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SISTEMA PUNITIVO:

DIREITOS & HUMANOS


Denival Francisco da Silva (organizador)
Alexandre Bizzotto (organizador)
Eliane Rodrigues Nunes
Gabriel Divan
Tiago Felipe de Oliveira
Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior
Leonardo Costa de Paula
Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo

SISTEMA PUNITIVO:
DIREITOS & HUMANOS

Goiânia-GO
Kelps, 2011
Copyright © 2011 by Denival Francisco da Silva

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Denival Francisco da Silva
Arte da capa

Victor Marques
Diagramação

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP


BIBLIOTECA MUNICIPAL MARIETTA TELLES MACHADO

S578p Sistema punitivo : direitos & humanos / org. Denival Francisco


da Silva, Alexandre Bizzotto. – Goiânia : Kelps, 2011.
224 p.

ISBN: 978-85-400-0253-1

1. Sistema punitivo. 2. Direitos humanos. I. Silva, Denival


Francisco. II. Bizzotto, Alexandre. III.Título.

CDU: 343.82:342.7
495/2011

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(Lei nº 9610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2011
SISTEMA PUNITIVO: DIREITOS E HUMANOS

Em leitura inicial o leitor pode questionar a razão da conjunção


aditiva utilizada no título do livro Direitos e Humanos. Não seria melhor
aderir à nomenclatura tradicional Direitos Humanos para expressar
o discurso em que se busca a tutela dos direitos fundamentais? Ter
como objeto de exame que infere o estudo separado dos direitos e
dos humanos é realmente necessário para os fins deste trabalho?
Para dar uma resposta satisfatória, de pronto, reconhece-se a
relevância de ser afirmada a incessante busca em favor da efetividade
do resguardo dos direitos de todos aqueles que são colocados sob o
amparo estatal no contexto do Estado Democrático de Direito.
Ademais, vislumbra-se que o atual momento é propício para
discutir os Direitos Humanos na medida em que resta delineado
nitidamente o crescimento dos conflitos sociais, de movimentos
tidos como insurgentes, da exasperação de sentimentos de
intolerância, e, sobretudo, de tensões contínuas entre os indivíduos
em busca de reconhecimento, respeito e, principalmente, de firmar
a própria dignidade.
Conferindo-se um exame meramente lógico/racional dos
direitos, revela-se intrigante a percepção de que os imensuráveis
avanços do conhecimento não se façam acompanhar de respostas às
múltiplas situações de sonegação aos direitos básicos e fundamentais
consagrados tanto nas Declarações Internacionais de Direitos
Humanos como na Constituição da República.
Faticamente, para exemplificar, a fome existente em muitas
partes do globo terrestre é olhada com naturalidade, enquanto
se vêem desperdícios de alimentos noutras localidade ou sua
contenção em nome de uma política de mercado. Pior, o subsídio
agrícola, como forma de incentivar a produção nos países centrais
– entenda-se Estados Unidos e países europeus – em detrimento
do não desenvolvimento da atividade agrícola nos países em
desenvolvimento e subdesenvolvidos – entenda-se, em especial,
nos países africanos – enquanto este cultivo é destinado a alimentar
veículos e outras máquinas, como é o caso da cultura do milho
americano para produção de etanol.
Poder-se-ia sustentar, com certa razão, que o cenário de
contraste entre direitos e realidade é resultado do descaso do Estado
que, além de não realizar atos práticos para a proteção dos direitos
fundamentais, é promotor de uma política de terror penal alicerçada
no medo para com o diferente. Interessante apontar que o diferente
traduz-se em sinônimo do excluído dos benefícios dos vetores
neoliberais recepcionados pelo mundo de hoje.
Sob outro prisma, a falta de solidariedade dos indivíduos,
embrutecidos, assustados e ensimesmados diante dos valores fluídos
decorrentes da sociedade tecnológica (incrementados e manipulados
pela mídia) e a respectiva ausência de modelos de referências sólidos
pode ser outro fator demonstrativo do descompasso entre os direitos
e suas necessidades mais rasas.
O narrado choque é ainda maior quando os estudos adentram
na seara penal, pois o Estado, teórico guardião das liberdades
individuais toma as rédeas de necessário papel de limitador da
liberdade humana. O problema não é a atuação punitiva, algo inerente
à democracia, mas sim o desenvolvimento de políticas de genocídio
penal com o aniquilamento em face das classes menos favorecidas da
sociedade.
É aqui que se inicia objetivamente a se responder a indagação
do primeiro parágrafo com outras questões: O problema dos Direitos
Humanos está na falta de normatização estatal? O adjetivo humano
para os direitos é suficiente para acompanhar a vida vivida? Enfim,
novamente, porquê de se romper, mesmo que em uma temática com
a consagrada nomenclatura Direitos Humanos?
Não. Há no ocidente uma infinidade de previsão de textos
normativos a respeito dos Direitos Humanos. Quer-se crer que o
adjetivo humano para os direitos objetivamente torna pequeno o
alcance da efetividade da proteção concreta na medida em que há
indisfarçável manipulação conceitual dos Direitos Humanos a favor
de interesses humanos de teor diverso aos da proteção aos humanos.
Os Direitos Humanos se tornaram (e há dúvidas se não foram sempre)
útil instrumento de dominação.
Salienta-se ainda que, por mais que haja um sistema legislativo
de certa funcionalidade, a previsão textual não passará de texto para
àqueles que sequer imaginam serem resguardados. Basta falar com
os pedintes das praças e pontes para que seja iluminada a ausência
de fática proteção. O que dizer daqueles aviltados e mortos pela
atuação policial despida de fiscalização. O direito para eles é figura
desconhecida, vã promessa.
Vejam bem, não se pretende esvaziar as conquistas libertárias,
a beleza de sua caminhada ou o seu arcabouço de proteção em
palpáveis casos concretos. O garantismo, meio de mitigação racional
no contexto do processo penal é relevante. As lutas pelas minorias e
seus direitos são respeitáveis. Mas, o que se quer dizer é que todos
eles são de natureza racional, logo, redutores da complexidade e
insuficientes para abranger o humano.
Logo, o humano é vital como substantivo e não na condição
de adjetivo. Eis a razão de se procurar um estudo dos direitos e
do humano. Compreender um pouco o humano substantivo. Não
para estancar os avanços dos direitos, mas para se tentar entender
alguns dos motivos da eterna insuficiência do alcance do eterno
compromisso de proteção contido em toda direito.
Ao mesmo tempo em que somos capazes de amar e proteger,
odiamos e matamos. Sobrevivemos. Referências mitológicas,
advindas do Divino ou da racionalidade conseguem nos limitar, mas,
em alguns momentos, o humano prevalece.
No manejo das ordenações racionais do Estado Democrático
de Direito, a subjetividade comanda. Que sejam deixadas de lado a
retórica da abstrata vontade geral da lei ou a da representatividade
republicana. Interesses, mesmo quando não se está ciente disto, dão
o vetor. Postulações religiosas, econômicas, filosóficas dão o tom,
porquanto o sujeito o é do mundo e não das idéias.
Quando são asseveradas as qualidades e defeitos do
humano, pretende-se alertar que, por mais que o direito esteja
em poesia, o humano o faz demasiadamente humano. Sem tal
entendimento, o castelo do direito sempre será de areia seca, na
lição de Eduardo Galeano.
Talvez seja importante relativizar os direitos. Não os
comandos de proteção, intocáveis como garantias, mas a expectativa
depositada sobre eles. A consciência de que o direito não dá conta
de tudo pode ser um passo para que os direitos não sejam devorados
pela imensidão da natureza humana.
Este livro contém artigos de pessoas que certamente tentam
trabalhar o tema, seja enfocando com mais atenção os direitos, seja
buscando chamar a atenção para a humanidade e para os direitos, na
perspectiva de instrumentos de viabilização da efetiva humanidade.
É com muita alegria que apresentamos o livro, agradecendo a
todos os co-autores por suas valiosas contribuições na sua elaboração,
esperando que haja algo nele que possa ajudar na compreensão sobre
o tema Direitos e Humanos.
Além disso, que possa servir não apenas como marco científico
do VI Simpósio Crítico de Ciências Penais, evento promovido pelo
GEPeC – Grupo de Estudos e Pesquisas Criminais – mas, um chamar
a consciência de todos aqueles que compactuam com um mundo não
só de efetivos direitos, mas sobretudo, e essencialmente, humano.

Alexandre Bizzotto
Denival Francisco da Silva
SUMÁRIO

DIREITOS E HUMANOS: ENTRE O CONVÍVIO


E A INTOLERÂNCIA.................................................................................. 11
Denival Francisco da Silva

A ABORDAGEM HUMANA DOS DIREITOS – POSSÍVEL


GARANTIA DA EFICÁCIA DA LEI E DO EXERCÍCIO DA JUSTIÇA......41
Eliane Rodrigues Nunes

BREVÍSSIMAS NOTAS SOBRE (DIRIGENTES) PROTEÇÕES.........57


Gabriel Divan

O JUIZ CRIMINAL NA EXECUÇÃO PENAL: CONTROLANDO A


CAIXINHA DE MALDADES......................................................................69
Alexandre Bizzotto

DO BEM-ESTAR SOCIAL AO ESTADO PENAL...................................93


Tiago Felipe de Oliveira

O COMPROMISSO ÉTICO E PROFISSIONAL DO JUIZ COM A


TUTELA DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS........ 115
Denival Francisco da Silva
CRIME, REPARAÇÃO DO DANO, FALÁCIAS E PRINCÍPIO
DA IGUALDADE – THEMIS PODE USAR UMA VENDA, MAS
O JUIZ NÃO................................................................................................ 141
Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior

DENÚNCIA GENÉRICA – PECADO DE QUEM?.............................. 173


Leonardo Costa de Paula

DESCONSTRUINDO A ORDEM PÚBLICA E RECONSTRUINDO


A PRISÃO PREVENTIVA......................................................................... 195
Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo

O JUIZ, SUAS ESCOLHAS E A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL


DA LIMITAÇÃO PENAL.......................................................................... 205
Alexandre Bizzotto
DIREITOS E HUMANOS:
ENTRE O CONVÍVIO E A INTOLERÂNCIA
Denival Francisco da Silva*

Os emigrantes, agora
Desde sempre, as borboletas, as andorinhas e os flamingos voam
fugindo do frio, ano após ano, e nadam as baleias à procura de
outro mar e os salmões e as trutas à procura de seus rios. Eles
viajam milhares de léguas, pelos livres caminhos do ar e da água.
Mas não são livres os caminhos do êxodo humano.
Em imensas caravanas, marcham os fugitivos da vida impossível.
Viajam do sul para o norte, e do sol nascente para o poente.
Alguém roubou seu lugar no mundo. Foram despojados de seus
trabalhos e de suas terras. Muitos fogem das guerras, porém
são muitos mais os que fogem de salários exterminados e dos
solos arrasados.
Os náufragos da globalização peregrinam inventando caminhos,
querendo casa, batendo em portas: as portas que se abrem,
magicamente, à passagem do dinheiro, se fecham em seus
narizes. Alguns conseguem passar. Outros são cadáveres que
Mestre em direito pela UFPE. Professor universitário. Juiz de Direito em Goiânia. Membro fundador
*

e presidente do GEPeC.

11
o mar carrega para praias proibidas ou corpos sem nome que
jazem debaixo da terra no outro mundo onde queriam chegar.
Sebastião Salgado os fotografou, em quarenta países, durante
vários anos. De seu longo trabalho ficaram trezentas imagens. E
as trezentas imagens dessa imensa desventura humana cabem,
todas, em um segundo. Soma somente um segundo toda a luz
que entrou na câmara, ao longo de tantas fotografias: apenas um
piscar nos olhos do sol, um instantinho na memória do tempo.1

RESUMO
A intolerância, embora não seja nata no ser humano, é algo que persiste
socialmente deste o início de nossa formação em grupos. Na verdade,
a necessidade de convívio coletivo é que dá o tom a nossa tolerância,
conquanto sempre pautada por disputa de poderes e subjugação dos mais
frágeis. Os direitos humanos são frutos de nossa construção intelectiva
e, porquanto, eleitos a partir dos interesses e concepções ditadas pela
elite dirigente e que tem o escopo de apaziguar as insurgências, e manter
um mínimo de tolerância indispensável ao convívio social. O sistema
de punição, assumido pelo Estado e erigido sob o manto dos direitos
humanos, é instrumento de dominação e manutenção do status quo,
sobretudo porque em seu nome se pratica diversas ofensas aos direitos
fundamentais. Sua expansão contínua deve-se intolerância coletiva,
alimentada diariamente pela indústria do terror, e a ética capitalista que
encontrou nele uma grande fonte de lucratividade.

1 A TÍTULO DE INTRODUÇÃO
O tema proposto é um tanto vasto, como aparentemente
contraditório, sobretudo na perspectiva que quero aqui apresentar.
Justamente por isso não pretendo trazer assertivas, mas pontos de
discussão para uma análise, possivelmente fora do trivial, sobre a
questão dos direitos e humanos. Nisso já distingue. Não se trata de
ver os direitos humanos, mas perceber humanos e direitos, sendo
estes decorrentes do primeiro.
GALEANO, Eduardo. Bocas do Tempo. Tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 213.
1

12
É a partir dessa cisão que se pode notar com melhor precisão
como a história da humanidade foi sendo edificada sobre disputas
constantes pela sobrevivência do ente humano, em grande medida
com um grau de tolerância mínimo, apenas o limite necessário para
a convivência.
De fato. Somos intolerantes e somente apreendemos a conviver
em sociedade por uma necessidade premente de sobrevivência.
Apesar de dotados de inteligência, proporcionalmente os seres
humanos são, significativamente mais frágeis que outros seres vivos.
Conquistamos cada canto do planeta terra, mas só nos mantemos
vivos graças as engenhocas que desenvolvemos. Fosse para viver
naturalmente como outros animais, sobretudo isolamos, já seríamos
espécie extinta. Nem por isso não buscamos a própria extinção, se
é que se pode exagerar na dose. A nossa intolerância já nos causou
experiências extremamente trágicas, tudo motivado pela não
aceitação do outro e desejo insaciável de poder.
Em regra, nosso parâmetro do tolerável é exatamente o mínimo
essencial para um convívio social aceitável, sempre limitado pelo
próprio egoísmo. Não reconhecemos o outro e não sabemos conviver
com diferenças como parte da própria existência mútua. Ou, no dizer
de Bauman:

O direito do Outro à sua estranheza é a única maneira pela


qual meu próprio direito pode expressar-se, estabelecer-se
e defender-se. É pelo direito do Outro que meu direito se
coloca. “Ser responsável pelo Outro” é ser “ser responsável por
si mesmo” vêm a ser a mesma coisa. Escolher as duas coisas e
escolhe-las como uma, uma só atitude indivisível, não como
duas instâncias correlatas mas separadas, é o significado
de reformulador a contigência, identificação imaginativa,
empatia; só não podem dizer dessa opção que ela decorre
de uma regra ou comando, seja uma injunção da razão, uma
norma empiricamente demonstrada pelo conhecimento que
busca a verdade, uma ordem de Deus ou um preceito legal.2

2
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1999. p. 249.

13
Assim, verdadeiramente, vivemos num mundo de intolerâncias,
de desrespeito e de rejeição do outro. E isso não é consequência
de nossa natureza, mas de um aprendizado que fez de nós, seres
inteligentes, também manipuladores e egoístas, sempre insatisfeitos
com nossas próprias conquistas. E isso decorre da ganância por
poder. O poder que satisfaz não o bem comum, mas o desejo único e
exclusivo dos próprios interesses.
O poder, e com ele a intolerância, rende e faz crescer a economia,
embora subjugue multidões à miséria; determina rumos políticos de
nações inteiras e restringe direitos dos seus cidadãos; rompe tratados
internacionais e descumpre compromissos históricos. Aguça o
sentimento pelo poder e detona os vencidos, ainda que em falatório
se diga o inverso.
Para ilustrar o que quero aqui afirmar, basta observar que o
atual presidente americano, Barak Obama3, que assumiu o posto
com a promessa de novas relações internacionais e esperança de
mudança na política externa, a ponto de receber precipitadamente
o prêmio Nobel da Paz, propôs agora recentemente ao Congresso,
mesmo em tempos de contenção de recursos públicos e de cortes
orçamentários, só para a modernização do armamento atômico
americano uma cota de 84 bilhões de dólares. De outro lado, de
acordo com levantamentos da ONU, seriam necessários 80 bilhões
para se atingir as Metas do Milênio.4
Norberto Bobbio, no final da década de 1970 já fazia uma
análise apocalíptica do armamento desenfreado. Dizia ele:
3
Obama não faz economias mesquinhas quando se trata de guerras. A sua alocação de US$ 708 bilhões
para o Pentágono no ano fiscal de 2011 (que não incluem os US$ 33 bilhões pendentes, que serão
aprovados pelo Congresso para a escalada afegã) ultrapassa o orçamento recorde de Bush de US$ 651
bilhões no ano fiscal de 2009. In: FERNANDES, Marco. O Orçamento Militar Americano É Maior
Do Que O Resto Do Planeta Somado. Portal Luis Nassif. http://blogln.ning.com/forum/topics/o-
orcamento-militar-americano?xg_source=activity. Pesquisa em 30/08/2011.
O Projeto do Milênio foi especialmente constituído pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, em 2002,
4

para desenvolver um plano de ação concreta para que o mundo reverta o quadro de pobreza, fome e
doenças opressivas que afetam bilhões de pessoas. [...] O Plano Global propõe soluções diretas para
que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio sejam alcançados até 2015. O mundo já possui a
tecnologia e o conhecimento para resolver a maioria dos problemas enfrentados pelos países pobres.
Até então, no entanto, tais soluções não foram implementadas na escala necessária. O Plano Global do
Projeto do Milênio apresenta recomendações para que isso seja feito tanto em países pobres quanto em
países ricos. http://www.pnud.org.br/milenio/. Pesquisa em 30/08/2011.

14
Ora favorecer, hoje, a corrida aos armamentos atômicos
significa estimular a busca de meios destrutivos cada vez
mais potentes, rápidos e seguros. A experiência dos últimos
vinte anos é muito instrutiva: não há razões para não
prever que nos próximos vinte anos a potência destrutiva
das bombas não possa desenvolver-se com o mesmo ritmo;
pelo contrário, há razões para afirmar que o ritmo se torne
cada vez mais acelerado e o alvo dessa corrida seja, cedo ou
tarde, a arma absoluta.5

Por sorte nossa as previsões do autor não ocorreram, certamente


em virtude da desproporção nesta corrida armamentista dos EUA
com outras ex-potências, principalmente depois do fim do império
soviético. Mas armas estão aí, em número mais do que suficiente para
o extermínio total do planeta.
Não significa com isso que os EUA deva assumir a conta
sozinho das Metas do Milênio ou de outros programas de paz,
mas poderiam contribuir nas duas pontas: primeiro, como nação
mais rica, deve sim ter maior participação com as questões globais;
segundo, reduzindo seu empenho bélico, por certo conteria muito
a sua própria intolerância de querer resolver os problemas mundo
afora, quando afeta seus interesses geopolíticos e econômicos, na
diplomacia dos mísseis.
Isso mesmo! Nisso vamos todos, cada um com seu quinhão
de intolerância e indiferença. Preferimos consumir recursos com
fins destrutivos e ofensivos aos direitos humanos, a minimizar o
sofrimento e conter a miséria, a fome, as doenças curráveis com
tratamentos e medicamentos difundidos nos grandes centros e
de baixo custo, a preocupação com o meio ambiente, a extensão
do acesso a educação e outras políticas básicas de atendimento,
sem perceber que grandes razões das intolerâncias reinantes são
resultados justamente desta omissão criminosa à humanidade.

BOBBIO, Norberto. O problema da guerra e as vias da paz. 1979. Tradução Álvaro Lorencini. São
5

Paulo: Editora da UNESP, 2003. p. 65

15
O discurso dos dirigentes políticos pelo mundo, sobretudo
das superpotências, passa pelo aumento dos seus arsenais bélicos,
com o propósito óbvio de manter a paz pela intimidação. Em
compensação, ascendem suas intolerâncias aumentando as
restrições à circulação e ingresso de pessoas nos países ricos,
retendo as liberdades humanas, reduzindo recursos para as
políticas sociais. Enquanto isso, estes dirigentes interferem nos
governos dos países periféricos, impondo uma pauta econômica
a ser seguida, ao mesmo tempo em que subsidiam suas atividades
primárias, sufocando as economias dos países em desenvolvimento
e pobres que praticamente vivem da atividade agrícola. Quando
há necessidade de contenção de gastos públicos, as principais
verbais atingidas são aquelas destinadas a satisfação de direitos
sociais, enquanto se avolumam recursos – e ainda assim sempre
insuficientes – para as áreas da segurança (de Estado e pública) e
para as intervenções militares.
É por meio destas ações belicosas que os EUA tentam barrar,
por exemplo, o tráfico de drogas. Todavia, pequena parcela do
montante disponível para combate ao narcotráfico na Colômbia6 -
maior produtor de coca e maconha – seria suficiente para financiar,
não com subsídios, a produção agrícola neste país, garantindo aos
pequenos e médios produtores a possibilidade de desenvolverem
uma cultura voltada à produção de alimentos e de produtos lícitos
no mercado local e internacional. Para tanto, bastaria aos EUA
suprimirem os subsídios a sua agricultura, que sufoca a produção
nos países com baixa tecnologia ou sem este aparato governamental,
assegurando ainda uma política internacional de mercado para os
Por exemplo, a ajuda do Plano Marshall estava vinculada à compra de produtos agrícolas norte-
6

americanos, o que explica em parte o aumento da participação dos Estados Unidos no mercado mundial
de cereais de menos de 10 por cento antes da guerra para mais de 50 em 1950, enquanto as exportações
da Argentina eram reduzidas em dois terços. Tal como outras medidas destinadas a bloquear qualquer
desenvolvimento independente, o programa de ajuda externa Alimentos para a Paz serviu tanto para
subsidiar a agroindústria e as exportações de outros países. A virtual destruição da produção de trigo
colombiano por esses meios foi um dos fatores que engendraram a indústria da droga naquele país,
acelerada nos últimos anos em toda a região andina pela política neoliberal. CHOMSKY, Noam. O
Lucro ou as Pessoas: neoliberalismo e ordem global. 5ª edição. Tradução Pedro Jorgensen Jr. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 41.

16
produtos agrícolas com garantia de preços justos, com condições de
escoamento e estocagem, para que houvesse substancial queda no
cultivo de coca e maconha, principais produtos destinados ao tráfico
internacional de entorpecentes, já que a atividade lícita também se
apresentaria rentável.
Mas não é por falta de percepção destes desvios e custos
econômicos nas operações de combate ao narcotráfico que a política
intervencionista é modificada. Rigorosamente os objetivos são
outros e o combate ao tráfico é apenas mais uma justificativa para
o imperialismo local, como forma de rastrear e vigiar de perto os
países latino-americanos, sobretudo diante do interesse sobre os
recursos amazônicos.
No conjunto de medidas previstas nesta política de intervenção,
os EUA querem ditar o modelo de democracia para o mundo, sob o
argumento de preservação dos direitos humanos, como se fosse o
padrão ideal a ser seguido por todos, ou como se internamente não
descumprissem os direitos fundamentais, inclusive de seus cidadãos.
Na condição que próprio se deram de xerifes do mundo, os
EUA incentivam e cobram dos demais países para que reforcem seus
sistemas de fiscalização e punição, de modo a coibir a criminalidade
organizada no mundo e as ações terroristas, na mesma medida que
provocam as desordens e conflitos, instigando e fomentando as
intolerâncias7. Para isso, dissemina o medo e o terror com operações
militares e investigações longe de quaisquer parâmetros humanitários,
principalmente depois do fatídico 11 de setembro de 2001, como

7
O que se pode observar é que os Estados Unidos provocou, durante a Guerra Fria mais de 80% dos
conflitos entre a civilização ocidental e as demais civilizações, sem considerarem-se os choques diretos
deste com a União Soviética e os processos de descolonização na África e Ásia. Desde a queda do muro
de Berlim o mesmo Estados Unidos vem gerando mais de 50% dos conflitos entre a civilização ocidental
e as demais. Caberia-nos corrigir a Huntington no sentido de afirmar que não é a civilização ocidental
que enfrentará, no futuro, as outras culturas, mas sim que os Estados Unidos enfrentará as demais
culturas de forma unilateral ou formando alianças ofensivas.
Neste sentido e tomando-se as definições de civilizações utilizadas pelo autor concluímos que os
Estados Unidos tem enfrentado em conflitos armados, nos últimos 20 anos, a dois tipos de culturas: a
muçulmana e a latino-americana. Os Estados Unidos enfrentou a Líbia em 1986, o Panamá em 1989, o
Afeganistão em 2001 e 2002 e o Iraque na guerra do Golfo em 1998 e em 2003. In: CHAHAB, Martín.
A Tendência dos Conflitos Armados. Tradução Vera do Val. http://www.achegas.net/ numero/29/
martin_chahab_29.htm. Pesquisa em 30/08/2011.

17
se estas ações não fossem também criminosas e terroristas. Tudo
depende do ponto de vista.
Assim, a intolerância cresce no mundo na mesma proporção das
medidas e ações que violam os direitos fundamentais. O século XX
foi o período das grandes guerras e com elas dos enormes genocídios,
o período mais sangrento da humanidade que vitimou em torno de
90 milhões de pessoas só nos conflitos armados8. Somadas as vítimas
indiretas destes conflitos vê-se que a barbárie é muito maior, tendo a
carnificina atingido cerca de 191 milhões de pessoas mortas.9
E o século XXI começa quase no mesmo ritmo. Quando
se esperava que houvesse avanços humanitários em decorrência
de experiências amargas sofridas, a intolerância contínua firme e
destemida.
Acompanhando estes arranjos e desarranjos geopolíticos e
imperialistas, o sistema punitivo, geridos pelas forças de segurança
internas e pelos sistemas de justiça, ano após ano, tem expandido
suas ações, ultrapassando as fronteiras de conquistas políticas
em termos de liberdades humanas, representando um verdadeiro
retroceder histórico. O Estado policial cresce velozmente, a partir da
propaganda do medo disseminada com precisão, tentando remediar
com maior austeridade a redução da participação do Estado social,
que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva
e subjetiva em todos os países.10
O espaço de convívio só é tolerável enquanto não há invasão
do espaço dos interesses individuais. A tolerância, desde que não
8
No transcorrer das duas guerras mundiais do século XX a humanidade perdeu mais de 70 milhões de
vidas: a partir de 1945 até a queda da União Soviética, os 40 anos de Guerra Fria, morreram no planeta
cerca de 17 milhões de pessoas em conflitos armados e de 1990 até 2003 as guerras levaram mais de 3
milhões de vidas (Marshall: 2003). No total os conflitos armados do século XX provocaram cerca de 90
milhões de vítimas fatais. In: CHAHAB, Martín. A Tendência dos Conflitos Armados. Tradução Vera
do Val. http://www.achegas.net/numero/29/martin_chahab_29.htm . Pesquisa em 30/08/2011.
9
A Organização Mundial de Saúde, em Outubro de 2002, revelou as contas desta barbárie. No século
XX, os conflitos armados provocaram, directa ou indirectamente, a morte de 191 milhões de pessoas,
mais de metade dos quais eram civis. In: Confrontos: o olhar sobre nós o outro. Estas estatísticas,
segundo os relatores do documento da OMS, estão longe de contabilizarem todos os mortos, dado
que a maioria dos actos de violência são cometidos longe de qualquer olhar. http://confrontos.
no.sapo.pt/page5.html. Pesquisa em 30/08/2011.
10
WACQUANT, Lóic. As prisões da Miséria. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001. p. 07.

18
ascenda sobre meus interesses, é o ponto limite e o argumento para
justificar a não aceitação. Permite-se, mas não se aceita. Convive-se,
mas não se respeita. No mais, o Estado policial está de prontidão para
socorrer os eleitos lesados.
Não há evidências de que tenha crescido a intolerância nos
últimos tempos, apesar desta análise ser fruto de mera especulação
não empírica e quase utópica. A capacidade de aceitar é algo que se
adquiri e por ser fruto de uma conquista pessoal e coletiva ardorosa,
não pode estar sujeita a intempéries ou refluxos, porque não se perde
pelo caminho ou regride com o tempo. O que tem acontecido com
o aparente aumento da inquietação na sociedade é a revelação das
intolerâncias hibernadas, que assim se encontravam a par de um
convívio confortável, sem incômodos. A partir do instante que as
minorias se apresentam e começam a reclamar direitos igualitários, a
fera entocada ressurge, fazendo romper o sono da passividade.
É neste contexto que são delineadas as políticas públicas, com
o aumento da intervenção policial e do sistema punitivo. Nisso o
Estado não falha, até porque busca satisfazer aos interesses dos seus
mandantes. Este acréscimo é, portanto, a estatização da intolerância
das maiorias políticas, com poderes decisórios, e que se vêem de
repente, na iminência de ter que compartilhar espaços e direitos.
Para isso não precisa de muito esforço. A indústria do medo e da
punição, e por consequência da intolerância, é bastante eficiente, até
porque também altamente rentável.

2 AS RAZÕES HISTÓRICAS DA INTOLERÂNCIA E PARA


NECESSIDADE DE CONVIVÊNCIA
Temos a tendência de pensar que os direitos humanos
decorrem da efetiva tolerância entre os indivíduos que se solidarizam
em estruturas sociais equilibradas e justas.
Não. Não parece que seja isso.
Na verdade os direitos humanos pautam-se pela necessidade
de convivência, nem sempre harmônica, mas dentro do limite da
tolerância para o sossego do maior número de pessoas. Por isso, não

19
existem direitos que perenizam no tempo e, como diz Bobbio11, não
há porque temer a relatividade. O problema é que está não rigidez
vem quase sempre a serviço dos mais aquinhoados, enquanto aos
demais serão objeto de discussões e conveniências do momento.
A rigor o que motiva as pessoas ao convívio social é o insaciável
desejo do poder, seja para comandar e controlar ou, para subsumir
a ao comando e se sentir protegido12. A busca pelo poder decorre
de lutas constantes, que na maioria das vezes, resulta em ações
violentas. Este é o preço a ser pago, ou como diriam os poderosos
de agora, os rescaldos desta violência são apenas efeitos colaterais
que devem ser superados.
Começo afirmando, por esta razão, que aqui já perlustra a
motivação da defesa dos direitos humanos como construção teórica
daqueles que historicamente sempre detiveram o poder e dele se
serviu para controle político, social e econômico, como para socorrer
suas consciências. Isso é tão real que não há mudança do quadro.
Os miseráveis, os espoliados, os desassistidos e sem direitos, são os
mesmos, filhos dos mesmos, netos dos mesmos, descendentes dos
mesmos. A estes as promessas contínuas de proteção ou a passividade
pelo temor, muito disso dentro de uma justificativa humanista.
Compreendidos os direitos humanos como resultado da própria
concepção de direitos naturais, tem-se de plano o direito decorrente
do instinto natural de sobrevivência, estaria então justificado a

O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições
11

históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a
realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. [...] não é difícil prever que, no futuro, poderão
emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a não portar
armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens.
O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época
histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.
Não se concebe como seja possível atribuir um fundamento absoluto a direitos historicamente relativos.
De resto, não há por que ter medo do relativismo. (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 8ª edição.
Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 18/19.
12
Nas condições de vida humana, a única alternativa do poder não é a resistência – impotente ante
o poder – mas unicamente a força, que um homem sozinho pode exercer contra seu semelhante, e
da qual um ou vários homens podem ter o monopólio ao se apoderarem dos meios de violência. In:
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª edição. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008. p. 214.

20
incidência de tantas agressões, ofensas, incivilidades, vilipêndios em
nome dos direitos humanos?
A ideia de pessoas eleitas, e como tal sentem-se detentores de
poderes para subjugar outras não é novidade. A bíblia, livro sagrado
dos cristãos, em especial o velho testamento, também cultuado
pelos judeus, enceta uma verdadeira saga de violências, em nome
das preferências Divinas. É óbvio que os relatos bíblicos refletem a
história de seus narradores.
O que mais aflige nesta narrativa religiosa, e a descrição bíblica
é apenas um exemplo do que ocorre também noutras orientações
teleológicas, é que nos dias atuais ainda é regido pela intolerância,
como se houvesse um Deus capaz, na sua onipotência, de discriminar
alguém, seja ele ou não temente.
Não se pode afirmar que estas ilustrações sejam os embriões
da intolerância, mas indiscutivelmente, em nome deste misticismo
religioso diversas atrocidades foram e ainda são cometidas. É
também pelo discurso religioso que muitas das perturbações sociais
são aquietadas, favorecendo desmandos políticos e preservando o
poder secular e político de poucos, em detrimento do humanismo
que inclusive diz pregar.
No campo político o cenário não é diverso. Os interesses
e conveniências em determinado momento serve, por vezes,
para apaziguar intrigas de anos, contendo, ainda que num jogo
de aparências, as incompatibilidades e intolerâncias, tudo com
o propósito comum de manutenção de poder. Quando velhos
opositores se fundem, o fazem por terem pretensões idênticas e
que somente numa composição podem alcançar, ou porque ambos
pensam que assim poderão aniquilar de vez o outro.
A história é farta destes ajeitamentos. Sem excursionar por
todo percurso, basta alinhar alguns fatos históricos para demonstrar
que as adversidades, embora persistentes, arrefecem em determinado
momento para dar lugar à necessária composição, e que em muito
contribuiu a Igreja com o político.

21
O Estado anglicano convive cordialmente com o Vaticano
desde o século XVI, embora naquela época a Rainha Católica da
Escócia, Mary Stuart, tenha sucumbido em decorrência de suas
opções religiosas, fato que não impediu esta aliança. O mesmo
Vaticano que editou a Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão
XIII, no final do século XIX, primeiro documento substancial
enaltecendo os direitos sociais,13 sobretudo do trabalho, não teve
uma oposição ferrenha a Hitler, pouco mais de meio século depois,
então com o papa Pio XII, e que somente assumiu um discurso pró
vítimas do extermínio da maior catástrofe provocada pelo homem à
própria humanidade, a II Guerra Mundial, depois de muito martírio
e quando o regime nazista perecia, a ponto de alguns historiadores
o denominarem de o Papa de Hitler.14
As alianças durante a primeira grande expansão globalizante,
nos século XV e XVI, sobretudo por Portugal e Espanha, com o
achamento do novo mundo, foram selados não propriamente por
afinidades, mas como forma de tornar possível a pirataria de ambos
em terras além mar, tudo sob as bênçãos também do Vaticano.
Foi com esta parceria que afugentaram outros invasores em suas
possessões, como os holandeses e franceses.
Quanto aos ingleses, quando deixaram ter interesse nas já
escassas riquezas que vinham do novo mundo, e sentindo-se fortes o
bastante para isso, puseram-se ao mar como os xerifes de sua época,
para impedir o tráfico de escravos, tendo como discurso o sentimento
humanitário, mas verdadeiramente em virtude de outros interesses
econômicos15. Barrado – ao menos para inglês ver – o tráfico de
VATICANO. CARTA ENCÍCLICA “RERUM NOVARUM” DO PAPA LEÃO XIII SOBRE A
13

CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS. Texto em português. http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/


encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html. Pesquisa em 30/08/2011.
WIKIPEDIA. Papa Pio XII. http://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Pio_XII. Pesquisa em 30/08/2011.
14

Qual seria o motivo do interesse inglês em defender o fim do tráfico e da escravidão? Certamente não
15

apenas a pressão da opinião pública ou razões puramente humanitárias. Como o próprio Canning
mencionava em seus despachos, havia importantes interesses econômicos. A proibição inglesa do tráfico
de escravos para suas colônias nas Antilhas, produtoras de açúcar, ocasionou a diminuição da mão-de-
obra e, conseqüentemente, o encarecimento do açúcar ali produzido. O açúcar do Brasil, beneficiado
pela manutenção do tráfico e pelo uso da mão-de-obra escrava, obteria preços mais baixos no comércio
internacional e as colônias inglesas seriam prejudicadas. Fim do Tráfico Negreiro: Pressão Inglesa para

22
escravos, o comércio era feito às escondidas e a escravidão persistia
nas colônias com os escravos já trazidos e seus filhos. A esta altura
a escravidão não era mais de estrangeiros, mas de nascidos no local,
porém sem nacionalidade.
A escravidão é a ilimitada capacidade de intolerância, e por
certo a não-escravidão, juntamente com a dignidade humana, até
porque decorre dela, os únicos direitos absolutos. É de fato abjeto,
porque quando se tem o extremo da subjugação de um semelhante,
tratado como um objeto vil, o qual se explora a força de trabalho,
dá-lhe tratamento o pior possível e ainda sente no direito de aplicar
reprimendas com punições corporais, sem processo algum.
Pode-se afirmar que o primeiro texto político escrito a tratar
dos direitos humanos foi a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, documento erigido da Assembléia formada logo após a
derrocada do poder imperial absolutista pela Revolução Francesa16,
é resultado dos interesses da burguesia, cujas maiores enunciados
foram a elevação das ideias de liberdade e igualdade (fazer o que bem
entender sem a ingerência do Estado), e a consagração do direito
de propriedade. Todos os legados voltados a ascensão definitiva da
burguesia, em detrimento dos efetivamente desiguais em condições
sócio-econômicas. A este propósito, Hannah Arent destaca que

Os homens da Revolução Francesa não tinham


nenhuma concepção da persona e nenhum respeito pela
personalidade legal que é outorgada e garantida pelo corpo
político. Quando o dado da pobreza das massas entrou no
âmbito da Revolução, que tinha sido iniciada com a rebelião
estritamente política do Terceiro Estado – que reivindicava
a sua admissão e mesmo a direcção do domínio político –
os homens da Revolução já não estavam interessados na
emancipação dos cidadãos ou na igualdade, no sentido

o fim do Tráfico Negreiro. Fonte: www.multirio.rj.gov.br. http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/


escravidao-no-brasil/fim-do-trafico-negreiro.php. Pesquisa em 30/08/2011.
16
WIKIPEDIA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%
C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o. Pesquisa em 30/08/2011.

23
de que todas as pessoas deveriam ter igualdade de dirieto
à sua personalidade legal, a serem protegidas por ela e,
ao mesmo tempo, a agirem quase literalmente “através”
dela. Eles acreditavam que tinham emancipado a própria
natureza humana, ou seja libertado o homem natural em
todos os homens, e que lhe tinham dado os Direitos do
Homem, que a cada qual cabiam, não devido ao cargo
político a que pertencia, mas pelo fato de ter nascido.17

No mesmo período, as Declarações da Virgínia e da Pensilvânia,


documentos basilares da Constituição estadunidense, foi fruto da
escolha política da elite que se formava no solo norte-americano e que
não mais aceitava a coibição do poder central vindo da Inglaterra.18
Cabem ainda destaques especiais à criação da ONU e a
edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
marcos essenciais na história sobre estes direitos. Contudo ambos
os eventos só foram possíveis graças à desgraça total e generalizada.
A situação de aviltamento do ente humano no momento é tamanha
que foi necessário superar algumas divergências – sem abrir mão
dos interesses locais e da preservação das estruturas de poder e das
influências geopolíticas – em nome da segurança e compromisso de
que fatos daquela dimensão não mais viessem acontecer, diante da
real perspectiva de que um terceiro conflito generalizado poderia
significar o fim da própria humanidade.
Neste instante, exigiu-se ponderação e certa tolerância de
todos para garantia de uma convivência suportável. A solução
encontrada para satisfazer as ambições políticas e econômicas dos
blocos antagônicos que se formaram, liderados parte a parte pelos
EUA e a URSS, foi dividindo o espólio da guerra, cindindo ao meio o
território alemão e que depois foi separado em definitivo por murro,
e a partir dele o mundo em duas metades. Em virtude de mais este ato

ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução I. Morais. Lisboa/PT: Relógio D’Água Editores,
17

2001. p. 131.
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução I. Morais. Lisboa/PT: Relógio D’Água Editores,
18

2001. p. 67.

24
de intolerância, ainda sob a ressaca geral do fim da Guerra, o povo
germânico separado em dois territórios, distanciando familiares e
amigos, tudo em nome das conveniências e disputas políticas dos
blocos vencedores.
Esta divisão, todavia, fez gerar uma convivência contida em
face do receio do poderio adversário, mais do que em razão de uma
necessária tolerância. Aliás, ao contrário, as desconfianças mútuas
provocaram uma corrida armamentista da qual não se conseguiu
mais desprender, com o prolongamento de uma guerra fria que durou
até final da década de 1980, tendo termo com a queda do murro de
Berlim e o fim da URSS. Durante este período o mundo viveu sobre
tensas animosidades, com receio e pressão constante de que era
anunciado o segundo em que, por ação precipitada de qualquer dos
líderes dos blocos oponentes, apertasse o botão que fizesse disparar
todo o sistema que mantinha incólume este difícil pacto de não
agressão, dando início a uma nova catástrofe mundial, porém agora
de inimagináveis consequências, devido ao arsenal nuclear existente
de cada lado.
Olhando para fora destas tensões – se for possível – os direitos
humanos declarados no documento editado em 1948 não passaram
de meras projeções, sem compromisso firme das nações pactuantes.
Era o discurso a ser repetido para enaltecer os direitos humanos,
sobretudo para imputar vícios no modelo político oposto, mas não
exatamente comprometimento de quaisquer deles em por referidos
direitos em prática. A propósito, Norberto Bobbio chega a afirmar,
não precisamente neste contexto, mas a ele plenamente extensível,
que a grande questão dos direitos humanos, ainda na atualidade,
não é mais filosófica, porque já justificados, mas de efetividade e,
portanto político.19
Sob o fantasma de um inimigo invisível gerado pelos EUA,
elaborou-se a justificativa para o discurso das elites nos países da
América Latina, que temendo a perda de poder político e econômico,
em parcerias com outros setores conservadores da sociedade (e

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 8ª ed. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
19

Campus, 1992. p. 24.

25
aqui se insere novamente a Igreja), contribuíram decisivamente
para implantação dos regimes ditatoriais, espalhados feito fogo em
rastilho de pólvora pelos continentes americanos, durante as décadas
de 1960/1980, os quais provocaram grandes ofensas e distúrbios aos
direitos humanos, cujas feridas ainda não cicatrizaram.
Em nome dos direitos humanos, mais recentemente e ainda
nos dias de hoje, diversas ações denominadas humanitárias são
autorizadas pela ONU – ou não, bastando a vontade dos EUA
e da OTAN – para permitir que aviões e mísseis bombardeiem
destemperadamente as nações invadidas, sem nenhuma chance
de defesa inclusive da população civil inocente e numa completa
desproporção de forças. Ao final, as mortes de inocentes são
contadas como efeitos colaterais inevitáveis de uma ação que teria
que ser feita. Isso aconteceu, por exemplo, já no início deste século
XXI na ex-Ioguslávia, para retirada do poder do ditador Slobodan
Milosevic que, por sua vez, em face das intolerâncias pregadas em
nome do povo sérvio, praticou genocídio contra as etnias não sérvias
em seu próprio território. A intervenção somente ocorreu depois de
uma situação de calamidade absoluta, e ainda assim, se fez pelo céu,
desprezando as verdadeiras vítimas que se encontravam em terra.
Tudo isso em nome de direitos humanos. Em nome da
necessidade de combate aos inimigos (Quais? Inimigos de quem?
Inimigos a partir de que instante? Como se elege precisamente o
momento da intromissão?), estas intervenções, talvez até mais que o
próprio regime totalitário que dizem combater, acabam cometendo
enormes atrocidades humanitárias, diante da indiferença ou omissão
da ONU e em desprezo à Declaração de 1948 e ao manancial de
documentos internacionais existentes. O que importa realmente é a
prevalência de interesses geopolíticos e econômicos das nações ricas.
É com o mesmo aval, tutela e auxílio estadunidense que Israel,
encravado entre nações árabes, notabiliza-se como uma das grandes
potências armamentistas da atualidade, com poderes de segregar e
acuar em minúsculas áreas o povo palestino e intimidar as demais
vizinhos árabes. Justo os judeus que por séculos reclamaram com razão,

26
em nome dos direitos humanos, a necessidade de seu reconhecimento
e de um território, só conferido em 1948, como uma das primeiras
ações complexas, confusas e de atritantes causadas pela ONU.
No ritmo que findou o século passado este século começou.
Em decorrência deste processo de intolerâncias que figuras como
Osama Bin Ladem, Saddam Hussein passaram a ser endemoniadas
no mundo ocidental pelos EUA, sem que se esclarecessem ao grande
público que ambos foram criações de seus próprios interesses e que
por fim deixaram de ter valor.
O mesmo ocorre agora nos países árabes, cujas lideranças
políticas até recentemente eram recebidas como legítimos chefes
nos palácios dos países ricos. Bastou que movimentos sociais
nestes países, de boa parcela da população que não mais tolerou os
desmandos de seus governantes, e percebendo-se que seria para valer
a derrocada do regime, para que perdessem completamente o apoio
das nações ricas, passando então, finalmente, a serem denominados
pela imprensa internacional como ditadores20.
É o cinismo da convivência tolerada, porque já se reconhecia
de muito tempo que eram governos que descumpriam os ditames
internacionais sobre direitos humanos, além de apropriarem do
poder por anos, não admitiam a ideia de oponentes internos e o
processo de renovação dos próprios mandatos, fato muito cultuado
pelo modelo democrático ocidental. Porém, enquanto interessava aos
poderosos de cá, nem um mal faziam, ao contrário, eram extremante
convenientes. Como agora o interesse é invertido, porque a vaca foi
para o brejo, correm para estabelecer alianças com os novos governos
que precariamente se formam, com o objetivo de continuarem a
sugar as riquezas do petróleo ali em abundância e com a cobiça das
oportunidades de investimentos pela reconstrução, cujos estragos
próprios provocaram.
Nesta lista de ditadores depostos, ou em vias de, por movimentos de insurgências internas – mas ainda
20

assim tratados pela imprensa como rebeldes, como se não tivessem uma causa legítima – inserem-se: Ben
Ali, da Tunísia; Hosni Mubarak, do Egito; Muamar Kadafi, da Líbia (que apesar de já oficialmente deposto
se esconde e discurso ainda com chefe líbio); Bashar Assad, da Síria (este ainda no poder, mas em vias
de expulsão); Ali Abdullah Saleh, da Iêmen (refugiado na Arábia Saudita, para onde foi levado depois de
atingido pelos revoltos, porém de onde diz que retornará para convocar eleições), entre outros.

27
Quanto aos indicados levantes terroristas, por mais que nossa
consciência não comungue com esta prática, não se pode negar que
faz parte também de uma resistência ao imperialismo. A despeito
de coibi-lo, as ações agressivas, intolerantes e extremadas, com
aqueles de onde descendem os opostos extremistas fazem com que
se acentuem o ódio e o desejo de vingança. É o verdadeiro tiro pela
culatra, ou a utilização de combustível para apagar incêndio.
Na verdade, a defesa dos direitos humanos pelas nações ricas
não passa de um discurso evasivo, e só surge quando este argumento
favorece os motivos para manutenção ou recuperação do poder
político e econômico sobre a região agredida.
Quem planta chuva, colhe tempestade!
Mais que intolerância é prepotência pura. Nestas relações não
há preservação sequer da regra do respeito à convivência, porque
a meta é impor um modus a ser vivido, com um modelo político
e democrático ditado como se fossem fórmulas precisas para toda
sociedade, ao custo de sacrifícios e humilhações.
Diante deste cenário a história mostrou, de forma bastante
trágica, que Golias não era imbatível, fazendo-o sucumbir em seu
próprio território. O 11 de setembro de 2001 foi este marco fatídico
para a humanidade, mas também a insurreição ao intervencionismo
estadunidense. Porém, malgrado o alerta, a prepotência do
imperialismo dos EUA, com seus dirigentes políticos a serviço de
grandes impérios econômicos, em especial bélico, fez da tragédia
a ocasião para mais intolerância e soberba. Foi a senha para novas
invasões e caça ao inimigo, pouco importando onde estivesse,
sempre em nome da autodefesa, como se fosse atributo exclusivo e
se as agressões sofridas já não constituíssem uma autodefesa sobre
outra perspectiva.
Não, nada disso. O governo dos EUA e boa parcela de seu povo
– talvez quase a maioria no princípio – compreenderam os fatos
como um desafio a ser assumido e enfrentado, por dever à honra
das vítimas e dos sobreviventes. Para isso invadiram o Afeganistão
e posteriormente o Iraque ficando pé nestes países até hoje, onde

28
as misérias sociais reinam e boas parcelas das populações são
submetidas a condições desumanas de sobrevivência.
Espalhou-se, definitivamente, o discurso da intolerância, com
perseguições sem nenhum fundamento. Investigações secretas, com
práticas de tortura, manutenção de tribunais de exceção em possessões
estrangeiras, como nas prisões de Abu Ghraib, no Iraque, em
Guatánamo, no território cubano, Szymany, na Polônia (esta negada
oficialmente pelos EUA), onde o próprio direito americano não é
aplicado e não permitem – simplesmente por não permitirem e fica por
isso mesmo – a incidência das Declarações e Tratados Internacionais
nestes espaços. Trata-se de territórios sem leis aos aprisionados.
Tudo sobre as barbas dos chanceleres na ONU!
Como canta Gilberto Gil, será que somente com a guerra se
obtém a paz? a paz, que contradição, só a guerra faz21. Ou será que o
ser humano é de fato intolerante e conflituoso. A paz, neste sentido, é
apenas o receio mútuo do poder inimigo, embora atualmente, talvez
seja mais do que isso, a lucratividade os custos bélicos da agressão.
De fato a indústria armamentista nunca se ressente de crises. Se
necessário, criam condições para que seus clientes consumam os
estoques, repondo-os imediatamente com novos modelos muito
mais modernos e precisos, e custos bem elevados.

3 A CONTRIBUIÇÃO DAS CIÊNCIAS PENAIS


NESTA QUESTÃO
Parece que a sociedade e o mundo caminham continuamente
sobre o fio da navalha, num ambiente de constantes intolerâncias.
Todavia, não é possível supor que a intolerância seja consequência
da própria natureza humana, afinal isso não condiz com a atitude
de outros animais que somente atacam para caçar e satisfazer suas
necessidades de alimentação ou para protegerem sua prole. Fora isso,
não se vê no reino animal agressões por razões egocêntricas ou pela
rejeição do outro em virtude da diferença.
GIL, Gilberto Gil. Todas as Letras. (A Paz) Organização Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das
21

Letras, 1996. p. 312.

29
Estas reações, portanto, não são instintivas do animal humano,
mas resultado da nossa condição de pensantes e egoístas e que foram
cultuadas ao longo de nossa história. O domínio de indivíduos ou
grupos pela força e violência, em disputas tribais com o intuito de
afirmação territorial, até a rivalidade em troca do nada ou do fútil,
já em sociedades mais organizadas, atendeu unicamente a busca e
manutenção do poder com a consequente submissão e rejeição do
outro diferente.
Mas é a partir desta situação de conflitos que os Estados
começam a ser formados, com o fim de proteger grupos sociais
maiores, fixando as fronteiras territoriais e sociais, estabelecendo
regras de controle e submissão interna. Nesta engrenagem, o sistema
punitivo foi invocado pelo Estado com o intuito de coibir a ação
individual por vingança, onde sobressaia sempre a “lei” do mais
forte. Acontece que houve tão somente a substituição do particular
pelo ente público, que também passou a exercer seu poder de punir
conforme a vontade institucionalizada dos mais fortes, porque são
estes que editam as leis e geram a coisa pública.
O sistema punitivo passou a ser, então, a expressão interna da
intolerância do Estado em face aos seus próprios cidadãos. Acontece
que neste embuste e detentor do monopólio da punição, assenhorou-
se de tal forma da força e da violência institucionalizada que, por vezes
é o próprio Estado o maior violador dos direitos humanos. E não o
faz por acaso. A par de apaziguar os conflitos assume a postura de
guardião da ordem e dos anseios sociais, porém sempre com o respaldo
daqueles que detém o poder, com o claro objetivo de sufocar os atos de
insurgências e de resistências, servindo de instrumento de controle e
dominação. A prova concreta deste fato são as investidas constantes no
sentido de se criminalizar movimentos sociais, ou condutas praticadas
especificamente pelos renegados do modelo social vigorante.
O discurso de humanização do sistema de punição,
lançado por Beccaria22, serve de mote para os desvios e excessos
cometidos pelo poder estatal, sustentando a ficção de que a

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa.
22

São Paulo, 1999.

30
partir do monopólio punitivo os direitos humanos estarão sendo
respeitados, quando na realidade as violações se cometem por meio
da subtração ao penal de aspectos materiais da punição, colocando-
os ao amparo de outros discursos.23
Dentre os diversos discursos colocados para justificar a ação
punitiva do Estado, a doutrina utilitarista é a que mais se afirma,
difundido a necessidade da pena com o fim preventivo. Ainda
assim, é interessante notar que esta corrente, emergida juntamente
com a instituição das ciências penais como ramo independente
do direito, no pragmatismo de Bentham24, é pouco discutida na
academia como fenômeno marcante dentro da teoria das penas.
Talvez o escopo seja ocultar aquilo que Foucault destaca, a migração
das penas corporais para o suplício da alma, algo aparentemente
bastante humanitário, mas que apenas modificou a forma de violação
do indivíduo, substituindo o martírio do corpo pela submissão do
indivíduo à vontade do Estado, neste caso pela ação soberana de suas
elites dirigentes25. Trata-se de forma eficaz de se fazer valer o poder
mandatário do sancionador e de controle, pela presença continuada
da punição ao invés da regra que precedera com a pena de morte
como a sanção por excelência.
Assim, embora o aparecimento do direito penal como ramo
independente das ciências jurídicas tenha emergido sobre o manto
dos direitos humanos, com a institucionalização da sanção pelo
Estado, no propósito de se evitar a vingança privada, no fundo foi uma
excelente descoberta para atender aos interesses de controle social e
político. Ou, em outras palavras, sempre existiu um desejo incontido
de punir, como forma de expressar força e poder. O fundamento
humanitário é apenas a medida certa para justificar o monopólio
da punição estatal, conquanto o exerça de modo autoritário e

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro.
23

Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 71


BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Traduções Guacira Lopes Louro, M. D. Magno, Tomaz Tadeu da
24

Silva. Belo Horizonte: autêntica, 2000.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Tradução Raquel Ramalhete.
25

21ª edição. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.

31
decididamente. Em face dessa justificativa pelos direitos humanos,
conquanto a falta de cometimento, Alexandre Bizzotto ressalta:

A fundamentação utilizada para respaldar os interesses do


Estado alegando-se que este necessita proteger os direitos
ligados às diversas tutelas públicas (segurança, ordem,
saúde, economia), são idealizações que (falsamente)
pressupõem o Estado como o detentor do reconhecimento
e da concessão dos direitos humanos. Tal linha de raciocínio
enseja a permissão de posturas autoritárias, ao deixar os
direitos humanos da pessoa concreta subordinados à
vontade estatal.26

Desde modo, embora seja a punição, nas justificativas


apresentadas, a resposta do Estado a uma conduta de intolerância e
desobediência às normas por ele instituídas, historicamente esta reação
é tão ou mais intolerante do que o descumprimento do indivíduo às
regras que deveria observar, como registra Luigi Ferrajoli:

A história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e


infamante para a humanidade do que a própria história dos
delitos: porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que
as violências produzidas pelos delitos têm sido as produzidas
pelas penas e porque, enquanto o delito costuma ser uma
violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a
violência imposta por meio da pena é sempre programada,
consciente, organizada por muitos contra um.27

A rigor, não há nisso nenhum humanismo, porque o desejo


de punir se sobrepõe como forma de alijar os indesejados do espaço
público e privado das benesses estatais e do convívio social. Tudo
BIZZOTTO, Alexandre. A Inversão Ideológica do Discurso Garantista: A subversão da finalidade das
26

normas constitucionais de conteúdo limitado para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro:
Lúmen, 2009. p. 116.
FERRAJOLI. Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução Ana Paula Zomer Sica e
27

outros. 2º. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 355.

32
se resume na intolerância estatal – não há com isso necessidade de
revelação das intolerâncias individuais – tudo se resolvendo com
formulações penais e regras de processo.
Se não bastasse o interesse do controle e submissão, não se
pode negar que a contínua e acentuada expansão do sistema punitivo
nos dias atuais, deve-se também a alta rentabilidade dos negócios
que oferece. De fato os custos financeiros para o Estado do sistema
de segurança e punição são elevados, em virtude da necessidade de
manutenção de uma burocracia onerosa além dos custos indiretos
gerados pelas ações de violência.
Somado a isto (e haja soma!), o sistema de punição arrasta
consigo uma série de atividades privadas beneficiárias, verdadeiras
aves de rapina a lucrarem com o crime. Alguns estudiosos chegam a
afirmar que o crime movimenta, licitamente, um terço da economia
do planeta. São gastos com a segurança pública e privada; com planos
de saúde, tratamentos médicos e pecúlio; com seguros de bens e
serviços. Mais ainda com a estruturação da burocracia do sistema
punitivo (polícias, Ministério Público, Judiciário, administração
penitenciária), com a engenharia e materiais de construção para novas
prisões. Complementando e fechando o círculo de lucratividade, a
mídia vende espaços e horários caros nos seus programas e noticiários
sangrentos, com o fim de difundir o pavor coletivo pelo marketing do
medo e terror que induz o indivíduo à busca de vias de segurança,
mormente privada.
Nesta mesma linha de raciocínio, Chomsky fala que a violência
serviu e serve ao projeto capitalista e por isso é que é tão fomentada.

São conhecidos os efeitos da violência em larga escala


utilizada para assegurar a “prosperidade do sistema capitalista
mundial”. Uma recente conferência jesuítica em San Salvador
assinalou que, com o decorrer do tempo, a “cultura do
terror acabou por domesticar as expectativas da maioria”. As
pessoas talvez nem pensem mais em “alternativas diferentes
das apresentadas pelos poderosos”, para os quais isto é uma
grande vitória da liberdade e da democracia.28
28
CHOMSKY, Noam. O Lucro ou as Pessoas: neoliberalismo e ordem global. 5ª edição. Tradução Pedro
Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 27.

33
Porquanto, o discurso empregado para justificar este modelo
do sistema penal é realmente enganoso. Na verdade, sempre serviu
para acomodar as tensões e abrandar as fissuras sociais, com o fim de
manter o status quo dos detentores do poder, por meio da coibição
de muitas das contrarreações às estruturas segregacionistas. Só que
faz esta operação disfarçadamente, sob o manto da justiça penal,
entregando aos juízes a tarefa de sufocar os descontentamentos
sociais e as diversas outras formas de resiliências às normas de
controle dadas para manutenção de uma estrutura de subjugação e
espoliação dos mais frágeis. Michel Foucault resume bem o que é o
sistema penal, surgido no século XVIII já com esta missão específica:

Desde que funciona o sistema penal – o definido pelos


grandes códigos dos séculos XVIII e XIX – um processo
global levou os juízes a julgar coisa bem diversa do
que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer
coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em
parte, transferido a instâncias que não são as dos juízes
da infração. A operação penal inteira carregou-se de
elementos e personagens extrajurídicos. Pode-se dizer
que não há nisso nada de extraordinário, que é do
destino do direito absorver pouco a pouco elementos
que lhe são estranhos. Mas uma coisa é singular na
justiça criminal moderna: se ela se carrega de tantos
elementos extrajurídicos, não é para poder qualifica-los
juridicamente e integrá-los pouco a pouco no estrito
poder de punir; é, ao contrário, para poder faze-los
funcionar no interior da operação penal como elementos
não jurídicos; é para evitar que essa operação seja pura e
simplesmente uma punição legal; é para escusar o juiz de
ser pura e simplesmente aquele que castiga.29

Assim, quanto mais o Estado intervém com sua força e


violência punitiva, mais reafirma seus reais propósitos, tudo sob
29
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Tradução Raquel Ramalhete.
21ª edição. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999. p. 22-23.

34
a acomodação das justificativas das liberdades individuais, da
segurança pública, dos direitos à propriedade, do respeito aos
valores fundamentais de uma sociedade, etc., elementos extraídos
do repertório dos direitos humanos.
A eleição dos bens jurídicos tutelados e das condutas humanas
que merecem ser tipificadas – e é bom que se diga que crime não é
um fato ontologicamente concebido, mas histórico e culturalmente
construído30 –, a definição das sanções a elas reservadas, a forma
de aplicação destas medidas, com o modelo de processamento e
posteriormente, de execução penal, faz parte de uma escolha política
e revela claramente a ideologia de poder.
Estas escolhas não são casuais, mas resultado de um processo de
seleção e repulsão aos renegados socialmente, em regra dispensáveis
no processo de produção e onerosos ao Estado assistencial, mas
que levados à raia do sistema de punição terão custos ainda
maiores. Por isso, não é somente pelas razões econômicas que se
dá o processo de alijamento social. Ao contrário, além do sistema
gerar lucros – não para o Estado –, e por este viés já necessário, a
intolerância que permeia nossa sociedade exige a limpeza social dos
inservíveis, porque isso ofende nossa moral, costumes, segurança,
etc. Componentes nitidamente extrajurídicos e que são dados ao
direito resolver. Trata-se do que a psicanálise denomina como a
ética do alheamento do outro, da subjugação dos indesejáveis e que
por isso são expurgados do convívio social, como revela Sérgio
Gomes da Silva:

Ora, uma sociedade que utiliza mecanismos de força


e violência para subjugar o sujeito, marcar a iminente
distinção entre aqueles que estão incluídos e aqueles que
são excluídos, nada mais pode ser do que uma sociedade

30
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral: completamente revisada e atualizada. 4ª edição. Rio de
Janeiro: Lúmen Juris, 2008. p. 144.

35
que fomenta uma nova ética contemporânea, qual seja, a
ética do alheamento.31

No campo processual, ainda que em forma apresente-se em


sintonia com os princípios elementares dos direitos humanos, a
abstração do texto legal e a carga de subjetivismo nele empregada,
permite a adoção de medidas mais acentuadas aos tipos humanos
indesejáveis, aos quais se reservam a firmeza do Estado punitivo.
A título de exemplo, instrumentos processuais cautelares, ainda
vigentes, deixam evidentes que se destinam para alguns em especial,
como a decretação de prisões antes da sentença condenatória
transitada em julgado32, a utilização de algemas no transporte de
presos33, a assistência da família e advogado na lavratura do auto de
prisão em flagrante, celas especiais, etc.
Apesar deste aparato policialesco em que se transformou o
Estado, numa revelação de intolerância deflagrada com determinados
31
SILVA, Sérgio Gomes. Direitos humanos: entre o princípio de igualdade e a tolerância. P. 79-94.
In: Revista Praia Vermelha. ESS/UFRJ. v. 19, n. 1. Jan-Jun 2010: Capitalismo e Crise pós-anos 70 -
recessão econômica, processos políticos e impactos sociais. p. 85. Pesquisa em: http://www.ess.ufrj.
br/ejornal/index.php/praiavermalha/article/viewArticle/108. 30/08/2011. Apud, COSTA, Jurandir
Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública. In: NASCIMENTO, E.
P. (org.) Ética: Brasília – capital do debate – o século XXI – Ética. Rio de Janeiro/Brasília: Garamond/
Codeplan, 1997. p. 67-68.
32
Os requisitos previstos para a prisão preventiva, modelo mais usual de prisão cautelar, descritos no art.
312 do Código de Processo Penal, trazem expressões nitidamente subjetivas, como “garantia da ordem
pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei
penal” e que possibilita à autoridade judiciária a mais ampla divagação, ou as vezes nem isso tem ocorrido,
porque simplesmente se repete o termo legal. Via de regra esta modalidade de prisão é destinada ao
autuado de pequenas posses, geralmente impossibilitado – por fatores sociais e não de direito penal – de
comprovar endereço, atividade ocupacionais e referenciais, e sem condições de dispor de uma defesa
eficiente – não meramente formal para atender o preceito fundamental do devido processo – acaba
sofrendo por antecipação a sanção penal, em detrimento do princípio do estado de inocência.
33
O tema da utilização de algemas só veio a tona depois que personalidades importantes da política e do
sistema financeiro foram apresentados na mídia televisiva algemadas. Em torno disso fez-se enorme
celeuma, findando com a edição da Súmula Vinculante 11: Só é lícito o uso de algemas em casos de
resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do
preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito. Todavia, em primeiro lugar, a mais de 40
anos se convivia com a ausência da previsão do uso de algemas na legislação – o Código de Processo
Penal, na sua redação original (mesmo concebendo-o com produto de inspiração no Código italiano
fascista de Mussolini) em seu art. 284, implicitamente inibe o uso de algemas como regra: Não será
permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso
– sem que fosse motivos de preocupação, embora se soubesse dos excessos; segundo, apesar de toda
discussão e da edição da Súmula Vinculante 11, continuam-se algemando miseráveis sem nenhuma
razão, mas também, sem nenhuma repercussão ou atuação dos agentes fiscalizadores.

36
indivíduos, há sempre uma insatisfação com os resultados, exigindo-
se maior agudeza nas suas ações e maior intervenção nas liberdades
individuais, em detrimento à pauta dos direitos humanos (mas em
nome delas).
No campo do direito penal – e melhor que a doutrina seja
ditada fora do território americano, para que não fiquem claro que
suas ações buscam justificativas no mundo acadêmico – a academia
se encarregou de traçar novos parâmetros para a adoção de medidas
restritivas de direitos dos perseguidos pelo sistema punitivo, sem que
isso signifique ofensa aos direitos humanos. É da Alemanha que vem
então, com Jakobs e Meliá34, a teoria do “direito penal do inimigo”.
Sob este preceito tudo pode contra aqueles que praticam atos contra
a sociedade porque são inimigos da coletividade, não merecendo
nenhuma proteção do Estado vez que romperam o pacto social.
Há, neste arranjo teórico, uma alteração sobre a posição do
indivíduo e do Estado. Como se este precedesse àquele, e a razão
da existência do indivíduo é para acudir a necessidade do Estado.
Toda construção teórica precedente, sobre as dimensões dos direitos
humanos são negadas, desprezando o fato de que os direitos de 1ª
dimensão colocam em choque o indivíduo frente ao Estado, e não o
Estado diante do indivíduo.
Mais do que isso. A ideia de um inimigo coletivo, antes
imputado ao indivíduo com alto poder destrutivo e que por ações
terroristas visa atingir alvos com grande repercussão, transpõe para
o criminoso comum, porque toda conduta criminosa passa a ser
tratada como atitude de inimigos sociais.
Com a extensão da teoria, que na sua concepção primária já
é altamente criticável, o sistema punitivo cumpre bem o seu papel,
isto é, ao invés de assegurar direitos fundamentais, exerce a tarefa
de controle agora pela via do expurgo social tratado como inimigo.
É o miserável, o excluído e desqualificado, o despreparado para
atividades produtivas, ao qual o Estado sonega direitos fundamentais
e que, diante da sua inoperância assistencial e providente, quer varrê-
34
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Organização e tradução André Luís
Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

37
lo do espaço público e notável, porque reservado aos eleitos – visão
religiosa – e merecedores da tutela estatal, pela via punitiva.
Não há dúvida que a utilização do direito penal, mundo afora, a
partir do modelo ditado pelos EUA, mais do que nunca passou a ser o
instrumento de poder propício para segregar minorias já espoliadas,
servindo como anteparo para muitas das demandas sociais, em face
de um Estado que se ausentou dos compromissos com os direitos
fundamentais, como garantias de todos os indivíduos. Ao contrário,
em nome destes mesmos direitos tem-se reproduzindo uma política
de seleção social destinada a conceder a alguns direitos – aos quais
valem o discurso dos direitos humanos – , enquanto aos demais –
inimigos – , não exatamente o abandono, porque o Estado repressor
não os deixam sem as cautelas em prol dos primeiros, a dureza do
sistema de punição.
Em suma, esta sanha punitiva é resultado de uma ideologia de
poder conjugado com a intolerância. Não com a miséria, mas com os
miseráveis; não com a exclusão, mas com os excluídos; não com os
direitos humanos fundamentais, porque produto de uma concepção
elitista que muito serve a quem detém o poder (como a preservação
do direito à propriedade, mesmo em detrimento ao seu uso), com
discurso afinado para ser reproduzido nos mais variados espaços,
desde o manancial legislativo, à definição de políticas públicas e na
retórica acadêmica, mas não com a praticidade e reais destinatários
destes direitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
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11. CONFRONTOS: Um olhar sobre o outro. http://confrontos.no.sapo.pt/
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Que O Resto Do Planeta Somado. Portal Luis Nassif. http://blogln.ning.
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Tradução Ana Paula Zomer Sica e outros. 2º. ed. São Paulo: Revista dos
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Porto Alegre: L&PM, 2010,
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Organização e tradução André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

39
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o fim do Tráfico Negreiro. Fonte: www.multirio.rj.gov.br. http://www.
portalsaofrancisco.com.br/alfa/escravidao-no-brasil/fim-do-trafico-
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20. QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral: completamente revisada
e atualizada. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.
21. SILVA, Sérgio Gomes. Direitos humanos: entre o princípio de igualdade
e a tolerância. P. 79-94. In: Revista Praia Vermelha. ESS/UFRJ. v. 19, n. 1 . Jan-
Jun 2010: Capitalismo e Crise pós-anos 70 - recessão econômica, processos
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Apud, COSTA, Jurandir Freire. A ética democrática e seus inimigos: o lado
privado da violência pública. In: NASCIMENTO, E. P. (org.) Ética: Brasília –
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LEÃO XIII SOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS. Texto em português.
http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-
xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html. Pesquisa em 30/08/2011.
23. WACQUANT, Lóic. As prisões da Miséria. Tradução André Telles. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
24. WIKIPEDIA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. http://
pt.wikipedia.org/wiki/Declara% C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_
Homem_e_do_Cidad%C3%A3o. Pesquisa em 30/08/2011.
25. ______. Papa Pio XII. http://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Pio_XII.
Pesquisa em 30/08/2011.
26. ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual
de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997.

40
A ABORDAGEM HUMANA DOS DIREITOS –
POSSÍVEL GARANTIA DA EFICÁCIA DA LEI E DO
EXERCÍCIO DA JUSTIÇA
Eliane Rodrigues Nunes*

RESUMO:
A sociedade contemporânea está passando por transformações,
considerando principalmente os impactos produzidos por meio da
revolução das novas tecnologias de informação e conhecimento. É
certo que estas variações sociais afetam também os indivíduos em
sua maneira de pensar e de agir. Os problemas sociais reclamam
novas soluções e o direito deve acompanhar tais mudanças, sob pena
de estagnar-se em normas de conduta ineficazes e obsoletas, com o
caos urbano da violência, criminalidade e toda ordem de injustiças
acabarem por dominar todos estes setores da vida em sociedade. Se o
direito não puder acompanhar a torrente transformação da sociedade
moderna corre o risco de ser arrastado como um cisco num vendaval.
A eficácia normativa depende, assim da consciência da relação do
homem consigo mesmo e com os outros indivíduos, numa tendência
de que a criatividade pode levar ao evolucionismo. Se a ordem jurídica

Advogada, integrante do Conselho Penitenciário do Estado de Goiás, Membro do Conselho de


*

Direitos Humanos da OAB-GO, Coordenadora Adjunta do Curso de Direito da PUC-GOIÁS,


Mestre em Educação, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e em Didática do
Ensino Superior (PUC-Paraná).

41
quiser atingir seu propósito de paz e justiça social, o direito deverá
acelerar e promover o desenvolvimento humano, o investimento na
pessoa, por meio da ética e da promoção da igualdade, destacando os
valores consagrados pelos direitos fundamentais da pessoa humana.

No mundo atual, “denominado” de pós-modernidade e


com novos paradigmas, a sociedade contemporânea passa por
transformações, considerando os impactos produzidos por meio
de uma revolução digital e das novas tecnologias, principalmente
as de informação e de conhecimento. Destarte, está imposta esta
dimensão de tudo e para todos (ou quase todos – pelo menos é o
que se vende), em uma época em que permissividade parece ser o
lema, bastando para isto o efetivo interesse e o firme propósito por
alcançar uma meta.
É certo que estas variações sociais afetam também os indivíduos
em sua maneira de pensar e de agir. A globalização e a velocidade
na informática alteram as relações sociais e, por consequência, isto
provoca mudanças em vários outros setores como na economia,
educação, política, etc.
Vive-se num mundo de contradições e interrogações, ou,
talvez, para garantir uma sequência lógica de entendimento e para
dimensionar esta abordagem, num mundo de absurdas interrogações
e comprovadas contradições.
A idéia geral, então, deveria ser a de aproveitar em benefício
da sociedade todos os recursos e o poder de novos paradigmas de
informação, comunicação e avançadas tecnologias, que influenciam o
ser humano em todos os aspectos e, em razão disto, deve (ou deveria)
influenciar numa atenção especial dos governos, suas diretrizes e
seus governantes.
Como saber aproveitar toda esta dimensão para canalizar
em propostas eficientes na melhora da qualidade de vida para, sem
discursos demagógicos mas, realmente acertando, interferir nos
desígnios da nossa história, da nossa política, da nossa cultura?

42
Se o homem é um ser gregário por natureza e não existe apenas,
mas coexiste, conforme descreve Maria Helena Diniz1, espontânea
e até inconscientemente é levado a formar grupos sociais (família,
escola, associações) e, desta forma, os indivíduos estabelecem entre
si relações de coordenação, integração, subordinação e delimitação.
Seria razoável pretender-se que as pessoas não apenas pudessem
correlacionar-se mutuamente mas que este envolvimento pudesse ser
harmônico, igualitário, justo para todos.
É certo ainda que tais vínculos não se dão sem o aparecimento
de normas de organização da conduta social. Então, o direito existe
em função do homem. As normas de conduta, surgidas das relações
sociais, se materializam na lei que, por sua vez, emana do Estado. A lei
pode ser definida como o conjunto de normas e padrões de conduta,
impostas pelo Estado, com a ameaça de sanções organizadas. São
normas jurídicas criadas pelo legislativo com a finalidade de regular
as condutas interpessoais, visando uma convivência ordenada; ou
ainda, princípios elaborados e norteadores da conduta humana para,
em tese, manter a ordem.
Portanto, a lei é elaborada para representar a vontade da
sociedade, alcançando seu objetivo de ser genérica e impessoal,
cabendo a quem aplicá-la, utilizar-se do processo da hermenêutica
e dos princípios gerais do direito para a tarefa de subsumir a norma
abstrata ao fato concreto, almejando a justiça social. Se a lei chega a
realizar este papel, isso é outra história mas, sua elaboração fornece
uma certa segurança jurídica, principalmente tendo em vista seu
poder coercitivo.
Na visão do constitucionalista Luís Roberto Barroso2 o sistema
jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada
de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel
referente à segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das
condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à
realização da justiça no caso concreto.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 240.
1

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Saraiva: 2009, p. 87


2

43
Jean Cruet3, ao escrever “A vida do Direito e a Inutilidades
das Leis”, traz uma contribuição importante, ao abordar a igualdade
perante a lei e a luta do indivíduo pelo direito, afirmando que este
“nunca foi outra coisa senão uma organização das desigualdades.”
Para o advogado, em sua obra que data de 1908 o direito das
sociedades primitivas é prodigiosamente desigual, parecendo adotar
um fim consciente de argumentar a força dos fortes, agravar a
fraqueza dos fracos.

Como se chamava o direito em Roma? Jus, que significa não


equidade, mas autoridade. A idéia de força era tão pouco
estranha à idéia de direito que o velho processo romano
era a imagem fictícia de um combate, e a conquista parecia
o fundamento mais legítimo e mais seguro da propriedade.
Das suas rudes origens, ficou sempre ao “direito”, segundo
a concepção romana,o caráter unilateral e absoluto de um
poder, exercendo-se sobre as pessoas como sobre as coisas,
sem limites, nem contrapeso: o abuso do direito não era
ilícito, como tende a tornar-se nas sociedades modernas,
era o direito mesmo na sua mais alta expressão...

Para o jurista francês, é curioso notar que os povos são de um


modo visível levados a respeitar menos a lei no momento preciso em
que, por um movimento quase geral, parecem querer exigir-lhe mais.
“(...) O poder das leis detêm-se diante da soberania da posse sobre si
mesma, porque se em alguma parte se encontra a soberania, não é no
Estado, é no indivíduo.” (ibidem, grifou-se).
Nas concepções para a abordagem do direito, a eficácia é,
assim, um requisito essencial. Para garantir a validade da lei, várias
concepções do direito lançam mão da força coativa que emana de
suas normas. Assim, segundo Kelsen4, direito é um ordenamento
CRUET, Jean. A Vida do Direito e A Inutilidade das Leis. Impressão Histórica da Ibero-Americana,
3

Barcelona, 1939, p. 142.


KELSEN, Hans. O que é Justiça? 3ª. Ed. São Pau7lo:> Martins Fontes, 2001. Tradução: Luis Carlos
4

Borges. P. 73.

44
considerado válido quando o que prescreve são normas eficazes,
ou seja, além de terem vigência, uma vez que são determinadas em
lei, também são de fato respeitadas e aplicadas. Para tanto, a norma
abstrata prescreve também a respectiva sanção para, eventualmente
quem violar o preceito proibitivo, estar sujeito a uma coação (este
não é senão o poder coercitivo da lei).
O Direito em Kelsen constitui-se “primordialmente como um
sistema de normas coativas permeado por uma lógica interna de
validade que legitima, a partir de uma norma fundamental, todas as
outras normas que lhe integram”. Norma coativa seria, portanto, a que
evita conduta por todos indesejada por meio da coação; validade seria
a legitimidade do ato criador da norma, nestes termos, a sua eficácia;
a justiça, assim seria o que é aceito pela sociedade, não visualizando o
sentimento individual de Justiça, mas o sentimento coletivo.
Já para Kant5, a abordagem do direito deveria estar inserida
num contexto de relações externas entre os homens: “o conceito
de direito, enquanto este se refere a uma obrigação correspondente
(...) diz respeito em primeiro lugar somente à relação externa, e
absolutamente prática, de uma pessoa com relação à outra, enquanto
as ações próprias podem ter como base influências recíprocas”. Ainda
a respeito da relação entre as pessoas e o direito de cada um, pondera
o célebre autor: “ (...) o direito é o conjunto das condições por meio
das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um
outro, segundo uma lei universal de liberdade”.
Como ciência, o Direito em sua essência é eminentemente
reflexivo e nisto difere da dimensão exclusivamente formalista
inerente à concepção de norma legal. O Direito surge da experiência
e das relações humanas e, como tal, pertence ao mundo cultural.
Assim, “o fenômeno jurídico é uma realidade fático-axiológico-
normativa que se revela como produto histórico-cultural, dirigido à
realização do bem comum”6.

KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro, Ediouro, 1998, p. 37.
5

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 461.
6

45
Diante destas abordagens a respeito do direito como o
fenômeno que surge do fato que, valorado, é descrito pela norma,
verifica-se que a justiça é seu objeto de alcance e que isto é possível
por meio da eficácia.
É de conhecimento notório também que a justiça que impera
nos ideais preconizados na lei é inoperante, ineficaz e, de acordo com
José Saramago7, continua a morrer todos os dias.

Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui


ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De
cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido
para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que
dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de
esperar: justiça, simplesmente justiça.

A fala de Saramago traduz, infelizmente, um quadro real da


vida urbana e representa o panorama atual da ineficácia das leis do
nosso país. O panorama jurídico contemporâneo é pautado pela
violação de direitos.
Segundo a ONG Human Rights Watch –HRW8, o Brasil é
destaque em violação de direitos humanos no que diz respeito,
principalmente, à situação da violência policial e a questão das
penitenciárias, consideradas desumanas. De acordo com o relatório
da organização, apenas no Estado do Rio de Janeiro, a polícia foi
responsável por 505 mortes violentas no primeiro semestre de 2010,
o que representa uma média de quase três por dia. O documento
também denuncia as condições desumanas das prisões brasileiras,
onde predominam a violência e a superlotação.
Para a ONG, a violência policial, a impunidade e um sistema
carcerário desumano são os principais desafios do Brasil em matéria
de direitos humanos. “O uso de tortura é um problema crônico no
SARAMAGO, José. Este mundo de Injustiça Globalizada. Distribuição permitida por WWW.ciberfil.
7

hpg.ig.com.br.2002. Acesso em 03/09/2011.


http://www.hrw.org/Human Rights Watch. Acesso em 06/09/2011.
8

46
sistema carcerário”, afirma o relatório, que traz a seguinte estatística:
somente entre 2006 e 2010, a população carcerária aumentou 37%”,
passando de quase quatrocentos mil detentos para quase quinhentos
mil. Porém, a infraestrutura necessária não aumentou no mesmo
ritmo. O crescimento no número de vagas no sistema prisional nesses
quatro anos foi de 19%.
Segundo o site9 do Conselho Nacional dos secretários de
Estado da Justiça, Cidadania, Direitos Humanos e Admi­nis­­tração
Peni­tenciária (Con­sej), é de quarenta anos o tempo que o Brasil
deverá levar para suprir o atual déficit de 170 mil vagas no sistema
prisional. A previsão leva em conta a disponibilidade de recursos no
Fundo Penitenciário Nacional (Fun­pen) e o custo de construção da
estrutura necessária para se receber cada detento, que hoje chega, em
média, a R$ 40 mil.
Ainda segundo o relatório da HRW: em áreas rurais, a violência
e os conflitos da terra são permanentes e os defensores dos direitos
humanos sofrem ameaças e ataques; nas áreas metropolitanas
do país, em especial nas favelas, os moradores são flagelados pela
violência, difundida e perpetrada por grupos criminosos, polícias
arbitrárias e milícias armadas, algumas ligadas às polícias; a cada ano,
aproximadamente, 50 mil pessoas são assassinadas no Brasil; dados
oficiais relatam que as polícias matam em situações descritas como
“resistência seguida de morte”; vários policiais também são mortos
durante as operações, que visavam desmontar grupos de traficantes
de drogas, principalmente no Rio de Janeiro; vários relatórios
apontam que as prisões são locais de tortura, intimidação e extorsão.
O documento aponta que os abusos policiais são justificados
pelas autoridades, às vezes, como fato inevitável para combater
taxas de crime muito elevadas; o trabalho forçado continua a ser um
problema nas áreas rurais do Brasil; desde 1995, quando o governo
federal criou unidades móveis para monitorar as condições do
trabalho em áreas rurais, aproximadamente 26 mil trabalhadores
www.conselhonacional de secretários de Justiça, Cidadania, Direitos Humanos e Administração
9

Penitenciária. Acesso em 05/09/2011.

47
foram libertados em condições análogas ao trabalho escravo; os
povos indígenas e os trabalhadores rurais sem terra enfrentam
ameaças, ataques violentos e matanças em conseqüência da disputa
por terra em áreas rurais; o Brasil nunca processou os responsáveis
pelas atrocidades cometidas no período da ditadura militar (1964-
1985); apesar do relatório do governo federal com os resultados de
uma investigação sobre os mortos por razões políticas no período
entre 1961 e 1988, a comissão foi incapaz de esclarecer aspectos
importantes destes crimes.
Em síntese, o relatório da Human Rights Watch revela ao mundo
uma realidade que todos sabemos: os direitos humanos no Brasil
apontam uma dívida histórica, principalmente com os segmentos
excluídos, somando-se com a inoperância do Estado em incorporar
os direitos mais básicos e elementares de uma sociedade democrática,
assim também com os arbítrios institucionais responsáveis pela
violência e criminalidade crescente.
O cruel de se observar é que o relatório, tão atualizado em
suas estatísticas, não trouxe nada de novidade. Os problemas
brasileiros, no que diz respeito à violação de direitos humanos, são
históricos e foram se acumulando por várias décadas, enraizando
atitudes principalmente institucionalizadas, o que representa uma
realidade ainda mais grave. Além de todos os nossos problemas de
desigualdade social, pobreza, falta de emprego, salário miserável,
saúde e assistência médica precária, criminalidade, preconceitos,
registra-se uma série de abusos até mesmo perpetrados pelo Estado,
que deveria ostentar a autoridade de não contribuir em nada para
agravar estes índices estatísticos.
A partir deste quadro, pode-se chegar à conclusão de que se
o homem é o responsável pela criação e desenvolvimento da pós-
modernidade, com toda a revolução que lhe é peculiar, é também ele
protagonista das conseqüências advindas, conseqüências estas que nada
têm da era virtual. São concretas, sangrentas, reais, doloridas,...fatais.
É certo que, ao longo dos, tempos, o homem fez e narrou a
sua própria história. Homens narram história de outros homens,

48
pontuada por fatos ou conflitos, sejam eles culturais, políticos
ou sociais.
Pode-se analisar a história da humanidade tendo-se por base
as guerras: a Primeira e Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a
Guerra do Vietnã, a Guerra do Iraque, os conflitos militares entre os
Estados Unidos e o Oriente Médio e tantos outros conflitos e disputas
pelos mais variados motivos (se é que uma guerra pode ter uma
justificativa compreensível). Não é curioso pensar que as guerras e os
conflitos são importantes marcos na história do homem e não, por
exemplo, os acordos pela paz? Na linha do tempo da humanidade,
o que serviu de base para a cronologia e a divisão da história em
períodos foram fatos significativos e, dentre estes, os pontos mais
marcantes são, sem dúvida, as guerras.
É fato, também, que o homem só consegue limitar e compreender
a história no futuro, ou seja, a época da Grécia Antiga só foi nomeada
e entendida da forma como se conhece no Renascimento, cujas
ideologias, por sua vez, foram retomadas décadas depois.
Pode-se abordar a história também através de seus vultos
marcantes que, a cada época, em cada contexto de sua respectiva
cultura, fizeram e fazem a história: seja pela matemática de Isaac
Newton e Galileu, pela física de Albert Einstein ou pelas teorias da
revolução dos astros de Nicolau Copérnico; seja pela genialidade de
um Leonardo Da Vinci, que foi filósofo, pintor, escultor, engenheiro,
músico, etc, ou pela poesia de Fernando Pessoa e, porque não dizer,
de Chico Buarque e Vinícius de Moraes.
Outro marco que pode ser levado em consideração na história
é o tempo. Segundo Frei Betto10, os persas foram os primeiros a
perceber o tempo como história. Os hebreus passaram, através do
Antigo Testamento, essa idéia forte de que tempo é história. Para o
adepto da teologia da libertação, “entre os grandes pilares da cultura
contemporânea, três trabalharam o tempo como história e os três
eram judeus: Jesus, Marx e Freud”. Jesus trabalhou o tempo histórico

BETTO, Frei. Um sentido para a Vida. São Paulo:Nov. 1997.


10

49
como construção do reino de Deus, e fez a ligação entre o princípio,
o Paraíso e o fim, a escatologia, o Apocalipse, a nova vinda. A visão
cristã imprime ao tempo uma historicidade, como herança da visão
judaica, na qual isso é muito arraigado. Marx ensinou que, para poder
entender os vários modos de produção, deve-se resgatar a história
desses modos. E Freud, para quem, numa abordagem bem objetiva,
só se pode entender os desequilíbrios de uma pessoa resgatando a
história dessa pessoa, indo, inclusive, aos porões do inconsciente.
Pois bem, se o homem sempre norteou e teve nas mãos o fio
condutor da história, ele é por ela, assim, responsável.
Recorrendo uma vez a Frei Betto em seu texto “Um Sentido
para a Vida”: “somos contemporâneos de um outro evento, que não é
novidade, mas é raridade: mudança de época. Ou seja, não vivemos
apenas numa época de mudanças; vivemos uma mudança de época”.
(...) “Quando se tem a percepção do tempo como história, tem-se o
varal onde dependurar os valores...a vida ganha um sentido. E esse é
o bem maior que todos nós procuramos: um sentido.“
É isto que, ao que parece, o homem perdeu nos tempos atuais:
um sentido, um rumo, ou ainda, os rumos da história. O que se percebe
hoje é que, após a revolução agrícola e industrial, possivelmente o
ser humano vivencia, tornando-se intérprete e ator principal, outra
revolução que, como as demais, transforma o meio ambiente social,
cultural, natural, econômico, político e histórico.
É razoável pensar que toda revolução vem para alterar
situações no sentido de evoluir, de melhorar, acelerando processos de
crescimento humano, de relacionamento entre as pessoas de maneira
mais racional. Porém etimologicamente, a palavra revolução significa
mudança, sucessão de um fato para outro. É comum afirmar-se que
toda esta revolução implica em transformação e não, necessariamente,
em evolução.
Tendo em vista este contexto, é compreensível que se registre
nos “anais” da história contemporânea o fato de pessoas passarem
fome, chegando a morrer por isto? Em desemprego, desigualdade e
preconceitos de todas as espécies? Em crimes que não são julgados

50
por inoperância do poder? Em marginalidade crescente por ineficácia
da segurança pública? Em instituições serem atacadas e as pessoas
que a representam serem mortas covardemente no exercício de uma
função estatal? Em inviabilidade de propostas que possam amenizar
o alastramento do domínio das drogas?
Enfim, cabe questionar, de uma forma bem simplista: que
mundo é este? Se há tanta inovação tecnológica, tantos recursos,
tantos projetos e propostas e as esferas do conhecimento científico
pode perpassar as fronteiras do espaço numa velocidade antes
inimaginável (agora possível), porque tantos males sociais afligem
o mundo atual? Porque tanta violência? Porque tanta corrupção?
Porque ainda aturar-se episódios de tanta fome? Porque tanta riqueza
para uns? Porque tanta miséria para vários? Qual o sentido, o rumo,
o caminho da nossa história?
Poder-se-ia efetivar planos concretos para decretar a utopia
proposta por Eduardo Galeano11 em sua “História do mundo ao
avesso”, quando, numa das frases de maior efeito que já se viu, pondera:
“ninguém morrerá de forme por que ninguém morrerá de indigestão!”
No universo do direito ao delírio proposto por Galeano,
há outras afirmações dignas de serem tratadas como objeto de
convenções internacionais, pactuadas sem restrições: “a educação
não será um privilégio de quem possa pagá-la; a polícia não será o
terror de quem não possa comprá-la; a justiça e a liberdade, irmãs
siamesas condenadas a viver separadas, tornarão a unir-se bem
juntinhas, ombro contra ombro...”
O que se depreende é que, em que pese tantas transformações,
a sociedade continua envolta em questionamentos que parecem datar
de outra época e que se referem a uma outra sociedade, desprovida
dos recursos básicos de sobrevivência, destituída dos resquícios
de civilidade e de valores; uma sociedade perdida num caos de
desrespeito entre seus integrantes e na banalização dos bens mais
relevantes para o homem.

GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Tradução de Sergio Faraco.
11

Porto Alegre: L&PM, 1999. P. 343.

51
De alguma forma, é preciso que o homem possa assumir o
comando da história e consiga ser o detentor de atitudes e ações que
possam, efetivamente, minimizar tantas mazelas do mundo atual.

Mais do que resultado da evolução, o homem é por ela


responsável. Responsável não por um compromisso
econômico, político, psicológico, social, mas porque é o
continuador e depositário consciente de todo o processo
genético do universo.12

Diante deste quadro de tão absurdos questionamentos num


mundo de tantas oportunidades de se fazer o bem e o certo, surge
na mente de forma inexorável: “o homem é sua própria resposta.
Resposta de grandeza ou de miséria, de indiferença ou de cólera, de
audácia ou de cinismo, de esperança ou de angústia.”
O que está fazendo falta, o que poderia fazer a diferença neste
contexto, é a apropriação do ser cidadão, ciente de deveres e direitos,
engajados nessa tarefa global pela promoção do direito de todos. É o
fato de ser humano e saber o que isto significa que pode fazer valer
nossas leis, instrumentos de garantia de justiça e paz. É o fato de SER,
ESTAR, FAZER ... HU-MA-NO.
O “SER” humano, Homo sapiens, traduz-se em homem sábio,
dotado de cérebro, de razão, altamente provido de capacidades e
habilidades; de introspecção e reflexão tanto para inventar quanto
para reinventar; tanto para apresentar novos saberes, inaugurando
novos pactos sociais ou culturais, propondo novos paradigmas,
quanto apresentando resoluções para os diversos dilemas e conflitos.
É o ser capaz, competente e hábil em utilizar a escrita, os gestos, a
comunicação verbal, as palavras, para provocar transformações,
para expressar idéias e ideais, para trocar experiências e se organizar
num sistema harmônico. É o ser que possui capacidade mental para
ARDUINI, Juvenal. Homem-libertação. 2ª. Edições Paulinas. São Paulo: 1975. p. 119.
12

52
transformar sua vivência em sociedade, melhorando sua qualidade
de vida, criando instrumentos, utilizando máquinas e ferramentas,
manipulando substâncias, transformando, enfim, seu ambiente.
O “ESTAR” humano implica em participar, em inserir-se no
mundo, em fazer parte de um todo, estando nele inserido efetivamente.
É sentir-se parte de uma realidade, integrado e comunicado com
outros seres viventes nesta realidade. O estar pressupõe que vivemos
e podemos viver como queremos; se estamos como estamos, é
porque estamos fazendo ou estamos deixando de fazer e, assim,
nossa atitude ou ausência determina o estágio e condição que nos
encontramos. Nossa condição no mundo em que vivemos depende
de nossas atitudes e de nossa contribuição. É preciso estar consciente
de que, o oferecimento de nossa parte por meio de nossas ações, não
só é muito importante para o resultado como um todo, mas pode ser
imprescindível para o desfecho feliz da humanidade. A palavra de
ordem é o compromisso e o comprometimento com o máximo que
podemos, para garantir, ao menos, o mínimo que merecemos.
O “FAZER” humano implica em tomar decisões e, para
tanto, pensar, refletir. Não apenas executar tarefas. A trajetória
especificamente humana passa pela elaboração (“e-laboração”:
laborar significa preparar gradualmente e com trabalho), ou seja,
preparar de forma consciente e responsável nossas atitudes, projetos
e ações. A tarefa não é fácil, posto que implica em vencer o fatalismo
e, portanto é árdua e sugere agir de forma ousada e audaciosa; a
superação perpassa pela coragem e pelo esforço.
Esta concepção de ser, estar e fazer humano individual é, assim,
ao mesmo tempo, social. Implica em ser, estar e fazer na sociedade
e por ela. É preciso tomar consciência de que, enquanto cidadão na
dimensão individual, se é também plural, coletivo, parte constituinte
uns dos outros; tal qual a metáfora de Shopenhauer: os porcos
espinhos, no frio, aproximam seus corpos para se aquecer, mas se
esquecem que, com isso, acabando se espinhando e matando-se, uns

53
aos outros. Para não morrerem nem de frio, nem apunhalados, eles
encontram um espaço em que ficam juntos, se espetam, mas não se
matam. É preciso encontrar um meio de viver em sociedade, para
não morrer congelado, sem, contudo, tomar o espaço do outro.
Talvez os problemas em relação ao direito e a justiça frente
às situações de absurdo deparadas no cotidiano do ser humano
possam ser amenizados se forem tratados como desafios a serem
superados no saber/fazer. Mas há um desencanto da sociedade com
seus direitos, uma certa desesperança social. De maneira geral, as
pessoas chegaram à conclusão de que não vale à pena persegui-los,
que ninguém faz nada para mudar, então, também não fazem nada.
Falar de desencanto num mundo de questionamentos absurdos
remete ao pensamento de Albert Camus13. Para o seu o mundo de
absurdos impera a falta de perspectivas cumulada com a solidão e
angústia humana, o que constitui seu universo de reflexões e seriam
os grandes desafios do homem lúcido. O direito e a sociedade, com
toda a sua desorganização, retiram do Estado sua legitimidade,
num desencanto por suas estruturas e também pelo direito como
instrumento para alcançar a organização social.
Como canta em sua poesia, Ferreira Gullar14 “a história humana
não se desenrola apenas nos campos de batalhas e nos gabinetes
presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e
galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos,
nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis
fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida
obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à
vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e
as coisas que não tem voz”.
O certo é que, se o direito é um arcabouço de valores éticos e
morais da sociedade que ele rege e na qual ele é gerado, exige, por

CAMUS, Albert. O Avesso e o Direito. São Paulo: Ed. Record, 1997. P. 61.
13

GULLAR, Ferreira. Corpo a Corpo com a Linguagem. Mapa:1997.


14

54
isso mesmo, uma lapidação constante e reiterada reafirmação de
valores que ele encerra. Desta forma, o indivíduo pode apoderar-
se de seus direitos, na medida em que este deve direcionar-se por
caminhos paralelos: deve reverenciar o passado, o presente e o
futuro. Reverencia-se o passado porque não se pode desprezar as
raízes das normas legislativas, suas origens sociais, seus ideólogos
e mártires; o presente por que é para a sociedade atual que ele se
aplica; o futuro por que uma norma jurídica é casuística, tendente
a resolver problemas comuns e gerais e, como fixadora de valores
vigentes, deve pretendê-los assegurados para os tempos vindouros.
É preciso, pois, que o indivíduo possa recriar este direito e exigir a
eficácia das normas, quando justas, lutando para que todo direito
seja recriado a cada momento, para atender a dinâmica que o
mundo moderno contempla.
É preciso fazer uma ponte entre o passado e o presente para
repensar o futuro.
É preciso que a lei, como instrumento do Estado para garantia
da paz e da organização social não seja um ataúde dos sonhos
daqueles que lutaram pela materialização de um direito nem seja
mero adorno da vontade do legislador.
É preciso conhecer o coração que habita na lei, o ser humano
a quem ela se dirige, a sociedade que ela disciplina, a ideologia que
ela reverencia e a justiça que ela persegue. Na medida em que as
pessoas aprendem com os erros ou acertos do passado, podem atuar
no presente e, assim construir um futuro mais equânime em direitos
e oportunidades.
É preciso que o ser humano e o ser social assumam
a responsabilidade de determinar a história a partir de seu
envolvimento com ela, não como testemunhas ou espectadores, mas
como dirigentes de sua trajetória.

55
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. ARDUINI, Juvenal. Homem em questão; 1 - Homem-libertação. 2ª.
Edições Paulinas. São Paulo: 1975.
2. BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo.
Saraiva: 2009.
3. BETO, Frei. Um sentido para a Vida. São Paulo, nov.1997.
4. CAMUS, Albert. O Avesso e o Direito. São Paulo: Ed. Record, 1997.
5. CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE JUSTIÇA,
CIDADANIA, DIREITOS HUMANOS E ADMINISTRAÇÃO
PENITENCIÁRIA. WWW.conselhonacional de secretários de Justiça,
Cidadania, Direitos Humanos e Administração Penitenciária. Acesso em
05/09/2011.
6. CRUET, Jean. A Vida do Direito e A Inutilidade das Leis. Impressão
Histórica da Ibero-Americana, Barcelona, 1939.
7. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 11
ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
8. GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso.
Tradução de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999.
9. GULLAR, Ferreira. Corpo a Corpo com a Linguagem. Mapa: 1997.
10. KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro, Ediouro, 1998.
11. KELSEN, Hans. O que é Justiça?. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Tradução: Luis Carlos Borges.
12. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro:
Forense, 1995.
13. ONG Human Rights Watch –HRW - http://www.hrw.org/Human
Rights Watch. Acesso em 06/09/2011.
14. SARAMAGO, José. Este mundo de injustiça globalizada. Distribuição
permitida por www.ciberfil.hpg.ig.com.br.2002. Acesso em 03/09/2011.

56
BREVÍSSIMAS NOTAS
SOBRE (DIRIGENTES) PROTEÇÕES
Gabriel Divan*

Nas grandes cidades, no pequeno dia-a-dia


O medo nos leva tudo, sobretudo a fantasia
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão vazia
Nas grandes cidades de um país tão violento
Os muros e as grades nos protegem de quase tudo
Mas o quase tudo quase sempre é quase nada
E nada nos protege de uma vida sem sentido

(Muros e grades, Engenheiros do Hawaii, recuerdos porto-


alegrenses para meus amigos do cerrado1)

É inafastável a constatação de que o ordenamento jurídico (e


necessária e conseqüentemente os sistemas penal e processual-penal

Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Processual Penal
*

da Universidade de Passo Fundo-RS. Conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA).


Advogado.
1
Aqui vão, literalmente, “brevíssimas”, essas “notas”, são extrato de algumas idéias que vão debatidas
em minha fala no VI Simpósio Crítico de Ciências Criminais, organizado por esse grupo que não
canso de admirar e com quem não canso de aprender, o Grupo de Estudos e Pesquisas Criminais
(GEPeC). Para, especialmente, Alexandre Bizzotto, Andréia de Brito Rodrigues, Felipe Vaz de
Quiroz e Denival Francisco da Silva: obrigado pela amizade, acima de tudo.

57
pátrios) se encontra (ao menos de modo inicialmente idealizado)
diante do lastro e sob os mandamentos de uma Constituição Federal
promulgada no prisma de valores tidos por democráticos em sua
configuração ilustrada.
Nesse diapasão, importante ressaltar que, para além das
possíveis discussões quanto à sintonia dos conceitos-chave para
essa brevíssima visita ao estudo da questão, temos em conta, com
FELDENS, que existe uma base para servir de eixo da idéia trabalhada
nesse momento. E essa base ou conexão possível de identificação
passa por assumir que vai defendida – na Carta de 1988 - uma
espécie de padronização (standard) do que se convenciona chamar,
na esteira do autor citado, de uma vinculação entre moral e direito
que se assume enquanto tributária de conjunturas assentidas nas
democracias ocidentais de nossa era e plasmadas nas Declarações
Internacionais de Direitos Humanos2.
Ressalta ainda, o autor, que isso decorre da necessidade de
identificar uma vinculação entre direito e moral que (a) assuma o
cunho crítico da ingerência moral em âmbito jurídico e (b) não
aprisione a aplicação jurídica a preceitos eminentemente morais (lato
sensu) nem que assuma como bandeira o necessariamente superado
(e superável) juspositivismo acrítico: há que existir um denominador
mínimo quanto a algum quesito-base de elemento de justiça para que
a aplicação do direito seja possibilitada3. E assim, poder-se-ia arriscar
dizer, pois, que há mesmo um norte, um padrão de direção quanto à
ingerência dos direitos ditos fundamentais e modulações iniciais para
esses direitos, que nas constituições democráticas contemporâneas
(ao menos no mundo ocidental), segue a linha dessas Declarações
Universais (mormente após eventos que funcionaram como marcos
históricos do século passado, tal as ditas Grandes Guerras e suas
inescapáveis conseqüências político-sociais).

FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 22.
2

3
FELDENS, op. cit., idem.

58
E são esses pontos de necessária ingerência calcados nesses
padrões eleitos e reconhecidos4 que representam incisões escolhidas
para traçar as linhas-base dos ditos Estados Constitucionais de Direito
sem (apenas) o esvaziado caráter exclusivo de meras propostas.
Ou seja: fatores como a eficácia dos Direitos Fundamentais
incorporados e ostentados pelo texto constitucional mais
como diretrizes necessárias do que como programações, e sua
perspectiva (jurídico) objetiva (sem que, como ressalva SARLET,
isso necessariamente signifique um malfadado estímulo a um
ativismo inoportuno “hipertrofiado”5) fazem com que não se
possa opor argumento razoável à idéia de que existe uma clara
índole relativa a um certo rol ou perfil de direitos que o texto
constitucional intenta ver defendidos6. Quase não seria preciso,
aqui, ressaltar, que a questão da índole ou propositividade
vinculante constitucional, não apenas em relação à elaboração
e à aplicação de normas jurídicas que lhes são subordinadas
sistematicamente, mas a toda visão global e política dos Estados
nas democracias após a segunda metade do século passado teve

“Como uma das implicações diretamente associada à dimensão axiológica da função objetiva
4

dos direitos fundamentais, uma vez que decorrente da idéia de que estes incorporam e expressam
determinados valores objetivos fundamentais da comunidade, está a constatação de que os direitos
fundamentais (mesmo os clássicos direitos de liberdade) devem ter sua eficácia valorada não só sob
um ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante
o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na totalidade, já que se
cuidam de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar”. SARLET. Ingo Wolfgang. “Constituição
e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de
insuficiência” in Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 47. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p. 86.
SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos Fundamentais e proporcionalidade: notas a respeito dos limites
5

e possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria


criminal” in Revista da Ajuris. Ano 35, n. 109. Porto Alegre: AJURIS, 2008, especialmente p. 142 e
nota n. 06.
“Sem que se possa aqui aprofundar o tema, o que importa, para efeitos de presente texto, é a constatação
6

de que a função dos direitos fundamentais não se limita (notadamente no contexto do Estado
Democrático de Direito) à sua condição de direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do
poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da
Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos
legislativos, judiciários e executivos”. SARLET, op. cit., pp. 142-143.

59
alguns ápices doutrinários como o conceito padronizado a partir
da publicação da já clássica obra de CANOTILHO, incensando a
idéia de “Constituição Dirigente”7.
Tem-se, pois, como cristalina a existência de elementos
claramente mandamentais (e conseqüentemente, vinculantes em
certo aspecto) provenientes dos textos constitucionais de certa família
ou quadra histórica em face ao tríptico elaboração-enquadramento-
aplicação das normas jurídicas, que visam a tutela ou gestão desses
direitos (estipulados com base nos princípios e valores constitucionais
condizentes com os cânones do Estado Democrático), através de
seu (aguardado) potencial compromissório frente ao legislador e ao
intérprete jurídicos. E isso, saliente-se, não contempla sequer um
resquício de homenagem necessária a qualquer tipo de autoritarismo
ou glorificação de uma atividade estatal hiper-suficiente (em sua visão
cética que evoca ecos hobbesianos8) uma vez que apenas sofismando
não se pode ter, hoje, a consciência de que:

O nosso Estado (...) como se depreende do tratamento


dado à liberdade e à igualdade, cercadas de direitos sociais,
ao lado dos direitos individuais, optou pela democracia
providencialista ou democracia econômica e social. Nela
(...) predomina o valor liberdade, já que respeitada a
autonomia individual, mas se reconhece que a liberdade de
todos só pode ser obtida pela intervenção estatal, à míngua
da qual a liberdade seria mera aparência (...) Ressalte-se,
num parêntese, que o intervencionismo estatal, inerente
a uma democracia providencialista, corolário de uma

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo


7

para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, Limitada.
Reimpressão. 1994. Importante salientar que os desdobramentos eminentemente políticos da
concepção ampla de “Constituição Dirigente” trazida pelo doutrinador luso e seu papel na (suposta)
transformação e transição dos regimes políticos para estados ditos sociais no século anterior não
será aqui abordada. Sobre isso, importante registro de discussão e reverberação dessas idéias em
âmbito pátrio: Canotilho e a constituição dirigente. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (org.). Rio
de Janeiro: Renovar, 2003.
Por todos, no mister, sempre: HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado
8

eclesiástico e civil in Os pensadores. Trad. MONTEIRO, João Paulo. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. 
São Paulo: Abril, 1974, 1 ed.

60
Constituição dirigente, diverge do intervencionismo
próprio dos regimes totalitários de governo9.

É patente a superação da discussão quanto à faceta (tida


erroneamente por) necessariamente prejudicial (e/ou maléfica) da
intervenção estatal-mandamental no sistema jurídico penal, via
expansão de atuação em algumas frentes, calcada em elementos de
agendas necessárias (para não dizer obrigatórias10) trazidas pelo corpo
constitucional. O suplantar definitivo vem com a obrigação cogente
em assumir que não mais se sustenta a visão de uma obrigatória e
inclemente “contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre
Estado e indivíduo”11 diante das próprias e assumidas concepções
atualizadas de estado constitucional.
Afinal, não se olvida que, mais do que simplesmente tangenciados
ou abrangidos pela Fragmentariedade12 da incidência criminalizante
(enquanto princípio penal ou mesmo, para BITENCOURT13, como
decorrência do caráter de ultima ratio – Princípio da Intenvenção
Mínima, que imantantaria as normas punitivas14), certos elementos
entram no âmbito da recomendação e/ou dos chamados imperativos
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto
9

Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1992, p. 42.


10
Alguns exemplos dessas agendas obrigatórias - cuja problemática será melhor trabalhada à
continuação - são trazidos, em relação direta com o direito penal, por FELDENS, op. cit., pp. 42-47.
11
STRECK, Lênio. “A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso
(‘übermassverbot’) à proibição de proteção deficiente (‘untermassverbot’) ou de como não há
blindagem contra normas penais inconstitucionais” in Revista da Ajuris. Porto Alegre: AJURIS. V.
32, n. 97, p. 175.
12
“O direito penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais
importantes, decorrendo daí seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte
dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito
Penal. Parte Geral, vol. 1. 15 ed. Revista, atualizada e ampliada São Paulo: Saraiva, 2010, p. 44.
13
Idem, p. 42.
14
“Mesmo em relação aos bens jurídico-penalmente protegidos, restringe, o Direito Penal, sua tutela a
certas espécies ou formas de lesão, real ou potencial. Viver é um risco permanente, seja na selva, entre
insetos e animais agressivos, seja na cidade, por entre veículos, máquinas, e toda sorte de inventos da
técnica, que nos ameaçam de todos os lados. Não é missão do Direito Penal afastar, de modo completo,
todos esses riscos – o que seria, de resto, impossível – paralisando ou impedindo o desenvolvimento da
vida moderna, tal como o homem, bem ou mal, a concebeu e construiu”. ASSIS TOLEDO, Francisco
de. Princípios básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008, 5 ed., 14 ª tiragem, p. 17.

61
de tutela (penal)15, como decorrências da própria faceta social do
Estado (como para LUISI16).
Ocorre, entretanto, que quando da sustentação de que realmente
existe a necessidade de se ampliar o raio de atuação do estado
democrático-social (em contrapartida à – dita – antiga necessidade
de refrear a expansão do Estado hobbesiano), se olvida, por vezes,
que esse atuar (no sentido de um legislar sobre, estabelecendo gestão
penal dos conflitos relativos à matéria, constitucionalmente impelido)
significa fazer incidir o Direito Penal não sem deixar de levar em
conta suas regras intrínsecas de possibilidade para essa incidência.
Dito de outra forma: ao se reconhecer, por exemplo, a não
aplicação de uma norma incriminante para uma prática de conduta
que pode ser descrita como “típica, ilícita e culpável” em virtude
da dita insignificância do objeto do crime (imaginemos, exemplo
clássico, um furto de objeto de valor econômico desprezível), não
estamos negando ou afastando a incidência do braço punitivo do
Estado (através do Direito Penal) para a “questão” patrimônio, mas
sim verificando que a incidência da normatividade penal para aquele
caso específico, esbarra em caracteres próprios de não-atuação17.
Desmascarar o alarmismo é tarefa inserida no rol de ordens do dia.
15
“Obviamente, pois, no que concerne à força normativa dos dispositivos constitucionais que veiculam
expressamente imposições constitucionais de criminalização, duas hipóteses que se fazem extremamente
opostas merecem, de pronto, ser rechaçadas: aquela que vislumbre uma eficácia penalizadora
‘automática’ da norma que veicule um mandado de penalização e, por outro lado, aquela que nela não
deposite eficácia alguma (...) De uma eventual omissão legislativa resultaria, em primeira análise, que o
legislador incide em nítida situação de ilicitude constitucional, porquanto sua passividade supõe, nesses
casos, uma infração ao ordenamento jurídico, situação essa que se distingue da mera inércia legislativa.
Na primeira hipótese (omissão), o legislador está vinculado a um dever jurídico que decorre da própria
normatividade exsurgente da Constituição, sendo sua atuação informada, em casos tais, por um
princípio de irrenunciabilidade”. FELDENS, A constituição penal. A dupla face da proporcionalidade
no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 77-79
16
“(...) Todavia as constituições contemporâneas têm (...) uma série de preceitos destinados a alargar a
incidência do direito criminal no sentido de fazê-lo um instrumento de proteção de direitos coletivos,
cuja tutela se impõe para que haja uma justiça mais autêntica, ou seja, para que se atendam Às
exigências de justiça material”. LUISI, Luiz. Os princípios Constitucionais Penais. 2 ed. Revista e
Aumentada. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2003, p. 57.
“A este ilícito típico, aqui entendido como categoria dogmática materialmente informada por um juízo de
17

ilicitude centrado na ofensa a bens jurídicos, não basta, pois, o mero preenchimento dos requisitos formais
da tipicidade. É também indispensável o atendimento de seus requisitos substanciais, dos requisitos atinentes
à ofensividade”. D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios (contributo à
compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 41.

62
Pensando, com D’ÁVILA18, em uma compreensão revisitada do
conceito de Direito Penal como proteção à ofensa a bens jurídicos19,
temos enquanto incontornável o fato de que a ofensividade tal como
centro gravitacional da real caracterização de um ilícito tem sede
eminentemente constitucional20, no que podemos concluir que à
mesma consideração o legislador e o intérprete estão igualmente
vinculados21.
É preciso, nesse instante fazer/deixar estabelecida nossa crença
em que as intervenções de ação do direito penal e das normas
criminalizadoras são, em certo aspecto cuidando-se de certos
casos, (1) imperativas tanto literalmente (decorrentes de mandados
constitucionais expressos) como (2) necessárias (tratando-se da

Saliente-se que algumas noções ao longo da presente exposição acabam por se aproximar do conceito
18

de ofensividade enquanto “danosidade social”, algo que o próprio D’ÁVILA situa como apenas uma das
apropriações possíveis do termo. Em Ofensividade e Crimes Omissivos...,, pp. 42-43, especialmente,
o autor salienta ponto de vista que trabalha com a questão da ofensividade mais como componente
típico necessário do fato sob incidência da norma penal do que como caractere de “ressonância
comunitária” para “avaliação” da necessidade de enquadramento penal ao fato. No entanto esse
elemento não é, de todo modo, negado (senão, minimizado), até pelas ditas origens “iluministas” da
noção de direito penal (garantístico) enquanto instrumento de proteção de bens jurídicos dotados
de “dignidade penal”. O enfoque do autor, nesse aspecto, é outro, embora, pensamos, seja nossa idéia
com a dele convergente em vários pontos.
D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como
19

ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 58.


MANTOVANI define uma das facetas do princípio da ofensividade como uma espécie de medidor
20

(baricentro) de um direito penal constitucionalizado e, por isso “vinculante”: “Perché il principio di


offensività possa esplicare la sua piena funzione político-garantista occorre che esso costituisca, prima
ancora, che canone di interpretazione, innanziutto canone di costruzione legislativa delle fatispecie
criminose”. MANTOVANI, Ferrando. Principi di Diritto Penale. Padova: CEDAM, 2002, pp. 82-83.
“A ofensividade é, sem dúvida, por inúmeras razões, uma exigência constitucional. Aliás, parece-
21

nos possível encontrar elementos para justificar uma tal exigência, tanto em âmbito puramente
principiológico como, e principalmente, à luz das regras constitucionais. Partindo de um ordenamento
constitucional fundado na inter-relação de regras e princípios, podemos, a partir de uma proposição
de ordem e paz a cargo do Estado de Direito, reconhecer um princípio geral fundamental de tutela de
bens jurídicos, densificador do princípio estruturante do Estado de Direito. Pois é exatamente desse
princípio geral de tutela de bens jurídicos que decorre tanto o princípio geral de garantia representado
pela necessária ofensa, como o princípio constitucional impositivo, representado pela intervenção
penal necessária, o que significa dizer que ambos estão submetidos ao âmbito normativo do princípio
originário, não admitindo uma conflitualidade que extrapole os limites da tutela dos bens jurídicos, ou
seja, que toda incriminação que vá além dos limites da ofensividade não corresponde a um interesse
político-criminal legítimo, eis que estaria fora do âmbito de proteção do seu princípio conformador”.
D’ÁVILA, Ofensividade em Direito Penal..., pp. 69-70.

63
interpretação constitucional para com a realidade de uma ordem de
valores que precisa ser defendida).
A discussão nesse ponto nos parece estéril e cercada de
obviedades. Interessa-nos, contudo, perquirir se, aqui, em termos
de Direito Penal, existe uma efetiva proteção dos bens jurídicos
constitucionalmente relevantes (que são invólucro de direitos
fundamentais e valores constitucionais) com a simples criminalização
das condutas praticadas entre particulares e o quanto de (in)coerência
há na idéia de defender uma “necessidade de criminalização” como
se “implemento de maior proteção fosse”.
Mais: interessa-nos perquirir, em relação especialmente ao
Direito Processual (de forma mediata), se, nesses moldes, a própria
aplicação da norma penal não deve ser afastada em alguns casos,
tendo-se em conta que alguns mandamentos constitucionais não
têm condão de criminalização obrigatória enquanto meio único
para o respeito da dignidade dos preceitos da Carta Maior. E nem
o condão de criminalização desenfreada e ignorante da sistemática,
se os próprios fundamentos de incidência da norma não indicam
configuração de conduta verdadeiramente criminosa22 (do ponto de
vista da ofensividade – ao nosso ver, o grande fator-medidor da dita
“dependência de proteção” que deveria ser essencialmente verificada
para haver sintonia da lei criminalizante com o mandamento
constitucional punitivo23).
A reflexão poderia optar por caminhos diversos que inclusive
fugiriam do tom rasteiro e de baixo impacto que reside na brevidade
desses aportes. O que se deve, contudo salientar é que com base em
um legítimo interesse de oferecer guarida legislativa e dogmática a
uma idéia de iluminar bens jurídicos de real destaque constitucional, o
Como na ponderação de D’ÁVILA: “O desenvolvimento da dogmática penal em novas áreas de
22

intervenção tem enfrentado não apenas problemas no âmbito da legitimação da intervenção em


si, como – e não poderia ser diferente – na delimitação e adequação dessa mesma intervenção” in
Ofensividade e Crimes Omissivos próprios..., p. 39.
“Outrossim, a necessidade de intervenção direta do Estado nos conflitos entre particulares pressupõe
23

uma assimetria entre as partes envolvidas, onde o exercício do direito fundamental titulado por uma
delas não teria vez em face da outra (dependência da proteção pelo Estado”. FELDENS, op. cit., p. 78.

64
que se oferta no mercado do debate jurídico muitas vezes é uma reles
urna de moralismo (na acepção mais pejorativa possível) e outros
produtos ideológicos que não suportam rompimento de olhares.
Temos na necessária judicialização de alguns conflitos uma base
argumentativa interessante: reflexo de anos de triste e literal chumbo
em que vivemos num período que já se começa a se distanciar (mas
cujo amargor na boca persiste), a atuação dos aparelhos de justiça no
país (especialmente a jurisdição) passa a vivenciar uma postura de
febril atividade. O dito decisionismo obscuro e onipotente é primo-
irmão de uma atuação recheada de escopos meta-jurídicos para fazer
de um juiz (mais do que um Hércules dworkiniano), um verdadeiro
super-homem (Nietzsche dá lugar a Jerry Siegel e Joe Shuster, aqui).
Na dança das boas intenções, é patente a idéia de que, na defesa dos
valores constitucionais e em defesa da dignidade que na Carta vem
insculpida, sempre emerge a idéia de mais jurisdicionalização.
Resta-nos – para o caso de pretendermos nos manter, para
fins desse rápido debate, em face da moldura constitucional
vigente – discutir um novo horizonte para a questão dos valores
que a Constituição defende, em que a criminalização de condutas
e a judicialização de conflitos sofra um profundo questionamento
enquanto instrumentos possíveis para atuação nesse mister.
Parece incrível que ainda hoje haja quem defenda a idéia de
que a criminalização de supostas ofensas a bens jurídicos (para além
dos mandados expressos no texto constitucional nesse sentido)
seja o único e (quiçá) eficaz meio de “proteção” disponível e que
a judicialização de relações sociais que envolvam esses supostos
quadros seja sempre plataforma máxima da democracia.
Para além da idéia recorrente de colapso do sistema de
veiculação da justiça e alguns de seus pontos de sangria24, temos
que sempre refletir quanto à idéia de que a própria matriz política

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário Crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São
24

Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. Fatores também abordados em nossa obra, DIVAN, Gabriel,
Decisão judicial nos crimes sexuais – o julgador e o réu interior. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009, especialmente pp. 55 e seguintes.

65
que de certo modo sustenta a existência de um sistema penal (e
seus meandros que aqui englobam o sistema processual relativo
e as agências que lhes são coligadas) é um discurso que em muito
reprisa o ar fabuloso de um Mágico de Oz onde a crença na sua
indispensabilidade é o que mantém viva a idéia de que ele próprio
é indispensável25. E indispensável é, mais ainda, no caso, manter os
fiéis em crença.
Malograda a idéia de que, fora das balizas textuais incontornáveis
da Constituição no quesito, a proteção que algum valor pode (e deve)
angariar parte exclusivamente de uma frente criminalizadora. Mais,
ainda: essa dita proteção de cariz penal vem enquanto requisição de
alguns como se os próprios ditames técnicos penais não tivessem
exigências próprias para opor perante uma invasão que muitas vezes
(e com o apoio de elementos de nossa afamada lei maior) visa a grosso
modo extinguir a idéia de última ratio transformando-a em prima
ou única ratio. E tudo isso vai coroado por uma postura que visa
enquanto baluarte democrático uma idéia de “implementação” da
“justiça” (através de uma instrumentalidade processual) que pode ser
traduzida em suas várias frentes como uma sinonímia de expansão.
Pura e simples.
Importante ressaltar, nesse contexto, que um combate à
expansão do sistema (das atuações primária e secundária da
criminalização, passando pela instauração processual e chegando
até nos órgãos responsáveis pela execução penal) e/ou uma defesa
da retração do mesmo, não pode permanecer refém de um debate
de parâmetros pífios em que se perde tempo discutindo obviedades
como se tudo se resumisse à compaixão penal de não processar um
sujeito famélico que furta uma banana na quitanda.
É toda a referência compromissória (dirigente) dos valores
constitucionais que está na berlinda e o fato de que muitos dos que

“O poder nunca permanece imóvel. Mesmo o estado, no exercício do poder soberano, mediante
25

representação jurídico-discursiva, sofre intromissão dos mais diversos tipos de relações de poder, interna
e externamente, não sendo detentor deste, que se movimenta livremente. A simples presença do poder
jurídico legal e seu cunho de interdição ocasionam opressão”. RODRIGUES, Andréia de Brito. Bullying
Criminal: o exercício do poder no sistema penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011, p. 39.

66
ainda exibem esse fator enquanto bandeira seguem enxergando
(lembro dos “ceguinhos” e dos “nefelibatas” das eternas lições de Lyra
Filho) na idéia de implemento do sistema (mais e mais implemento,
em suas várias etapas, quiçá em todas) algo correlato à tal proteção.
Contra o uso de mau-caráter desse tipo de acepção, que
envenena tantos e tantos, estamos vacinados com – felizmente –
outros tantos, sobretudo com BIZZOTTO26, mas como no jargão, a
luta continua. Sobretudo a luta para que se reconheça que uma idéia
de proteção de alguma coisa (qualquer coisa) passa muito além de
uma criminalização de alguma conduta que lhe pareça afrontosa.
Quiçá da idéia de tutela jurídica. Para além de (outros) muros e
grades, pois.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de Direito Penal. 5 ed.,
14 ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008.
2. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral,
vol. 1. 15 ed. Revista, atualizada e ampliada São Paulo: Saraiva, 2010.
3. BIZZOTTO, Alexandre. A inversão ideológica do Discurso Garantista: a
subversão da finalidade das normas constitucionais de conteúdo limitativo
para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009.
4. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação
do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais
programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, Limitada. Reimpressão. 1994.
5. CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional
do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1992.
6. D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios
(contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra:
Coimbra Editora, 2005.
26
BIZZOTTO, Alexandre. A inversão ideológica do Discurso Garantista: a subversão da finalidade das
normas constitucionais de conteúdo limitativo para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro:
Lúmen Juris, 2009, especialmente nas pp. 107 e seguintes, e ao longo de todo capítulo correlato.

67
7. DIVAN, Gabriel, Decisão judicial nos crimes sexuais – o julgador e o réu
interior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
8. FELDENS, Luciano. A constituição penal. A dupla face da
proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005.
9. ______. Direitos Fundamentais e Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
10. HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado
eclesiástico e civil in Os pensadores. Trad. MONTEIRO, João Paulo. SILVA,
Maria Beatriz Nizza da.  São Paulo: Abril, 1974.
11. LUISI, Luiz. Os princípios Constitucionais Penais. 2 ed. Revista e
Aumentada. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2003.
12. MANTOVANI, Ferrando. Principi di Diritto Penale. Padova:
CEDAM, 2002.
13. RODRIGUES, Andréia de Brito. Bullying Criminal: o exercício do poder
no sistema penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011.
14. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e proporcionalidade:
notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da
proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. In Revista da
Ajuris. Ano 35, n. 109. Porto Alegre: AJURIS, 2008, especialmente p. 142 e
nota n. 06.
15. ______. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os
direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In
Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 47. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004.
16. STRECK, Lênio. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da
proibição de excesso (‘übermassverbot’) à proibição de proteção deficiente
(‘untermassverbot’) ou de como não há blindagem contra normas penais
inconstitucionais. In Revista da Ajuris. Porto Alegre: AJURIS. V. 32, n. 97.
17. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário Crises, acertos e
desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

68
O JUIZ CRIMINAL NA EXECUÇÃO PENAL:
CONTROLANDO A CAIXINHA DE MALDADES
Alexandre Bizzotto*

RESUMO:
Cada vez mais a intolerância tem crescido como algo que influencia
a sociedade. Nesta perspectiva a área penal tem se revelado
uma protagonista e a execução penal o seu ápice. O exercício
da magistratura criminal impõe a observância dos ditames
constitucionais e a visualização da realidade em que a execução penal
tem sido exercida, não podendo o juiz furtar-se de agir na estrita
defesa dos direitos fundamentais.

1 PALAVRAS INICIAIS
Quando nos propomos a conversar sobre algo que tem ligação
com as atividades do juiz criminal afetas à execução penal, convém
olhar o problema com muita ponderação e cuidado no expressar as
idéias e sentimentos que perpassam no ato de lidar com a execução
concreta da pena. Ainda mais quando o local de fala é o de titular de
Vara especializada que tem a competência exclusiva de fazer cumprir

Juiz de Direito. Membro fundador do GEPeC. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.
*

Este trabalho não chegaria às suas conclusões sem a contribuição cotidiana de Carlos Eduardo
Moraes Nunes, Gullit Caetano Silva e Grymã Guerreiro Caetano Bento.

69
as determinações contidas em sentenças condenatórias proferidas
por outros magistrados. Trata-se de um terreno cheio de pedras e
buracos ideológicos.
O magistrado criminal deve ter como premissa fundamental,
no contexto do Estado Democrático de Direito, a orientação pautada
no engajamento panfletário para com a proteção dos direitos
fundamentais. Compromisso concreto e não meramente retórico. Tal
atitude quer-se acreditar, nem que seja pelo amparo psicológico do
“dar conta”, condiz na melhor forma do Judiciário Criminal contribuir
para a constituição de uma sociedade voltada para a tolerância e o
respeito ao humano em sua diversidade.
Despir (o quanto for humanamente possível) a atividade
racional jurisdicional dos preconceitos sedimentados nos
sentimentos de vingança e revolta, que muitas vezes são
perfeitamente entendíveis, é escolha que pode ser dolorosa para
àquele que interpreta e aplica o ordenamento punitivo. Sim, é
dolorosa, mas é essencial para a subsistência e o fortalecimento da
caminhada da democracia que conhecemos.
Não é o que tem ocorrido. É muito ouvido por aí (senso comum
teórico), que na prática a teoria é outra coisa. Não se está aqui a dizer
que devemos nos afastar da teoria para a efetivação da prática. Muito
ao contrário disto. Pretende-se que todos percebam que a teoria tem
seu lugar privilegiado, desde que este seja ocupado pela preocupação
de se colocar a vida humana concreta em primeiro lugar.
É importante, nas palavras de Alexandre Morais da Rosa, exigir-
se do juiz a “atuação instrumental – de meios e fins – para realização
do sujeito encoberto – vítima – num movimento de solidariedade
para com o outro. O ‘enunciado do Princípio da Libertação’ deve
servir de norte material as decisões penais, invertendo-se a lógica da
opressão” 1 em favor do reconhecimento efetivo do outro.
Mas, para que não haja um afastamento excessivo do tema,
repito, não é o que tem acontecido. O sistema penal é uma indústria de

Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material, p. 44/45.


1

70
moer gente, de destruir famílias, de aniquilar as menores esperanças
possíveis de se alcançar algo melhor do que a realidade perceptível
das trevas punitivas.
E, os juízes criminais, têm-se inserido neste quadro como um
dos protagonistas punitivos. Talvez o maior deles, na medida em que
é o Judiciário o detentor da última palavra que sustenta a esperança
da pessoa que se vê pescada nas redes da punição estatal formal.

2 A SEDIMENTAÇÃO DA INTOLERÂNCIA DO BEM E O


JUDICIÁRIO A REBOQUE
Dentro da sociedade há múltiplos ângulos, campo fértil para
a criação de formas diferentes de se encarar o mundo e as suas
dificuldades. Diversos modelos de vida são sedimentados e, cada um
com as suas peculiaridades e respectivos conceitos de vida social.
Concepções econômicas, religiosas, morais, culturais, naturais e
humanas refletem decisivamente no humano e o ajudam a esculpir,
na tela da vida, as obras a serem seguidas, copiadas e transformadas.
Tal foto, por si mesma, é salutar.
O problema aparece quando esta multiplicidade passa a não
mais ser festejada e cultivada, mas sim utilizada como instrumento
de separação e distinção, criando-se a fantasia da existência da
essencialização do sujeito.
O sentimento maniqueísta ganha força na sociedade e os que
se enxergam como do lado do bem “vêem seu poder superior como
um sinal de valor humano mais elevado” 2, percebendo-se obrigados
a repudiar àqueles que não coadunam com os valores hegemônicos
impressos pelo mundo ocidental contemporâneo regido pelo
utilitarismo econômico.
Na era do tripé tecnológica/tempo/mídia, está cada vez mais
difícil reconhecer e aceitar as diferenças. Na falta de uniformidade
de referência, produto da Modernidade e do ocaso da Divindade
como a fixidez do vetor humano, há uma ânsia pela proximidade de
ELIAS, Norberto; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders, p. 28.
2

71
pensamentos, crenças e valores comuns reconhecíveis. Esta falta é
acentuada pelo rolo compressor do acesso inesgotável de informações.
Paradoxalmente, quanto maior o número de informações, mais
difícil se torna a formulação de uma perspectiva crítica. Conforme
explana Silvia Moretzsohn, a superexposição dos fatos conhecidos
substitui a cegueira resultado da treva provocando “a cegueira pelo
excesso de luz”. 3
Na diversidade, nesta altura já podendo ser alcunhada como
hostil em decorrência da cegueira, o humano tende a ceder ao seu
ontológico sentimento de insegurança4 com a projeção da intolerância
para com o outro desconhecido.
Certa feita, em conversa informal com o magistrado Reinaldo
Alves Ferreira, este constatou que estamos a viver em uma sociedade
na qual vigora a intolerância do bem. Genial a tirada. A abstrata
noção do bem, que mais se aproxima de um sentimento, serve para
preencher a lacuna de muitos, sendo dada pouca importância que
ela se trate de adjetivo e não de substantivo. Logo, o bem depende de
cada subjetividade e aí, as manipulações são inerentes.
Sob este prima vem à pelo a incômoda pergunta de Agostinho
Ramalho Marques Neto5: Quem nos protegerá da bondade dos bons?
Em nome do discurso do bem, muitas maldades são provocadas,
Talvez, em número maior do que os fatos justificadores da “intervenção
do bem”. A Guerra do Iraque (jogar bombas em cidades em prol da
proteção dos direitos humanos) e o genocídio prisional provocado
pela crescente legislação álibi punitiva para combater o criminoso são
bons exemplos.
É pertinente a lembrança de um episódio do seriado chamado
Charmed. Nele, uma das protagonistas bruxa sempre coloca seu carro
na frente da vaga da vizinha. Certo dia, houve um feitiço mal feito
e o mundo se tornou uma doçura de bondade. A bruxa novamente
Pensando contra os fatos: jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico, p. 29.
3

4
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade.
O processo Kafikiano. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord). Direito e psicanálise –
5

intersecções a partir de “O processo” de Kafka, p. 101/132

72
colocou o carro no local errado. Em reação, a vizinha tocou a
campainha com um guarda, que todo sorridente relatou a falha da
bruxinha. Ela pediu desculpas, mas ele disse que e lei deveria ser feita
e logo sacou a arma e, sorrindo com bondade, disse que ela pagaria
pelo erro e desferiu alguns tiros nela. Vizinha e guarda saíram felizes
com a justiça feita. É a intolerância do bem.
A mesma intolerância pode ser observada na reação
irada do conservadorismo cristão aos movimentos sociais pela
discriminalização do aborto, da marcha da maconha e da legalização
da união homoafetiva. Há uma latente revolta que pode facilmente
se expressar em condutas de ódio contra àqueles que ousam trilhar
a contramão do senso de bondade capitaneada pelos pretensos e
subjetivos valores cristãos.
No cerne da intolerância do bem é percebida a frustrada
tentativa de se resgatar a idealização de valores que se afirmam
existentes no passado. Fazendo uma combinação entre a pureza e o
perigo trabalhado por Mary Douglas6 e a nostalgia pela idealização
do passado relatado por Zygmunt Bauman7, pode ser reconhecida a
busca da pureza perdida em que há uma equiparação essencializada
dos bons que habitam o mundo de hoje e que deve ser perseguida,
com a natural exclusão/eliminação dos impuros.
A punição que provoca a separação é a da prisão. Logo, ela é
apresentada como indispensável. Há um processo de naturalização
da punição carcerária como instrumento racional de controle dos
bons sobre a horda dos diferentes, seres ontologicamente impuros
e perigosos.
Quem não se adapta deve ser eliminado, chegando-se ao ponto
de serem criadas teorias racionais para justificar o humano não-
humano. Os mecanismos de controle e a sustentação racional são
engendrados para tornar inquestionável o sentido da punição penal
e a sua massificação carcerária.

Pureza e perigo.
6

Em busca da comunidade perdida.


7

73
Há um acentuado esforço dentro das instituições para que
o discurso da resistência mais contundente e geradora de reações
práticas ao encarceramento punitivo não se torne premissa legítima.
Paulatinamente a defesa do endurecimento punitivo vem sendo
ecoada pela mídia, polícia, Ministério Público e Judiciário com o
beneplácito dos ocultos, ou não, interesses econômicos.
Para ilustrar esta naturalização, lembra-se de recente Congresso
ocorrido em Goiânia (CONEPA), que tem o objetivo institucional
de promover a pena alternativa em desfavor da prisão. A surpresa
é que a grande parte das falas dos palestrantes era no sentido da
acentuação da prisão cautelar e da prisão como pena. E o que é pior,
sem que houvesse maiores questionamentos. Mais do que isto, havia
um encantamento com os discursos panfletários da ordem.
Cada vez mais os princípios cardeais da ideologia social
apurados por Alessandro Baratta em sua obra Criminologia
crítica e crítica do direito penal8 são dominantes. A periculosidade
(conceituação abstrata e vaga) é identificada com o criminoso. O
perigoso/criminoso e tido como o monstro, o que afasta qualquer
idéia de reconhecimento para com o outro. A solidariedade é
enfocada como sendo algo pueril e fora deste mundo.
Obviamente que ninguém se assume, nem mesmo nos recantos
mais fundas da mente, como possível criminoso, pois este é um ser a
ser banido. A limpeza deve se intensificar, e observe-se, no que tange
a premissa da intolerância, a solução final do regime nazista não
agiu diferente. Antropologicamente o humano precisa, por questões
ligadas ao mito, do ato de recomeçar. 9 O discurso punitivo como
bandeira da nova salvação vem a calhar.
E o Judiciário neste emaranhado de questões? A instituição
tem vindo a reboque do punitivismo. Os movimentos de

8
São os seguintes princípios: a) legitimidade; b) bem e mal; c) culpabilidade; d) finalidade ou
prevenção; e) igualdade; f) interesse social e delito natural.
9
Na lição de Mircea Eliade, “o Mundo deve ser anualmente renovado e que essa renovação e que
esta renovação se produz obedecendo a um modelo; a cosmologia ou um mito de origem que
desempenha o papel de um mito cosmogônico” (Mito e realidade, p. 44).

74
intolerância penal, sob as mais diversas camuflagens são
hegemônicos dentre os magistrados. Zaffaroni10, Dalmo de Abreu11
Dallari e mais recentemente Salo de Carvalho12 demonstram que a
estrutura burocrática do Judiciário, a formação positivista de seus
integrantes e a tradição inquisitorial dos juízes (especialmente
fomentada pela falta de exercício democrático contínuo em nossa
história republicana) expressam a adesão à vontade punitiva e ao
crescente encarceramento.
Nota-se que dentro do próprio Judiciário existe uma
estigmatização velada daquele que não rema pelo discurso punitivo.
Obviamente há boas exceções, porquanto a formação humana
de respeito ainda faz a diferença. Conforme a intensidade do
contradiscurso há uma maior ou menor intolerância. Ou seja: que
fiquem calados e recolhidos em seus processos os libertários e serão
observados como figuras exóticas, porém dóceis e fáceis de controlar.
Agora se houver a ousadia de falar muito ou desvelarem na sua
prática judicial cotidiana os absurdos ocorridos, de modo a causar
impacto, logo se forma um senso comum interno de descrédito
para com os malucos acompanhados de ironias mal-disfarçadas.
Alguns magistrados, para terem sossego, acabam se afastando da
competência criminal,
Vale salientar que, se no interior do Judiciário há certa
intolerância com alguns formalmente chancelados pelo sistema,
pense-se o que não se passa em cada caso concreto, no qual está em
pauta à discussão sobre o reconhecimento ou não do criminoso como
sujeito de direitos. Neste quadro de intolerância punitiva, a execução
penal da pena privativa de liberdade abre uma fenda nos ideais para
a configuração do Estado Democrático de Direito.

10
Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos
11
O poder dos juízes
O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo: (o exemplo privilegiado da aplicação da pena)
12

75
3 OS CAMINHOS DA EXECUÇÃO PENAL
Qualquer que seja o ideário por detrás da aplicação concreta
da pena por meio da execução penal, chega-se a conclusão comum
de que a sua pratica tem se revelado decepcionante e insuficiente
para os fins propostos: seja o da retribuição ao mal efetivado à
sociedade pelo criminoso; seja o da prevenção às novas condutas por
meio da educação prisional para como o não-educado social e/ou a
neutralização do indivíduo sociamente criminoso ou; seja o do fito de
se fazer valer o Estado Democrático de Direito com a minimização
da imposição da pena legal ao sujeito de direito cidadão julgado e
condenado dentro dos parâmetros da racional proporcionalidade.
Os que são apaixonados pelo maior rigor punitivo alardeiam
vigorar a impunidade em consequencia do excesso de benefícios
previstos na legislação e a frouxidão dos que são os responsáveis pela
cominação e execução das penas. Imputa-se insensibilidade para
com os anseios da sociedade quando há uma tolerância na aplicação
benigna de institutos penais no contexto da sua individualização.
Os defensores do positivismo legalista se insurgem contra a
falta de aplicação real dos institutos previstos na LEP, o que causa a
debilidade na busca da integração social dos condenados. Propugnam
que o objetivo legal da defesa social não é atingido em virtude das
faltas do Judiciário e do Executivo.
Por sua vez, os combatentes da execução da pena de prisão
revelam cada vez mais descrença com a sua desumanidade. Expressam
a inutilidade da execução penal e o seu alto fator de ampliação da
criminalidade.
Todas as vertentes, cada uma com o seu peculiar modo de
observar o problema, se batem contra a ausência de estrutura na
execução penal e a sua absoluta necessidade de transformação.
De qualquer forma, ao se estudar nas faculdades de direito
a execução penal, afirma-se que ela se constitui em um conjunto
de leis e princípios de natureza complexa (constitucional, penal,
processo penal e administrativo) que regulam e “ensejam a

76
concretização das sentenças condenatórias ou das que impuserem
medidas de segurança”. 13
Também é muito enfocada pela doutrina a natureza complexa
da execução penal, pois esta se desenvolve concomitantemente tanto
no plano jurisdicional como no administrativo “e, não se desconhece
que desta atividade participam dois Poderes: o Judiciário e o
Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais
e estabelecimentos penais”. 14
Embora haja um claro delineamento técnico sobre a execução
penal e de suas premissas, normalmente não se tem observado um
maior cuidado em se depreender dos textos o sentido que melhor
respalde os anseios da vida concreta do cidadão imerso nas teias da
execução penal. A opção doutrinária tem percorrido um caminho
afastado da efetividade dos preceitos constitucionais.
A relação continuativa entre o Estado Penal e o preso enseja
evidentes lacunas de asseguração constitucional dos direitos
fundamentais na medida em que a efetividade da execução, por
melhor que seja o controle jurisdicional, acaba sendo desenvolvida
pela Administração Penitenciária (muitas vezes a cargo da própria
polícia). Esta situação não pode ignorada. A realidade do cárcere
com a possibilidade de moderação dos conflitos carcerários somente
pode ser alcançada pelo controle administrativo.
Por mais que seja afirmada a importância do controle judicial na
execução (isto não é negado aqui), o seu resultado se torna pífio frente
à importância prática da faceta administrativa. O cotidiano entre os
presos e os postulados impressos pela administração são essenciais.
Tais postulados vão desde o trato direto entre agentes e presos;
passando pelos critérios de tratamento para com as visitas; do
atendimento médico aos presos; percorre a forma de administração
das rivalidades do cárcere e; chega à fiscalização do trabalho externo
daqueles autorizados ao convívio social por intermédio do trabalho.

13
LIMA, Roberto Gomes; PERALLES, Ubiracy. Teoria e prática da execução penal, p. 01.
14
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à Lei 7.210, de 11/07/84, p. 29.

77
A atuação judicial muitas vezes não passa de uma fachada
estética para satisfazer os mecanismos formais de controle. As
visitas mensais do magistrado aos estabelecimentos prisionais com
a feitura de relatório para o Conselho Nacional da Justiça bem como
as respostas jurisdicionais pontuais para casos concretos não têm o
condão de modificar o estilo inquisitorial da execução penal, sempre
dependendo da subjetiva bondade dos seus atores estatais.

4 A CAIXINHA DE MALDADES: GANHANDO PROJEÇÃO


NA REALIDADE
No contexto de intolerância já abordado acima, é de se
perceber que a execução penal é o ponto alto (juntamente com as
prisões cautelares) da distribuição de sofrimento para todos aqueles
atingidos pelas garras do sistema penal.
Depois de todo o desgaste da fase de conhecimento, apresenta-
se o momento da concretização da sentença condenatória ou da
imposição da medida de segurança com a apropriação do Estado
do corpo do condenado/internado e a formal restrição de direitos
inerentes à liberdade física,
Salvo os desvios impróprios das prisões cautelares que têm
funcionado como antecipação da pena, na fase da execução, o
apenado e seus familiares começam a sentir as vicissitudes do
procedimento executivo. Após as angústias e incertezas da discussão
sobre o acertamento da responsabilidade sobre fatos imputados,
resta ao apenado à resignação com o cumprimento da pena aplicada
ou a insurgência por meio da manutenção da liberdade nervosa da
situação de foragido. Qualquer das escolhas se revela uma fonte de
distribuição fática de maldades.
A opção pela fuga, algo inerente ao humano ansioso pela
preservação da liberdade corporal, acaba normalmente sendo
tortuosa. Há de se considerar o desgaste emocional do foragido e
de seus familiares. A espera de ser preso a qualquer instante pode se
constituir em tortura psicológica que provoca danos relevantes.

78
É de se observar que a grande massa da população de
condenados é de pessoas integrantes da classe econômica mais
excluída dos benefícios do neoliberalismo. Caso não haja recursos
para que seja bancado o preço informal da manutenção da liberdade
até a incidência da prescrição, o aprisionamento se torna questão
de tempo.
Ademais, a fuga poderá acarretar o risco de enfrentamento
policial com resultados drásticos ou, o que é muito comum, a busca
do sustento por intermédio do mergulhe profundo e perigoso em
novas condutas criminosas e o decorrente agravamento da situação
penal futura.
Por sua vez, a resignação física do condenado com a submissão
voluntária à pena ou a sua imposição em consequencia da imediata
substituição da prisão cautelar (ou a prisão pela captura) dá início à
fase mais melancólica do processo penal que é a da execução pena
privativa da liberdade.
As vicissitudes do cárcere em nosso país são conhecidas por
todos pelo acesso à farta literatura doutrinária15 e a notoriedade
expressada pelos meios de comunicação. Os estabelecimentos
penais são verdadeiros campos de concentração para presos pobres
que são tratados tal qual lixos humanos, para utilizar a expressão
da Zygmunt Bauman.
Agentes prisionais, extremamente maltratados pela situação
de carreira estatal que lhes é imposto e, envolvidos pelo império
da crescente intolerância, muitas vezes repassam suas indignações
contidas para os presos, exercendo ou deixando de exercer suas
funções para sonegar direitos, o que Andreia de Brito Rodrigues
aponta como uma modalidade de bullying criminal. 16
Impende salientar que a grande parcela dos presos são pessoas
jovens, o que potencializa as frustrações e consequentemente o processo
de encarceramento coletivo provoca a multiplicação da violência que
pode ser canalizada para os que estão no convívio forçado.

Por todos, é imprescindível a leitura do livro Falência da pena de prisão: causas e alternativas, de
15

autoria de Cezar Roberto Bitencourt.


Bullying criminal: o exercício do poder no sistema penal
16

79
Inúmeras inimizades são ali geradas e cultivadas e, se não
resolvidas dentro do cárcere, são transferidas para os espaços de
liberdade concedidos quando do gozo de benefícios legais. É o que
ocorre quando os presos são transferidos para os regimes semiaberto
e aberto, que em tese têm menor vigilância, o que proporciona uma
maior liberdade para eliminar o problema existente.
Sabe-se que em boa parte de nossas comarcas, os regimes
semiaberto e aberto não têm a estrutura prevista na LEP, ensejando
inúmeras adaptações penais que podem recair no recolhimento
noturno com trabalho diário. Nesta situação, os presos são
obrigados a utilizar-se de necessários caminhos para se chegar ao
local determinado, tornando-se muito comum as emboscadas e a
efetivação de tiroteios próximos aos locais de recolhimento.
Levando-se em conta que a sociedade não tem admitido à
construção de estabelecimentos penais no trânsito econômico das
cidades, é fácil notar que os acertos de conta se dão longe do convívio
dos que se autodenominam cidadãos de bem. Coisas de presos,
diriam os entusiastas com o processo de exclusão física da parcela
estigmatizada da sociedade.
As autoridades percebem a situação. No contexto da
intolerância do bem, muitas vezes tem sido observado por parte de
magistrados a adoção de postura alheia à realidade, com o apego
ao cumprimento da legislação ordinária e respectiva tentativa de se
reduzir à complexidade do problema para algo confortável situado
na mera discussão pautada na tecnicidade do direito. Ou, quando
muito, optam por transferir a responsabilidade do problema para as
autoridades do Executivo.
É como se o ato do magistrado, de encontrar à solução
logicamente compatível com o sistema delineado pela legislação,
pouco importando a realidade, fosse o suficiente para o desempenho
da atividade judicial de tutor dos direitos fundamentas dos presos
vinculados à execução penal. Esta anuência com a situação real pode
ser determinante para o agravamento dos processos de exclusão (e

80
eliminação) daqueles sujeitos ao cumprimento de penas privativas
de liberdade.

5 ALGUNS NORTES PARA MITIGAR A DISTRIBUIÇÃO


DA MALDADE
Por mais que seja difícil, principalmente em face da participação
de todas as pessoas neste mundo de feiúras e belezas que estamos a
fabricar, cabe ao juiz responsável pela condução da execução penal
agir lembrando-se que o preso é ser incluso no todo que somos e não
o monstro preconcebido pelos nossos medos mais presentes.
Na tentativa de se vislumbrar uma feição da atuação judicial
que se aproxime da necessária alteridade, a observância de alguns
nortes na prática da execução penal pode servir de filtro para que
as inerentes porções de maldade exercidas na execução penal não
tenham o condão de aniquilar a imagem ideal ou física do outro.
Assim são instrumentais importantes: valor a dignidade
humana; princípio da individualização; o esquecimento como valor;
o diálogo solidário; o critério da factibilidade; e a utilização recorrente
das tutelas de urgência dos direitos fundamentais.
Dignidade humana. No lidar com os dramas da execução
penal, cabe ao juiz ter delineado enfaticamente que cada pessoa é um
universo, revestida de valores diferenciados consoante sua experiência
de vida dentro de uma sociedade pluralista. O humano é a razão da
existência da sociedade e de qualquer normatização sobre ela.
Respeito à dignidade humana significa respaldar o “indivíduo
conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio
projecto espiritual”.17 A dignidade humana significa conceder a
este todo o respeito em suas complexidades materiais e espirituais,
valorizando a felicidade humana, pois esta deve ser o parâmetro
maior de todo sistema normativo.
A dignidade humana é “o valor supremo que atrai o conteúdo
de todos os direitos fundamentais do homem” 18 e implica o absoluto
17
GOMES, J.J.Canotilho. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 221.
ROBERTI, Maura. A intervenção mínima como princípio no direito penal brasileiro, p. 49.
18

81
e intangível tratamento respeitoso ao ser humano, propiciando-se
contínuas maneiras de se expurgar toda forma de degradação da
pessoa por parte do Estado.
Na execução penal, a dignidade humana que é “o princípio
mais carregado de sentimentos” 19, deverá ser utilizada como
instrumento facilitador para a descoberta de soluções judiciais
concretas que levem o juiz a reconhecer-se no preso que está sujeito
às suas decisões. Por mais que a imposição da pena seja o objetivo, há
parcelas de dignidade que são intocáveis.
Cabe ao magistrado agir amparado no valor dignidade, como
se este fosse uma saudável espécie de camisa de força cunhada pelo
sentimento de amor ao próximo. O perceber a dor que circunda a
todos os envolvidos na caminhada da execução penal (muitas vezes
iniciada indevidamente no momento do próprio fato penal) é vital
para que não se perca o sentido de tudo o que é feito sob a justificativa
da prevalência do Estado de Direito.
Individualização. A sociedade, com suas múltiplas
singularidades é campo fértil para a criação de formas diferentes
de se encarar o mundo e as suas dificuldades. Modelos de vida são
sedimentados e, cada um, com as suas peculiaridades e respectivos
conceitos de vida social. Concepções econômicas, religiosas, morais,
culturais e naturais expressam decisivamente no humano e o ajudam
a esculpir, na tela da vida, as obras a serem seguidas, copiadas e
transformadas.
O valor constitucional do respeito ao ser diferente impõe que o
juiz sopese todos os fatores que circundam a efetivação da execução
penal. O cumprimento da pena é pautado formalmente na premissa
inicial da guia de execução, que é o documento que representa o
acertamento penal do juízo do conhecimento.
Por tal razão, a quantidade de imposição de pena é limitada
na guia da execução, que funciona como se fosse o retrato inicial do
processo de execução. A partir de tal premissa, cabe ao magistrado

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e (em face da) Constituição, p. 26.
19

82
encontrar os meios que tornem a vida de cada indivíduo que cumpre
pena menos drástica possível. Limitado pela legislação punitiva,
devera o juiz moldar a execução concreta, igualando no que for
imperativo do Estado e diferenciado no que for peculiar a cada preso.
Convém lembrar que o público alvo da execução penal é feito
predominantemente por pessoas integrantes da classe mais pobre.
Esta situação necessita ser sopesada pelo magistrado no momento
de apreciar cada situação. Agir como se todos estivessem plenamente
protegidos por defensores é uma armadilha que alcança e atinge os
direitos fundamentais dos presos.
Existindo diferenças decorrentes da própria pessoa, como
doenças, debilidades físicas e mentais, questões de trabalho, perigos
de morte bem como peculiaridades familiares, cabe ao juiz da
execução penal assumir a diferença individualizando a situação com
a perseguição de respostas que melhor se enquadrem à situação que
lhe é colocada.
Nesta perspectiva, é fundamental que o magistrado parta de
uma premissa isonômica na individualização. Os apenados, já se
sentindo humilhados na condição prisional, necessitam perceber
que as diferenças que existirão nas decisões no processo da execução
sejam decorrentes de uma isonomia estatal para com todas as
situações de diferenciação fáticas que aparecerem.
Explica-se: se o magistrado conceder um benefício por questões
de diferenciação concreta, deve observar o mesmo critério para casos
semelhantes. A falta de tal postura provoca um clima de sentimento
coletivo de maior injustiça dentro do cárcere, com resultados que
podem ser explosivos para o estabelecimento prisional.
Esquecimento. Postura muito comum dos magistrados na
execução penal é a de se ficar remoendo os fatos já acontecidos. O
intérprete fica preso ao passado fortalecendo a imagem estigmatizada
do preso e recriando imagens que em nada auxiliam para os objetivos
declarados da execução penal.
Ao se lidar com a execução penal, revela-se importante a
utilização do método do esquecimento para com a valoração dos

83
fatos já decididos e acertados em sede do processo de conhecimento.
Neste quadro, busca-se o objetivo de se lidar com o transcurso do
procedimento de execução sem que ranços emocionais negativos
impeçam o encontro com soluções mais compatíveis com a situação
projetada para o futuro do preso.
Salo de Carvalho lembra que “a força viva produzida pelo
esquecimento possibilitaria à humanidade condições de felicidade,
pois bloquearia os efeitos da presentificação do passado”. 20 A
vinculação dos critérios jurídicos tão somente ao comportável pela
memória intelectiva e emocional acaba por apequenar as perspectivas
humanas de melhor convivência com seus dramas.
Sabe-se que biologicamente o corpo humano se renova
cotidianamente. Uma pessoa que praticou um fato em certa data,
após tempos não é a mesma pessoa biológica. Muito menos é a
mesma pessoa filosoficamente e socialmente. A mudança é inerente
ao humano. Somente a racionalidade congelante do direito procura
trabalhar com noções imutáveis ao se apegar de modo doentio à
memória. Conforme lembra Cristina Rauter, “o tempo da burocracia
é um outro modo de aprisionamento”. 21
Muita auxilia a atuação do juiz na execução penal a utilização
de uma espécie de clinica do esquecimento no sentido de exercer-
se o presente do necessário procedimento judicial sem que o
apontamento valorativo dos fatos passado reconhecidos se revele em
obstáculos para novos retratos.
Absolutamente não se defende o descumprimento dos
comandos judiciais contidos na guia de execução, pois esta, de modo
democrático, o magistrado deve cumprir em consonância com os
comandos legais e constitucionais. Mas sim se propugna que o juiz
deve ignorar as diferenciações preconceituosas e despidas de sentido
a fim de deixar o preso livre da elaboração da imagem do futuro, pois
esta somente cabe somente às opções pessoais do preso.

Antimanual de criminologia, p. 170.


20

Clinica do esquecimento: construção de uma superfície. Tese de Doutoramento defendida na PUC-SP.


21

84
Em qualquer ato judicial praticado no procedimento de
execução é a pessoa do preso que importa e não a sua bagagem
história. Não que se deva desconhecer absolutamente o passado, mas
sim interpreta-lo aos olhos do presente na certeza de se construir
uma solução a partir do presente contextualizado.
Pensar o presente com os desejos voltados para uma reconstrução
do passado é algo flagrantemente sem sentido de realização, ainda
mais quando se lembra que o indivíduo momentaneamente preso em
algum momento vai voltar a integrar o convívio social.
Diálogo solidário. O Estado Democrático de Direito pretende
construir relações dialogais, nas quais o reconhecimento para
com o outro e as suas diferenças sejam colocadas em um plano em
que possam ser discutidas para se chegar a contínuos consensos
que podem ser restabelecidos e fortificados com a atualização de
novos anseios.
A imposição de penas já delineadas no processo de acertamento
não invalida a necessidade de que seja observada uma espécie de
diálogo no procedimento da execução penal. A submissão à pena
não afasta os variados espaços de diálogo que, pelas singularidades
dos sofrimentos que são emanados pela execução penal, precisam ser
permeados pelo compromisso com a solidariedade.
Nas belas palavras de Luciano Baronio, que são adequadas
para a execução penal, hoje “exige-se uma forte solidariedade capaz
de reintegrar com plenos direitos na sociedade aqueles indivíduos
que foram “excluídos” e que, na prática, acabamos abandonando à
margem da vida”. 22
O processo quando chega à fase de execução penal
normalmente encontra o preso e seus familiares extremamente
humilhados pelo ritual de degradação da persecução penal. Como
revela Antoine Garapon, a “permanência do rito na justiça mostra o
parentesco profundo e um pouco obscuro que o processo mantém
com o sacrifício”. 23
22
Diálogos sobre a solidariedade, p. 11.
23
Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário, p. 256.

85
Não se quer com a afirmação do sofrimento do preso e dos seus
queridos romantizar àqueles que democraticamente foram condenados,
muitas vezes por fatos de gravidade ímpar. Quer-se apenas lembrar que
a punição já foi estipulada com a condenação e, independentemente
dos fatos cometidos, os atingidos diretamente ou indiretamente pelo
processo (afinal são humanos) estão mais debilitados do que na fase
inicial de todo histórico que deu ensejo à condenação.
Cabe ao magistrado e às pessoas que trabalham diretamente
com ele (e isto é importante demais) ter a sensibilidade de perceber
o momento e se imbuir de uma postura mais solidária e, sempre
quando possível, abrir diálogo com os presos e seus familiares que
o procuram.
Nas visitas aos presos no sistema prisional, no gabinete do
magistrado com as visitas de familiares, advogados e presos ou no
momento das audiências, o juiz deve propiciar a melhor qualidade
de informações atentando-se, importa repetir, para o sofrimento
prolongado, principalmente o familiar.
A maior tolerância e até mesmo o carinho com os presos e
seus familiares devem ser exercitados pelo juiz de modo que a pessoa
que busca o socorro, ali sofrida, não acentue o seu sentimento de
humilhação e saiba que apesar de tudo que passou ou ainda passará,
é indivíduo incluído na absoluta intangibilidade do respeito.
Critério da factibilidade. É de fundamental importância na
aplicação dos dispositivos relativos à execução penal a atenção ao
critério da factibilidade. Conforme diz Alexandre Morais da Rosa,
há de “existir operabilidade – razão instrumental entre meios e fins –
capaz de possibilitar a aplicação do mundo da vida”. 24
O magistrado ao verificar as condições de aplicação do texto
legal deverá construir a norma para o caso concreto sob o olhar da
factibilide entre a realidade estrutural do sistema carcerário e os
abstratos comandos legais.
Na fala de Enrique Dussel, quem “projeta realizar ou
transformar uma norma, ato, instituição, sistema de eticidade,
etc., não pode deixar de considerar as condições de possibilidade
24
ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material: aportes
hermenêuticos, p. 29.

86
de sua realização objetiva, matérias e formais, empíricas, técnicas,
econômicas, políticas, natureza em geral e humanas em particular”.25
A realidade carcerária do país e de cada comarca necessita
ser aferida pelo juiz da execução penal para que o cumprimento
dogmático do texto legal penal não provoque danos irreparáveis ao
transcurso da aplicação da pena. Não se pode colocar 80 presos em um
estabelecimento em local onde cabem 40, pois, é preciso dizer o óbvio,
40 não são 80. Não pode ser exigido um grau 10 de compromisso do
preso se o Estado apenas lhe confere 2 de asseguração das promessas
feitas no ato do encarceramento.
Não cabe ao magistrado utilizar-se dos presos como massa de
pressão para permitir o entulho do cárcere para coagir o Executivo
a agir na construção (sempre incessante) de novos presídios. 26
Incumbe-lhe dar instrumentalização possível dos dispositivos da LEP
e leis penais incriminatórias frente às exigências constitucionais e
seus dispositivos de conteúdo de direitos fundamentais em compasso
com a realidade estrutural dos estabelecimentos prisionais.
Como constata Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, “o sistema
prisional brasileiro constitui-se num dos maiores atentados aos
direitos humanos, desde o seu surgimento até os dias atuais,
conforme nos dão conta os diversos os diversos estudos realizados
sobre a situação carcerária”. 27
Vendar os olhos e os sentidos para a realidade não fará com
que ela desapareça. É relevante que o juiz tenha a ciência de que
mesmo quando concede um benefício ou deixa com sua decisão de
piorar mais a situação do apenado não o leva a evitar a distribuição
calculada de maldades. Eventual progressão de regime ou reinclusão
com a relevação de falta grave, embora possam ser medidas que
acalentem o preso, não afastam a realidade sobre o local do destino
dos beneficiados.
Não dá para o magistrado negar parcela de responsabilidade
sobre a sonegação dos direitos fundamentais escondendo-se no
25
Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, p. 268.
26
Conforme dados do Ministério da Justiça, o Brasil de 1990 até 2010 criou 298 mil vagas carcerárias,
o que corresponde há um aumento de 396% de aumento, sendo o campeão mundial de criação de
vagas (Publicado em 08 de julho de 2011 pelo jornal O globo).
27
Sociologia e justiça penal: teoria e prática da pesquisa sociocriminológia, p. 321.

87
positivismo jurídico. Caso o juiz conste à ausência de estrutura
carcerária para se garantir os direitos dos presos (saúde, educação,
segurança, trabalho, religião, defesa judicial digna) ele deve, sendo
isto possível, acabar ou minimizar a situação, mesmo que para
isto tenha que afastar a idéia da punição em favor de valores mais
relevantes à sedimentação da democracia.
Tutela de urgência. A maneira que optamos na construção
do mundo de hoje faz com que o fator tempo seja algo poderoso
na influência das relações humanas e de seus direitos. O tempo, na
lição de François Ost “determina a força instituinte do direito”. 28
Impossível, sob pena de abalo estrutural, desprezar a ingerência do
fator tempo, ainda mais quando a velocidade é um dos paradigmas
do mundo atual.
Barbosa Moreira, ao abordar os efeitos do tempo sobre o direito
adverte que “não são raras as hipóteses em que a inevitável demora
da prestação jurisdicional é capaz simplesmente de inviabilizar, pelo
menos do ponto de vista prático, a proteção do direito”. 29
Surgindo o estado de perigo a determinado direito, apresenta-
se como necessária a concessão de provimento judicial de imediata
proteção por meio de decisão que tenha a pretensão de acompanhar
a velocidade dos anseios emergentes para cada caso posto.
A Constituição da República de 1988 contemplou na redação
do artigo 5. ª XXXV a inafastabilidade de proteção judicial quando
ameaçado um direito. Logo, com a ameaça, o comando constitucional
torna indeclinável a atuação do Judiciário respaldando o problema
concreto com a concessão da tutela de urgência adequada.
Na seara penal, não obstante esteja ocorrendo uma renovação
de conceitos para se ampliar o rol de medidas legais colocadas para
o juiz, principalmente no que tange ás medidas substitutivas à prisão
cautelar, ainda existem imensas lacunas quando nos deparamos com
a prática, e, especialmente na esfera da execução penal.
A reunião forçada de população carcerária que cresce em
progressão geométrica em locais fechados sem que muitas vezes
haja condições para se propiciar um convívio saudável de assistência
de direitos ou, mesmo de convivência pacífica entre os presos,
28
O tempo do direito, p. 13.
29
Temas de direito processual: oitava série, p. 89.

88
provoca corriqueiramente situações que demandam a pronta e célere
intervenção do juiz criminal para que direitos essenciais dos presos
não sejam ignorados.
Registre-se que a ordinariedade dos serviços da execução
reclama a prévia manifestação do Ministério Público para a
apreciação do feito. Entretanto, muitas vezes a realidade urgencial da
situação impõe que o magistrado atue na concessão de liminar para
que o direito do preso não sucumba, conferindo-se a vista dos autos
ao Ministério Público após a decisão para que seja aferida a medida
concedida. É o exercício da tutela de urgência.
Impõe-se dizer que a concessão de tutela de urgência em sede
da execução penal tem estrita vinculação com a proteção aos direitos
fundamentais. Não pode o magistrado utilizar-se da tutela de
urgência como subterfúgio para descumprir preceitos agasalhados na
legislação. Nestes casos, é cogente a prévia manifestação ministerial
com a efetiva integração e participação da defesa técnica.
Pode ser lembrada a título de exemplo a imediata retirada ou
deslocação de presos de pavilhões ou mesmo de estabelecimentos
prisionais mediante decisão liminar para que a vida deste transferido
não seja tirada por outros presos ou mesmo por carcereiros de
determinado local.
Como foi ventilado em outro momento, e aqui se traz a
constatação cotidiana dos trabalhos exercidos como titular da 2. ª
VEP de Goiânia-Go (regimes semiaberto e aberto), não são poucos
os casos em que presos autorizados ao trabalho externo ou à saída
temporárias que são vítimas de homicídios decorrentes de acerto de
contas feitas tanto dentro como fora do cárcere.
Neste ensejo, a notícia trazida para o juízo de forma
minimamente comprovada de homicídio não consumado ou mesmo
de planos para a sua consumação não permite que seja aguardada
a delonga da burocracia estatal para ocorrer uma transferência ou
concessão de regime domiciliar.
Outras hipóteses podem ser apontadas. A concessão de decisão
de urgência autorizando a extensão de horário para o recolhimento
noturno com o objetivo de resguardar o estudo; ou para a manutenção
do trabalho do preso; bem como a concessão de suspensão do
recolhimento noturna (ou a retirada do regime fechado) a fim de se

89
permitir tratamento médico não conferido de modo satisfatório pelo
Estado são outras hipóteses em que se pode pensar a necessidade de
provimento de urgência. Outros fatores podem ensejar a concessão
da tutela de urgência,
É certo que tais medidas podem ser revogadas caso ocorra
manifestação ministerial trazendo ponderações relevantes que
venham a mostrar um quadro diferente do inicialmente retratado. A
decisão urgencial via de regra não tem o caráter definitivo. Mas o que
importa dizer é que com o manejo de tal proteção à ameaça de direito,
cumpre o magistrado com a sua função de tutor constitucional do
devido e adequado procedimento de execução penal.

6 PARA CONCLUIR
Não se pode ser ignorado pelo juiz a realidade existente
no exercício da prática do cumprimento das penas privativas
de liberdade e as sua mazelas. O conhecimento dos comandos
legislativos devem andar juntos com a consciência sobre os
instrumentos legais e estruturais que são colocados para o efetivo
cumprimento da execução penal bem como sobre quem é a clientela
do sistema prisional.
O objetivo deste trabalho é o de se defender que, apesar
da crescente intolerância que ganha corpo nos anseios sociais
e, particularmente no trato com as questões penais, cabendo ao
magistrado tutelar os direitos fundamentais dos presos para que
o Estado Democrático de Direito deixe de ser tão somente uma
promessa dentro da execução penal para se tornar ato do cotidiano.
Eduardo Galeano denunciou no fim do século XX que a “justiça
tapa os olhos para não ver de onde vê o que delinqüiu nem por que
delinquiu, o que seria o primeiro passo de sua possível reabilitação.
O presídio-modelo do fim do século não tem o menor propósito de
regeneração e nem sequer de castigo. A sociedade enjaula o perigo
público e joga a chave fora”.30 Que nós magistrados no tenhamos a
sensibilidade de não sermos coniventes com o modelo prático que o
Estado tem imposta para a execução penal.
30
De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso, p. 113.

90
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São Paulo: RT, 1995.

92
DO BEM-ESTAR SOCIAL AO ESTADO PENAL
Tiago Felipe de Oliveira*

RESUMO:
As políticas penais não ficam apartadas da teoria do Estado e o
contexto político neoliberal revela o uso do ativismo penal para
liberar as forças do mercado, suplantando a assistência social e
promovendo a criminalização da pobreza.

1 INTRODUÇÃO
Construídas nas luzes da modernidade, as concepções de
Estado-nação e sucessivamente do Estado de Direito passam por
um processo irreversível de redefinição, situação que revolve os
fundamentos de existência e legitimação não só conceituais, mas
também funcionais dos próprios institutos.
O histórico do liberalismo, de certa forma uma teoria
antiestado, demonstra a construção formal do sujeito de direitos
num contexto de exaltação da propriedade privada e da autonomia
da vontade, fato que permite identificar o ideário liberal como uma
doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes
quanto às suas funções.
*
Advogado, graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás e pós-graduando em Direito
Constitucional em referida instituição. Membro do GEPeC.

93
Mais adiante, o agigantamento dos centros urbanos e o
surgimento do proletariado, fruto do desenvolvimento industrial e
do rompimento com os modos de vida tradicionais, ocasionaram
significativas mudanças na ortodoxia liberal. Somadas a tais fatos, as
grandes guerras, as crises econômicas e necessidade de regulação dos
mercados fizeram emergir o Welfare State, que a pretexto de buscar
prioritariamente a justiça social, se demonstrou também como
verdadeiro pressuposto para o desenvolvimento das atividades de
acumulação e expansão do capital burguês.
A par das discussões acerca das feições liberais (neo), sociais
ou democráticas em que se apresenta o Estado de Direito, chegamos
ao ponto de revisitar a modernidade e suscitar o debate acerca da
duração do próprio conceito de Estado-nação, como o faz Giacomo
Marramao ao analisar o futuro dos direitos humanos, tomando por
partida a desterritorialização promovida pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948, que enunciou em seu art. 6º, “que
todo individuo tem direito em todo lugar”.
Muito embora ainda não seja possível vislumbrar seguramente
os desígnios do recém inaugurado século, sendo incerta a vivência
de uma modernidade madura ou como preferem alguns teóricos,
pós-modernidade, restaram as lições do conturbado século XX e
possibilidade de avaliar os presságios que até então se desvelam com
alguma clareza.
Hobsbawn revela as feições do Estado-nação ao fim do século XX:

No fim do século, o Estado-nação se achava na defensiva


contra um economia mundial que não podia controlar;
contra as instituições que construíra para remediar
suas próprias fraquezas internacionais, como a União
Européia; contra sua aparente incapacidade fiscal de
manter os serviços para seus cidadãos, tão confiantemente
empreendidos algumas décadas atrás; contra sua
incapacidade real de manter o que, pelos seus próprios
critérios, era sua maior função: a manutenção da lei e da
ordem públicas (HOBSBAWN, 1995; 554).

94
Com efeito, o que se observa de modo recorrente na teoria
politica e econômica recente é a conclamação da ideologia neoliberal
e a crescente exaltação do mercado, livre e globalizado, face ao Estado-
nação. Nesse contexto percebe-se, ainda, o forte argumento da
politização do direito constitucional e a consequente desjuridicização
da constituição, revelando que “o direito estaria perdendo espaço
para o mercado enquanto elemento simbólico da pós-modernidade”
(TAVARES NETO, 2008; 186).
É de todo plausível assumir que muito faltou para a existência
satisfatória e abrangente do Welfare State. Malgrado referida
afirmação, tem-se por evidente a crise por qual passa o projeto de
bem-estar. É certo que as políticas neoliberais intentam reduzir o
Estado Social a mero Estado assistencialista, conceitos até mesmo
opostos numa concepção substancial dos termos.
O exemplo brasileiro, inserto no pano de fundo de um projeto
tardio de modernidade, revela a dificuldade em implementar o
projeto supostamente conciliador do Constituinte de 1987, em
muito obstado pela crise de efetividade das chamadas “normas
programa” e pelo mal-estar constitucional engendrado pelo impeto
reformista neoliberal.
O discurso de proibição do retrocesso defendido por Ingo
Wolfgang Sarlet sintetiza bem a encruzilhada do bem estar social:

Com efeito, seja em virtude do incremento dos níveis de


exclusão sócio-econômica e da implantação, em maior ou
menor escala, daquilo que Boaventura Santos designou de
“facismo societal” em todo o planeta (já que também nos
países desenvolvidos tem aumentado gradativamente o
número de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza), seja
como conseqüência da fragilização das instituições estatais
e do fortalecimento correspondente de esferas de poder
econômico no contexto de globalização, certo é que hoje, mais
do que nunca, constata-se a problemática da sobrevivência do
assim denominado Estado Social e Democrático de Direito –
e, consequentemente, da efetiva implementação de padrões

95
mínimos de justiça social – constitui um dos temas centrais
de nossa época. (SARLET, 2006; 306)

O cenário complexo que se apresenta envolve as compreensões


adquiridas no curso da estória, que pouco a pouco tem posto em
questionamento a legitimidade do discurso estatal. De fato, o Estado
liberal e seu pretexto absenteísta foi incapaz de assegurar a liberdade
aos indivíduos, pois seu projeto mínimo permitiu ao mercado exaurir
suas pretensões, fazendo nascer contradições sociais insuperáveis
que colocavam em xeque as próprias condições de existência da
organização estatal.
O bem estar social e democrático se apresentou funcional para
parcela mínima da população mundial e antes mesmo de se propagar
efetivamente ao terceiro mundo, viu-se incapaz de encontrar soluções
para as necessidades de proteção e segurança social dos indivíduos,
desvelando também insuperáveis crises políticas advindas do
funcionamento irregular do jogo democrático.
Ainda assim, é inegável a demanda cada vez maior por
prestações sociais, mormente nas sociedades marcadas pela exclusão
social, que esbarra no discurso do decréscimo da capacidade
prestacional do Estado e da Sociedade, ainda que passe nos tempos
do “direito a ter direitos” a que se referiu Hanna Arendt.
Resta claro, então, que o discurso de legitimação estatal presente
na “promoção do bem comum”, tem se apresentado anacrônico e o
Estado revela cada vez mais constituir-se num fim em si mesmo.
Incapaz de permitir e regular a autodeterminação dos indivíduos ou
mesmo de prestar-lhes a proteção e induzir o desenvolvimento, faz-
se evidente que necessita reinventar seus desideratos ou certamente
será questionado.
Ainda as recentes crises econômicas apontam em tal direção,
pois trouxeram o colapso da autorregulação dos mercados e a
necessidade de aportes estatais que pudessem salvaguardar o capital
especulativo. Logo após, fez surgir o limite de endividamento das
economias mundiais e o novo ímpeto mercadológico em diminuir

96
as prestações de assistência estatal, aumentar os arrochos fiscais e
monetários e restringir direitos (gastos) com as políticas ligadas à
efetivação de direitos econômicos e sociais.
Muito embora nunca despreze os subsídios públicos e esteja
de pé, ainda que claudicante, graças a intervenção estatal, o mercado
projeta seus ímpetos na atuação estatal, conduzindo drásticas
mudanças nas tarefas do Estado, ao passo que mudam os ventos da
economia, desvelando a insuperável crise das instituições políticas,
cuja inoperância é evidente, aliada ao nítido vislumbre da estreita
relação entre Estado/direito e economia/mercado – todos, sem
exceção, lados de uma mesma moeda.
Em suma, como não pode regular ou competir com o mercado
e já não consegue se legitimar, ao menos em discurso, acima da esfera
econômica, pois nunca fora tão nítida a dependência de governos,
política e Estado em relação à superestrutura mercantil, o Estado da
hora procura desesperadamente um fundamento que o legitime e
defenda seus atributos de existência face as múltiplas possibilidades
de insurgência da sociedade civil.
É sobre o discurso estatal do momento que se fazem os
presentes apontamentos. E de fato não há um tema novo, conquanto
também não seja requentado. As coisas se colocam de outro patamar
e a segurança é o fundamento repaginado da legitimidade estatal.
Agora o Estado se faz verdadeira metonímia, pois altera seus planos
após conseguir dominar e trabalhar a seu favor o ideário do medo
coletivo (insegurança/segurança), demonstrando que o produtor do
veneno, venderá, também, o antidoto para seus males.

2 EM BUSCA DA LEGITIMAÇÃO ESTATAL


Longe de concepções simbólicas que identificam a legitimidade
estatal na simples promoção do bem comum ou até mesmo enquanto
superação do estado de natureza preconizado pelos contratualistas,
faz-se necessário perquirir em torno de um substrato comum de
intencionalidade, que possa demonstrar a legitimação do poder que
estrutura e mantém os contornos do Estado-nação.

97
Em busca das repostas a tal questionamento Zygmunt Bauman
investiga a natureza dos poderes humanos. Ao apreciar os contornos
do tema, o sociólogo se apoia na construção teórica do filósofo russo
Mikhail Baktin, que aborda os mistérios do poder humano a partir
da descrição do “medo cósmico”, sentimento incrustado na simples
percepção humana em relação a força apavorante que se manifesta
na grandiosidade do universo.

Esse universo escapa a toda compreensão. Suas intenções


são desconhecidas, seus próximos passos, imprevisíveis.
Se há um plano preconcebido ou uma lógica em sua ação,
com certeza fogem à capacidade humana de compreender.
E assim o “medo cósmico” é também o horror do
desconhecido: o terror da incerteza (BAUMAN, 2005; 61)

Nesse contexto, a vulnerabilidade e incerteza são as duas


qualidades da condição humana a partir das quais se molda o “medo
oficial”, agora concebido como o medo do poder humano, do poder
criado e manipulado pelo homem. O medo oficial necessita de
mediadores humanos e como tal, só pode ser arquitetado. Assim,
sustenta o autor, os poderes mundanos precisam criar sua própria
demanda e para que seu controle se mantenha é preciso que seus
objetos sejam tornados e mantidos vulneráveis e inseguros.
Tais apontamentos o levam a concluir que “a vulnerabilidade
e a incerteza humanas são as principais razões de ser de todo o
poder político” (BAUMAN, 2005; 66). Em tal contexto, as feições do
Estado de bem estar social estariam justamente colocadas enquanto
possibilidade dos indivíduos perseguirem os objetivos da vida em
condições de incerteza aguda ocasionada pelas forças do mercado.
Assim, caberia ao Welfare State basear sua legitimidade na
promessa de mitigar o grau de vulnerabilidade e incerteza advindos
dos danos e prejuízos perpetrados pelo livre jogo das forças de
mercado, proteger os vulneráveis dos golpes dolorosos demais e
defender o incerto dos riscos que a livre competição enseja.

98
A ideia de “Estado de bem-estar” (mais exatamente,
como propõe Robert Castel, “Estado Social” - inclinado a
combater e neutralizar os perigos socialmente produzidos
à existência individual e coletiva) proclamou a intenção
de “socializar” os riscos individuais e fazer de sua redução
uma tarefa e responsabilidade do Estado. A submissão ao
poder do Estado deveria ser legitimada por seu endosso a
uma política de proteção contra a desgraça e calamidade
individuais (BAUMAN, 2005;67)

No contexto de um Estado de bem-estar social, o poder político


não teria necessidade de assegurar uma quantidade suficiente e
perene de medo oficial, pois a vulnerabilidade e incerteza da vida
social já abunda por meio dos prejuízos oriundos do livre jogo das
forças de mercado.
Ocorre que o capital tornou-se vítima de seu próprio jogo.
Por um lado, o capitalismo tardio revela que o mercado necessita
constantemente dos aportes estatais, o que faz com que, não raro,
se confundam objetivos estatais e de mercado. De outro lado, o
capitalismo tardio requer um postura cada vez mais absenteísta do
Estado em relação à proteção sistêmica dos indivíduos, forçando-os
aderir ao trabalho precarizado e à “livre” competição.
Assim, a forma de poder político encartada no Estado de
bem-estar, destinada a proteger o indivíduo contra a desgraça e a
calamidade individuais, recua para o passado.

As instituições do “Estado de bem-estar” são


desmanteladas aos poucos e ficam defasadas, enquanto
restrições antes impostas às atividades comerciais e ao livre
jogo da competição de mercado e suas consequências são
removidas. As funções protetoras do Estado de reduzem
para atingir uma pequena minoria dos não-empregáveis
e dos inválidos, embora até mesmo essa minoria tenda
a ser reclassificada e passar de um assunto de serviço
social para uma questão de lei e ordem – a incapacidade
de participar do mercado tende a ser cada vez mais

99
criminalizada. O Estado lava as mãos à vulnerabilidade
e à incerteza provenientes da lógica (ou da ilogicidade)
do mercado livre, agora redefinida como assunto privado,
questão que os indivíduos devem tratar e enfrentar com
os recursos de suas posses particulares. Como sustenta
Ulrich Beck, agora se espera dos indivíduos que procurem
soluções biográficas para as contradições sistêmicas.
(BAUMAN, 2005;67)

Os efeitos colaterais do esvaziamento estatal se revelam no


crescimento da apatia política, no descaso com a lei, na multiplicação
dos sinais de desobediência cívica e na redução da participação
popular na política institucional, todos testemunhos da destruição
dos alicerces do poder de Estado.
Após reduzir grandemente sua interferência programática
na insegurança produzida pelo mercado, demonstrando que a
intensificação dessa insegurança em verdade é tarefa a ser realizada
pelo poder político, “o Estado contemporâneo deve procurar outras
variedades, não econômicas, de vulnerabilidade e incerteza em que
possa basear sua legitimidade” (BAUMAN, 2005;68).

Ao contrário da insegurança nascida no mercado, que


pelo menos tem o dom reconfortante de ser óbvia e
visível, essa insegurança alternativa com que se espera
restaurar o monopólio da redenção perdido pelo Estado
deve ser ampliada de modo artificial, ou ao menos
muito dramatizada para inspirar um volume de “medo
oficial” grande o bastante para encobrir e relegar a um
plano secundário as preocupações com insegurança
economicamente gerada em relação à qual a administração
do Estado não pode – e não deseja – fazer coisa alguma.
Ao contrário das ameaças geradas pelo mercado aos meios
de subsistência e ao bem-estar, a extensão dos perigos à
segurança pessoal deve ser muito divulgada e pintada nas
cores mais sombrias, de modo que a não-materialização

100
das ameaças possa ser aplaudida como um evento
extraordinário, resultado da vigilância, do cuidado e da
boa vontade dos órgãos do Estado. (BAUMAN, 2005;68)

Os temores produzidos pela organização estatal trabalham


com as mesmas fraquezas humanas reportadas por Mikhail Baktin e
seu “medo cósmico”. Essa incerteza sistêmica e a propagação estatal
dos riscos e perigos tem resultado numa profusão de acessos de
estafa, insônia e depressão, simultaneamente ao grande aumento no
consumo de álcool e cigarro. Sabe-se, ainda, que o mundo atravessa
uma verdadeira epidemia de doenças mentais.
A quantidade de americanos incapacitados por transtornos
mentais, e com direito a receber renda de seguridade suplementar ou
o seguro por incapacidade, aumentou quase duas vezes e meia entre
1987 e 2007 – de 1 em cada 184 americanos passou para 1 em 76.
(ANGELL, 2011; 45)
No que se refere às crianças, o número é ainda maior e a doença
mental é hoje a principal causa de incapacitação infantil, bem a
frente de deficiências físicas como a paralisia cerebral ou a síndrome
de Down.
Entre os adultos, um estudo do Instituto Nacional de Saúde
Mental, realizado entre os anos 2001 e 2003, revelou que 46% dos
entrevistados se encaixavam nos critérios da Associação Americana
de Psiquiatria, por terem tido ao longo da vida pelo menos uma
doença mental.

As categorias seriam “transtornos de ansiedade”, que


incluem fobias e estresse pós-traumático; “transtornos de
humor”, como depressão e transtorno bipolar “transtornos
de controle dos impulsos”, que abrangem problemas de
comportamento e de déficit de atenção/hiperatividade;
e transtornos causados pelo uso de substâncias”, como o
abuso de álcool e drogas. A maioria dos pesquisados se
encaixa em mais de um diagnóstico”. (ANGELL, 2011; 45)

101
Tal situação não foge do contexto teorizado por Bauman, ao
afirmar que tornar as pessoas inseguras e ansiosas tem sido a tarefa de
que a CIA e o FBI mais se ocuparam nos últimos meses: “prevenindo
os norte-americanos dos iminentes atentados à sua segurança que
certamente serão perpetrados, embora seja impossível dizer onde,
quando e contra quem, colocando-os num estado de alerta constante e,
desse modo, aumentando a tensão”(BAUMAN, 2005; 70).
Tornou-se objetivo estatal agudizar a tensão sobre os
indivíduos. Quanto mais tensão melhor, pois todo o crédito pelo
alívio será atribuído pelo consenso popular aos órgãos da lei e da
ordem que compõem a administração do Estado.
É interessante observar que o discurso moralizador e
tranquilizante envolve de modo subjetivo a atuação do Poder
Judiciário. O discurso do medo/segurança estatal está muito
imbricado no cotidiano próximo. Basta observar, por exemplo, as
decisões judiciais proferidas pelos magistrados monocráticos nas
inúmeras comarcas do país, o que confirma a assertiva de Boaventura
Souza Santos a respeito da interconexão cada vez maior entre o global
e o local.
É interessante ilustrar a passagem com a argumentação
utilizada em decisões de pedidos de liberdade provisória da
Comarca de Goiânia - Goiás, que a despeito de apreciar os critérios
constitucionais e processuais para a que o acusado responda o
processo criminal em liberdade, procura fundamentação na própria
comoção social a respeito dos delitos para determinar a execução
antecipada das penas:

“É cediço que atualmente o tráfico de drogas tem alarmado a


sociedade, alcançando, cada vez mais precocemente, jovens
indefesos e famílias desestruturadas, além de espalhar terror
pelas cidades, até mesmo as mais provincianas, exigindo,
assim, uma atuação mais rígida do aparelho estatal, para
arrefecer tal prática. A manutenção das prisões cautelares,
nesse ínterim, tem-se revelado como forte instrumento
intimidador, garantindo, em contrapartida, a manutenção
da ordem pública e sentimento de paz e tranquilidade social,

102
além de desencadear um propício momento de reflexão
das famílias, chamando-as para serem coparticipantes do
processo de reinserção social”. (BRASIL, DJGO 863; 2011)

Afigura-se evidente que a atividade de prestar a jurisdição


ficou em segundo plano argumentativo, pois o fundamento maior
da atuação judicial no caso em evidência teve por intenção a
impostergável tarefa de fornecer segurança à comunidade local, fato
que, ao menos em tese, não seria atividade precípua dos magistrados.
A segurança da comunidade e o discurso da “qualidade de vida”,
não fogem de um contexto de insegurança ontológica e a preocupação
governamental – em todas esferas de poder – com a pequena
criminalidade, desordem e com o comportamento antissocial, pois
reflete uma fonte de ansiedade a respeito da qual se pode fazer alguma
coisa, num mundo que se apresenta de todo inseguro.

Enquanto a incerteza econômica não é mais preocupação


de um Estado que preferiria deixar para seus súditos
individuais a busca individual de remédios individuais
para a insegurança existencial individual, o novo tipo de
temor coletivo oficialmente inspirado e estimulado foi
colocado a serviço da formula política. As preocupações
dos cidadãos com seu bem estar foram removidas do
traiçoeiro terreno da précarité promovida pelo mercado,
no qual os governos dos Estados não tem capacidade nem
vontade de pisar, e levadas para uma área mais segura e
muito mais telefotogênica, em que o poder aterrorizante
e a resolução férrea dos governantes podem ser de fato
apresentados à admiração pública (BAUMAN, 2005;71).

É evidente, então, que a penalidade neoliberal apresenta o


seguinte paradoxo:

...pretende remediar com um “mais Estado” policial e


penitenciário o “menos Estado” econômico e social, sendo
tal estratégia a própria causa da escalada generalizada da

103
insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, sejam
desenvolvidos ou não (WACQUANT, 2001, p. 07-08).

A legitimação do ideário estatal se refunda na promoção da


segurança, ao tempo em que também cuida de incutir a insegurança
no imaginário coletivo, contando com a valiosa participação do
mercado, que vislumbra alçar a indústria da segurança ao estrelato
das mercadorias de consumo na sociedade contemporânea.
Esse processo, inegavelmente, envolve uma nebulosa
identificação dos medos e dos monstros, o que Bauman vislumbra,
no contexto europeu, como os “refugos humanos”, refletidos
basicamente nos indivíduos que não conseguem inserção regular no
mercado, exemplo dos “migrantes econômicos” e “pessoas em busca
de asilo”, que passam a ser rotulados simplesmente de potenciais
“terroristas” e se tornam objeto da raiva e ressentimento social.
Do outro lado do atlântico, Loic Wacquant identifica os
objetivos da política de segurança neoliberal aplicada nos países sul-
americanos, consistente no tratamento penal da miséria:

ela reafirma a onipotência do Leviatã no domínio restrito


da manutenção da ordem pública - simbolizada pela luta
contra a delinqüência de rua - no momento em que este
afirma-se e verifica-se incapaz de conter a decomposição
do trabalho assalariado e de refrear a hipermobilidade do
capital, as quais, capturando-a como tenazes, desestabilizam
a sociedade inteira. E isso não é uma simples coincidência: é
justamente porque as elites do Estado, tendo se convertido
à ideologia do mercado-total vinda dos Estados Unidos,
diminuem suas prerrogativas na frente econômica e social
que é preciso aumentar e reforçar suas missões em matéria
de “segurança”, subitamente relegada à mera dimensão
criminal. No entanto, e sobretudo, a penalidade neoliberal
ainda é mais sedutora e mais funesta quando aplicada em
países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades
de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de
tradição democrática e de instituições capazes de amortecer

104
os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo
no limiar do novo século. Isso é dizer que a alternativa entre o
tratamento social da miséria e de seus correlatos - ancorado
numa visão de longo prazo guiada pelos valores de justiça
social e de solidariedade - e seu tratamento penal - que visa as
parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no
curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados
por uma máquina midiática fora de controle, diante da
qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados
Unidos, coloca-se em termos particularmente cruciais nos
países recentemente industrializados da América do Sul
(WACQUANT, 2001; 07-08)

De fato, esse aparente “ativismo penal” encerra um projeto


político destinado a remontar a autoridade pública e sedimentar os
caminhos para o avanço do neoliberalismo. A penalização desponta
como uma técnica de invisibilização dos problemas sociais que o
Estado, enquanto alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode
ou não se preocupa mais em tratar de forma profunda, relegando a
abordagem e solução dos problemas sociais para segundo plano, em
favor da penalização dos sintomas, fazendo uso da prisão como o
expurgo judiciário para o lixo humano da sociedade de mercado.

3 A CRIAÇÃO DO INIMIGO PÚBLICO


O desenvolvimento das políticas de segurança ativas e
punitivas tencionam o ponto comum de acabar com a complacência
e atacar de frente o problema do crime, não demonstrando interesse
em considerar as causas da criminalidade, muito embora inexista
qualquer demonstração de alterações significativas na evolução
do crime e da delinquência, na medida em que eles não mudaram
bruscamente de escala ou de fisionomia nas décadas recentes.
Com efeito, o endurecimento das políticas policiais revela a
amputação do braço econômico do Estado combinado com massiva
expansão de seu braço penal. O Estado Keynesiano – destinado
a balancear os ciclos do mercado, proteger vulneráveis e reduzir
desigualdades gritantes – foi sucedido por um Estado “que se pode chamar
105
neo-darwinista, que se baseia na competição, celebra a responsabilidade
individual irrestrita e tem como contrapartida a irresponsabilidade
coletiva e, portanto, política” (WACQUANT, 2007; 31).
O novo darwinismo estatal louva os vencedores e infirma
os “losers”apontando suas falhas de caráter e deficiências de
comportamento. A guerra ao crime separa o cidadão exemplar
e o delinquente – responsável pela pandemia de infrações que
envenenam o cotidiano.
Os métodos de personificação dos inimigos sociais não
mudaram em essência nos últimos séculos. A teorização de Foucault
acerca da ilegalidade e delinquência nos séculos XVIII e XIX revela
que, já àquela época, a generalização das ilegalidades, por meio de
novas formas de direito, rigores de regulamentação e exigências do
Estado e dos proprietários, foram responsáveis pela multiplicação
das ocasiões de delito, “e faziam se bandear para o outro lado da lei
muitos indivíduos que, em outras ocasiões, não teriam passado para a
criminalidade especializada” (FOUCAULT, 1987; 228).
O processo de generalização das ilegalidades populares
destinou-se a manter subjugada a grande maioria da população,
que pode repentinamente, ainda que em situações aparentemente
normais, ter-se por criminosa, abrindo as portas para a legitimidade da
intervenção estatal e para a identificação e exclusão dos indesejáveis.

Esses processos não seguiram sem dúvida um


desenvolvimento pleno; certamente não se formou uma
ilegalidade maciça, ao mesmo tempo política e social.
Mas em sua forma esboçada e apesar de sua dispersão
foram suficientemente marcados para servir de suporte
ao grande medo de uma plebe que se acredita toda em
conjunto criminosa e sediciosa, ao mito da classe bárbara,
imoral e fora da lei que, do império à monarquia de
julho, está continuamente no discurso dos legisladores,
dos filantropos, ou dos pesquisadores da vida operária
(FOUCAULT, 1987; 229).

106
O discurso da criminalidade de classe atuou como fio condutor
teórico da segregação legal, validando as teses de que seria mais
prudente reconhecer que a lei é feita por alguns e aplicável a outros;
“quem em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige
principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao
contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação
não se refere a todos da mesma forma” (FOUCAULT, 1987; 229).
É possível observar que os personagens passam por ligeira
modificação no contexto atual, mas as razões de fundo permanecem
as mesmas. É o que Bauman discorre ao citar a “criminalização
do globo e a globalização do crime”, registrando que “nunca antes
foram as máfias tão numerosas, influentes, bem armadas e prósperas”
(BAUMAN, 2005; 82).
A onda punitiva inaugura um regime estatal denominado
liberal-paternalista por Wacquant, “já que é liberal e permissivo no
topo, em relação às corporações e às classes superiores, e paternalista
e autoritário na base, em relação àqueles que se acham imprensados
entre a reestruturação do emprego e o recuo da proteção social”
(WACQUANT, 2007; 35).
Com razão, na maior parte do tempo, os poderes políticos não
teriam capacidade nem disposição para se engajar na luta contra
as forças criminosas que, com frequência demasiada, controlam
recursos que nenhum governo sozinho, ou mesmo em conjunto,
poderia igualar:

Essa é uma das razões pelas quais, na visão de Bernard, os


governos preferem dirigir a animosidade popular contra
os pequenos crimes a se engajar em batalhas que com toda
probabilidade prosseguirão por um tempo interminável
e decerto consumirão recursos incalculáveis, mas que
tendem virtualmente a serem perdidas. Procurar o Inimigo
Público Número 1 entre os infelizes imigrantes dos banlieus
e nos acampamentos para pessoas em busca de asilo é bem
mais oportuno e conveniente, mas acima de tudo menos
incômodo. Com maior efeito e menores custos, os bairros

107
de imigrantes, repletos de potenciais gatunos e batedores
de carteira, podem ser usados como campos de batalha na
grande guerra pela lei e a ordem que os governos travam
com muito vigor e publicidade ainda maior, embora não
sejam avessos a “terceirizá-la” e sublocá-la a empresas de
segurança privadas e a iniciativas da parte dos cidadãos
(BAUMAN, 2005;82)

É evidente que os Estados saibam a respeito das elites globais


que flutuam além do controle humano, mas devem reconhecer que as
grandes máfias globais são poderosas demais para serem desafiadas,
o que relega o papel de inimigo a uma categoria de indivíduos
“outsiders”, não adaptados ao jogo do mercado, refugiados, migrantes,
jovens dos bairros decadentes, desempregados, sem-teto, mendigos,
toxicômanos, prostitutas, etc.
O circuito da delinquência consiste num mecanismo de
punição-reprodução de que o encarceramento seria uma das peças
principais, tendo a prisão o papel central de produzir aquilo a que
se destina combater. A delinquência produzida pelo Estado possui
a vantagem de ser identificável, controlável e sujeita a uso direito,
político, diga-se de passagem, e se destina agora a tornar permanente
e legitimar o estado de exceção que se nos impõe na atualidade,
conforme revela Giorgio Agamben:

Diante do incessante avanço do que foi definido como


uma “guerra civil mundial”, o estado de exceção tende cada
vez mais a se apresentar como o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse deslocamento
de uma medida provisória e excepcional para uma técnica
de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato,
já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e
o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos
de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa
perspectiva, como um patamar de indeterminação entre
democracia e absolutismo (AGAMBEN, 2004; 13)

108
A tarefa mercadológica de vender medo e proteção, associada
ao ímpeto estatal de legitimar-se na oferta da segurança pessoal aos
indivíduos, segue impondo a percepção de que os “delinquentes”
estão próximos, presentes em toda parte e temíveis. O criminoso
tem fenótipo conhecido e traz em si a imoralidade e a pobreza que a
comunidade deseja longe dos olhos.
A derrocada do bem-estar social poderia simplesmente
desembocar num período de crises, com o desmoronamento de
estruturas sociais e falência de determinados papéis. Contudo,
o Estado-penal suscita o discurso do chaos, do terror anômico,
para legitimar a precariedade em que se encontra. Nesse percurso
totalitário instaura uma espécie de “guerra civil legal”, que “permite
a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de
categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político” (AGAMBEN, 2004;13).
Em seu caminho, os “outsiders”, “delinquentes” ou “inimigos”
são utilizados de modo funcional, a fim de o aparato policialesco
realize a seleção e o apartamento dos expurgos, evidenciando o
terror onipresente e a segurança que promete oferecer para angariar o
consenso popular mediante breves descargas de alívio num contexto
de emergência permanente.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Face aos questionamentos que se colocam ao Estado-nação,
há os que advogam acerca da criação de estruturas globais de tutela
da pessoa – que não se afastam substantivamente das dilações da
paz perpétua Kantiana – e nesse contexto, dissertam sobre a esfera
global de direitos humanos, criações supranacionais de jurisdição
constitucional, livre circulação de pessoas, refundamento da noção
de soberania, etc.
De outro lado, aqueles que acreditam no enrijecimento das
estruturas do Estado-nação, na criação de estruturas globais que
digam respeito tão somente à livre circulação de mercadorias e
capitais e na manutenção, embora mitigada pelo mercado, da noção
atual de soberania. Talvez ambas perspectivas sejam conciliáveis num

109
contexto de longo prazo, embora seja dificultoso realizar qualquer
prognóstico em tempos de incerteza generalizada.
O pano de fundo que se apresenta problemático diz respeito
justamente ao desmantelamento do Estado de bem-estar social sem
que erigida qualquer outra esfera de contenção dos disparates do
mercado. Abandonar o ideário dos direitos sociais e econômicos
coloca em xeque a própria democracia, cuja conceituação igualitária
não se adequa aos anseios estratificadores do capitalismo.
A mão invisível do capital não se importa com a chamada
trindade maléfica: pobreza extrema, enormes desigualdades na
distribuição de renda e intensa flutuação nos níveis de atividade e
emprego. Nesse cenário, o conjunto político é totalmente vinculado
e determinado pela capacidade econômica dos atores, o que reclama
sobremaneira uma inteligente e adequada intervenção estatal, capaz
de contrabalancear os desequilíbrios do capital.
Contudo, é possível verificar que a derrocada do welfare vem
acompanhada da relativização dos programas constitucionais, de sensível
desconstitucionalização não só dos direitos fundados na igualdade, mas
também do esvaziamento das garantias de liberdade, demonstrado
que o projeto neoliberal retroage em desfavor do maior simbolo do
liberalismo, o indivíduo. Resta claro, portanto, que a criminalização da
insegurança social desemboca no custo social colossal de aviltar o ideais
de liberdade e igualdade que nem sequer chegaram a se estabelecer de
modo satisfatório no cenário contemporâneo.
A campanha contra o Estado de bem-estar se dirige também
contra o próprio Estado-nação, numa clara tentativa de abrir o
cenário social fragilizado aos infortúnios da justiça do mais forte,
transnacional, de utilidade privada, que funciona sem Estado, sem
legislação e sem Judiciário. Ainda que precarizado e necessitando
de urgentes reformas, o Estado social abrange um modelo de
comunidade includente em oposição ao Estado penal excludente,
voltado para a justiça criminal e o controle do crime.
No arroubo de sobreviver ao mercado, o Estado penal intenta
fagocitar a vida com as grades da prisão. Os conjuntos cercados, com
perímetro sob vigilância, revistas aleatórias, segregação, toques de

110
recolher e contagem de moradores são processos da administração
prisional lançados ao cotidiano social. A separação do “refugo
humano”, excluído do arcabouço jurídico em que se conduzem as
atividades dos demais, intenta manter a sociedade a salvo do perigo
perpétuo temporariamente à solta:

Construir novas prisões, aumentar o número de delitos


puníveis com a perda da liberdade, a política de “tolerância
zero” e o estabelecimento de sentenças mais duras e mais longas
podem ser medidas mais bem compreendidas como esforços
para reconstruir a deficiente e vacilante indústria de remoção
do lixo – sobre uma nova base, mais antenada com as novas
condições do mundo globalizado (BAUMAN, 2005; 109)

Contudo, a retórica viril da responsabilidade individual é feita


sob medida para desviar a atenção da retirada do Estado das frentes
econômicas, urbana, escolar e da saúde pública. É crucial, portanto,
que essa “escolha” seja feita com pleno conhecimento das causas e
das consequências, a médio e longo prazos, das opções que são
oferecidas, até porque a guerra contra a delinquência de rua revela as
facetas de uma nova questão social:

A ativação de um lado, de programas disciplinas aplicados


aos desempregados, indigentes, mães solteiras e outros
“assistidos”, a fim de empurrá-los para os setores periféricos
do mercado de trabalho e, do outro, o desenvolvimento
de uma rede policial e penal ampliada, com uma malha
reforçada nos bairros deserdados das metrópoles, são os
dois componentes de um único dispositivo de gestão da
pobreza, que visa efetivar a retificação autoritária dos
comportamentos das populações recalcitrantes, tanto
no plano econômico quanto no plano simbólico. Esse
dispositivo pretende, por omissão, assegurar o expurgo
cívico ou físico daqueles que se revelam ‘incorrigíveis” ou
“inúteis” (WACQUANT, 2007;44)

111
A rotulação do welfare como o produto de um senso comum
e científico ultrapassado pela realidade e a defesa incondicional do
neoliberalismo – liberal em relação ao topo das estruturas de classes
e punitivo nas bases – revelam que o estudo das políticas penais
integra definitivamente “um capítulo essencial da sociologia do Estado
e da estratificação social, e mais especificamente, da (de)composição
do proletariado urbano na era do neoliberalismo ascendente”
(WACQUANT, 2007; 47).
A contradição neoliberal traz consigo o clamor pelo Estado
mínimo que liberte as forças vivas do mercado e remeta os
despossuídos ao estímulo da competição, ao mesmo tempo em que
erige o Estado máximo para garantir a “segurança” do quotidiano.
Verifica-se, pois, que o empobrecimento do Estado social requer
a grandeza do Estado penal a fim de que garanta o assalariamento
precário como nova forma de cidadania, por meio da criminalização
da pobreza e a substituição do direito à assistência social (welfare),
pela obrigação ao trabalho sub-remunerado (workfare).
O erro científico e cívico mais grave consiste, aqui, em crer e
fazer as pessoas acreditarem – como apregoa o discurso da hiper-
segurança que, hoje em dia, satura os campos políticos e midiático
– que a gestão policial e carcerária é o remédio ótimo, o caminho real
para a restauração da ordem sociomoral na cidade, senão o único meio
de garantir a “segurança” pública, e que não existiria nenhuma outra
alternativa para conter os problemas sociais e mentais provocados
pela fragmentação do trabalho assalariado e pela polarização do
espaço urbano.
Verifica-se, contudo, que a política da penalização traduz-
se de modo eficaz tão somente enquanto objeto de legitimação
e imposição da simbologia estatal. Trata-se, em qualquer caso, do
uso da mera sintomatologia, destituída da abordagem terapêutica
dos problemas sociais. Assim, os carcinomas econômicos e sociais,
como a precarização do trabalho, crise da família patriarcal,
relações de autoridade e gênero e a imposição da doutrina da
competição individual permanecem relegados ao tempo, enquanto
o encarceramento cuida da limpeza e ocultação de toda a “sujeira”.

112
De igual modo, a prisão fornece ao aparelho estatal a possibilidade
de segmentar e identificar o “delinquente”, favorecendo o uso político
controlado da criminalidade e a reprodução e combate do indivíduo
responsável por toda insegurança social. Impende avaliar, porém,
que o substrato político do Estado penal é o puro medo de enfrentar
as situações da vida social que se colocam a aguardar resolução e
enfrentamento pelo próprio Estado. A política da penalização é em
verdade a política da fraqueza, pois o Estado teme a briga com o
mercado e decide previamente por abandonar o combate.
Em termos tupiniquins, é possível apontar o marco inicial
da construção política do Estado Simão Bacamarte, que pretende
trancafiar os “inservíveis” e “irrecuperáveis” indivíduos problemáticos
da pós-modernidade. O verdadeiro medo a ser alimentado advém da
avalanche de problemas que ressurgirão ao caírem as grades da “casa
verde” e talvez ai já seja tarde demais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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São Paulo: Boitempo, 2004.
2. ANGELL, Márcia. A epidemia de doença mental. In piauí, nº. 59, – São
Paulo, ago. 2011. questões médico-farmacológicas, p. 44-49.
3. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução Carlos Alberto
Medeiros – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
4. ___________. A arte da vida. Tradução Carlos Alberto Medeiros – Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
5. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18° ed., São Paulo:
Malheiros, 2006.
6. BRASIL. Poder Judiciário do Estado de Goiás. 3ª Vara Criminal da
Comarca de Goiânia - GO. Decisão em pedido de liberdade provisória nº.
248100-53.2011.8.09.0175. Publicada no Diário da Justiça do Estado de
Goiás n°. 863 em 19/07/2011.
7. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Brancosos” e Interconstitucionalidade:
itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra:
Almedina, 2006.

113
8. FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de
Raquel Ramalhete. 29ª edição – Petrópolis: Vozes, 1987.
9. __________. Microfísica do poder. Rio de janeiro: Graal, 1979.
10. GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. 2ª ed., São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
11. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991.
Tradução Marcos Santarrita. 2ª edição – São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
12. MARRAMAO, Giacomo. Passado e futuro dos direitos humanos: da
“ordem pós-hobbesiana” ao cosmopolitismo da diferença. Edição: Flaviane de
Magalhães BARROS e Marcelo Andrade Cattoni de, OLIVEIRA. Tradução:
Lorena Vasconcelos Porto. Minas Gerais, 2007.
13. MULLER, Friedrich. A limitação das possibilidades de atuação do Estado-
Nação face à crescente globalização e o papel da sociedade civil em possíveis
estratégias de resistência. In Paulo Bonavides, et al (Coord.) Constituição e
Democracia, estudos em homenagem ao Prof. J. J. Canotilho. São Paulo:
Malheiros, 2006, p.208-219.
14. SANTOS, Boaventura Sousa. Os processos da globalização. In. SANTOS,
Boaventura Sousa (org.). A globalização e as ciências sociais. 3. ed., São
Paulo: Cortez, 2005, p. 25-102.
15. SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa
humana e direitos sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente
possível. In Paulo Bonavides, et al (Coord.) Constituição e Democracia,
estudos em homenagem ao Prof. J. J. Canotilho. São Paulo: Malheiros,
2006, p. 292-332.
16. TAVARES NETO, José Querino. Constituição e Mercado: entre o débâcle
e a (re) afirmação. In Seqüência Estudos Jurídicos e Políticos. Vol 29, n.
56 – Florianópolis: UFSC, 2008. p. 177-204.
17. WACQUANT, Löic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
Unidos [a onda punitiva]. Tradução de Sérgio Lamarão – 3ª edição, Rio de
Janeiro: Revan, 2007.
18. _________.As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.

114
O COMPROMISSO ÉTICO E PROFISSIONAL DO
JUIZ COM A TUTELA DOS DIREITOS E
GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Denival Francisco da Silva*

RESUMO:
O texto busca fazer uma análise sobre o compromisso ético e
profissional do juiz com a tutela dos direitos e garantias fundamentais.
Para tanto, aborda tópicos importantes da atuação do juiz, desde o seu
poder criativo na construção do direito, à necessária fuga do legalismo
e do mito da neutralidade. Reafirma a condição de agente político do
juiz, porquanto não neutro, e sustenta como um de seus atributos
essenciais a independência. Porém, retrata as dificuldades de todos
estes pontos, as pressões, ingerências e no que tem se transformado
o papel do juiz de agora, mero burocrata gestor de processos. Não
se trata de acaso, mas proposição óbvia para tomar o tempo do
magistrado com futilidades administrativas, a despeito do seu dever
constitucional de zelar pelas garantias e direitos fundamentais.

Juiz de Direito em Goiânia/GO. Mestre em Direito pela UFPE. Professor universitário. Membro
*

fundador e presidente do GEPeC.

115
1 O JUIZ COMO CRIADOR DO DIREITO
O direito, como criação humana, não é algo estático e imutável.
Sua evolução e desenvolvimento fluem numa construção histórica e
social, muitas das vezes emergente de movimentos revolucionários.
Na formatação do poder, desenhada por Montesquieu,
incorporada nas civilizações democráticas do mundo atual, compete
ao Legislativo, como representante autêntico da soberania popular, o
processo de criação das leis. A este propósito, os legislativos tiveram,
nestes Estados Democráticos, uma atuação determinante após o
segundo pós-guerra, com o avanço do Estado social.1
Não sem razão.
Suplantado este período trágico da história da humanidade,
voltou-se à preocupação com o indivíduo, e daí a necessidade
de ampará-lo nas cartas políticas, resguardando-o dos arbítrios,
principalmente do próprio Estado. Não só isso. Foi o momento
também de efervescência dos direitos sociais, com a inserção de
seus valores nos textos constitucionais. Este modelo político é, pois,
fruto incontestável da atividade legislativa, fazendo crescer a atuação
estatal, em particular, do Legislativo.
Ao assumir a tarefa transformadora, a legislação conduz
inevitavelmente o estado a superar os limites das funções tradicionais
de ‘proteção’ e ‘repressão’ 2, obrigando-o à promoção de políticas
voltadas à satisfação das determinações legais. É que os direitos sociais
não podem simplesmente serem atribuídos aos indivíduos, que pedem,
para sua execução a intervenção ativa do Estado, frequentemente
prolongada no tempo. 3

BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 6a. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 184: “O
1

Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural porque passou o antigo
Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue desde
as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua
adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia”.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. Trad. Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio
2

Antonio Fabris Editor, 1999. p. 41.


CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. Trad. Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio
3

Antonio Fabris Editor, 1999. p. 41.

116
Diante, então, da percepção de que o princípio da igualdade na
perspectiva puramente formal, de inspiração liberal, não conseguia
atender as necessidades de uma sociedade desequilibrada, gerando um
distanciamento cada vez mais acentuado diante da vulnerabilidade
dos mais frágeis, surge o Estado do Bem Estar Social – Welfare State
– com a missão previdente e assistencial. Nisso ascende o papel
do poder Executivo como gestor e executor das políticas públicas
dirigidas a estes propósitos.
Todavia o Estado previdente perdeu força, não só pela
incapacidade de atender à demanda sempre crescente, como em
razão do despertar das pessoas que não querem simplesmente ser
objetos de direitos, mas sujeitos deles, não aceitando pacificamente
apenas a condição de destinatários de políticos assistencialistas sem
intervirem diretamente na definição dos rumos da coisa pública e
dos próprios interesses.
Somados estes componentes, para além do modelo
revolucionário, emerge o modelo neoliberal que exige o afastamento
do Estado da atividade econômica, de um modo geral, e limitando, no
mais, suas ações naquilo estritamente essencial, não se importando,
ainda assim, com a precariedade dos serviços concedidos. Aliás,
quando mais precário for, melhor se justifica a tese de que o poder
público, em virtude de problemas crônicos, não consegue agir com
eficiência. Até mesmo na área social houve restrição as suas ações
e uma cobrança sistemática para que as políticas públicas não se
voltem às medidas previdentes, como se houvesse condições iguais
de competitividade.
Assim, diante destas dicotomias, o Estado que se propõe
como democrático de direito, precisa do mediador destes interesses
oponentes, entre o modelo neoliberal – de ausência total do poder
estatal – em contraposição ao Estado previdente, cujas etapas ainda
não foram supridas. Neste novo desenho político, exige-se um
ajustamento, devendo o Estado assumir o papel de pivô a atrair o

117
maior conjunto de atores sociais, no intuito de garantir uma prestação
de serviços mais adequada às necessidades de cada um.4
Contudo, a inoperância do poder público em atender
mandamento legal faz gerar o conflito. Daí o surgimento de contendas
jurídicas que vão desencadear no Judiciário. Neste jogo, o argumento
governamental, em regra, é que os preceitos na esfera dos direitos
sociais são pragmáticos e, portanto, servem apenas de orientação
às políticas administrativas, ainda porque o ente público também,
e principalmente, se ressente de fontes de financiamento para estes
programas.
O embate – pragmatismo e atendimento da demanda social – é
uma das questões exigidas do julgador na tarefa criadora do direito.
Outra, porque a lei, conforme advertência de Cappelletti, sempre é
lacunosa5, não podendo o juiz se furtar à apreciação da demanda,
tendo que, necessariamente, preencher o vão na sua aplicação ao
caso concreto. Ainda, surge a situação de a lei estar completamente
distante dos ideais de justiça, devendo o juiz, dentro do poder de
apreciar a constitucionalidade, rechaçá-la.
E o julgador tem que estar atento as novas criações jurídicas/
doutrinárias tendentes a furtar o poder público do seu compromisso
social. O discurso mais recente não é mais da norma programática,
porque de tão envelhecido passou a capengar. Diz agora da reserva do
possível – o que em suma da no mesmo – como forma de se esquivar
de suas atribuições essenciais. Juntamente com esta tese, outros títulos
se somam, como o interesse da justiça, a realidade sócio-econômica,
as circunstâncias externas, etc., enfim, uma infinidade de expressões
evasivas para negligenciar a entrega dos direitos fundamentais ao
cidadão comum e ao já excluído.
Pior que a própria novidade, e o encanto pelo novo fazem
crescer a vaidade em muitos que adotam tais teses em nome da entrega
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: O guardião das promessas.Tradução Maria Luiza
4

Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 232.


CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. Trad. Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio
5

Antonio Fabris Editor, 1999. p. 20.

118
jurisdicional e do estudo jurídico. Sem ao menos saber explica-las,
muitos dos prosadores e copiladores destas teses se auto-concebem
como baluartes de um vanguardismo acadêmico, bastando por isso
suas conclusões.
Não se pode simplesmente sair por aí copilando afirmações
alheias, por mais que seja a reiteração de julgados. Ao juiz
é reservada a tarefa criadora do direito e que não se dá com a
mera repetição da jurisprudência e muito menos se agarrando
à tradição justiniana e montesquiana [...] do juiz como mera e
passiva ‘inanimada boca da lei’.6
O juiz é, sobretudo, fonte de criação do direito, quando age
concretamente, não generalizando soluções às demandas e conflitos
que lhe chegam. O ato de julgar carece um pouco de saber jurídico,
desde que este conhecimento seja nutrido pelos fundamentos
essenciais de toda ordem jurídica. E não há ordem jurídica alguma
sem que o ente humano não esteja integrado como o foco principal.
O resto é sensibilidade, alteridade, compromisso ético, vontade
e responsabilidade política, não apatia, revelação dos valores e
princípios fundamentais, e tantas outras virtudes não listadas no
ensino jurídico.

2 A MAGISTRATURA DO SUJEITO 7
Fruto do estágio democrático que vivemos, o direito assumiu
um perfil de contestação, de reivindicação e conquistas, e não
mais de simples conservação social. De fato, somente num Estado
Democrático de Direito isso é possível, na medida em que somente
a democracia fomenta o conflito, algo impossível num sistema

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. Trad. Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio
6

Antonio Fabris Editor, 1999. p. 32.


GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: O guardião das promessas.Tradução Maria Luiza
7

Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 139.

119
totalitário. Para tanto, espera-se que o Judiciário 8 constituia lugar
de defesa do cidadão,9 onde possa exigir a efetivação democrática
e a possibilidade de participação social, como previsto aqui na
Constituição de 1988.
O juiz tem enorme importância como restaurador do
jogo democrático, sempre em conflito diante das forças políticas
antagônicas, e dos conflitos sociais e individuais mais acentuados. É
justamente no momento de tensão e de atritos que o juiz comparece,
ou como salienta Garapon, quando o juiz é chamado a socorrer. 10 Na
sua inércia, a atuação do juiz será sempre provocada, quase nunca
(ou nunca) em caráter preventivo. Por isso seu agir é sempre no
sentido de socorro e, como tal não pode ser adiado.
Não há, portanto, espaços para o juiz omisso ou submisso aos
desmandos principalmente do poder público. O Estado Democrático
de Direito emancipou o julgador, mas em contraprestação exigiu-lhe
maturidade e compromisso com os valores fundamentais. Não pode o
juiz, por exemplo, ser indiferentemente diante de leis mal elaboradas
num jogo perturbado de alianças e coalizões por conveniências
eleitorais e políticas, até porque a verdadeira fonte do direito não se
encontra na legislação, mas no texto constitucional e na ordem dos
tratados e documentos internacionais.
Este papel de relevância, e que no direito francês é denominada
aos juízes ativistas de petits juges 11, encontra ainda grandes
resistências em nosso sistema, assentado num conservadorismo
sem igual, provavelmente pela não modificação estrutural e de
composição do Judiciário depois da Constituição de 1988. E tem
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: O guardião das promessas.Tradução Maria Luiza
8

Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 24.


VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
9

1997. p. 12.
10
VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
1997. p. 48.
11
Ibidem, p. 14: “Petit juge, denominação com que na França certa mídia sensacionalista e certos meios
político-financeiros qualificam os jovens juízes formados pela Escola Nacional da Magistratura, com
sede em Bordeaux. Em geral têm menos de 40 anos, são quase metade dos 6.300 magistrados em
exercício.”

120
seus motivos. O que se esperar de julgadores formados durante um
regime militar, onde apreenderam a conviver tranquilamente com
o regime, sob o império do legalismo de então, e que continuaram
julgando depois da entrega do novo texto constitucional? 12 Apesar
de terem nenhuma inspiração democrática, foram preservados em
seus postos como interpretes deste desta nova Constituição, sem
nenhum pudor, como de fato não teve pudor o regime autoritário
ao modificar abruptamente a composição do STF, com o AI 5, para
constituir um tribunal silencioso aos desmandos do regime.
O que apavora é que já convivemos com a nova Constituição há
mais de 20 anos, e ainda assim boa parcela do judiciário, sobretudo
nos tribunais, é resistente quanto a uma visão em consonância com
este texto, sobretudo com a necessária de elevação dos valores e
garantias fundamentais. O sentimento conservador e alheio as reais
demandas sociais é atualizado apenas nos discursos neoliberais
econômicos e globalizantes, em demérito ao drama das camadas
sociais sofridas e espoliadas.
Na pesquisa elaborada sobre o perfil da magistratura brasileira,
no ano de 1995, Luiz Werneck Vianna e outros, assinalaram a
ocorrência de uma revolução silenciosa no núcleo do Estado,

Moreira Alves, ministro aposentado do STF, e que literalmente fez carreira na Corte Suprema (ainda
12

que parada: foi ministro durante 27 anos, de 1976 a 2003), a quem coube a honra de instalação da
Assembléia Constituinte em 1986, como chefe máximo do Judiciário, segundo afirma Luís Barroso, teria
dito anos depois que seria o estorvo para a Constituição cidadã. Não duvido desta afirmativa, porque de
fato a sua Excelência o foi. E não sem motivo. Quem ingressou no STF em pleno regime militar não tinha
lá muito costume com uma interpretação democrática sobe o novo texto constitucional. Prova concreta
disso, e apenas dois de tantos outros possíveis exemplos, é que temas como a inconstitucionalidade
da disposição da Lei de Crimes Hediondos e Assemelhados – Lei 8.072/1990 – que impunha regime
integralmente fechado para os condenados nesta lei, e a impossibilidade da prisão civil do depositário
infiel, só foram acolhidos pelo STF depois da aposentadoria do Sr. Moreira Alves, cujos temas estiveram
anteriormente sob discussão naquela corte, conquanto refutados as teses, agora acolhidas, por voto
em ambos os casos do então relator Moreira Alves. SILVA, Denival Francisco da Silva. O direito nada
mais é do que aquilo que dissermos que ele é: salutar debate com o caríssimo Paulo Queiroz. In: http://
sedicoes.wordpress.com/2011/07/22/o-direito-nada-mais-e-do-que-aquilo-que-dizermos-que-ele-
e-salutar-debate-com-o-carissimo-paulo-queiroz/. Pesquisa em 30/08/2011; “Moreira Alves não
nutria muito boa vontade em relação à Constituição de 88 e, de certa forma, liderou o Supremo em
sentido contrário à efetivação de algumas de suas inovações”, afirma o advogado constitucionalista Luís
Roberto Barroso. In: http://www.conjur.com.br/2006-jun-26/moreira_alves_foi_ancora_supremo_
transicao. Pesquisa em 30/08/2011.

121
passando o Judiciário de Poder ‘mudo’ a Terceiro Gigante 13 (expressão
copiada de Cappelletti)14. Conquanto de talvez por ser tão silenciosa
tenha pouco ressonância. Mas, antes que o tivesse, as modificações
introduzidas pela Emenda Constitucional 045/2004, sob os
argumentos de necessidade de dinamizar o judiciário, substituiu o
papel de julgador para gestor de processos, afastando da tarefa de
interprete e concretizador dos direitos fundamentais. O pior é que
boa parcela da magistratura se ilude com suas novas atribuições,
laureada por mimos, como se fosse a revelação de poderes exclusivos
e especiais, como a permissão jurisprudencial - depois se transformou
em legal – para bisbilhotar dados e informações de terceiros, ao
arrepio das disposições constitucionais.

A jurisprudência nacional sempre se desenvolveu


com inegável timidez em torno das questões afetas à
interpretação dos valores constitucionais. Referências à
dignidade da pessoa humana são de rara ocorrência na
jurisprudência brasileira e a tendência ao conservadorismo
dogmático em exegese de pouca ousadia pelos principais
Tribunais do país é a marca indelével do tratamento
relegado à matéria entre nós.15

Se isso já ocorria antes da famigerada reforma, tornou-se muito


pior com ela, porque trouxe consigo formas precisas de engessar
posições jurisprudenciais, engessando cada vez mais a possibilidade
de divergir, ainda que à procura dos reais parâmetros constitucionais.
Porém, mesmo havendo uma grande resistência quanto à teoria dos
valores, existem os abnegados e destemidos petits juges brasileiros
rompendo a couraça deste conservadorismo, em busca de um agir
diferenciado em termos de se promover a justiça.
VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
13

1997. p. 39.
VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
14

1997. p. 47.
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Teoria Constitucional do Direito Penal. São Paulo: Revista dos
15

Tribunais, 2000. p. 150

122
Mas não basta estas atitudes isoladas, quase que heróicas.
Certamente a força que removerá o conservadorismo virá
externamente, porque a sociedade não se conforma mais com o
juiz burocrata, cravado num gabinete sem enxergar o mundo lá
fora. Enganam-se aqueles que acham que se estará atendendo aos
“interesses da justiça” – aforismo criado por este modelo, sem nenhum
sentido objetivo – apenas com cumprimento de metas estatísticas, ou
transformando o juiz num mero gestor de processos. São artimanhas
claras de despolitizar o julgador, no sentido mais puro da tentativa
de neutralizado, afastando-o do essencial, dos clamores e aflições
sociais que se revelam na ante-sala, repleta de jurisdicionados afoitos
para serem ouvidos.
Os velhos discursos jurídicos não convencem mais. Para
Werneck, os fatores políticos e sociais judicializaram-se 16 a partir da
Constituição de 1988, quando o Judiciário capacitou-se a assumiu a
tarefa de garantidor dos direitos fundamentais, por mais que a cúpula
insistir em restringir este papel:

Com o constitucionalismo moderno, o processo de


adjudicação de direitos conheceria um novo ator – o
Judiciário -, em clara contraposição ao contexto original
do welfare, quando a luta por novos direitos foi travada no
campo da política, levando à polarização entre os setores
da sociedade civil que demandavam por direitos sociais e
o Estado, até se resolver com o ato de incorporação destes
setores a uma plena cidadania.17

Será que referida demanda política já foi superada, restando


agora assegurar estes direitos? Certamente que não. Porém, o
seu crescimento vem representar ainda credibilidade na atuação
dos juízes, como integrantes da instituição que pode promover a
VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
16

1997. p. 31.
VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
17

1997. p. 30.

123
efetivação democrática, às vezes, até pela simplificação dos fatos
levados ao seu conhecimento, eliminando a possibilidade do
debate político e a busca da solução do conflito nas agremiações
não institucionalizadas. Na verdade esta suposta crença é também
fruto da descrença de outras vias de solução, ante a intolerância e
incapacidade de permear interesses e buscar soluções.
Estaria então ocorrendo a perda da identidade política do
cidadão? Trata-se de um sintoma não local. Garapon, ao analisar a
realidade francesa faz esta advertência:

Ao submetermos tudo ao juiz, ligamo-nos a novos


sacerdotes que tornam o objetivo da cidadania sem efeito.
Isso desvaloriza o papel do cidadão, confinado a ser um
consumidor, um telespectador ou um litigante. O risco é
de se evoluir para uma organização clerical do poder. E de
confiscar a soberania. 18

Noutra seara, existirá sempre o receio de o juiz não ser comedido,


e na sua auto-avaliação presumir-se o senhor da equalização dos
problemas sociais, extrapolando a função de “magistrado do sujeito”,
julgando-se capaz e com autoridade para imiscuir-se em toda esfera
das atividades públicas e mesmo privadas. Entre este risco do exagero
e a ausência pela apatia, não se pode tolerar o negligência e tão pouco
a imprudência.
A magistratura do sujeito não significa esta entrega desmedida
ao juiz como se fosse o salvador da pátria e aquele que deve carregar
o mundo sobre os ombros. Este também é outro grande equívoco
que entorpece os mais afoitos. Ante as cobranças sociais, sobretudo
se vieram pela imagem televisiva, há, por vezes, uma empolgação
exagerada daqueles que se vêem como os heróis. Não se poderão
admitir omissões, muito menos excessos. A sociedade não merece e
não quer nem um das duas situações.

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: O guardião das promessas.Tradução Maria Luiza


18

Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 62.

124
3 ATIVISMO JUDICIÁRIO: DESNEUTRALIDADE
E DISCRICIONARIEDADE
O regime autoritário manteve o Judiciário numa situação de
estufa19, e o melhor exemplo disso foi o afastamento por aposentadorias
compulsórias de ministros do STF logo o pó-golpe militar de 1964.
O receio das reações do regime e a apatia diante das arbitrariedades
foram justificadas na necessidade de subserviência à lei. As apatias do
Judiciário neste período próximo e funesto, resultaram em diversas
violações aos direitos fundamentais, inclusive positivados no próprio
texto constitucional entregue pela junta militar que assacou o poder.
Deste mal acreditamos estar livres. Mas, além deste aspecto,
não se admite no Judiciário uma atitude neutral diante dos
acontecimentos sociais, econômicos e políticos emanados no dia-a-
dia da vida pública brasileira. A propósito, esta neutralidade nunca
existiu e jamais existirá. A passividade diante da realidade, ou a
afirmação do que aí está, é postura por si assumida de permanência
do status quo e porquanto jamais neutra.
De acordo com pesquisa formulada pela AMB – Associação
dos Magistrados Brasileiros – em parceria com o Iuperj – Instituto
Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro – 20 no ano de 1995, 83%
dos juízes do Brasil responderam que o Judiciário não é neutro, no
sentido de que acompanha os clamores sociais.
Todavia, entre a resposta e a realidade ainda existe um abismo.
Talvez a pesquisa nos dias atuais refletisse também estes números,
porque a cada exigência imposta, com este novo modelo de gestão
judiciário, o juiz é cobrado de uma enormidade de tarefas processuais
e administrativas não precisamente suas, porque não dizem respeito
ao dever de julgar, mais que o distancia da liberdade criativa e de
vivenciar os dramas apresentados em cada processo.
VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
19

1997. p. 15.
VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
20

1997. p. 258.

125
É importante destacar que não se confunde desneutralidade, que
tem cunho político, com a imparcialidade, que se refere ao caso concreto,
e limita-se à relação entre as partes processuais. A desneutralidade
importa afirmar que o juiz deixou de ser um agente passivo, um mero
aplicador insensível da lei, envolvendo-se e comprometendo-se com a
justiça social que prevalecerá sobre a frieza da lei.
O Estado social propiciou um gigantismo do Estado e que
quer agora ser enxugado, ainda que a demanda assumida, frente
aos direitos fundamentais de seus cidadãos não tenha sido ainda
efetivada. Diante desta contradição o Judiciário é decisivo, como
terceiro gigante. Porém, infelizmente, por um lado ainda não se
deu conta de que na versão do Estado Democrático de Direito seu
compromisso se amplia, porque tem a incumbência de fazer valer
os ditames constitucionais. De outro, mesmo naquilo que havia
avançado, enquanto participação decisiva na efetivação dos direitos
fundamentais, tem agora arrefecido diante das evasivas de um sistema
globalizado e que transcende aos interesses locais. Tudo é gerido em
função das repercussões econômicas internacionais, chegado a ser
objeto de seminários e palestras dirigidas por institutos bancados
por corporações financeiras e grandes empresas, em detrimento às
calamidades sociais ainda presentes.
Não existe neutralidade que paire acima dos fatos sociais. O juiz
não se abstrai da vida em coletividade e não é um ser de outro mundo,
convocado a vir dirimir conflitos com limitação à interpretação literal
do texto de lei que lhe é entregue. Existem lacunas e outras fragilidades
nas leis, porque construídas num processo abstrato e dentre de jogos
de interesses, em regra vencidos pelos mais fortes politicamente 21.
A lei nem sempre é adequada ao fato consumado, cabendo ao juiz
sua adequação. Para tanto, deve pautar-se na tábua de princípios
fundamentais, presentes nos tratados e convenções internacionais
[...] não deve o magistrado ficar a esperar, passivamente, a troca da legislação, ou seu aperfeiçoamento,
21

pois, em uma sociedade dividida em classes, não irá o Parlamento mudar de lado, para beneficiar o todo
social. Assim, além da preocupação com os litigantes pobres, pode e deve, o julgador, transformar sua
prática, faze-la ativa, com o propósito de distribuir material e efetiva justiça. ANDRADE, Lédio Rosa
de. Juiz Alternativo e Poder Judiciário. 2ª edição. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 146.

126
e, sobretudo, nos valores que gravitam acima de qualquer ordem
jurídica, como reminiscência de um direito natural, e que deve servir
de referencial para entrega da prestação jurisdicional.
A este propósito, urge esclarecer que os valores humanos
fundamentais, ainda que não estivessem presentes no texto
constitucional, são inalienáveis e indissolúveis na esfera política
internacional. Pertinente à matéria dos direitos fundamentais, o
referencial são os tratados internacionais, mesmo que em aparente
oposição ao texto constitucional.
A propósito, o constituinte preocupou-se com este fato fazendo
inserir no art. 5°, § 2°, da Constituição Federal, a ordenança segundo
a qual os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte.22 Nem mesmo a inserção do § 3º a este artigo, por obra e graça
da Emenda Constitucional 45 de 2004, pode retirar a expressão do
texto original.
Superadas as questões da desneutralidade e do poder criativo
do juiz, o problema da discricionariedade torna-se o grande
dilema a ser resolvido. Cappelletti avisa que discricionariedade
não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, embora
inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador
completamente livre de vínculos 23. Embora havendo limitações,

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 24ª. ed. São Paulo:
22

Saraiva, 2000.
Assim, a novidade do art. 5° (2) da Constituição de 1988 consiste no acréscimo, por proposta que
avancei, ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, dos direitos e garantias expressos em
tratados internacionais sobre a proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte.
Observe-se que os direitos se fazem acompanhar necessariamente das garantias. É alentador que as
conquistas do direito internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se no direito
constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa
humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.
In, TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos:
fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 631. Apud PIOVESAN,
Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. p. 83.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. Trad. Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio
23

Antonio Fabris Editor, 1999. p. 23-24.

127
não há como fixá-las como normas, porque ir-se-ia de encontro a
própria concepção criativa e discricionária do juiz. O limite, porém,
são as bases constitucionais e, certamente, muitas das soluções
estarão aí resolvidas, porque neste aspecto a Constituição atendeu
satisfatoriamente à temática dos direitos e garantias individuais
e dos direitos sociais. Resta ao julgador, como interprete não
neutralizado, transformar este texto de mera retórica em efetiva
prestação jurisdicional em face dos direitos fundamentais.
O juiz envolto com a magnitude de seu poder criativo,
preocupado com a situação do indivíduo enquanto sujeito vitimado
pelo próprio Estado, sempre deverá conduzir-se com parcimônia,
mas ao mesmo tempo com o furor da defesa dos direitos e garantias
individuais, estejam onde estiverem, pois a ordem sobre os valores
humanos é imanente e sequer necessitaria de textos legais para
enunciá-los, senão a coragem e desejo de dizê-lo.

4 A NECESSÁRIA SUPERAÇÃO DO MODELO


POSITIVO-LEGALISTA
O modelo de Montesquieu do juiz como “a boca da lei” 24,
deve ser contextualizado, porque se trata de uma percepção que veio
contrapor o absolutismo do monarca que tudo podia. Porquanto
não se adequa ao modelo de Estado Democrático de Direito, onde,
inclusive, o Judiciário deve assumir a primazia na interpretação dos
valores e princípios fundamentais.
Não obstante a este posicionamento histórico/político/
jurídico, o apego ao legalismo ainda é tomado nas decisões judiciais
como se fosse algo inafastável, fato assinalado Luiz Flávio Gomes
não como particularidade brasileira, mas cultural em relação aos
juízes latino-americanos:

O modelo de atuação judicial mais difundido, a propósito,


particularmente no nosso entorno cultural (América

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: O guardião das promessas.Tradução Maria Luiza


24

Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 40.

128
Latina), é o chamado positivista-legalista, segundo o qual
o juiz na sua função de julgar deve atender exclusivamente
à lei e à sua consciência. [...] O modelo de atuação judicial
ora desenhado, obviamente, está superado... Desde logo, no
entanto, impõe-se salientar que sua preocupação central é
a de impossibilitar ao juiz a reabertura do “debate político”,
isto é, idealizou-se a figura do juiz escravo da lei, servo
do texto legal, mecanicista, que nunca pode questionar a
justiça da lei.25

Muito do legalismo atém-se aos aspectos meramente formais


– não aqueles que efetivam garantias num devido processo –
barrando a possibilidade de análise da questão de direito trazido em
juízo pelas partes. O regramento para a prática dos atos judiciais é
fundamental, porém, um pouco como forma de filtrar a quantidade
de recursos, os tribunais exageram no apego às formalidades, e ao
restringirem-se as questões de ordem processual ou procedimental
evitam o conhecimento do mérito, negando com isso o direito do
jurisdicionado de ter reapreciado sua pretensão, a despeito do
mandamento constitucional de que a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5°. XXXV, CF).26
Na sociedade atual, em crescente desenvolvimento, a legislação
não acompanham a dinâmica dos problemas surgidos. Cappelletti
identifica este fato como externalities27, entendidos como os
efeitos colaterais evidenciados, por exemplo, nas questões do meio
ambiente, da relação de consumo, dos direitos humanos e toda
esfera difusa, comum numa sociedade em desenvolvimento. Diante
das externalities, adverte o autor italiano que é necessário adaptar
GOMES, Luiz Flávio. A Dimensão da Magistratura: no Estado Constitucional e Democrático
25

de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e


responsabilidade do juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 132-134.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 24ª. ed. São Paulo:
26

Saraiva, 2000, 279 p.


CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. Trad. Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio
27

Antonio Fabris Editor, 1999. p. 36. “Externalities é o modo de controlar os efeitos colaterais (side
effects) e não desejados, das nossas decisões em matéria de produção e consumo”.

129
o próprio Judiciário para enfrentamento desta nova demanda. O
desprendimento das fórmulas tradicionais de aforamento das
pretensões judiciais deve ser superado, ampliando-se as modalidades
de ações coletivas, e difundindo o seu uso.
Mas esta é apenas uma das facetas do problema do positivismo-
legalista. Para Luiz Flávio Gomes, o juiz comprometido com o
resultado justo de suas decisões, já dispõe de instrumentos jurídicos
variados para atingir este fim, desde a Constituição aos documentos
internacionais que valoram a “cultura dos direitos fundamentais”.
Assim, por este caminho ele não se transforma em positivista-legalista,
nem tampouco foge do ordenamento jurídico. 28
A formação jurídica acadêmica oferecida é um dos sintomas
desta constatação; tradicionalista e preocupada quase exclusivamente
com o ensinamento do texto da “lei”, desapartada, inclusive, da
Constituição Federal. Por certo, um dos grandes entraves para que
se tenha uma visão mais ampla dos fatos, do que a simples retórica
legalista esteja na formação do juiz brasileiro 29, que não obstante, e
em grande medida, ter origens em grupos sociais modestos, parece
que a ascensão social o faz distanciar da própria realidade de onde
viera. Em pesquisa realizada pelo IDESP – Instituto de Estudos
Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo – e mencionada por
Lédio Rosa de Andrande, embora achem que a sociedade em que
vivem é injusta e que o Judiciário careça de reformas, os novos juízes
– aparentemente ainda sem peias – contraditoriamente as próprias
opiniões, continuam fomentando, em suas decisões, os moldes que
reproduzem as injustiçadas condenadas 30.
GOMES, Luiz Flávio. A Dimensão da Magistratura: no Estado Constitucional e Democrático
28

de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e


responsabilidade do juiz. p. 161.
No Brasil, uma importante reforma a ser efetuada é na formação dos magistrados, pois aquela
29

atualmente oferecida reforça a postura convencional do ensino universitário, que enfatiza o legalismo
na prestação jurisdicional. Talvez seja esse o motivo pelo qual vários juízes não se preocupam com
o destino das pessoas e dos grupos envolvidos no processo, assim como pelas consequências que suas
sentenças terão na vida dos litigantes. PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: Aspectos da
Lógica da Decisão Judicial. 5ª ed. Campinas/SP: Millenniun Editora, 2010. p. 84.
ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz Alternativo e Poder Judiciário. 2ª edição. Florianópolis: Conceito
30

Editorial, 2008. p. 47.

130
Alberto Silva Franco, com a franqueza que o marca pelo
próprio nome, adverte quanto a importância do envolvimento – no
sentido de apreende-la, ou de alteridade – do juiz com a causa, razão
de uma palestra dirigida a novatos:

Então, não como pensar que o juiz possa transformar-se


em escravo ou salvador da lei. Já ouvi tantas vezes – e não
falo de juiz de primeiro grau, mas de juízes de segundo
grau e até mesmo de ministros do Supremo Tribunal
Federal – afirmações como esta: o juiz não é legislador e
portanto a obrigação do juiz é apenas a de cumprir a lei.
Acho, sem qualquer margem de dúvida, que a obrigação do
juiz é cumprir a lei, mas tem esta de estar absolutamente
em conformidade com a Constituição. Cumprir a lei,
sim, mas respeitando os princípios fundamentais e os
direitos humanos. (...) A legitimação do poder do juiz está
inquestionavelmente no seu papel que garante direitos
humanos. Essa é função dos juízes. O mero respeito ao texto
de lei, pouco ou nada significa como expressão do exercício
da atividade judicante. É muito pouco para que o juiz possa
dar-se por contente. (...) Acho que o juiz tem por obrigação
estar absolutamente informado do que se passa porque o
julgamento que faz não é julgamento de um amontoado
de papéis; por detrás desses papéis existe um ser humano
concreto que tem uma pretensão, certa ou errada; que tem
uma expectativa, certa ou errada; que tem um desejo de
obter justiça, certo ou errado. Então, é preciso acabar com
essa idéia de que bom juiz é o juiz quantitativo. O bom juiz
é o juiz qualitativo. O juiz quantitativo para mim não tem o
menor significado – nunca teve e nunca terá.31

Somando-se a isto, os concursos jurídicos – e aqui nos interessa


os certames para provimento do cargo de juiz – seguem a mesma
FRANCO, Alberto Silva. Direito Penal e globalização. In Direitos Humanos: visões contemporâneas.
31

São Paulo: Associação Juízes para a Democracia. p. 178.

131
limitação quanto ao saber jurídico dogmático, também afiliado e
restrito à observância do texto legal. José Eduardo C. Oliveira Faria,
anota que tal fato é típico na nossa cultura jurídica, atrelada a um
sistema de hierarquização e corporativismo da magistratura, ainda
que haja atitudes reativas de alguns juízes em favor deste desapego.
Nestes termos, leciona o autor mencionado:

Apesar do profundo enraizamento do formalismo e do


normativismo na cultura jurídica de uma magistratura
fechada, hierarquizada e corporativa, como a brasileira,
alguns juízes, postulando um entendimento, uma
interpretação e uma aplicação necessariamente
condicionada pelo contexto histórico e afirmando que
todo exercício hermenêutico é um ato inexoravelmente
dependente de certos “pré-julgamentos” por parte dos
intérpretes, já passaram a questionar de modo sutil tanto a
legalidade quanto as próprias decisões judiciais vigentes.32

A fuga ao formalismo-legalista faz-se com o uso do próprio


direito vigente, dando-lhe nova feição a partir de uma interpretação
além dos parâmetros fixados no texto de lei, mas encorajada com as
aflições do cotidiano da sociedade, amoldando-se a exegese jurídica
à vontade do constituinte que, em suma, é a maior expressão dos
interesses de uma nação e seu povo.
Em pesquisa empírica realizada no ano de 2002, com
entrevistas dirigidas aos juízes criminais de Brasília e Goiânia,
quando questionados sobre a identidade da magistratura brasileira,
62% 33 dos juízes entrevistados no Distrito Federal afirmaram

FARIA, José Eduardo C. Oliveira. O juiz na sociedade complexa: O poder judiciário e os novos
32

movimentos sociais. p. 73/95. In NALINI, José Renato (Coord.). Curso de Deontologia da


Magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 77.
SILVA, Denival Francisco da Silva. Obsessão pelo cárcere: a renitência dos juízes às penas não
33

privativas de liberdade. Dissertação conclusão do curso e obtenção do grau de mestre em direito


pela UFPE. Brasília, 2002. APÊNDICE B – Resultado da pesquisa com os juízes criminais do Distrito
Federal. Gráfico 6.

132
que atualmente são menos formais e mais envolvidos com os
problemas sociais, enquanto 56% 34 dos juízes goianienses deram
a mesma resposta. De modo algum estes números coincidem
com a prática, tanto que se a mesma abordagem fosse feita com
os jurisdicionados, os resultados seriam diametralmente opostos,
frente as insatisfações verificadas noutras pesquisas, como
coordenado por Luiz Werneck Viana35.
Seria necessária uma nova pesquisa para atualização destes
dados que, muito certamente, não se alterou nestes quase 10 anos,
quando não pioraram, diante do teor das decisões e fundamentos
que se desenham nos julgados.

5 INDEPENDÊNCIA: GARANTIA DO JUIZ E


DO JURISDICIONADO
A discussão sobre a independência do juiz ganhou relevo
quando da discussão da reforma do Poder Judiciário pela Emenda
Constitucional 045/2004. Todavia, os interesses coorporativos e ao
mesmo tempo as disputas internas, entre os diversos órgãos do poder,
e dentre dele, as diversas instâncias judiciais, apenas reforçaram o
que já havia de concreto e ao final não trouxe ganhos efetivos ao
jurisdicionado. O alvoroço que se fez em torno das modificações
pretendidas no Judiciário ressaltou a defesa ao corporativismo da
magistratura, ao tempo que não houve efetiva preocupação com o
ato de decidir, tanto que diversos institutos jurídicos foram inseridos,
em nome da celeridade processual (e este é um deles) e da segurança
jurídica, praticamente engessaram a independência de julgar. É o que
ocorre, por exemplo, com o instituto da Súmula Vinculante.
Ser ser vidente, apenas com suas análises acadêmicas, Andrei
Koerner alertava sobre esta ocorrência, antes mesmo da reforma ser
SILVA, Denival Francisco da Silva. Obsessão pelo cárcere: a renitência dos juízes às penas não
34

privativas de liberdade. Dissertação de conclusão do curso e obtenção do grau de mestre em direito


UFPE. Brasília, 2002. APÊNDICE C – Resultado da pesquisa com os juízes criminais de Goiânia.
Gráfico 27.
35
VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro:
Revan, 1997.

133
concretizada, afirmando que o novo texto aumentaria o poder das
cúpulas sobre os magistrados. 36
Na verdade as propostas reformistas, seguindo um modelo
imposto por organismos internacionais como o BID aos judiciários
latino-americanos, buscaram a melhoria exclusiva no aspecto da
produtividade, como se os problemas fossem apenas de ordem
administrativas e de estatísticas. O jurista Raul Zaffaroni, hoje
integrante da Suprema Corte Argentina, fazia esta advertência
no sentido de que as reformas oferecidas visavam somente à
racionalização dos judiciários, impondo-lhes modelos empresariais
na análise da atividade jurisdicional, em homenagem a uma
‘modernidade’ insólita, que tende a ‘desjuridicizar’ os juízes, para
transformá-los em técnicos empresariais.37
O tempo demonstrou o acerto destas observações. Quer-se do
juiz agora um exemplo de gestor (embora não tenha preparo também
para isso), um burocrata que tem que preencher infinitos dados
estatísticos, fazer registros de suas decisões, acompanhar relatórios
variados, promover buscas por caminhos sigilosos, a despeito
deles (como a penhora pela via eletrônica, busca de informações
de endereços e bens das partes), e atender de pronto todos os
requerimentos formulados nos autos. Proferir uma decisão, com a
possibilidade de analisar detidamente e se fazer presente no processo,
é detalhe que não comporta à dinâmica que se impõe. Afinal, se
ainda assim não conseguir atender a demanda – como de fato não se
tem conseguido, porque a estrutura não acompanha o crescimento
da procura judiciária – convocam-se mutirões, de preferência com a
imprensa presente, para vender ilusões aos jurisdicionados e execrá-
los publicamente, enquanto as autoridades judiciárias se expõem em
frente às câmeras para afagarem suas vaidades.

KOERNER, Andrei. A independência do Judiciário como garantia institucional dos Direitos


36

Humanos. In Direitos Humanos: visões contemporâneas. São Paulo: Associação Juízes para a
Democracia. In Direitos Humanos: visões contemporâneas: Publicação Especial em Comemoração
aos 10 anos de Fundação da Associação Juízes para a Democracia. São Paulo: Método, 2001. p.
193/194.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Tradução Juarez
37

Tavarez. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.p. 30.

134
Não existe proposta alguma de real independência. Ao
contrário, os caminhos têm convergido para um único rumo,
como se o consenso representasse um fortalecimento do judiciário,
quando, a rigor, denota o estreitamento das discussões jurídicas, o
congelamento do debate democrático, e o fechamento dos canais de
efusão dos direitos fundamentais. A liberdade de pensar e divergir
é compreendida como rebeldia, podendo representar afronta as
instâncias superiores.
A independência, atributo primordial à tarefa de julgar, deve ser
entendida como o anseio da sociedade em ter a via judicial como porto
seguro de solução dos conflitos, sem risco de qualquer suspeição. É a
certeza de que, dentro de uma ordem democrática de direito, o texto
constitucional é o fundamento básico das decisões, e que, elevado ao
nível da Constituição valores e princípios fundamentais da pessoa
humana e de caráter sócio-econômico o constituinte não o fez com a
ironia e o sarcasmo dos demagogos.
A independência do magistrado se faz, antes de tudo, com a
autonomia de suas convicções, atento aos parâmetros constitucionais
sobre a lei infraconstitucional. Não pode recear diante da força do
poder econômico ou político vigorante. Não pode temer a falta de
democracia no próprio poder, inclusive para repudiá-la, sem vergar-
se diante da verticalização hieraquizada da própria estrutura de
poder da qual pertence. Não pode se acomodar diante das omissões
parlamentares ou governamentais, ou simplesmente conformar com
o que se apresenta como solução, se conflitantes com toda ordem de
princípios e valores. Não se aquietar numa falsa neutralidade, distante
das grandes questões políticas e nos seus reflexões no processo,
porque o juiz não pode ser asséptico, como salienta Zaffaroni:

[...] é insustentável pretender que um juiz não seja cidadão,


que não participe de certa ordem de idéias, que não tenha
uma compreensão do mundo, uma visão da realidade. Não
é possível imaginar um juiz que não tenha, simplesmente
porque não há homem que não a tenha, por pífia ou errada
que possa ser julgada. O ‘juiz eunuco político’ de Griffith é

135
realmente uma ficção absurda, uma imagem inconcebível,
uma impossibilidade antropológica.38

Não há sinonímia entre independência e imparcialidade.


Quanto mais independente for o magistrado, desligado de quaisquer
amarras, a não ser os limites da soberania constitucional, maior será
sua imparcialidade, porque estará julgando de acordo com os anseios
de uma sociedade democrática. Assim, o juiz está sempre envolvido
politicamente. Resta saber onde se filia, se numa posição crítica ou
prefere a posição acrítica, como adverte Luiz Flávio Gomes:

Quem se diz politicamente neutro (nível do aparente do


aparente) está, no mínimo (nível do oculto aparente),
engajado com esse modelo de política. Dito de outra maneira:
não existe juiz politicamente neutro. Sua função é política
por natureza. A jurisdição é expressão de decisões políticas.
A questão, no fundo, será: jurisdição consoante o status quo
(legalista) ou jurisdição crítica (constitucionalizada).39

Os ranços conservadores e antidemocráticos no Judiciário são


reafirmados a todo dia, desde a ausência de um debate amplo no
qual pudesse o juiz de primeira instância participar de fato, durante
a discussão da Emenda Constitucional 045/2004. E isso perdura.
Exige-se um alinhamento incondicional, quase numa obediência
hierárquica militarizada. Os independentes destas amarras sofrem as
consequências e são por isso sacrificados nos julgamentos, sobretudo
nos pedidos promocionais, onde a análise é puramente subjetiva e
sem nenhuma motivação, ainda que o art. 93, IX da Constituição
Federal o exija. Mas tudo fica da forma que se quer, o apadrinhamento
ainda é medida certa para valoração.
Este fato é real a ponto de, dentre os critérios delineados
para aferição de mérito nas promoções por merecimento, estar a
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Tradução Juarez
38

Tavarez. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 92.


GOMES, Luiz Flávio. A Dimensão da Magistratura: no Estado Constitucional e Democrático
39

de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e


responsabilidade do juiz. p. 134.

136
abordagem quanto ao menor índice de reforma de decisões. Ora, o
que é isso, senão exigência de acompanhamento cego do que já se
decidiu nas instâncias superiores. Não há espaço para divergência.
Pode-se até divergir, desde que se assuma as consequências de sua
independência. Com o olhar externo, o professor de filosofia da USP,
José Eduardo, constatou esta pressão:

[...] sob a “fachada” de uma interpretação técnica, ele (o


juiz) estaria dispondo ‘livremente’ sobre o conteúdo,
sentido e alcance do direito – possibilidade essa que tem
sido abertamente negada pelos tribunais brasileiros de
segunda instância aos juízes de primeira instância dos
tribunais ordinários.40

Falando num seminário promovido pela Escola Paulista de


Magistratura, o então presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo,
com uma arrogância asquerosa, deu a seguinte “lição” aos juízes –
principalmente aos novos – em tom, obviamente, de alerta e advertência:

Os repertórios de jurisprudência, notadamente dos tribunais


paulistas, são exemplos da modelar composição formal das
sentenças e acórdãos. [...] O acerto das decisões vai formando
o merecimento do juiz, que granjeia créditos em sua ascensão
na carreira. O desacerto leva à reforma, que em si não
caracteriza demérito, salvo a ocorrência de erro grosseiro. 41

Não se critica o poder reformador dos tribunais. Afinal constitui


direito e garantia fundamental o acesso ao Judiciário, a qualquer
de seus níveis. O que não se pode é tolerar o caráter policialesco
e repressor nas próprias reformas de decisões de juiz de primeiro

FARIA, José Eduardo C. Oliveira. O juiz na sociedade complexa: O poder judiciário e os novos
40

movimentos sociais. In NALINI, José Renato (Coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. p. 82.
ALIENDE, Aniceto Lopes. O paradigma de juiz: O juiz conforme a expectativa do Tribunal de
41

Justiça. In NALINI, José Renato (Coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. p. 41-42.

137
grau, ou mesmo fora delas, onde o recado é dado coletivamente
por intermédio das recomendações via ofícios circulares, discursos
ameaçadores, advertências cirúrgicas nas reformas e nas cassações
de decisões.
A independência é garantia não só do juiz, mas principalmente
do jurisdicionado, até para que a magistratura possa ser ouvida
também pela ousadia e idealismo de juízes de primeira instância,
em contraposição com o conservadorismo dos tribunais. Todavia, a
subserviência dos juízes aos tribunais é tamanha, que pouco ou nada
se fala no meio forense sobre as pressões sofridas. A aferição destas
ingerências e censuras em relação a independência parte de terceiros
externos, ou de juristas estrangeiros a quem este fato é colocado às
claras, inclusive revelando que não se trata de uma miséria brasileira,
como pronuncia Zaffaroni:

A pressão sofrida pelos juízes em face de lesão à sua


independência externa, em um país democrático, é
relativamente neutralizável, por via da liberdade de
informação, de expressão e de crítica, mas a lesão de
sua independência interna é muito contínua, sutil,
humanamente deteriorante e eticamente degradante.42

Finalmente, é essencial que a discussão sobre a independência


da magistratura busque a possibilidade de agir em função de uma
sociedade democrática, onde os valores constitucionais sejam as
molas propulsoras no desenvolvimento da nação. E quando se fizer
necessária à intervenção do Judiciário, que não se acovarde sob
falsos dogmas, com apatia que somente interessa aos poderosos,
em detrimento da esmagadora maioria da sociedade – no entanto
minoria enquanto participação política – sufocada nos desmandos
de políticas alijadas de seus verdadeiros anseios.
O juiz como o agente do Estado incumbido de dizer o direito
precisa ser independente de quaisquer amarras, a fim de realizar
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Tradução Juarez
42

Tavarez. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.p. 89.

138
interpretação viva e atual para combinar os valores constitucionais,
não desprezando o fundamento da dignidade humana, para que
não venha ser fonte de injustiças sob o pálio do argumento de que a
legalidade (leis infraconstitucionais) deva imperar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ALIENDE, Aniceto Lopes. O paradigma de juiz: O juiz conforme a
expectativa do Tribunal de Justiça. In NALINI, José Renato (Coord.). Curso
de Deontologia da Magistratura. p. 41-42.
2. ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz Alternativo e Poder Judiciário. 2ª edição.
Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.
3. BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 6a. ed. São Paulo:
Malheiros, 1996.
4. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
5. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. Trad. Carlos Álvaro de
Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.
6. FARIA, José Eduardo C. Oliveira. O juiz na sociedade complexa: O poder
judiciário e os novos movimentos sociais. p. 73/95. In NALINI, José Renato
(Coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992.
7. FRANCO, Alberto Silva. Direito Penal e globalização. In Direitos
Humanos: visões contemporâneas. São Paulo: Associação Juízes para a
Democracia.
8. GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas.
2ª edição. Tradução Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro, 2001.
9. GOMES, Luiz Flávio. A Dimensão da Magistratura: no Estado
Constitucional e Democrático de Direito: independência judicial, controle
judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
10. KOERNER, Andrei. A independência do Judiciário como garantia
institucional dos Direitos Humanos. In Direitos Humanos: visões
contemporâneas. São Paulo: Associação Juízes para a Democracia. In Direitos

139
Humanos: visões contemporâneas: Publicação Especial em Comemoração
aos 10 anos de Fundação da Associação Juízes para a Democracia. São
Paulo: Método, 2001. p. 193/194.
11. LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Teoria Constitucional do Direito
Penal. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2000.
12. PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: Aspectos da Lógica
da Decisão Judicial. 5ª ed. Campinas/SP: Millenniun Editora, 2010. p. 84.
13. SILVA, Denival Francisco da Silva. Obsessão pelo cárcere: a renitência
dos juízes às penas não privativas de liberdade. Dissertação conclusão do
curso e obtenção do grau de mestre em direito pela UFPE. Brasília, 2002.
APÊNDICE B – Resultado da pesquisa com os juízes criminais do Distrito
Federal. Gráfico 6.
14. ______. Obsessão pelo cárcere: a renitência dos juízes às penas não
privativas de liberdade. Dissertação de conclusão do curso e obtenção do
grau de mestre em direito UFPE. Brasília, 2002. APÊNDICE C – Resultado
da pesquisa com os juízes criminais de Goiânia. Gráfico 27.
15. _______. O direito nada mais é do que aquilo que dissermos que ele
é: salutar debate com o caríssimo Paulo Queiroz. In: http://sedicoes.
wordpress.com/2011/07/22/o-direito-nada-mais-e-do-que-aquilo-que-
dizermos-que-ele-e-salutar-debate-com-o-carissimo-paulo-queiroz/.
Pesquisa dia 30/08/2011.
16. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional
dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São
Paulo: Saraiva, 1991. p. 631. Apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e
o Direito Constitucional Internacional. p. 83.
17. VIANNA, Luiz Werneck (Org.) et al. Corpo e Alma da Magistratura
Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997.
18. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Poder Judiciário: Crise, Acertos e
Desacertos. Tradução Juarez Tavarez. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

140
CRIME, REPARAÇÃO DO DANO, FALÁCIAS E
PRINCÍPIO DA IGUALDADE – THEMIS PODE USAR
UMA VENDA, MAS O JUIZ NÃO
Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior*

RESUMO:
A legislação penal dá tratamento diverso entre o agente que
comete furto ou apropriação indébita, e o que pratica apropriação
indébita previdenciária. Trata-se de uma distinção arbitrária,
discriminatória? Buscamos a resposta. Nesse caminho, denunciamos
a postura acrítica e cega do chamado “senso comum teórico dos
juristas” que, cada vez mais, sacraliza os precedentes judiciais dos
tribunais superiores, enxergando-os como tetos epistemológicos.
Visando comprovar o risco para o sistema jurídico ao se julgar
por precedentes, visitamos a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, em especial o habeas corpus nº 87.324/SP e os precedentes
nele citados, apontando falácias e incoerências inconciliáveis.
Rompido o dogma, concluímos ser a postura crítica a única
constitucionalmente adequada, e que o respeito ao princípio
constitucional da igualdade se dá pela equiparação dos crimes, para
efeito de extinção da punibilidade pela reparação do dano.

*
Especialista em Processo Penal e MBA em Poder Judiciário. Juiz de Direito no Rio Grande do Norte.
Professor da ESMARN. Membro da Associação Juízes para a Democracia

141
1 INTRODUÇÃO
Imaginemos algumas situações:
1ª. Um homem furta ou se apropria indevidamente de um
televisor, mas repara o dano, restituindo a coisa subtraída ou
apropriada, antes do recebimento da denúncia. Resultado: ele será
condenado por furto, com uma redução de pena de 1/3 a 2/3 (art.
16 do Código Penal). Se a reparação for após o recebimento da
denúncia, será condenado por furto ou apropriação indébita, mas
vai ter sua pena atenuada em razão da reparação do dano posterior
(art. 65, III, b, do Código Penal).
2ª. Um empresário se apropria indevidamente dos valores
recolhidos dos seus empregados e que deveriam ser repassados à
Previdência Social, mas paga todo o débito antes da ação fiscal e do
recebimento da denúncia. Resultado: é extinta a punibilidade (arts.
168-A, § 2º, do Código Penal). Se, após o recebimento da denúncia,
pagar todo o débito, com direito ao parcelamento durante até 15
anos, extingue-se a punibilidade (arts. 68 e 69 da lei 11.941/2009).
A razão de termos escrito esse texto se deveu a um dilema
ocorrido em um caso concreto. Era um crime de furto em que
a coisa foi devolvida. Antes do início da audiência, a vítima, um
primo do acusado, pediu para por fim ao processo, pois este tinha
reparado o dano. Nós o informamos de que, para o caso, nossa
legislação penal não permitia isso. Ele estranhou, obviamente. E
perguntou se sempre era assim. Ficou atônito quando dissemos que
não. Quando explicamos que se seu primo (que era revel, diga-se de
passagem, pois se entregou de vez ao crack) fosse um empresário que
sonegou impostos ou que se apropriou dos valores das contribuições
previdenciárias dos seus empregados, a reparação do dano teria
causado a extinção da punibilidade.
O senso comum da prática jurídica está cada dia mais
dependente dos precedentes judiciais. Inexoravelmente, ao se
deparar com um caso difícil como o narrado acima, ele tenderia

142
a decidir de acordo com (e fazendo remissão a) algum julgado do
Supremo Tribunal Federal – STF e, na falta desse, a um do Superior
Tribunal de Justiça – STJ. Assim, concluímos ser uma questão prévia
analisar a jurisprudência do STF sobre o assunto, para perquirir
sobre a robustez de seus argumentos. Antes, tivemos que formar um
background sedimentado nas noções de senso comum teórico dos
juristas e de falácias no discurso jurídico. Terminamos trazendo um
alerta sobre os riscos de se julgar com base em citações de ementas de
precedentes judiciários. Feito isso, enfrentamos as seguintes questões:
justifica-se a diferença de tratamento nas hipóteses da suspensão
e da extinção da punibilidade decorrentes da reparação do dano1
ou do parcelamento do valor do dano, entre os crimes de furto e
apropriação indébita, e de apropriação indébita previdenciária? Qual
a viabilidade de aplicação do princípio constitucional da isonomia?
E se viável, qual a solução normativamente mais adequada para
efetivação dessa garantia constitucional?

2 A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO –
O SENSO COMUM DOS JURISTAS
Como bem alertou Rosmar Rodrigues Alencar,2 a aplicação
do direito no Brasil “evoluiu” assim: 1º - aplicação pura da lei; 2º
- descobriu-se a Constituição como fundamento de validade da lei;
3º - aplicação hierarquizada de precedentes de tribunais superiores,
com prestígio do efeito vinculante, ainda que não o tenham.
As súmulas (vinculantes ou não), as repercussões gerais e os
precedentes judiciais se tornaram verdadeiros fetiches na práxis
judiciária, sem os quais o senso comum teórico não consegue obter
uma resposta para as questões que surgem, em razão da abordagem
dogmática, repetitiva, maquinal e acrítica. E o mais grave: quem
Utilizaremos a expressão “reparação do dano” como gênero da compensação (uma coisa por outra
1

de igual valor), reparação (conserto do objeto danificado), ressarcimento (conversão do dano em


dinheiro) e restituição (devolução da mesma ou de igual coisa).
ALENCAR, Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de. Efeito vinculante e concretização do direito.
2

Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2009, p. 52.

143
conhece um pouco a realidade dos tribunais superiores sabe bem
que lá se julga por remissão. A demanda é tão alta que não há tempo
para se dedicar aos casos com a atenção que eles merecem. Termina
havendo  o que chamamos de “efeito fórmula pronta”: busca-se
apressadamente uns precedentes e, pronto, caso resolvido. Resolvido?
Queremos mostrar que há outro caminho.
E esse caminho passa pela abordagem do chamado “senso
comum teórico”, que é o discurso que domina o imaginário dos
juristas, de cunho acrítico e sem conteúdo investigativo. É esclarecedor
o apontamento feito por ARTUR STAMFORD quando diz que

[...] o exercício da atividade profissional produz


conhecimentos tão ideológicos quanto os do senso comum
leigo, pois a prática forense produz uma terminologia e
uma forma de atuar própria do cotidiano profissional. Esse
conhecimento não é um saber científico, principalmente
por se preocupar em justificar e não em explicar a
realidade de sua atividade profissional (Souto, 1987: 42).
A este senso comum, Warat chama ‘senso comum teórico
dos juristas’, distinguindo-o do saber científico, é que ‘o
saber jurídico que emana da necessidade de justificar a
ordem jurídica, e não de explicá-la’ (Warat, 1993: 103).
O termo teoria empregado nesta expressão provoca uma
confusão (...) A origem desta confusão está em tratar por
teórico o conhecimento de senso comum de um cotidiano
profissional. Para evitá-la, basta considerar que teoria é
resultado de especulações científicas, não se referindo às
informações provenientes de um cotidiano profissional,
por isso a expressão ‘senso comum forense’.3

Portanto, trata-se de uma visão cega e amorfa do Direito,


apegando-se à lei em si mesma considerada e, agora, e principalmente,
aos precedentes judiciais, como se eles fossem a tábua de salvação da

STAMFORD, Artur. E por falar em teoria jurídica, onde anda a cientificidade do direito? In Revista da
3

Faculdade de Direito de Caruaru. Vol. 33. no. 24.Caruaru: ASCES, 2002, p. 68.

144
concretização do Direito. Essa postura enxerga os tribunais superiores
como um oráculo que terá já respondido, em algum momento (isto
é, sem consciência histórica), à indagação interpretativa contida em
um caso concreto. Uma espécie de Nostradamus judicial.
O “senso comum teórico”, que para nós melhor soaria como
sendo senso comum da práxis jurídica4, peca por partir de uma
premissa atemporal, nas reiteradas fundamentações com base em
precedentes impertinentes e/ou anteriores às normas objeto de
análise nos julgados. Gadamer teceu severas críticas a esse modus
operandi quando discorreu sobre a importância da consciência
histórica nas ciências humanas.5
É preciso compreender, portanto, que os precedentes judiciais
são elaborados em um determinado momento histórico. Durante o
processo de concretização do direito, deve o destinatário da norma
por excelência – que é o julgador –, entender essa inevitável relação.
Diante das dificuldades que o senso comum dos atores jurídicos
tem em fazer lume à hermenêutica constitucional na hora de
aplicar o direito, “quedar-se”6 diante do entendimento dos tribunais
superiores é a dose de anestesia ideológica àqueles que imaginam que
como isso estão cumprindo o dever constitucional de fundamentar
seu convencimento.
Embora tenha assumido para o “senso comum teórico”
proporções quase proféticas, capaz de trazer de julgamentos passados
a decisão sobre casos futuros, o chamado direito sumular para nós
não possui esse status, pois é mero fruto da prática jurídica.


4 Ob. cit.
, p. 66.
5
A consciência moderna assume – precisamente como “consciência histórica” – uma posição
reflexiva com relação a tudo que lhe é transmitido pela tradição. A consciência histórica já
não escuta beatificamente a voz que lhe chega do passado, mas, ao refletir sobre a mesma,
recoloca-a no contexto em que ela se originou, a fim de ver o significado e o valor relativo que
lhe são próprios. Esse comportamento reflexivo diante da tradição chama-se interpretação. (...)
devemos questionar o sentido de se buscar, por analogia ao método das ciências matemáticas da
natureza, um método autônomo próprio às ciências humanas que permaneça o mesmo em todos
os domínios de sua aplicação.” (GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica.
Organização Pierre Fruchon. Tradução Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998, p. 18).
É eufemismo. Ajoelhar-se seria a que melhor retrataria, figurativamente.
6

145
Os precedentes formam a pia moral onde o ator jurídico,
envolto no senso comum da práxis jurídica, “lava as mãos”,
amparando-se à jurisprudência de tribunais superiores, transferindo
suas responsabilidades funcionais. Depois vai dormir o sono
dos inocentes, pois o “Supremo” ou o “Superior” (com a devida
conotação hierarquizada com que as súmulas vêm sendo utilizadas),
já pensaram por ele. E essa postura é mais comum do que se possa
imaginar à primeira vista.
Alia-se a isso a crescente contaminação do Judiciário pelo
discurso econômico neoliberal. Não para menos, tanto se fala hoje
em eficiência, como se fosse ela a pedra de torque da atuação do
Judiciário. Números impressionam os incautos. Loas aos “eficientes”,
ainda que para isso tenham que se despir da toga para se tornarem,
finalmente, “administradores”, gerentes de um entreposto judiciário.
Esses “operários do direito”, no seu sentido maquinal e autômato,
agem a serviço da matriz, que lhes manda, por meio de enunciados,
as diretrizes e os limites epistemológicos. Adequação da decisão à
Constituição? Isso não lhes pertence mais!
Bem lembrado o alerta feito por Alexandre Morais da Rosa,
ao metaforizar o Poder Judiciário como uma grande orquestra,
comandada

[...] por um maestro (STF), com músicos espalhados


nos diversos ‘instrumentos’. Estes músicos, ainda que
arregimentados, eventualmente, por sua capacidade
técnica e de reflexão, ficam obrigados a tocar conforme
indicado pelo maestro, sob pena de exclusão da ‘Orquestra
Única’. Não há outra para concorrer; ela é a portadora da
palavra. Diz a Verdade. Ainda que alguns dos músicos
pretendam uma nota acima ou abaixo da imposta, não lhe
dão ouvidos, porque o diálogo é prejudicado. O slogan é:
“toque como queremos ou se retire” .7

ROSA, Alexandre Morais da. O Judiciário e a lâmpada mágica: o gênio coloca limite, e o juiz? In
7

Revista Direito e Psicánalise. Vol. 1., n. 1. Curitiba: UFPR, 2008, p. 14.

146
E se torna mais sintomático quando o Conselho Nacional de
Justiça publica uma resolução estabelecendo como critério para
promoção, “o respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal
e dos Tribunais Superiores.”8 9 Não fosse isso, surgem críticas ao
“independentismo” da magistratura de primeiro grau, como se ter
uma postura independente fosse algo reprovável.10 Mas o juiz não é
independente, é verdade. Ele tem um senhor: a Constituição.
Fechando esse parêntesis, LUIS ALBERTO WARAT:

Para que nos serve um saber que não tenha competência


para denunciar e colocar em crise os momentos em
que o respeito à lei funciona como simulação de uma
sociedade democrática? O autoritarismo mais eficiente é
o que consegue diluir-se, confundir-se no interior de uma
proposta discursivamente democrática. 11

Mas o senso comum teórico da práxis jurídica, alienado que


é, desconhece isso. E atua como se a força de um argumento não
estivesse no encadeamento lógico capaz de convencer, mas sim na
origem de quem o propala, capaz de vencer. Alarmante quando
constatamos, até mesmo numa leitura despretensiosa dos votos, a
existência de tantas falácias, como será visto mais a frente.

Recebemos com surpresa e preocupação a Resolução 106 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ,
8

que trata do estabelecimento de critérios para a promoção, remoção e acesso de magistrados por
merecimento, uma vez que assim prescreveu: “ Art. 5º Na avaliação da qualidade das decisões
proferidas serão levados em consideração: (...) e) o respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal
e dos Tribunais Superiores.” SANTOS JUNIOR, Rosivaldo Toscano dos. Independência ou Morte.
Disponível em <http://rosivaldotoscano.blogspot.com/2010/04/independencia-ou-morte.html>.
Acesso em 21.02.2011.
A mesma advertência faz Isidoro Álvares Sacristán: “Las tendencias actuales de situar a los jueces bajo
9

la funcionalización choca con el concepto clásico de independencia y nos llevaría a la jerarquización


que alentaría una disciplina intelectual cerca del totalitarismo jurisdicional.” (SACRISTÁN, Isidoro
Álvares. La justicia y su eficácia: de la constitución al processo. Madri, COLEX, 1999, p. 79).
10
FOLHA DE SÃO PAULO. Mendes critica partidarização do servidor público. Disponível em <http://
www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u473694.shtml>. Acesso em 20.02.2011.
11
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito, II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 260.

147
Por conseguinte, não devemos nos deixar iludir com os
discursos assépticos, que apregoam a verdade do argumento da
autoridade, oriundos dos precedentes, notadamente dos enunciados
sumulados por tribunais superiores, que querem fazer crer, nas
entrelinhas, que existe uma hierarquia não só processual, mas
material também. Direito não é religião. Não existem dogmas. O
ator jurídico deve ser cético, não se contentar com a simples leitura
e transcrição de uma ementa, pois ela comumente não é suficiente
para explicar as peculiaridades do caso concreto que fundou o tal
precedente. Um julgado não se conhece pela ementa, assim como
não se lê um livro pela orelha.

3 A REPARAÇÃO DO DANO NA PARTE GERAL


DO CÓDIGO PENAL
No nosso CP, em dois momentos a reparação do dano
produz efeitos: a) antes do recebimento da denúncia; e b) depois do
recebimento da denúncia.
No primeiro caso, incide a regra do art. 16 do CP, que dispõe
que nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa,
reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia
ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de
um a dois terços.
Depois de recebida a denúncia, o benefício que pode ser dar ao
acusado pela reparação do dano é, tão somente, a atenuação prevista
no art. 65, III, b, do CP.
Sendo assim, há, nas duas situações, tão somente, a mitigação
da pretensão punitiva. Jamais sua fulminação.

4 A REPARAÇÃO DO DANO NA APROPRIAÇÃO


INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA
Na nossa legislação penal, quem inaugurou a distinção de
tratamento na reparação do dano foi a Lei n.º 8.137/90 (crimes

148
contra a ordem tributária), que previu, em seu art. 14, a extinção
da punibilidade quando houvesse a reparação do dano antes do
recebimento da denúncia.
A Lei nº 8.383/1991 revogou o art. 14 da Lei nº 8.137/90.
Porém, quatro anos depois, a Lei nº 9.249/95 não só restabeleceu o
mesmo benefício como também incluiu nele os crimes definidos na
Lei nº 4.729/65 (crimes de sonegação fiscal).
A Lei 9.964/2000 foi além, criando hipóteses de extinção e de
suspensão da punibilidade, mesmo depois de recebida a denúncia,
nos casos de crimes dos arts. 1º e 2º da lei dos crimes contra a
ordem tributária (lei 8.137/90), desde que antes do recebimento
da denúncia tivesse havido o parcelamento do débito. A suspensão
da pretensão punitiva se daria pelo período de parcelamento e a
extinção da punibilidade quando a pessoa jurídica relacionada com o
agente efetuasse o pagamento integral dos débitos parcelados.12 Mas
a distinção de tratamento não pararia por aí.
O crime de apropriação indébita previdenciária surgiu na
Lei nº 9.983/2000, que inseriu no Código Penal o art. 168-A. Seu
§ 2º diz que, em havendo o pagamento do debito previdenciário
antes do recebimento da denúncia, há a extinção da punibilidade.
No § 3º do mesmo artigo, previu-se outro abrandamento, dessa vez
facultando ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de
multa se o agente fosse primário e de bons antecedentes, desde que
tivesse promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida
a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária,
inclusive acessórios; ou o valor das contribuições devidas.
Contudo, a discrepância mais relevante se deu a partir do ano
de 2003, com o advento da lei nº 10.684/200313 e, posteriormente,
com as Leis nº 9.430/96 (alterada pela Lei nº 12.382/2011)14 e nº

Art. 15 da lei nº 9.964/2000.


12

Vide art. 9º da referida lei.


13

O art. 6º da lei 12.382/2011 altera a redação do art. 83 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996,
14

mas mantém a possibilidade de parcelamento e a extinção da punibilidade com o adimplemento


integral da dívida.

149
11.941/200915, pois em todas se previu a suspensão da pretensão
punitiva do Estado, em relação aos crimes contra a ordem tributária
(arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90), de apropriação indébita previdenciária
(art. 168-A do CP) e de sonegação de contribuição previdenciária
(art. 337-A do CP), quanto aos débitos parcelados. Previram, ainda,
a extinção da punibilidade, mesmo após a denúncia, quando for
efetuado o pagamento integral dos referidos débitos parcelados.

5 A DISPARIDADE DE TRATAMENTO
Diante do que foi visto, verifica-se uma disparidade no
tratamento dos infratores das três situações (furto, apropriação
indébita e apropriação indébita previdenciária), apesar de se tratarem
de normas que, ontologicamente, não guardam uma disparidade tal
que impeça uma paridade de tratamento, sendo mais gritante ainda
no caso das apropriações indébitas simples e previdenciária. Pelo
contrário, verifica-se que os três tipos, na verdade, tem muito em
comum. E tendo em vista demonstrar a similitude, apresentamos os
dados abaixo:
TIPO – os três são crimes contra o patrimônio. OBJETO
JURÍDICO - furto: os três são o patrimônio. SUJEITO ATIVO –
furto e apropriação indébita: qualquer pessoa; apropriação indébita
previdenciária: o responsável tributário. SUJEITO PASSIVO – furto
e apropriação indébita: qualquer pessoa; apropriação indébita
previdenciária: a Previdência Social e o contribuinte que tem
sua contribuição recolhida e não repassada à Previdência Social.
OBJETO MATERIAL – furto e apropriação indébita: coisa móvel;
apropriação indébita previdenciária: a contribuição recolhida. TIPO
OBJETIVO - furto: subtrair; apropriação indébita e apropriação
indébita previdenciária: apropriar-se. TIPO SUBJETIVO - furto:
dolo de subtrair; apropriação indébita e apropriação indébita
previdenciária: dolo de apropriar-se. QUANTO AO RESULTADO
NATURALÍSTICO – os três são crimes materiais. QUANTO À
Arts. 68 e 69 da lei 11.941/2009.
15

150
CONDUTA - furto: comissivo; apropriação indébita e apropriação
indébita previdenciária: omissivos. QUANTO AO MODO DE AGIR:
os três são crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa.
QUANTO À CONSUMAÇÃO – os três são crimes instantâneos.
MOMENTO DA CONSUMAÇÃO - furto: posse tranquila, inversão
da posse ou saída da coisa da disponibilidade da vítima (dependendo
da corrente); apropriação indébita: quando a posse se converte em
domínio; apropriação indébita previdenciária: quando o agente deixa
de repassar os valores recolhidos dos empregados, no prazo e forma
legais. PENA – os três são crimes punidos com reclusão. Furto: 1
a 4 anos de reclusão, e multa, (2 a 8 anos de reclusão, e multa, no
qualificado); apropriação indébita: 1 a 4 anos de reclusão, e multa,
podendo aumentar de mais 1/3; apropriação indébita previdenciária:
2 a 5 anos de reclusão, e multa.
Porém, antes de adentrar especificamente na discussão sobre
a aplicabilidade do princípio da igualdade, faz-se essencial abrir um
parêntesis para abordar um ramo da filosofia: a lógica.

6 SOBRE FALÁCIAS
A filosofia e a lógica aristotélica estão mais próximas do jurista
do que ele costuma pensar, pois em muitas situações os argumentos
judiciais seguem um silogismo.16 É bem verdade que a lógica se
coaduna com o raciocínio dedutivo e que nem sempre o jurista atua
sob essa baliza, mas é importante para qualquer ator jurídico (juiz,
acusador ou defensor) saber como se deve fazer um raciocínio lógico
válido e, principalmente, identificar falácias que comprometam a
validade dos argumentos expressos em uma tese jurídica. Nossa maior
preocupação é com as chamadas “falácias informais” – raciocínios
sedutores e não raras vezes argutamente postos em um debate,
capazes de induzir o julgador a adotar uma tese racionalmente frágil
e inadequada constitucionalmente, mas retoricamente impactante.
Segundo Godofredo Telles Júnior, é “argumentação na qual um antecedente, formado de duas
16

proposições, que unem dois termos a um terceiro, infere um consequente, que une esses dois termos
a um ao outro” (TELLES JUNIOR, Godofredo. Tratado da consequência. Curso de lógica formal. 6ª.
ed. rev. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 207).

151
Em poucas palavras, podemos dizer que o silogismo é
composto de duas premissas e uma conclusão. A primeira premissa
é geral. A segunda premissa refere-se à primeira, mas em relação a
uma situação particular. A conclusão se extrai dessa relação entre as
premissas. Todo argumento correto precisa se basear no respeito à
ordem das premissas (do geral para o particular, por isso o silogismo
é dedutivo). Exemplo de um silogismo: (1) Todo homem é mamífero
(primeira premissa - geral). Félix é homem (segunda premissa -
particular). Logo, Félix é mamífero (conclusão).
Porém, é possível que as proposições sejam verdadeiras e a
conclusão falsa. Basta a segunda premissa não se referir ao sujeito da
primeira (o homem). Com isso a conclusão se torna inválida, como
no exemplo abaixo, em que não se pode inferir ser Félix um homem
(poderia ser um gato, que também é mamífero): (2) Todo homem é
mamífero (primeira premissa). Félix é mamífero (segunda premissa).
Logo, Félix é homem (conclusão).
A essas deficiências ou erros, a lógica deu o nome de falácias
(ou sofismas, como alguns chamam). Podemos dizer, em poucas
palavras, que falácia é um raciocínio ou afirmação falsa ou errônea
aparentemente verdadeira.17 É psicologicamente persuasiva, parece
correta, mas cai quando examinada cuidadosamente. Por isso, numa
área como o direito, em que a linguagem é o instrumento de trabalho
(ou arma...) visando (con)vencer mediante o embate de argumentos,
é tão importante o seu estudo.
Quem primeiro tratou com rigor o tema foi Aristóteles.
Alertava ele, a respeito dos sofistas, a quem denunciava a utilização
dessas ilações errôneas para fins nada dignos, que
“Visto que aos olhos de algumas pessoas mais vale parecer
sábio do que ser sábio sem o parecer (uma vez que, a arte do sofista
consiste na sabedoria aparente e não na real, e o sofista é aquele que
ganha dinheiro graças a uma sabedoria aparente e não real), está
claro que para essas pessoas é essencial parecer exercer a função de

COPI, Irving M. Introdução à lógica. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 73.
17

152
sábio, em lugar de realmente exercê-la sem parecer que o fazem (...)
constitui tarefa daquele que detém ele mesmo conhecimento de um
determinado assunto abster-se de argumentos falaciosos em torno
dos temas de seu conhecimento e ser capaz de denunciar aquele que
os utiliza.”18
Em relação à sua forma de expressão, as falácias são divididas
em: a) formais; b) informais. As falácias formais têm sua falha na
própria construção do raciocínio, como no exemplo 2.
Há que se atentar para a noção de veracidade da lógica. Não diz
respeito à verdade do mundo real. Por exemplo, seria formalmente
válido o seguinte raciocínio: (3) Todo kriptoniano tem superpoderes.
O Super-homem é kriptoniano. Logo, o Super-homem tem
superpoderes.
Se o Super-homem existisse, seria impossível que das duas
premissas não se extraísse a conclusão verdadeira. Sob a realidade
da literatura Marvel, necessariamente, se todo kriptoniano tivesse
superpoderes e o Super-homem tivesse nascido lá, teria que ter
superpoderes. Concorda? O raciocínio é válido, então. Inválido pela
lógica seria pensar assim: (4) O Super-homem tem superpoderes. Todo
kriptoniano tem superpoderes. Logo, o Super-homem é kriptoniano.
Observe-se que, em termos de lógica, tal silogismo é defeituoso
e inválido. Isso porque da forma com que foi construído o raciocínio,
não se pode inferir que o Super-homem seja de Kripton só porque
todo kriptoniano tenha superpoderes. Ele poderia ser de outro
planeta em que todos os habitantes também tivessem superpoderes.
Novamente temos que raciocinar abstratamente.
Falamos das falácias formais. Porém, o que mais exige atenção
dos atores jurídicos é a falácia informal. Nela a falha está na falsidade/
impropriedade de suas premissas, seja através do uso de termos
vagos (falácias de ambigüidade) ou da não relevância para justificar a
conclusão (falácias de relevância).19 Exemplificando (grotescamente):
ARISTÓTELES. Organon. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2005, p. 546-547.
18

CARAHHER, David W. Senso crítico: do dia-a-dia às ciências humanas. São Paulo: Cengage
19

Learning, 2008, p. 27.

153
(5) Todos os homens são iguais perante a lei. Maria não é homem, é
mulher. Logo, Maria não deve ser tratada igualmente.
Nesse caso se vê claramente que o termo homem foi utilizado
de maneira ambígua, ora para representar a espécie humana, ora o
gênero masculino. Outro exemplo (já mais elaborado): (6) Penas
maiores visam combater a criminalidade. A criminalidade está alta.
Logo, devemos aumentar as penas.
Aqui não há relevância porque não se comprova que a
majoração das penas obtém o resultado pretensamente almejado de
combater a criminalidade. As pesquisas demonstram que penas mais
altas não afetam a criminalidade. Relevante, sim, é a efetividade em
sua aplicação (combate à impunidade).
Portanto, como visto nos exemplos acima, com relação às
falácias informais, necessário se faz observar se as acepções estão
sendo usadas sob o mesmo contexto e se há pertinência a gerarem a
conclusão proposta.
Apesar do pouco espaço, mas sendo o tema relevante,
durante nosso estudo detectaremos os argumentos falaciosos nas
passagens de alguns precedentes judiciais. Aproveitamos para
exemplificar alguns:
Petição de princípio: a conclusão já está escondida nas premissas.
Exemplo: “o acusado deve ser condenado porque é mal. E todo mal
causado deve ser punido. Assim, o acusado deve ser punido.” Será
punido por ser mal ou porque agiu mal?
Pergunta complexa: “você deixou de furtar?” Nesse caso, em
qualquer das respostas o interlocutor estará confessando a prática
de furtos.
Apelo à compaixão: “ele deve ser absolvido ou Vossa Excelência
não é misericordioso?”
Apelo circunstancial: “você vai condená-lo ou vai querer que
seus filhos se depararem com mais um assaltante na rua?”
Apelo ao popular: “você precisa aplicar penas mais leves, ser
mais progressista.”

154
Apelo à autoridade: “é ilegal a atenuação aquém do mínimo
porque o STJ e o STF já disseram isso.”
Apelo à tradição: “em 1958 Nelson Hungria já dizia isso!”
Argumento ad hominem: “ele não merece crédito, pois é um
marxista da época de Stalin!” Será que pelo fato de alguém ter uma
determinada posição ideológica, seus argumentos nunca serão
válidos?
Falsa causa: “o réu é reincidente? E ainda quer negar a autoria?”,
como se o fato de ser reincidente já implicasse em sua culpa.
Apelo à ignorância: “nunca vi um traficante se regenerar.
Portanto, ele deve ser culpado”, como se a falta de conhecimento de
um dado fosse o mesmo que sua não existência.
Negação do antecedente: quem atira (antecedente), fere. Não
atirou. Logo, não feriu. O fato de negar o antecedente (atirar), não
implica em não ferir, pois não se fere somente com tiros.
Afirmação do consequente: quem atira, fere. Feriu (consequente).
Logo, atirou. Da mesma forma, afirmar o consequente (ferir), não
implica no antecedente (atirar), já que não se fere somente com tiros.
Falácia naturalista: associar juízos de valor a juízos fáticos.
Exemplo: Toda reincidência (juízo fático) revela distorção de caráter
(juízo de valor). João é reincidente. Logo, tem caráter distorcido.
A reincidência pode até ser consequência de um caráter
distorcido. Mas ninguém pode desconhecer as dificuldades de
reinserção social dos condenados.
Agora, passaremos a verificar a existência ou não de falácias
em precedentes do STF sobre a aplicação do princípio da igualdade
para equiparar os efeitos da reparação do dano nos crimes dos arts.
155, 168 e 168-A do CP.

7 ANÁLISE DOS PRECEDENTES DO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL
Por dois motivos fizemos um estudo sobre os precedentes
no STF, do caso em estudo: a) tendo em vista o alerta já feito

155
sobre a aplicação hierarquizada dos precedentes dos tribunais
superiores como razão de decidir de nossa práxis jurídica; b) para
demonstrar que argumentos de autoridade não são aceitáveis
como suficientes em um Estado Democrático de Direito, não existe
hierarquia funcional entre os órgãos das diversas instâncias, e que
a decisão constitucionalmente adequada reside na consciência
do ineditismo de cada caso, muito além de standards, de padrões
previamente estabelecidos.

7.1 O habeas corpus nº 87.324/SP


Esse foi o único precedente que encontramos em que o STF
abordou diretamente a tese aqui discutida, pois se tratava de um
pleito de aplicação analógica do § 2º art. 168-A a apropriação
indébita do art. 168 do CP. Foi relatora a Ministra Carmem
Lúcia. Contudo, na hora em que se estuda esse precedente, vê-se
que a negativa se amparou no parecer ofertado pelo Ministério
Publico, que pouco, ou nada, aliás, trouxe verdadeiramente sobre o
enfrentamento da questão.
A relatora citou alguns precedentes que fundamentariam a
negativa de aplicação da extinção da punibilidade pela reparação do
dano, mas são anteriores a existência do tipo descrito no art. 168-A
do CP.
O voto se amparou no parecer do Ministério Público cujo
raciocínio implicou em várias falácias. Destacaremos os trechos para
posterior análise:

Denotam os documentos juntados na impetração que


o acusado, por razões que deverão ser detectadas no
curso da ação penal, apropriou-se de valores recebidos
da Previdência Social por idosa analfabeta, a título de
honorários advocatícios, instruindo-a a não se manifestar
sobre o ocorrido, sob pena de perda do benefício. Evidente
que, não obstante a restituição posterior dos valores, trata-
se de conduta grave, ainda mais quando partida de advogado

156
para quem o patrono da vítima havia substabelecido
poderes, conduta, como já frisado, que em tese configura
crime, crime esse diverso do previsto no art. 168-A do Código
Penal, motivo pelo qual não se pode cogitar de sua aplicação
por analogia na hipótese.

A reparação do dano não perquire sobre a moralidade da


conduta. É um instituto objetivo. Perquire sobre a existência da
reparação ou não do dano. O Ministério Público Federal, entretanto,
em sua argumentação, incorreu nas chamadas falácias do apelo
à compaixão e à moralidade, no caso, da idosa vítima nos autos,
argumentando que o paciente “apropriou-se de valores recebidos da
Previdência Social por idosa analfabeta (…) não obstante a restituição
posterior dos valores, trata-se de conduta grave, ainda mais quando
partida de advogado”. Poder-se-ia, muito bem, substituir a palavra
“advogado” por médico, engenheiro, padre ou outras mais profissões,
colocando a vítima, de alguma forma, sob o julgo do agente. Isso
não implica em nenhuma mudança de entendimento em relação à
reparação do dano. Portanto, esse argumento não guarda pertinência
para o deslinde da questão, consistindo, além do apelo, em uma
falácia informal de relevância.
Disse ainda que a reparação do dano só se deu após propositura
de uma ação civil. Isso também não é relevante, pois a lei não exige
voluntariedade, mas apenas espontaneidade.
Além disso, incidiu também em falácias quando argumentou
o seguinte: “conduta, como já frisado, que em tese configura crime,
crime esse diverso do previsto no art. 168-A do Código Penal, motivo
pelo qual não se pode cogitar de sua aplicação por analogia na
hipótese”. Observe-se que o raciocínio foi: a conduta era criminosa.
O crime foi diverso do previsto no art. 168-A. Logo, não cabe
analogia. Dessas premissas não pode se extrair uma conclusão válida
porque um ponto essencial não foi discutido: sob quais argumentos
se demonstrou não haver similitude entre os dois tipos? Ocorreu
a omissão do enfrentamento dessa questão essencial para afastar a

157
analogia. Além disso, “diverso” pode ter duas acepções: a) como sendo
outro; b) como sendo outro e, ainda por cima, não similar. Os fatos
narrarem outra conduta não implica em afastar a analogia. Afasta,
sim, não guardar o tipo que abarca essa conduta similaridade com o
do art. 168-A do CP. Isso precisa ser demonstrado na argumentação.
Se os fatos não fossem diversos, ocorreria o fenômeno da identidade,
aplicando-se diretamente, e não por analogia, o art. 168-A ao
caso. Essa omissão do conceito de similaridade dos tipos – ponto
fundamental da analogia – induz o leitor a acreditar na pretensa
veracidade da conclusão. E como já ficou claro pelo que expus acima,
os delitos são similares. Observe-se que se trocássemos a expressão
“crime esse diverso do previsto no art. 168-A do Código Penal” por
“crime que não era similar ao previsto no art. 168-A do Código
Penal”, a fragilidade argumentativa seria facilmente detectada.
Essa deficiência argumentativa gerou, também, pela construção do
raciocínio, uma falácia da petição de principio, em que a conclusão
foi embutida nas premissas.
Portanto, analisando o HC 87.324, em suma, verifica-
se que o Supremo Tribunal Federal não enfrentou a questão da
possibilidade ou não de aplicação dos benefícios previstos para o
crime de apropriação indébita previdenciária aos demais crimes
contra o patrimônio. Tangenciou a discussão e decidiu com base em
argumentos irrelevantes e impertinentes. Curioso destacar que esse
mesmo julgado remete a outros, todos impertinentes, pois anteriores
à lei que instituiu o art. 168-A do CP (2000) e até mesmo à Parte
Geral do Código Penal, que é de 1984: RE 88.709, de 12.12.1978; HC
47.129, de 26.08.1969; RCH 49.073, de 13.10.1971; RHC 59.033, de
17.11.1981; e RE 104.270, de 05.02.1985. Incidiu, assim, também na
falácia do apelo à (ou argumento de) autoridade.
O outro precedente citado no voto da Ministra foi o HC 75.051,
que será ainda analisado.

158
7.2 O HABEAS CORPUS Nº 91.065/SP
O mais recente precedente foi o habeas corpus 91.065/SP.20 Seu
relator foi o Ministro Eros Grau. Tratava-se de um caso de furto em
estabelecimento militar. Em suma, toda a fundamentação sobre a
questão foi feita em um parágrafo. E ocorreram duas falácias nessa
argumentação: a) um apelo à autoridade, pois se fundamentou
num precedente da corte, sem explicar sob quais circunstâncias
ele se deu; b) uma falácia de falsa causa, pois o referido precedente
era impertinente para o deslinde da questão, já que não se discutiu
nele, em nenhum momento, a possibilidade ou não de aplicação da
extinção da punibilidade pela reparação do dano em face do princípio
da igualdade. Disse o voto do Ministro Eros Grau:

[...] com relação à alegada extinção da punibilidade em


razão da restituição do objeto furtado antes do oferecimento
da denúncia também não assiste razão à impetrante. O
Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido
de que ‘(a) reparação do dano ocorrida após a consumação
do crime, ainda que anteriormente ao recebimento da
denúncia, só tem como efeito a atenuação da pena’ (HC nº
75.051, Relator Ministro Sidney Sanches, DJ de 12.9.97).

Observa-se que a fundamentação consistiu em remeter a um


precedente. E vejamos o que ele diz:

7.3 O HABEAS CORPUS Nº 75.051


Nesse acórdão, datado de 1997 não se discutiu em nenhum
momento a aplicação do princípio da isonomia. Se algum julgado
o arguir como razão de decidir, como fez o STF nos habeas corpus
nºs 87.324/SP e 91.065/SP, incidirá na falácia da falsa causa, pois
o precedente era absolutamente impertinente, isto é, não tratava
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Hábeas Corpus 91065. Paciente: Adam Higino Alves Moreira.
20

Impetrante: Defensoria Pública da União. Autoridade Coatora: Superior Tribunal Militar. Ministro
Eros Grau, Relator. Segunda Turma, julgado em 29.04.2008. Publicação: DJe 152, de 15.08.2008.

159
da extensão, ou não, aos crimes de furto e apropriação indébita,
dos benefícios conferidos a quem comete apropriação indébita
previdenciária. Isso é um exemplo de que não dá para se repetir
jurisprudências como um mantra.
Além dessa falácia, ocorreu outra. Nesse HC, foi feita menção,
nas razões do voto, ao Parecer do Ministério Público que, por sua
vez, citou um acórdão do extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais
– TAMG –, datado de 1987. Esse precedente mineiro é anterior a
qualquer lei que tenha criado o critério discriminatório. Portanto,
trata-se de precedente imprestável. Se alguém o arguir como razão
de julgar a questão ora analisada, incidirá na falácia da tradição.
No mesmo julgado, foram citados outros ainda mais antigos: RHC
55.257 (1977) e RE 104.270 (1985).

7.4 CONCLUSÃO SOBRE A IMPERTINÊNCIA


DOS PRECEDENTES DO STF
Os precedentes acima do STF não são pertinentes para o
enfrentamento da questão. E em nossas pesquisas na doutrina, bem
como na jurisprudência do STF, seja no site, seja nos informativos do
STF, não encontramos outros que tratassem da matéria.
Esses raciocínios falaciosos encobrem uma realidade de
flagrante distinção de tratamento com base não nos fatos, mas
sim nas pessoas que os cometem. O crime de apropriação indébita
previdenciária só pode ser cometido por quem tem empregados,
enquanto que a apropriação indébita simples e o furto são cometidos,
quase que invariavelmente (e não há de se negar isso), por pessoas
das camadas mais sofridas da sociedade. Nesse momento, bem cabe
a denúncia de António Manuel Hespanha:

O juiz funciona no seio de uma teia de condicionamentos


muito desequilibrada, pois o recurso aos melhores
advogados (e, portanto, aos produtores de discursos mais
consistentes ou convincentes), a possibilidade de obter

160
mais prova, de suportar os custos (tempo e dinheiro) dos
incidentes e recursos, de entender melhor o que se passa
em tribunal, e, até, de condicionar a decisão por meio
da comunicação social, tudo isso está desigualmente
distribuído na sociedade. E é esta desigualdade, mais do
que qualquer défice democrático original, que projecta
sobre a justiça uma sombra de ilegitimidade e que cria
preocupações perante o alargamento da sua esfera de
intervenção, enquanto o seu ambiente não for regido pelo
princípio da igualdade de oportunidades. (...) Pode-se
dizer quem o mesmo se passa com a decisão no processo
legislativo. E é bem verdade que isso pode ser justamente
dito, dado o compadrio de interesses, as leis políticas, as
leis feitas à medida de um caso, a opacidade de certas
decisões ou o lobbyismo descarado que subjaz outras.
Mas, pergunta-se, esses poderosos meios que condicionam
um governo ou uma maioria parlamentar são incapazes
de controlar um tribunal? Não passa hoje a aplicação de
toda essa legislação espúria pelo crivo dos tribunais? Os
resultados da justiça não são hoje avaliados como sendo
mais discriminadores do que o enunciado das leis? 21

Sob o pretexto de busca de métodos que visem dar conta da


demanda judicial, vemos com preocupação o processo de quebra
da independência dos juízes e a formação de uma práxis judiciária
hierarquizada não apenas administrativamente, mas também no seu
núcleo de atuação, ou seja, naquilo que os caracteriza como membros
de Poder: sua independência funcional. Esse fenômeno ultrapassa
a imposição das chamadas súmulas vinculantes. Acatam-se como
verdade impenetrável e intransponível as súmulas não vinculantes,
as repercussões gerais e, o mais grave, meros precedentes judiciais de
tribunais superiores. Tornam-se os portadores da “verdade”, bastiões
olímpicos cujas palavras reverberam cimeira abaixo, acriticamente.

HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo
21

de hoje. 2ª. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 152-153.

161
Como bem alerta Rosmar Alencar, tal mecanismo

[...] é desfavorável à compreensão e à concretização do


direito, propiciando agravamento dos conflitos sociais não
só por se tratar de um paliativo para as deficiências do
Poder Judiciário, postergando a litigiosidade, mas porque
não se amolda às disparidades sócio-econômicas, que não
se vêem nos países de origem dos institutos. Isso não induz
que não sejam necessários padrões gerais mínimos que
confiram sustentação ao convívio social. Todavia, o risco é
a exacerbação de um nível de abstração que chegue a ferir
o núcleo concernente à singularidade humana.”22

8 SOBRE O PRINCÍPIO DA IGUALDADE


O princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes
dos direitos fundamentais, uma vez que é pressuposto para a
uniformização do regime de liberdades individuais.
No esteio dessa relevância, a Constituição Federal traz como um
dos objetivos fundamentais da República “promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação” (art. 3º, IV); bem como dentre os direitos
e Garantias Fundamentais, que “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do
direito (...) à igualdade” (art. 5º, caput).
Na doutrina portuguesa, tão amplamente aceita aqui, observa
Canotilho duas vertentes de aplicação desse princípio ao Estado:
a) na atuação do Estado e, em especial, na concretização do direito
pelos os tribunais; b) na criação do direito pelo legislador.23 24
No primeiro caso, dirigindo-se aos tribunais, impõe que na
concretização dos direitos, não haja discriminações indevidas. No
ALENCAR, 2009, p. 22.
22

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra:
23

Almedina, 2003, p. 426.


No mesmo sentido, FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. 2ª. ed.
24

Madri: Trotta, 2005, p. 330-331.

162
segundo, dirigindo-se ao legislador, impõe que a lei, ao ser criada,
já deve ter sido sob o prisma da igualdade. Bem ensina Pérez Luño
quando aponta:

“exigencia de que todos los ciudadanos se hallen sometidos


a las mismas normas y tribunales. La igualdad ante la
ley implica el reconocimiento de que la ley tiene que ser
idéntica para todos, sin que exista ningún tipo o estamento
de personas dispensadas de su cumplimiento, o sujetos a
potestad legislativa o jurisdicional distinta de la del resto
de los ciudadano”.25

A igualdade é relacional. Levam-se em conta determinadas


características que, naquela questão, são as mais importantes para
definir sua obediência ou não. Existe observância da igualdade quando
indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do
arbítrio) tratados como desiguais. O principio de proibição do arbítrio
anda sempre ligado a um fundamento material ou um critério material
objetivo que, segundo Canotilho, sintetiza-se assim: “existe uma
violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica
não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido
legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento
razoável”.26 Inevitavelmente há que se realizar um juízo de valor.
Para se definir se há ou não arbitrariedade, isto é, se há ou
não violação do princípio da igualdade, deve-se avaliar a suficiência
ou não do arbítrio como fundamento adequado de valoração e de
comparação. Tem-se que analisar a natureza e o peso dos fundamentos
ou motivos justificadores para a diferenciação.
Segundo Jorge Miranda27, a igualdade pode ser vista em dois
sentidos: negativo e positivo. O primeiro sentido é o de negar, de vedar
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Teoria del derecho: uma concepción de la experiencia jurídica. 5ª.
25

ed. Madri: Tecnos, 2006, p. 228.


Idem, p. 428.
26

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. Direitos fundamentais. 4ª ed.
27

Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 253.

163
privilégios e discriminações. Isto é, ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado ou privado de qualquer direito ou isento
de qualquer dever. Observado a arbitrariedade, surge o dever de
estancar o privilégio ou a discriminação.
No sentido positivo, visa-se recompor a igualdade por
meio a) da concessão de tratamento igual em situações iguais; b)
no tratamento desigual de citações desiguais, mas substancial e
objetivamente desiguais e não as criadas e mantidas artificialmente
pelo legislador; c) o tratamento em modos de proporcionalidade;
d) o tratamento das situações não como apenas existem, mas como
também devem existir, fazendo com que a desigualdade perante a lei
seja igualdade através da lei.
Assim o arbítrio, a desrazoabilidade da solução legislativa, a
sua inadequação por desproporção, revelam de forma mais flagrante
a preterição.28 Diante da situação, como no caso objeto desse escrito,
em que há duas leis estabelecendo arbitrariamente tratamentos
desiguais, qual das duas deverá ser eivada de inconstitucionalidade?
Proveniente da experiência do controle de constitucionalidade
do Tribunal Constitucional Alemão, a jurisprudência pátria adotou
a exclusão de “benefício incompatível com o princípio da igualdade”.
Sobre ela, disse Gilmar Mendes:

Ponto de partida para o desenvolvimento dessa variante de


decisão foi a chamada ‘exclusão do benefício incompatível
com o princípio da igualdade’, que se verifica quando a lei,
de forma arbitrária, concede benefícios a um determinado
grupo de cidadãos, excluindo, expressa ou implicitamente,
outros segmentos ou setores. (...) Tem-se uma exclusão de
benefício incompatível com o princípio da igualdade, se
a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo
vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou
grupos, sem contemplar outros que se encontram em
condições idênticas. Essa exclusão pode verificar-se de
Ob. cit., p. 253.
28

164
forma concludente ou explícita. Ela é concludente se a
lei concede benefícios apenas a determinado grupo; e
explícita, se a lei geral que outorga determinados benefícios
a certo grupo exclui sua aplicação a outros segmentos.29

9 DUAS ÓBVIAS OBJEÇÕES DO SENSO COMUM


O senso comum teórico faria objeções a aplicação da isonomia.
Uma delas fatalmente seria a seguinte: “ora, mas as situações são
diferentes. O interesse do Estado, na apropriação indébita, é apenas
reaver o valor sonegado ou apropriado indevidamente pelo agente.”
Deveríamos fazer uma pergunta: se o Estado, cujo Erário a todos
pertence, com a reparação do dano, dá-se por satisfeito, por que
um particular não daria? Será que, nesse caso, obrigar a vítima
a comparecer a uma audiência criminal, não seria revitimá-la?
Precisamos refletir sobre o interesse da vítima. Se ela deseja dar
seguimento a uma ação penal contra o agente, após ter havido
a reparação do dano, em não tendo sido o crime cometido com
violência ou grave ameaça. Em todo caso, como se presume que
o Estado não quer, em se tratando de crime contra o patrimônio
público (indisponível), por que dar tratamento desigual em se
tratando de crime contra o patrimônio individual (na maioria das
vezes, de um patrimônio particular – disponível)?
Tendo em vista que todos nós sabemos da disparidade
econômico-social entre os agentes das duas primeiras infrações
(furto e apropriação indébita) e os que cometem a apropriação
indébita previdenciária, o tratamento divergente só deixa mais claro
o uso do Estado como ente opressor.
A opressão jamais pode confessar-se como tal: ela tem sempre
a necessidade de ser legitimada para exercer-se sem encontrar
oposição. Eis porque ela usará as bandeiras como as da manutenção
da ordem social, da consciência moral universal, do bem-estar e do
progresso de todos os cidadãos. Ela se negará enquanto violência,
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 214.
29

165
visto que a violência é sempre a expressão da força nua e não da
lei – e como fundar uma ordem, a não ser sobre uma lei aceita e
interiorizada? A relação de força vai então desaparecer enquanto tal,
será sempre coberta por uma armadura jurídica e ideológica 30.
Outros diriam, ao se depararem com um caso de furto ou
apropriação indébita cujo dano foi reparado: “o correto, então, seria
declarar inconstitucional a regra que beneficia quem prejudica o Erário
Público, mas como não está sendo objeto de análise nesse caso, deve
ser aplicada a regra do art. 16 do CP.” O Brasil é célebre em sonegar
direitos às camadas mais sofridas da população. Argumentar dessa
maneira é somente chancelar a desigualdade, pois até a improvável
declaração de inconstitucionalidade das regras previstas nos §§ 2º e
3º do art. 168-A do CP e dos arts. 68 e 69 da lei 11.941/2009, milhares
de casos seriam julgados de maneira desigual. O melhor caminho,
para preservar o Estado de Direito, é aplicar o princípio da igualdade
e, com ele, conferir-se igual tratamento aos réus dos três crimes.
Portanto, assim agindo estaríamos aplicando com a máxima
efetividade os direitos fundamentais, compatibilizando as duas
situações através da equiparação a todos os acusados em crimes
contra o patrimônio sem violência ou grave ameaça à pessoa, que
repararem o dano, os benefícios previstos no art. 168-A, § 2º, do
CP e arts. 68 e 69 da lei 11.941/2009, levando em consideração as
ponderações feitas por Alexandre Morais da Rosa:

[...] no Estado Democrático de Direito, somente se


justifica a intervenção estatal, via ‘direito penal mínimo’
(Cap. 4o), em face de crimes que impeçam a realização
dos objetivos constitucionais do Estado, ou seja, os que
alimentam a injustiça social e os necessários à coesão
do laço social, demitindo-se, assim, da criminalização
de toda-e-qualquer-conduta que possa ser resolvida por
formas extrapenais ou decorrentes da omissão (quiçá
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção
30

do direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 29.

166
dolosa) do modelo econômico adotado/imposto no
Brasil contemporâneo.31

Por conseguinte, estanca-se o critério discriminatório de


maneira positiva, isto é, tratando-se igualmente os discriminados,
no caso o agente que pratica furto ou apropriação indébita simples
em relação ao que pratica apropriação indébita previdenciária, nos
termos do art. 68 da lei 11.941/2006.
Aos desavisados, deixamos logo o alerta de que tal forma de
atuar preserva a Separação de Poderes, uma vez que não se trata de
declaração erga omnes, e sim inter partes, isto é, não estaríamos, em
sede de controle incidental e difuso, usurpando função legislativa.
Criamos a norma para o caso concreto, como é algo natural e
diuturno da função judicial.
Os comportamentos foram similares. A intenção de reparar o
dano foi a mesma. O resultado para a vítima foi o mesmo. O dano
desapareceu para ambos. Por que, então, tratá-los diferentemente?
Manter a discriminação é ferir o princípio da igualdade, uma
vez que os crimes guardam uma grande similitude. São todos crimes
contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça,
dolosos e com uma série de similaridades já destacadas nos tópicos
anteriores.
O fundamento para discriminação não é sério, razoável e nem
tem sentido legítimo.
Não é sério porque o simples fato de se tratar o autor de pessoa
que subtrai ou se apropria de valores que deveriam ser repassados à
Previdência Social não pode, nem deve, ser critério diferenciador,
notadamente porque no caso do crime do art. 168-A, do CP, ocorre
prejuízo não só ao Estado, que deixa de arrecadar, mas também ao
empregado-contribuinte que, em razão da retenção e apropriação
indevida da contribuição social pelo seu patrão, fica excluído dos
benefícios da Previdência Social, incluindo as aposentadorias
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
31

2006, p. 236.

167
especial, por idade, por invalidez, por tempo de contribuição e os
auxílios por acidente, doença e reclusão, sem contar pensão por
morte, salário-família e salário-maternidade. Ademais, há, no delito
do art. 168-A, do CP, ofensa a dois sujeitos, invariavelmente e, no
caso do empregado, quase sempre de muitos de uma só vez. Já no
caso do furto ou da apropriação indébita, os bens são, via de regra,
somente de um particular.
Não é razoável tratar mais gravosamente um tipo do que
outro por outra razão: a existência de uma desproporção entre a
generalidade dos casos em que ocorrem furtos e apropriação indébita
– que, por terem como objetos bens móveis, comumente são de valor
baixo –, e os em que ocorre a apropriação indébita previdenciária,
normalmente na casa das dezenas de milhares, quando não centenas
de milhares de reais. Há ocorrências de trezentos milhões de reais.32
Não é legítima a distinção. Ainda mais quando se trata de
situações em que a conduta, objetivamente, é a mesma, isto é, quando
há a reparação do dano pelo agente. Manter a discriminação é
aplicar o direito penal do autor (em benefício, claro, dos empresários
sonegadores), e o pior: em sentido diverso do propalado por Gunther
Jakobs, criando o direito penal amigo dos réus ricos e inimigo dos
réus pobres. 33 34
Não existe motivo justificador para a diferenciação de
tratamento. E alerta Canotilho:

Esta ideia de igualdade justa deverá aplicar-se mesmo


quando estamos em face de medidas legislativas de graça

R$ 300.000.000,00. É um exemplo na jurisprudência do TRF da 3ª Região (ACr 2000.61.02.015382-


32

0/SP – 5ª T. – Relª Desª Fed. Ramza Tartuce – DJe 16.11.2010 – p. 587).


Sobre a seletividade e discriminação do sistema penal, confira: SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano
33

dos. Discurso sobre o sistema penal. In Revista dos Tribunais. São Paulo: revista dos Tribunais, 2007,
vol. 861, p. 466-482.
O Ministério da Justiça, através do Departamento Penitenciário Nacional, constatou que no Brasil, em
34

junho de 2010, havia 64.980 pessoas cumprindo pena por furto, 2.498 por apropriação indébita e apenas
66 por apropriação indébita previdenciária. Disponível em <http://portal.mj.gov.br/transparencia/
services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={5AD86240-5A38-
4200-8736-83C1A7734416}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD}>,
acesso em 17 de fevereiro de 2011, às 23h47.

168
ou de clemência (perdão, anistia), pois embora se trate de
medidas que, pela sua natureza, transportam referências
individuais ou individualizáveis, elas não dispensam a
existência de fundamentos materiais justificativos de
eventuais tratamentos diferenciadores.35

Verificado o arbítrio injustificado que viola a igualdade, deve


o Judiciário aplicar o princípio da isonomia, fazendo com que a
desigualdade diante da lei (injusta) seja sanada através da submissão
das duas situações a um mesmo regramento.

10 CONCLUSÃO
Como ficou comprovado, a solução adequada para respeitar
o princípio constitucional da igualdade, neutralizando o critério
discriminatório entre os agentes que reparam o dano na apropriação
indébita previdenciária, no furto e na apropriação indébita comum, é
estender o efeito de extinção da punibilidade a todos os casos.
Mas esse texto não pretendeu se limitar a isso. Teve um duplo
foco. Cuidou, também, de demonstrar a virada metodológica do
Judiciário em concretizar o direito, através da utilização, cada dia
mais, de precedentes jurisprudenciais de tribunais superiores. Além
disso, alerta para o fato de que esse apego do senso comum teórico
acabou assumindo proporções dogmáticas, formando para si próprio
barreiras epistemológicas imaginárias, inexistentes, invisíveis e – o
mais grave – vistas como intransponíveis. Mas um exame um pouco
mais detalhado dos precedentes judiciais do STF, sobre o objeto do
estudo, demonstrou que essas muralhas tem alicerces de barro.
Portanto, alertamos para o risco de se decidir acriticamente,
com base em precedentes judiciais que, não raras vezes, são
falaciosos, impertinentes ou ilegítimos para servir de fundamento a
uma decisão judicial que aplique o direito penal, observando-se as
garantias constitucionais.

CANOTILHO, 2003, p. 429.


35

169
Sob pena de cometer injustiças, o ator jurídico necessita, ao
se fundamentar em um precedente, pelo menos estudar os votos
e as razões deles, pois a abstratividade do acórdão não alcança a
singularidade das pessoas e as peculiaridades de cada caso. Isso é agir
com responsabilidade crítica. E repito: um julgado não se conhece
pela ementa, assim como não se lê um livro pela orelha. Cada
situação submetida a julgamento guarda sua distinção. O discurso
da “verdade” só desce por gravidade para aqueles que se colocam
abaixo. Não se pode respeitar os precedentes sem questionar seus
(des)acertos. Senão, a injustiça campeia.
Portanto, sempre é bom se questionar. Questionar as “verdades”
promanadas dos discursos jurídicos. A decisão acertada de um caso
concreto quase sempre vai além de qualquer fórmula pronta, de
qualquer homogeneidade.
Que lei penal é essa que fecha os punhos para uns e os olhos
para outros? Que Judiciário é esse que chancela esse roteiro? Que
dizer de nós, atores jurídicos, se contracenamos numa paródia aos
Direitos Fundamentais? O início do enredo foi traçado. Mas está em
nossas mãos a caneta e o papel para escrevermos um final digno da
algo memorável.
No desbravamento de uma decisão constitucionalmente
adequada, a jurisprudência dominante pode até ser um norte.
Mas jamais deve ser tomada como timoneiro. Este tem que ser
o juiz do caso. Se, na viagem em busca da historicidade de um
caso, o juiz navega pelo mesmo mar outrora atravessado pelos
precedentes, as águas serão sempre outras... É preciso atenção
no vento e no tempo, para que o veleiro siga pela corrente certa.
Nessa viagem, Themis pode se dar ao luxo de usar uma venda,
mas o juiz, que a conduz, não.

170
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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e concretização do direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2009.
2. ARISTÓTELES. Organon. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2005.
3. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
4. CARAHHER, David W. Senso crítico: do dia-a-dia às ciências humanas.
São Paulo: Cengage Learning, 2008.
5. COPI, Irving M. Introdução à lógica. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978.
6. FARIA, José Eduardo. O Poder Judiciário no Brasil. Conselho Nacional da
Magistratura. Brasília [S. I. : s.n], 1996, p. 14-15.
7. FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. 2ª.
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8. FOLHA DE SÃO PAULO. Mendes critica partidarização do servidor
público. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/
ult96u473694.shtml>. Acesso em 20.11.2009.
9. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica.
Organização Pierre Fruchon. Tradução Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
10. HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e
a justiça nos dias e no mundo de hoje. 2ª. ed. Coimbra: Almedina, 2009.
11. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 1996.
12. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos
Fundamentais. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.
13. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Teoria del derecho: uma concepción de
la experiencia jurídica. 5ª. ed. Madri: Tecnos, 2006.
14. ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: bricolage de significantes.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

171
15. _____. O Judiciário e a lâmpada mágica: o gênio coloca limite, e o juiz?
In Revista Direito e Psicánalise. Vol. 1., n. 1. Curitiba: UFPR, 2008, p. 7-16.
16. SACRISTÁN, Isidoro Álvares. La justicia y su eficácia: de la constitución
al processo. Madri, COLEX, 1999.
17. SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. Discurso sobre o sistema
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Tribunais, 2007, vol. 861, p. 466-482.
18. _____. Independência ou Morte. Disponível em <http://rosivaldotoscano.
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19. STAMFORD, Artur. E por falar em teoria jurídica, onde anda a
cientificidade do direito? In Revista da Faculdade de Direito de Caruaru.
Vol. 33. no. 24. Caruaru: ASCES, 2002, p. 63-78.
20. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração
hermenêutica da construção do direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009.
21. TELLES JUNIOR, Godofredo. Tratado da consequência. Curso de lógica
formal. 6ª. ed. rev. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.
22. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito, II: a epistemologia
jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002,
p. 260.

172
DENÚNCIA GENÉRICA – PECADO DE QUEM?
Leonardo Costa de Paula*

RESUMO
No presente estudo se coloca em cheque a possibilidade de utilizar-se
da denúncia genérica em qualquer petição que inaugura um processo
penal. A questão principal é: seria possível o uso da denúncia
genérica? Ou isto seria um desvirtuamento da via processual para
afrontar direitos e fugir da necessária individualização da petição
inicial. Utiliza-se da idéia do crime abstrato, comparando-a com
a denúncia genérica o que se assemelha ao tratamento dado aos
acusados na inquisição. Heresia e denúncia genérica impedem a
repressão geral negativa e inviabiliza a ampla defesa do acusado. Teve
foco no presente estudo um estudo jurisprudencial sobre o uso da
denúncia genérica e seus acertos e desacertos.

PALAVRAS CHAVES: DENÚNCIA GENÉRICA, AMPLA DEFESA,


HERESIA, PECADO.

Professor de Introdução ao Direito e de Direito Processual Penal da Universidade Candido Mendes,


*

Mestre em Direito Público e Evolução Social pela UNESA-RJ, pós-graduado em Direito e Processo
Penal, pós-graduado em Docência do Ensino Superior, ambos pela pela UCAM-RJ, Pesquisador da
Associação pela Reforma Prisional, Sócio do Escritório Gamil Föppel Advogados Associados com
foco de atuação no Rio de Janeiro.

173
INTRODUÇÃO
Em que medida há a possibilidade de utilização da denúncia
genérica frente a definição do código de processo penal da necessária
capitulação, individualização das condutas com todas as suas
circunstâncias?
Haveria a possibilidade de mitigação desse dever do acusador
para desvirtuar a via do processo penal e afrontar direitos e garantias
do acusado de se defender ou isso seria remontar à inquisição e
imprecisão do que vai ser objeto do processo?
No primeiro capítulo se discute de maneira sutil a origem
da idéia de pecado e crime, que andaram juntos por certo tempo,
acrescido da origem ecumênica do acusador, que em muito se parece
que o acusador atual.
No capítulo seguinte se demonstra a identificação
jurisprudencial sobre a utilização da denúncia genérica, com as
mitigações à individualização das condutas perseguidas, o que
demonstra um aviltamento à garantia da ampla defesa.
No terceiro capítulo passou-se o foco para a ampla defesa
no processo penal, que para se considerar processo será necessária
a possibilidade de desconstituição da acusação e que, de frente a
denúncia genérica, isso se torna impossível.

1 ACUSADOR E CRIME: SUPERFICIAL ANÁLISE DA


SUA ORIGEM ECUMÊNICA
É sabido que a idéia de crime e de pecado, antes da laicização
do Estado se desenvolveram em conjunto. A identificação de
pecado é exatamente a mesma identificação do crime. Quando
alguém transgride algum mandamento moral da igreja católica era
identificado como pecador.
Esse pecador terá que pagar sua dívida com Deus, terá que se
submeter ao vigor punitivo Dele e possivelmente nunca adentre aos
reinos dos Céus, pois será remetido à masmorra eterna: o inferno.

174
Essa ideia está presente antes mesmo da própria Igreja
Católica, que na verdade se apropriou da identificação do inferno
da mitologia grega, que era controlada por Hades, o deus, quando
da divisão dos mundos, ficou responsável por controlar o lugar
para onde os mortos iriam.
Diferente do inferno da igreja católica, o hades que também
dá nome ao local físico do submundo, é dividido em três níveis, o
primeiro é o nível que ficam os bem-aventurados, o segundo nível
onde praticamente nada acontece que vai a maioria da população e
o terceiro nível é o local que inspirou o inferno da igreja católica. 1
Toda essa discussão parece meramente uma pregação de
alguma entidade ou religião divina, mas isso serve para demonstrar
que praticamente em toda época as pessoas tinham a necessidade
de preencher suas expectativas de como seria o pós-morte e sempre
almejavam uma ordem universal para equilibrar a balança das
maldades feitas em vida.
Essa discussão remete especificamente a uma passagem do
que a nossa figura do promotor, procurador ou acusador público
representava em algumas religiões.
Na Arábia, shaitam significava de maneira mais simples
acusador. Já hassatam, de origem hebraica, significava adversário e,
no antigo testamento, satan é um tipo de advogado que discute os
pecados do homem com Deus. 2
No novo testamento a identidade de satan fica clara ele é o anjo
caído, engenhoso, (...) um trapaceiro do mal que condena os pecadores
ao inferno eterno3. E esse pecador é definido através de crimes
abstratos e não definíveis chamado de heresia.
Documentário, Confronto dos deuses: hades. Produtores: HUNT, Bill; KRALYEVICH, Vincent;
1

SABAT, Kristine e WEBER, Jeffrey C. Escritor: CASSEL, Christopher, JUNEAU, Sam e VER, Jess
Lyne da. Produção: History Channel.
Documentário: A bíblia do diabo – título original: Devil’s bible. Produzido por HOFF, Kael e ADAMS,
2

Ley, Dirigido por MICHAELS, Robert, Escritores GRONICH, Amanda, Produzido por ADAMS,
Ashley, Produtor Executivo: National Geographic Channel.
idem.
3

175
A rigor, a visão apresentada sobre a figura do anjo decaído, o
diabo, é muito semelhante com a figura do acusador público, que é
quem discute os pecados (crimes) humanos com o juiz.
Diferente da visão clássica presente na topografia das salas dos
tribunais, em que o acusador se encontra sentado à direita de Deus
pai todo poderoso, Jesus, o acusador se assemelha muito mais à ideia
do controlador das masmorras eternas do que com o próprio Jesus,
salvador dos povos, já que na visão do acusado o acusador não se
encontra à direita.
Isso muito se assemelha com a ideia de desenvolvimento
do crime e do pecado. Inicialmente o pecado e o crime andavam
juntos, o pecado tomou corpo como crime de lesa majestade, era o
crime de heresia.
Heresia é um pecado em branco, ou seja, como nossa ideia de
crime abstrato, ele é tão aberto, que qualquer coisa pode ser tratada
como heresia, ou seja, não é um pecado/crime, definível.
No manual dos inquisidores, uma das primeiras espécies
de manual de processo penal existentes no mundo, tem-se a
identificação de que o acusador não pode deixar claro o pecado
que recai sobre o acusado:

Em se tratando de heresia, o procedimento é o mesmo: é


bom que o acusado ignore a especificidade do que o acusam.
Deve-se chegar a isso através de uma retrospectiva constante,
perguntando sobre os motivos da própria acusação, a fim de
levar o acusado a confessar ou a lembrar do seu crime (...).
Induzir o acusado ao motivo da acusação, a fim de escapar
às armadilhas do interrogatório constitui, em termos
inquisitoriais, um delito muitíssimo grave: o inquisidor que
fosse culpado disso pegaria a pena especialmente prevista
pelo Concílio de Viena para tais casos.4

4
EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Comentários Francisco Peña; Trad. Maria José Lopes
da Silva. 2 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 114.

176
Assim, longe de afastarmos a identificação da denúncia genérica
com a do crime indefinível, eles estão carregados exatamente do
mesmo conteúdo ideológico: que é condenar aquele que não sabe o
que fez para ser perseguido.
Os acusadores sejam papais, sejam os laicos, insistem na
possibilidade de discutir os ‘pecados’ cometidos por quem tem que
pagar tais dívidas sem definir qual foi a suposta prática que teriam
realizado, as quais seriam contrárias ao Direito.
Então, ultimamente têm se tornado cada vez mais presente as
denúncias genéricas quando se trata de crimes societários, retornando
o modelo atual aos da inquisição.

2 O SISTEMA DINÂMICO: A JURISPRUDÊNCIA


No Direito, há quem entenda que o sistema estático é
representado pela norma escrita, enquanto que o sistema dinâmico é
dado pela jurisprudência. 5
Dar máxima atenção à jurisprudência pode engessar o
pensamento sobre determinado instituto e isso transformará a
hermenêutica prospectiva em retrospectiva, não permitindo novas
formulações para o sistema estático. 6
É necessário no presente estudo demonstrar a imprecisão
do sistema dinâmico frente ao sistema estático. A jurisprudência
andou em um primeiro momento desconstituindo o sistema
estático, a norma do artigo 41 do CPP foi mitigada – que trata da
denúncia-, em um segundo momento reafirmou a citada norma e,
doravante, tornou a mitigar a lei para limitar a proteção ao cidadão
no processo penal.
No panorama jurisprudencial tem-se identificado algumas
correntes ideológicas que, em determinados momentos, permitem a
acusação genérica, em outros momentos a rechaçam.

BOBBIO, Noberto, Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1982.
5

CASARA, Rubens. Interceptação retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Rio de Janeiro:
6

Lumen Juris, 2004.

177
Evidentemente que essas decisões que aceitam tais acusações,
podem variar drasticamente de magistrado para magistrado, mas
é como se dentro do mundo ecumênico, esses pecados fossem
decididos de maneiras diferentes quando caíssem em mão de ‘deuses’
diferentes.
A isso, importará trazer um panorama das decisões sobre
acusação genérica, que inicialmente, tratam do Superior Tribunal de
Justiça e, em seguida, do Supremo Tribunal Federal.
A análise parte das jurisprudências mais relevantes, e com isso
se destaca a decisão que traz em seu corpo:

1. Em faltando à Acusação Pública, no ensejo do


oferecimento da denúncia, elementos bastantes ao
rigoroso atendimento do seu estatuto formal (Código
de Processo Penal, artigo 41), principalmente no caso de
crime societário, é válida a imputação genérica do fato-
crime, admitindo, como admite, a lei processual penal que
as omissões da acusatória inicial possam ser supridas a
todo tempo, antes da sentença final (Código de Processo
Penal, artigo 569).7

Assim, a jurisprudência pinçada inicia sua identificação que


nos casos de crimes societários se admitiria a aplicação da imputação
genérica, ou seja, a mera menção ao sócio da empresa. Não importava
que este tenha concorrido com a conduta delitiva, isso não feriria
nenhuma disposição legal nem constitucional pela ausência de
definição da conduta de cada sócio.
No mesmo sentido vem o seguinte julgado:

4. Se é certo que em faltando à Acusação Pública, no


ensejo do oferecimento da denúncia, elementos bastantes
ao rigoroso atendimento do seu estatuto formal (Código

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESP 124035/DF, 6ª Turma, min. Hamilton Carvalhido,


7

disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=124035&&b=ACOR&p=


true&t=&l=10&i=3>, acesso em 04 de março de 2011.

178
de Processo Penal, artigo 41), principalmente nos casos
de crime coletivo ou societário, tem-se aceito a imputação
genérica do fato-crime, sem a particularização minuciosa
das condutas dos agentes, co-autores e partícipes,
admitindo, como admite, a lei processual penal que as
omissões da acusatória inicial possam ser supridas a todo
tempo, antes da sentença final (Código de Processo Penal,
artigo 569)8

Veja que há uma inversão da identidade da peça acusatória.


Na inicial é o momento que a acusação delimita o quanto cada
agente teria participado da conduta delitiva, e é nela que reside à
possibilidade de desconstituição da alegação acusatória.
Permitir que isso fosse suprimido ao tempo da sentença é
permitir que o contraditório só possa se tornar perfeito ao fim
da instrução processual, o que transfere para o grau recursal o
contraditório.
O Acusado perde no primeiro momento a chance de
demonstrar a não conduta ou até de demonstrar o desconhecimento
dela, o acórdão transcrito é do mesmo julgador anterior, o apelo à
autoridade do que já foi decidido é feito pelo ‘tem-se aceito’, mas no
caso o próprio julgador tem aceitado.
Ambos os julgados citados foram realizados antes de 2004,
no ano de 2005 a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça se
reuniu e decidiu conjuntamente o seguinte:

O simples fato de ser sócio ou gerente de empresa


não autoriza a instauração de processo criminal por
crimes praticados no âmbito da sociedade, se não
restar comprovado, ainda que com elementos a serem
aprofundados no decorrer da ação penal, a mínima
relação de causa e efeito entre as imputações e a condição

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESP 238670/RJ, 6ª Turma, min. Hamilton Carvalhido,


8

disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=238670&&b=ACOR&p


=true&t=&l=10&i=7>, acesso em 04 de março de 2011.

179
de dirigente da empresa, sob pena de se reconhecer a
responsabilidade penal objetiva. A inexistência absoluta
de elementos hábeis a descrever a relação entre os fatos
delituosos e a autoria ofende o princípio constitucional
da ampla defesa, tornando inepta a denúncia. Precedentes
do STF. Denúncia rejeitada.9

Com mais autoridade, agora a corte especial do Superior


Tribunal de Justiça demonstrou que há a impossibilidade de ser
realizada a ampla defesa por conta de uma denúncia genérica.
Com a denúncia genérica, a que se rebatia em tal decisão,
passa-se a entender que não é possível realizar a ampla defesa com
tão parca descrição da conduta individualizada de cada suposto
agente delitivo.
Dentro do processo penal, é evidente que a sua existência
espelhada em um Estado Democrático de Direito só pode se dar por
perfeita quando há a possibilidade de realizar o contraditório.
É justamente o contraditório que permite que a defesa desfaça
a tese acusadora e salva o acusado do inferno, se assim desejar
identificar o sonho do acusador de colocar qualquer um atrás das
jaulas bem cuidadas que permitem a ressocialização do condenado.
Já que de lavra do mesmo ministro, no mesmo sentido existe
um voto da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, de 2006,
que deixa claro a impossibilidade de defesa do acusado quando há a
inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a relação entre
os fatos delituosos e a autoria isso ofende o princípio constitucional da
ampla defesa, tornando inepta a denúncia.10
Ao que tudo indica depois da decisão da corte especial
outras turmas do Superior Tribunal de Justiça se mobilizaram em

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Apn 404/AC 2005/0043751-1 – Corte Especial, min. Gilson
9

Dipp, disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=404&&b=ACOR&


p=true&t=&l=10&i=66>, acesso em 04 de março de 2011.
10
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RHC 19743/RO – 6ª Turma, min. Gilson Dipp, disponível
em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=19734&&b=ACOR&p=true&t=&l=
10&i=10>, acesso em 04 de março de 2011.

180
compreender de maneira mais clara a escara aberta no princípio da
ampla defesa quando presente a denúncia genérica.
Pelo evidente constrangimento que acarreta, denúncia de caráter
absolutamente genérico, sem ao menos um breve detalhamento da
atuação de cada um dos indiciados, sem o que, por certo, se inviabilizará
o exercício amplo do direito de defesa. 11 É o que se decidiu também
em 2006.
Subindo no grau de hierarquia judicial, analisa-se o
entendimento que permeia o Supremo Tribunal Federal, em 2003
diria que:

Reiterada a jurisprudência do STF de que, “nos crimes


societários, não se faz indispensável a individualização da
conduta de cada indiciado, discriminação essa que será
objeto da prova a ser feita na ação penal” (HC 65.369,
Rel. Min. Moreira Alves). Tal entendimento vem sendo
abrandado, havendo decisões no sentido de exigir-se, na
denúncia, a descrição mínima da participação do acusado,
a fim de permitir-lhe o conhecimento do que de fato lhe
está sendo imputado e, assim garantir o pleno exercício de
seu direito de defesa (...) Mesmo essa última orientação-
que convence o relator – não dispensa o exame de validade
da denúncia sob a ótica de cada processo.12

Assim, houve mitigação do entendimento de que havia a


possibilidade de se aceitar denúncias genéricas nos crimes societários.
Em voto da Min. Ellen Gracie fica demonstrado que Denúncia
que, ao narrar os fatos, deixa de demonstrar qualquer liame entre
o acusado e a conduta a ele imputada, torna impossível o exercício
do direito à ampla defesa. Imprescindível a descrição da ação ou
omissão delituosa praticada pelo acusado (...) continua explicando
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. HC 40005/DF – 5ª Turma, min. Paulo Gallotti, disponível
11

em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=40005&&b=ACOR&p=true&t=&l=
10&i=8>, acesso em 04 de março de 2011.
SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC 83.369-1 RS, Min Carlos Britto, disponível em: <http://www.
12

stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=79336>, acesso em 04 de março de 2011.

181
que O sistema jurídico penal brasileiro não admite imputação por
responsabilidade penal objetiva. 13 No mesmo sentido e pela mesma
relatora temos a decisão no IPL 1.656-0 SP. 14
Em 2004 o Ministro Cesar Peluso 15 decidiu que a denúncia
que, eivada de narração deficiente ou insuficiente, dificulte ou impeça
o pleno exercício dos poderes da defesa, é causa de nulidade absoluta
e insanável e complementa seu voto o entendimento que mesmo no
caso de crime contra o sistema financeiro nacional ou de outro dito
‘crime societário’, é inepta a denúncia genérica, que omite descrição
de comportamento típico e sua atribuição a autor individualizado, na
condição de diretor ou administrador de empresa.
Em sentido oposto seguiu-se voto de 2005, da lavra do Ministro
Gilmar Mendes: tratando-se de crimes societários, não é inepta a
denúncia em razão da mera ausência de indicação individualizada da
conduta de cada indiciado. 16
Em 2006 o citado ministro17 alterou seu entendimento para
mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de crimes
societários, entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as
condutas de cada indiciado, bastando a indicação de que os acusados
fossem de algum modo responsáveis pela condução da sociedade
comercial já que no caso deveria haver a necessidade de individualização
das respectivas condutas dos indiciados (...) observância dos princípios
do devido processo legal (...), da ampla defesa (...), contraditório (...) e
da dignidade da pessoa humana.
SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC IPL 1.578-4 SP, Min Ellen Gracie – Tribunal Pleno, disponível
13

em: < http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=80631>, acesso em 04 de


março de 2011.
Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=80638
14

SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC 83.301-2 RS, Min Cezar Peluso – Primeira turma, disponível
15

em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=79315>, acesso em 04 de


março de 2011.
SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC 86.294-2 SP, Min Gilmar Mendes – Segunda turma, disponível
16

em: < http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=363900>, acesso em 04 de


março de 2011.
SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC 86.879-7 SP, Min Gilmar Mendes – Segunda turma, disponível
17

em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=379856>, acesso em 04 de


março de 2011.

182
Esse entendimento foi acompanhado pelo Ministro Celso de
Mello no HC 84.436-7 SP18, também por Eros Grau19 no HC 93.683-1
ES, proferindo que a jurisprudência do Supremo (...) evolui no sentido
de que a descrição genérica da conduta nos crimes societários viola
o princípio da ampla defesa. É inepta a denúncia (...) fundada tão-
somente na circunstância de o paciente constar do quadro societário
da empresa, em fevereiro de 2008.
Já em agosto de 2008 houve um retrocesso jurisprudencial.
Enquanto que a denúncia deve se espelhar pelas regras do artigo 41, ou
seja, mostrar especificamente o fato com todas as suas circunstâncias
houve o seguinte entendimento:

5. Nos casos de autoria e participação em crimes societários


– como ocorre em relação ao paciente -, não é comum que
se obtenha prova direta acerca de determinados aspectos
relacionados às circunstâncias referentes a dados acessórios
à prática do delito. (...)
7. Ademais, eventuais omissões da denúncia poderão ser
suprimidas a qualquer tempo, desde que antes da sentença
fina (CPP, art. 569).20

Ora, houve regresso ao status aviltante anterior, de acordo


com o próprio ministro Eros Grau, no voto já transcrito houve uma
involução no sentido de obstar a defesa do acusado.
Qualquer omissão de denúncia não pode ser suprimida antes
da sentença final, apesar do nosso ‘democrático’ Código de Processo

SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC 84.436-7 SP, Min. Celso de Mello – Segunda turma, disponível
18

em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=516803>, acesso em 04 de


março de 2011.
SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC 93.683-1 ES, Min. Eros Grau – Segunda turma, disponível em:
19

<http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=523425>, acesso em 04 de março


de 2011.
20
SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC 88.525-0 SP, Min Ellen Gracie, Segunda Turma, disponível em:
< http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=547223>, acesso em 04 de março
de 2011.

183
Penal dizer no artigo 569 que isso poderá ser complementado antes
da sentença final, então o processo penal não será o local ideal para
se manifestar a defesa.
Por esse paradigma então é melhor que o acusado deixe o
processo correr e quando a acusação já estiver completada na fase de
instrução ele passe a se defender, uma única vez, e com a acusação
completa, ou seja, antes da sentença final.
Permitir acusação incompleta é permitir que a pessoa seja
processada por qualquer coisa que a instrução virá a preencher.
Esse entendimento volta a tomar força em 2009 pelo acórdão
de lavra do ministro Joaquim Barbosa 21, que impõe que não se exige
descrição pormenorizada de condutas em crimes societários. Ora, apesar
do próprio código de processo penal impor a individualização plena
da conduta em que participou o agente delitivo essa metamorfose foi
feita apenas com base na jurisprudência.
É o que nos remete ao próximo tópico em que se explicitará
em parte a necessidade de não se excluir do âmbito do processo a
possibilidade de ampla defesa.

3 A AMPLA DEFESA
A ampla defesa, longe de ser uma mitigação à velocidade no
julgamento do processo 22, como pretende o manual dos inquisidores,
é requisito indispensável no Estado Democrático de Direito para
pressupor a existência válida de um processo penal.
A não existência da possibilidade de defesa no processo o
transforma em mero procedimento, caminho ao qual se percorre
para efetivar uma vontade estatal, e isso não é processo penal.
Julio Maier 23 esclarece que em primeiro lugar, para que haja a
possibilidade de se defender é necessário que antes exista algo para
SUPREMO TRIBUAL FEDERAL. HC 98.840-7 SP, Min Joaquim Barbosa, Segunda Turma,
21

disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=603040>, acesso


em 04 de março de 2011.
No Manual dos Inquisidores a presença do advogado serve apenas para contribuir com o réu de
22

confessar o mais rápido possível e ainda por cima vem descrito no capítulo de obstáculos à rapidez
de um processo, EYMERICH, op. cit., p. 136-148.
MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal: fundamentos. 2 ed. Buenos Aires: Editores del Puerto,
23

2004, p. 553

184
se defender, apesar de ser extramamente lógico isso o óbvio para o
ouvido de alguns não é tão óbvio assim para a jurisprudência, como
se demonstrou.
O nome técnico daquilo que se defende se chama imputação. E
ainda por Julio Maier 24 o núcleo da imputação é uma hipótese fática
que representa uma ação ou omissão que lesa uma proibição jurídica
atribuída ao imputado, esta é a chave que permite abrir a porta da
possibilidade do acusado se defender de forma eficiente e que possa
negar todos os elementos da imputação. Nadie puede defenderse de
algo que no conoce! 25
Se presente a denúncia genérica a produção do conhecimento
se torna capenga, já que não há uma expectativa a ser preenchida,
não há a possibilidade de se encher aquele espaço que abala a
presunção de inocência já que qualquer conduta pode ser encaixada
pela instrução processual para afirmar a acusação.
A denúncia é gerador de expectativas em um processo penal. A
expectativa funde presunção e normalidade. (...) a expectativa antecipa
um preenchimento (toda a expectativa visa ser preenchida) e este
preenchimento é projetado a partir do que se presume expectável26.
Agora, na presença de uma denúncia genérica qualquer conteúdo
pode preencher a expectativa.
A defesa passa a não ter local para se desenvolver. Não sabe
o que desconstituir, o preenchimento da expectativa gerada com
a denúncia será sempre uma primeira afirmação até se alcançar a
sentença.
O verdadeiro será aquilo que eu posso de-compor, aquilo que
me permite reconhecer o caráter processualmente construído que lhe
subjaz 27. Como a verdade que deriva de uma denúncia genérica não
se decompõe já que sem a participação da defesa, se torna evidência,
não é processo.

idem.
24

ibidem, p. 559.
25

MARTINS, Rui Cunha. Estado de direito, evidência e processo: incompatibilidades electivas. In


26

Brandão, Cláudio et. all. Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2009, p. 544.
MARTINS, op. cit., p. 548.
27

185
A ampla defesa representa no nosso sistema o sustentáculo da
existência do processo. Sem ela é o mesmo que intuir que não há
processo. No mesmo sentido Gustvo Badaró 28 expõe que a defesa é
uma das premissas do silogismo que representa o mecanismo básico da
correlação entre acusação e sentença.
Ora, com a presença da denúncia genérica ter-se-á,
inegavelmente, ausência de tal premissa. Uma vez que a defesa
não poderá ser desenvolvida se a primeira parte do silogismo, a
acusação, for feita de modo despretensioso, sem definir o espectro
do que foi acusado.
A instrução processual é iter procedimental no qual há a
colheita das provas com a verificação da confirmação ou falsidade
da imputação quanto a autoria e também da existência do fato. A
sentença será o grau máximo de certeza quanto à imputação inicial
que era um projeto de sentença. 29
Se a acusação, a denúncia, for genérica, não há imputação hábil
a permitir a afirmação ou a confirmação da mesma. Simplesmente
não existe a dialética no processo e impede que o acusado se defenda,
o processo sendo mera dilação para condenar alguém.
Resulta daí a confirmação da validade teórica da noção
de procedimento e da sua necessidade. É a estrutura dialética
que impõe a distinção entre processo e procedimento. Não
mais se identifica a diferença em vista da possibilidade da ação,
onde exista, em ato ou em potência, um conflito de interesses 30
ou até a identificação de que irá existir processo onde houver
portador de interesse distinto do interesse do autor do ato. Só
se pode falar em processo enquanto se constatem ex positivo iure,
a estrutura e o desenvolvimento dialético.31 A base do processo

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. 2 ed. São Paulo:
28

Revista dos Tribunais, p. 37.


BADARÓ, op. cit., p. 77
29

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,
30

2006, p. 120-121.
FAZZALARI, op. cit., p. 120-121.
31

186
ocorre no contraditório: todavia, o processo é reconhecível cada
vez que, mesmo sendo reduzidos os poderes dos ‘contraditores’, são
realizadas entre eles posições simetricamente iguais.32
Denúncia genérica fere a própria razoabilidade da existência da
pena. A pena é o mal menor para o agente delitivo 33, segundo, para
permitir que o agente compreenda sua conduta e repare a sociedade
da prática e no fim, para permitir que a população, pela prevenção
geral, compreenda que a prática é proibida.
Não se deve pensar na reparação penal pela vingança, que
apenas justificaria o mal futuro com o mal passado, mas deve-se dar
importância ao mal passado e pensar no bem futuro. Isso impede a
aplicação de castigos que não se destinem à correção do ofensor ou
que sirvam de exemplo aos demais. 34
Se a pena é utilitarista deve congregar: a) a doutrina de prevenção
especial positiva, que visa corrigir o transgressor (quando este sabe o
que fez que é contrário ao direito); b) a doutrina de prevenção especial
negativa, que neutraliza o acusado (fazendo reparar a sociedade pelo
mal causado); c) a doutrina de prevenção geral positiva, por meio
da qual se reforça a fidelidade da ordem constituída; e por fim, d)
a doutrina de prevenção geral negativa, que pretende intimidar os
demais cidadãos mediante o exemplo da pena.35
Tal qual o crime de heresia a denúncia genérica limita os
demais cidadãos a identificar a conduta que deve ser penalizada e
assim a função da pena se torna inócua. Não se define o ato pelo qual
se persegue o agente e, assim, ninguém poderá se identificar com ele
e deixar de fazer a mesma conduta delitiva o que inibe a doutrina de
prevenção geral negativa.
Heresia é aquilo que é contrário a qualquer artigo de fé católica,
também pode ser entendido como heresia se a prática é contrária a
FAZZALARI, op. cit., p. 124.
32

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 6 ed. Madrid: Trotta, 2004, p. 332.
33

HOBBES, Thomas. Leviatã. Disponível em: <http://download389.mediafire.com /igeerh3lnhlg/


34

0ygymbfmjfj/LEVIAT%C3%83+-+THOMAS+HOBBES+DE+MALMESBURY.pdf> acessado em 04
de março de 2011, p. 55.
FERRAJOLI, op. cit., p. 262-263.
35

187
qualquer verdade que a Igreja tenha declarado, da mesma forma, será
heresia se for contrário aos livros canônicos. 36
Tudo que for contrário ao que os padres disserem que compõe
a verdade implícita nas escrituras será heresia, heresia e erro
são absolutamente sinônimos. Apenas duvidar da fé cristã já era
considerado heresia. 37
Como pode o cidadão deixar de praticar algum ato quando
não sabe definir que ato é heresia? Como pode a prevenção geral
negativa daquela conduta efetivar a legitimação da pena se acaso
não houver definição de que fato os sócios de determinada empresa
responderam como crime?
Essa indagação parte do próprio Claus Roxin 38: Pero, ¿qué ocurre
con la prevención general cuando resulta que el autor es incapaz de un
modo general de orientarse en las normas penales? E a essa pergunta
responde solenemente: cuando falta la culpabilidad también faltan
las necesidades preventivas, general y especial, de una pena. 39
Não é possível traçar a culpabilidade quando presente a
denúncia genérica ou quando presente crimes vagos, indeterminados,
abstratos. A população não se reconhece na prática, o indivíduo não
sabe o que fez e a prevenção se torna inócua.
A similitude entre crime aberto, heresia e denúncia genérica
é ampla! Note que no livro do Apocalipse de Pedro, não publicado
na bíblia, o medo do inferno converteu muitos à fé cristã com medo
de serem condenados 40. Mas como pode se converter alguém para
inibir uma conduta se ele nem sabe se é crime.
EYMERICH, op. cit., p. 33.
36

EYMERICH, op. cit., p. 34-35.


37

ROXIN, Claus. Culbpabilidd y prevención em derecho penal. tradução de Francisco Muñoz Conde.
38

Madrid: Instituto Editorial Réus, 1981, p. 175.


ibidem, p. 178. Sobre culpabilidade, utilizando o próprio autor, em poucas palavras define a
39

culpabilidade: que el concepto jurídico-penal de culpabilidad contiene ciertamente en sí algunos aspectos


preventivos, pero precisamente no otros, así que se producen, por ello, recíprocas limitaciones del poder
punitivo que ocupan lugares distintos según se trate de la fundamentación o de la determinación de la
pena, p. 185.
Documentário, Portões para o Inferno. Orginal Gates of hell. Produtores executivos: FITZPATRICK,
40

Kevin. Escritor DOST, Stephen. Produzido por Red Marble Media, Inc para History Channel, 2010.

188
Na divina comédia, por exemplo, onde se retrata a visão que
Dante Alighieri41 teve do Inferno pode-se perceber uma identificação
do pecado como algo que será reparado em seguida, no pós-morte.
Logo no primeiro nível aqueles que não foram batizados seriam
passíveis de punição no inferno de Dante.
Ninguém poderia escapar das garras do satan, o carrasco que
colocará em cheque com Deus os pecados humanos. E da mesma
forma ninguém poderá escapar do acusador se nunca se definir qual
a prática se acusa o réu.
Michel Foucault42 nos informa que por conta da doutrina geral
negativa, que visava inibir os cidadãos de praticar o mal, acabou se
refletindo no imaginário da população que assistia aos espetáculos
dos suplícios. Estes se identificavam com o condenado e não mais
com a ordem imposta, o juiz passou a ser visto como assassino e o
carrasco visto como criminoso, a vítima, o réu, o condenado passava
a ser um objeto de piedade e admiração.
Na inquisição, qualquer conduta poderia ser considerada
heresia! Com a denúncia genérica qualquer conduta delitiva pode
ser processada. Dentro do Estado Democrático de Direito a heresia é
a própria denúncia genérica!
Só que diferente da inquisição, a heresia citada por último
toma corpo com o abuso de autoridade de submeter um cidadão à
imprecisão dele ser processado por aquilo que nem se sabe se é crime,
por aquilo que nem se define se é passível de ser perseguido pela
esfera penal. Já que indefinível, não individualizado, simplesmente
jogado ao léu, sem critério e de forma irresponsável.
Com a denúncia genérica, ao invés de tão-somente se indicar
um pecado e colocar em cheque o acusado com Deus, na verdade, a
própria denúncia genérica é o pecado per se, e isso só demonstra que o
lugar do shaitan é justamente o lugar que quer tornar mais populoso.
41
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia – inferno. São Paulo: Atenas, 2003. Disponível em <http://www.
ebooksbrasil.org/adobeebook/inferno.pdf>, acesso 05 de março de 2011.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34 ed. Tradução de Raquel Ramalhete.
42

Petrópolis: Vozes, 2007, p. 13.

189
Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se
torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o
abismo também olha para dentro de você. 43
Por isso, se questionou, logo no de plano, denúncia genérica:
pecado de quem? Pecado do acusador que na verdade se identifica
mais com aquele que persegue já que não devia submeter o acusado a
suplício não amparado na lei, não amparado na constituição, e assim:
(rea)Viva a Inquisição!!!

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo se pauta na identificação do aviltamento que
representa a denúncia genérica. Esta tem sido utilizada quando o
poder público entende que é possível mitigar a definição da norma
obrigatória de conduta de individualizar as condutas quando do
oferecimento da denúncia.
A ausência de individualização da conduta e todas as
circunstâncias do crime se aproximam com a identificação da
inquisição de heresia, que torna a repressão penal capenga, já que o
perseguido não consegue definir qual conduta que é merecedora da
reprimenda penal.
Analisou-se a origem ecumênica de acusador, pecado e crime,
que representam um desenvolver arraigado na cultura humana, e
que sempre se buscou a idéia de equilibrar a balança do mal passado
com o mal futuro.
Heresia é pecado/crime indefinível, não consegue ilustrar
a conduta efetiva que deve ser reprimida no caráter geral pela
população.
A partir do século XXI a jurisprudência pátria andou no sentido
de aceitar a denúncia genérica, em seguida apresentou uma melhora
para rejeitar a denúncia genérica e no fim involuiu para retornar ao
status aviltante de permitir denúncias genéricas sem individualização
da conduta para crimes ditos societários.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 146.
43

190
A denúncia genérica impede a ampla defesa, fere a dialética
processual, encerra a primeira parte do silogismo lógico existente
no processo. Poderia ser complementada até a sentença final pelo
autoritário e fascista código de 1941.
Com essa visão perde o Estado Democrático de Direito, perde o
acusado e, neste momento, o acusador se confunde com o seu objeto
de perseguição, fere direitos para perpetuar a fúria e a ideologia
inquisitiva que dispensava a defesa.
A afirmação da necessidade da pena se esvai, já que o acusado
não tem capacidade de reprimir de sua conduta, indefinida, e a
população não consegue apreender a mensagem da reprimenda
penal, evitando as práticas futuras pois não se identificam com a
conduta reprimida.
Monstro e perseguidor da monstruosidade se transformam
numa coisa só, cada um com seu pecado e a seu tempo. Mas, uma
dúvida não resta: o mais execrável de todos é o do diabo, que trai
Deus e tudo aquilo que ele representa quando assume a função de
superlotar o hades sem cumprir com o mínimo indispensável do
artigo 41 do atual Código de Processo Penal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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______. HC 86.879-7 SP, Min Gilmar Mendes – Segunda turma,
disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.
asp?id=379856>, acesso em 04 de março de 2011.
______. HC 84.436-7 SP, Min. Celso de Mello – Segunda turma,
disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.
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193
______. HC 93.683-1 ES, Min. Eros Grau – Segunda turma, disponível
em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.
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em: < http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.
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______. HC 98.840-7 SP, Min Joaquim Barbosa, Segunda Turma,
disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.
asp?id=603040>, acesso em 04 de março de 2011.

194
DESCONSTRUINDO A ORDEM PÚBLICA E
RECONSTRUINDO A PRISÃO PREVENTIVA
Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo*

RESUMO:
Uma breve incursão em torno da prisão preventiva a partir de uma
análise retórico-analítica, com espeque nos estudos desenvolvidos
no âmbito da Filosofia do Direito. Nesse sentido, o texto propõe
uma análise filosófico-retórico em torno de um aspecto específico
do Processo Penal, qual seja, a questão da ordem pública enquanto
hipótese de decretação da prisão preventiva.

1 DESCONSTRUINDO A “ORDEM PÚBLICA”.


Quando se reflete sobre a “ordem pública” como hipótese de
cabimento da prisão preventiva (CPP, art. 312), o estudioso do assunto
defronta-se com um sério problema hermenêutico, dentre tantos
Mestre em Direito Público pela UFBA - Universidade Federal da Bahia na Linha de Limites do
*

Discurso com a dissertação: O ato de decisão judicial - uma irracionalidade disfarçada. Pós-Graduado
em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação
da UFBA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSAL. Professor de
Direito Penal da Universidade Salvador - UNIFACS; Professor de Processo Penal da Universidade
Católica do Salvador - UCSAL; Analista Previdenciário da Procuradoria Federal Especializada
do INSS. Autor do livro: AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. A importância dos atos de
comunicação para o processo penal brasileiro: o esboço de uma teoria geral e uma análise descritiva.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 215 p. Área de dedicação e pesquisa: Direito Penal, Direito
Processual Penal, Hermenêutica Jurídica e Filosofia do Direito.

195
outros. Tal problema refere-se à melhor conceituação que se pode
atribuir a tal expressão. E quando se reflete sobre o ato de conceituar
é preciso lembrar que todo conceito é uma metáfora (Nietzsche), vez
que é sempre a generalização de um evento singular e irreptível. 1
Aliás, entre o evento e a linguagem há sempre uma generalização
ao quadrado. Há sempre dois abismos gnosiológicos que se colocam
entre o evento e o conceito2. O primeiro se encontra entre o evento e
o pensamento que este desperta no observador. E o segundo, reside
entre o pensamento e o uso da linguagem. Linguagem que, como
se sabe, se vale do uso de conceitos. E os conceitos, por sua vez, são
metáforas da realidade que foi experimentada por meio do arsenal
sensorial humano, a partir dos quais se constitui a memória. Ah,
a memória, esse arquivo de metáforas, cárcere do aprendizado 3 e
depósito de culpas.
Diante disso, é possível concluir que não há uma identificação
entre conceitos e eventos4. Conceitos são como máscaras, ao mesmo
tempo em que escondem a individualidade do ator, auxiliam na
representação de um personagem5. A individualidade do ator é a
atuação do ser humano no teatro de sua existência. O personagem é
um papel da peça da vida6. Esta peça escrita por um único roteirista,
a linguagem7. Uma criança levada que joga dados com os signos8,
que brinca com o silêncio9, que se vale dos gestos e abusa da imagem.

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira. Tradudor: Fernando de Moraes Barros. São
1

Pualo: Hedra, 2007, p. 9.


ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo:
2

Saraiva, 2009, p. 212.


BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan D. Imposturas Intelectuais: O Abuso da Ciência pelos Filósofos Pós-
3

Modernos. São Paulo: Record, 2006, p. 56.


CÍCERO, Marco Tulio. Retórica à Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, p. 33.
4

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja Editora, 1992, p 45.


5

LUHMAN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução: Ciro Marcondes Filho. São
6

Paulo: Paulus Editora, 2002, p. 23.


BLUMENBERG, Hans. Las realidades em que vivimos. Madrid: Paidos, 1999, p 102.
7

AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O ato de decisão judicial: uma irracionalidade disfarçada.
8

No prelo, p. 193.
CUNHA, Tito Cardoso. Silêncio e Comunicação: Ensaio sobre uma retórica do não-dito. Lisboa:
9

Livros Horizonte, 2005, p. 49.

196
Eis o que é a razão moderna, um milagre derivado da fé humana
na linguagem10, a mais sofisticada das formas de controle. E, como
ensina Tércio Ferraz Jr., poder é controle11.
Ciente destes esclarecimentos, a primeira recomendação que
é cabível quanto ao uso da expressão “ordem pública” é que seja
entoado pela doutrina o réquiem à ingenuidade. Não convém discutir
qual seria, em tese, a melhor definição de tal expressão, vez que todo
significante tem o seu significado determinado pelo intérprete diante
das peculiaridades de cada caso e segundo os valores determinantes12.
Em suma, se o significante é semântico e sintático, todo significado
é pragmático. Logo, discutir se a expressão “ordem pública” deve
ser entendida como clamor público ou como a prática de um crime
de relevante gravidade13, por exemplo, é uma discussão inútil. Tal
discussão só tem algum sentido para os adoradores da legalidade e os
beatos da segurança jurídica. Mas é preciso adverti-los: a credulidade
é irmã da ingenuidade14.
Ademais, é preciso anotar que a linguagem não é o produto de
uma convenção racional humana em torno do emprego de alguns
signos. Isto porque, se assim fosse, forçoso seria admitir que a
razão precede à linguagem, o que é, por óbvio, um absurdo lógico.
Afinal, como é possível haver razão sem uma linguagem prévia que
a constitua? Sendo assim, a origem da linguagem não se encontra
em uma convenção, mas no instinto humano. E aqui, uma vez mais,
é preciso invocar Nietzsche, e lembrar que o instinto humano é uma
finalidade criada pelo próprio homem de forma inconsciente15. Essa
finalidade não é outra, senão a de sobrevivência. Em uma só palavra,
ADEODATO, João Maurício. A Retórica Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 27.
10

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões sobre o poder, a liberdade, a
11

justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2002, p. 21.


ROSS, Alf. Tû-Tu. Tradutor: Genaro Carrió. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1976, p. 31.
12

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro:
13

Lumen Juris, 2010, p. 251.


NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Tradutor: Mario Ferreira dos Santos. Petropólis:
14

Vozes, 2009, p. 24.


NIETZSCHE, Friedrich. Retórica. Tradutor: Tito Cardoso Cunha. Lisboa: Vega, 2002, p. 44.
15

197
a origem da linguagem se confunde com a necessidade de sobreviver
do homem. Logo, a linguagem é tentativa inconsciente do homem
de sobreviver em um mundo que lhe é inóspito e, ao qual, não se
encontra adaptado.
A linguagem esconde consigo muitos outros mistérios16. Um
deles é a sua relação intrínseca com o tempo. De um lado, somos
levados a pensar que o tempo é um produto da linguagem, vez que
se trata de uma convenção racional humana. Entrementes, o ser
humano, em um dado momento da história, não se sabe exatamente
qual nem em que lugar, começou a constituir uma linguagem. Em
outros termos, a linguagem é um acontecimento histórico, mas, por
outro lado, a história é produto da linguagem17. A linguagem surgiu
no tempo, e o próprio tempo levou o homem a se esquecer da origem
dela. Eis a teia na qual o bicho homem se encontra envolvido. Não
sabe do que fala, nem quando começou a falar, só sabe que fala e que
precisa falar, ainda que não saiba, exatamente, se fala do mundo que
o cerca, ou, apenas, e o tempo todo, de si próprio18.
Esclarecida a natureza metafórica peculiar a todo conceito, logo
se percebe que o conceito, “ordem pública”, pode ser desconstruído.
Desconstruir não é destruir conceitos, mas reconstruí-los (Derrida)19
de acordo com a singularidade do caso e dos valores envolvidos.
Afinal, todo conceito é uma caricatura da percepção20. E a percepção,
esse fenômeno que o processo penal nomina como prova, é
sempre limitada. Como limitada é a compreensão humana sobre a
singularidade do evento, pois o todo é demais para o ser humano
(Jacinto Coutinho)21. E o ser humano, em tempos de modernidade
BLUMENBERG, Hans. Las realidades em que vivimos. Madrid: Paidos, 1999, p.86.
16

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira. Tradudor: Fernando de Moraes Barros. São
17

Pualo: Hedra, 2007, p.22.


BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan D. Imposturas Intelectuais: O Abuso da Ciência pelos Filósofos Pós-
18

Modernos. São Paulo: Record, 2006, p. 62.


DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 37.
19

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petropólis: Vozes, 2005, p. 148.


20

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza” de Francesco


21

Carnelutti, para os operadores do Direito, in Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de


Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 65.

198
tardia (ou pós-modernidade), não é o super-herói racionalista
de Descartes, mas o ser carente de Blumenberg22. Assim falou
Zaratrusta23!
Logo, o artigo 312 não é uma norma, mas um texto de lei
(Sobota)24. E o texto de lei não se confunde com a norma, antes
colabora de forma parcial com a sua produção. A norma é o fruto
da relação dialética entre texto de lei, caso e valor (Adeodato)25.
Enquanto a lei é genérica, a norma é concreta. Enquanto a lei é
declarada, a norma é construída. E, enquanto existir um seminarista
doutrinado pela Escola de Exegese haverá o desejo de que o processo
penal busque uma verdade (real, formal, processual, ou seja, lá qual
for...) e de que o intérprete alcance o espírito da norma, como se o
processo hermenêutico fosse uma “lipoaspiração epistemológica”
(Streck)26. Pobres fiéis!

2 RECONSTRUINDO A PRISÃO PREVENTIVA.


Ora, se a expressão “ordem pública” não é norma, e se a norma
não é uma entidade fantasmagórica errante possuída por um espírito
obssessor que precisa ser exorcizado pelo sacerdote intérprete,
então, é possível reconstruí-la. Eis o ponto, é preciso reconstruir, em
tempos de sociedade do espetáculo (Debord)27, o conceito de “ordem
pública”, de sorte a adequá-lo à realidade social contemporânea (bem
diferente daquela existente nos idos da década de 40, quando o Código
de Processo Penal vigente foi gestado) e harmonizá-lo à natureza

BLUMENBERG, Hans. El mito y el concepto de realidad. Madrid: Herder, 2004, p. 201.


22

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Tradutor: Mario Ferreira dos Santos. Petropólis:
23

Vozes, 2008, passim.


SOBOTA, Katharina. “Nao mencione a norma!”. Anuário dos Cursos de Pós-graduação em Direito, n.
24

7. Tradutor: João Maurício Adeodato. Recife:Ed. Universitaria da UFPE, 1996, p. 129.


ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo:
25

Saraiva, 2009, p. 214.


STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção
26

do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 152.


DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo – Comentários sobre a sociedade do espetáculo. São
27

Paulo: Contraponto Editora, 1997, p. 71.

199
cautelar da prisão preventiva. Em suma, reconstruir a “ordem pública”
é salvaguardar a tão combalida presunção de inocência. Sempre tão
propalada, nunca antes pela média tão questionada!
Reconstruir a “ordem pública” implica compreendê-la com os
olhos de Orwell (1984) 28 e com a advertência de Foucault 29 inspirada
em Bentham.30 Se é o “clamor publicado” que importa “ordem
pública”, então, é a partir da lógica do “reality show” que esta expressão
precisa ser reconstruída pelo Processo Penal contemporâneo.
Isto porque na sociedade do espetáculo a eloqüência das imagens
substituiu a sonolência das palavras. As relações sociais tornaram-
se representações cênicas e os indivíduos foram substituídos por
pessoas. E, como se sabe, ser pessoa é atuar (Hobbes)31 segundo o
enredo da cultura de massa estabelecido pelas modernas condições
de produção. Em suma, quando o mundo real se tornou uma
“república das imagens”, o Processo Penal se tornou um “game show”
e a sentença uma mercadoria “fast food” (Baudrillard)32, os meios de
comunicação de massa se transformaram em máquinas de alienação
do indivíduo (Ramonet).33
Ora, quando os meios de comunicação de massa foram alçados
a tal condição, a média se tornou o “grande irmão”, que tudo vê e
a todos vigia. E, neste instante, foi reconstruído o significado da
expressão “ordem pública”. O clamor público que antes justificava
a decretação a prisão preventiva, tonar-se, então, motivo de
manutenção da liberdade do acusado durante o curso do processo.
Afinal, para que prender alguém que se encontra vigiado? Quando
o inquérito policial se transformou em chamada de abertura do
28
ORWELL, George. 1984. Tradutores: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009, passim.
29
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – História da violência nas prisões. Petropólis: Vozes, 2007, p. 89.
BENTHAM, Jeremy. O Panoptico. Tradutor: Tomza Tadeu da Silva. São Paulo: Autêntica, 2008, passim.
30

31
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradutor: Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 48.
32
BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade do Consumo. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 123.
33
RAMONET, Ignacio. A Tirania da comunicação. Petropólis: Vozes, 2007, p. 46.

200
telejornal que vai ao “ar” em rede nacional, o modelo do panóptico
foi reinventado, e o acusado de desconhecido se tornou celebridade.
Para que prender alguém que já perdeu a liberdade?
Por conseguinte, quando as relações sociais se tornaram mais
complexas, as instâncias informais de controle (a exemplo, a religião)
se diluíram e o Direito experimentou uma “sobrecarga ética”
(Adeodato)34, o Processo Penal se viu obrigado a se adaptar a essa nova
realidade. E, neste contexto, a expressão “ordem pública” tornou-se
motivo de manutenção ou concessão da liberdade ao acusado (CPP,
artigo 310, parágrafo único). Em outras palavras, a “ordem pública”
transformou-se em hipótese de revogação da prisão preventiva, por
ausência de qualquer cautelaridade (inexiste o periculum libertatis)
e em respeito à preservação da presunção de inocência (princípio
que determina a subsidiariedade do instituto da prisão provisória).
Afinal, qual é a possibilidade de fuga para o acusado quando este tem
o seu rosto mostrado, repetidas vezes, em todo o território nacional?
Qual é o perigo que a “liberdade” do acusado traz ao processo, se ele
já se encontra vigiado pelas câmeras e encarcerado pelos holofotes?
Se a expressão “ordem pública” não é um disfarce
hermenêutico (De Man)35 para transformar a prisão preventiva
em medida de antecipação de pena, então, força é convir que
assista razão à tese aqui sufragada. Quando o Processo Penal se
tornou a novela diária do tele-expectador alienado, o acusado se
tornou o Cristo a ser crucificado. E ao acusado resta rogar aos
céus e repetir as palavras do Messias dos cristãos: “Pai, perdoa-
lhes, porque não sabem o que fazem”! 36

ADEODATO, João Maurício. A Retórica Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 31.
34

DE MAN, Paul. Alegorias da leitura – Linguagem figurada em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust.
35

Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 26.


DIVERSOS AUTORES. Bíblia Sagrada (Antigo Testamento. Novo Testamento. Evangelhos. Atos dos
36

Apóstolos). Tradução: Antônio Pereira de Figueiredo, notas de José Alberto de Castro Pinto. Rio de
Janeiro: Encyclopedia Britanica, 1987, p. 289.

201
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Saraiva, 2009.
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Paulo: Saraiva, 2009.
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uma irracionalidade disfarçada. No prelo.
4. BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade do Consumo. Lisboa: Edições 70,
2008.
5. BENTHAM, Jeremy. O Panoptico. Tradutor: Tomza Tadeu da Silva. São
Paulo: Autêntica, 2008, passim.
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Testamento. Evangelhos. Atos dos Apóstolos). Tradução: Antônio Pereira
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8. ______. El mito y el concepto de realidad. Madrid: Herder, 2004..
9. BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan D. Imposturas Intelectuais: O Abuso da
Ciência pelos Filósofos Pós-Modernos. São Paulo: Record, 2006.
10. CÍCERO, Marco Tulio. Retórica à Herênio. São Paulo: Hedra, 2005.
11. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e
Certeza” de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito, in Anuário
Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002.
12. CUNHA, Tito Cardoso. Silêncio e Comunicação: Ensaio sobre uma
retórica do não-dito. Lisboa: Livros Horizonte, 2005, p. 49.
13. DE MAN, Paul. Alegorias da leitura – Linguagem figurada em Rousseau,
Nietzsche, Rilke e Proust. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
14. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo – Comentários sobre a
sociedade do espetáculo. São Paulo: Contraponto Editora, 1997.

202
15. DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
16. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões
sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2002.
17. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja Editora, 1992, p 45.
18. ______. Vigiar e punir – História da violência nas prisões. Petropólis:
Vozes, 2007.
19. HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradutor: Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
20. LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade
Constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
21. LUHMAN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução:
Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus Editora, 2002.
22. NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Tradutor: Mario
Ferreira dos Santos. Petropólis: Vozes, 2009, p. 24.
23. ______. Assim falava Zaratustra. Tradutor: Mario Ferreira dos Santos.
Petropólis: Vozes, 2008, passim.
24. ______. Retórica. Tradutor: Tito Cardoso Cunha. Lisboa: Vega, 2002.
25. ______. Sobre a verdade e a mentira. Tradudor: Fernando de Moraes
Barros. São Pualo: Hedra, 2007.
26. ORWELL, George. 1984. Tradutores: Heloisa Jahn e Alexandre Hubner.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, passim.
27. RAMONET, Ignacio. A Tirania da comunicação. Petropólis: Vozes, 2007.
28. ROSS, Alf. Tû-Tu. Tradutor: Genaro Carrió. Buenos Aires: Abeledo
Perrot, 1976.
29. SOBOTA, Katharina. “Nao mencione a norma!”. Anuário dos Cursos
de Pós-graduação em Direito, n. 7. Tradutor: João Maurício Adeodato.
Recife:Ed. Universitaria da UFPE, 1996.
30. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma
exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2000.
31. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petropólis: Vozes, 2005.

203
O JUIZ, SUAS ESCOLHAS E A DIMENSÃO
CONSTITUCIONAL DA LIMITAÇÃO PENAL
Alexandre Bizzotto*

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Sou juiz. Eis um modo de identificação bastante comum entre
àqueles que exercem a função estatal no cargo de magistrado. Até aqui
não há maiores problemas, contudo tais começam a ocorrer quando
muitos confundem o cargo com a sua própria forma de ser. Esta
situação apequena a função judicial na medida em que forma uma
camisa de força abstrata cimentada pelo idealismo estéril, deixando
em plano inferior à percepção do humano. Há o esquecimento do
que todos nós somos sem o que somos deixe os ocupantes do cargo.
É aí que tudo pode ficar confuso psicanaliticamente ao se lidar com
o concreto da atividade jurisdicional.
A máscara da racionalidade, por mais que seja regada pela
inteligência não tem condições de suprimir a riqueza das reações
humanas. Traduzindo para o assunto que se está tentando tatear:
o fato de exercer uma função estatal que procura fazer valer a
racionalidade da Constituição, da lei e dos princípios jurídicos
perante os fatos humanos não tem a força de apagar as pistas do
humano, eventualmente juiz. Por mais que se construam mecanismos
racionais de controle formal, o fracasso deste é o resultado esperado.
*
Juiz de Direito em Goiás. Membro fundador do GEPeC. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.

205
No exercício de qualquer atividade racional, acrescenta ao
humano a percepção da impossibilidade de aniquilar a sua natureza.
O pensar racional, o agir racional, não obstante normalmente seja
um bom norte para se trilhar, às vezes até mesmo revestido de
nobreza, não afasta o seu significado redutor. Dogmatizar os ideais,
transformando-os em práticas do cotidiano social, por melhor que
seja a estética, é cair numa emboscada de si próprio, o que, de algum
modo, ecoa dolorosamente nos outros.
Este quadro de provocação de dor é sentido com impacto ainda
mais forte quando quem detém alguma espécie de posição racional
sob terceiros, se reveste do manto do absoluto, negando-se com isto
a presença da inerente fraqueza humana para fazer que a dor recaia
impiedosa sobre os outros. A deficiência humana é escondida com a
projeção sádica nos terceiros.
O exercício da função judicante se constitui em campo fértil
para permitir o gozo sádico1 do magistrado, principalmente quando
este atua no multifacetado sistema penal. Se a própria racionalidade/
ciência penal legislativa impõe a identificação, julgamento e eventual
punição à terceiro, a subliminar expiação para com o diferente por
meio da subjetividade do humano juiz criminal amparado pela
legislação é tarefa que se torna bastante facilitada, podendo revelar-
se quase um prazer.
É vital ao magistrado criminal entender tanto a inerência de
sua debilidade humana como captar a falibilidade dos instrumentos
colocados para a interpretação, ela, sempre subjetiva. Aceitar tais
falhas, trabalhar com elas e, mais do que isso, retirar proveito de suas
lições é fundamental para que os fatos do cotidiano jurisdicional
sejam encarados sem que sejam estabelecidas verdades, pois todas
elas desabam tais quais castelos de areia seca2.
Integrar um processo de interpretação pessoal que envolve
comandos subjetivos e sociais com o objetivo de ultrapassar óbvias
“A sociedade tem a necessidade de punir pessoa para “limpar-se” de sua má consciência e para
1

exorcizar os instintos de destruição” (SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica:


introdução a uma leitura externa do direito, p. 156).
Expressão utilizada por Eduardo Galeano em seu livro O teatro do bem e do mal, p. 14.
2

206
resistências dentro do contexto do sistema penal, pode até exigir um
pouco de conhecimento sobre onde se está situado, mas o que importa
mesmo, desde que se opte por sair da posição da comodidade, é a
manifestação da vontade por meio de escolhas.
Existem lados, mesmo que desinteressado em relação às partes.
Acredita-se ser possível escolher o exercício da função jurisdicional
como local de combate contra as violências praticadas em nome do
Estado, mesmo que para tanto este juiz criminal aja legitimado (é
inevitável) por meio da violência do discurso autorizado da função.
A consciência desta flagrante incoerência deve ser assumida em
favor de uma postura de resistência justificada na obsessão de limitar
o Estado Penal e minimizar os danos que as limitações pessoais que
cada magistrado enxerga.
Não há que se alegar a ignorância, pois o exercício da
magistratura criminal, mesmo quando se tem o objetivo de limitar o
Estado, se forem olhadas as indecências cometidas no sistema penal
e a situação daqueles que sequer são alcançados pela existência do
Estado, não deixa de ser uma forma de legitimação das barbaridades.
Fica caracterizado quase um vazio de sanidade.
Todavia, enquanto sujeito do sistema (e enquanto este existir),
não pode o magistrado ignorar os seus nefastos resultados visíveis
e, para angústia de alguns, a esterilidade prática dos discursos
abolicionistas para a realidade de boa parte dos casos concretos.
Assim, na assumida condição de juiz/capitão do mato da
atualidade, cabe ao magistrado optar, nem que seja para resgatar
uma sanidade perdida, em persistir na manutenção de um discurso
contra - hegemônico sobre o alcance punitivo, defendendo não ser
admissível para a função jurisdicional compactuar com o genocídio
penal que o cotidiano nos mostra.

2 A VERDADE E AS SUBJETIVIDADES
Vale ser salientado que a complexidade do mundo atual, dentre
outros resultados, provoca o crescente sentimento de insegurança.

207
O agigantamento do Estado Penal com o consequente aumento do
controle criminal 3 é apresentado como a resposta social adequada
para se refrear o humano. Neste quadro, a contrapartida a ser paga
é a debilitação das estruturas de proteção aos direitos fundamentais.
Nesta perspectiva, a atividade fim do Judiciário ganha especial
importância.
Luigi Ferrajoli ao discorrer sobre a função jurisdicional no
contexto do Estado de Direito adverte que o juiz, “diversamente dos
órgãos dos Poderes Legislativo e Executivo, não deve representar
nem maiorias nem minorias. E o consenso do eleitorado não só
é desnecessário, mas pode ser até mesmo perigoso para o correto
exercício das suas funções de averiguação da verdade e de tutela dos
direitos fundamentais das pessoas por ele julgadas”. 4
Pela lição do autor italiano, depreende que a averiguação da
verdade e a tutela dos direitos fundamentais são os objetivos que
norteiam o desempenho independente da função jurisdicional.
Aceitando-se como ponto de partida para a discussão as
premissas apresentadas, impõe-se ponderar, para melhor entender
o exercício da atividade jurisdicional criminal e a sua dissonância
com a justificativa da jurisdição pautada na defesa das maiorias, qual
é o perfil que pode ser dado à busca da verdade e qual é o limite à
proteção aos direitos fundamentais.
O discurso da verdade tem a capacidade de provocar grande
impacto no receptor do discurso5 ao justificar, sob o manto da
infalibilidade, subjetivas escolhas e narração sobre as inúmeras
hipóteses existentes com o objetivo de construir ao narrador uma
3
“O método penal, além de ter ficado mais proeminente, se tornou mais punitivo, mais expressivo,
mais ligado à segurança. Preocupações especificamente penais, tais como a certeza e a
determinação da pena, a condenação e o tratamento severo aos criminosos e a proteção do público
foram priorizados” (GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea, p. 377).
Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 476.
4

Nas palavras de Tercio Sampaio Ferraz JR. o “discurso é um ato entre homens e deve ser concebido
5

como ação linguistica, isto é, ação dirigida a outros homens, em oposição ao mero agir” (Direito,
retórica e comunicação, p. 03).

208
posição favorável sobre o receptor. É uma relação de poder. Verdade
e poder andam juntos.
O poder se manifesta na produção de verdades. Basta lembrar
o que a inquisição realizou na Idade Média6. A utilização da verdade
se presta aos interesses daqueles que procuram afirmar as suas idéias.
“Verdades são ilusões que foram esquecidas como tais”. 7
O conhecimento, na medida em que fabrica verdades, fortalece
a manifestação dos poderes. 8 Para Adorno e Horkheimer, o poder
e o conhecimento não passam de sinônimos9. Uma única verdade
humanamente não existe, traduzindo-se a sua afirmação em
comodidade para as subjetividades.
Cada pessoa contribui com a sua vontade de poder para
elaborar sua aparência de verdade por meio de suas interpretações.
Nenhuma destas tem em si a verdade. Não existem fatos, mas sim,
interpretações10.
A partir do momento em que se afirma à importância da
interpretação com a negação da apropriação em si da verdade, deve-
se ter consciência da impossibilidade de que o intérprete possa
interpretar fora do objeto interpretado. Há toda uma interação entre o
intérprete e o objeto, logo, depreende-se, não há neutralidade. Todas
as versões não passam de meras interpretações que por inúmeros
motivos podem ou não se tornar “verdades” acalentadas.
Servindo como instrumento para justificar as verdades
escolhidas e negar as inúmeras outras realidades, a ciência apresenta-
Ao se referir a respeito da inquisição e a manipulação da verdade, Leonardo Boff aponta que os
6

“inimigos da verdade e da reta doutrina (ortodoxia), os hereges verdadeiros ou presumidos devem


ser perseguidos lá onde estiverem e exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes, identificar
os acenos do coração, desmascarar idéias que possam levar à heresia. Contra o mal absoluto – a
heresia – valem todos os instrumentos e todas as armas” (Prefácio do livro Manual dos inquisidores
de EYMERICH, Nicolau; LA PEÑA, Francisco de, p. 11).
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade, p. 101.
7

Salo de Carvalho, sob o prisma do sistema inquisitório demonstra como a verdade é manipulada
8

conforme os interesses momentâneos. (Revisita à desconstrução do modelo jurídico inquisitória, p.


255/277. WOLKMER, Antônio Carlos (org) Fundamentos de história do direito).
Dialética do esclarecimento, p. 18.
9

10
“Também o sujeito que interpreta, portanto, é apanhado no jogo da interpretação, ele próprio é
apenas uma posição perspéctica de uma vontade de poder” (VATTIMO, Gianni. Introdução a
Nietzsche, p. 79).

209
se como a detentora das justificações do conhecimento. O que não
passa por ela é descaracterizado como saber11. Tal postura enfraquece
os valores da vida, tão caros à completude humana. Os instintos
dionisíacos são colocados de lado em favor do culto ao apolíneo. 12
Nas ciências criminais este quadro é nitidamente detectável.
Inúmeras são as formas reducionistas de enfrentar os episódios
da vida. Verdades são pontilhadas para darem respaldo ao que se
quer reconhecido como valor social aceitável e afastar da realidade
admitida o que transborda a moldura previamente pincelada.
Cumpre novamente ressaltar que, a par de todo o esforço da
sociedade de fazer com que seus racionais modelos científicos sejam
aceitos e obedecidos pelo escudo da alegada maioria, o fogo do
humano não se apaga. Ele está armazenado em todas as suas reações.

3 A VERDADE E O PROCESSO PENAL


Adentrando mas especificamente no processo penal, de início
convém ser repudiado o senso comum teórico13 que, sem questionar
o uso argumentativo da verdade e os postulados inquisitoriais do
Código de Processo Penal, caminha no sentido de retratar o objeto
do processo penal como sendo a perseguição da verdade real. Tal
verdade é humanamente inatingível, porquanto ela está no todo e a
percepção deste é demasiada para todos nós.14 Todo conhecimento

Adorno e Horkheimer lembram que “o esclarecimento é totalitário” (Dialética do esclarecimento, p. 19).


11

12
“Pretendendo substituir o mundo da verdade ou a verdade do mundo, pelas belas formas, a arte
apolínea deixa de lado algo essencial; virando as costas para a realidade, dissimulando a verdade,
ela desconsidera o outro instinto estético da natureza que não pode ser esquecido – o dionisíaco”
(MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade, p. 20/21).
13
Luiz Alberto Warat chama de “senso comum teórico” “a essa montagem de noções - representações
- imagens - saberes, presentes nas diversas práticas jurídicas, lembrando que tal conjunto funciona
como um arsenal de ideologias práticas. Em outras palavras, essa montagem corresponde a
normas que disciplinam ideologicamente o trabalho profissional dos juristas.” (In: http://members.
fortunecity.com. Dia 09.12.10).
14
“Por isso, a verdade de uma coisa nos foge até que nós não possamos conhecer todas as outras coisas
e, assim, não podemos conseguir senão um conhecimento parcial dessa coisa. E quando digo uma
coisa, refiro-me, também a um homem. Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é
demais para nós” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, dúvida e certeza”,
de Francesco Carnelutti, para os operadores do direito. In: Anuário ibero-americano de direitos
humanos (2001/2002)), p. 175.

210
humano é parcial, logo, tudo aquilo que se capta no processo penal é
mera partícula do todo.
Conforme lembra Alexandre Morais da Rosa, a “verdade real
é empulhação ideológica que serve para “acalmar” a consciência de
acusadores e julgadores. O que existe é a produção de significantes
e uma decisão no tempo e espaço”. 15O discurso da verdade real se
constitui em instrumento utilizado para a defesa velada de certas
vantagens a favor da pretensão acusatória no desenvolvimento do
procedimento penal.
A crença na busca da verdade por meio do processo penal
precisa ser refutada para se entender que o resultado apurado em
cada persecução penal se constitui em mera versão eleita pelos
presentantes da vontade estatal mediante a premissa teórica de que
tal vontade encontra o respaldo dos valores normativos que regem o
convívio social. Não se chega a uma verdade por meio do processo,
mas sim a uma construção dialética de uma narração mediante a
intervenção dos partícipes do processo.
A absorção do caso penal16 pelo Estado, com toda a sua
potencialidade de dor exige a constante manutenção de canais de
comunicação entre os envolvidos na questão. A complexidade das
relações exige a contínua alimentação de informações a respeito
dos fatos e suas circunstâncias para que seja moldada uma situação
dialogal de compreensão possível.
No processo penal, necessário instrumento de limitação ao
poder punitivo, às narrativas sobre as partículas captadas pelas
subjetividades devem ser respeitadas, respaldando-se o direito de fala
e o de escuta17 conforme os comandos estabelecidos na Constituição
da República.

http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/ Dia 07.04.09


15

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal, p. 135.


16

Felipe Vaz de Queiroz em sua dissertação de mestrado defendida na PUCRS e não publicada que
17

denominou de A atividade (Ana) Crônica do juiz criminal brasileiro propugna pela qualificação da
escuta como algo fundamental para o juiz criminal. Por sua vez, Salo de Carvalho nos adverte sobre
a “necessidade de se conferir a escuta ao processado. A radicalidade da cisão pressupõe sistema
no qual os atores processuais tenham alta capacidade de escuta do discurso do outro, do sujeito
que não perderá sua condição de cidadania em decorrência do processo de criminalização e do
submetimento à punição” (Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: Criminologia e
sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Org: GAUER, Ruth Maria Chittó, p. 163).

211
A contraposição entre os valores debatidos com as pertinentes
possibilidades de refutabilidade é importante meta a ser garantida
na discussão do caso penal. Neste quadro se torna decisivo
conferir relevância ao contraditório, que nas palavras de Flaviane
de Magalhães Barros deve ser “compreendido como o espaço
procedimentalizado para garantia da participação dos afetados na
construção do provimento”. 18
Pouco valor tem a “verdade substancial” no processo penal,
pois tal é inalcançável. Mesmo para Luigi Ferrajoli a noção de verdade
não “pretende ser a verdade; não é obtida mediante indagações
inquisitivas alheias ao objeto pessoal; esta condicionada em si mesma
pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa”. 19
A missão legitimadora do processo penal é a observância
das regras do jogo para a construção contínua de paradigmas de
respeito aos direitos fundamentais. O que se reserva ao processo é a
imposição ética. Não por intermédio do seu fim, mas sim como meio.
O fundamental é a asseguração dos instrumentos constitucionais
responsáveis pela proteção dos direitos humanos.
Depreende-se que a função jurisdicional, além de ser essencial
na garantia de cada caso concreto, com o juiz servindo-se de todos os
meios possíveis para tutelar os direitos fundamentais envolvidos, tem
o objetivo ainda maior de servir como referência para a manutenção
e a expansão à proteção dos direitos humanos de primeira dimensão
contra os avanços do Estado Penal.
Logo, conclui-se que a averiguação da verdade como finalidade
jurisdicional apontado por Luigi Ferrajoli redunda no objetivo
substancial único da tutela dos direitos fundamentais. No exercício
de sua atividade de normatizar o caso penal concreto, cabe ao juiz
primordialmente velar pelos direitos fundamentais.

(Re) forma do processo penal: comentários críticos dos artigos modificados pelas leis n. 11.690/08 e n.
18

11.719/08, p. 18.
Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 38.
19

212
4 O JUIZ CRIMINAL E A CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA
Ao juiz, a Constituição da República de 1988, em consonância
com a função jurisdicional, conferiu o papel de garantidor dos
fundamentais. Neste sentido, se torna imperioso que o Código de
Processo Penal, legislação originada de período totalitária, seja
adaptado no exercício da atividade jurisdicional aos mandamentos
democráticos constitucionais. A validade de todo o ordenamento
jurídico é àquela transmitida pela Constituição20 e materializada
pelas escolhas estatais.
No exercício de sua atividade, o juiz deve ter com a
Constituição uma íntima relação de apreço pela sua observância A
tutela constitucional é a melhor amiga de um magistrado criminal
consciente de seu papel de agente político.
É difícil ignorar, no entanto, que tem prevalecido nas relações
sociais um olhar massificado pelos interesses econômicos, no
qual as questões relacionadas à dignidade humana são amoldadas
a tais interesses. O enfoque dado pelo Estado não tem fugido à
mencionada conveniência. Se as expectativas econômicas reclamam
maior controle penal, as funções estatais acabam sendo afetadas. O
perfil do juiz criminal está inserido nesta rota.
O vínculo constitucional que é exigido da atividade do
magistrado no lidar com o caso penal se confronta com a perspectiva
punitiva premida pela realidade conduzida por meio do projeto
eficientista. A defesa dos direitos fundamentais pode sofrer abalos
estruturais caso seja notada a ausência do estado de permanente
resistência constitucional ao rolo compressor das pressões sociais
imediatistas da expansão punitiva.
Cabe ao magistrado criminal o exercício da função de garantidor
dos direitos fundamentais, o que o desvincula de qualquer função
afeta à segurança pública e, por conseguinte, livre dos movimentos

BARROS, Antônio Milton de, apud Jorge Miranda. A defesa do acusado e sua intervenção no
20

interrogatório judicial. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 14. p. 135.

213
moralizantes que multiplicam o medo e a desmedida repressão penal,
traduzindo-se tal situação em fonte de inesgotável violência.
Nesta perspectiva, a Constituição da República ao se revelar
repleta de incumbências de proteção conferidas ao juiz, aniquila
qualquer premissa teórica que afirme a neutralidade judicial.
Especialmente no âmbito criminal, a adoção da justificativa
da postura neutra enseja um maior déficit de garantias com o
alargamento das restrições às liberdades individuais.
É pertinente a lembrança de Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho dizendo não existir “neutralidade e, de conseqüência,
perfeição na figura do juiz, que é homem normal e, como todos os
outros, sujeito à história de sua sociedade e à sua própria história”. 21
Na impossibilidade de separação possível entre o sujeito e o objeto,
estando este inserido na história do humano juiz, é correto afirmar a
inexistência de neutralidade judicial.
O processo é construído pelo olhar e pela vontade dos seus
partícipes, incorporando-se nele toda a gama de pré-conceitos. “A
responsabilidade pela densificação do punitivismo e pela criação
do imenso contingente de pessoas presas é dos atores que dão vida
diariamente ao sistema punitivo”. 22
Conforme enfatiza Nereu José Giacomolli, o desafio do
magistrado, na atualidade, “é colaborar na construção do direito
como um sistema artificial de garantias constitucionais, na direção
da tutela dos direitos fundamentais”. 23 Cabe ao juiz criminal exercer
a sua vontade para alcançar e disseminar o escopo de uma espécie de
política criminal constitucional de limitação ao poder punitivo.

O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Crítica
21

à teoria geral do direito processual penal, p. 15.


CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: Criminologia e
22

sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Org: GAUER, Ruth Maria Chittó, p. 166.
GIACOMOLLI, Nereu José. Atividade do juiz criminal frente à Constituição: deveres e limites em
23

face do princípio acusatório. In: GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). Sistema penal e violência, p. 217.

214
5 POLÍTICA CRIMINAL CONSTITUCIONAL DE
LIMITAÇÃO PUNITIVA
Pela leitura da Constituição da República e de seu rol de
garantias ao cidadão, pode ser extraída a existência de comandos que
permitem entender a existência de um alargamento da atuação da
política criminal limitativa ao poder punitivo para incluir a função
judicial como ativa partícipe no momento da constituição da norma
pela interpretação do caso penal.
Não pode ser escamoteado “o fato de que o juiz interpreta
a Constituição na esfera pública e na realidade”. 24 É essencial que
o magistrado procure conhecer a realidade do caso penal para
assim exercer o dever imposto constitucionalmente de dar vida aos
direitos fundamentais.
Embora se reconheça a importância da existência de
regramento constitucional voltada para os direitos fundamentais, tal
por si, é insuficiente. Anuncia-se ser imprescindível a elaboração de
um olhar que atinja “o âmago da estrutura normativa ordinária e a
consciência dos sujeitos processuais. Essa se situa numa esfera muito
além do normativismo ordinário e constitucional e passa por várias
perspectivas” 25 de cunho transdisciplinar.
O Juiz criminal na qualidade de garantidor e, imbuído da
alteridade como valor inicial, deve fazer interagir os fatos sociais com
os comandos limitativos do poder punitivo para que seja revelada a
solução menos drástica para cada caso concreto optando por intervir
de modo a permitir o reconhecimento e a efetiva existência dos
direitos fundamentais.
Nesta perspectiva, a política criminal constitucional de proteção
aos direitos fundamentais fortalece a interpretação jurisdicional,
traduzindo-se em ponte entre a Constituição e o seu reconhecimento
no caso concreto. Do contínuo processo da dialética social surgem
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
24

contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição, p. 31.


GIACOMOLLI, Nereu José. Exigências e perspectivas do Processo Penal na contemporaneidade In:
25

Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Org: GAUER, Ruth Maria Chittó, p. 166.

215
sedimentadas recomendações que podem auxiliar no fortalecimento
da mentalidade constitucional dos operadores do direito.
Deixando a questão mais explícita, propugna-se que os
partícipes da relação processual penal, sejam disseminadores
concretos das normas constitucionais por meio do exercício da
jurisdição, fazendo valer a proteção individual contra os abusos
estatais levando-se em conta principalmente à vocação voraz do
sistema penal.
O desenvolvimento consciente da política criminal
constitucional de revelação dos direitos fundamentais tem o objetivo
de demonstrar aos aplicadores do direito em geral e aos juízes em
especial as possibilidades que possam fazer na operação mental
e lógica da aplicação de lei penal, proporcionando a eles um leque
maior de escolhas dentre as que são permitidas pelas normas
constitucionais.
No exercício da política criminal constitucional do caso
concreto, o intérprete deve retirar do ordenamento jurídico as
melhores opções dentre as que são colocadas em discussão para chegar
a uma escolha procriadora de intenções e realizações democráticas,
com a projeção da Constituição nas condutas analisadas. Necessita
com tal atividade expurgar do ordenamento penal quaisquer
excessos aos valores espelhados na Constituição da República que
tem a dignidade humana como paradigma maior.
Impende observar que é muito cômodo que o juiz fique preso
a uma espécie de compromisso teórico que o impeça de adentrar na
singularidade dos casos concretos e “de sentir o pulsar da vida que
neles se exprime”. 26 Age como autômato ao ignorar as possibilidades
de que sua atuação constitucional possa reduzir danos à vida concreta.
Propugna-se pela atuação do magistrado na efetivação de uma
política criminal fundada em orientações constitucionais. O Judiciário
é o soldado de frente na revelação do conteúdo fundamental de cada
direito e, realizador da noção mais próxima da justiça, não podendo
ficar alheio ao que se passa no sistema penal.

AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, p. 25.


26

216
Nos tempos atuais, há uma avalanche de ataques aos
direitos humanos e aos postulados de garantias clássicas, frutos da
globalização neoliberal e de sua imposição de consensos. O único
espaço de poder livre para o exercício de um direito digno e de teor
garantista está nos lindes do caso concreto, com a atuação do juiz
no exercício pleno da interpretação escudada na política criminal de
decisão respeitosa aos direitos humanos.
Na perspectiva do compromisso com as normas constitucionais,
Amilton Bueno de Carvalho propõe a democratização da aplicação
do direito com a perseguição de uma “atividade comprometida com
a utópica vida digna para todos, com a abertura de espaços visando
à emancipação do cidadão, tornando o direito em instrumento de
defesa/libertação contra qualquer tipo de dominação”. 27
Não são admissíveis as afrontas diárias à Constituição sob as
mais diversas facetas, mormente quando é o próprio Estado que
agride através da segurança pública e da emissão de normas penais
e processuais de cunho autoritário e que enxerga o inimigo em cada
pessoa eleita pelo sistema penal.
É falho e frágil o argumento da defesa da sociedade a qualquer
custo.28 Atos que violem direitos, sob o argumento de que são
fundados no bem da sociedade e no combate às mazelas da violência
criminal não encontram justificativas ético-jurídicas constitucionais.
Vendar os olhos às injustiças do sistema social, com imediata
expressão no sistema penal, alegando-se que a única forma de realizar
os comandos normativos constitucionais e sanear as injustiças com
a sensibilização do legislador ordinário, nada mais é do que negar
ao juiz o exercício de sua função de modo independente. Na defesa
dos direitos fundamentais não pode o juiz aceitar o papel de se
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito alternativo: teoria e prática, p. 50.
27

Quando aborda a ideologia da defesa social Bartira Macedo de Miranda Santos ressalta que parte-se
28

da premissa de que “a sociedade é dividida entre pessoas de bem e pessoas perigosas- os criminosos,
fazendo-se irradiar falsas ideias sobre o problema da criminalidade e o atuar do sistema penal”
(Ensaios sobre a história da ciência penal no Brasil do século XX: a ideologia da defesa social e a
configuração do saber penal. In: Sistema punitivo e os 20 anos da Constituição. Org: SILVA, Denival
Francisco da; BIZZOTTO, Alexandre, p. 185/186).

217
transformar em mero funcionário departamental, integrante do
Estado burocrático.
A figura do juiz criminal inerte na defesa da Constituição se
constitui na mais pura expressão da omissão conivente, atrelando
a missão judicial aos interesses do mercado29, que, se examinados
com maior percuciência, são revestidos da conveniência social do
modelo injusto que foi construído historicamente e que se alarga pela
imposição da globalização.
No momento em que o magistrado criminal abdica de
interferir juridicamente na correnteza social, corre-se o risco de
ser levado ao lugar-comum das vazões emocionais momentâneas e
perder a legitimidade de agente político que lhe foi conferida pela
Constituição da República.
Na estrita observância das suas funções de protetor das
garantias constitucionais, o juiz é o maior obstáculo democrático
para a atuação concreta dos fluídos vingativos emitidos por aqueles
que apregoam leis penais e processuais penais mais severas e a
atuação governamental de segurança pública limitativa dos direitos
fundamentais.
Muitas pessoas excluídas, que integram a maioria da população,
em grito mudo consciente ou de maneira inconsciente, teimam em
incomodar a vida ideal dos poucos que são favorecidos pela fórmula
social adotado. Por tal ousadia, o sistema penal é conclamado para
atuar avidamente. Para se evitar um programa de aniquilação ao
outro, o juiz, na qualidade de garantidor constitucional, funciona
como contrapeso, a fim de impedir o agravamento das injustiças pela
atuação do sistema penal.
É imprescindível o repúdio ao perfil do magistrado autoritário
traçado pelo atual Código de Processo Penal, que, ao apequenar a
função jurisdicional, colocou o juiz criminal na posição de cordeiro,
para agir como lobo da segurança pública.

Pelos vetores do mercado, a “liberdade de decidir é banalizada por limites econômicos que não são
29

ditos, daí sua eficiência anti-democrática. A função do Poder Judiciário acaba o de emitir desde o seu
lugar simbólico de referência, por seus porta-vozes magistrados, o chancelamento do discurso único
do capital defendido pela Law and Economics” (Diálogos com a Law & Economics. ROSA, Alexandre
Morais da; LINHARES, José Manuel Aroso, p. 134).

218
Exercer atuação crítica na apreciação dos fatos penais levados
à apreciação judicial, sejam estes fatos fabricados ou não pela ilusão
do sistema penal30, se traduz na consagração da defesa inabalável
do fortalecimento de um compromisso jurisdicional constitucional,
voltada para a influência direta dos integrantes do Poder Judiciário
na problemática criminal, com o objetivo de limitar o Estado Penal.
Para fins punitivos, a legalidade formal se constitui em
fabulosa e irreparável garantia, evitando-se que condutas atípicas
sejam molestadas pelo aparato penal. Acrescenta-se ainda que para
se atingir o escopo de maior restrição ao cidadão, a legalidade penal
deve estar associada à realidade social palpável e emergente. Não
basta a mera e tacanha operação lógica da adequação da conduta
ao tipo legal. Este estilo de ver o problema traz uma insensibilidade
típica dos opressores sobre os oprimidos.
É necessário muito mais para se limitar à liberdade humana.
Ela dá sentido à nossa existência. É a manifestação do sonho colorido
da vida. É claro que ao se fazer referência à liberdade, o intérprete
além levar em conta a liberdade no sentido biológico, outras mais
têm que ser colocadas. As circunstâncias sociais são fundamentais. A
liberdade social e as suas condicionantes são imprescindíveis para o
exercício livre da atuação humana no seu esplendor. Estes fatores não
podem ser desprezados.
As condições sociais e os fatores totais do humano devem ser
sopesados quando da apreciação de cada nova questão, chegando-se a
uma solução compatível com o mínimo de razoabilidade, temperando-
se a legalidade penal com os ingredientes das diferenças sociais,
culturais e individuais para se evitar o gosto social indigesto em razão
da injustiça social decorrente do desmedido avanço punitivo.
Sabe-se que a existência de textos legais não tem a força de
garantir a sua aplicabilidade na medida em que não “é possível
formalizar a vida, que é o oposto da formalização: a vida é justamente
aquela relação que não está formalizada”. 31
Muito acrescenta o trabalho de Vera Regina Pereira de Andrade A ilusão de segurança jurídica: do
30

controle da violência à violência do controle penal.


PINTO NETO, Moysés da Fontoura . O que há de obsceno no direito. Mimeo 2010.
31

219
A consciência da fragilidade do controle estatal e da existência
de inúmeras pessoas expostas à vida nua e que jamais serão
efetivamente protegidas pelo Estado32 devem funcionar como uma
advertência a mais no delineamento e limitação do alcance da norma
penal. No examinar cada fato, o intérprete deve individualizá-lo
buscando o seu significado social para minimizar os efeitos deletérios
do alcance dos braços penais evitando-se cair em uma posição ainda
mais vexatória perante a realidade social.
Nesta perspectiva, juiz, ao se mover por uma política criminal
de tutela das garantias penais e processuais, estará realizando uma
necessária seletividade judicial que virá para contrabalancear a
realidade social com os seus mecanismos de seletividade real,
procurando com isto minorar as latentes injustiças do sistema
penal encouraçado pela ideologia neoliberal punitiva do Estado
Penal Máximo.
Tudo é questão de escolha. O exercício efetivo da política
criminal constitucional de limitação punitiva depende do olhar que
se deseja conferir, pois basta que “eu veja alguma coisa para saber
juntar-me a ela e atingi-la, mesmo se não sei como isso se produz na
máquina nervosa. Meu corpo móvel conta com o mundo visível, faz
parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visível”. 33

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controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003.
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filosóficos/ Theodor W. Adorno, Max Horkheimer. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed, 1985.
3. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica
jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1989.
“O estado de exceção não é “exceção”, mas a regra sobre o qual o estado de direito se ergue como
32

uma espécie de mito que encobre as relações de poder reais que existem”. (PINTO NETO, Moysés da
Fontoura. Mimeo 2010).
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito, p. 16.
33

220
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direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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26. SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: introdução a
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27. SANTOS, Bartira Macedo de Miranda Santos. Ensaios sobre a história
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(Org): SILVA, Denival Francisco da; BIZZOTTO, Alexandre, Kelps:
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28. VATTIMO, Gianni. Introdução a Nietzsche. São Paulo: Editora Presença,
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29. WARAT, Luiz Alberto http://members.fortunecity.com/danilonl/luiz_
alberto_warat.html/ Dia 09.12.10.

222
Este livro foi impresso na oficina da Asa Editora
Gráfica/ Kelps, no papel: off-set 75g, composto nas fontes
Minion Pro, corpos 11, 12 e 13 e Trajan pro, corpo 26 e 31
Setembro, 2011

A revisão final desta obra é de responsabilidade do autor

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