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CRISE HÍDRICA NA REGIÃO METROPOLITANA DA CAPITAL PAULISTA: SERIA

ESTA A GOTA D´ÁGUA PARA UMA POLÍTICA DE GOVERNANÇA E DE


SUSTENTABILIDADE?

Denival Francisco da Silva1

Sumário: Introdução. 1 A desinformação como manobra política para afastar à população


sobre a realidade; 2 Interesses econômicos e políticos deixaram as águas rolarem; 3 Por
uma política de governança e de sustentabilidade; Disposições finais; Referências
bibliográficas

Resumo: A crise hídrica em curso na cidade de São Paulo e região metropolitana, por mais
que se queira atribuí-la a efeitos climáticos, decorre de erros e opções do modelo de gestão
do tema. Diante da situação de calamidade, o governo do Estado valeu-se do jogo de
desinformação à população, sobretudo para que fosse assegurada a reeleição do
governador. Noutra ponta, demonstra o quanto à questão principal do atendimento à
população é mitigado para segundo plano, tendo em conta que apesar da falta de
investimentos pela SABESP, principal motivo para a crise hídrica, a empresa de controle
acionário do Estado e responsável pelos serviços de saneamento básico na região, não
deixou de distribuir rendimentos aos seus acionistas. A dramaticidade do tema aponta para
a necessidade de se pensar num novo paradigma administrativo, focado na governança
com sustentabilidade.

Palavras chaves: água; crise hídrica; administração pública; população; governança;


sustentabilidade.

Abstract: The ongoing water crisis in the city of São Paulo metropolitan area, no one wants
to attribute it to climate effects, the result of errors and options Theme management model.
In the face of calamity situation, the state government took advantage of the population to
the disinformation game, especially for it to be assured re-election of the governor. In another
tip, demonstrates how the main issue of service to the population is mitigated to the
background, taking into account that despite the lack of investment by SABESP, the main
reason for the water crisis, the controlling shareholder company of the State and responsible
for the service sanitation in the region, did not fail to distribute income to its shareholders.
The theme of the drama points to the need to think of a new administrative paradigm,
focused on governance and sustainability.

1
Doutor em Ciência Jurídica pela UNIVALI/SC. Mestre em Direito pela UFPE. Juiz de Direito na Comarca de
Goiânia/GO. Administrador do blog: www.sedicoeswordpress.com. denivalfsilva@gmail.com.
(*) Texto escrito como aluno do Programa de Doutorada em Ciência Jurídica pela UNIVALI/SC, em 2015.
Key words: water; water crisis; public administration; population; governance; sustainability.

Introdução

A escassez hídrica que enfrenta a sociedade paulista atingiu seu


ponto mais crítico no início de 2015, em pleno verão, estação reconhecidamente
chuvosa. Esse fato faz aumentar a preocupação quanto à dramaticidade que se
avizinha, com a possibilidade de se chegar a uma situação de verdadeira catástrofe
com o fim do período de chuvas.

A iminência da impossibilidade de fornecimento de água aos


usuários da maior prestadora desses serviços no país e uma das maiores do mundo,
a SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), empresa
de economia mista e controle acionário do Estado de São Paulo, prenuncia uma
crise sem precedentes, com consequências até aqui inimagináveis à população,
senão aos seus acionistas que continuam a auferir rendimentos.

O fato é que apesar da situação crítica instalada há mais de ano,


não se viu neste interstício uma versão oficial de crise ou alerta para que a
população se prevenisse para a possível situação de escassez crítica de água. No
claro intuito de velar a realidade o governo do Estado de São Paulo, gestor da
empresa prestadora dos serviços de abastecimento de água, não tomou a tempo
medidas de contingenciamento, e não prestou informações à população que
poderiam ao longo do tempo reduzir os sacrifícios que inevitavelmente haverão de
ser impostos.

O fato é que essa situação se anunciada no mínimo desde o


princípio do ano passado (2014). Porém o governo não “quis” acreditar nessa
hipótese, principalmente porque o que interessava era continuar fazer jorrar a
lucratividade dos acionistas. Assim, num discurso falso de imprevisibilidade preferiu
culpar São Pedro, dizendo ainda que não faltou com orações ao santo (o que pode
ser também uma heresia!) e, por isso, deixou de esclarecer a população sobre a
gravidade da situação, na crença hipócrita de que a solução viria dos céus.

A condução da questão pela opção do engodo e ilusões de que tudo


não passaria de problemas climáticos passageiros e por isso superável pela estação
chuvosa, fez com que se deixasse de reconhecer a gravidade do problema,
considerando-o apenas como um evento momentâneo administrável nas previsões e
expectativas do governo.

Entretanto, velado nessa nuvem de desinformações, fatores políticos


e econômicos determinaram o encobrimento do quadro real da escassez de água
que se acentuou rapidamente. O fato é que, sendo o governador candidato à
reeleição e preferido das elites paulistanas e dos setores econômicos, não poderia
se expor como responsável pelo fracasso na condução do problema. Nessa tarefa
de ocultar a realidade teve o beneplácito da mídia que não só deixou de expor a
dramaticidade do que estava por vir, como em nenhum momento censurou a
omissão do governo paulista em não ter apresentando a contento e no momento
certo plano emergencial. Parcela significativa da imprensa, com maior penetração na
sociedade, deixou de cumprir o papel informativo que lhe é próprio, passando a
atuar de modo preferencial por um modelo de gestão, ainda que os equívocos nas
sucessivas administrações da mesma sigla partidária no Estado já tivessem
demonstrado os erros e que agora estão sendo cobrados.

Ao negar esclarecimentos do que efetivamente já estava ocorrendo,


com generosa contribuição dos grandes meios de comunicação, o
governador/candidato promoveu um estelionato eleitoral – talvez não o suficiente
para inverter sua cômoda reeleição –, levando por água abaixo um plano imediato
que propiciasse menores sacrifícios à população. Perdeu-se, com isso, a
oportunidade de um diálogo sincero e responsável com a sociedade, e mais
agravante, gerando a desconfiança nos discursos (ainda que sinceros) que haverão
de ser feitos doravante para justificar a necessidade de medidas cada vez mais
intensas e gravosas.

Essa situação demonstra claramente como a apatia e a inversão dos


fatos podem comprometer os reais interesses públicos, impondo sérios sacrifícios à
população. Quanto mais se tarda numa situação para alertar a sociedade de uma
situação de crise, mais se complica passando de uma hipótese de sacrifícios
medianos para eventuais soluções extremas e que se tornarão inevitáveis, devido ao
acirramento do que se podia antes remediar.
No caso do abastecimento de água, o esgotamento das fontes de
captação2 deveria ter sido evitado com racionamento há mais tempo, inibindo a
escassez completa desse recurso natural pela impossibilidade de captação e de seu
consumo. Contudo, ao se postergar a tomada de medidas indesejáveis à população,
os responsáveis por estes serviços transformaram o que poderia ainda ser
administrável numa via quase insolúvel.

Com o passar do tempo sem que ações efetivas fossem tomadas,


seguidamente as alternativas com as quais ainda se poderiam contar foram
secando. Noutra ponta, a situação se tornou mais crítica com a opção suicida em
minar de tal modo o pouco recurso hídrico que ainda existia e que poderia, uma vez
admitindo-se desde antes a necessidade de racionamento, evitar a suspensão de
vez do fornecimento de água por completa escassez, como se corre o risco de
ocorrer no período de estiagem. As consequências imediatas disso recairão,
sobretudo, sobre a população mais fragilizada, também a parcela mais enganada
pelo discurso de que não haveria racionamento ou falta d’água.

Todavia, quando a seca se abater de vez e sacrifícios maiores forem


exigidos, o engodo discursivo será lembrado, podendo neste instante gerar
convulsões sociais e levantes populares com consequências inimagináveis. Nesse
cenário, a única coisa previsível será a utilização do braço armado do Estado para
conter manifestações populares, como se o direito ao pleno acesso à água fosse
mais um “ato de baderneiros”, na boa versão dos governantes que tentam
desqualificar os movimentos sociais e as reivindicações legítimas vindas das ruas.

Nesse aspecto o Estado não falha. Quando o tema é a repressão da


população, em especial as minorias políticas, há sempre uma antevisão do que
poderá ocorrer não se esperando nesse caso para se tomar medidas somente
depois que fatos de insurgência sejam exercidos por grupos sociais.3

2
De acordo com a Lei 9.433/1997 que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cabe a União, por sua
Agência Nacional de Águas (ANA), a autorização para que as unidades federadas possam avançar sobre o
montante mínimo dos reservatórios, no caso seu volume morto. Isso ocorreu em São Paulo e segundo alguns
especialistas, a ANA não se acurou devidamente quanto às informações prestadas pelo governo paulista,
podendo ter incorrido em equívocos e distorções. O fato é que isso serviu para compartilhar responsabilidades,
no que ficou bastante claro em entrevistas do governador Geraldo Alckmin quando mencionava a dependência
de autorização da Agência Nacional de Águas, como que transferindo o peso das decisões para o governo
federal.
3
O direito de resistência, embora esteja presente desde antes da formação dos Estados, somente com a
Declaração dos Direitos do Homem (1789) é que se fez expressamente assegurado como forma de defesa de
A esse propósito, a área de segurança pública do Estado de São
Paulo já está se preparando para lidar com possíveis conflitos sociais e
manifestações nas ruas:

O governo do Estado de São Paulo está preparado para possíveis


manifestações na capital paulista por falta de água. A inteligência
da Polícia Militar de São Paulo (PM/SP), trabalha concretamente com a
possibilidade de levantes sociais graves, nos quais sejam necessários a
intervenção policial. No começo deste mês integrantes da alta cúpula da
segurança pública do governo estiveram nos Estados Unidos, com a
direção da SWAT, pois há ainda o temor de ações de extremistas
infiltrados em possíveis ações populares.4

Apesar da situação crítica, deve-se tirar proveito desse fato para se


pensar da necessidade de uma política de governança e de sustentabilidade que
envolva não só o problema da água, mas todas as grandes demandas no país, de
forma a reconduzir as administrações públicas com os compromissos que atendam
os interesses do bem comum à população, evitando que fatos dramáticos como
esse que agora se vivencia possam se suceder no futuro.

1 A desinformação como manobra política para afastar à população sobre a


realidade

A manobra da desinformação é método usualmente utilizado no


mundo atual como ferramenta a serviço dos detentores do poder, sendo tática de
sua manutenção. Nisso alia-se o poder político com o poder econômico. Para o
sucesso dessa composição contam com a decisiva contribuição dos agentes de
comunicação que tem a fácil tarefa de replicar desinformações à população –
selecionando, distorcendo e criando fatos –, em troca de cotas de propagandas do
setor público e privado, envoltos nessa trama. É o pacto da não agressão em troca

direitos fundamentais básicos, dentre eles a resistência à opressão, mas somente em com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948) foi aceito pelos governantes. Desse modo, é igualmente uma garantia
fundamental, porque ninguém está fadado a viver sobre opressão e a se sujeitar ciente e silenciosamente à
supressão de direitos fundamentais. A esse propósito, vide MATTOS, Fernando Pagani; ZAGO, Gladis
Guiomar; ZART, Ricardo Emílio. Processo constitucional e direitos fundamentais. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15320-15321-1-PB.pdf>. Acesso em 20/05/2014.
4
OTTOBONI, Júlio. Seca em São Paulo é tratada como caso de Segurança Pública. Disponível em.
<http://www.defesanet.com.br/crise/noticia/17522/Seca-em-Sao-Paulo-e-tratada-como-caso-de-seguranca-
publica/>. Acesso em 10/02/2015.
das vultosas verbas publicitárias, em detrimento do compromisso com a realidade e
informação condizente com o dever de bem servir à população.

Pascual Serrano destaca que o funcionamento dos meios de


comunicação de massa, ao contrário de esclarecer, é contumaz em produzirem
desinformações constantemente. Para este autor, não existe no campo das
informações e comunicações linguagem pura e isenta, porque sempre atrelada a
interesses, principalmente à tutela econômica e/ou política. Quase sempre, e
rigorosamente, há uma falsa composição da realidade a serviço de determinados
interesses e que, com o tempo, sobretudo frente à exaustão com que se reforça o
engodo, vai conformando a opinião pública.5

Porém, mesmo num cenário de harmonia entre estas instituições


corre-se o risco de em determinado momento estourar os elos que unem essa
parceria, ou, como é mais recorrente, que por outros canais os fatos verdadeiros
sejam postos à luz e em geral isso traz enorme frustração e revolta. Quando o fato
encoberto tem larga repercussão e ao contrário do discurso repetido as evidências
revelam o inverso, não se pode mais esconder o caos sentido por aqueles que foram
antes envolvidos no engodo de falas eloquentes a partir da aparente sobriedade de
seus interlocutores.

Na situação da escassez de água na capital paulista e região


metropolitana essa estratégia foi regiamente montada. Houve uma tentativa clara e
nefasta de negar os fatos para não afetar os interesses pessoais do governador em
busca da reeleição, em detrimento do bem comum da população então envolta em
muita falação e os ganhos dos acionistas da SABESP. A sustentação do discurso de
omissão, negligente e falso, durou enquanto pode o bastante para superar o período
eleitoral para que fosse pelo ralo o voto dos eleitores que pudesse conceder ao
governador mais um mandato, o 4º do atual governador e o 6º em sequência do seu
partido no Estado de São Paulo.

Ocorre que discursos e trocadilhos linguísticos não vertem água nas


torneiras. Uma vez secas revelam o quanto de lorotas foram antes narradas.6 No

5
SERRANO, Pascual. Desinformación Cómo los médios ocultan el mundo. Barcelona: Grup Editorial
Península, 2009.
6
Algumas das frases do governador Geraldo Alckmin durante o ano de 2014 em torno da situação crítica de
abastecimento de água, coletadas pelo site BuzzFeed, em que revela publicamente o discurso enganador: 1.
momento de calamidade, onde se requer comando e presença altiva de gestores
públicos, não haverá mais lideranças que conseguirão credenciar suas falas, ainda
que sinceras, conclamando a população para sacrifícios a fim de enfrentar a crise,
em razão das anedotas que antes foram contadas.

No contexto de jogos políticos mesquinhos por disputas e temor de


perdas políticas-eleitorais, debitou-se tudo a fatores climáticos, como se as represas
tivessem secado da noite para o dia. Havia uma aposta – como qualquer jogatina,
de incerteza e probabilidade ínfima – de que viria ajuda dos céus vertendo chuvas
em abundância. No entanto, segundo estudos, mesmo numa situação mais otimista,
um bom índice pluviométrico apenas tardará um pouco mais o estágio caótico para o
qual se caminha. Conforme análise de especialistas publicada no Le Monde
Diplomatique Brasil a região metropolitana da cidade de São Paulo já se encontra no
extremo que sequer as chuvas poderão abrandar a imponderável crise a partir do
mês de abril desde ano:

Na situação a que chegamos, a vinda ou não de novas chuvas definirá o


futuro imediato, sendo apenas possível, agora, prever três cenários. No
primeiro, as chuvas ficariam abaixo, ou pouco acima da média anual da
região, o que significaria o total desabastecimento, a partir de abril de
2015, considerando o período seco subsequente do inverno. No segundo,
a atual estiagem teria continuidade durante todo o próximo verão, o que
representaria uma catástrofe. No terceiro, caso tivéssemos chuvas
excepcionalmente intensas e volumosas, superaríamos a crise desse
período, embora com risco de ela se repetir no futuro.7

O que se pode esperar a essa altura dos fatos é que a falta de


credibilidade criada pelo próprio governo não traga maiores complicações na
condução de medidas severas que haverão de ser tomadas. E mais, que as
negligências dos governantes não se transformem agora em ações policialescas

“Não haverá racionamento em São Paulo.” (em 04/02/2014); 2. “Nós estamos preparados para a seca.” (em
04/08/2014) 3. “Não falta água em São Paulo, não vai faltar água em São Paulo.” (em 30/09/2014); 4. “A
água do volume morto é perfeita.” (em 13/05/2014); 5. “Não planejamos usar a 2ª cota do volume morto.”
(em 13/07/2014); 6. “Não há risco de racionamento de água em 2015.” (em 30/09/2014); 7. “Não há risco de
racionamento. Nós já temos repetido isso desde o início do ano.” (em 11/11/2014). In: ORRICO, Alexandre. 7
vezes em que Alckmin mentiu publicamente sobre a crise da água em SP. Disponível em:
<http://www.buzzfeed.com/alexandreorrico/7-vezes-em-que-alckmin-mentiu-publicamente-sobre-a-crise-
da?utm_term=.to4ZnGJQB#.pr1b44Zj9>. Acesso em 10/02/2015.
7
MATTES, Delmar et al. As obras e a crise de abastecimento. Le Monde Diplomatique Brasil. Ano 8, n° 90.
Janeiro 2015. p. 28.
para conter reclamos e manifestações populares, tirando ainda proveito desse fato
como artifício desviante de suas incúrias quanto à gestão hídrica.

2 Interesses econômicos e políticos deixaram as águas rolarem

A mercantilização dos recursos hídricos e o encobrimento da


situação da crise, somado às pretensões pessoais do governador de São Paulo e
seu grupo político, em detrimento dos interesses de satisfação e preservação da
água como bem fundamental e vital da população, demonstrou a indiferença com o
risco de escassez e a irresponsabilidade gerencial no setor.

A crise trará efeitos sem precedentes, com consequências humanas


muito sérias, em especial às pessoas mais fragilizadas econômicas e socialmente, e
nessa grande parcela os grupos etários e físicos mais debilitados, em especial os
incapacitados de resolverem suas próprias necessidades, como as crianças, idosos
e aqueles enfermos que dependem do auxílio e assistência permanente de terceiros.

Não obstante a tentativa dos governantes de velarem a crise hídrica,


os reflexos negativos já são sentidos no setor econômico, afetando a atividade
industrial, comercial e a agricultura. Justamente os pequenos negócios e que
dependem mais da ação do Estado ou do uso direto da água é que ressentem da
restrição de consumo de água mais imediatamente. O setor de serviços como de
cabelereiros, de pet shops, de lavanderias, de restaurantes, entre outros, não
funcionam de modo algum se não houver água disponível.

O agronegócio, setor que causa a maior sangria dos recursos


hídricos, tocou ainda assim os grandes pivôs e lavouras irrigadas no centro-sul do
país enquanto possível, contribuindo para minar mais rapidamente os estoques
d’água existentes. Os rebanhos, sedentos, tiveram que ser reduzidos. As atividades
nas pequenas e médias lavouras de hortaliças, reféns exclusivos da abundância de
água, cujo grande centro produtor do país está exatamente no entorno da região
metropolitana, sofreram imediatos revés com a redução do plantio e por
consequência da produtividade. Diminuindo a produção de alimentos, provocou a
demanda e a valorização dos produtos trouxe impacto direto e imediato nos índices
inflacionários.

Na área da saúde pública outros efeitos importantes sucederam. O


simples fato de a população preocupar-se com a necessidade de armazenar água,
sobretudo colhida das chuvas, sem adequar os recipientes coletores para vedá-los
para evitar a proliferação do aedes aegypti, mosquito vetor do vírus da dengue, já
elevou no mês de janeiro do corrente ano em mais de 150% o número de casos da
doença em São Paulo.8 Isso, todavia, ainda é uma decorrência secundária que
implica na mudança comportamental da própria sociedade. Porém, o mais grave, é o
aproveitamento da água retirada dos volumes mortos das represas para atender à
população, cuja qualidade é bastante questionada pela quantidade de substâncias,
sobretudo metais pesados, que se acumulam e sedimentam no fundo das
barragens, tornando essa água inapropriada para o consumo humano.

No plano social, a falta d’água em prédios públicos, como creches,


escolas e hospitais, provoca uma situação crítica em cascata (mesmo sem água!).
Sem poder manter os filhos em creches ou mandá-los para a escola, pais têm que
ficar em casa sem condições de comparecerem aos seus postos de trabalho,
deixando de ter rendimentos e correndo o risco de perderem os próprios empregos,
e que por sua vez afeta todo ciclo econômico.

Em relação ao atendimento nos hospitais a carência de água é ainda


mais dramática. Se por um lado a falta d’água motiva a população a buscar soluções
não muito adequadas, inclusive fontes hídricas sem tratamento, o que contribui para
maior incidência de enfermidades, por outro, a escassez de água nos próprios
centros de atendimento à saúde, fica comprometido reforçando as seríssimas
consequências aos pacientes e à população em geral.

Esses problemas aqui enumerados – apenas a título de


exemplificação – trazem e causam efeitos danosos a toda população. Não é apenas
(o que já é muito) uma questão de escassez de água, mas uma série de
consequências daí decorrentes e que impactam diretamente a economia e o bem
estar da população.

Não obstante a previsibilidade dessas intercorrências, as


administrações insistem em erros gerenciais, falhas e faltas de planejamento em

8
FOLHA DE SÃO PAULO. Crise da água pode causar aumento de casos de dengue em SP. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/02/1585152->. Acesso em 10/02/2015.
áreas tão sensíveis, deixando inclusive de seguir os princípios e fundamentos
instituídos na legislação que rege o setor hídrico no país.9

A ausência de esclarecimentos à população, com a adoção a tempo


e a hora de medidas que pudessem minimizar os problemas e preparar para o
futuro, por mais ingratas que fossem, é parte desse erro gerencial.
Contraditoriamente a ideia de incentivo à redução de consumo, a SABESP, empresa
prestadora dos serviços de saneamento na capital de São Paulo e região
metropolitana, com controle acionário estatal, nos últimos anos estimulou o consumo
para ampliação de seus ganhos. E isso se deu há alguns anos quando a empresa
abriu seu capital com suas ações negociadas na bolsa de valores, transformando a
atividade essencial para a população em mais um empreendimento comercial com
pretensão primordial de lucro.10

A lógica da subordinação do abastecimento da população à


satisfação dos interesses dos acionistas, desprezando os seus reais objetivos e

9
A política nacional de recursos hídricos, pela qual compromissa todos os entes federados, é regida pela Lei
9.433/1997. BRASIL. Presidência da República. Lei 9.433/1997. Institui a Política Nacional de Recursos
Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art.
21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº
7.990, de 28 de dezembro de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm>.
Acesso em 10/02/2015.
10
“Sabesp distribui até 60% dos lucros aos acionistas durante governo Alckmin
Estimativas apontam que, entre 2003 e 2013, cerca de um terço do lucro líquido total da Sabesp foram
repassados aos acionistas.
Em 1994, com a justificativa de que assim conseguiria mais dinheiro para investir em abastecimento de água e
tratamento de esgoto, a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) decidiu se tornar
uma empresa de capital misto. Duas décadas depois, 50,3% de seu controle acionário se encontram nas mãos
do Estado, enquanto 47,7% das ações são de propriedade de investidores brasileiros (25,5%) e estrangeiros
(24,2%).
Embora o estatuto social da Sabesp determine que os acionistas podem receber 25% do lucro líquido anual da
empresa (relação que o mercado chama de payout), a concessionária chegou a bater recordes em distribuição
de dividendos durante o governo Geraldo Alckmin (PSDB). Em 2003, por exemplo, ano seguinte à vitória do
tucano nas urnas, 60,5% do lucro líquido da Sabesp foram parar no caixa de acionistas. Na verdade, desde a
sua entrada na bolsa de valores, em 2002, a Sabesp nunca registrou payout inferior a 26,1%.
Estimativas feitas com base nos dados divulgados em março de 2014 pela Diretoria Econômico-Financeira e
de Relações com os Investidores apontam que, entre 2003 e 2013, cerca de um terço do lucro líquido total da
Sabesp foram repassados aos acionistas. O montante é da ordem de R$ 4,3 bilhões, o dobro do que a Sabesp
investe anualmente em saneamento básico.” (In: CSB – Central dos Sindicatos Brasileiros. Sabesp distribui
até 60% dos lucros aos acionistas durante governo Alckmin. Disponível em: <http://csbbrasil.org.br/sabesp-
distribui-ate-60-dos-lucros-aos-acionistas-durante-governo-alckmin/>. Acesso em 11/02/2015).
Sobre o mesmo tema, vide também: ALVES, Cíntia; DAMASCENO, Juliana e CORREIA, Tatiane. Sabesp
distribui até 60% dos lucros aos acionistas durante governo Alckmin. Disponível em:
<http://jornalggn.com.br/noticia/sabesp-distribui-ate-60-dos-lucros-aos-acionistas-durante-governo-alckmin>.
Acesso em 11/02/2015.
finalidades de prestar serviços de saneamento com foco na universalização e
qualidade, como previsto em lei11, foi criticada pelo Ministério Público paulista:

O Ministério Público, por meio do promotor Rodrigo Sanches Garcia,


denunciou também a lógica de subordinar o abastecimento da população
ao lucro dos acionistas da Sabesp. Diz ele: “A intenção da Sabesp era tirar
água enquanto pudesse, inclusive para não ter que decretar racionamento.
Sempre com a lógica, não da preservação do sistema, mas do quanto se
pode retirar de água. Porque água é dinheiro”.

E mais: “Neste período (2012 e 13), o Sistema Cantareira foi responsável


por 73,2% da receita bruta operacional da empresa, denotando a
superexploração daquele sistema produtor que não mais conseguiu se
recuperar diante da gravidade do atual evento climático de escassez”.

Portanto, deixem são Pedro em paz! O problema climático apenas


evidenciou a política privatizadora de jorrar lucros para acionistas em
detrimento dos investimentos necessários para que as torneiras jorrassem
água. Mas o preço agora pode sair alto.12

A partir dessa opção pela busca de lucros, a SABESP reduziu os


investimentos necessários para atender satisfatoriamente a população. Com
ausência de planejamento para longo prazo e projetos de equacionamento da
situação iminente que se abatia com a falta de abastecimento, o governo paulista
preferiu acreditar na supremacia dos céus para encher os reservatórios, na velha
concepção da abundância.

De outro lado, o Estado acionista majoritário da empresa, ingeriu


politicamente na sua administração, a partir de determinações que saíam (e ainda
saem) do palácio dos Bandeirantes. Por razões eleitorais o governo negou, ao
menos até a passagem do pleito eleitoral em seu 2º turno 13, o risco de escassez de
água, deixando de tomar quaisquer providências efetivas para evitar que o problema

11
BRASIL. Presidência da República. Lei 11.445/2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento
básico e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/lei/l11445.htm>. Acesso em: 10/02/2015.
12
BOULOS, Guilherme. Boulos: São Paulo rumo a uma Guerra da Água? Disponível em:
<http://outraspalavras.net/brasil/sao-paulo-rumo-a-uma-guerra-da-agua/>. Acesso em 10/02/2015.
13
Embora o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, tenha sido reeleito com larga vantagem já no primeiro
turno, em outubro, havia a disputa eleitoral à presidência da República em jogo, com candidato de seu partido,
o senador mineiro Aécio Neves, e a Presidenta da República, Dilma Rousseff, arquirrival, buscando a
reeleição.
de desabastecimento atingisse níveis críticos, tudo para evitar que medidas
impopulares pudessem respingar no resultado das urnas.

Esse fato é constatável a partir de informações técnicas sobre a


situação que se apresentava e, pior, mesmo com a advertência de que quanto mais
tardasse para se tomar providências, mais se agravaria a situação com o risco de se
alternativas secundárias. Diversos técnicos, estudiosos e comentaristas políticos
criticaram duramente a estratégia adotada de desrespeito e desserviço à população,
como esclarece Marussia Whately, um dos especialistas do setor:

O governador terminou o ano dizendo que não teríamos racionamento e


que não haveria falta d’água. E começou 2015 dizendo que existe o
racionamento e que pode ser que falte água.

Se fosse um novo governador, a gente até poderia aceitar, mas se trata do


mesmo cara. Então tem uma questão aí: a forma como a crise foi
conduzida nos fez perder muito tempo em termos de ações para chegar a
um nível seguro em abril.

[...]

O padrão de chuvas, repito, foi aquém da média histórica, mas houve o


acúmulo de infelicidades. Uma que é certamente muito grave foi a
ausência de visão estratégica mínima do responsável, que é o governo
estadual paulista. Ele deveria ter liderado a gestão da água, mas perdeu
um ano negando a existência da crise, afirmando para a população que
não faltaria água, criando uma medida que foi o bônus, apresentado como
uma alternativa ao racionamento. Só que o bônus ele é muito questionável
porque descapitaliza a empresa. Diminui a capacidade de investimento da
Sabesp. Do ponto de vista econômico, no momento de escassez de um
produto, você baixar o preço dele, é um contrassenso.

Durante os nove meses de campanha, não se conseguiu mudar o padrão


de consumo. Metade dos consumidores aderiu e reduziu 20% o gasto de
água. Um em cada quatro reduziu, mas não atingiu a meta. E um em
quatro aumentou o consumo. A verdade é que junto com o bônus teria de
ter a sobretaxa para o excesso de consumo e uma série de ações.14

14
WHATELY, Marussia. Ensaio sobre a cegueira hídrica. Disponível em: <https://medium.com/a-conta-da-
agua/ensaio-sobre-a-cegueira-hidrica-2759ec839c74>. Acesso em 10/02/2015.
Seguindo a risco a cartilha neoliberal, os serviços de saneamento
básico, sobretudo de fornecimento de água, passaram a ser tratados como “mais”
uma atividade comercial, acompanhado a perspectiva do mercado privado, cujo
propósito é a obtenção de lucro com o menor custo possível.15

Com visão puramente mercadológica, quando já se sentia o


problema de demanda de água, a SABESP manteve o incentivo ao maior consumo
aos grandes usuários, contemplando-os (consumidores premium) com redução no
valor das faturas, enquanto deixou de fazer os investimentos necessários para
assegurar a plena prestação de serviços à população. Essa política de maior
consumo justifica-se no único propósito de que não falte dividendos a ser
distribuídos aos seus cotistas, inclusive ao próprio Estado de São que detém mais
de 50% do seu controle acionário.16

Adrede a essa visão da iniciativa privada, a SABESP, como de resto


boa parte das empresas concessionárias desses serviços Brasil afora, sofreu as
ingerências políticas dos governantes, relegando seu efetivo papel de prestação de
serviços de saneamento básico e fornecimento de água para consumo humano.
Nisso falhou quanto ao planejamento, eficiência e programação para o futuro, para

15
Numa entrevista concedida por Cláudio Lembo, ex-governador do Estado de São Paulo, crítica duramente o
governo estadual pela gestão do problema. Para ele, interesses políticos eleitorais e econômicos impediram a
adoção de medidas para redução dos efeitos da falta d´água em São Paulo, fazendo que o quadro se agravasse.
Diz ele: A Sabesp é uma empresa que alterou os seus objetivos. Ela não poderia ser uma empresa que
obtivesse lucro com a água. A água é um bem essencial que deve ser muito preservado. E a Sabesp gerava a
ideia de consumo para poder ter lucro. O que foi um grande erro. São Paulo teria que estar economizando
água desde os anos 2000. Deveria ter criado a consciência do consumo de acordo com as necessidades e não
supérfluo. É uma cidade que gasta muita água. Aprenderam a gastar água porque a Sabesp sempre projetou a
ideia de que havia água à vontade e de forma muito volumosa. E não é verdade.” (DUALIBI, Julia. Ex-
governador critica Alckmin pela falta de água em SP. Entrevista com o ex-governador Cláudio Lembo ao
Jornal Estado de São Paulo. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/julia-duailibi/ex-governador-
critica-alckmin-pela-falta-de-agua-em-sp/>. Acesso em 10/02/2015).
16
“Há 500 grandes consumidores de água da Sabesp que pagam preços excepcionalmente bons. Eles têm um
contrato que premia o consumo, quanto maior ele for, menor será o preço pago por litro de água. É a lógica
contrária à aplicada ao restante dos usuários. Mimar os melhores clientes é uma estratégia comum no mundo
empresarial, exceto pelo fato de que São Paulo atravessa a pior crise hídrica em 84 anos. [...]
O atrativo dos contratos é que todos estes clientes pagam menos do que o valor de tabela aplicado para as
atividades comerciais e industriais que desempenham. [...]
Os contratos, que incluem grandes descontos no fornecimento de água e tratamento de esgoto, foram
desenhados para fidelizar os que usam no mês pelo menos 500 metros cúbicos – ou 500.000 litros– o que
equivale ao consumo médio mensal de 128 pessoas. Mas o objetivo da Sabesp com essa estratégia,
implementada em 2002, não é só fidelizar. A companhia quer impedir que seus clientes comerciais e
industriais optem pelo uso de poços privados, conforme afirma em seu último relatório enviado aos
investidores.” (MARTÍN, María. Em plena crise hídrica, Sabesp ainda premia grandes consumidores.
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/02/12/politica/ 1423765554_696443.html>. Acesso em
14/02/2015).
atender aos interesses políticos dos gestores políticos, quase nunca afetos às reais
necessidades prioritárias da população.

Isso fica de forma evidente a partir da constatação de que ao longo


dos últimos 30 anos muita malha asfáltica foi implantada em centros urbanos
brasileiros, mas pouquíssimos trechos, ou quase nenhum, e ainda assim isso
somente ocorreu mais recentemente, depois da Lei 11.445/2007 (Estabelece
diretrizes nacionais para o saneamento básico)17, foram precedidos de instalações
de redes de fornecimento de água e coletoras de esgoto.

Ocorre que os serviços essenciais de saneamento básico, com


redes de água e esgoto não são realizados exigindo que futuramente sejam feitos
rasgos na estrutura das vias asfaltadas, causando mais transtornos e maiores
gastos. E a razão para isso é muito simples. É que os recursos destinados aos
serviços de saneamento básico ficam literalmente “enterrados”, deixando de dar
visibilidade, feito São Tomé (a olhos vistos) à população, e por isso a falta de
prioridade dada pelos governantes.

3 Por uma política de governança e de sustentabilidade

Os momentos de crises, mais do que esforços para que sejam


superados, é a oportunidade para rever o passado e projetar o futuro, deixando de
incorrer nos erros que propiciaram sua incidência. Nesse sentido, o momento é mais
que oportuno para se pensar numa política governamental com maior participação
democrática, com a atuação de segmentos da sociedade civil e informações
detalhadas e claras à população.

Para tanto, é preciso administrar sob o paradigma de uma


governança e que pode ser compreendido como uma perspectiva além da simples
existência de um governo, mas no contexto das ações governamentais e de como
se é exercido o poder.18

17
BRASIL. Presidência da República. Lei 11.445/2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento
básico. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>. Acesso
em 10/02/2015.
18
Essa nova concepção de gestão pública surge nos anos 1990, a partir de análises de agências internacionais,
conduzidas pelo Banco Mundial, na preocupação de buscar condições que permitam a maior eficiência do
Estado, superando a percepção exclusiva com as questões de ordem econômica, para envolver-se com as
dimensões sociais e políticas da gestão pública. DINIZ, Eli. Governabilidade, Democracia e Reforma do
O fato é que não se pode mais imaginar o governo, diante dos
desafios que tem que assumir e dos compromissos a serem cumpridos, sobre o
prisma único das vontades de seus administradores. Tampouco as disputas
políticas/eleitorais e outros interesses econômicos e políticos podem interferir na
gestão da coisa pública, sobretudo se for empecilho para a realização do bem
comum e dos reais interesses da população.

Assim é que, acima das rivalidades políticas e ideológicas, para uma


política de boa governança exige-se o envolver de setores da sociedade na
administração da coisa pública e da participação inclusive dos partidos políticos
opositores com suas críticas e propostas. Para tanto é necessário viabilizar canais
de participação ativa dos agentes sociais, que poderão democraticamente atuar na
gestão dos grandes temas de interesses da população, propiciando a formulação e
execução de políticas públicas que cumpram as funções delineadas ao poder
público, como de regra estabelecidas no texto fundante do Estado por sua
Constituição.

A boa governança reflete também num governo preocupado com a


sustentabilidade. Nada mais exemplificativo do que a questão hídrica, em especial o
uso da água para o consumo humano, para demonstrar a urgência de preservação
desse recurso natural, a fim de que seja tratado de forma sustentável. A ilusão de
perenidade levou ao descuido, chegando à situação de escassez exatamente por
ausência de uma política de sustentabilidade desse recurso vital.

É preciso perceber que no mundo atual, de tantas crises e


fenômenos que transcendem as esferas territoriais e locais, o exercício do poder
político compromissado com a prática de uma boa governança é essencial para
promoção do desenvolvimento sustentável, incorporando crescimento econômico
com respeito aos direitos fundamentais e à igualdade. Para alcance desse
desiderato é imprescindível que o processo decisório seja cotejado por articulações
entre os setores públicos e privado, sem menosprezar nenhuma força social, em
especial das minorias geralmente sufocadas e relegadas, inclusive e
equivocadamente, como se essa exclusão fizesse parte do processo democrático.

Estado: Os Desafios da Construção de uma Nova Ordem no Brasil dos Anos 90. In: DADOS – Revista de
Ciências Sociais. Rio de Janeiro, volume 38, nº 3, 1995. (385-415). p. 400.
O conceito de governança, na linha que se pretende aqui
demonstrar, não se limita à tarefa gerencial e administrativa do Estado. Porquanto,
buscar a governança não elimina a figura do administrador e do próprio governante
dos quais, aliás, se quer a assunção dos legítimos papéis de condutores e
articulares do processo de transação, de discussão e de definição dos rumos a ser
seguidos por vasto embate social, planificando a partir daí as políticas públicas a
serem geridas e executadas.

Resumindo a temática sobre governança, da qual se espera para


tomada de decisões e imposições de ações importantes da vida pública, cabe
reproduzir a exposição de Rosenau que assim conceitua:

[...] governança é um fenômeno mais amplo que governo; abrange as


instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais,
de caráter não-governamental, que fazem com que as pessoas e as
organizações dentro da sua área de atuação tenham uma conduta
determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas
demandas.19

É importante enfatizar a distinção entre governança de


governabilidade, para que não se retorne à própria ação de gestão da administração
pública que não pode deixar de existir. Assim, enquanto a governabilidade tem uma
dimensão essencialmente estatal, vinculada ao sistema político-institucional, a
governança opera num plano mais amplo, englobando a sociedade como um todo.20

Por seu turno, a sustentabilidade, como advertem Alexandre de


Morais Rosa e Márcio Ricardo Staffen, trata-se de uma idealidade, devendo ser
construído constantemente, e por isso mesmo, é um conceito aberto, permeável,
ideologizado, dialético. E então sintetizam:

O que é considerado sustentável num período de profunda crise


econômica pode não o ser num período de fartura. Em verdade, é mais
fácil identificar as situações de insustentabilidade. Por tais razões,

19
ROSENAU, James N. Governança, Ordem e Transformação na Política Mundial. In: Rosenau, James N. e
Czempiel, Ernst-Otto. Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: Ed. Unb
e São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 11-46.
20
GONÇALVES, Alcindo. O conceito de governança. Disponível em:
<http://cgca.com.br/userfiles/file/o%20conceito%20de%20governanca%20Alcindo%20Goncalves.PDF> .
Acesso em 19/02/2015.
reclama-se a aproximação do conceito em construção da sustentabilidade
com os ditames da hermenêutica, pois se a sobrevivência humana é um
imperativo do desenvolvimento sustentável nada mais justo do que a
compreensão do fenômeno da convivialidade humana.21

Partindo das premissas desses autores, é mais fácil compreender


situações de insustentabilidade, e que por certo, identifica-se com a realidade
vivenciada atualmente na cidade de São Paulo e sua região metropolitana em
virtude da crise hídrica enfrentada. É palatável, como referenciado anteriormente,
que esse estado de coisas deveu-se a uma série de equívocos e omissões na
gestão dos recursos hídricos. Por mais que os governantes tentem se esquivar da
responsabilidade pela situação atual, é evidente que tudo isso decorreu de
sucessivas administrações despreocupadas com o planejamento do setor, não
obstante as advertências quanto a possibilidade de uma crise hídrica, agora
transformada em escassez definitiva, existissem há mais de uma década.

Entretanto, frente a uma política de governança, é preciso


reconhecer as falhas para que seja possível a inversão de rota, não só para dar
soluções à situação crítica instalada, como para gerenciar políticas para o futuro
com propósito de sustentabilidade, voltadas a universalização dos serviços de
saneamento básico, sem riscos de novos desabastecimentos, e como rigor na
qualidade, em especial da água disponibilizada para o consumo humano. Para isso
diversas ações haverão de ser tomadas, imediatas, de médio e de longo prazo, mas
com a certeza do planejamento continuado que transcenda uma gestão
administrativa. O tema é de suprema relevância e não pode ser joguete em disputas
políticas.

E que o aprendizado, por mais que dolorido, sirva de alerta para


outras esferas administrativas, no sentido de se anteciparem as questões mais
importantes da vida pública e do bem comum. Não há outro caminho senão buscar,
por meio da governança, alternativas amplamente debatidas junto à sociedade para
os problemas. A partir de então, definir e executar políticas públicas no presente e
para o futuro, sempre na da sustentabilidade, evitando ou no pior das hipóteses se
prevenindo para eventuais situações de crises.
21
ROSA, Alexandre de Morais e STAFFEN, Márcio Ricardo. Ensaios sobre o discurso constitucional e da
sustentabilidade. [recurso eletrônico]. Dados eletrônicos. – Itajaí: UNIVALI, 2012. (Coleção Osvaldo Ferreira
de Melo; v. 1). <http://www.univali.br/ppcj/ebook>. Acesso em 20/11/2014.
Disposições finais

A situação de crise hídrica em São Paulo não deve ser debitada às


mudanças climáticas, com a baixa densidade pluviométrica desses dois últimos
anos, mas uma associação de erros de gestão e opções administrativas assumidas
pelo governo do Estado, há 20 anos sob o comando do mesmo grupo político e
legenda partidária. Aliás, até mesmo em relação a meteorologia se tem previsões de
médio prazo, não se podendo mais afirmar da possibilidade de sermos apanhados
por torrentes ou pela sequidão, sem que estejamos de capa de chuva ou com ela.

O crescimento populacional, com grande adensamento urbano e


edificações em locais indevidos, como encostas, morros, sobre nascentes e
mananciais, sem nenhum acompanhamento de políticas e serviços públicos de
infraestrura, faz parte também da ausência de planejamento, favorecendo a
aceleração dos problemas que repercutiram na crise hídrica. É que, não só aumenta
o consumo da água, como, noutra via, torna-se cada vez mais escasso esse recurso
vital, devido o sufocamento de suas fontes e poluição dos rios e represas, impedindo
ou encarecendo o seu aproveitamento.

Emparelhado com a ausência de planejamento viu-se que o governo


do Estado tomou posições que não condizem exatamente com o propósito de bem
servir a população. No caso de São Paulo, a SABESP, empresa com controle
acionário estatal, depois de abrir seu capital com papéis lançados na bolsa de
valores, preocupou-se muito mais com a garantia de lucros aos seus acionistas do
que em prestar serviços de qualidade aos seus consumidores, ressalvado o grupo
premium que dispõe inclusive de redução da fatura em virtude do alto consumo. Ou
seja, enquanto minimizava os investimentos, estimulava o consumo, mesmo
sabendo da incapacidade de atender a demanda, para que não se deixasse de
repartir lucros aos cotistas, como nos últimos anos.22

Nesse contexto, e embora crescente o estágio de crise, com os


reservatórios esvaziando rapidamente sem conseguir atender a demanda de
consumo de água, o próprio governador do Estado de São Paulo, de olho no pleito
eleitoral, negou durante todo ano de 2014 a situação de escassez, deixando de

22
Vide nota de rodapé de número 8.
tomar as providências emergenciais necessárias. A tardança dessas medidas só fez
agravar o quadro, mas assegurou-lhe a reeleição.

Esses absurdos não podem mais ser tolerados num regime


democrático. O poder político não deve ser usado para atender interesses pessoais,
nesse caso acobertado pelo apoio das elites paulistanas e dos setores mais
expressivos da economia, tudo sob a conivência confabulada dos meios de
comunicação que omitiram e não deram cobertura à falta de providências do
governo do Estado, replicando inclusive as falsas informações prestadas à
população.

O temor agora é que, mesmo que a administração estadual consiga


adiar a escassez total de água, o apagão hídrico poderá ocorrer no período de seca,
com grandes consequências à população, principalmente sua parcela mais
fragilizada. Nesse instante, os discursos não conseguiram impedir os levantes e
convulsões sociais.

É premente superar as diferenças políticas e pensar numa gestão de


governança, com o envolvimento de setores da sociedade civil para solução dos
problemas atuais e projetar medidas para o futuro com a perspectiva da
sustentabilidade, focadas na preservação dos recursos naturais e de garantia dos
direitos fundamentais.

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