação como Sítios Ramsar,
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além de propor critérios e diretrizes para a elaboração de políticas públicas atinentes à


proteção de todas as áreas úmidas localizadas em território brasileiro.
B) Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH: Conforme já
mencionado no módulo III, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem se
posicionado cada vez mais firmemente no sentido de reconhecer o dever de os Estados
preservarem o meio ambiente e garantirem os direitos sociais correlacionados à proteção
ecológica, incluído o acesso à terra, aos recursos hídricos e às áreas úmidas. Assim,
conquanto o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica, de 1969) estabeleça que a CIDH tem competência para analisar apenas
violações de direitos humanos de 1ª geração (direitos civis e políticos – direito de
propriedade, liberdade de ir e vir, liberdade de expressão, direito de participação do
processo eleitoral, etc.), a Corte tem se pronunciado sobre questões ambientais “por via
reflexa”, isto é, no âmbito de processos que indiretamente tratam de conflitos ambientais,
garantindo, assim, que os indivíduos e grupos dos Estados submetidos à sua jurisdição
exerçam seus direitos socioambientais. Cumpre mencionar que as decisões proferidas
pela CIDH são irrecorríveis e têm natureza autoexecutória, não precisando ser
homologadas pelas autoridades judiciárias brasileiras.
C) Sistema de Controle de Convencionalidade: Os contornos jurídicos mais precisos do
sistema de controle de convencionalidade no direito brasileiro já foram analisados
anteriormente, sendo suficiente ressaltar que através desse mecanismo de controle o poder
judiciário brasileiro garante que os tratados internacionais de proteção ambiental
celebrados pelo Brasil serão respeitados pelas autoridades estatais, aí incluídas, por
exemplo, a Convenção de Ramsar, de 1971 e a Convenção 169 da OIT, cujos preceitos
dispõem expressamente sobre a proteção de áreas úmidas e direitos territoriais de
comunidades tradicionais. Convém lembrar, por fim, que na ADPF 708, o STF
reconheceu expressamente que os tratados internacionais de proteção ambiental são
tratados de direitos humanos, tendo, por conseguinte, status jurídico supralegal.
D) Comitês das Reservas da Biosfera: As Reservas da Biosfera – RBs são espaços
especialmente protegidos em que se busca combinar ciências sociais e da natureza com o
fito de melhorar a vida das pessoas e salvaguardar os ecossistemas naturais, incentivando
abordagens inovadoras para o desenvolvimento econômico pautado em bases
ecologicamente corretas e socialmente adequadas. Trata-se de mecanismo de
ordenamento territorial concebido no âmbito da UNESCO (Agência Especializada da
ONU para Educação, Ciência e Cultura). Cada Reserva da Biosfera será administrada por
um comitê composto por representantes do poder público e da sociedade civil, tendo por
objetivo discutir estratégias de conservação dessas localidades e aprovar o plano de ação
da RB, que consiste num documento técnico que orientará as ações implementadas na
RB. No Brasil destaca-se a Reserva da Biosfera do Pantanal, bem como a RB Mata
Atlântica e a RB Amazônia Central, em cujos territórios se localizam diversas zonas
úmidas.
E) Fundos nacionais e internacionais para a proteção ambiental: Constituem recursos
oriundos de entes governamentais e de empresas privadas destinados à implementação de
projetos os mais diversos, inclusive ações de preservação ambiental. Apenas a título de
exemplo, pode-se mencionar o Global Environment Facility (em português Fundo Global
para o Meio Ambiente), que é um dos maiores financiadores de projetos ambientais no
mundo, reunindo 183 países, bem como o Fundo Socioambiental, mantido pelo Banco
Nacional do Desenvolvimento (BNDES). Via de regra esses fundos publicam editais com
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critérios para a seleção de iniciativas e projetos de conservação, aos quais são destinados
recursos financeiros.

4 – Jurisprudência dos Tribunais


Antes de mencionar algumas decisões judiciais acerca da proteção dos recursos hídricos
e proteção das áreas úmidas, convém tecer breves considerações acerca da Declaração
dos Juízes sobre a Justiça da Água, de 2018.
Declaração dos Juízes sobre a Justiça da Água, de 2018
Em 2018, realizou-se em Brasília o 7º Fórum Mundial da Água, organizado pelo
Conselho Mundial da Água10 e pelo governo brasileiro, pela primeira vez no
Hemisfério Sul, com a participação de várias centenas de entidades e pessoas
interessadas. Em paralelo, foi feito um encontro de juízes com o apoio de Programa
Nacional das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), Organização dos Estados
Americanos (OEA), International Union for Conservation of Nature (IUCN) e Instituto
Judicial Global para o Ambiente, com a participação de juízes e ministros de tribunais
superiores de mais de cinquenta países. Em 21/3/2018, foi aprovada a Declaração de
Brasília dos Juízes sobre a Justiça da Água, estabelecendo dez princípios:
Princípio 1 - Água como um bem de interesse público: O Estado deve exercer a gestão
de todos os recursos hídricos e protegê-los, em conjunção com suas funções ecológicas
associadas, para o benefício do presente e do futuro gerações, e a comunidade de vida
terrestre.
Princípio 2 - Justiça da Água, Uso do Solo e Função ecológica da propriedade:
Qualquer pessoa com direito ou interesse de usar recursos hídricos ou a terra tem o
dever de manter as funções ecológicas e integridade dos recursos hídricos e
ecossistemas relacionados.
Princípio 3 - Respeito aos Direitos indígenas: Respeito aos direitos dos povos Indígenas
e populações tradicionais, exigindo-se o livre, consentimento, prévio e informado, para
quaisquer atividades que afetem os recursos hídricos que utilizam.
Princípios 4 e 5 - Precaução e Prevenção no uso da água: Justiça e precaução/prevenção
no uso da água para evitar medidas ex-post caras para reabilitar, tratar ou desenvolver
novos suprimentos de água.
Princípio 6 - In Dubio Pro Aqua: As leis aplicáveis devem ser interpretadas, de uma
forma mais provável de proteger e conservar os recursos hídricos e ecossistemas afins.
Princípio 7 - Princípios do poluidor-usuário pagador: Aplicação do princípio do
poluidor-usuário pagador, para a internalização dos custos ambientais externos
Princípio 8 - Justiça hídrica e boa governança hídrica: Necessárias para garantir a
transparência, responsabilidade e integridade na governança, com boas leis e
fiscalização eficazes.

10
Composta por aproximadamente 400 entidades governamentais e não-governamentais, de 60 países, o
Conselho Mundial da Água é uma organização internacional criada em 1996 que tem por objetivo
demonstrar aos líderes públicos e privados que a conservação dos recursos hídricos é uma prioridade
política vital para o desenvolvimento sustentável e equânime.
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Bases legais para a Conservação de Áreas úmidas no Brasil

Princípio 9 - Justiça da Água e Integração Ambiental: Ao julgar os casos relacionados


à água, os juízes devem ser atento à ligação essencial e indissociável que a água tem
com o meio ambiente e usos da terra.
Princípio 10 - Justiça Processual da Água: Necessária para garantir que as pessoas e os
grupos tenham acesso adequado a informações sobre recursos hídricos e, a
oportunidade de participar de forma significativa em processos de tomada de decisão.

Diversos conflitos relacionados à água têm sido submetidos à apreciação do poder


judiciário. Com base na legislação concernente aos recursos hídricos, os tribunais têm
proferido decisões alinhadas ao ordenamento constitucional brasileiro, mormente no que
tange ao dever estatal de proteção e manutenção dos processos ecológicos essenciais,
dentre os quais se insere a preservação da água em qualidade e quantidade adequadas. O
mesmo em relação às áreas úmidas, cujo vazio legal não tem impedido, de todo, a
proteção judicial e o reconhecimento do dever fundamental de conservação dessas áreas.
A seguir algumas decisões acerca da proteção dos recursos hídricos e das áreas úmidas:

Água como direito fundamental


STJ – REsp 1.697168/MS – Rel. Min. Herman Benjamin
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ARTIGOS 22 E 39 DO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ÁGUA
COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL. [...] 2. Em razão de sua
imprescindibilidade, o acesso à água potável é direito humano fundamental, de
conformação autônoma e judicializável. Elemento essencial da e para a vida e pressuposto
da saúde das pessoas, onde faltar água potável é impossível falar em dignidade humana
plena. 3. Como bem asseverou o Tribunal a quo, à luz da Constituição Federal e do
Código de Defesa do Consumidor, no fornecimento de água, serviço público essencial,
os vícios de qualidade e de quantidade acionam o regime de responsabilidade civil
objetiva, inclusive para o dano moral individual ou coletivo. Acrescente-se que é prática
abusiva o corte de água, assim como o de qualquer serviço público essencial, sem prévia
notificação do consumidor.”

Função ecológica da propriedade


STJ – REsp 1.109.778/SC – Rel. Min Herman Benjamin
“Nos regimes jurídicos contemporâneos, os imóveis − rurais ou urbanos − transportam
finalidades múltiplas (privadas e públicas, inclusive ecológicas), o que faz com que sua
utilidade econômica não se esgote em um único uso, no melhor uso e, muito menos, no
mais lucrativo uso. A ordem constitucional-legal brasileira não garante ao proprietário e
ao empresário o máximo retorno financeiro possível dos bens privados e das atividades
exercidas”
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Inexistência do direito adquirido de poluir


STJ – REsp 1.527.846/SC – Rel. Min. Regina Helena Costa
“Não há falar em direito adquirido à manutenção de situação que gere prejuízo ao meio
ambiente. Do mesmo modo, deve ser afastada a teoria do fato consumado nos casos em
que se alega a ineficácia da ação em um único imóvel ante a consolidação da área urbana”

Teoria do fato consumado


STJ – RMS 28.220/DF – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho
“Não prospera também a alegação de aplicação da teoria do fato consumado, em razão de
os moradores já ocuparem a área, com tolerância do Estado por anos [...] Isso porque, a
aceitação da teoria equivaleria a perpetuar o suposto direito de poluir, de degradar, indo
de encontro ao postulado do meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo
essencial à qualidade sadia de vida” (STJ - AgRg no RMS 28.220/DF, Rel. Min. Napoleão
Nunes Maia Filho, Primeira Turma, Dje 26/04/2017).

Princípio da precaução e inversão do ônus da prova


STJ – REsp 972.902/RS – Rel. Min. Eliana Calmon
“Justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade
potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento, a partir
da interpretação do art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985,
conjugado ao Princípio Ambiental da Precaução”

Proibição de revogação de normas fundamentais para o controle de atividades que


utilizam recursos hídricos
STF – ADPF 747/DF – Rel. Min. Rosa Weber
Reconhecimento da inconstitucionalidade da Resolução CONAMA nº 500/2020 que
revogou a Resolução CONAMA nº 284/2001(dispõe sobre o licenciamento de
empreendimentos de irrigação), a Resolução CONAMA nº 302/2002 (dispõe sobre os
parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios
artificiais e o regime de uso do entorno) e a Resolução CONAMA nº 303/2002 (dispõe
sobre parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente). A revogação
da Resolução CONAMA nº 284/2001 sinaliza dispensa de licenciamento para
empreendimentos de irrigação, mesmo que potencialmente causadores de modificações
ambientais significativas, a evidenciar graves e imediatos riscos para a preservação dos
recursos hídricos, em prejuízo da qualidade de vida das presentes e futuras gerações [...].
Estado de anomia e descontrole regulatório, a configurar material retrocesso no tocante à
satisfação do dever de proteger e preservar o equilíbrio do meio ambiente, incompatível
com a ordem constitucional e o princípio da precaução [...]. A Resolução CONAMA nº
500/2020, objeto de impugnação, ao revogar normativa necessária e primária de proteção
ambiental na seara hídrica, implica autêntica situação de degradação de ecossistemas
essenciais à preservação da vida sadia, comprometimento da integridade de processos
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ecológicos essenciais e perda de biodiversidade, assim como o recrudescimento da


supressão de cobertura vegetal em áreas legalmente protegidas.

Impossibilidade da concessão de direito de outorga de uso da água mediante Mandado


de Segurança
STJ - RMS 20.765/MG – Rel. Min Eliana Calmon
“A concessão da outorga não pode ser conferida pelo Poder Judiciário, em sede de
mandado de segurança, pois a competência de tal ato é atribuída exclusivamente a
autoridade do Poder Executivo Federal, Estadual ou Distrital. Ademais, os requisitos
para essa concessão não podem ser aferidos nesta seara processual, que sequer admite
dilação probatória.”

Competência comum para a fiscalização e preservação de águas subterrâneas


STJ - REsp 1.306.093/RJ – Rel. Min. Herman Benjamin
“A multiplicidade e a sobreposição de esferas de controle se justificam pela crescente
escassez hídrica, que afeta milhões de brasileiros nas maiores cidades do país e
incontáveis outros na zona rural, situação mais preocupante ainda diante de apavorantes
previsões de agravamento e calamidade pública na esteira de incontáveis mudanças
climáticas de origem antropocêntrica. [...] Mesmo que não fosse de domínio estadual as
águas subterrâneas em questão, ainda assim não ficaria limitada a competência ambiental
do estado, seja para legislar sobre tal ótica, seja para exercer seu poder de polícia para
evitar degradação quantitativa (superexploração e exaustão da reserva) e qualitativa
(contaminação dos aquíferos subterrâneos) de recurso natural tão precioso para as
presentes e futuras gerações.”

Proteção de nascentes
STJ – REsp 176.753/SC – Rel. Min. Herman Benjamin
“Seria um despropósito tutelar apenas as correntes mais caudalosas e as nascentes,
deixando, no meio das duas, sem proteção alguma exatamente o curso d’água de menor
valor volume ou vazão. No Brasil a garantia legal é conferida a bacia hidrográfica e a
totalidade do sistema ripário, sendo irrelevante a vazão do curso d’água. O rio não existe
sem suas nascentes e multifacetários afluentes, mesmo os menores e mais tênues, cuja
estreiteza não reduz sua essencialidade na manutenção da integridade do todo.”

Degradação de APPs e direito adquirido ambiental


STJ – REsp 1.434.797/PR – Rel. Min. Humberto Martins
“O novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, os
direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem
as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis
ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional
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intocável e intransponível da ‘incumbência’ do Estado de garantir a preservação e a


restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1º, I).”

Competência comum na proteção de áreas úmidas


TRF 4 – Apelação/Reexame Necessário 50032500720104047000/PR
“Competência comum da União, do Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para
proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, segundo o
art. 23, VI, da CF, cabendo ao Poder Público assegurar a efetividade do direito de todos
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF). Portanto, não há falar em
incompetência do IBAMA, que determinou o embargo da obra da impetrante até que o
IAP realizasse uma análise do comprometimento das áreas úmidas no local. Inadequação
da via eleita, pois necessária dilação probatória, diante da divergência quanto à existência
de áreas úmidas no local da obra no confronto entre as informações do IBAMA e do
IAP.”

REFERÊNCIAS
IRIGARAY. C. T. Áreas úmidas especialmente “des” protegidas no Direito Brasileiro: o
caso do Pantanal mato-grossense e os desafios e perspectivas para sua conservação.
Revista de Estudos Sociais da UFMT vol. 34. Cuiabá: EdUFMT, 2015.
IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney. BRAUN, Adriano. DAROLD, Fernanda
Ribeiro. A aplicação do princípio in dubio pro natura à proteção das áreas úmidas
brasileiras. No prelo.
JUNK, Wolfgang. O equilíbrio ambiental que vem das áreas úmidas. Revista do Instituto
Humanitas Unisinos, Edição 433. São Leopoldo: IHU, 2013.
PURVIM FIGUEIREDO, Guilherme José. Capítulo 1. Art. 1. In: MILARÉ, Édis; LEME
MACHADO, Paulo Afonso (Coord.) Novo código florestal: comentários à Lei 12.651,
de 25 de maio de 2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do Decreto 7.830, de 17
de outubro de 2012. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
TUCCI, Carlos E. M., et al. Gestão da Água no Brasil. 1. ed. Brasília, DF: UNESCO,
2001.

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