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Resumo: A crise hídrica em curso na cidade de São Paulo e região metropolitana, por mais
que se queira atribuí-la a efeitos climáticos, decorre de erros e opções do modelo de gestão
do tema. Diante da situação de calamidade, o governo do Estado valeu-se do jogo de
desinformação à população, sobretudo para que fosse assegurada a reeleição do
governador. Noutra ponta, demonstra o quanto à questão principal do atendimento à
população é mitigado para segundo plano, tendo em conta que apesar da falta de
investimentos pela SABESP, principal motivo para a crise hídrica, a empresa de controle
acionário do Estado e responsável pelos serviços de saneamento básico na região, não
deixou de distribuir rendimentos aos seus acionistas. A dramaticidade do tema aponta para
a necessidade de se pensar num novo paradigma administrativo, focado na governança
com sustentabilidade.
Abstract: The ongoing water crisis in the city of São Paulo metropolitan area, no one wants
to attribute it to climate effects, the result of errors and options Theme management model.
In the face of calamity situation, the state government took advantage of the population to
the disinformation game, especially for it to be assured re-election of the governor. In another
tip, demonstrates how the main issue of service to the population is mitigated to the
background, taking into account that despite the lack of investment by SABESP, the main
reason for the water crisis, the controlling shareholder company of the State and responsible
for the service sanitation in the region, did not fail to distribute income to its shareholders.
The theme of the drama points to the need to think of a new administrative paradigm,
focused on governance and sustainability.
1
Doutor em Ciência Jurídica pela UNIVALI/SC. Mestre em Direito pela UFPE. Juiz de Direito na Comarca de
Goiânia/GO. Administrador do blog: www.sedicoeswordpress.com. denivalfsilva@gmail.com.
(*) Texto escrito como aluno do Programa de Doutorada em Ciência Jurídica pela UNIVALI/SC, em 2015.
Key words: water; water crisis; public administration; population; governance; sustainability.
Introdução
2
De acordo com a Lei 9.433/1997 que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cabe a União, por sua
Agência Nacional de Águas (ANA), a autorização para que as unidades federadas possam avançar sobre o
montante mínimo dos reservatórios, no caso seu volume morto. Isso ocorreu em São Paulo e segundo alguns
especialistas, a ANA não se acurou devidamente quanto às informações prestadas pelo governo paulista,
podendo ter incorrido em equívocos e distorções. O fato é que isso serviu para compartilhar responsabilidades,
no que ficou bastante claro em entrevistas do governador Geraldo Alckmin quando mencionava a dependência
de autorização da Agência Nacional de Águas, como que transferindo o peso das decisões para o governo
federal.
3
O direito de resistência, embora esteja presente desde antes da formação dos Estados, somente com a
Declaração dos Direitos do Homem (1789) é que se fez expressamente assegurado como forma de defesa de
A esse propósito, a área de segurança pública do Estado de São
Paulo já está se preparando para lidar com possíveis conflitos sociais e
manifestações nas ruas:
direitos fundamentais básicos, dentre eles a resistência à opressão, mas somente em com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948) foi aceito pelos governantes. Desse modo, é igualmente uma garantia
fundamental, porque ninguém está fadado a viver sobre opressão e a se sujeitar ciente e silenciosamente à
supressão de direitos fundamentais. A esse propósito, vide MATTOS, Fernando Pagani; ZAGO, Gladis
Guiomar; ZART, Ricardo Emílio. Processo constitucional e direitos fundamentais. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15320-15321-1-PB.pdf>. Acesso em 20/05/2014.
4
OTTOBONI, Júlio. Seca em São Paulo é tratada como caso de Segurança Pública. Disponível em.
<http://www.defesanet.com.br/crise/noticia/17522/Seca-em-Sao-Paulo-e-tratada-como-caso-de-seguranca-
publica/>. Acesso em 10/02/2015.
das vultosas verbas publicitárias, em detrimento do compromisso com a realidade e
informação condizente com o dever de bem servir à população.
5
SERRANO, Pascual. Desinformación Cómo los médios ocultan el mundo. Barcelona: Grup Editorial
Península, 2009.
6
Algumas das frases do governador Geraldo Alckmin durante o ano de 2014 em torno da situação crítica de
abastecimento de água, coletadas pelo site BuzzFeed, em que revela publicamente o discurso enganador: 1.
momento de calamidade, onde se requer comando e presença altiva de gestores
públicos, não haverá mais lideranças que conseguirão credenciar suas falas, ainda
que sinceras, conclamando a população para sacrifícios a fim de enfrentar a crise,
em razão das anedotas que antes foram contadas.
“Não haverá racionamento em São Paulo.” (em 04/02/2014); 2. “Nós estamos preparados para a seca.” (em
04/08/2014) 3. “Não falta água em São Paulo, não vai faltar água em São Paulo.” (em 30/09/2014); 4. “A
água do volume morto é perfeita.” (em 13/05/2014); 5. “Não planejamos usar a 2ª cota do volume morto.”
(em 13/07/2014); 6. “Não há risco de racionamento de água em 2015.” (em 30/09/2014); 7. “Não há risco de
racionamento. Nós já temos repetido isso desde o início do ano.” (em 11/11/2014). In: ORRICO, Alexandre. 7
vezes em que Alckmin mentiu publicamente sobre a crise da água em SP. Disponível em:
<http://www.buzzfeed.com/alexandreorrico/7-vezes-em-que-alckmin-mentiu-publicamente-sobre-a-crise-
da?utm_term=.to4ZnGJQB#.pr1b44Zj9>. Acesso em 10/02/2015.
7
MATTES, Delmar et al. As obras e a crise de abastecimento. Le Monde Diplomatique Brasil. Ano 8, n° 90.
Janeiro 2015. p. 28.
para conter reclamos e manifestações populares, tirando ainda proveito desse fato
como artifício desviante de suas incúrias quanto à gestão hídrica.
8
FOLHA DE SÃO PAULO. Crise da água pode causar aumento de casos de dengue em SP. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/02/1585152->. Acesso em 10/02/2015.
áreas tão sensíveis, deixando inclusive de seguir os princípios e fundamentos
instituídos na legislação que rege o setor hídrico no país.9
9
A política nacional de recursos hídricos, pela qual compromissa todos os entes federados, é regida pela Lei
9.433/1997. BRASIL. Presidência da República. Lei 9.433/1997. Institui a Política Nacional de Recursos
Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art.
21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº
7.990, de 28 de dezembro de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm>.
Acesso em 10/02/2015.
10
“Sabesp distribui até 60% dos lucros aos acionistas durante governo Alckmin
Estimativas apontam que, entre 2003 e 2013, cerca de um terço do lucro líquido total da Sabesp foram
repassados aos acionistas.
Em 1994, com a justificativa de que assim conseguiria mais dinheiro para investir em abastecimento de água e
tratamento de esgoto, a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) decidiu se tornar
uma empresa de capital misto. Duas décadas depois, 50,3% de seu controle acionário se encontram nas mãos
do Estado, enquanto 47,7% das ações são de propriedade de investidores brasileiros (25,5%) e estrangeiros
(24,2%).
Embora o estatuto social da Sabesp determine que os acionistas podem receber 25% do lucro líquido anual da
empresa (relação que o mercado chama de payout), a concessionária chegou a bater recordes em distribuição
de dividendos durante o governo Geraldo Alckmin (PSDB). Em 2003, por exemplo, ano seguinte à vitória do
tucano nas urnas, 60,5% do lucro líquido da Sabesp foram parar no caixa de acionistas. Na verdade, desde a
sua entrada na bolsa de valores, em 2002, a Sabesp nunca registrou payout inferior a 26,1%.
Estimativas feitas com base nos dados divulgados em março de 2014 pela Diretoria Econômico-Financeira e
de Relações com os Investidores apontam que, entre 2003 e 2013, cerca de um terço do lucro líquido total da
Sabesp foram repassados aos acionistas. O montante é da ordem de R$ 4,3 bilhões, o dobro do que a Sabesp
investe anualmente em saneamento básico.” (In: CSB – Central dos Sindicatos Brasileiros. Sabesp distribui
até 60% dos lucros aos acionistas durante governo Alckmin. Disponível em: <http://csbbrasil.org.br/sabesp-
distribui-ate-60-dos-lucros-aos-acionistas-durante-governo-alckmin/>. Acesso em 11/02/2015).
Sobre o mesmo tema, vide também: ALVES, Cíntia; DAMASCENO, Juliana e CORREIA, Tatiane. Sabesp
distribui até 60% dos lucros aos acionistas durante governo Alckmin. Disponível em:
<http://jornalggn.com.br/noticia/sabesp-distribui-ate-60-dos-lucros-aos-acionistas-durante-governo-alckmin>.
Acesso em 11/02/2015.
finalidades de prestar serviços de saneamento com foco na universalização e
qualidade, como previsto em lei11, foi criticada pelo Ministério Público paulista:
11
BRASIL. Presidência da República. Lei 11.445/2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento
básico e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/lei/l11445.htm>. Acesso em: 10/02/2015.
12
BOULOS, Guilherme. Boulos: São Paulo rumo a uma Guerra da Água? Disponível em:
<http://outraspalavras.net/brasil/sao-paulo-rumo-a-uma-guerra-da-agua/>. Acesso em 10/02/2015.
13
Embora o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, tenha sido reeleito com larga vantagem já no primeiro
turno, em outubro, havia a disputa eleitoral à presidência da República em jogo, com candidato de seu partido,
o senador mineiro Aécio Neves, e a Presidenta da República, Dilma Rousseff, arquirrival, buscando a
reeleição.
de desabastecimento atingisse níveis críticos, tudo para evitar que medidas
impopulares pudessem respingar no resultado das urnas.
[...]
14
WHATELY, Marussia. Ensaio sobre a cegueira hídrica. Disponível em: <https://medium.com/a-conta-da-
agua/ensaio-sobre-a-cegueira-hidrica-2759ec839c74>. Acesso em 10/02/2015.
Seguindo a risco a cartilha neoliberal, os serviços de saneamento
básico, sobretudo de fornecimento de água, passaram a ser tratados como “mais”
uma atividade comercial, acompanhado a perspectiva do mercado privado, cujo
propósito é a obtenção de lucro com o menor custo possível.15
15
Numa entrevista concedida por Cláudio Lembo, ex-governador do Estado de São Paulo, crítica duramente o
governo estadual pela gestão do problema. Para ele, interesses políticos eleitorais e econômicos impediram a
adoção de medidas para redução dos efeitos da falta d´água em São Paulo, fazendo que o quadro se agravasse.
Diz ele: A Sabesp é uma empresa que alterou os seus objetivos. Ela não poderia ser uma empresa que
obtivesse lucro com a água. A água é um bem essencial que deve ser muito preservado. E a Sabesp gerava a
ideia de consumo para poder ter lucro. O que foi um grande erro. São Paulo teria que estar economizando
água desde os anos 2000. Deveria ter criado a consciência do consumo de acordo com as necessidades e não
supérfluo. É uma cidade que gasta muita água. Aprenderam a gastar água porque a Sabesp sempre projetou a
ideia de que havia água à vontade e de forma muito volumosa. E não é verdade.” (DUALIBI, Julia. Ex-
governador critica Alckmin pela falta de água em SP. Entrevista com o ex-governador Cláudio Lembo ao
Jornal Estado de São Paulo. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/julia-duailibi/ex-governador-
critica-alckmin-pela-falta-de-agua-em-sp/>. Acesso em 10/02/2015).
16
“Há 500 grandes consumidores de água da Sabesp que pagam preços excepcionalmente bons. Eles têm um
contrato que premia o consumo, quanto maior ele for, menor será o preço pago por litro de água. É a lógica
contrária à aplicada ao restante dos usuários. Mimar os melhores clientes é uma estratégia comum no mundo
empresarial, exceto pelo fato de que São Paulo atravessa a pior crise hídrica em 84 anos. [...]
O atrativo dos contratos é que todos estes clientes pagam menos do que o valor de tabela aplicado para as
atividades comerciais e industriais que desempenham. [...]
Os contratos, que incluem grandes descontos no fornecimento de água e tratamento de esgoto, foram
desenhados para fidelizar os que usam no mês pelo menos 500 metros cúbicos – ou 500.000 litros– o que
equivale ao consumo médio mensal de 128 pessoas. Mas o objetivo da Sabesp com essa estratégia,
implementada em 2002, não é só fidelizar. A companhia quer impedir que seus clientes comerciais e
industriais optem pelo uso de poços privados, conforme afirma em seu último relatório enviado aos
investidores.” (MARTÍN, María. Em plena crise hídrica, Sabesp ainda premia grandes consumidores.
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/02/12/politica/ 1423765554_696443.html>. Acesso em
14/02/2015).
atender aos interesses políticos dos gestores políticos, quase nunca afetos às reais
necessidades prioritárias da população.
17
BRASIL. Presidência da República. Lei 11.445/2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento
básico. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>. Acesso
em 10/02/2015.
18
Essa nova concepção de gestão pública surge nos anos 1990, a partir de análises de agências internacionais,
conduzidas pelo Banco Mundial, na preocupação de buscar condições que permitam a maior eficiência do
Estado, superando a percepção exclusiva com as questões de ordem econômica, para envolver-se com as
dimensões sociais e políticas da gestão pública. DINIZ, Eli. Governabilidade, Democracia e Reforma do
O fato é que não se pode mais imaginar o governo, diante dos
desafios que tem que assumir e dos compromissos a serem cumpridos, sobre o
prisma único das vontades de seus administradores. Tampouco as disputas
políticas/eleitorais e outros interesses econômicos e políticos podem interferir na
gestão da coisa pública, sobretudo se for empecilho para a realização do bem
comum e dos reais interesses da população.
Estado: Os Desafios da Construção de uma Nova Ordem no Brasil dos Anos 90. In: DADOS – Revista de
Ciências Sociais. Rio de Janeiro, volume 38, nº 3, 1995. (385-415). p. 400.
O conceito de governança, na linha que se pretende aqui
demonstrar, não se limita à tarefa gerencial e administrativa do Estado. Porquanto,
buscar a governança não elimina a figura do administrador e do próprio governante
dos quais, aliás, se quer a assunção dos legítimos papéis de condutores e
articulares do processo de transação, de discussão e de definição dos rumos a ser
seguidos por vasto embate social, planificando a partir daí as políticas públicas a
serem geridas e executadas.
19
ROSENAU, James N. Governança, Ordem e Transformação na Política Mundial. In: Rosenau, James N. e
Czempiel, Ernst-Otto. Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: Ed. Unb
e São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 11-46.
20
GONÇALVES, Alcindo. O conceito de governança. Disponível em:
<http://cgca.com.br/userfiles/file/o%20conceito%20de%20governanca%20Alcindo%20Goncalves.PDF> .
Acesso em 19/02/2015.
reclama-se a aproximação do conceito em construção da sustentabilidade
com os ditames da hermenêutica, pois se a sobrevivência humana é um
imperativo do desenvolvimento sustentável nada mais justo do que a
compreensão do fenômeno da convivialidade humana.21
22
Vide nota de rodapé de número 8.
tomar as providências emergenciais necessárias. A tardança dessas medidas só fez
agravar o quadro, mas assegurou-lhe a reeleição.
Referências bibliográficas