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Conselho Editorial Autografia

Adriene Baron Tacla


Doutora em Arqueologia pela Universidade de Oxford;
Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.

Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva


Doutora em História Social pela UFF;
Professora Adjunta de História do Brasil do DCH e do PPGHS da UERJ/FFP.

Daniel Chaves
Pesquisador do Círculo de Pesquisas do Tempo Presente/CPTP;
Pesquisador do Observatório das Fronteiras do Platô das Guianas/OBFRON;
Professor do Mestrado em Desenvolvimento Regional - PPGMDR/Unifap.

Deivy Ferreira Carneiro


Professor do Instituto de História e do PPGHI da UFU;
Pós-doutor pela Université Paris I - Panthéon Sorbonne.

Elias Rocha Gonçalves


Professor/Pesquisador da SEEDUC/RJ.

Elione Guimarães
Professora e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora.

Rivail Rolim
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História-UEM-PR.
Rio de Janeiro, 2020
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
(EDOC BRASIL, BELO HORIZONTE/MG)

B823 O Brasil que arde e a boiada que passa [recurso eletrônico] : instituições, conflitos e relações de
poder / Organizadores Valter Lúcio de Oliveira, Ana Motta Ribeiro, Ronaldo Lobão. – Rio de
Janeiro, RJ: Autografia, 2020.
Formato: ePUB
ISBN 978-65-5943-117-5
1. Brasil – Política e governo. 2. Pensamento crítico. 3. Conflito social. I. Oliveira, Valter
Lúcio de. II. Ribeiro, Ana Motta. III. Lobão, Ronaldo.
CDD 363.7
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

O Brasil que arde e a boiada que passa: Instituições, conflitos e relações de poder
oliveira, Valter Lúcio de (org.)
ribeiro, Ana Motta (org.)
lobão, Ronaldo (org.)

isbn: 978-65-5943-117-5
1ª edição, dezembro de 2020.

foto de capa: Valter Lúcio de Oliveira

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
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prévia autorização do autor e da Editora Autografia.
SUMÁRIO

7 INTRODUÇÃO: A GESTÃO CAÓTICA DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


COMO MODUS OPERANDI DO GOVERNO BOLSONARO
Valter Lúcio de Oliveira
Ana Maria Motta Ribeiro
Ronaldo Lobão

19 1. O AGRONEGÓCIO, A CONTRARREFORMA AGRÁRIA E A LUTA POR


DIREITOS NO CAMPO
Maira de Souza Moreira
Maria José Andrade de Souza
Valter Lucio de Oliveira

73 2. REGULARIZAR AS IRREGULARIDADES: A GOVERNANÇA DOS


RECURSOS NATURAIS NAS FRONTEIRAS AGRÍCOLAS DOS CERRADOS
NORDESTINOS
Valter Lúcio de Oliveira
Eve Anne Bühler

93 3. CONCRETUDES DO DESENVOLVIMENTO INSUSTENTÁVEL: AS DUAS


MAIORES PAPELEIRAS DO MUNDO E SEUS CATIVEIROS DE PAPEL NA
REGIÃO DO BOLSÃO SUL-MATOGROSSENSE
Napoleão Miranda
Cláudio Ribeiro Lopes

119 4. USO ILEGAL DO FOGO E A BANALIZAÇÃO DA VIDA DAS POPULAÇÕES


INDÍGENAS NO PANTANAL MATOGROSSENSE
Vívian Lara Cáceres Dan
Kilwangy Kya Kapitango-a-Samba
Luciano Pereira da Silva
Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão
Évelin Mara Cáceres Dan
149 5. DISPUTAS POR TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL: A LUTA POR
RECONHECIMENTO DE DIREITOS EM TEMPOS PANDEMÔNICOS E
CONSERVADORES
Wilson Madeira Filho
Ana Paula Joaquim Macedo

167 6. O ÚLTIMO DOS KARITIANAS


Wilson Madeira Filho
Nathalia Maria Gonzaga de Azevedo Accioly

209 7. ECONOMIA POLÍTICA DO RESSENTIMENTO: UM RESULTADO DE


POLÍTICAS PÚBLICAS QUE SE TORNAM POLÍTICAS DE GOVERNO?
Ronaldo Lobão

241 8. BACURAU PELAS LENTES DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA


Ana Maria Motta Ribeiro
Erika Macedo Moreira
Geovana Lara Clemente Rocha

265 9. PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO A PARTIR DA TEORIA CRÍTICA: AS


CONTRIBUIÇÕES DA ESCOLA TEÓRICO-METODOLÓGICA DO PPGSD E
DO OBSERVATÓRIO FUNDIÁRIO FLUMINENSE (OBFF)
Ana Maria Motta Ribeiro
Emmanuel Oguri Freitas
Wilson Madeira Filho
Nadine Monteiro Borges
Roberta Brandão Novaes

309 SOBRE OS AUTORES


INTRODUÇÃO: A GESTÃO CAÓTICA
DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
COMO MODUS OPERANDI DO
GOVERNO BOLSONARO
Valter Lúcio de Oliveira
Ana Maria Motta Ribeiro
Ronaldo Lobão

“Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de


tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de
covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento e simplifican-
do normas, de IPHAM, Ministério da Agricultura, Ministério de Meio
Ambiente.... Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplifi-
cação regulatória que nós precisamos, em todos os aspectos...” — Ricar-
do Salles, Ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro

No momento em que organizamos este livro o mundo enfrenta uma


crise de enormes proporções provocada pela pandemia do Coronaví-
rus. Uma das indagações que foi rapidamente suscitada por esta crise,
tanto por especialistas quanto pela população em geral, foi a de sa-
ber qual a origem e como se deu a transmissão do vírus para e entre
humanos. Alguns indícios apontam que sua origem como problema
humano pode estar diretamente ligada à crise ecológica, uma crise
que está relacionada com o processo de intensa urbanização, aden-
samento populacional e a expansão da agricultura às custas do de-
clínio das áreas naturais. Apesar de muito já se saber acerca de suas
drásticas consequências para humanos e não humanos, ainda restam
dúvidas sobre outros possíveis efeitos, presentes e futuros, dessa crise
ecológica. Portanto, mesmo que não seja possível, até o momento,

7
estabelecer um vínculo direto entre tais crises (a do Coronavírus e
a ecológica), é de se supor que as alterações no meio ambiente irão
produzir outras crises de múltiplas características (explosão de pragas
e doenças na agropecuária, ocorrências de intempéries naturais inco-
muns, erosão genética, extinção de espécies, crise sanitária e conse-
quentes crises sociais e econômicas).
Mas o que a crise do Coronavírus também expôs de forma muito
contundente é o quanto um poder público forte e atuante pode pro-
duzir destinos muito diferentes para suas populações. Um Estado que
apoie e se oriente pela ciência, que reconheça a importância e invista
na saúde pública, que controle a destruição da natureza e valorize as
populações tradicionais etc., é o que distinguiu os países que melhor
enfrentaram a pandemia e evitaram as situações mais graves ou, ao
menos, conseguiram transmitir para suas populações uma sensação
de maior segurança e amparo estatal o que, certamente, em um con-
texto de incertezas e mortes, não é desprezível.
Podemos dizer que o governo Bolsonaro fez o extremo oposto
disso e se confirmou como uma quase unanimidade global em rela-
ção ao descaso com a prevenção, controle e tratamento da pandemia
expressos nas mais de 392 mil mortes e nos quase 15 milhões de in-
fectados até o momento. Um governo que se caracterizou pelo nega-
cionismo, pela dispersão e pela tática do conflito ao invés da coope-
ração com os entes federados e organizações públicas e privadas, pela
insensibilidade com as famílias afetadas e pelo total descaso. Enfim,
um governo caracterizado não apenas pela inação, mas, sobretudo,
por atitudes que serviram apenas para o agravamento da situação já
bastante grave. O negacionismo, a falta de investimento e de planeja-
mento se traduziu no triste momento em que mesmo recursos bási-
cos, mas essenciais, como o acesso de hospitais a oxigênios, faltaram
em momentos críticos e em diversas regiões. Além disso o país assiste
a outros países em estado avançado de vacinação enquanto presencia-
mos um início tardio e caótico e sem perspectiva de que a vacinação

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atenda de forma massiva a população. É possível concluir, juntamente
com Ventura e Reis (2021, p.07) que se trata de uma estratégia deli-
berada e sistemática de disseminação do vírus1. Fica evidente a clara
ideia de que a “inefetividade, ausência ou fraqueza na sua implemen-
tação [políticas públicas] são, por vezes, o objetivo paradoxal a ser
perseguido...”.2 (LASCOUMES; LES GALÈS, 2010, p.38).
Ainda que a pandemia seja abordada em alguns capítulos, este li-
vro não tratará especificamente desta crise, mas a forma como o go-
verno Bolsonaro tem lidado com ela nos parece emblemático de um
modus operandi que tem caracterizado o seu governo desde o início. O
que se poderá notar, nos textos aqui reunidos, é o quanto o contexto
político e este modo de governar tem favorecido o agravamento dos
problemas ambientais, dos conflitos sociais, da concentração de terra
e de renda, da fragilização e eliminação de populações tradicionais.
A frase que inspira parte do título desse livro, contida na epígra-
fe acima, explicitou o tipo de prioridade em termos da ação pública
professada pelos ocupantes do executivo: o de eliminar as regras e
regulamentações para permitir ao capital avançar sem maiores freios
e controles. Explicitou, ao mesmo tempo, que a crise já instalada pro-
vocada pela Covid 19 representava para o governo um “momento de
tranquilidade” para agir perseguindo certos fins que não podem ser
expostos à luz do dia. Ou seja, a crise provocada pela pandemia não
merecia maiores cuidados e atenção, exceto como recurso ao que ali
se manifestava, como uma “cortina de fumaça” para seguirem com
suas medidas. Uma estratégia que caracteriza um governo que atua
segundo um modus operandi que é o de driblar as instituições e a opi-
nião pública agindo de forma subterrânea para tentar impor medidas

1.  Ver Boletim Direito na Pandemia. Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta
à Covid 19 no Brasil, n. 10 de 20/01/2021. Disponível em https://www.conectas.org/publi-
cacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-10 (consultado em 22/01/2021)
2.  “L’ineffectivité, l’absence ou la faiblesse de la mise en œuvre sont parfois l’objectif para-
doxal poursuivi...”

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que atendam aos interesses não declarados publicamente dos grupos
econômicos que integram e dão suporte ao governo.
Se, por um lado, esta forma de agir e este discurso demonstram
que, apesar de tudo, as instituições impõem algum tipo de limite a
estas pretensões, por outro lado, explicita que se trata de um governo
sorrateiro, que desrespeita as instituições e busca minar toda forma
de participação e controle de suas ações. Mas esse discurso da sim-
plificação e a tentativa de burlar o regramento para certos fins que
interessam ao capital, como os que estão subjacentes a esta fala do
Ministro, não é válido para outros fins que interessam à sociedade.
Nota-se exatamente o contrário. A burocratização constitui uma das
estratégias utilizada pelo próprio governo para atrapalhar ou atravan-
car outros fins, como ficou bem demonstrado para o caso da gestão
da pandemia. Conforme evidenciado por Asano et al (2021, p. 02) a
infração normativa, com cerca de 3049 normas editadas apenas re-
lativas à Covid 19, “corroboram a ideia de que onde há um exces-
so de normas há poucos direitos”. De acordo com os autores, esse
acervo de normas resulta do embate entre a estratégia deliberada de
propagação do vírus por parte do governo federal “e as tentativas de
resistências dos demais Poderes, dos entes federativos, de instituições
independentes e da sociedade”.
A intenção de “passar a boiada” explicita e confirma o perfil auto-
ritário do presidente Bolsonaro e daqueles que escolheu para com-
por o seu governo que também ficou manifestado em outros diver-
sos momentos. Seus alvos principais são as instituições com as quais
é obrigado a dividir o poder. Mas seu autoritarismo se manifesta,
sobretudo, contra os que não estão em um plano mais equilibrado
de relação de poder. Sua truculência contra os movimentos sociais
e contra as ONGs e outras instituições bem como o desmonte que
vem promovendo das políticas públicas voltadas para as populações
mais pobres são sinais inconteste desse autoritarismo (SABOURIN
et al, 2020).

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É um governo que adota uma postura em que políticas públicas se
traduz, fundamentalmente, em uma escolha de clientela e de vítimas
(LASCOUMES; LES GALÈS, 2010, p.10). Não há nenhuma intenção
e menos ainda medidas concretas que busquem a constituição de es-
paços públicos e democráticos de concertação entre grupos com in-
teresses divergentes. Mesmo as iniciativas que existiam na forma de
conselhos participativos, audiências públicas, etc., foram eliminadas
ou tiveram seu funcionamento alterado limitando ainda mais a par-
ticipação da sociedade civil. Esse foi o caso do Conselho Nacional do
Meio Ambiente – CONAMA que teve uma redução drástica na sua
composição, passando de 96 para 23 conselheiros e ampliando a pro-
porção de membros do governo federal em relação aos governos esta-
duais e sociedade civil. De 22 vagas, as ONGs ficaram com apenas 4.
Esse é um exemplo claro de que para “passar a boiada” é preciso que-
brar os mecanismos de controle e concertação. Várias medidas que
foram tomadas na sequência dessa profunda alteração do CONAMA
só foram possíveis graças a tais alterações.
Se as instituições impõem certos limites às pretensões de membros
do governo e complexifica muito mais as relações de poder no plano
macro, o que se nota é que as relações de poder no plano micro se
tornam fortemente desfavoráveis aos mais pobres e ao meio ambien-
te. Os conflitos e as mortes no campo e na cidade são a expressão de
um processo em que “dire, c’est faire ” (LASCOUMES; LES GALÈS,
2010, p.38). Ou seja, se por diversos meios o judiciário, o legislativo
e outras instituições freiam as ações do executivo, a estratégia que
este parece claramente adotar é aquela de emitir sinais para que os
atores locais solucionem suas questões de forma direta e quase sem-
pre na forma de conflitos e na perspectiva da impunidade. O “Brasil
que arde”, contido no título, se refere a essa forma de fazer acontecer
aquilo não poder ser feito e ser dito como ação pública. As queima-
das, os desmatamentos ilegais, o armamento da população, etc., são
forma de concretizar ações que interessam a certos grupos, mas não

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são autorizados legalmente. Além disso, evidencia a constituição de
uma estratégia neoliberal de levar os indivíduos a se autogovernarem.
As disputas de narrativas, os discursos polêmicos, as falas controver-
sas são também formas de agir, ou de levar as pessoas a agirem.
Vale salientar, por fim, que o projeto neodesenvolvimentista que
marcou o período dos governos petistas e de outros governos do
continente, buscou um tipo de desenvolvimento fortemente apoia-
do num modelo neoextrativista que se beneficiou do boom das
commodities para estabelecer políticas de distribuição de renda e de
apoio socioeconômico (MILANEZ; SANTOS, 2013). Modelo que foi
fortemente criticado em diversas frentes, por diversas organizações
socioambientais e por muitos pesquisadores. O governo que se esta-
beleceu na sequência do golpe de 2016, apesar de breve, foi muito
eficiente na promoção de políticas econômicas neoliberais, atacando
direitos, limitando a atuação do Estado e fortalecendo o poder dos
grandes grupos econômicos, com destaque para o representado pela
Bancada Ruralista. O governo atual, é de difícil definição, mas se situa
nesse mesmo registro reaberto por Temer, sendo também sustentado
pelos ruralistas e pela elite econômica do país, promovendo um tipo
de neoliberalismo estranhamente associado a um tipo de nacionalis-
mo de extrema direita (BRESSER PEREIRA, 2019).
Essa relação estreita entre o governo Bolsonaro e a Bancada Rura-
lista tem determinado os rumos de muitas políticas voltadas para o
meio ambiente e para os povos do campo e das florestas. No primeiro
capítulo deste livro, intitulado “O agronegócio, a contrarreforma agrária
e as lutas por direitos no campo”, Maira Moreira, Maria José Andrade
Souza e Valter Lúcio de Oliveira analisam este papel central e históri-
co das elites agrárias nos rumos do país e colocam acento no contexto
atual caracterizado pelo desmonte das políticas públicas voltadas para
o campo. A origem deste desmonte remente ao que os autores deno-
minaram de “agrogolpe”, o processo de destituição da presidenta Dil-
ma Rousseff no qual a Bancada Ruralista exerceu papel determinante.

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A principal política pública analisada neste capítulo é a da Reforma
Agrária cujos dados demonstram não apenas o seu abandono prático,
mas seu próprio apagamento inclusive em termos retóricos.
Relacionado a este desmonte de políticas agrárias e ambientais e
o avanço do agronegócio no país, o capítulo dois, intitulado “Regu-
larizar o irregular: a governança dos recursos naturais nas fronteiras agrí-
colas dos cerrados nordestinos”, de autoria de Valter Lúcio de Oliveira
e Eve Anne Bühler, aponta para o fato de que a regularização de pro-
priedades em situação irregular é parte fundamental do processo de
regulação da expansão agrícola para as áreas de cerrado. Os autores
observam que ao atuar em diversas escalas para interferir na forma
de controle e legalização das propriedades, o agronegócio se benefi-
cia dos mecanismos de regulação ambiental e fundiário. Na medida
em que controlam tais mecanismos e os direcionam aos interesses
do setor, alcança-se a segurança jurídica e a legitimidade ambiental
indispensáveis à consolidação de um mercado fundiário regional e à
inserção dos seus produtores no mercado agroalimentar.
No capítulo três, intitulado “Concretudes do desenvolvimento insus-
tentável: as duas maiores papeleiras do mundo e seus cativeiros de papel na
região do bolsão Sul-matogrossense” Napoleão Miranda e Cláudio Ribei-
ro Lopes, expõe o quanto as papeleiras localizadas na região Leste do
Mato Grosso do Sul submetem os assentados locais a uma situação de
dependência ao cumprir ali um papel que normalmente é ocupado
pelo Estado. Os planos e programas de desenvolvimento sustentável
conduzidos por estas empresas são contrapartidas de financiamentos
que elas acessam junto ao BNDES, e que consiste na oferta de recur-
sos na forma de financiamento para determinados fins. Mas o que os
autores constataram é que tal relação acaba por se constituir no que
eles caracterizam como um “cativeiro de papel”.
No quarto capítulo, Vívian Lara Cáceres Dan, Kilwangy Kya Ka-
pitango-a-Samba, Luciano Pereira da Silva, Ronaldo Joaquim da Sil-
veira Lobão e Évelin Mara Cáceres Dan Dan expõem a realidade de

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uma parte do “Brasil que arde” literalmente. Intitulado “Uso ilegal do
fogo e banalização da vida das populações indígenas no Pantanal Ma-
togrossense”, neste capítulo os autores apontam que o Pantanal foi
um dos biomas mais afetados pelos incêndios ocorridos entre agosto
e outubro de 2020 e se constituiu em mais um palco para os discursos
inconsequentes e irresponsáveis por parte do presidente da república
que, ao invés de empregar os recursos necessários para o seu contro-
le, agiu com descaso e negligência. Os autores demonstram o quanto
esse tema merece atenção do poder público e apresentam uma im-
portante discussão ao redor da legislação que aborda a questão das
queimadas e dos incêndios florestais. Uma boa parte deste capítulo se
dedica sistematizar as diversas medidas de desmonte da política am-
biental por parte do governo. Ou seja, as ações do governo Bolsonaro
para o meio ambiente se resumem, fundamentalmente, na elimina-
ção dos entraves à destruição da natureza de forma a levar a cabo o
que os autores chamam de projeto “Queima Brasil”. Faz parte desse
projeto o descaso e a exposição a diversos riscos, como tem feito no
caso da pandemia do Coronavírus, das diversas populações tradicio-
nais que dependem dos biomas brasileiros para sobreviverem.
O capítulo quinto, “Disputas por terras indígenas no Brasil: a luta por
reconhecimento de direitos em tempos pandêmicos e conservadores”, de au-
toria de Wilson Madeira Filho e Ana Paula Macedo, aborda as dispu-
tas pelas terras indígenas a partir de uma perspectiva que retoma as
ações de diversos governos, o ordenamento e as discussões no campo
jurídico quanto a este tema. Reconhecem certos avanços, mas apon-
tam para o quanto os conflitos diretos entre povos indígenas e os in-
vasores de suas terras tem se agravado nos últimos anos. Distinguin-
do três perfis de atores, o técnico/especializado (os operadores do
direito), o leigo (sociedade civil) e o Estado (que é técnico e leigo ao
mesmo tempo), os autores desenvolvem suas análises considerando
que o tipo de ação que estes atores promovem estará diretamente re-
lacionado ao perfil político do grupo que ocupa o poder. No contexto

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atual, cujo governo é do tipo ultraconservador, atores técnicos, como
os do judiciário, poderão se constituir na última barreira aos retroces-
sos dos direitos indígenas.
No sexto capítulo, “O último dos Karitianas”, Wilson Madeira Filho
e Nathalia Accioly apontam para a situação de vulnerabilidade que os
Povos Karitianas, de Rondônia, têm enfrentado em diversos momen-
tos, particularmente relacionado à construção de usinas hidroelétri-
cas que afetaram a disponibilidade hídrica em suas terras culminando,
nos dias atuais, pelo abandono e exposição à grave crise provocada
pela pandemia do Coronavírus. O texto se orienta pela perspectiva e
pelo cenário que Cledison Karitiana, presidente da Associação dos Po-
vos Karitianas, descreve a partir de uma rica entrevista que concedeu
aos autores.
No sétimo capítulo, de autoria de Ronaldo Lobão e intitulado
“Economia Política do Ressentimento: um resultado de políticas públicas
que se tornam políticas de governo?”, é analisado o processo histórico
de construção das Reservas Extrativistas evidenciando que estas dei-
xaram de ser uma política pública, que contempla um conjunto de
paixões, ações e normas e é caracterizada pela emanação de poder
da sociedade (particularmente das populações locais), para se conver-
ter em política de governo, em que o poder emana e está localizado
no Estado. Aponta que essa passagem gerou o que chamou de uma
Política do Ressentimento, traduzido por sentimento morais que são
manifestados na medida em que essas populações perdem poder e
veem nos agentes do Estado os responsáveis pela gestão das reservas
que antes eram lugares vivenciados efetivamente. Essa dinâmica está
relacionada a uma Cosmologia Política do Neocolonialismo, cristali-
zada em identidades sociais construídas de fora para dentro. O autor
dedica uma parte do artigo a pensar o papel dos antropólogos e o
quanto estes personagens, apesar de suas melhores intenções, foram
enredados na teia do neocolonialismo e se tornaram eles próprios
neocolonizadores.

15
O oitavo capítulos, “Bacurau pelas lentes da Criminologia Crítica”, de
autoria de Ana Maria Motta Ribeiro, Erika Macedo Moreira e Geova-
na Lara Clemente Rocha, traz uma relevante reflexão para se pensar
a interdisciplinariedade entre o Direito e as Ciências Sociais. Propõe
um discussão acerca da memória e das relações de dominação que
provocam o apagamento da ação das classes subalternizadas. Faz isso
desmistificando as múltiplas violências propiciadas pelo Estado e pe-
las elites dominantes no momento de impor seu projeto colonizador
na forma de controle social.
No nono e último capítulo, intitulado “Pesquisa empírica em Di-
reito a partir da Teoria Crítica: As contribuições da escola teórico-meto-
dológica do PPGSD e do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF)”,
Ana Maria Motta Ribeiro, Emmanuel Oguri Freitas Wilson Madeira
Filho, Nadine Monteiro Borges e Roberta Brandão Novaes apre-
sentam um texto que é a transcrição de um momento coletivo de
reflexão proporcionado pelo encontro dos autores em um seminá-
rio virtual organizado na Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS) acerta de questões teórico-metodológicas no campo da Teo-
ria Crítica no Direito. Seu formato se difere dos capítulos apresenta-
dos anteriormente, na medida em que cada parte do artigo buscou
contemplar as contribuições individuais e expor como cada autor
incorpora e traduz em suas pesquisas empíricas essa abordagem
teórico-metodológica. Vale destacar que estas contribuições indivi-
duais, de pesquisadores já consolidados na área de sociologia e direi-
to, se constituem em um rico material de referência para jovens pes-
quisadores (e também para veteranos) que buscam inspiração para
a elaboração e planejamento de suas pesquisas empíricas informa-
das por uma perspectiva teórica bem definida. Na sua apresentação,
Madeira Filho, traça um histórico do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito (PPGSD) e, nesse sentido, contribui para
apresentar a instituição à qual todos autores aqui reunidos fazem ou
fizeram parte.

16
Antes de passar aos capítulos, gostaríamos de salientar que este
livro traz uma parte da produção intelectual gerada nos caminhos de
orientação, pesquisa, extensão e formação de cientistas numa pers-
pectiva interdisciplinar que envolve Ciências Sociais e Direito. É re-
flexo de uma busca constante por criar um acúmulo teórico metodo-
lógico a partir do trabalho intelectual de alguns dos professores do
PPGSD e seus orientandos ou ex-orientandos que atuam vinculados
(ou desenvolvem em suas universidades pesquisas relacionadas) à Li-
nha de Pesquisa de Conflitos Sócio Ambientais Rurais e Urbanos.

Referências Bibliográficas
ASANO, C.; VENTURA, D.; AITH, F.; REIS, R.; RIBEIRO, T. Direito e pandemia:
ordem jurídica e sistema judiciário não foram suficientes para evitar graves viola-
ções. Boletim Direito na Pandemia. Mapeamento e análise das normas jurídicas
de resposta à Covid 19 no Brasil. n. 10 de 20/01/2021. Disponível em https://
www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-10
(consultado em 22/01/2021)
BRESSER PEREIRA, L. C. Um estranho casamento: neoliberalismo e nacionalismo
de direita. A terra é redonda. 2019. Disponível em: https://aterraeredonda.com.
br/um-estranho-casamento-neoliberalismo-e-nacionalismo-de-direita/ (Consulta-
do em 25/01/2021)
LASCOUMES, P. ; LE GALÈS, P. Sociologie de l’action publique. Paris: Armand
Colin, 2012.
MILANEZ, B.; SANTOS, R. S. Neodesenvolvimentismo e neoextrativismo: duas fa-
ces da mesma moeda? 37° Encontro Anual da ANPOCS, Águas de Lindóia, 2013.
SABOURIN, E.; GRISA, C.; NIEDERLE, P.; LEITE, S. P.; MILHORANCE, C.; FER-
REIRA, A.; SAUER, S.; Andriguetto-Filho, J. M. Le démantèlement des politiques
publiques rurales et environnementales au Brésil. Cah. Agric. Vol.29, 2020.
VENTURA, D.; REIS, R. a linha do tempo da estratégia federal de disseminação
da covid-19: um ataque sem precedentes aos direitos humanos no Brasil. Boletim
Direito na Pandemia. Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta
à Covid 19 no Brasil. n. 10 de 20/01/2021. Disponível em https://www.conectas.
org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-10 (consultado em
22/01/2021)

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1
O AGRONEGÓCIO, A
CONTRARREFORMA AGRÁRIA E A
LUTA POR DIREITOS NO CAMPO
Maira de Souza Moreira
Maria José Andrade de Souza
Valter Lucio de Oliveira

INTRODUÇÃO
Neste capítulo, buscamos analisar alguns elementos da questão agrá-
ria nos últimos anos, especialmente as ações públicas que se seguiram
ao que definiremos aqui como agrogolpe - o processo conduzido por
diversas forças políticas e econômicas, mas principalmente por aque-
las ligadas ao agronegócio, que depôs a presidenta Dilma Rousseff.
Consideramos que entender esse processo a partir desse ator coletivo
principal (o agronegócio) tem relação direta com os rumos da ques-
tão agrária no Brasil contemporâneo.
Por questão agrária estamos entendendo um conjunto de proble-
mas que as populações do campo enfrentam e que estão relacionados,
fundamentalmente, com o desenvolvimento do capitalismo no cam-
po e a acentuada concentração fundiária. Aqui abordaremos, de forma
mais detida, o tema da reforma agrária em paralelo às medidas de re-
gularização fundiária e outras medidas centralizadas no agronegócio,
tendo em vista os processos mais recentes de mudanças de governos.
As ações públicas que foram adotadas ao longo do curto gover-
no Temer não deixaram dúvidas quanto ao seu caráter neoliberal.

19
Diversas medidas que buscaram desregulamentar os direitos traba-
lhistas e ampliar concessões ao capital foram rapidamente tomadas.
O governo Bolsonaro segue na mesma linha, mas incorpora outros
elementos que o torna menos enquadrável nos modelos de análise
mais usuais. É um governo que expressa um tipo de populismo na-
cionalista de extrema direita, um governo fortemente militarizado,
que joga com questões religiosas como parâmetros para certas ações
públicas, que busca controlar todas as instituições que estão vincula-
das ao executivo eliminando ou limitando todas dinâmicas e espaços
de participação (eleição para reitores, diversos conselhos, escolha do
PGR, uso de instâncias investigativas...), governa, em grande medida,
pelo discurso e pela produção de conflitos e de forma autoritária. No
que se refere especificamente à questão agrária, já durante sua cam-
panha, Bolsonaro não mediu suas palavras para demonstrar que não
faria nenhuma concessão aos pobres do campo. Atacou os quilombo-
las, indígenas, sem terras, outras comunidades tradicionais, declarou
que não destinaria nenhum centímetro de terra a estas populações
e demonstrou seu descaso em relação à questão ambiental que, em
muitos casos, se manifesta como questão agrária. Após dois anos de
mandato seu discurso de campanha, quanto a estas questões, está
sendo fielmente aplicado.
O desafio que este governo coloca para os que buscam pensá-lo
é sair do que nos parece evidente e nos conduz a ficar na denúncia
e tentar analisá-lo a partir das instituições e das relações de poder
buscando dar conta da complexidade que envolve as ações públicas.
Quem governa o Estado tem poder para impor muitas medidas e
ações, mas, ao mesmo tempo, está cerceado por diversas instituições
e atores individuais ou coletivos, portanto, quem preside o país, ape-
sar de poder muito, nunca pode tudo. O próprio sentido de “passar
a boiada”, presente na fala do ministro Ricardo Salles, demonstra a
intenção do governo em driblar os entraves institucionais às suas me-
didas neoliberais. Outra forma de driblar as instituições é fazer de seu

20
discurso sua principal forma de ação. Lançar sinais de que as ações
ilegais serão toleradas e, ao final, legitimadas. Daí o desmonte dos
setores de fiscalização, os ataques aos agentes ligados ao meio am-
biente, a diminuição de recursos para controle do desmatamento e
queimadas, etc.
Faz sentido pensar as políticas públicas como medidas que evi-
denciam de forma clara ao lado de quem se localiza nas relações de
poder e contra quem está atuando. É, fundamentalmente, uma for-
ma de nomear os aliados e atacar os inimigos (LASCOUMES; LE
GALÈS, 2010).
As dimensões da questão agrária brasileira com as quais nos de-
paramos ao longo de nossa história tem relação direta com o desen-
volvimento do capitalismo no campo. É inserido nesse sistema, que
se impõe globalmente, que se delimita os limites das políticas públi-
cas, que se define os limites de possibilidades. O capitalismo em suas
diferentes formas determina nossas possibilidades porque também
se transforma, se ajusta, incorpora certas pautas, mercantiliza mui-
tas dimensões da vida social. O latifúndio, assim como o capitalismo,
também se alterou, incorporou o discurso da produtividade, da pre-
servação da natureza, dos direitos trabalhistas para se transformar no
agronegócio. Evidentemente que não se trata do latifundiário da pri-
meira metade do Séc. XX, mas, para não desaparecer, os atores her-
deiros desse período em que terra também era sinônimo de poder,
foram adotando certos contornos da modernidade e foram manten-
do essa relação direta entre terra e poder. Foram, nesse sentido, re-
forçando, ressignificando e introduzindo novas dimensões à questão
agrária. O atraso que o latifúndio clássico representou para o país, na
medida que foi se convertendo, nas palavras de Alberto Passos Gui-
marães, “num organismo parasitário” que, “ao invés de contribuir
para o desenvolvimento da economia nacional, transformou-se, mais
ainda, num estorvo, num obstáculo ao progresso da sociedade bra-
sileira” (Guimarães, 1981 p.160), também se evidencia no que hoje

21
chamamos de agronegócio. Ao dominar a política e a economia na-
cionais insiste em fazer crer que o único destino do país é se manter,
como no período colonial, na condição de produtores de produtos
primários destinados aos grandes centros. A dependência do mercado
externo e o tipo de integração subordinada ao sistema mundial do
capitalismo descrita por Guimarães (1981, p.167) para o início do Séc.
XX não parece, guardada as devidas singularidades, ter se alterado sig-
nificativamente. Não é em vão que precisam destinar fortunas para
manter há anos sua propaganda em horários nobres para se tornarem
inquestionáveis, seguindo a lógica que buscam difundir em que “tudo
é agro”. E se apoiam, recorrentemente, na constatação de que são
eles os responsáveis pelo superávit na balança comercial. Esta verdade
é imposta como se tal dependência fosse algo natural e inevitável e
não fruto de interesses e relações de poder.
Os atores do agronegócio são diversos, como demonstrado em
Oliveira e Bühler (2016), no entanto atuam e se apresentam de for-
ma unificada e com posições políticas monolíticas em torno de de-
terminadas questões. Uma delas é a obstrução constante à revisão
dos índices de produtividade utilizado para definir se uma proprie-
dade rural cumpre sua função social e, nesse sentido, pode ser desa-
propriada e destinada para fins de reforma agrária. Assim também
se comportam em relação à legislação ambiental, à proteção e bene-
fício de grileiros.
Sem perder de vista os elementos estruturais e estruturantes do
que designamos sobre a questão agrária brasileira, pretendemos, nes-
te capítulo, a partir de um balanço sobre as recodificações e altera-
ções institucionais em torno da política de reforma agrária nos últi-
mos anos, refletir como essa se tornou uma política inaudita - nunca
efetivamente estabilizada no quadro das ações do Estado, cujos con-
teúdo e alcance permanecem em disputa, entretanto, com sua maior
inflexão e descontinuidade percebida no período 2016-2020, ora te-
matizado.

22
Na primeira parte do artigo, buscaremos analisar a consolidação
do agronegócio como principal ator coletivo que vem delimitando
as possibilidades de outras ações públicas voltadas para outros seto-
res do campo. Sua hegemonia atravessa toda nossa história como na-
ção, mas viu, em certos momentos de curta duração, a emergência
de instâncias sobre as quais detinha pouco controle, mesmo que essas
instâncias impusesses pouca limitação ao seu poder. Também preten-
demos, nesta parte, apresentar alguns dados obtidos a partir de outras
publicações, que desenhe os contornos da Bancada Ruralista e como
essa frente parlamentar busca atuar a partir de orientações e vínculos
diretos com entidades privadas do agronegócio e, assim, identificar
certas pautas unificadoras.
Na segunda parte, iremos analisar discursos, leis e dados relativos
à “reforma agrária”, visando apontar para medidas que remetem a
uma anti (contra) reforma agrária que se manifesta na regularização
de assentamentos, na revisão de assentamento já criados e no abando-
no de qualquer medida de desapropriação de terras ou destinação de
terras públicas para assentamentos de reforma agrária.
Por fim, buscaremos demonstrar que mesmo diante de um gover-
no profundamente avesso a qualquer medida destinada aos pobres do
campo, ainda assim é possível identificar formas de resistências e de re-
produção social que nos oferecem outras perspectivas de saída e rotas de
fuga que também podem evoluir para a ampliação e fortalecimento dos
movimentos sociais e com isso para a ressignificação do sentido que a
reforma agrária pode assumir no contexto atual das lutas pelo território.

O agronegócio, a bancada ruralista e o agrogolpe


“Este governo é de vocês. Primeiro os parabenizo por ter indicado a senho-
ra Teresa Cristina para ser a nossa ministra, uma pessoa excepcional, que
tem demonstrado garra e competência para buscar soluções para o poder.
Ao longo de 28 anos dentro da câmara eu acompanhei e, mais do que isso,

23
acredito que em 100% das vezes votei com a bancada ruralista (...), era a
imprensa batendo em vocês, eram ONGs e governos de outros países. (...)
Nós queríamos fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Am-
biente, pois chegamos à conclusão que não era o caso, até conversando
com muitos de vocês. E temos hoje em dia um ministro do meio ambiente
que está casado com vocês. Imagina se tivesse um ministro como os que
tivemos nos últimos anos, imagina o inferno que seria a vida, não só de
vocês, mas de toda nós aqui no Brasil nessa questão. Então tivemos aqui a
oportunidade e o bom senso de nomear um ministro do meio ambiente
que case a questão ambiental com desenvolvimento. (...). Agora fique bem
claro uma coisa, os problemas que temos hoje (...) foram questões que nós
fomos deixando acontecer, então hoje (...) nós temos primeiramente que
desfazer o que foi feito pra depois fazer e isso nós estamos fazendo ao lado
dessa valorosa ministra (da Agricultura).” — Presidente Jair Bolsonaro3
 
“(...) O meio ambiente é o mais difícil de passar qualquer mudança in-
fralegal em termos de instrução normativa e portaria porque tudo o que
a gente faz é pau no judiciário no dia seguinte. Precisa ter um esforço nos-
so aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto
de cobertura de imprensa, porque só se fala de COVID, e ir passando a
boiada, e mudando todo o regramento e simplificando normas, de IPHAM,
Ministério da Agricultura, Ministério de Meio Ambiente.... Agora é hora
de unir esforços pra dar de baciada a simplificação regulatória que nós
precisamos, em todos os aspectos, e deixar a AGU de standby pra cada
pau que tiver, e vai ter. Essa semana mesmo nós assinamos uma medida
a pedido do Ministério da Agricultura que foi a simplificação da lei da
Mata Atlântica pra usar o Código Florestal, hoje já tá nos jornais dizen-
do que vão entrar com ações judiciais e ação civil pública no Brasil in-
teiro. Para isso nós precisamos estar com a artilharia da AGU preparada

3.  Trecho do discurso do Presidente Jair Bolsonaro em café da manhã com a Frente Parla-
mentar da Agropecuária ocorrido no dia 04/07/2019. Transcrito de https://youtu.be/XdGa-
-sImKIg (consultado em 10/01/2021).

24
para cada linha que a gente avança. Mas tem uma lista enorme em todos
os ministérios que têm papel regulatório aqui pra simplificar, não preci-
samos de congresso, porque coisa que precisa de congresso, nesse fuzuê
que está aí, nós não vamos conseguir aprovar. Agora tem um monte de
coisa que é só ‘parecer, caneta, parecer, caneta’, sem parecer não tem cane-
ta, porque dar canetada sem parecer é cana”. — Ricardo Salles4
 
“Chega de questões indígenas, quilombolas, trabalhistas, ambientais, que tra-
vam o processo produtivo no país. Portanto a maior nação agrícola está de-
senhada, e o brasil de vossa excelência (presidente Bolsonaro), da ministra
da agricultura (Teresa Cristina), do ministro do meio ambiente (Ricardo
Salles) e com o Rogerio Marinho nas questões trabalhistas que nos afetam,
nós vamos fazer um novo rumo para o nosso país.” — Luis Carlos Heinze5
 
“No mesmo governo (...) estão aninhados quilombolas, índios, gays, lés-
bicas, tudo que não presta, e eles têm a direção e o comando do governo”
— Luis Carlos Heinze6
 
“A agricultura é a base do nosso país e se você não colocar um ministro que
fale a mesma língua que a Frente Parlamentar (Agropecuária), ele não fica
muito tempo, nem o ministro nem o presidente” — Nelson Marquezelli7

4.  Trecho do discurso do Ministro Ricardo Salles na reunião ministerial do dia 22 de abril
de 2020, e tornada pública por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Transcrito de
https://youtu.be/th6_TgyYEMY (consultado em 10/01/2021).
5.  Senador pelo PP-RS e membro da FPA, trecho do seu discurso em café da manhã promo-
vido pela presidência da república com a Frente Parlamentar Agropecuária ocorrido no dia
04/07/2019. Transcrito de https://open.spotify.com/episode/6ZIv6patn98CU4hqORS9E8
(consultado em 10/01/2021).
6.  À época era Deputado Federal pelo PP-RS e presidente da FPA, essas declarações foram
feitas em uma audiência pública da Comissão da Agricultura da Câmara dos Deputados na
cidade de Vicente Dutra, no norte do Rio Grande do Sul, no final de novembro de 2013. Ver
http://glo.bo/1lDsidC (consultado em 10/01/2021).
7.  Deputado Federal pelo PTB durante entrevista concedida para o documentário “Brésil:
le grand bond en arrière” produzido pelo canal franco-alemão Arte. Transcrito a partir de
https://youtu.be/JMylpwqqGBA (consultado em 10/01/2021).

25
 
“Essa reforma agrária dos últimos 30 ou 40 anos foi um desservi-
ço ao país. Ela tem de ser revista, precisa ser revista” — Antonio Na-
bhan Garcia

Essas longas e múltiplas falas de membros do atual governo federal


e da Bancada Ruralista transcritas acima trançam, de forma clara e
contundente, o poder que o agronegócio tem dentro das instâncias
do Estado. Esse poder não vem de agora. Ele foi, ao longo de décadas,
desenhando como um brete (para usar um termo bem conhecido pe-
los pecuaristas), os limites de possibilidades de “desenvolvimento” do
país. Ao menos desde a Lei de Terras de 1850 (MARTINS, 2010) e o
fim, em termos legais, da escravidão, o “poder do atraso” foi definin-
do nosso destino enquanto país e deixando um rastro de conflitos e
muito sangue de negros, indígenas, posseiros e sem terras.
Em seu “Origens agrárias do Estado Brasileiro”, Otavio Ianni inicia
o prefácio com a assertiva de que “todos os momentos mais notáveis
da história da sociedade brasileira estão influenciados pela questão
agrária”. Está presente na transição da Monarquia para a República,
do Estado oligárquico ao populista, do populista ao militar, na crise
da ditadura militar e nos movimentos e partidos que estão lutando
pela construção de outras formas de estado. E poderíamos acrescen-
tar que todos os governos que se seguiram à ditadura militar expe-
rimentaram a força e a premência da questão agrária: na transição
para a democracia, nos momentos mais tensos do governo Cardoso,
nas orientações das políticas e constituição dos governos petistas Lula
(2003- 2006 e 2007-2011); Dilma Rousseff (2011-2014 e 2015-2016) e
principalmente no golpe que tirou a presidenta Dilma do poder, che-
gando ao atual governo em que suas ações e seus discursos estão boa
parte deles pautados pela questão agrária.
Em todos estes momentos a questão agrária se manifesta, por
um lado, no fato de que os setores patronais se constituíram em ato-
res cujos poderes estão alicerçados no fato objetivo de dominarem

26
grandes extensões de terra que, por sua vez, se converte em outro
tipo de domínio que se dá no campo do poder político. E, por outro
lado, manifesta-se no sofrimento de populações que foram expulsas
do campo, quase sempre de forma violenta, e acabaram enfrentando
um segundo processo violento que foi a sua inserção nas precárias
periferias dos grandes centros urbanos (Martins, 2010) e aqueles que
resistem no campo inseridos de forma subalterna em trabalhos precá-
rios, sazonais, por vezes em cadeias de trabalho análogo ao escravo.
A principal ação pública que foi historicamente apresentada como
medida de solução para uma parte dos problemas que compõe a
questão agrária brasileira é a reforma agrária. Antes do golpe militar
de 1964, mesmo os que militavam contra a reforma agrária não assu-
miam publicamente serem contra ela (PALMEIRA, 1982). A reforma
agrária ganhou um tal peso e se constituía, mesmo para muitos capi-
talistas, como uma alternativa de “desenvolvimento” e, nesse sentido,
nem mesmo as entidades patronais falavam contra ela. Mas,

quando houve o golpe militar de 64 e desencadeou uma brutal repressão


sobre o movimento camponês, as organizações camponesas foram mui-
to atingidas e a luta pela reforma agrária baixou o seu tom. Mas essa luta
(...) em nenhum momento desapareceu. Ela assumiu formas diferentes
ao longo desses 16 anos de autoritarismo. (PALMEIRA, 1982, p.17)

Regina Bruno (2012) constata que para os servidores que trabalha-


vam nos órgãos fundiários durante a vigência do Estatuto da Terra
(IBRA/INDA) - produzido pelos governos militares -, essa legislação
expressava uma reforma agrária limitada, mas quase todos reconhe-
cem que foi um importante instrumento e referência de trabalho
apesar das limitações ao seu uso pelos servidores que atuavam na-
quele órgãos. Era com base no Estatuto da Terra que os servidores
ainda podiam realizar algumas ações voltadas à execução da política
de Reforma Agrária, apesar dos padrões estabelecidos e das diversas

27
instâncias envolvidas indicarem a prioridade atribuída à política de co-
lonização, em detrimento da reforma agrária (MOREIRA, 2017).8
Como assinala Ianni (2004 [1984]), a questão agrária sempre foi
“resolvida” em benefício dos interesses do capital e sem tocar nas es-
truturas de poder e na concentração fundiária. Os agentes do Estado
sempre agiram em função das demandas que emergiam por parte de
movimentos organizados. Assim, as populações atendidas por qual-
quer medida de distribuição de terras, foram aquelas que se organi-
zaram de forma coletiva e se impuseram pela pressão. Em todos os
outros casos a solução ficava a cargos das forças locais representa-
das pelos “grileiros, pistoleiros, jagunços e policiais”. (IANNI, 2004
[1984], 250).
Nesse sentido, é possível afirmar que a violência é a característi-
ca e a técnica mais marcante daquilo que definimos como a questão
agrária no Brasil, sem ela não seria possível aos setores empresarial,
militar e empresarial-militar (MEDEIROS, 2018) operar com objeti-
vos totalizantes a “morte do campesinato”, não apenas em termos de
controle dos limites de uma ação pública (LASCOUMES; LE GALÈS,
2012), mas como corpo organizado, e também enquanto indivíduos
cujas vidas passariam a ser ceifadas diante de resistência ao domínio
imposto sobre a terra.
Quando se observa o processo que destituiu a presidenta Dil-
ma Roussef e as características do governo Bolsonaro quanto ao

8.  Os documentos produzidos pelos movimentos sociais no período indicavam o contrapon-


to, como os periódicos e manifestações da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA),
criada em 20 de setembro de 1967, que indicam a reivindicação dos movimentos sociais do
campo pelo combate ao latifúndio, distribuição da terra e condições de produção nas áreas
dos grupos sociais demandantes e não pela dispersão territorial dos mesmos pelas áreas que
eram objeto da política de colonização, na medida em que reivindicavam a aplicação do Es-
tatuto da Terra no que dizia respeito à implementação da política de reforma agrária. Ver:
CARVALHO, Abdias Vilar; BRUNO, Regina; BRAGA, Antônio Pompeu – Projeto Memória
Incra-Relatório Final de Pesquisa. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural/
Ministério do Desenvolvimento Agrário/Rede de Desenvolvimento, Ensino e Sociedade –
NEAD/MDA-REDES. Contrato de consultoria n. 206037. Brasília, 2006.

28
tratamento destinado à questão agrária há muitas semelhanças com
o processo que produziu o golpe militar e o que foi promovido pelo
regime ao longo de sua vigência. Em termos relativos, talvez o retro-
cesso atual, quando se foca em temas como a reforma agrária, direi-
tos indígenas, quilombolas e de populações tradicionais e a questão
ambiental, seja ainda maior.
No que se refere à ditadura militar, a burguesia rural – composta
de latifundiários e empresários, nacionais e estrangeiros – foi o ele-
mento ativo na preparação e execução do golpe de estado (IANNI
(2004 [1979]; MENDONÇA, 2010). É dizer que o regime encontrou
uma de suas principais bases de apoio na agricultura e nos atores po-
derosos a ela vinculados. Desde dentro do regime, as primeiras arti-
culações golpistas por parte destes atores poderosos centraram sua
luta contra a reforma agrária, a liga camponesa e o sindicato rural.
De acordo com Ianni (2004 [1979]), à medida que se instala e se
desenvolve, a ditadura busca e rebusca as suas bases agrárias. Abre
“fronteiras” para o latifúndio e a empresa rural, cria favores e incen-
tivos fiscais e creditícios para a formação e a expansão de empreendi-
mentos capitalistas no campo. Segue uma longa citação que caracte-
riza aquele período:

A Amazônia – com suas populações indígenas, sitiantes, caboclas, de


posseiros e outros trabalhadores rurais – abre-se ao capital monopolis-
ta como uma vasta “fronteira”; converte-se num espaço de grandes ne-
gócios fundiários, em detrimento de camponeses, índios e operários do
campo. O próprio governo combate os posseiros, levando-os à proletari-
zação e à lumpenização, apenas uns poucos são transformados em colo-
nos, nos núcleos de colonização dirigida, oficial e particular, criados para
obstar uma verdadeira reforma agrária. Também as populações indíge-
nas são amplamente atingidas pela política de favorecimento da expan-
são intensiva do capitalismo na região. Por exemplo, não se demarca as
terras indígenas, que passam ao controle de grileiros e latifundiários ou

29
empresários. A FUNAI, inclusive, reduz ou transfere reservas indígenas
segundo as pressões dos negociantes de terras, exercidas no âmbito de
órgãos estatais como o INCRA, a SUDAM e outros. Ao mesmo tempo o
aparelho estatal impulsiona a exportação de produtos agrícolas, pecuá-
rios, extrativos e de mineração, para atender às exigências do “mode-
lo” econômico imposto ao Estado brasileiro pelo capital monopolista.”
(IANNI, 2004 [1984], 158).

Nesse mesmo sentido, o que é reforçado por Afrânio Garcia (1982)


é que a questão da reforma agrária nunca morreu, mas foi bloqueada
pelo regime que, ao mesmo tempo, reprimia brutalmente os movi-
mentos coletivos que a reivindicavam. Com a redemocratização, o
tema da reforma agrária ganha força desde as instâncias do Estado e,
sobretudo, desde os movimentos sociais. No governo Sarney (1985-
1990) se volta a falar abertamente sobre a necessidade da reforma
agrária, ministros de governo e outros operadores dos demais esca-
lões e órgãos são encarregados de avançar numa proposta e imple-
mentar a reforma agrária, mas fica evidente que a força dos atores
ligados ao latifúndio e aos interesses das elites agrárias iria se impor a
qualquer iniciativa9.
Ainda assim, identificamos nestes momentos históricos, mesmo
que pontualmente durante o período da ditadura, reações e pressões
por parte dos movimentos camponeses produzindo impasses e levan-
do a medidas, ainda que paliativas, para amenizar a situação. O que
se verifica desde o golpe de 2016 e, sobretudo, a partir do Governo

9.  No filme Terra para Rose, de Tetê Moraes, essa dinâmica de alimentar a expectativa de
que se avançaria na reforma agrária e ao mesmo tempo ver as diferentes forças políticas
conservadoras presentes nos três poderes a obstruírem, fica bem evidente. Ver também as
discussões e perspectivas reunidas em Leal (1986) em que se analisa as medidas propostas
no 1º Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República apresentada pelo ministro da
Reforma e Desenvolvimento Agrária Nelson Ribeiro. Em Bruno (2002) pode-se compreen-
der o processo de constituição de novas categoria entre os ruralistas e a emergência de novas
entidades representativas como a UDR.

30
Bolsonaro, que também se caracteriza por seu estilo autoritário, nos
remete mais diretamente ao período da ditadura e, no que se refere
à questão agrária, nos apresenta uma situação ainda pior. A questão
agrária na ditadura era, ao menos, reconhecida como uma questão e,
mesmo militarizada, se buscou algumas medidas para distensioná-la.
Como uma dessas medidas, é possível retomar, por exemplo, a
própria criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA), no ano de 1970, sob a justificativa de que faltava
um órgão que pudesse efetivamente responder a demanda existente
por terra e pelo “ordenamento da estrutura fundiária”, concentrando
as atribuições dos antigos INDA (Instituto Nacional de Desenvolvi-
mento Agrário) e IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), ain-
da que o objetivo do governo militar fosse manter a Reforma Agrária
apenas no nome, uma imagem pública conciliatória diante dos seto-
res excluídos do campo e a colonização como prática e forma de arre-
fecimento da mobilização dos movimentos sociais de luta pela terra10.
Mas hoje, como naquele período, o que se observa é um predo-
mínio da repressão e de ataques aos movimentos sociais organizados
e o afastamento de qualquer possibilidade de diálogo, sem qualquer
preocupação de manutenção de uma imagem pública conciliatória.
Ao contrário, o que se busca expressar é o extremo antagonismo
(“desfazer o que foi feito”), sendo esse o signo que valoriza o atual
governo e fideliza um eleitorado específico, conforme este trecho de
entrevista concedida por Nabhan Garcia, Secretário Especial de As-
suntos Fundiário e Presidente licenciado da UDR – União Democrá-
tica Ruralista: “Este é o recado que recebi do presidente da República:
estarei em sérios problemas se receber os foras da lei do MST”.11
A partir do governo Temer, quando o agronegócio passou a domi-
nar os poderes centrais do executivo, de forma exclusiva, as questões

10.  Criado pelo Decreto 1.110 de 9 de julho de 1970.


11. https://veja.abril.com.br/brasil/nao-consigo-dormir-sem-uma-arma-diz-secretario-de-
-assuntos-fundiarios/ (Consultado em 13/01/2020)

31
referentes a todos os problemas do campo, o tema da reforma agrária
foi desaparecendo tanto dos discursos quando dos documentos e das
ações, como ficará demonstrado na próxima seção.
Considerando essas dinâmicas e acontecimentos, chama a atenção
a mudança das condições políticas de atuação dos movimentos sociais
e mesmo de manutenção das conquistas e direitos já alcançados, colo-
cando como questão a fragilidade daquilo que havia sido constituído
e também o escopo dos desmantelamentos implementados. Coinci-
dentemente, Garcia (1982) cita o caso de um assentamento no Rio
de Janeiro que, mesmo após suas terras já terem sido desapropriadas
antes de 1964, com o regime militar ocorre a sua reversão, além de
outros casos em que essa reversão foi buscada a partir da violência di-
reta e de recursos judiciais. “Portanto, mesmo no caso de lutas que já
adquiriram determinado sucesso devido ao seu grau de mobilização
e mesmo à conjuntura política, há a possibilidade de os latifundiários
voltarem a se reapropriar daquelas condições” (Garcia, 1982, p.40,
41). Da mesma forma que na ditatura, o contexto atual é crítico para
os movimentos sociais organizados e para as populações do campo e
das florestas. Quando não sofrem as ações diretas das elites agrárias,
que contam com o respaldo ou a omissão do executivo, traduzidas
no aumento da violência no campo, das queimadas e desmatamen-
tos e na persistência de trabalhos análogos à escravidão, o Governo
Bolsonaro trata de atuar, de forma direta, para reverter conquistas já
alcançadas por quilombolas, posseiros, sem terras e indígenas. Esses
objetivos ficam explícitos nesta mesma entrevista de Nabham Garcia
mencionada acima:

Nas últimas três décadas, mais de 350 000 famílias foram assentadas.
Todos esses processos serão revistos? Claro que serão revistos. (...) Como
a secretaria tratará povos indígenas e quilombolas? De forma técnica,
dentro da lei. Nada mais será feito na base do tapetão, da pressão, da
ameaça. Por exemplo: essas propriedades indígenas que estão na esfera

32
administrativa ou mesmo na esfera judicial sem trânsito em julgado
serão todas revistas. Você sabe que está cheio de laudo antropológico
falso, que há atuação de ONGs com interesses escusos, que há ativi-
dades econômicas clandestinas em várias áreas indígenas. O governo
pretende rever a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol,
em Roraima? Estamos estudando a possibilidade de reverter dentro dos
parâmetros legais.

Ao analisar o contexto relativo ao final da ditadura, quando já es-


tava em curso um processo de abertura à democracia, Garcia (1982)
aponta ainda que as questões a se colocar, a partir do ressurgimento
das discussões sobre o significado e viabilidades da reforma agrária,
era a de identificar quais as contradições estão na base dessas lutas e
como a reforma agrária pode ser uma solução a estas contradições.
Reafirma, neste sentido, que falar em questão agrária implica em
reconhecer a existência de contradições e conflitos no campo entre
atores com interesse divergentes. Isso se manifesta ao longo da histó-
ria do Brasil sob diferentes formas quase todas persistentes ao longo
de muitas décadas. As questões elencadas pelo deputado Luis Car-
los Heinze “Chega de questões indígenas, quilombolas, trabalhistas,
ambientais, que travam o processo produtivo no país”, dão uma boa
dimensão do que está em jogo na questão agraria atual e que estão
presentes, de forma variada, aos menos desde o fim da escravidão.
Assim, não é possível compreender a questão agrária sem compreen-
der os atores que a produz e que, ao mesmo tempo, bloqueiam sua
solução.
Se, como demonstrado, os ruralistas sempre obstruíram avanços
em temas relativos à questão agrária e particularmente em relação
à reforma agrária, nos últimos anos e, sobretudo, após o golpe pro-
movido contra o governo da presidenta Dilma Roussef e apoiado
de forma decisiva pela Bancada Ruralista, ficou claro que essa pau-
ta não avançaria. Isso tem, evidentemente, relação direta com o

33
fortalecimento da Bancada Ruralista. É nesse sentido que concorda-
mos com Mitidiero, (2018) e Lima e Pereira (2018) que o processo
de conduziu à destituição da presidenta contou com esse ator cole-
tivo determinante. Evidentemente que outros atores ligados à classe
política, empresarial e da mídia também foram fundamentais nesse
processo, mas, a composição, as ações e discursos dos governos Te-
mer e do Bolsonaro reforçam o fato de que o poder e os recursos
públicos estão destinados, prioritariamente ao agronegócio. E, neste
caso, a Bancada Ruralista, mesmo representando diversos e muitas
vezes divergentes interesses, se reafirmou com a principal força polí-
tica nacional.
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) ou Bancada Rura-
lista, como é mais conhecida, é composta por deputados e senado-
res oriundos dos mais diversos partidos e constitui atualmente uma
das forças políticas com maior poder no cenário político nacional. É
a frente mais antiga e a mais forte. Conta, atualmente, com 241 de-
putados de um total de 513 e 39 senadores de um total de 8112. Mes-
mo considerando que entre legislatura passada (2015-2018) e a atual
(2019-2022) tenha ocorrido uma renovação de 55% dos componen-
tes da FPA na câmara dos deputados e de 37% no senado, ainda as-
sim a FPA teve um crescimento de 14%, saindo de 240 para os atuais
280 deputados e senadores. É a maior frente parlamentar mista em
exercício13. Tem formação multipartidária, ou seja, seus integrantes
se distribuem pela maioria dos partidos e quando querem influenciar
em determinada matéria, pressionam pela indicação interna de cada
partido. Ocupam 5 ministérios no atual governo (MAPA, Casa Civil,
Saúde, Cidadania e Turismo e, pelas declarações e ações, podemos
incluir aqui o Ministério do Meio Ambiente)

12.  https://fpagropecuaria.org.br/integrantes/todos-os-integrantes/ (Consultado em


12/01/2021)
13.  Conforme Gershon, Meireles, Barbosa (2020). https://olb.org.br/mapa-do-agronego-
cio-no-congresso/ (Consultado em 12/01/2021)

34
Controlam importantes comissões no congresso. Na câmara dos
deputados, além da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento
e Desenvolvimento Rural (CAPADR), a FPA também comanda as co-
missões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI),
Finanças e Tributação (CFT), Desenvolvimento Econômico, Indústria,
Comércio e Serviços (CDEICS) e de Integração Nacional, Desenvolvi-
mento Regional e da Amazônia (CINDRA). No Senado, os ruralistas
encabeçam as comissões de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ),
Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e de Serviços de Infraestrutura
(CI), além da Comissão Mista Permanente sobre Mudanças Climáticas
(CMMC), que reúne deputados e senadores para debater a execução da
Política Nacional sobre Mudança do Clima. Conforme Gershon, Meire-
les, Barbosa (2020) do Observatório do Legislativo (OLB), nas comissões
de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CA-
PADR) e de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS)
62% de seus integrantes são da FPA, ou 46 deputados de um total de 69.
No Senado, ocorre algo semelhante na ocupação da FPA nas duas co-
missões corresponderes a estas da Câmara dos Deputados. Em termos
de atuação, o Observatório do Legislativo afirma que “o setor tem capi-
laridade suficiente nas duas casas legislativas” e poder para fazer avançar
os seus interesses. Estes dados produzidos pelo OBL são emblemáticos:

Na Câmara, 48% das proposições relativas à agropecuária e ao meio am-


biente são de autoria de membros da FPA – proporção idêntica ao per-
centual de deputados que participam da Frente. No Senado, no entanto,
o impacto da Frente na definição de propostas sobre os temas é muito
mais expressivo. 70% das propostas nas duas áreas foi apresentada por
senadores da FPA, o que significa potencial impacto da frente na agenda
ambiental indicativa que circula na Casa.

A FPA não se resume a uma bancada que articula um conjunto


de parlamentares para atender aos interesses dos quais se apresentam

35
como signatários. A FPA está diretamente vinculada ao Instituto Pen-
sar Agropecuária (IPA), uma organização que é financiada por 38 as-
sociações do agronegócio que representam os seus diversos setores,
como, por exemplo, a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Ani-
ma) que reúne empresas como Monsanto, BRF, Seara, etc., a Única
(União da Indústria de Cana de Açúcar), Abifumo (Associação Bra-
sileira da Industria do Fumo), Abag (Associação Brasileira do Agro-
negócio). Conforme destacado por Bassi (2019), a partir de dados ob-
tidos pelo portal “De Olho nos Ruralistas”, o IPA recebe, ao menos,
760 mil reais por mês. Com todos esses recursos disponíveis, tanto os
“patrocínios” destas diversas organizações quanto a estrutura que os
congressistas já têm disponível no congresso fica ainda mais evidente
que o projeto de poder desse grupo tem um amplo alcance. Um al-
cance que fundamenta o discurso antidemocrático utilizado por Nel-
son Marquezelli quanto ao domínio que exercem sobre os rumos de
qualquer governo, como apontado acima, podendo, como ocorreu
em relação ao golpe contra Dilma, ignorarem os princípios básicos
de uma democracia e serem decisivos para a concretização daquilo
que estamos chamando aqui de agrogolpe. Esse poder e essa arrogân-
cia também estiveram bem evidentes no golpe de 64 e no domínio
das questões agrária e agrícolas subsequentes, inclusive ocupando os
principais cargos, relacionados a estes temas, no regime. (MENDON-
ÇA, 2010, p.40)
Os efeitos do golpe ficaram visíveis mesmo antes dele se confirmar
de forma definitiva. Logo que assumiu, ainda como interino, o vice-
-presidente Michel Temer extinguiu o Ministério do Desenvolvimen-
to Agrário criado ainda por Fernando Henrique Cardoso e onde se
alocaram as principais pautas acerca da questão agrária e da agricul-
tura familiar. Como a consolidação do golpe, Temer buscou, de for-
ma rápida e truculenta, suprimir direitos trabalhistas e previdenciá-
rios e cortar recursos sociais imponto a Lei do Teto de Gastos. Temer,
e na sequência, Bolsonaro, atuam para fortalecer o agronegócio e, ao

36
mesmo tempo, enfraquecer os camponeses e a pequena agricultura
familiar cortando recursos e desmontando programas específicos vol-
tados para a agricultura familiar, comunidades tradicionais e para a
reforma agrária (ALENTEJANO, 2018; LIMA; PEREIRA, 2018; SA-
BOURIN ET AL, 2020).
Os efeitos do golpe vão muito além do âmbito nacional. Conforme
Lima e Pereira (2018), a influência do Brasil no cenário internacional
até o momento que Temer assume era bastante significativa. As diver-
sas iniciativas exitosas no Brasil de combate à fome e fortalecimento
de ações voltadas para questões agroalimentares fez do país uma refe-
rência internacional, conforme detalhadamente descritos pelos autores.
Mas este modelo que vigorava no executivo em que se buscava um cer-
to convívio entre forças antagônicas não interessava ao agronegócio, já
que muitas dessas medidas exitosas conduzidas no plano agroalimentar
colocava em questão o modelo representado pelo agro já que

uma política externa que estimule a resiliência da pequena agricultura


e que valorize a segurança alimentar e nutricional a partir de circuitos
curtos de produção e consumo não pode conviver com o objetivo de in-
tensificar a globalização dos mercados agrícolas de commodities (LIMA;
PEREIRA, 2018, p.398)

Se nos governos petistas a convivência tensa entre diferentes pers-


pectivas de desenvolvimento deixava evidente uma enorme despro-
porção na destinação de recursos para agronegócio, observamos
hoje, após o governo Temer e, particularmente com o Bolsonaro, que
a perspectiva é confirmar o Brasil apenas como produtor de bens pri-
mários minerais e agrícolas. Além disso, não veremos as divisas ob-
tidas a partir desse tipo de inserção no mercado sendo destinadas a
uma maior distribuição de renda, como ocorreu no passado recente.
Deixou de ser uma referência na questão agroalimentar para se redu-
zir a um modelo de economia eminentemente agrícola:

37
O agrogolpe varreu como uma pororoca o espaço da agricultura fami-
liar e da economia camponesa na esfera da política externa, ao mesmo
tempo em que impulsionou iniciativas internacionais de interesse do
agronegócio. O Brasil, que antes se arvorava no centro das Relações In-
ternacionais como uma potência agroalimentar, agora volta a ter feições
de mera potência do agronegócio. (LIMA; PEREIRA, 2018, p.415)

Ocupando uma posição central nos aparelhos do Estado restrito


(MENDONÇA, 2013), os agentes do agronegócio, ao definirem a di-
nâmica política agrária e agrícola a partir de seus interesses, redefi-
nem os rumos da política institucional, com maior ou menor capa-
cidade de incidência em diferentes governos. Enquanto conduzirem
um projeto de nação à sua fisionomia, como expresso por Lima e Pe-
reira (2018), não há um projeto de reforma agrária que seja possível.
Para se ter uma dimensão deste poder e dos diversos bloqueios que
impuseram para inviabilizar qualquer proposta de alteração da estru-
tura fundiária e das políticas relacionadas à reforma agrária, apresen-
tamos um balanço dos últimos quatro anos que nos informa sobre
as continuidades nesta política, mas, sobretudo, para expor como o
processo de ruptura vem consolidando uma “contrarreforma agrária
em marcha acelerada” (ALENTEJANO, 2020).

DESCREVENDO OS DESMANTELAMENTOS PRODUZI-


DOS (2016-2020)

Fragilidade e instabilidade como rotas de longo prazo da


Reforma Agrária

Muitos foram os levantamentos e balanços críticos realizados sobre as


descontinuidades produzidas a partir do golpe e dogoverno Bolsona-
ro no que tange às políticas públicas para o campo brasileiro. Alguns
desses trabalhos tratam o quadro presente a partir de uma abordagem

38
de longo prazo sobre a questão agrária, a exemplo de Fernandes et al
(2020) que caracterizaram o governo como pós-fascista, e o período
iniciado com o governo Michel Temer (2016), com o golpe, como
uma segunda fase neoliberal, preocupado com uma periodização ana-
lítica. Sabourin et al (2020), por sua vez, analisaram o retrocesso confi-
gurado no período 2016-2020, a partir da análise das diferentes formas
de desmantelamento (BAUER et al, 2013) das políticas públicas, nesse
caso, das políticas rurais e ambientais, caracterizando o período como
de crise e rupturas nos planos político, econômico e social.
Não obstante os diferentes escopos e abordagens das análises, po-
demos verificar que alguns pontos se repetem: a preocupação com o
presente e o futuro da política de reforma agrária, a constatação de
que desde o final da década de 1990 e sobretudo nos anos 2000 hou-
ve um fortalecimento de grupos sociais populares do campo a partir
de diferentes políticas públicas, sobretudo, voltadas à categoria social
e política da agricultura familiar, e o fato de que há inflexões signi-
ficativas a partir do ano de 2016, atribuídas principalmente às ações
e omissões do governo Temer e, em seguida e de modo ainda mais
expressivo, do governo Bolsonaro. Nesse sentido, nosso esforço se
concentra principalmente sobre a política de reforma agrária como
uma política inaudita, nunca efetivamente estabilizada no quadro das
ações do Estado, cujos conteúdo e alcance permanecem em disputa,
entretanto, com sua maior inflexão e descontinuidade percebida no
período 2016-2020, ora tematizado.
Os movimentos sociais de luta pela terra falam atualmente em
uma “paralisação” da política de reforma agrária14, entretanto, como
procuramos argumentar, as ações e omissões em curso do governo

14.  Há referência à “paralisação” da Reforma Agrária na recente Arguição de Descumpri-


mento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 769/2020, proposta no Supremo Tribunal Fe-
deral (STF) pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agriculto-
ras Familiares – CONTAG, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras
na Agricultura Familiar do Brasil-CONTRAF BRASIL, e partidos políticos, por demanda e
articulação dos movimentos de luta pela terra, entre eles o Movimento dos Trabalhadores

39
federal sobre essa política parecem apontar, em primeiro lugar, para
uma mudança no seu conteúdo, com o abandono de uma política de
aquisição de terras e criação de assentamentos em prol de uma poten-
cialização das titulações dos beneficiários. Em segundo lugar, aponta
para uma política agrária e uma política fundiária que prescindiriam
da reforma agrária, o que pode ser verificado tanto em ações expres-
sivas, como com a exclusão no ano de 2019 do termo “reforma agrá-
ria” da ação orçamentária antes a ela vinculada, quanto em mudanças
legislativas – recodificações –, que apontam para uma “governança
fundiária” que oferece acesso à terra aos setores proprietários, enun-
ciando, portanto, uma função reconcentradora.15
Dessa forma, tratamos das principais ações e omissões que apontam
para um desmantelamento da política de reforma agrária, alterando
significativamente seu conteúdo, bem como procuramos inventariar o
conjunto de recodificações que, atualmente, informam e conformam a
base legal de uma “governança fundiária” neoliberal. Para tanto, anali-
samos conjunto documental constituído por legislações, documentos e
estatísticas oficiais, bem como a partir da bibliografia pertinente.
Vale registrar que compreendemos o período como um momen-
to em que esse ator coletivo que é o agronegócio alcança as estru-
turas do poder central do Executivo, tendo suas pautas plenamente
incorporadas, buscando homogeneizar a gestação e a gestão das po-
líticas públicas rurais, exceto por resistências que serão mencionadas
adiante. A chegada desse grupo ao centro do Executivo não pode ser
compreendida senão como um processo de longo prazo, sendo as-
sim, é possível dizer que mesmo durante os governos Lula da Silva

Rurais Sem-Terra (MST), contra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária


- INCRA.
15.  De fato, até 2019 o programa orçamentário nº 2066 era denominado “Reforma Agrária e
Governança Fundiária”, outrora “Reforma Agrária e Ordenamento da Estrutura Fundiária”
(2015 e anos anteriores), passando a se denominar apenas “Governança Fundiária” no balan-
ço provisório referente a 2020.

40
(2003-2006) (2007-2010) e Dilma (2011-2014) (2015-2016), esse ator
restou fortalecido, com desigualdades na política orçamentária, fra-
gilidades de regulamentação da legislação que trata da agricultura
familiar16, bem como uma série de ações organizadas promovidas
pela Bancada Ruralista, como a Comissão Parlamentar de Inquérito
FUNAI-INCRA, pretendendo atacar os órgãos responsáveis, respecti-
vamente, pela política indigenista e pelas políticas de regularização de
territórios quilombolas e reforma agrária, as inúmeras judicializações
promovidas por esse grupo, pretendendo obstaculizar procedimen-
tos administrativos e judiciais de desapropriação para fins de reforma
agrária, com respostas positivas do Judiciário ao pedidos suspensivos
desses procedimentos e processos (QUINTANS, 2005; CUNHA FI-
LHO, 2007; MOREIRA, 2014), impedimento no âmbito legislativo de
revisão dos índices de produtividade17 (Grau de Utilização da Terra e
Grau de Eficiência da Exploração), entre outras obstaculizações. Des-
sa forma, é possível dizer que dos anos 2000 até o presente esse grupo
não perdeu poderes político, econômico, simbólico e local, embora já
não fosse percebido mais como único ator no campo.
Tema de grande enfrentamento e disputa na Assembleia Nacio-
nal Constituinte de 1987, a reforma agrária sempre permaneceu
como tema controvertido entre os grupos proprietários e os setores

16.  A agricultura familiar enquanto categoria social, política e jurídica, adquiriu uma diver-
sidade de formatos e particularidades, tornando-se difícil determinar um único modelo. Para
Abramovay o importante é que estejam presentes três elementos fundamentais para sua de-
finição - gestão, propriedade e trabalho familiar (1997, p.3). A Lei nº 11.326/2006 determi-
na que, para ser considerado como agricultor familiar, é preciso que a propriedade tenha,
no máximo, quatro módulos fiscais, onde seja utilizada predominantemente mão de obra
familiar, assim como a base de sustentação da renda familiar tenha origem nas atividades
econômicas vinculadas ao próprio empreendimento. Essa legislação nunca foi efetivamente
regulamentada.
17.  Os índices utilizados atualmente datam da década de setenta. A realidade na qual foram
os mesmos fixados foi a refletida no Censo Agropecuário de 1975. A atualização dos índices
é determinada pelo art. 11 da Lei nº 8.629/1993, de acordo com o qual os parâmetros fixados
devem ser ajustados periodicamente, levando em conta o progresso científico e tecnológico
da agricultura e o desenvolvimento regional.

41
populares do campo brasileiro18. Mesmo após a sua inscrição consti-
tucional19, essa passou cerca de cinco anos sem regulamentação, se-
não vejamos uma das análises produzidas sobre o período:

O jogo político da regulamentação da Lei agrária (1991) representou um


novo embate entre as organizações progressistas: Confederação Nacio-
nal dos Trabalhadores na Agricultura – Contag; Departamento Nacional
de Trabalhadores Rurais – DNTR/CUT; Movimento dos Sem-Terra –
MST; Comissão Pastoral da Terras – CPT; Conselho Indigenista Missio-
nário – Cimi; Confederação Nacional das Associações dos Servidores do
Incra – CNASI e Instituto de Estudos Socioeconomicos – Inesc versus as
estratégias de protelamento das elites agrárias: Confederação Nacional
da Agricultura – CNA; Sociedade Rural Brasileira – SRBN; Organização
das Cooperativas Brasileiras – OCB; União Democrática Ruralista –
UDR e Tradição, Família e Propriedade – TFP. (OLIVEIRA, 2002, p.168)

O quadro, portanto, para essa ação pública nunca foi de estabili-


dade, embora na história recente esteja passando pelo seu período de
maior retrocesso. Sobre as políticas públicas voltadas para os setores
populares do campo brasileiro, Moacir Palmeira, em Modernização,
Estado e Questão Agrária (1989) já informava acerca do Estado como
ação e presença, no que tange às políticas públicas marcadas pelas

18.  Ver: PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, or-


dem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.
19.  A Reforma Agrária como política pública encontra fundamento constitucional no artigo
184 da CRFB/1988 e é regulada por diferentes normas, sendo as principais a Lei 8.629/1993,
a Lei Complementar 76/1993 e o Estatuto da Terra. A implantação da política constitui atri-
buição do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e se dá mediante a
criação de projetos de assentamento, tendo como beneficiárias famílias agricultoras alijadas
do acesso à terra. A função social da propriedade rural, um dos fundamentos constitucio-
nais da política pública de Reforma Agrária, teve seus requisitos definidos pelo artigo 186
da CRFB/1988, quais sejam, promover o aproveitamento racional e adequado; utilizar ade-
quadamente os recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observar as
disposições que regulamentam as relações de trabalho e, ainda, promover exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

42
relações entre os setores público e privado, chamando a atenção para
os instrumentos que permitiam fortalecer os setores dominantes do
campo em detrimento da produção familiar.20
Além disso, a instabilidade institucional por que passam os órgãos
fundiários, não se limitou ao período da Ditadura Militar, através de
um conjunto de extinções e criações que definiam prioridades e uma
Policy governamental prioritária, a despeito das populações do campo
em sua luta por direitos de acesso à terra, já que pode ser percebi-
da também a partir da recente extinção no Ministério do Desenvol-
vimento Agrário. Nesse sentido, a fragilidade das políticas públicas
voltadas para os setores populares no campo brasileiro pode ser com-
preendida como uma característica de longo prazo, produzida por di-
ferentes mecanismos.
Não obstante a importância de perceber o longo prazo de fortale-
cimento desse ator coletivo e suas investidas contra a reforma agrária,
estamos de acordo com as análises que compreendem o ano de 2016
como um marco de uma política de desmantelamento (SABOURIN et al,
2020), pois conforme veremos, temos a partir desse período uma re-
união de técnicas de desconstrução da política pública. Há, portanto,
uma contramarcha imposta sobre a política de reforma agrária.

Da política de aquisição de terras e criação de assentamen-


tos às titulações massivas

As políticas de austeridade fiscal que vêm sendo adotadas desde 2014


impactaram os gastos com diferentes políticas públicas, entre elas a

20.  Essa instabilidade também foi imposta à política quilombola, inscrita na Constituição de
1988, essa política teve a primeira regulamentação no ano de 2001 pelo Decreto 3.912/2001 do
então Presidente Fernando Henrique Cardoso, incorporando inúmeros conceitos dos grupos
antagonistas, e posteriormente em 2003, com o Decreto 4.887/2003, atendendo as demandas
dos movimentos negros e quilombolas. Quando a política pública ganha efetivas condições de
realização, o antigo Partido da Frente Liberal, atual DEM, propôs a Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade 3229 contra esse Decreto, questionando sua constitucionalidade material e formal.

43
política de reforma agrária, contribuindo para ainda maior vulnera-
bilidade das populações do campo brasileiro, tendo a Emenda Cons-
titucional 95/2016, que congela as despesas primárias do governo fe-
deral nos patamares de 2016 por duas décadas, um de seus principais
instrumentos21.
No ano de 2016, com um “agrogolpe” de Estado configurado com
o impeachment de Dilma Rousseff, a autarquia responsável pela po-
lítica de reforma agrária, o Instituto Nacional de Colonização e Re-
forma Agrária (Incra), passa a vivenciar um processo de desmonte
de sua estrutura e capacidade operativa. Isso deve ser melhor com-
preendido também no quadro de desestruturação em curso das po-
líticas públicas de desenvolvimento rural voltadas aos trabalhadores
rurais e outros grupos sociais, cujo principal marco recente consiste
na extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em
12 de maio de 2016, através da medida provisória nº 726, que alte-
rou e revogou a Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, transferindo,
naquele momento, suas competências para o Ministério do Desen-
volvimento Social (MDS) e atribuições para a Secretaria Especial de
Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil
da Presidência da República (Sead) do Brasil, criada em 27 de maio
de 2016, pelo decreto n° 8.780. Posteriormente, a Secretaria Espe-
cial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa
Civil da Presidência da República foi extinta pela Lei nº 13.844, de
18 de junho de 2019, sendo, ao mesmo tempo, passadas as suas atri-
buições para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, vincula-
da ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA),
pasta ministerial composta principalmente por setores antagônicos

21.  Diversas organizações da sociedade civil participam na condição de amicus curiae das
Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) propostas contra a Emenda Constitucional do
Teto dos Gastos Públicos (EC95/2016), com pedido de suspensão imediata dessa. Para mais
informações ver: https://direitosvalemmais.org.br/wp-content/uploads/2020/05/DOCU-
MENTO_STF_Maio_2020.pdf. Acesso em 20 de jan. 2021.

44
à política de reforma agrária. Seguindo um padrão de nomeações
de militares e conservadores comprometidos com o agronegócio,
o secretário especial de assuntos fundiários nomeado pelo gover-
no Bolsonaro é Nabhan Garcia, pecuarista e ex-presidente da União
Democrática Ruralista (UDR).
A extinção do MDA é um marco político e simbólico da tentativa
de estabelecimento de um modelo único de agricultura por parte do
governo Bolsonaro, centrada no agronegócio. Nesse sentido, passam
a ser implementados uma série de “desfazimentos” das estruturas ad-
ministrativas, bases legais e estrutura orçamentária da política de re-
forma agrária que serão aqui sistematizadas não de forma exaustiva.
Em nossa análise, esses desfazimentos geram mais do que uma
“paralisação” da política, posto que estão em curso reconstruções a
partir de um programa neoliberal que tem como principal caracte-
rística investidas sobre o estoque de terras públicas, flexibilização do
controle dessas terras pelo Estado, destinação ao mercado de terras e
mobilização de grupos sociais em torno da exploração dessas terras
(gerando engajamentos e reforçando antagonismos). Experimenta-
mos significativas mudanças legislativas que fragilizam o controle da
União sobre o estoque de terras de que é proprietária, como é o caso
da Medida Provisória 910 de 16 de dezembro de 2019.
Na história recente da ação governamental de criação de assenta-
mentos rurais, vê-se um decrescente orçamento destinado à demanda
de acesso à terra. De fato, a ação de obtenção de imóveis rurais rea-
lizada pelo Incra sofreu substancial corte orçamentário, sobretudo a
partir da implantação da política de constrição orçamentária iniciada
após 2014, aprofundada com a EC 95/2016, alcançando patamares
quase nulos desde a posse de Jair Bolsonaro.
No ano de 2017 foram empenhados de R$ 140.420.560, 63 (cento
e quarenta milhões, quatrocentos e vinte mil, quinhentos e sessenta
reais e sessenta três centavos), enquanto no ano de 2018 foi de R$
38.669.896,31 (trinta e oito milhões, seiscentos e sessenta e nove mil,

45
oitocentos e noventa e seis reais e trinta e um centavo), portanto, um
corte de cerca de 72,46 % com as políticas de austeridade.

Figura 3- Gráfico Ação Orçamentária de Aquisição de Terras 211-B.


Fonte: SIGA BR. Elaboração própria. Atualizado até 31.12.2020

Como todo desmonte, o ataque à estrutura orçamentária da re-


forma agrária vem acompanhada de um ataque simbólico, passando
o governo a operar apagamentos como no ano de 2019, em que o
programa orçamentário ao qual a ação de aquisição de terras está vin-
culada era denominado “Reforma Agrária e Governança Fundiária”,
outrora “Reforma Agrária e Ordenamento da Estrutura Fundiária”
(2015 e anos anteriores), passando a se denominar apenas “Governan-
ça Fundiária” no balanço provisório referente a 2020, cujos valores
não podem ser percebidos no gráfico pela falta de expressividade, sen-
do previsto R$ 10.163.153,00 (dez milhões, cento e sessenta e três mil
e cento e cinquenta e três reais), empenhado R$ 9.163.153,00 (nove
milhões, cento e sessenta e três mil e cento e cinquenta e três reais),
e pago R$ 6.402.931,00 (seis milhões, quatrocentos e dois mil e nove-
centos e trinta e um reais).
O Gráfico abaixo retrata o decréscimo dos valores anuais empe-
nhados para realização da referida ação de aquisição de terras.

46
Figura 4- Valor Anual Empenhado - Ação de Aquisição de Terras 211.
Fonte: SIGA BR. Elaboração própria. Atualizado até 31.12.2020

Os principais indicadores da política de reforma agrária, quais se-


jam, número de famílias assentadas, hectares destinados à política e
projetos de assentamento criados, demonstram uma queda expres-
siva entre 2014 e 2017. Houve queda de aproximadamente 96% de
famílias assentadas nesse período, 88% de hectares destinados à re-
forma rgrária, bem como 79% de projetos de assentamento criados,
conforme é possível observar nos gráficos abaixo:

Figura 5- Número de famílias assentadas


Fonte: Incra. Elaboração: própria.

47
Figura 6- Hectares destinados à RA
Fonte: Incra. Elaboração própria

Figura 7- Número de Projetos de Assentamento criados


Fonte: Incra. Elaboração própria.

Verifica-se o aumento no número de hectares destinados à reforma


agrária, e famílias assentadas nos anos de 2018-2019, e, paradoxalmen-
te, decréscimo do número de assentamentos criados. Uma análise su-
perficial dos dados indica crescimento da política nesse ano, embora
em números muito inferiores a 2014, momento em que ainda não se
faziam sentir os efeitos do ajuste fiscal iniciado no segundo governo

48
Dilma Rousseff e os efeitos dos desmantelamentos operados na es-
trutura do INCRA, com sua mudança de arena, quando inserido no
MAPA.22 Podemos compreender esse dado também a partir do longo
tempo de duração dos procedimentos administrativos de desapropria-
ção para fins de reforma agrária. Isso porque muitos investimentos de
instrução dos referidos procedimentos, como a realização dos laudos
de vistoria técnica, agronômico, de avaliação, entre outras etapas ins-
trutórias, apenas culminarão no resultado da política após longos anos
de debates extrajudiciais e judiciais, nos quais, em alguns casos, os pro-
prietários logram êxito em medidas suspensivas desses procedimentos.
De fato, são procedimentos cujos resultados das ações promovidas no
curso de um período, com uso de recursos orçamentários de diferentes
exercícios, podem ser sentidos e contabilizados em gestões seguintes. 23
Outras duas importantes informações ainda contribuem para a
compreensão do quadro, o INCRA informa em seus “Relatórios de
Gestão” que a política de reforma agrária vem sendo executada a par-
tir da retomada de lotes irregularmente ocupados, destacando que as
famílias assentadas e os lotes disponibilizados à reforma agrária no úl-
timo período se devem a essas ações. Isso contribui para explicarmos
por que o número de assentamentos criados é quase nulo, mas ao
mesmo tempo ainda é possível perceber movimentação positiva nos
dados de famílias assentadas em lotes da Reforma Agrária.
Em um de seus documentos oficiais, o relatório de gestão anual de
2019, o próprio Incra informa que o “índice de acréscimo de área des-
tinada a reforma agrária” foi igual a 0,00%, ficando aquém do estima-
do para o período (0,10%) (INCRA, 2019), atribuindo esse resultado

22.  O Decreto nº 9.667, de 02 de janeiro de 2019, aprovou a estrutura regimental do Mi-


nistério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, vinculou o Incra a esse Minis-
tério, cabendo à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários supervisionar diretamente esta
autarquia.
23.  Além disso, pairam dúvidas sobre a inclusão de famílias quilombolas em territórios titu-
lados por determinação judicial comporem os números da política de reforma agrária, estra-
tégia há muito utilizada pela autarquia para tornar seu alcance de metas mais robusto.

49
à suspensão do processo de obtenção pelo memorando-circular nº
01/2019/SEDE/INCRA, de 27 de março de 2019, uma das normas in-
ternas produzidas logo no início do governo Bolsonaro, por meio da
qual foi difundida no órgão orientação para a suspensão das vistorias
de imóveis para fins de reforma agrária, bem como os processos de
obtenção de terras na fase de instrução. Com isso, a ação de aquisição
de terras na autarquia restou ainda mais precarizada, dando lugar à
ampliação da estratégia de titular as áreas já consolidadas.
A reforma agrária que o governo busca realizar contraria todos
os objetivos de uma verdadeira reforma agrária. O próprio órgão em
seus documentos oficiais registra que em 2016 o afastamento das me-
tas pode ser atribuído às “transições organizacionais” (INCRA, 2016)
e, alguns anos depois, afirma que a elas se somaram restrições de na-
tureza fiscal (INCRA, 2019).
De acordo com o próprio órgão em seus relatórios de gestão, ou-
tras ações priorizadas nesse período são a titulação de projetos de as-
sentamento e de regularização fundiária de imóveis rurais, passando a
ser as principais ações de governo desenvolvidas pelo órgão (INCRA,
2019). A média da concessão de documentos nos últimos 10 anos cor-
responde a cerca de 34.000 documentos/anos, sendo praticamente
esse o número de títulos entregues no ano de 2019.
Importa destacar que a ação de titulação de projetos de assentamen-
to inclui a outorga de documentos provisórios (Contrato de Concessão
de Uso – CCU) e definitivos (Título Definitivo – TD ou Concessão de
Direito Real de Uso – CDRU), além da concessão e destinação de imó-
veis remanescentes dos projetos de assentamento, sendo meta anuncia-
da pelo INCRA, a concessão de “600 mil documentos de formalização
de vínculos com a terra, tanto nos assentamentos rurais como nas gle-
bas públicas federais, até o ano de 2022.” (INCRA, 2019, p. 44)24

24.  Nesse aspecto, destacam-se as publicações do “Plano Regula 600”, da Portaria Incra
1.242 de 14 de junho de 2019, da MP 910 de 2019 e do decreto 10.165 de 2019 e da Instrução
Normativa nº 100 de 2019.

50
Nesse sentido, em 02 de dezembro de 2020 foi publicada a Portaria
Conjunta nº 1, instituindo o Programa Titula Brasil, cujo principal
objetivo é acelerar os procedimentos de titulação e regularização fun-
diária das áreas rurais sob domínio da União ou do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária, deixando evidente a inflexão das
atribuições e mudanças bruscas de prioridade do INCRA no governo
Bolsonaro.

AS RECODIFICAÇÕES COMO CONDIÇÃO DE POSSIBI-


LIDADE PARA UMA GOVERNANÇA FUNDIÁRIA NEO-
LIBERAL

Ao passo que se operam desfazimentos nas estruturas orçamentárias,


legislativas e administrativas da política de reforma agrária, podemos
perceber sobretudo a partir de 2016 uma série de alterações no mar-
co legal das políticas de reforma agrária e de regularização fundiária
que apontam para construção das condições de um programa neoli-
beral de gestão da terra, em que mais uma vez, o setor desigualmen-
te favorecido é o agronegócio e os grandes proprietários de modo
mais amplo.
As diversas políticas de regularização fundiária que estão sendo
produzidas desde 2016, algumas datando desde 2015, junto às diversas
ações de desmantelamento que explicitamos acima, com enfoque no
abandono da política de aquisição/obtenção de terras, demonstram
não apenas transformações no conteúdo da reforma agrária, mas
também o seu deslocamento a um lugar de desimportância enquanto
política de acesso à terra.
Essa é uma das razões das judicializações promovidas pelas orga-
nizações dos setores populares do campo, que submeteram ao STF
o escrutínio da constitucionalidade das medidas que retiram a re-
forma agrária da agenda política do país. É o caso, por exemplo da
Ação Direta de Inconstitucionalidade 5623/2016, que questiona a Lei

51
13.178/2015 que ao permitir ratificação em títulos nas faixas de fron-
teira, legitima área públicas irregularmente ocupadas, sem uma limi-
tação de hectares, gerando uma facilitação de aquisição dessas terras
por médios e grandes proprietários, em detrimento dos grupos vul-
nerabilizados, que não apenas não detém meios de legitimar posses
com tal facilidade, mas também, no âmbito da política de reforma
agrária acessam não apenas a terra, mas uma série de outras ações de
permanência.
Em resposta a esses atores, a Ministra Carmen Lúcia, Relatora da
ADI, se manifestou no seguinte sentido:

Embora a ratificação de registro imobiliário não se confunda com a doa-


ção de terras públicas ou mesmo com a desapropriação para fins de re-
forma agrária, a destinação dos imóveis, pela sua origem pública, deve se
compatibilizar com a política agrícola e com o plano nacional de refor-
ma agrária pelo disposto no art. 188 da Constituição da República: (...).

Atualmente, também são constitucionalmente questionados


os memorandos Memorando 01/2019/SEDE/INCRA, Memo-
rando-Circular 06/2019/SEDE/INCRA, e o Memorando-Circular
08/2019/SEDE/INCRA. Em 09 de dezembro de 2020 foi proposta
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº
769 pelas organizações CONTAG, CONTRAF BRASIL e partidos po-
líticos (PT, PSOL, REDE, PSB e PC do B), tendo em vista “graves
lesões a preceitos fundamentais da CRFB-1988, praticadas por órgãos
federais do Estado brasileiro decorrentes da ‘paralisação’ da reforma
agrária e da não destinação de terras públicas federais a essa finalida-
de” (ADPF 769).
Nesse sentido, dentre os pedidos dessa ação estão a retomada do
andamento de processos administrativos de reforma agrária sus-
pensos, que o INCRA adote providências para a imissão na pos-
se dos 187 (cento e oitenta e sete) processos que estão pendentes

52
apenas dessa medida para ultimação da desapropriação, uma vez
que o pagamento já foi realizado; determinar a completa e total
execução física dos recursos orçamentários previstos na LOA 2020,
concernentes às ações da reforma agrária; determinar a elabora-
ção de um plano nacional de reforma agrária, de forma urgente,
inclusive para permitir a recomposição da PLOA 2021 no que diz
respeito à reforma agrária, já que suas ações tiveram redução mé-
dia de 95%; determinar que nenhuma terra pública ou devoluta
federal seja destinada a fim estranho à reforma agrária enquanto
não elaborado o respectivo plano; impedir a desistência de proces-
sos judiciais em que já tenha havido o pagamento da indenização,
mediante expedição de TDAs.
Além das normas já mencionadas, vemos um conjunto de ou-
tras recodificações que tornam o acesso à terra pelos setores pro-
prietários facilitado, reforçando desigualdades no campo, em de-
trimento da reforma agrária, reforçando modelos de regularização
fundiária cujas principais características são a quantidade de terras
públicas destacadas para o patrimônio privado, a desvinculação de
uma política agrícola e de reforma agrária e o total descontrole
sobre os beneficiários, favorecidos por pagamentos da terra nua em
valores menores daqueles praticados para os beneficiários da políti-
ca de reforma agrária.
Dentre as recodificações, chama a atenção a promulgação da
Lei 13.465, de 11 de julho de 2017, conversão da Medida Provisória
759/2016, que estende a legislação referente à regularização fundiária
rural e urbana da Amazônia Legal para todo país; altera instrumentos
legais de obtenção de terras, de cadastro e de seleção de candidatos
ao Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), assim como os
critérios de permanência dos beneficiários assentados, gerando não
apenas flexibilização da exploração das áreas públicas e grilagem de
terras, criando obstáculos à política de aquisição de terras para a re-
forma agrária e obstaculizando também o acesso à terra pelas famílias

53
sem-terra.25 Houve em seguida, a publicação da Instrução Normativa
nº 95, em 17 de dezembro de 2018, visando disciplinar as ações de
regularização fundiária das áreas rurais situadas em terras da União e
do Incra fora da Amazônia Legal.
Além disso, foram promovidas uma série de modificações na Lei
11.952/2009 (Programa Terra Legal). Na versão original desta legis-
lação, a regularização alcançaria imóveis com até 15 módulos fiscais e
não superiores a 1.500 hectares (art.6º, § 1º da redação da Lei 11.952
sem alterações posteriores), aumentado para 2.500 hectares com a
Lei 13.465/2017 e passando a apresentar uma série de alterações com
a Medida Provisória 910 de dezembro de 2019.26
De acordo com o Tribunal de Contas da União, em auditoria
realizada sobre o Programa Terra Legal com referência aos anos de
2012 a 2017, quando apresenta a área de impacto da política sobre
a Amazônia Legal, indica que essa região possui “aproximadamente
5.217.423 km², correspondente a cerca de 61% do território brasilei-
ro” (Acórdão 727/2020. TCU. Rel. Min. Ana Arraes). A Medida Provi-
sória 910 de 10 de dezembro de 2019, vigente até19 de maio de 2020,
cujos efeitos ainda precisam ser estudados, ampliou o escopo da Lei
11.952/2009, dispensava a verificação prévia dos limites informados
nos requerimentos de regularização para imóveis de até 15 módulos
fiscais. Houve ampliação temporal do marco de regularização, uma
vez que a primeira data de possibilidade de regularização, constan-
te do texto original da Lei 11.952/2009 era 1º de dezembro de 2004,

25.  IN nº 98, que trata dos procedimentos para seleção de famílias beneficiárias do Progra-
ma Nacional de Reforma Agrária (PNRA); a IN nº 99, que dispõe sobre as normas para Titu-
lação de Assentados e Consolidação de Assentamentos da reforma agrária; e a IN nº 100, que
discorre sobre os procedimentos para regularização fundiária das ocupações incidentes em
áreas rurais. Com as publicações dos novos normativos, foram revogadas as IN 95, 96 e 97
que anteriormente regulavam estes processos.
26.  Essa norma foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adi) nº 4269/2009 pro-
posta pela Procuradoria Geral da República (PGR), julgada no ano de 2017, embora o inteiro
teor do seu acórdão só tenha sido publicado em 01/02/2019.

54
sendo, em seguida, ampliado o prazo de regularizáveis até 22 de julho
de 2008 pela Lei 13.465 de 2017 e, por último, a MP 910 amplia até 05
de maio de 2014.
Como dito antes, o limite de terras regularizáveis já havia sofrido
importante modificação com a Lei 13.465/2017, com a ampliação de
15 módulos fiscais ou até 1.500 hectares, constantes da redação ori-
ginal da Lei 11.952/2009 para 2.500 hectares na legislação de 2017.
Ademais, a MP 910/2019 ao fixar os requisitos e forma de averigua-
ção, altera no caput do artigo 13, de 4 para 15 módulos fiscais, com
averiguação por meio de declaração do ocupante. De fato, a normati-
va consagrou a anistia aos desmatadores, permitindo que os mesmos
que especularam a terra por desmatamento tivessem o produto da
grilagem legitimado.
Outras flexibilizações criadas pela MP 910 foi a diminuição do pre-
ço da terra, e ampliação do prazo de regularização para aqueles que
tenham descumprido o contrato firmado com os órgãos fundiários
federais. Na redação da Lei 11.952/2009 consta contrato firmado com
o Incra até fevereiro de 2009 e estabelece o prazo de 3 anos a contar
de 11 de fevereiro de 2009 para adimplemento do contrato. A altera-
ção da Lei 13.465/2017 ampliou para contratos firmados até 22 de
dezembro de 2016, com prazo de 5 anos contando da data de entrada
em vigor da Medida Provisória 759/2016, ou seja, 22 de dezembro de
2016. Já a Medida Provisória 910/2019 alcançava contratos firmados
até 10 de dezembro de 2019, sem fixar prazo para o pedido de regu-
larização.
Após amplo debate e resistência dos movimentos sociais, entida-
des da sociedade civil e atores institucionais como o Ministério Público
terem contestado a conversão da MP 910 em lei, houve a proposição
do PL 2633 proposto pelo Deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), e,
atualmente, o mais novo ato editado para a matéria é o Decreto nº
10.592, de 24 de dezembro de 2020, que regulamenta a Lei nº 11.952,
de 25 de junho de 2009, para dispor sobre a regularização fundiária das

55
áreas rurais situadas em terras da União, no âmbito da Amazônia Le-
gal, e em terras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá-
ria, por meio de alienação e concessão de direito real de uso de imó-
veis, com diferenças significativas de texto em relação à MP 910, mas
ainda assim inscrita dentro desse programa mais amplo de garantia do
destacamento das terras públicas em direção a um mercado de terras.
Com a publicação da MP 870/2019 convertida na lei 13.844/2019,
houve rearranjo da organização administrativa federal que culmi-
nou na extinção da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e
do Desenvolvimento Agrário – SEAD/CC houve a transferência
para o Incra da atribuição de promover a regularização fundiária
na Amazônia Legal, sendo importante registrar mais uma vez que
suas atribuições estão inseridas no MAPA, historicamente antagôni-
co às matérias da reforma agrária e à demanda ambiental, e direitos
e políticas voltados para sem-terra, quilombolas, indígenas e povos
e comunidades tradicionais 27.
No Relatório de gestão do PPA 2016- 2019, a autarquia destaca o elen-
co de novas prioridades do INCRA, informando o “fim de um ciclo”:

Considerando o curso histórico da Política de Reforma Agrária, marcada


inicialmente por um ciclo de expansão, quanto ao alcance do universo
de seu público-alvo (o trabalhador rural sem-terra) e a ênfase na aquisi-
ção de terras para assentamentos e considerando ainda os mais recentes
fatos que evidenciam o esgotamento desse ciclo, dos quais citamos: i) a
determinação dos Acórdãos TCU nº 775/2016 e nº 1976/2017, que sus-
penderam cautelarmente os processos de cadastro e seleção de novos
beneficiários para o Plano Nacional de Reforma Agraria - PNRA e de no-
vos pagamentos e remissões dos créditos instalação, bem como, o acesso
a outros benefícios e políticas públicas atrelados à Reforma Agrária; ii) a

27.  Ver ainda Portaria Incra 1.242/2019, do Decreto 10.165/2019 e Instrução Normativa
100/2019.

56
Lei nº 13.465/2017, que atualiza a Lei nº 8.629/1993, que trata da refor-
ma agrária e regularização das ocupações em Estados da Amazônia pelo
Programa Terra Legal; iii) o Decreto 9.311/2018, que regulamentou a
Lei nº 8.629/93 e a Lei nº 13.001/2014, dispondo sobre a seleção, perma-
nência e titulação das famílias beneficiárias do PNRA; e iv) o cenário de
restrição fiscal, refletido na redução das dotações orçamentárias eviden-
ciam, mais do que nunca, a necessidade se manter a atual direção estra-
tégica da política de reforma agrária, no sentido de aumentar os esforços
de governança territorial e de regularização fundiária com a emissão de
títulos para a famílias já assentadas e os posseiros de boa-fé. (INCRA,
2019. p 5-6).

Dentre as ações relacionadas à política de reforma agrária, demos


atenção nesse texto principalmente à aquisição ou obtenção de terras
e aos principais indicadores da política, relacionadas a ela, percebe-
mos a inflexão e transição que marca o que a autarquia chamou em
seu documento oficial de “fim de um ciclo”, passando a enunciar o
objetivo institucional de titular as famílias que já são beneficiárias da
política, com isso, garantindo que esse estoque de terras possa ser re-
inserido no mercado.
A esse objetivo se somam como condição de possibilidade não
apenas a obstaculização de outras dimensões da política de reforma
agrária, como a garantia de assistência técnica às famílias agriculto-
ras, ação praticamente anulada do ponto de vista orçamentário no
ano de 2019, entre outras, mas também um conjunto de recodifica-
ções que pretendem ser a base legal dessa inflexão. “Parecer, caneta”,
o binômio que descreve o conjunto de ações do governo federal de
desfazimento da política de reforma agrária, traduzido em medidas
provisórias, decretos, portarias, resoluções, memorandos, instruções
normativas cujos objetivos centrais são desmobilizar e enfraquecer as
estruturas duramente constituídas por reivindicações de longo prazo
de diversos atores da sociedade civil.

57
À GUISA DE CONCLUSÃO: OS (DES)CAMINHOS DA RE-
FORMA AGRÁRIA SE ENCONTRAM COM AS LUTAS
TERRITORIAIS

Os dados do relatório “Terra, Poder e Desigualdade na América La-


tina”, publicado pela OXFAM, indicam que, no Brasil, 45% da área
rural está nas mãos de menos de 1% das propriedades (Oxfam Brasil,
2016). Essa extrema desigualdade na distribuição da terra no país se
aprofundou ainda mais, nos últimos anos. De acordo com o levanta-
mento do último Censo Agropecuário do IBGE, de 2017, junto com
a expansão da área dos estabelecimentos agropecuários em 5%, com-
parados aos dados do Censo de 2006, ocorreu uma maior concentra-
ção fundiária com a ampliação da área dos grandes estabelecimentos
agropecuários (IBGE, 2017). Não é possível olhar para esses números
sem relacioná-los com as formas fraudulentas de apropriação da ter-
ra, que estão na base da estrutura fundiária brasileira e que, neste
momento, se complexifica através de mecanismos mais sofisticados
- instrumentos legais, políticos e institucionais – para promover a le-
galização do ilegal, enquanto procuram esvaziar as demandas histó-
ricas pela Reforma Agrária e de titulação dos territórios dos povos e
comunidades tradicionais.
Sem desconsiderar o conjunto de ações regressivas frente às pro-
posições que visam alterar a estrutura fundiária e reorientar as prio-
ridades das políticas públicas associadas à Reforma Agrária, o reco-
nhecimento de que, na atual conjuntura, como já mencionado, está
em curso um projeto de “contrarreforma agrária em marcha acele-
rada”28 (ALENTEJANO, 2020), também nos sugere considerar o que
nos revela um outro importante dado: “39% do território brasileiro
está hoje fora do mercado de terras, pois trata-se de terra sob controle
estatal (Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Assentamentos

28.  Referência ao título do artigo de Paulo Roberto Raposo Alentejano “As políticas do Go-
verno Bolsonaro para o campo: a contrarreforma agrária em marcha acelerada”, publicado
na Revista da ANPEGE, 2020.

58
Rurais) ou tituladas coletivamente (Territórios Quilombolas)” (Alen-
tejano, 2020, p. 366). Sob este prisma, se não resta dúvidas de que o
projeto de Reforma Agrária no Brasil, tal como proposto pelos seto-
res progressistas – sob o lema “Reforma Agrária ampla, imediata e
massiva” – vem sendo derrotado em diferentes conjunturas sociais
e políticas; os conflitos agrários e ambientais que se inscrevem neste
grande latifúndio chamado Brasil, na atual conjuntura, ainda podem
nos oferecer outras leituras sobre as resistências e estratégias de lutas
protagonizadas pelos povos do campo e o seu potencial para deslocar
a questão agrária e porque não a própria Reforma Agrária para um
campo de lutas abertas e indefinidas.
Como toda questão que desperta divergentes e calorosos debates,
a luta e a legitimação da pauta da Reforma Agrária junto ao Estado
e à sociedade civil é processual e dinâmica, conforme a correlação de
forças e os interesses em jogo. Neste ponto, é significativo resgatar
um balanço de uma pesquisa realizada pelo Ibope, em março de 1997,
por encomenda da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que
revelou: 94% dos entrevistados apoiam a luta do MST pela reforma
agrária; 88% acham que o governo deve confiscar as terras improdu-
tivas e distribuí-las aos Sem-Terra; 85% são favoráveis às ocupações
de terras como instrumento de luta pela reforma agrária; 77% acham
que o MST é legítimo porque reúne pessoas que querem terra para
trabalhar (POLETTO, 1997, p. 81). Essa legitimidade da Reforma
Agrária, naquele contexto, certamente esteva associada à comoção
social diante do massacre de Eldorado dos Carajás, bem como ao
reavivamento da questão agrária a partir da grande marcha do Mo-
vimento do Sem Terra - MST, em 1997, que durou três meses para
chegar em Brasília.
No mesmo sentido, nos anos 1980, mais particularmente no con-
texto de elaboração da Constituição Federal de 1988, a historiadora
Márcia Motta nos recorda que “o debate sobre a Reforma Agrária
foi o que mais despertou disputas de concepções dentro e fora da

59
Assembleia Nacional Constituinte” (MOTTA, 2006, p. 1). Dentre as
emendas populares direcionadas para ANC, o tema da Reforma Agrá-
ria recebeu emenda popular com mais de 1,2 milhões de assinaturas
(QUINTANS, 2011, p. 461), evidenciando o quanto esta pauta desper-
tava interesse e legitimidade junto à sociedade civil29, mas não passava
ilesa às disputas de concepções a ponto de comportar uma polissemia
de sentidos (Motta, 2006, p. 231). Passados mais de três décadas de
vigência da Constituição Federal de 1988, ainda não é pacífico o en-
tendimento sobre o quanto ela avança e o quanto retrocede no que
diz respeito à Reforma Agrária, mas a visão predominante é de que
a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 congregou diversos
interesses de modo que o texto constitucional aprovado é “contra-
ditório, ambíguo e com lacunas” (QUINTANS, 2011, p. 459). Essas
contradições se refletem nos dispositivos referentes à propriedade da
terra, a começar pela inclusão do direito de propriedade como um
direito fundamental, ao tempo em que o condiciona ao cumprimento
da função social30. Mas, para entender o que a CF/1988 representa
para a democratização do acesso à terra no Brasil, mais do que olhar
para o seu contexto de aprovação, é preciso problematizar as possibi-
lidades em aberto para sua aplicabilidade - as suas ambiguidades e o

29.  É importante registrar que a década de 1980 foi marcada pela transição política e a res-
tauração do Estado de Direito. Em 1984, no seio das lutas pela democratização da terra e da
sociedade brasileira emerge o Movimento dos Sem Terra como um movimento camponês
de grande expressão e visibilidade, que até os dias atuais levanta a bandeira de luta pela terra
e pela reforma agrária, passando por transformações ao longo de quase quatro décadas de
atuação.
30.  A respeito da efetivação deste princípio constitucional, quando consideramos as tendên-
cias de julgados relacionados à questão agrária no Brasil, com as devidas ressalvas, ainda
predomina a visão privatista e civilista da lei. Para Alfonsin (2003), alguns julgados, predomi-
nantemente, reafirmam a lógica privativa que nega a função social da propriedade ao tempo
em que despolitiza as questões jurídicas ao desresponsabilizar o Judiciário da obrigação na
efetivação da justiça social. Para se contrapor a isso, algumas leituras interpretativas apon-
tam para análise da questão a partir do reconhecimento da situação social dos conflitos de
terra no país, tratando a questão da função social da propriedade como um instrumento
jurídico e político na construção da justiça social e por que não da própria Reforma Agrária
(ALFONSIN, 2003), mas esta segunda posição não tem sido prevalecente.

60
quanto está passível às reapropriações de classe em torno dos sentidos
atribuídos aos direitos conferidos no seu texto.
Neste ponto, a concepção da propriedade como um direito fun-
damental se inscreve no mesmo texto em que se aprova o direi-
to dos povos indígenas a seus territórios no art. 231, a garantia do
território dos remanescentes de quilombolas no art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e os arts. 215 e 216
referente à proteção estatal aos modos de fazer, criar e viver dos di-
ferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Na Assembleia
Nacional Constituinte, atravessada por diversos interesses em torno
da propriedade e da posse da terra, a aprovação desses artigos não
foi um processo dado, concedido, mas foi fruto da mobilização dos
povos indígenas, quilombolas e outros grupos que tensionaram para
que o texto constitucional passasse a incorporar outras noções de
território e de cultura, distintas da lógica da propriedade privada e
da concepção de cultura dominante. Por outro lado, como eviden-
ciam algumas pesquisas, também não se tinha, naquele momento,
uma dimensão sobre os possíveis impactos e desdobramentos desse
conjunto de dispositivos para as lutas futuras pelo acesso à terra e ao
território. Sobre a questão quilombola, por exemplo: “o texto sobre
o tema sofreu poucas alterações ao longo do processo e parece não
ter sido objeto de disputas”, posto que os constituintes acreditavam
“que seriam poucas as terras remanescentes de quilombos no país”
(SANTOS, 2015, p. 179).
No período que se seguiu e principalmente após os anos 2000, na
conjuntura dos governos petistas, a regulamentação desses disposi-
tivos constitucionais em leis e políticas específicas foi acompanhado
de uma ascensão das lutas e dos embates jurídicos para o reconhe-
cimento dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicio-
nais. O Estado brasileiro ratificou a Convenção 169 da OIT referente
aos direitos dos povos Indígenas e Tribais em Países Independentes,
em 2003; promulgou o Decreto Federal nº 4887/2003 referente às

61
comunidades quilombolas e instituiu a Política Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais, através do Decreto Federal n.º 6.040/2007
e com isso fortaleceu as disputas institucionais aos direitos culturais e
territoriais dos povos e comunidades tradicionais, e não somente dos
institutos jurídicos que tratam da reforma agrária com base na distri-
buição de terras. Esses direitos conferidos pela lei passam a ser apro-
priados por diferentes grupos, invisibilizados até então, mas que no
conflito em torno de outras concepções de terra e território, passa-
ram a estar no centro da questão agrária atual, o que também explica
a intensificação dos conflitos nos seus territórios. Em 2010, a Comis-
são Pastoral da Terra, nos seus registros, já indicava que:

em um total de 528 ocorrências registradas de conflitos sociais no cam-


po no Brasil, no decorrer de 2009, cerca de um quarto delas correspon-
dia a povos indígenas e quilombolas, à comunidades de fundo de pastos
e comunidades de faxinais, à quebradeiras de coco babaçu, à comuni-
dades extrativistas na Amazônia, ribeirinhos e outras unidades sociais
usualmente designadas como povos ou comunidades tradicionais (CPT,
2010, p. 111).

Ao mesmo tempo, o aumento considerável do número de confli-


tos e a intensificação da violência sobre os povos originários, quilom-
bolas e demais comunidades tradicionais evidenciam que os direitos
conferidos pela lei, ainda que apontem para um caráter protetivo,
não garantem a permanência das comunidades nos territórios histo-
ricamente ocupados, uma vez que se inscrevem num solo fraturado,
nas disputas de interesses divergentes no seio do Estado. Em outra
direção, o avanço legislativo provocou uma reação dos grupos con-
servadores em diversas frentes: i) por meio da violência privada e ins-
titucional quando nos últimos anos a esmagadora maioria dos que
sofrem com as ações de violência são povos e comunidades tradicio-
nais, como vem sendo reiterado, a cada ano, nos relatórios da CPT;

62
ii) pelas interpretações jurídicas a respeito desses direitos, iii) pelos
projetos de lei que obstaculizam a efetivação desses direitos.
Nesse conjunto de ações que atacam os direitos dos povos e comu-
nidades tradicionais, as decisões judiciais que reforçam a tese do mar-
co temporal31 e orientações normativas nesse sentido, a exemplo do
Parecer Normativo 001/2017 emitido pela Advocacia Geral da União
– AGU, que ficou conhecido como “Parecer do genocídio”, reforçam
a materialização do “racismo epistêmico”32 quando tratam esses gru-
pos como “cidadãos de segunda classe” (ARAUJO JUNIOR, 2018,
p.30). No momento de dar aplicabilidade às leis mencionadas, há que
se considerar outros fatores, inclusive de práticas judiciais e de outros
espaços de decisão do Estado, que tornam esses direitos inoperantes
ou de somenos importância.
Na atual conjuntura, ainda importa registrar a intensificação da
violência no campo no Brasil e sobre esses grupos em particular.
Considerados como anos da ruptura política, 2015-2017, a CPT apon-
ta que a média anual de assassinatos saltou para 60,6% (CPT, 2017, p.
7-8). Esse forte acirramento da violência no campo gravou o ano de
2017 como o ano da volta dos massacres no campo, pois, “desde 1988
não se registrava, num único ano, mais do que dois massacres” (CPT,
2017, p. 7-8). Em relação às comunidades quilombolas, considerando
o período dos últimos 10 anos, o ano de 2017 foi o mais violento com
um crescimento exponencial, de 350%, no número de assassinatos de
2016 para 2017 (CONAQ; TERRA DE DIREITOS, 2018, p. 46).
Outra face desta violência também se revela pelos pífios núme-
ros da titulação dos territórios dos povos indígenas, de comunidades

31.  Como observa Araujo Junior, referindo-se aos povos indígenas, “[...] a exigência de que
esses povos comprovem sua vinculação ao território ou sua habitação permanente os infe-
rioriza novamente ao exigir que adotassem, às vésperas da promulgação da Constituição,
posturas de resistência num momento histórico em que o ordenamento jurídico os tratava
como incapazes” (ARAUJO JUNIOR 2018: 30).
32.  Ver Baldi (2014).

63
quilombolas e demais comunidades tradicionais. Além dos cortes de
verbas, os órgãos responsáveis pelos processos de reconhecimento e
de titulação dos territórios tradicionais foram aparelhados por agen-
tes e gestores públicos, que fazem declarações públicas e tomam deci-
sões institucionais que contrariam os interesses desses grupos quando
sua missão institucional deveria ser exatamente a de oferecer prote-
ção e reconhecer seus direitos, a exemplo do que ocorreu com a Fun-
dação Cultural Palmares.
Mesmo nesta conjuntura política e social profundamente adver-
sa quanto ao reconhecimento dos direitos territoriais, não podemos
perder de vista que as lutas pela terra e pela reforma agrária estão
profundamente imbricadas com os projetos em disputa no país, de
tal modo que não poderiam ser atomizadas ou mesmo reduzidas, em
suas distintas dimensões, aos resultados institucionais de uma conjun-
tura específica. Neste ponto, o reconhecimento político e jurídico dos
povos e comunidades tradicionais recorda-nos a própria dinamicidade
da luta pela terra. As especificidades das comunidades tradicionais,
suas questões culturais, ambientais, territoriais e jurídicas passam,
fundamentalmente, pelos conflitos ambientais e as lutas territoriais
envolvendo geraizeiros, vazanteiros, indígenas, quilombolas, fundos
e fechos de pasto, pescadores artesanais, dentre outros, em contra-
posição aos empreendimentos econômicos, aparentemente neutros,
mas que se estabelecem sob relações de poder e com aprofundamen-
to das desigualdades de acesso.
Dito isto, os povos do campo – para utilizar uma expressão de sín-
tese e generalizadora – protagonizam lutas territoriais, mobilizando
as arenas políticas e jurídicas em torno da afirmação de direitos ao
tempo em que revelam a insustentabilidade ambiental das formas
atuais de exploração da terra e de extração dos bens ambientais. Com
isso, desestabilizam o “consenso” em torno das políticas empresa-
riais de aquisição de terras associadas a grandes projetos extrativistas
– “naturalizados” sob o primado da produtividade econômica acima

64
de qualquer outro bem e valor – e justificam o direito à vida e às di-
ferenças quando afirmam outros modelos de posse e propriedade,
constituídos em torno das formas de uso comum da terra e dos bens
ambientais (DARDOT; LAVAL, 2017). Seus enfrentamentos e suas
reivindicações se cruzam com as lutas pela Reforma Agrária ou mes-
mo reorientam os seus sentidos a partir do acionamento de outras
concepções de uso e de relação com a terra, o território e os bens
ambientais.
É significativo considerar neste período de recrudescimento dos
conflitos do campo, um incremento de 34,2%, entre as médias com-
paradas do período de 2011 a 2015 e 2016 a 2019, de acordo com os
dados da CPT. Neste mesmo período, também se intensificaram as
lutas e reações insurgentes com sua diversidade de formas de atuação
e de sujeitos que as protagonizam. Em 2019, por exemplo, a luta pela
terra e o território se deslocou dos espaços de ocupações e retomadas
para ocupar as ruas com manifestações e ações de protestos e reivin-
dicações, numa média de 3,5 por dia, sendo, segundo o registro da
CPT, a maior ocorrência ao longo de uma década considerada (CPT,
2019, p. 7).
Ao lado dessas reações insurgentes, outros modos de fazer e viver
no campo agrário brasileiro mobilizam o direcionamento da pauta da
Reforma Agrária para exposição e disputa pública de outras formas
de produção e consumo de alimentos por meio de práticas sustentá-
veis – da agroecologia, das feiras camponesas, das redes agroalimen-
tares alternativas - em resposta ao aumento indiscriminado do uso de
venenos que vêm sendo utilizados na produção agropecuária associa-
da ao modelo produtivo do agronegócio.
Num país onde o capitalismo se impõe de uma forma bastante
agressiva no campo, manifestado pela presença das empresas agroe-
xportadoras e suas formas predatórias de uso dos bens ambientais,
resistem as experiências e as formas não capitalistas de reprodução
da vida. Nesse sentido, é relevante e significativo reconhecer outros

65
sentidos e direcionamentos da luta pela terra como condição da pró-
pria luta pela reforma agrária, que agora se volta, mais visivelmente,
para a defesa dos territórios, das águas, dos espaços de reprodução
identitária e de reprodução da vida em comum.

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sidência
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11.952, de 25 de junho de 2009, para dispor sobre a regularização fundiária das áreas

70
rurais situadas em terras da União, no âmbito da Amazônia Legal, e em terras do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, por meio de alienação e
concessão de direito real de uso de imóveis. Diário Oficial da União – Seção 1 -
28/12/2020, página 6
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das Disposições Constitucionais Transitórias para instituir o Novo Regime Fiscal e
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registros imobiliários decorrentes de alienações e concessões de terras públicas si-
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regularização fundiária rurale urbana, sobre a liquidação de créditosconcedidos aos

71
assentados da reforma agráriae sobre a regularização fundiária no âmbitoda Ama-
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União – Seção 1- 03/12/2020, página 1.

72
2
REGULARIZAR AS IRREGULARIDADES:
A GOVERNANÇA DOS RECURSOS
NATURAIS NAS FRONTEIRAS AGRÍCOLAS
DOS CERRADOS NORDESTINOS1
Valter Lúcio de Oliveira
Eve Anne Bühler

Introdução
O que se produz atualmente sobre o Cerrado guarda paralelo como
o que se passou no século 19 com a mata atlântica. Impulsionado por
lógicas muito semelhantes, havia tanto o imperativo moral, quanto
o imperativo econômico, o próprio discurso de se constituir como
sustento da economia nacional, também estava em voga naquele pe-
ríodo. Conforme apontado por Dean (1996, p. 183,184) “O governo
imperial desejava ampliar o comércio porque praticamente toda a sua
receita derivava de taxas de importação” e, nesse sentido, “o império
tinha, como axioma, que uma vez satisfeitas as demandas dos pro-
prietários de terra, estes em troca obteriam divisas para cobrir as des-
pesas do Estado”. Neste caso o café está para a Mata Atlântica assim
como a soja está para o Cerrado. Conforme descrição de Dean (1996,

1.  Este capítulo é uma versão ligeramente alterada e atualizada de artigo apresentado no
56.º Congreso Internacional de Americanistas e publicado em seus anais: ALCÁNTARA,
M; GARCÍA MONTERO, MERCEDES; LÓPEZ, FRANCISCO SÁNCHEZ (Coords.). 2018.
MEMORIA DEL 56.º CONGRESO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS. Ciencias y
medio ambiente. Salamanca: Ed. Universidad Salamanca. p. 612-622.

73
p.195,196), o café encontrou um ambiente ideal para o seu desenvol-
vimento no Rio de Janeiro e suas características ecológicas impuse-
ram limites físicos à expansão para ouras regiões. “O café avançou,
portanto, pelas terras altas, de geração para geração, nada deixando
em seu rastro além de montanhas desnudadas”.
É isso o que fundamentalmente vem ocorrendo em grandes áreas
do Cerrado. Fortalecidos pelo discurso de que são o principal suporte
da economia nacional e investindo no marketing da eficiência, do apri-
moramento e da indispensabilidade2, a agricultura empresarial que se
estabeleceu e continua se expandido por uma vasta região dominada
pelos Cerrados nordestinos o tem feito às custas de importantes efei-
tos sobre tal ambiente. Constata-se que, na mesma medida em que se
nota a valorização e expansão do agronegócio, a depreciação e a redu-
ção das áreas de Cerrado fica notória. Esse movimento contou com a
colaboração imprescindível de agentes controladores e financiadores
do Estado, das suas agências de pesquisas assim como dos setores in-
dustriais relacionados à agropecuária e, ultimamente, com a difusão
de um discurso extremamente permissivo do Governo Bolsonaro em
relação à aplicação das leis. Apenas a partir da atuação de tais agentes
foi possível introduzir as áreas do Cerrado nas atuais cadeias globais de
valor e reforçar a sua contribuição para a economia nacional.
No entanto, diferentemente do século 19, a representação social das
questões ambientais contemporâneas se traduz em uma espetacular
expansão da sensibilidade ecológica que, por sua vez, faz com que uma

2.  Durante várias semanas a Rede Globo, principal rede de telecomunicação do Brasil, pro-
duziu e divulgou em horário nobre da TV aberta, diferentes versões de uma propaganda
muito bem elaborada e de alta qualidade visual, que sempre iniciavam com a seguinte frase:
“Agro: a Indústria-Riqueza do Brasil” e sempre finalizavam com o mesmo mote: “Agro é
tech, agro é pop, agro é tudo”. Conforme diretor de marketing da Rede Globo, o objetivo
da propaganda era fortalecer a marca do “agro” e criar empatia e segurança na população
em geral; “a ideia é fazer com que o brasileiro tenha orgulho do agro”. “Queremos mostrar
que a riqueza gerada pelo agronegócio movimenta os outros setores da economia”. Con-
forme: http://www.startagro.agr.br/por-que-o-agronegocio-precisa-de-uma-comunicacao-
-moderna/

74
ampla maioria da população se diga ecologista (ALPHANDÉRY et al.,
1992). Frente a tal “consenso” se tornou improvável qualquer agente, pú-
blico ou privado, expor, de forma impune, discursos ou práticas deprecia-
tivas do meio ambiente. Nota-se, ao contrário, um esforço dos diversos
agentes envolvidos com as cadeias produtivas de eufemizar suas práticas
de modo a incorporar um sentido de responsabilidade ambiental. Em re-
lação ao agronegócio que se expandiu para o Cerrado, essa perspectiva se
apoiou, a princípio, na ideia de que a Amazônia seria preservada, mesmo
que em detrimento do Cerrado. Atualmente a sensibilidade ecológica
também fez com que a “opinião pública” se despertasse para a importân-
cia ecossistêmica do Cerrado, conduzindo os agentes do agronegócio e
os operadores do Estado a se voltar, ao menos de forma discursiva, para a
sua proteção ou formulação de justificativas para seu uso.
Nesse sentido, este artigo busca analisar a constituição de uma gover-
nança ambiental estabelecida a partir da relação entre atores localizados
na estrutura de funcionamento do Estado e as elites do agronegócio,
buscando compreender a dinâmica de elaboração das leis e normas que
regulam e, ao mesmo tempo, promovem o avanço agrícola no Cerrado.
Trata-se de refletir acerca dos mecanismos legais e operacionais que re-
metem a uma perspectiva de governança ambiental que articula o apelo
ambiental difuso na sociedade à promoção dos interesses dos atores liga-
dos às cadeias produtivas. Estabelece-se um processo de neoliberalização
da natureza definido pela forma com que agentes econômicos se posicio-
nam frente às leis e normas e incorporam as necessidades ambientais e
traduzem esta conjunção na exploração dos recursos naturais.

Neoliberalização da natureza e o discurso ambiental do


agronegócio
Apesar de serem essenciais ao funcionamento do mundo globalizado
contemporâneo, os países da América Latina e Caribe participam das
cadeias globais agregando pouco valor aos seus produtos. Inserem-se

75
na origem de tais cadeias exportando bens e produtos intensivos em
recursos naturais que servirão a processos produtivos dotados de
maior valor agregado em países economicamente centrais (ESTEVA-
DEORDAL et al, 2013). Vale destacar que, dos 10 principais produ-
tos exportados pelo Brasil em 2011, sete são produtos primários ou
produtos pouco processados baseados em recursos naturais. Destes,
metade são provenientes da agricultura e apenas um dentre estes cin-
co recebe algum processamento inicial3. A predominância destes pro-
dutos na economia do país se ampliou significativamente a partir de
2009 quando se intensificou as relações comerciais com a China. Dos
produtos que o Brasil exporta para este país na época, quase 90% são
bens primários e dois terços de toda a exportação para a China é cons-
tituído de soja e minério de ferro (STURGEON ET AL, 2013). Essas
tendências só se confirmaram desde então e esse modelo de desenvol-
vimento, que envolve relações de poder multiescalares, valoriza os es-
paços conforme o valor dos recursos naturais exploráveis e a posição
do país na divisão internacional do trabalho.
A centralidade dos produtos primários na pauta comercial da
América Latina inspirou Svampa (2012) a sugerir que estávamos vi-
vendo uma espécie de “consenso das commodities” em alusão ao que
foi o Consenso de Washington, cujo foco estava voltado para a va-
lorização financeira. Esta autora identifica que ingressamos em uma
nova ordem econômica e política impulsionada fortemente pelos pre-
ços das commodities e pela pressão do consumo nos países em desen-
volvimento. Tal diagnostico vai no sentido do que aponta Brandão
(2017, p.51) ao considerar que nos

principais países da América Latina, os temas da desindustrialização, repri-


marização, neoextrativismo, entrega do patrimônio comum e/ou público

3.  Para maiores detalhes ver Sturgeon et al. (2013), disponível em http://www.funcex.org.
br/publicacoes/rbce/material/rbce/115_AEJBKS.pdf.pdf ) (consultado em 24/01/2021)

76
à “iniciativa privada” forânea, a expansão dos enclaves de exploração de re-
cursos naturais, a especialização regressiva em bens primários, dentre ou-
tros fenômenos, estão todos de volta e se reatualizam na velha narrativa da
necessidade de modernização desses países, imposta pela presente rodada
de neoliberalização, que varre todo o continente neste ano de 2016.

Se este processo já foi marcante nos governos progressistas na dé-


cada de 2000, ele vem se intensificando com os novos governos de
verniz ainda mais neoliberal e politicamente ultraconservadores vi-
gentes atualmente, nos quais a participação e influência dos ruralistas
fica bastante notória.
No entanto, falar de “neoliberalismo” pode ser inapropriado para
a compreensão de determinados fenômenos, pois ao definir como
neoliberal a política econômica de governos muito diferentes, viu-se
diante de dificuldades heurísticas na utilização de tal conceito4. Sendo
assim, nos parece mais interessante pensar em processos que impli-
cam práticas de neoliberalização, como sugere Noel Castree (2008a,
2008b), do que aplicar um conceito geral para definir práticas estatais
diversas e muitas vezes contraditórias. Assim, mesmo em países que
atribuíram maior importância ao Estado na condução de processos
econômicos e produtivos, como foi o caso de vários países latino-a-
mericanos, com destaque para o Brasil, pode-se identificar a aplicação
setorial de políticas econômicas e difusão de determinadas lógicas
que rementem a um processo de neoliberalização. Consideramos,
portanto, analiticamente pertinente pensar as práticas dos agentes
do agronegócio e seus efeitos sobre os recursos naturais a partir dos
mecanismos estruturais e específicos que rementem, ao menos em
determinado sentido, ao neoliberalismo.
Nas regiões de fronteira agrícola dominadas pelo agronegócio,
as questões ligadas ao processo de neoliberalização da natureza e do

4.  Tais ponderações estão sistematizadas em Maillet (2015).

77
rural são particularmente manifestas. O Estado, após ter ocupado
o papel de maior promotor do avanço da agricultura para o Centro
Oeste, destinando pesados investimento no reequilíbrio territorial, na
pesquisa, no financiamento da produção e das infraestruturas, alterou
sua estratégia nos últimos anos. Sem abandonar totalmente as ferra-
mentas até então empregadas, ele busca desde os anos 1990 repassar
parte destas iniciativas para o setor privado. Paralelamente, e mesmo
sem o desengajamento do Estado, as multinacionais investem em ati-
vidades e campos de atuação nos quais o Estado tinha se consolidado
como ator central ao longo do século XX. Considerando que a neoli-
beralização não é um processo linear, cada Estado o experimenta de
forma particular, adequando os seus dispositivos econômicos e nor-
mativos à cultura e às instituições nacionais (BRENNER et al. 2010).
Dessa forma, observa-se a articulação de princípios gerais, que vão
além das fronteiras e se impõem como tendência da expansão do fe-
nómeno, com as características locais específicas de caráter históricas,
territoriais e políticas que conduzem a efetuar certas adaptações, por
tentativa e erro, e a constituir sua originalidade. Analisaremos em se-
guida, os processos em jogo nestas regiões colocando o foco no papel
dos atores públicos e privados inseridos numa dinâmica de governan-
ça ambiental, bem como sobre a produção de discursos e normas que
sustentam a apropriação privada e frequentemente ilegal do Cerrado
por elites agrárias integradas ao mercado mundial de commodities.

Segurança jurídica e governança ambiental: a dinâmica de


regularização e regulação da expansão agrícola.

Incorporando as imbricações crescentes entre o político e o económi-


co, o conceito de governança ambiental remete a mudanças nas orga-
nizações, modalidades, arranjos institucionais e escalas atuando for-
malmente ou informalmente na tomada de decisões sobre os usos da
natureza. (BRIDGE; PERREAULT, 2009). A partir dessa perspectiva,

78
pode-se analisar a permeabilidade do Estado às influências de diferen-
tes atores públicos e privados, nacionais ou internacionais.
Ainda que seja possível formular tipos ideais que remetem aos po-
los definidos pelo mercado ou pelo Estado, o que se verifica na prática
são experiências híbridas tensionadas pelos atores que se embrenham
nesse processo. Especificamente no que se refere à governança am-
biental, as tentativas de estabelecer um mercado do meio ambiente
não podem se efetivar sem um enquadramento institucional volun-
tarista centrado no Estado e no seu aparelho regulatório. Trata-se de
um enquadramento que se efetiva a partir da “colaboração” de atores
econômicos diretamente interessados. Os instrumentos de governan-
ça ambiental que se apoiam sobre uma retórica do mercado podem
ser defendidos em nome do liberalismo e da eficiência econômica,
mas eles são, ao mesmo tempo, uma forma de proteção dos interes-
ses da elite econômica (BULL ET AL., 2014) ao modificar, em profun-
didade, o pensamento e a gestão da natureza.
Nesse sentido, as fronteiras agrícolas se efetivam como “chaves
espaço-temporal” importantes no processo de incorporação de re-
cursos naturais ao circuito econômico e suas transformação em fonte
de acumulação do capital (MARTINS, 2009; MACHADO, 1994; BER-
NARDES, 2005). A dinâmica que se estabelece nessas regiões além
de conflitiva, “renova” os atores, intensifica a utilização de recursos e
tem no Estado um ator em estreita relação com os atores privados lo-
cais e, de forma coordenada, ou não, vão definindo o ritmo do avanço
da agricultura. A dinâmica estabelecida a partir desse processo de go-
vernança possibilita pouca margem de manobra para se impor regu-
lações ambientais mais eficientes e eficazes. Assim, estes espaços de
monocultura que substituíram a vegetação natural criando vastos ter-
ritórios dominados pelo agronegócio vão constituindo o que Hecht
(2005) define como “zonas de sacrifício”.
Com a atuação direta do Estado, as novas regiões agrícolas conso-
lidam, dessa forma, o poder de atores do agronegócio em diferentes

79
escalas, tanto nos espaços públicos quanto privados, e produzem for-
mas corporativistas de organização e de utilização do espaço que fa-
vorecem a acumulação do capital (Frederico et Almeida, 2016).
Associados aos aspectos discutidos acima, dois eventos tiveram
um papel importante em favor da mercantilização do Cerrado e con-
tribuem para o estabelecimento de um novo quadro de referências
normativas para os atores do setor: a revisão do Código Florestal e a
edição de uma lei de regularização fundiária no estado do Piauí. Se o
Código Florestal introduz alteração no uso do solo, a lei de regulari-
zação fundiária permite a conversão de terras devolutas em terras pri-
vadas. São dois processos que introduzem ou reforçam mecanismos
de privatização e mercantilização da natureza.
A apropriação privada e a mercantilização já fomentam a emer-
gência de novos mercados e vem mobilizando vários atores, mesmo
que a regulamentação da lei ainda não tenha sido concluída. Uma im-
portante alteração introduzida com o novo código tem relação com a
negociação de áreas para a compensação de reserva legal possibilitada
pelas Cotas de Reserva Ambiental (CRA). Trata-se de um mecanismo
que permite a venda ou a servidão de áreas para o fim de regulari-
zação ambiental. Se até então uma área de terra com florestas era
menos valorizada economicamente em relação á uma área comple-
tamente desmatada, com os mecanismos de compensação propostos
no novo código as áreas de florestas passam também a ter algum in-
teresse econômico. Do ponto de vista do mercado, isso vem sendo
tratado como a abertura de novas oportunidades de negócios5.
Tal possibilidade aberta com o novo código e, no geral, a própria
lei, é defendida como algo que veio para “modernizar” a relação entre

5.  Ver as reportagens em:


http://www.ecconsolucoesambientais.com.br/oportunidades-em-areas-rurais-com-floresta-
-volume-xxvii-ago-2017/ (Consultado em 24/01/2021)
http://exame.abril.com.br/negocios/dino/cresce-a-procura-por-areas-rurais-para-compen-
sacao-ambiental-no-brasil/ (Consultado em 24/01/2021)

80
produção e meio ambiente. O discurso da modernização vai associa-
do à lógica da eficiência produtiva e à lógica da segurança jurídica. É
perceptível a importância da regulação e da regularização tanto no
que se refere às questões ambientais quanto às fundiárias (BÜHLER
E OLIVEIRA, 2018). Na verdade, as duas questões estão intimamen-
te relacionadas. As questões relacionadas à segurança jurídica e aos
processos de regulamentação e regularização ficam bem destacados
nas falas de dois técnicos do Instituto de Terras do Piauí (INTERPI)
ao apresentarem o trabalho de regularização fundiária que estavam
desenvolvendo:
a meta do INTERPI [é] implementar a regularização fundiária (...)
no Piauí todo. Segurança jurídica: os proprietários visando a amplia-
ção do processo produtivo, a preservação do meio ambiente e o de-
senvolvimento sustentável. Dar respostas aos processos judiciais. (...)
O juiz já está mandando esses processos para cá, que sabe que a gente
tá trabalhando na região. (...) Nada melhor que nós que estamos tra-
balhando na área para dar um parecer jurídico e técnico nessas áreas.

Como a gente já estava com esse projeto de regularização fundiária,


houve a necessidade da gente estar criando o centro de geotecnologia
fundiária ambiental e aí esse centro, todo o equipamento necessário
para gente ter esse banco de dados e o objetivo principal é a gente fa-
zer a regularização fundiária casada com a regularização ambiental, ne-
nhum processo de regularização fundiária pode ser concluído sem que
essa área esteja ambientalmente regular. O INTERPI é aqui no terceiro
andar, e a secretaria de Meio Ambiente, é aqui no 4 andar. Para isso foi
publicado portaria, decretos que regulamentam todo esse trabalho.

É recorrente na história do Brasil notar situações em que a “mo-


dernização” caminha lado a lado com o atraso (MARTINS, 2009) e
em muitas dessas situações seus próprios agentes se valem de práti-
cas pouco modernas para alcançar seus objetivos de “modernização”.

81
Conforme os técnicos do INTERPI afirmaram em entrevista que nos
concederam, a quase totalidade das terras do estado do Piauí tem
origem em grilagem, sobretudo aquelas do Cerrado ocupadas pela
agricultura empresarial. Esta constatação fez com que agentes do Es-
tado aliados e/ou pressionados pelos atores dominantes diretamente
interessados, investissem no processo de regularização fundiária. Esta
regularização vem sendo feita claramente em favor dos produtores e
não do Estado. Estão cientes que estão promovendo a legalização de
terras que foram adquiridas de forma fraudulenta e altamente con-
flitiva, conforme extrato da entrevista realizada com um técnico do
INPERPI.

Entrevistador: E a quantidade de terras do Cerrado, vocês têm uma


ideia de quanto é?
Entrevistada: Ao todo não. Esse é outro dado que a gente pegou, a fal-
ta de regularização, principalmente no Cerrado, o Dr. Eliomoar, juiz da
Vara Agrária, hoje tem mais de 2 milhões de conflitos agrários judiciali-
zados, o aumento de grilagem de terras, corrupção estadual. O INTER-
PI é um órgão que alguns anos atrás houve coisa assim feias, cartórios,
justiça, tensão social permanente, insegurança jurídica, muitos investi-
dores têm vontade de vir; hoje já tem várias indústrias que tá vindo que
está se instalando no PI, porque já tem uma segurança jurídica, mas era
muito difícil.

Os conflitos agrários também se acentuaram em função do novo


Código Florestal. São as consequências não premeditadas desta lei.
Em uma das áreas de realização da nossa pesquisa empírica, havia
um conflito deflagrado entre os colonos sulistas que chegaram na-
quela área no final da década de 1990, e pretensos proprietários que
se apossaram de áreas de florestas destinadas à Reserva Legal manti-
da em sistema de “condomínio” por parte dos produtores de Nova
Santa Rosa, um distrito do município de Uruçuí, no sul do Piauí. Os

82
agricultores de Nova Santa Rosa foram atraídos para aquela região
por um dos maiores grileiros do estado. Conforme depoimento co-
lhido junto a uma tabeliã do município de Uruçuí, a origem daquela
área está em uma propriedade de 10 mil hectares (que também tinha
origem ilegal), adquirida pelo citado grileiro. A partir dessa área ini-
cial, ele transformou 10 mil ha em 35 mil há por meio de sucessivos
processos de retificação obtidos na justiça. Essa clássica estratégia de
grilagem, dita por extensão de área, evidencia, portanto, uma prática
que conta com a contribuição do próprio poder judiciário e dos cartó-
rios. Neste caso empírico, parte das terras nas quais os agricultores de
Nova Santa Rosa se estabeleceram estão, desde então, completamen-
te irregulares, pois mesmo que eles tenham comprado de boa-fé, os
seus títulos não são reconhecidos pelo Estado uma vez que, original-
mente, são fruto da prática de grilagem. Em vez de processar o grilei-
ro e renegociar as modalidades de uso e ocupação de áreas a princípio
públicas, o Piauí optou por priorizar os produtores instalados no lo-
cal como alvos da política de regularização fundiária promovida pelo
INTERPI no Cerrado, sob alegação de que tem, no uso consolidado
das terras, uma justificativa prática e na segurança jurídica eu visam
alcançar uma justificativa econômica.
Paralelamente a esse processo, um conflito eclodiu e foi levado aos
tribunais entre estes produtores, pertencentes a Nova Santa Rosa, e
um outro proprietário da região – também suspeito da prática de gri-
lagem – que tentou se apropriar da área destinada a Reserva Legal
que havia sido constituída na forma de um condomínio por parte dos
primeiros. A possibilidade aberta pelo novo Código Florestal de poder
localizar a Reserva Legal em propriedades distintas e eventualmente
distantes das terras produtivas, desde que situadas no mesmo bioma,
pode ter tensionado o mercado fundiário nas áreas mais produtivas
pois possibilitou o seu desmatamento integral. Assim, consideramos
a hipótese de que os conflitos se intensificam nas áreas de Reserva Le-
gal que se localizam em regiões valorizadas pela grande agricultura

83
intensiva em tecnologias, já que existe a possibilidade jurídica de des-
locar as reservas para regiões menos produtivas.
Além disso, vigora a lógica colonizadora de que a terra coberta pela
vegetação nativa, aquela que caracteriza o Cerrado, não tem dono
nem gera valor e, portanto, segundo tal lógica, deveria ser apropriada.
Como fica claro nos depoimentos abaixo obtidos dos operadores dire-
tos do processo de regularização fundiária, áreas que foram desmatadas
e incluídas no processo produtivo são áreas consideradas pacificadas:

Entrevistador: É onde estão esses grandes (produtores) que tem


conflito?
Entrevistado: Não, os conflitos estão em terra sem nada. Terras a ser
desbravadas. Quando você vê plantação de soja, já está tudo apaziguado.
(...) Uma área de conflito grande é em Uruçuí, essas áreas aqui….(mos-
trando no mapa)
Entrevistada: Lá em Baixa Grande do Ribeiro, aquele conflito recente,
lá no Brejo Seco.
Entrevistador: Lá onde morreu duas pessoas?
Entrevistado: Isso, pessoas brigando por terra. Cercando uma terra
maior que outro, aí começam as brigas, mas depois que está definido
plantado soja ai não tem conflito não.
Entrevistador: Essas áreas abertas permeadas por essas áreas escuras,
essas áreas escuras são áreas potenciais?
Entrevistado: Exatamente. (...) Ou ela está sendo especulada, ou ela está
em processo de regularização ou não tem documento, ou não está reco-
nhecida ainda.
Entrevistada: Ou em processo de licença ambiental para poder derru-
bar, entendeu?
Entrevistado: A maior parte dessa área aqui tá em conflito.
Entrevistadora: Entre quem é quem?
Entrevistado: Na verdade é um grupo de outra fazenda próxima que tá
dizendo que é dele e teve outro grupo que se diz se dono.

84
A regularização das irregularidades: o discurso ambiental-
mente contraditório da eficiência

Ocorre, como vimos, uma assimilação de práticas do setor privado


pelo público, visando com isso atender à lógica da eficiência, no sen-
tido de uma “nova gestão pública” (MARCH, 2013). Esta lógica tem
uma relação direta com o processo de privatização e, nesse sentido,
não há o desaparecimento do Estado, mas a adoção por este de ló-
gicas próprias do setor privado para atender aos interesses privados.
Evidência que reafirma tal perspectiva é o fato verificado a campo em
que o Banco Mundial assessora o estado do Piauí para fomentar e im-
plementar os processos de regularização fundiária e ambiental.
Nas regiões em que o agronegócio tem avançado, sobretudo nos
Cerrados nordestinos, as terras que eram devolutas e tinham uso co-
letivo e extensivo, são convertidas em terras privadas e formalizadas
em nome dos que a dominaram. Nessas áreas além da terra, outros
elementos da natureza são convertidos em ativos imprescindíveis
ao avanço deste tipo de agricultura produtora de commodities. É o
caso das chuvas. Mais do que a terra, o que se compra nessas regiões,
conforme é recorrentemente apontado pelos agricultores, é a chuva.
Áreas com alto índice pluviométrico tem seu valor várias vezes multi-
plicado, significando, portanto, a precificação e a mercantilização das
chuvas. O mesmo vale para o relevo. As áreas que interessam para
este tipo de agricultura são aquelas áreas cujo relevo favorece o pro-
cesso de mecanização da produção. Área com tal característica terá
menos chances de manter sua vegetação nativa em pé6. Em certas re-
giões a água dos rios também é utilizada para irrigação produzindo
efeitos ambientais cuja responsabilidade será compartilhada pelos

6.  Em relação a esta constatação o então presidente da Frente Parlamentar da Agropecuá-


ria (mais conhecida como Bancada Ruralista) Nilson Leitão, afirmou que manter a flores-
ta em pé é um custo no sentido de que há cuidados que precisam ser tomados para tal.
Mas também fica evidente que terra nua é o contrário! Ver entrevista em: . http://www.
dw.com/pt-br/manter-a-floresta-em-p%C3%A9-%C3%A9-custo-diz-chefe-da-bancada-rura-
lista/a-40148688 (Consultado em 24/01/2021)

85
representantes da agricultura com a população em geral7. Observa-
-se, assim, um processo de controle de recursos que não eram até en-
tão controlados ou estavam disponíveis para uso comum ou sob o
domínio do Estado (CASTREE, 2008a).
Através de evidências empíricas, nota-se uma nova configuração
das instituições de gestão e de tomada de decisões que March (2013,
p.143) descreve como significando a introdução de princípios (por
exemplo: eficiência), métodos (por exemplo: análise de custo-bene-
fício) e objetivos comerciais (por exemplo: a maximização dos be-
nefícios). Com o processo de mercantilização dos recursos naturais,
estes deixam de ser bens públicos e passam a ser comercializáveis,
convertendo seus usuários a clientes individuais. Assim, as alterações
organizacionais e legais têm possibilitado o processo de privatização
da natureza enquanto as alterações institucionais (normas, valores)
possibilitam a sua comercialização. Se até então determinados bens
naturais não eram representados socialmente como bens comercia-
lizações, há um claro processo de alterações dessa representação de

7.  Em uma zona de alto uso dos pivôs centrais em Luis Eduardo Magalhães (BA) houve um
período de escassez de água que afetou a produção e o uso urbano. A AIBA (Associação do
Irrigantes da Bahia) recomendou a interrupção da irrigação, mas ressaltou o seguinte: “‘esta
é uma iniciativa racional da categoria, e não uma decisão imposta por autoridades, mesmo
porque todos os irrigantes da região estão legalizados, pois possuem outorgas concedidas
pelos órgãos ambientais competentes. O que queremos com isso é contribuir para minimizar
os efeitos da estiagem. Contudo, outros segmentos da sociedade que contribuem para a bai-
xa vazão dos rios, fazendo uso indiscriminado da água, precisam fazer a parte deles’, explicou
o diretor de Águas da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), Cisino Lopes.”
Chama a atenção o discurso de auto-responsabilização indicando a prescindibilidade do Es-
tado. Ainda conforma a mesma publicação “Para o presidente da Aiba, Júlio Cézar Busato,
este é um mal necessário: escolher entre economizar água ou elevar a produção. “Propomos,
por iniciativa própria, deixar de irrigar aproximadamente 60% da área. Os outros 40% não
podem ser interrompidos por se tratar de culturas perenes, como o café; ou mais sensíveis a
falta d’água, como a produção de sementes. Essa atitude é um indicativo de que praticamos
uma agricultura responsável e sustentável”. Nota-se que mesmo no limite do recurso, parte
importante das áreas em produção não poderão deixar de irrigar. Ainda assim, o discurso
da responsabilidade e da sustentabilidade são ostentados. Ver: http://aiba.org.br/noticias/
agricultores-do-oeste-da-bahia-reduzem-mais-da-metade-da-area-irrigada-devido-escassez-hi-
drica/#.Wg28iIhrzIU (Consultado em 24/01/2021)

86
maneira que tais bens entram no circuito da comercialização, como
ficou demonstrado nos casos aqui analisados relacionados à questão
fundiária e ambiental.

Conclusão
Fica o questionamento acerca do futuro destes sistemas e da evolu-
ção da governança ambiental que delimite novas regulações. Há uma
pressão social interna e externa ao país, apoiada pelos mercados con-
sumidores, para se intensificar o controle sobre a abertura de terras e
a conservação dos serviços ecossistêmicos do Cerrado. O tratamento
destas questões foi, por enquanto, deixado sob a agenda neoliberal,
flexibilizando o Código Florestal e estabelecendo sua implementação
de forma descentralizada, privilegiando as ações voluntárias dos agen-
tes do setor. Diante das situações críticas exacerbadas por um modelo
de precária regulação, do acirramento das tensões sociais associadas
à falta de água, da consolidação dos movimentos ambientalistas, po-
deria se esperar uma reavaliação pelo poder público dos instrumentos
da gestão ambiental em contexto agropecuário. Porém, a atuação do
Governo atual no campo ambiental, as crises “cíclicas” de caráter po-
lítico e econômico e a importância do setor na economia nacional
estão longe de apontar para tal movimento. Pode-se considerar que o
próprio setor se veja provocado a introduzir novas lógicas de atuação
que poderiam relaxar, ao menos temporariamente, a pressão sobre a
região diante, por exemplo, da constatação empírica de rendimentos
abaixo dos esperados, de certa “debandada” dos investimentos exter-
nos ao setor em consideração às taxas de lucro abaixo do esperado
ou às dificuldades para vender a terra em contexto de queda no pre-
ço das commodities. No entanto, além dessa possibilidade continuar
inscrita em quadro neoliberal e, portanto, dependente dos interesses
dos agentes econômicos, as experiências passadas e recentes mos-
tram que, em tempos de crise, o setor procura reverter a diminuição

87
dos seus lucros pela incorporação de novas terras, mesmo que sem a
presença significativa de capitais externos ao setor agrícola. Não nos
parece, nesse sentido, que em um futuro próximo, as áreas de Cerra-
do contarão com práticas auspiciosas que visem a sua conservação.
Os dados do desmatamento e de uso do solo divulgados pelo INPE
e pelo MAPBIOMAS nos últimos 5 anos, só reforçam a desconfiança
em relação à capacidade do setor de se autorregular em contexto de
laissez-faire institucional.
A dinâmica de acumulação capitalista exige, cada vez mais, a incor-
poração de novas áreas e novos recursos ao processo produtivo. Por
ser o elo inicial da cadeia global de valor, a ampliação da demanda por
matéria prima pressiona a agricultura a aumentar constantemente
a produção, seja intensificando o processo produtivo, seja expandido
para novas áreas e, como vimos, os efeitos sobre a natureza são incon-
testáveis. Diante da maior sensibilidade ecológica da população e do
apelo global por um maior controle sobre a destruição dos recursos na-
turais, novas práticas e novos discursos são introduzidos pelos agentes
do “desenvolvimento”. Observa-se, assim, o aparente paradoxo do qual
fala Castree (2008a), em que a neoliberalização da natureza implica a
sua conservação e as suas duas antíteses, a destruição (o desmatamento
e esgotamento dos recursos naturais) e a criação (como os novos pro-
dutos obtidos a partir da manipulação genética). Nesse sentido, o meio
ambiente pode ser mobilizado tanto para reafirmar o processo produti-
vo introduzindo, mesmo diante das evidencias em contrário, o discurso
da sustentabilidade, como servir para questionar e impor alterações em
tal processo. A complexa articulação entre diversos elementos discursi-
vos e não discursivos pode pender para um ou outro resultado. Isso fica
demonstrado, como apontado ao longo do texto, para o que ocorre no
Cerrado por um lado, e na Amazônia por outro.
Nas fronteiras agrícolas do Cerrado nordestino, as agriculturas
que ali se desenvolvem têm em sua origem processos conflituosos
e irregulares relacionados à posse da terra e à questão ambiental. A

88
estratégia de produzir o “fato consumado” tanto em relação à ques-
tão fundiária quanto em relação à questão ambiental, promovendo
o desmatamento e dominando a área para incluí-la no processo pro-
dutivo antes de qualquer preocupação com a legalidade, se beneficia
diretamente da ausência ou da conivência do Estado. Passados tantos
anos, os meios e os processos gerados pelo Estado aceitam de forma
relativamente passiva que “não tinha outra alternativa a não ser”8 re-
gularizar o que se consolidou de forma totalmente irregular e fraudu-
lenta. A racionalidade que informa tais procedimentos tem por base
uma série de aspectos que remetem a uma dinâmica de neoliberaliza-
ção da natureza e do meio rural: o discurso da insegurança jurídica,
da necessária “modernização” das questões ambiental e fundiária, o
marketing econômico e político do setor, o peso do setor na econo-
mia nacional e o discurso da eficiência tecnológica e de gestão.
A regularização do que foi produzido de forma irregular é um dos
mecanismos estruturais da neoliberalização dos espaços rurais e da
natureza. O que pode parecer contraditório com o esquema mais bá-
sico do neoliberalismo é, na verdade, o que garante a privatização em
patamares altamente favoráveis ao setor privado em detrimento do
público9. Trata-se, com efeito, de subverter regras legalmente estabe-
lecidas e produzir uma nova regulação. Enquanto a regra estabelecida
não atende aos interesses dos grupos dominantes, vale o laissez-faire,
que imprime de forma pragmática a desregulação em suas práticas
até que uma nova regulamentação se estabeleça em outros moldes.

8.  As aspas indicam que obviamente outras alternativas seriam possíveis e mais condizendo
com os interesses públicos, mas o custo político certamente seria muito alto.
9.  Vale lembrar que a lei 13.465 sancionada no dia 11 de julho de 2017, é uma lei nacional
que flexibiliza a regularização de terras que eram da União na Amazônia Legal e possibilita
a venda de lotes obtidos via programa de assentamentos rurais. Esta lei tem origem em uma
medida provisória que ficou conhecida como a MP da Grilagem em função de legalizar ter-
ras obtidas ilegalmente concedendo anistia à grilagem ocorrida antes de 2011 e fixa valores
que podem ser inferiores a 10% do valor de mercado. Em 2019, a MP da Grilagem volta a
ser pauta no Congresso estendendo a dispositivos simplificados de regularização fundiária a
todo o país. Trata-se, portanto de movimento que não está restrito ao estado do Piauí.

89
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91
3
CONCRETUDES DO DESENVOLVIMENTO
INSUSTENTÁVEL: AS DUAS MAIORES
PAPELEIRAS DO MUNDO E SEUS
CATIVEIROS DE PAPEL NA REGIÃO
DO BOLSÃO SUL-MATOGROSSENSE
Napoleão Miranda
Cláudio Ribeiro Lopes

Introdução
O processo agroindustrializante submetido ao Brasil nas últimas dé-
cadas e, em especial, ao Estado do Mato Grosso do Sul é revelador de
uma tomada de sentido com relação à reprodução do espaço territo-
rial e dos meios inerentes à produção, com consequências socioam-
bientais graves, como um todo. Não por outro motivo é possível se
estabelecer relações entre terra e poder. Desde muito se conhece que
a distribuição histórica das terras no Brasil se deu tendo por pano de
fundo o capital mercantil.
Nesse sentido o problema que se coloca neste artigo diz respeito a
como a entrada das papeleiras Fibria, atual Suzano, e Eldorado Bra-
sil na região Leste do Mato Grosso do Sul, conhecida como Bolsão,
serve não apenas para continuar a reproduzir o modelo de expropria-
ção e concentração econômica e fundiária, muito difundido no país,
desde o período colonial, mas, sobretudo, durante e a partir das duas
décadas de ditadura empresarial-militar e, principalmente, como os
processos e políticas pública e privada se combinam para manter os

93
assentados da reforma agrária numa condição de dependência exclu-
siva dos programas e planos de financiamento da produção agrícola
familiar fomentados pelas próprias papeleiras na região.
Objetiva-se, portanto, apresentar como esse processo de “aprisio-
namento”10 socioeconômico dos assentados de um assentamento sito
à região leste do Mato Grosso do Sul foi gestado e de que forma ele é
operado, contando com a participação e omissão dos poderes públi-
cos e a ação direta das indústrias papeleiras.
A metodologia que deu base à elaboração deste artigo consistiu
em duas visitas ao campo: a primeira delas mais prolongada, com vin-
te e três dias em completa imersão na região de Três Lagoas, durante
o mês de julho/2015, o que incluiu a ida ao assentamento e entrevista
direta com assentados dali, bem como, outras entrevistas com vários
outros atores sociais envolvidos no processo (Secretaria Municipal de
Meio Ambiente, Agronegócio e Tecnologia de Três Lagoas, Institu-
to de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul – IMASUL, Sindicatos
Rural e de Trabalhadores Rurais de Três Lagoas, indústria papeleira
Eldorado Brasil, INCRA), ou, que possam estar, de alguma forma,
questionando-o, como é o caso do Ministério Público Federal – MPF,
Procuradoria de Três Lagoas/MS, Ministério Público do Trabalho –
MPT e Ministério Público estadual.
Posteriormente, em dezembro do mesmo ano, foram feitas ou-
tras visitas, mais céleres, para reentrevistar o representante do MPF

10.  O termo “aprisionamento” socioeconômico aqui utilizado refere-se àquela situação de


dependência econômica e, como
decorrência, subordinação social vividos por um conjunto de segmentos sociais como resul-
tado do domínio econômico
exercido pelas duas papeleiras, que mantêm um conjunto de comunidades sob seu controle
direto por meio de “projetos
sociais”, que, na prática, terminam por subordinar tais comunidades aos desígnios da empre-
sa que decide o que fazer,
quando, como, etc., com pouquíssimo espaço de participação popular neste processo. Gover-
nos locais também podem
ser “aprisionados” nesta dinâmica relacional com estas indústrias.

94
(Ministério Público Federal) e entrevistar a do IBAMA (Instituto Bra-
sileiro do Meio Ambiente). Sobre a indústria papeleira Fibria (atual-
mente, Suzano), esta, de princípio, aceitou conceder a entrevista,
mas, na véspera da mesma, cancelou o contato.
Em outro momento, isto é, em janeiro de 2016, procedeu-se a um
registro de inconformismo junto ao programa Ethics-Point, uma es-
pécie de ombudsman da indústria. Em cerca de vinte dias, deu-se a res-
posta, positiva, por parte do gerente nacional de sustentabilidade da
papeleira, no sentido de acolher meu pedido e fornecer os dados que
desejava colher durante a entrevista, o que possibilitou melhorar a
qualidade do que me propus a investigar, já que, dessa forma, ambas
as papeleiras foram não apenas pesquisadas, mas, sobretudo, pude-
ram falar à pesquisa.
O resultado principal da pesquisa resultou na identificação de um
modelo político-negocial de “aprisionamento” dos assentados, não
somente no assentamento onde se deu a pesquisa empiríca, ao que
parece, mas também no financiamento da produção agrícola fami-
liar exclusivamente, ou quase, por meio de programas e planos de
desenvolvimento sustentável das próprias papeleiras, cujo volume de
recursos e número de assentados e lotes atendidos fica à mercê da dis-
cricionariedade das indústrias de celulose e papel, o que se denomina,
aqui, por cativeiros de papel.
O resultado que a pesquisa alcançou pouco antes da ruptura de-
corrente do impeachment da Presidente Dilma Roussef, em 2016, ten-
de a se mostrar ainda mais complexa em virtude do cenário políti-
co nacional no Brasil dos dias de hoje, em que há evidentes sinais de
completo menoscabo quanto à justiça social no campo, e mesmo so-
bre o tema do campesinato e da agricultura familiar em detrimento
do incremento ainda mais intenso das políticas públicas beneficiado-
ras ao capital agroindustrial.
A seguir, nos anos de 2017 a 2020 a pesquisa dedicou-se a acom-
panhar os conflitos socioambientais descobertos e as eventuais

95
alterações na conflitualidade na região, por meio de outras investiga-
ções fomentadas pelo CNPq, por meio de projeto voltado especifica-
mente a este objetivo.

A chegada das papeleiras em Três Lagoas/MS e o falso man-


tra da prosperidade infinita.

A ocupação, incorporação e apropriação do solo brasileiro tem obe-


decido a uma lógica expropriatória de privatização, que guarda re-
lação direta com o fenômeno territorial-empresarial-financeiro-espe-
culativo, isto é, com o modelo de apropriação mercantil-capitalista
da natureza, ou, no sentir de Porto-Gonçalves e Cuin, um “bloco de
poder tecnológico-financeiro- latifundiário-midiático” (2013, p. 18).
Terra é poder e quem a possui, só a possui porque precede em
recursos econômicos, tecnológicos e políticos, àqueles que não a pos-
suem. Nesse sentido, pode-se afirmar que há espaços de comando e
espaços de subserviência (SANTOS; SILVEIRA, 2002, p. 264-265) que
entremeiam as relações sociais no campo.
As complexas relações de poder estabelecidas em decorrência des-
te modelo de funcionamento socioeconômico, encontram na con-
centração fundiária e na detenção tecnológica dos meios de produ-
ção, aliadas à manipulação da representação política e midiática pelo
mercantilismo capitalista, o caldo de cultura que estabelece o rito de
passagem para a perspectiva de uma sociedade que pouco enxerga a
dominação e, mesmo visualizando-a, tende a acatar seu mecanismo
como inerente à própria condição existencial, naturalizando-a a partir
do senso comum, em detrimento de sua própria condição, qualidade
de vida e, mesmo, reprodução bio-sócio-cultural.
Nesse sentido, vários atores sociais desenvolvem a percepção de
que não há conflitos ali, mas, apenas, problemas ambientais, sociais,
ou, socioambientais, como restou identificado a partir de alguns dis-
cursos nas entrevistas da pesquisa de campo.

96
Diante desta perspectiva é possível, inicialmente, inferir as relações
dialéticas que suportam o objeto deste artigo, a saber, o problema es-
pacial e dos mecanismos de controle espaço/economia e as tensões
que daí decorrem (isto é, a raiz do problema como sendo a concen-
tração da ocupação e o uso do solo e as variadas formas de manifesta-
ção e controle social-econômico-normativo que podem servir como
fatores exponenciais de geração de conflitos socioambientais).
Nesse sentido, surge a questão do campo dos conflitos socioam-
bientais decorrentes “do uso e apropriação do território e dos elemen-
tos sociais, bióticos e abióticos do espaço” (COSTA; BRAGA, 2004, p.
195-196) como arena de situação da justiça ambiental como mais um
elemento caracterizador das discussões em torno da legitimação ou
não de determinadas práticas e modelos econômicos e sociais.
Acolhe-se, aqui, alguns conceitos elementares, como aquele em-
pregado por Acselrad, que identifica o campo dos conflitos socioam-
bientais a partir da alusão a quatro dimensões em sua constituição:
“apropriação simbólica e apropriação material, durabilidade e intera-
tividade espacial das práticas sociais” (2004, p. 23-27).
É justamente a partir dessa perspectiva aqui utilizada que se defen-
de a ideia de que o campo desta pesquisa, muito embora enxergue
apenas a vivência de problemas ambientais, os quais submetem a acor-
dos simbióticos (ACSELRAD, 2004, p. 25), está inserido numa condi-
ção de conflitos socioambientais, pois, evidencia-se a presença de ato-
res e momentos de apropriação material da base de recursos (acesso
a terras férteis, à água, à logística para escoamento da produção, etc.)
como um fator decisivo para a manutenção da agricultura familiar ori-
ginária de projetos da reforma agrária na região de Três Lagoas/MS,
em oposição dialética com o latifúndio agropecuário e a monocultura
de eucalipto que ali se instalou a partir do início do Século XXI.
Por outro lado, essa apropriação não se apresenta isolada, mas,
concomitante, ou, precedentemente, há a apropriação simbólica,
que se evidencia nos valores sociais (renda da terra que deveria ser

97
desconcentrada pela continuidade de projetos de reforma agrá-
ria naquele contexto, para cujo implemento, o sucesso dos assen-
tamentos funcionaria como a certificação de que os projetos dão
certo e dão, concretamente, função social à terra), ambientais (a
agricultura familiar sob modelo orgânico, com a reprodução de
práticas sustentáveis no sentido de preservação da terra, das matas,
da fauna, dos mananciais d’água etc.), e politicos, visto haver clara
tendência ao total abandono pelo atual governo do campesinato e
da agricultura familiar, com evidentes sinais de favorecimento ao
agronegócio.
Nesse sentido, além das apropriações aqui destacadas, as questões
atinentes à durabilidade dos valores de uso por parte dos assentados
em detrimento dos valores de troca das papeleiras também se apre-
senta na relação, assim como, a interatividade entre os atores sociais,
muitas vezes realizada sob o formato de acordos simbióticos (entre os
assentados e as papeleiras, por exemplo, para a produção de alimen-
tos orgânicos e que podem ser percebidos como estratégia de resis-
tência por parte dos assentados frente ao capital agroindustrial), ou,
mediante o confronto que se dá entre aqueles e o INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e a AGRAER (Agência
de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural), quanto a recusa ao
atendimento às necessidades burocrático-fundiárias e de tecnologias
de consultoria ambiental e de agricultura.
Por isso, defende-se, aqui, que se lida, na realidade, com conflitos
socioambientais e não meramente com problemas ambientais, ainda
que a visão de atores sociais no campo ainda não tenha atingido esse
nível de especificação ou de ação.
O sentido racional do modelo implantado na região, como em ou-
tras regiões do país, é o de apropriar para gerar ainda maior apropria-
ção; invisibilizar para gerar ainda mais condições de invisibilidade dos
conflitos, afinal, essa racionalidade necessita salvaguardar-se, sistema-
ticamente.

98
Porém, a perspectiva de que se partiu neste artigo foi a de que as
relações sociais são conflitivas, em essência. Isso se exacerba num re-
gime de produção capitalista, onde poucos efetivamente encontram
acesso aos benefícios do sistema social, com ênfase à produção e dis-
tribuição de riqueza, à custa, inclusive de interferências nocivas à so-
ciedade e, principalmente, ao ambiente cujas consequências sempre
são difusas, dificultando, inclusive, a apuração posterior das responsa-
bilidades, ante os fatos de degradação socioambiental.
O processo capitalista de produção, ontologicamente, é acumulati-
vo (MARX, 1987, p. 249); isso significa que em seu afã de apropriação
da natureza, de riquezas, de concentração de renda, recursos e capital
(em especial a concentração fundiária sob o modelo monocultural)
fundado, principalmente, na acumulação por despossessão (BRAN-
DÃO, 2010, p. 41; HARVEY, 2014, p. 121 e ss.) historicamente produz
menoscabo significativo dos meios de vida, realização social, cultural,
produtiva e convívio com o ambiente nas áreas em que se instala, su-
jeitando a população às mazelas ambientais e sociais do perverso lado
da exploração mercantil.
Nessa perspectiva a expressão “conflitos distributivos e dívida eco-
lógica” (MARTÍNEZ ALIER, 2014, p. 78-79) pode ser apropriada pelo
discurso de enfrentamento do modelo imposto para marcar e acentuar
que determinados investimentos promovem prejuízos ao meio am-
biente e são, sim, fatores inexoráveis de degradação das condições de
vida e relacionamentos sociais e ambientais no planeta, ainda que isso
tudo venha sendo feito tendo, como pano-de-fundo, a utilização de um
complexo sistema de propaganda que apregoa o “progresso”, o “desen-
volvimento” e uma determinada noção de “sustentabilidade”, com o
apelo, principalmente, às mídias nacional e local (CIRILLO, 2015, capa;
p. 30-37; MININI, 2015, p. 44-60) para invisibilizar conflitos.
Nesse sentido, o conceito de passivo ambiental se apresenta reco-
locado no cenário social como mais um elemento caracterizador da
exposição de um interesse que não se restringe, apenas, à questão do

99
controle sobre a produção, mas que perpassa essa ideia para abarcar
as possibilidades de alusões às externalidades negativas como mensu-
ráveis e dignas de reparação a partir da ambientalização de determi-
nados conflitos sociais (LOPES, 2004, p. 216; 222).
Nessa linha pode-se identificar um campo de disputas pela prega-
ção da legitimidade da detenção, manipulação, exploração e manu-
tenção do território e dos modos sociais de apropriação do mundo
material, com vistas a gerar acordos simbióticos que busqem natura-
lizar as externalidades negativas decorrentes da práxis dessa relação
(ACSELRAD, 2004, p. 16-17).
A própria construção da noção de sustentabilidade engendra uma
série de conflitos em seu processo de estruturação, que vão desde a
lógica malthusiana de racionalização dos recursos, passando pela ló-
gica da gestão burocrático-estatal do patrimônio natural, até os mo-
delos de inclusão das noções culturais e de justiça ambiental como
fundamentadores/legitimadores dos discursos propostos.
Nessa perspectiva, é relevante a necessidade de construção de uma
outra racionalidade ambiental como um meio de resgate, de re-apro-
priação e re-tomada de uma forma da sociedade se relacionar com
o ambiente, isto é, de construir outra noção de sustentabilidade que
vá além do economicismo, que seja capaz de superar a racionalidade
do capital (LEFF, 2006, p. 248-249), e que possa ser um contraponto
à transformação do espaço e do território em “mera plataforma de
valorização financeira internacional” (PAULANI, 2008, p. 41). Isso é
necessário, principalmente, se se pretende fazer frente, com algum
nível de tensão e visibilidade, ao modelo exploratório que foi imposto
à cidade e região de Três Lagoas/MS e que obedece ao regime de flu-
tuação internacional das commodities no segmento papel-celulose.
Este desafio, portanto, exige que se estabeleça uma crítica estru-
tural, isto é, que sejam postos às claras os fatores de degradação so-
cioambientais ali existentes, bem como, os discursos que engendram
a cobertura e a legitimação do modelo imposto como único possível

100
e viável, ou como a panacéia liberal econômico-trabalhista-social-am-
biental do momento e para o futuro.
Exige ainda que sejam visibilizados os conflitos socioambientais
muitas vezes escamoteados, escondidos, jogados sob o tapete discur-
sivo dominante que midiatiza o progresso, o desenvolvimento, uma
dada sustentabilidade e os discursos da burocracia estatal, de políti-
cos, empresários e, até mesmo, do senso comum, disseminado – não
sem coerência, nem propósito – com o fito de se assegurar o mínimo
de resistência possível contra o modelo, ou, até, de buscar demons-
trar que essa resistência existe e apresenta modos próprios de sobrevi-
vência e enfrentamento.
O processo de acumulação de capital, de concentração de renda e
recursos (principalmente a concentração fundiária sob o modelo mo-
nocultural) tende a produzir o menoscabo significativo nas áreas em
que se instala, sujeitando a população às mazelas ambientais, econô-
micas e sociais do lado perverso da economia de mercado que, no Sé-
culo XXI, ganha contornos mais vorazes em razão da Globalização e
dos compromissos, públicos e privados, com o mercado internacional
de commodities que ela suscita, sujeitando os Estados nacionais ao
direcionamento exigido para a manutenção do modelo pelos grandes
agentes do sistema de produção – empresas multi e transnacionais,
bancos, órgãos gestores etc. (FURTADO, 1974, p. 33). Os conflitos
socioambientais, portanto, surgem em meio a essa dinâmica da so-
ciedade, que pode, até mesmo, apresentar uma pequena parcela de
pessoas cientes dos processos e prejuízos com os quais se vê obrigada
a conviver, como parece ser o caso da cidade e região de Três Lagoas,
Mato Grosso do Sul (SCOTTO; VIANNA, 1997, p. 25-28).
Nessa linha de raciocínio, é inquietante perceber que o processo
agroindustrializante da monocultura do eucalipto e o complexo terri-
torial celulose-papel na borda leste do Mato Grosso do Sul se impõem
em conjunto com políticas e legislações, principalmente do setor pú-
blico, a amparar os processos de degradação ambiental mediante a

101
concentração fundiária, uso indiscriminado de agrotóxicos, dispensa
de estudos de impactos ambientais pelos governos estadual e munici-
pal, contrariando a norma federal, entre outras manifestações.
Explica-se mais detidamente esta afirmação: evidencia-se um
quadro social que escapa ao controle normativo do Direito, uma
vez que as normas que poderiam, em tese, ser aplicadas no caso em
questão existem, mas os agentes envolvidos escapam ao seu cam-
po de incidência usando para isso o próprio Direito, criando, assim,
uma terra de ninguém em que a impunidade se revela como a regra
maior e como a essência da lógica do sistema expropriatório socio-e-
conômico.
Trata-se não de uma impunidade que se situa à margem do siste-
ma, mas de uma impunidade que se insere no sistema, usando o pró-
prio Direito para criar situações de imunidades implícitas, esvaziando,
assim, a capacidade de a norma e o Direito realizarem um controle
social com vistas a preservar os valores mais elevados e custosos à
dignidade humana, como a proteção do ambiente, por exemplo.
A identificação dos fenômenos de concentração fundiária e econô-
mica compreendidos na aquisição ou arrendamento de extensas áreas
no bolsão sul-matogrossense (duas indústrias instaladas no Municí-
pio de Três Lagoas que entraram em funcionamento em 2009 e 2012,
respectivamente, para a produção de pasta de celulose atingindo a
marca de 3,5 milhões de tonelada/ano), dá o tom do ritmo capitalista
avassalador ali desenvolvido.
Em 2009, já se tinha notícia de que 2,0 milhões de hectares esta-
vam plantados com os clones de eucalipto para fins industriais no
país11. Apenas em área plantada (ocupação maciça e concentrada do
solo), a Eldorado Brasil chegou ao final de 2013 a 160.000 hecta-
res12; por sua vez, a Fibria já alcançou a marca de 154.000 hectares,

11.  Disponível em: http://www.veracel.com.br/default.aspx?tabid=111


12.  Disponível em: http://www.eldoradobrasil.com.br/PaginaInterna.aspx?idPage=7

102
antes mesmo de findar-se o ano de 2013. Juntas, ambas as indústrias
produzem 35 milhões de mudas de clones de eucalipto/ano13.
Trata-se de um modelo empresarial-político-negocial que nasceu
para não encontrar limites. Nem mesmo a Resolução CONAMA
(Conselho Nacional do Meio Ambiente) n. 237/9714, normativa fede-
ral, tem sido observada, uma vez que governos estaduais tem utiliza-
do uma técnica interessante para burlar a legislação administrativa de
tutela ambiental: expedem-se atos normativos autorizando o plantio
indiscriminado de florestas de eucalipto (silvicultura) sem exigência
de estudos de impactos ambientais e seus respectivos relatórios de im-
pacto ambiental15, muito embora o art. 2º, § 1º da referida Resolução
CONAMA 237/97, nacionalmente válido, apresente previsão expres-
sa em sentido contrário.
Nessa perspectiva, é possível inferir que há, de fato, toda uma políti-
ca pública, nas três esferas do sistema federativo (federal, estadual e mu-
nicipal) voltada a atrair investimentos, principalmente, privados, sem
descuidar dos vastos valores investidos via BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social) nos projetos capitalistas ali.
Em geral, inicia-se com políticas de isenções tributárias de longo
prazo que causam intenso impacto nas finanças públicas, já que, prin-
cipalmente, as normas criadas com tal escopo impedem que haja ar-
recadação por parte de todo um setor produtivo – no caso, o comple-
xo celulose-papel, em princípio, mas, não somente.
A continuidade desse processo de expropriação privada de recur-
sos naturais e públicos leva à cessão de áreas por parte da municipali-
dade destinadas à instalação dos complexos industriais e, também, à
criação de alojamentos destinados a receber a mão-de-obra que deve
criar e manter o parque industrial.

13.  Disponível em: http://www.fibria.com.br/web/pt/negocios/floresta/matogrosso.htm


14.  Disponível em: icmbio.gov.br/cecav/images/download/CONAMA%237_191297.pdf
15.  Art. 48, da Resolução SEMADE/MS (Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Desenvol-
vimento Econômico) n. 9, de 13/05/2015: legisweb.com/legislacao/?id=28742.

103
Além disso, nota-se, com veemência, que até mesmo a legislação am-
biental é alterada, ou ignorada, com o propósito de acomodar-se às exi-
gências do capital industrial (veja-se a respeito que o Governo do Mato
Grosso do Sul, por meio de resolução da Secretaria de Estado de Meio
Ambiente, das Cidades, do Planejamento, da Ciência e Tecnologia vio-
lou, frontalmente, a Resolução CONAMA 237/1997, dispensou o com-
plexo celulose-papel – silvicultura – da obrigação de realizar e apresentar
estudos de impactos ambientais e seus respectivos relatórios).
Como um dos resultados empíricos da pesquisa realizda tem-se o
aparelhamento de um Estado fraco em detrimento de uma ação so-
cial forte por parte dos investidores e seus agentes. Um Estado fraco,
seja na área federal, estadual, ou, principalmente, municipal, tende a
gerar situações em que os conflitos sociais sejam invisibilizados, prin-
cipalmente, quando o tema central em questão é o ambiente, bem
jurídico difuso, cuja titularidade nem sempre é passível de ser identi-
ficada de plano.
O tom, portanto, dessa sinfonia predatória é avassalador, do ponto
de vista da simbiose Capital-Estado/privado-público/assistencialis-
mo-autonomia e de como se criam, sustentam, legitimam e oferecem
condições para a ampliação desmedida da ideia de que terra é poder
e, o território, locus de conquista, tudo feito em nome do progresso,
do desenvolvimento e da sustentabilidade, em detrimento de uma maior
participação democrática da sociedade, como um todo, no bolo de
renda, urbana e principalmente, fundiária.
A concentração de terras, isto é, a manutenção dos latifúndios pré-
-existentes e a criação de novos latifúndios com a compra e/ou o ar-
rendamento de porções significativas de áreas rurais pelas indústrias,
bem como, o número reduzido de atores atuantes no mercado nacio-
nal de celulose- papel, é da essência do modelo adotado e da forma
como ele se introduziu no Brasil.
Sabe-se “que desde a sua concepção, o número de empresas
participantes do mercado fica sujeito à política de escala mínima

104
do BNDES. Assim, a indústria de celulose já nasceu oligopolizada”
(MONTEBELLO; BACHA, apud SCHLESINGER, 2008, p. 68), e fi-
nanciada pelo próprio Estado, o que revela um contra-senso a tudo
o que vem sendo propagado – e propagandeado – pelos agentes do
complexo agroindustrial territorial eucalipto-celulose-papel no que
respeita à suas reais capacidades de geração de renda e emprega-
bilidade.
Fato relevante a se destacar, e explicitado por Kudlavicz, é que foi
justamente por meio desse progresso alardeado, das concessões de cré-
ditos e benefícios fiscais por parte do Estado e dos programas criados
para ocupação inconteste do Centro-Oeste pela agroindústria, que se
acabou por cunhar a expressão e o sentimento de que a microrregião
de Três Lagoas tinha uma vocação florestal (KUDLAVICZ, 2011, p. 48),
expressão que restou incorporada pelo senso comum.
Nesse sentido, o mito do progresso e o mantra da prosperidade
para todos se apresentam como duas partes do grande motor da civi-
lização e as suas vinculações ao poder são inegáveis, bem como, por
outro lado, a ideia de que o progresso não é neutro, mas, “a quem do-
minantemente [...] serve e quais os riscos e custos de natureza social,
ambiental e de sobrevivência da espécie que ele está provocando; e
que catástrofes futuras ele pode ocasionar” (DUPAS, 2012, p. 27). Tra-
ta-se, portanto, da necessidade de se problematizar o que é progresso,
a quem ele beneficia, em que condições ele é viabilizado e quais os
motivos para a sua aceitabilidade/visualização.
Uma das perspectivas possíveis é a de ancorar essa investigação
numa análise socioeconômica tradicional. Por ela, o que se vê ocorrer
na região do Bolsão nada mais é do que fruto da evolução humana,
isto é, do desencadear de processos inexoráveis que tendem a buscar
condições materiais que possam oferecer melhores situações de vida
ao maior número possível de pessoas envolvidas.
Mas, sob outro aspecto, que busca retratar a história não ortodoxa,
isto é, as vivências dos vencidos (LÖWY, 2005, p. 10-11), é possível

105
realizar um resgate e, ao mesmo tempo, explicitar fatores e situações
concretas de vida que contrapõem o discurso da racionalidade he-
gemônica do capitalismo, de forma a buscar dar visibilidade a uma
parcela consideravelmente mais ampla de pessoas que nada obtém
de benefícios ante a presença do modelo e, pior, são expropriadas,
sistematicamente, tendo por matriz a ideia de que essa expropriação
custosa, dolorosa, degradante e desumana está na ordem do dia de
uma conduta de vida que visa exclusivamente ao sucesso econômico
(MARTINS, 1981, p. 147-148).
Ainda que não se pretenda que o Estado possa acompanhar a
vertiginosa escalada dos investimentos privados, interessa perceber
que investimentos em setores como segurança pública, saúde, lazer,
educação e habitação não acompanham a expansão industrializante,
podendo tornar-se vetores de violência como se pode perceber na
região de Três Lagoas/MS (entre os entrevistados, doze entre treze
participantes declararam que uma certa sensação de insegurança se
encontrava presente e que percebiam que a violência na cidade e na
região havia se elevado ao longo da última década).
Some-se a isso a concentração fundiária e econômica, a migração
indiscriminada de mão-de- obra e o fluxo de capital como mais um
chamativo à movimentação de parte da criminalidade, organizada ou
não, bem como, o fato de se criar uma espécie de “paraíso ambien-
tal” [no sentido pejorativo do termo] com a dispensa de apresentação
do EIA-RIMA (estudo de impactos ambientais e relatório de impactos
ambientais, respectivamente) ao setor agricultável de silvicultura que,
assim, fica à margem do sistema jurídico de controle, administrativo e
até penal, com problemas estruturais que não conseguem, sequer, ser
mitigados: abarrotamento do SUS, elevação dos índices de violência,
poluição ambiental, expropriação de água, depauperação dos recur-
sos naturais e humanos, subjugação dos assentamentos de reforma
agrária aos interesses e prazos impostos pelo complexo agroindustrial
territorial eucalipto- celulose-papel (ALMEIDA, 2012, p. 4) etc..

106
O que se evidencia neste artigo, com base na pesquisa de campo,
é que a noção de progresso é extremamente discutível e pouco defen-
sável, na linha da expropriação capitalista frente ao diálogo com os
direitos humanos, e que o “mantra da prosperidade” é definitivamen-
te falso, pois, atende a uma minoria frente à dimensão populacional
afetada e, ainda, tende a manter, indefinidamente, o perverso lado da
exclusão social dos mais fracos no sistema.

Um projeto de reforma agrária no bolsão sul-matogrossense


O local escolhido para a pesquisa qualitativa é originário de uma ação
social, um movimento camponês espontâneo desencadeado por agri-
cultores familiares sem-terra da região do Bolsão, borda Leste do Mato
Grosso do Sul, entre 2008 e 2009, sobre uma fazenda improdutiva, e
que, ao findar do tempo e das lutas, com invasões, permanência no local
e persistência dos atuais assentados, culminou na divisão da área em 181
(cento e oitenta e um) lotes desapropriados pelo INCRA e cedidos para a
reforma agrária, cujo processo de assentamento efetivo deu-se em 2009,
curiosamente no ano de entrada em operação de uma das papeleiras ali.
O ano de 2009 foi extremamente funesto para os assentados, vis-
to a condição precária do acesso à água naquele local, pois apenas a
antiga sede da fazenda era provida. Neste sentido, pode-se falar de
um verdadeiro confinamento imposto aos assentados durante esses
primeiros doze meses.
A condição constatada em julho/2015, que se mantém até hoje,
pouco melhorou. A instalação de um reservatório para água, com
capacidade de 20 mil litros de armazenagem, e a instalação de uma
rede de distribuição precária, feita com recursos federais e muito mal
executada pela empresa vencedora da licitação, se traduz em vários
problemas no acesso e na distribuição de água pelos lotes.
A partir de fins de 2013, uma das papeleiras iniciou estudos para a
implantação de mais dois reservatórios, com capacidade individual de

107
30 mil litros cada, orçados em R$87.000,00, o que elevaria a capacida-
de de abastecimento para 80 mil litros d´água. Todavia, isso ainda não
se operou e o assentamento persistiu com meros 20 mil litros d´água,
o que inviabiliza uma produção agrícola minimamente constante e,
mesmo, atender às necessidades humanas dos 181 assentados e suas
famílias, até meado de 2018.
A partir de julho de 2018, uma das papeleiras alterou seu modus
operandi para com o assentamento e metade dos assentados, tendo
perfurado 90 (noventa) poços semiartesianos naquele local, gradati-
vamente, operação que adentrou o ano de 2019 e boa parte de 2020.

Cativeiros de papel.
Durante os trabalhos de campo, uma informação colhida em entre-
vista no assentamento localizado na região de Três Lagoas foi que a
AGRAER, agência que deveria prover aos assentados assistência téc-
nica em extensão rural, na verdade, não cumpria essa função, atuan-
do, muito mais, como uma espécie de agente censor/fiscalizador do
INCRA, tendo sido noticiado que muitos assentados estavam sendo
pressionados por nada produzirem, quando, em verdade, não o pode-
riam, tanto por escassez de água, como, por não terem conseguido,
ainda, limpar a área, isto é, realizar o desmate exigido por ausência
de plano de manejo prévio (que poderia e deveria ser fornecido pela
própria AGRAER).
Assim, o INCRA não confere o certificado de cessão de uso – CCU
-, porque vários assentados não davam, nem dão, conta de cumprir a
obrigação inicial – limpar o lote, realizando o desmate mínimo, me-
diante plano de manejo prévio – e a AGRAER não prestava a assistên-
cia devida porque esses mesmos assentados não tinham o tal CCU.
Sem o CCU, nada é possível, em termos legais, aos assentados:
nenhum financiamento, nenhuma assistência por parte dos órgãos
públicos oficiais. Evidenciou-se, aqui, o ponto nevrálgico do conflito

108
socioambiental existente: a ausência, proposital ou não, de regulari-
dade da área rural cedida pelo INCRA imobilizava muitos assentados,
impedindo-os de produzir e sobreviver, e cumprir, assim, sua função
social por meio da agricultura familiar.
Veja-se o imbróglio: o INCRA não fornece o CCU porque os as-
sentados não cumpriram as obrigações iniciais exigidas no ato de
imissão na posse dos lotes, ou seja, realizar a limpeza da área median-
te desmate; a AGRAER, que deveria oferecer a assistência técnica em
forma de plano de manejo para o desmate, não atende aos assentados
porque esses não dispõem de regularidade fundiária, o tal CCU.
É um círculo vicioso perverso por atingir, justamente, assentados
pelo próprio INCRA, gente despossuída, sem recursos, sem condi-
ções de contratar uma consultoria que supra a omissão da AGRAER,
para dar conta de regularizar-se mediante o plano de manejo e o efe-
tivo desmate legal.
Enquanto o complexo territorial eucalipto-celulose-papel, na ex-
pressão de Almeida (2012, p. 4) é isento pelo Estado de MS de licen-
ciar suas operações em campo, diga-se “florestais”, beneficiando-se
à larga com créditos e financiamentos, especialmente subsidiados e
com carência para início do pagamento, pelo FCO ou pelo BNDES,
além de receber isenções fiscais de tributos estaduais e municipais,
apenas no assentamento de reforma agrária, vários agricultores fa-
miliares são impedidos de produzir e correm risco, até, de reversão
das posses pelo INCRA, por não cumprirem sua função social pela
absoluta ausência do CCU, documento preliminar de regularização
fundiária e de acesso a qualquer financiamento, público ou privado. A
matriz de (in)Justiça Ambiental se encaixa, bem, nesse conflito.
Emerge desse drama social, como única alternativa de financia-
mento da produção familiar, a submissão aos planos e programas de
desenvolvimento sustentável propostos pelas indústrias papeleiras.
Assim, nesse sentido, os assentados que queiram ou necessitem
de financiamento para produzir, devem se postar sob o jugo de uma

109
ou de ambas as papeleiras, que se constituíram na única fonte de re-
cursos ali, face ao impedimento que a ausência de CCU impõe aos as-
sentados para buscarem recursos em instituições bancárias, públicas
ou não.
Criou-se, então, ao que parece, uma relação assistencialista que
não visa a romper com a condição de dominação dos assentados pelo
capital industrial, muito ao contrário, e que preserva um status de
subserviência por meio do assistencialismo, limitando a agricultura
familiar e, ao mesmo tempo, dirigindo as potencialidades dos assenta-
dos e do assentamento, como um todo.
Essa percepção ficou muito evidente quando, ao findar da entre-
vista, convidaram o pesquisador para conhecer um dos projetos, que
combinava a criação de galinhas em regime de semi-cativeiro com
horta orgânica e fruticultura, financiado por uma das indústrias pape-
leiras, a Eldorado Brasil.

Figura 1: Programa de Produção Agroecológica Integrada e Sustentável – PAIS,


projeto de criação de galinhas de granja em semi-cativeiro integrado à horta
agroecológica e fruticultura, financiado pela ELDORADO BRASIL.
Fonte: autores, 28/07/2015

110
O projeto em questão decorre de compromissos firmados pela
indústria em seus contratos de financiamento junto ao BNDES. Há
cláusulas que obrigam ao investimento de certo percentual do crédito
obtido em ações sociais. No caso destacado, essa indústria optou por
atender a alguns assentados do assentamento, propondo alternativas
de produção de renda.
Durante as entrevistas, colheu-se de assentado o relato de que “os
assentados não foram ouvidos se esse seria um projeto de interesse
prá nós”, ou seja, se seria compatível com as suas capacidades, ou se
teriam interesse, ou se, mesmo interessados, como se daria o projeto,
o que resultou na obrigação de aceitar um modelo pronto-e-acabado,
com galinhas de granja, cujo resultado se revelou pífio face à pouca
ou nenhuma rusticidade da espécie escolhida para o tipo de criação a
que se propôs.
Se é possível contribuir com alguma problematização e crítica,
neste trabalho, sobre o referido programa, pode-se afirmar que o fato
de que se distribuiu, em cerimônia realizada na sede do SEBRAE em
Três Lagoas, apenas 35 (trinta e cinco) kits (dez outros já haviam sido
distribuídos anteriormente, em 2013, entre Três Lagoas e Selvíria,
pela mesma indústria), revela o quão pouco efetivo se mostrou o pro-
jeto. Tem-se, então, 45 (quarenta e cinco) lotes/assentados beneficia-
dos pelo PAIS, sendo que, no entanto, apenas neste assentamento são
mais de cento e oitenta candidatos ao referido programa.
Logo, a iniciativa se revela muito mais pirotécnica, isto é, para fa-
zer barulho, causar publicidade do que algo efetivo, concreto, que
realmente vá mudar a realidade dos assentados. Por outro lado – e
aqui a crítica deve ser mais contundente – esse tipo de apoio, presta-
do pela indústria por conta de compromissos firmados e exigências
para alcançar os financiamentos do BNDES, sem a parceria e presen-
ça direta do Estado, via INCRA e/ou AGRAER, acaba por lançar os
assentados numa completa relação de submissão e subserviência que,
ao invés de promover a libertação do cativeiro capitalista, os mantém

111
sob o jugo do assistencialismo do capital industrial e sob o crivo do
tempo social ditado pelas papeleiras.
Entende-se por cativeiro, no caso, a condição a que foram subme-
tidos os assentados, sujeitos da pesquisa, os quais aguardavam, com
a posse da terra, libertar-se do jugo exploratório, com base na renda
da terra, mas, viram-se impossibilitados disso mediante o assistencia-
lismo das indústrias conjugado com a ausência da Estado, estando
subjugados pelos limites e pelo tempo social imposto pelo complexo
agroindustrial territorial eucalipto-celulose-papel.
Nessa perspectiva, comprova-se uma nova ferramenta de contro-
le social por parte da relação simbiótica Capital/Estado: este último
se mantém inerte, principalmente, por seus órgãos como INCRA,
AGRAER, IBAMA, ou, realizando funções aparentes quanto ao licen-
ciamento ambiental, caso do IMASUL, cujas chancelas aos grandes
empreendimentos parecem habituais, quase de ofício; ao mesmo
tempo, o capital agroindustrial adota os assentados, colocando-se
como única fonte e perspectiva de financiamento de projetos para
produção da agricultura familiar.
Entretanto, os projetos não podem ser destinados a todos; há
aqueles que – ainda – não conseguiram o documento mínimo para
regularização fundiária, isto é, o certificado de cessão de uso – CCU.
Por outro lado, mesmo para os que se encontram regularizados,
os projetos e financiamentos, aparentemente, dão-se em doses ultra-
-homeopáticas, contemplando parcos agricultores a cada ano, de for-
ma que o assistencialismo – e o cativeiro – seja mantido por longo
período.
Quanto à outra indústria, Fibria (atualmente Suzano), também
essa desenvolve projetos sociais na região do Bolsão, em moldes se-
melhantes aos da sua concorrente próxima, beneficiando a assentados
rurais, população urbana de Três Lagoas e região e, até, aldeia indí-
gena localizada na área rural de Brasilândia, cidade próxima a Três
Lagoas.

112
Figura 2: Perfuração do poço e instalação de reservatório de 30
mil litros. Assentamento 20 de Março, Três Lagoas/MS.
Fonte: FIBRIA, Relatório Destaques MS 2015

Figura 3: Construção do Centro Comunitário do


Assentamento São Joaquim, em Selvíria/MS.
Fonte: FIBRIA, Relatório Destaques MS 2015

O relatório citado (Destaques, MS, 2015) apresenta muitos outros


projetos sociais desenvolvidos pela Fibria, atual Suzano, junto a ou-
tros agricultores familiares, assentados, comunidades indígenas, po-
pulações urbanas etc.

113
Pelo momento optou-se por explicitar apenas dois projetos, exem-
plificativamente, o que não é feito com o fito de diminuir a demons-
tração de investimentos sociais realizados por essa indústria, mas,
apenas, para registrar o suficiente sobre tais investimentos e projetos,
para o que interessa a este trabalho.
A existência de vários projetos sociais, de acordo com o levanta-
mento da pesquisa, tem o condão de demonstrar a ausência estatal
em detrimento da forte presença do capital agroindustrial. É nessa
perspectiva que se fala neste artigo da formação dos “cativeiros de
papel pelos desertos verdes”.
Ressalte-se que ficou evidente, a partir da pesquisa empírica, em
que 12 (doze) atores sociais foram entrevistados e responderam a
questionários, além da entrevista em si, uma sensação quase generali-
zada de que não existiriam conflitos ambientais, sociais, econômicos,
propriamente ditos.
Onze participantes da pesquisa acreditavam no discurso da pros-
peridade infinita e do desenvolvimento sustentável, mesmo diante de
declarações deles próprios no sentido de uma sensação de elevação
dos índices de criminalidade, abandono do campo pelos trabalhado-
res rurais, dificuldades em operacionalizar a agricultura, pecuária, es-
pecialmente sob o modelo familiar, ausência de investimentos e apoio
por parte dos órgãos e agências estatais.
Em síntese, a pesquisa empíria demonstrou a ausência de uma
consciência de classe em grande parte dos sujeitos da pesquisa, os
quais relatam os conflitos socioambientais como meros problemas,
quando muito, o que dificulta não apenas o seu enfrentamento,
como, também, a própria condição de seu tempo social, uma vez
que, acabam por restringir seu inconformismo dentro da esfera da
vida privada, não havendo dinamização da luta para o efetivo enfren-
tamento da condição em que se encontram: submetidos aos “cativei-
ros de papel”.

114
Considerações finais
A entrada em operação das duas maiores indústrias de pasta de celu-
lose do mundo na região de Três Lagoas deflagrou uma nova época
para a vertente da concentração fundiária. A par disso, esse modelo
monocultural passou a exercer, por meio da concentração fundiária
e econômica, o monopólio dos investimentos públicos e privados na-
quela região, denominada Bolsão sul-matogrossense.
Nesse sentido, frente à ausência de investimentos públicos para a
realização de uma reforma agrária concreta, os assentados viram-se à
mercê dos programas de desenvolvimento social - PDS -, praticados
pelas duas papeleiras instaladas naquela região.
Assim, os “desertos verdes”16 não apenas se instalaram causando
forte pressão sobre a agricultura familiar, como, também e principal-
mente, passaram a controlá-la, pois as papeleiras se apresentam como
única fonte de recursos viável para os assentados.
Diante disso, uma das grandes questões que se busca neste ar-
tigo é evidenciar que o modelo negocial proposto na região do
Bolsão Sul-Matogrossense envolve a simbiose entre o público e o
privado, a qual privilegia a acumulação do capital e, em um con-
texto bastante favorável às indústrias, ante à omissão dos órgãos
estatais, como o INCRA e a AGRAER, mantém os assentados, no
caso, aqueles do assentamento onde se deu a pesquisa empírica,
numa relação de exclusiva dependência dos projetos de desenvol-
vimento sustentável ofertados e geridos pelas duas grandes pape-
leiras, o que passamos a denominar por “cativeiros de papel”. Toda
essa simbiose, que envolve ações e omissões do setor público alia-
das às ações do capital privado, implica em um desenvolvimento
absolutamente insustentável, predatório e regulador do tempo de

16.  A expressão deserto verde é utilizada pelos movimentos ambientalistas para designar a
monocultura de árvores em grandes extensões de terra para a produção de celulose, devido
aos efeitos que esta monocultura provoca no meio ambiente. Entre as árvores mais utilizadas
para este cultivo encontra-se, sobretudo, o eucalipto.

115
vida social da população rural e urbana que gravita no entorno do
espectro de incidência destas papeleiras.

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117
4
USO ILEGAL DO FOGO E A BANALIZAÇÃO
DA VIDA DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS
NO PANTANAL MATOGROSSENSE
Vívian Lara Cáceres Dan
Kilwangy Kya Kapitango-a-Samba
Luciano Pereira da Silva
Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão
Évelin Mara Cáceres Dan

O cenário da devastação
O Pantanal1, inscrito na lista de Patrimônio Natural da Humanida-
de e Reserva da Biosfera (UNESCO, 2002), é um complexo de águas
protegidas. Em 2020 foi centro de atenção dos noticiários nacionais
e internacionais. Nos meses de agosto a outubro, um cenário ago-
nizante e desolador que comove e revolta foi mostrado ao mundo.
Os incêndios ambientais que consumiram a flora e a fauna do bioma
demonstraram que os ataques feitos pelo presidente do Brasil aos po-
vos “caboclos e nativos da região”2 eram infundados, mas evidencia-
ram a negligência e omissão da União e dos Estados de Mato Grosso

1.  IPHAN. Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal (MT/MS). Disponível em: <http://
portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/40>. Acesso em: 20 dez. 2020.
2.  AGOSTINI, Cristiane. “Com recorde de queimada, Bolsonaro diz não ter como combater
o desmatamento no Pantanal”, in Valor Econômico, publicado em 11 out. 2020. Disponível
em: <https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/10/11/com-recorde-de-queimada-
-bolsonaro-diz-no-ter-como-combater-desmatamento-no-pantanal.ghtml>. Acesso em: 20
dez. 2020.

119
(MT)3 e Mato Grosso do Sul (MS)4 no combate e na prevenção de
tais incêndios. Nestes Estados, voluntários e ONGs agiram para frear
o avanço do fogo5, especialmente a ONG ECOA que atua desde 1989
em ações para conservação ambiental, em regiões prioritárias como
o Pantanal6. Destaca-se também o descaso do poder público federal
que “atrasou nas ações contra os incêndios” e disponibilizou uma in-
fraestrutura incompatível com o tamanho da devastação7.
O Observatório Pantanal publicou, em seu site, que quatro municí-
pios situados no Pantanal concentram a maioria dos focos de incêndio
do bioma: Corumbá (MS), Poconé (MS), Barão de Melgaço (MT) e Cá-
ceres (MT). E, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espa-
ciais (Inpe), os focos de incêndio de 1º de janeiro à 22 de outubro deste
ano somaram um total de 19. 284 (92% de todos os focos) nestes quatro
municípios, e, em todo o bioma do pantanal foram 20.955 focos8. Ain-
da, segundo a reportagem e dados divulgados pelo Laboratório de Apli-
cações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (Lasa-UFRJ) foram 4,1 milhões de hectares queimados até outubro
de 2020, que representa 30% do território do bioma. No todo foram 2,2

3.  Mato Grosso detém 35% do bioma do Pantanal em seu território.


4.  Mato Grosso do Sul detém 65% do bioma do Pantanal em seu território.
5.  VALFRÉ, Vinícius. ESTADÃO. Reportagem: “Com resposta lenta do governo, voluntários
vão à luta pelo pantanal”, em data de 20/09/2020. Disponível em: <https://noticias.uol.
com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/09/20/voluntarios-vao-a-luta-pelo-pantanal.
htm>. Acesso em: 20.dez.2020.
6.  Ações da ONG ECOA podem ser acompanhadas pelo site <https://ecoa.org.br/
ecoa-institucional/?gclid=CjwKCAiAudD_BRBXEiwAudakX0pqa-86hXs2RU1jBURXj-
cByRL03tqjpozlg3yevi0pAg2yguvDNUBoCiIwQAvD_BwE>. Acesso em 05.jan.2020.
7.  CAMARA DOS DEPUTADOS. Segundo reportagem: “Deputados querem que ministro
do Meio Ambiente explique combate às queimadas no Pantanal”, seção Meio Ambiente e
Energia, na data de 24/09/2020, disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/
695552-deputados-querem-que-ministro-do-meio-ambiente-explique-combate-as-queima-
das-no-pantanal/>. Acesso em 20.dez.2020.
8.  OBSERVATÓRIO PANTANAL. Segundo reportagem: “Quatro municípios estão entre os
10 com mais focos de incêndios do país em 2020”, em data de 26/10/2020, disponível em:
https://observatoriopantanal.org/2020/10/26/quatro-municipios-do-pantanal-estao-entre-
-os-10-com-mais-focos-de-incendios-do-pais-em-2020/. Acesso em 20.dez.2020.

120
milhões de hectares de área queimada no Estado de Mato Grosso e 1,9
milhões de hectares de área queimada no Estado de Mato Grosso do
Sul. E, a partir das parcerias formadas entre Embrapa Pantanal, Icmbio
e UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) busca-se mensurar os
impactos e as consequências dos incêndios no Pantanal, com a conta-
gem de animais mortos para além da área atingida pelo fogo9. Além
disso, o bioma do Pantanal sofre com uma taxa de desmatamento de 67
hectares por dia nesse período (MAPBIOMAS,2020).

Fonte: Observatório Pantanal, 2020. Link: https://observatoriopantanal.


org/2020/10/26/quatro-municipios-do-pantanal-estao-entre-os-
10-com-mais-focos-de-incendios-do-pais-em-2020/.

Em meados de setembro de 2020, o Comitê Cientifico de Mu-


danças Climáticas do Icomos Brasil (2020)10 lançou a carta “Incên-

9.  OBSERVATÓRIO PANTANAL. Segundo reportagem: “Quatro municípios estão entre os


10 com mais focos de incêndios do país em 2020”, em data de 26/10/2020, disponível em:
https://observatoriopantanal.org/2020/10/26/quatro-municipios-do-pantanal-estao-entre-
-os-10-com-mais-focos-de-incendios-do-pais-em-2020/. Acesso em 20.dez.2020.
10.  O documento do Conselho Internacional de Monumentos em Sítios (ICOMOS) foi as-
sinado ainda pelas seguintes instituições: Comitê Científico de Patrimônio Imaterial e Paisa-
gens Naturais do ICOMOS, Fórum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento
(FORMAD), Ecologia e Ação/MS (ECOA), Fórum Nacional da Sociedade Civil nos comitês

121
dios Florestais no Pantanal e Patrimônio Cultural”. Neste manifesto,
sublinha-se que a planície alagável pantaneira é “um dos 34 hotspots
mundiais, com uma biodiversidade muito rica”, e “as comunidades
indígenas e ribeirinhas dependem dessa diversidade, especialmente
da pesca”. No documento consta que os Estados de Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul não planejaram ações de prevenção e combate
ao fogo, não fizeram investimentos em brigadas locais nem em fiscali-
zação ou ações cooperadas entre os órgãos ligados ao meio ambiente
(ICOMOS, 2020). Para além disso, sob outro aspecto da degradação
ambiental desse bioma, um outro documento elaborado por pesqui-
sadores da área da hidroecologia11, trouxe informações sobre os pos-
síveis investimentos que podem chegar ao montante de R$ 20 bilhões
de reais pelo governo do Estado de Mato Grosso, para implantação
de pequenas hidrelétricas na bacia hidrográfica do Alto Paraguai, for-
madora do Pantanal12. No documento se ressalta ainda que, a conser-
vação do Pantanal e sua bacia hidrográfica é importante para manter
a subsistência das populações ribeirinhas e comunidades tradicionais
que habitam o Pantanal, que desse bioma depende seu modo de vida.
O contexto da pandemia provocada pelo coronavírus tende a agra-
var ainda mais a situação dos povos indígenas, quilombolas, pescado-
res artesanais, ribeirinhos e extrativistas, que já enfrentam as conse-
quências do incêndio no Pantanal e que têm suas vidas ameaçadas.
E, em alguns casos, com a tendência de remoção forçada das suas
moradias nas comunidades e territórios, intensificada pelos conflitos

de bacias hidrográficas (FONASC. CBH), Rede de Comidades Tradicionais Pantaneiras, Ins-


tituto GAIA-Cáceres, Rede Pantanal, Associação de Pesquisa Xaraiés, Sociedade de Arqueo-
logia Brasileira (SAB – região Centro Oeste), Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio
Cultural brasileiro, Associação Nacional de História (ANPUH), OAB/MT, Federação dos Po-
vos Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT).
11.  CALHEIROS, Débora F; IORIS, Antônio A.R; JESUS, Cleberson R. de; SANTOS, Jea-
ter M; FIGUEIREIDO, Daniela Maiomoni de. SALVAGUARDAS AMBIENTAIS E SOCIAIS
PARA A CONSERVAÇÃO DO PANTANAL E SUA PRODUÇÃO PESQUEIRA (pdf ).
12.  O documento informa ainda que já existem 60 hidrelétricas em funcionamento nesta
bacia utilizando 50% do potencial total de geração de hidrelétrica da bacia.

122
historicamente existentes, pela propensão a maiores doenças respira-
tórias e fragilidades de saúde em decorrência da insegurança alimen-
tar e sanitária gerada pelos incêndios. É sobre alguns desses casos que
iremos abordar também.

Queimadas ou incêndios florestais no Pantanal?


Segundo reportagem publicada pelo jornal Estadão, em 14 de setem-
bro de 2020, os especialistas ambientais esclareceram que “a maior
série de queimadas no Pantanal dos últimos tempos ocorre numa
combinação de incêndios criminosos”. Também se somam a isso os
problemas anteriores tais como o “desmatamento das cabeceiras dos
rios da Amazônia e do Cerrado” e a “retirada de 15% da cobertura
natural pantaneira que virou pastagem”. Ponderaram ao afirmar que
“a maior parte dos focos de calor surgem dentro das propriedades pri-
vadas” e que “o nível da chuva neste ano no pantanal foi 40% menor
que em 2019”, ou seja, os incêndios são efeitos da ação humana, de
que se pode concluir que parece haver uma conduta criminosa, so-
mando-se os problemas de desequilíbrio hídrico e climático anterio-
res a própria origem do fogo13.
A lei n. 12.651 de 25 de maio de 2012, também denominada de Có-
digo Florestal Brasileiro, possui o capítulo III específico para áreas de
uso restrito, onde a exploração dos pantanais e planícies pantaneiras
só é possível de forma “ecologicamente sustentável”, segundo o art.
10º (BRASIL, 2012)14. Isto ocorre devido a sua importância ambiental
e ecológica para sustentação do ecossistema como um todo, consi-
derando as condições e o regime jurídico especial de proteção para

13.  ESTADÃO. “Queimadas no Pantanal: resultado de crime e desequilíbrio”, em


14/09/2020, disponível em: <https://www.acritica.net/editorias/geral/resultado-de-crime-
-e-de-desequilibrio/476407/>. Acesso em 20.dez.2020.
14.  BRASIL. Lei n. 12.651/2012. Disponível em: http://www.mpap.mp.br/images/CAOPs/
cartilhas/codigo-florestal.pdf. Acesso em 20.dez.2020.

123
preservação, atendendo ao que preceitua o art. 225, parágrafo 4º da
Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Porém, esse código florestal não trouxe os critérios ou as condi-
ções para a exploração que assegurassem essa preservação do bioma
do Pantanal, sendo considerado um dispositivo normativo genérico.
No Código Florestal Brasileiro, no Capítulo IX “Da proibição do uso
do fogo e controle dos incêndios”, em seu art. 38 preceitua-se que
existem as situações excepcionais de uso do fogo em vegetação e, por-
tanto, a regra imposta é a proibição do uso de fogo em florestas e
as exceções exigem autorização do Poder Público. De acordo com o
inciso I, do art. 38: “em locais ou regiões cujas peculiaridades justifi-
quem o uso do fogo em práticas agropastoris ou florestais [...]” (BRA-
SIL, 2012, grifo nosso), e, esse inciso deve ser visto com reserva, pois
não basta tratar de método com viabilidade econômica mais vantajo-
sa ou de uso tradicional pela população local, e sim deve-se levar em
consideração as peculiaridades do local ou região em que o uso do
fogo será autorizado.
No Decreto n. 2.661, de 8 de julho de 1998 podem ser identificadas
as hipóteses das atividades de uso de fogo em locais cujas peculiaridades
justifiquem essa prática, também denominada de “queima controlada”,
mas somente se autorizadas pelo Poder Público e segundo os critérios e
condições ali estipulados (BRASIL, 1998)15. Vale ressaltar que o Sistema
Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) concede aos Estados, Distrito
Federal e Municípios ou até à órgãos privados responsáveis pela gestão
ambiental local, a autonomia de elaborar projetos e diretrizes ambien-
tais, os procedimentos variam entre os Estados brasileiros.
Os dispositivos relativos ao emprego do fogo estão no Decreto
Federal nº 2.661, de 8 de julho de 1998, que estabelece normas e re-
quisitos para uma queima controlada das quais destacam-se a prévia

15.  O Decreto n. 3.010, de 30 de março de 1999, vedou de maneira absoluta o uso do fogo
na forma controlada para queima de vegetação numa faixa de mil metros de aglomerados
urbanos, conforme alteração do art. 1º, parágrafo 3º do Decreto n. 2.661/1998.

124
autorização do SISNAMA; equipamentos adequados para evitar pro-
pagação do fogo fora dos limites estabelecidos nesse decreto; indi-
cação da data, da hora do início e do local em que será realizada a
queima e outros aspectos fundamentais (BRASIL, 1998), bem como a
suspensão do ato quando:

Art. 15. A Autorização de Queima Controlada será suspensa ou cancela-


da pela autoridade ambiental nos seguintes casos:
I - Em que se registrarem risco de vida, danos ambientais ou condições
meteorológicas desfavoráveis;
II - de interesse e segurança pública;
III - de descumprimento das normas vigentes (BRASIL, 1998).

É importante dar destaque ainda, ao art. 38, parágrafo 2º do Códi-


go Florestal Brasileiro, que traz o seguinte preceito: “excetuam-se da
proibição constante no caput, as práticas de prevenção e combate aos
incêndios e as de agricultura de subsistência exercidas pelas popula-
ções tradicionais e indígenas” (BRASIL, 2012, grifo nosso). Ou seja,
a agricultura de subsistência utilizada pelas populações tradicionais
e indígenas ganha um tratamento diferenciado nesse código, libe-
rando-se o uso de fogo nas atividades agrícolas por eles promovidas,
justamente porque possuem formas próprias de organização social e
usam seus territórios e recursos naturais para a sobrevivência física e
cultural. Foram assim definidos como populações tradicionais pelo
art. 3º, inciso I do Decreto 6.040/2007 (BRASIL, 2007), não sendo elas
responsáveis pelos incêndios, uma vez que a terra não é considerada
como de valor econômico/troca, mas como espaço de vida e sobrevi-
vência, sendo portanto, os “guardiões da floresta”.
Em todo caso, pode-se fazer alusão a “queimadas” nos casos em
que são utilizadas como uma das técnicas tradicionais da agricultura
familiar (no caso de populações tradicionais) ou as autorizadas pelo
Poder Público para renovação das pastagens, em conformidade com

125
o art. 38 do Código Florestal Brasileiro e com o Decreto federal n.
2.661, de 8 de julho de 1998.
A queima controlada, portanto, é utilizada para desenvolvimento
da pecuária na região pantaneira e deve ser realizada em conformi-
dade com a lei. Sendo assim, quando não autorizada constitui crime
previsto na Lei nº 9.605, de12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Am-
bientais), que dispõe sobre sanções penais e administrativas às condu-
tas lesivas ao meio ambiente, logo:

Art. 41. Provocar incêndio em mata ou floresta.


Pena – reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
Parágrafo único: Se o crime é culposo, a pena é de detenção de seis me-
ses a um ano, e multa (BRASIL, 1998).

E, para concretizar a política ambiental do emprego do fogo, o Go-


verno Federal, em conformidade com o art. 40 da Lei nº 12.651, de 25
de maio de 2012 (Código Florestal Brasileiro), deve estabelecer uma
Política Nacional de Manejo e Controle de Queimadas, Prevenção e
Combate a Incêndios Florestais. Dessa forma, o Ministério do Meio
Ambiente, juntamente com o Ministério da Agricultura devem pro-
mover estratégias institucionais com vistas ao uso do fogo no meio
rural e em áreas protegidas (BRASIL, 2012).
Os parágrafos 3º e 4º do Código Florestal Brasileiro esclarecem
que “na apuração da responsabilidade pelo uso irregular do fogo em
terras públicas ou particulares” deverá ser comprovado o nexo de
causalidade entre a ação do proprietário ou preposto e o dano cau-
sado. Sendo o parágrafo 4º, mais amplo que o 3º, este foi contempla-
do no dispositivo mais amplo sendo o mesmo desnecessário. Ainda,
cumpre destacar que o legislador consagrou regramento normativo
equivocado ao preceituar que deve ser comprovado o nexo de causa-
lidade. O dano ambiental é disciplinado pela lei n. 6.938/1981, art. 14
inciso I, e impõe-se a “responsabilidade objetiva”, que independe de

126
dolo ou culpa da conduta do causador de dano ambiental. E segundo
essa teoria da responsabilidade objetiva, a apuração do dano nunca
dispensa esse nexo de causalidade, afastando-se somente o elemento
subjetivo e, portanto, trata-se de dispositivo que carece de conteúdo
de aplicabilidade imediata.
O uso irregular do fogo é tipificado em nosso ordenamento jurí-
dico como infração penal e foge, portanto, das hipóteses previstas no
Decreto n. 2.661/1998, de “queima controlada” autorizada pelo Po-
der Público, sendo considerada uma conduta ilícita por ser um fogo
sem controle. Se o incêndio é provocado em mata ou floresta, devido
ao princípio da especialidade, aplica-se o art. 41 da Lei n. 9.605 de
199816, lei de crimes ambientais, com pena de 2 a 4 anos de reclusão e
multa, se a conduta for dolosa17. E, portanto, o tipo penal comporta
conduta culposa conforme parágrafo único do mesmo artigo de lei18.
E, o que seria a conduta de causar incêndio? É a de provocar, pro-
duzir, dar causa, de algum modo, à combustão. E não é qualquer
fogo, segundo Noronha (2003, p. 359)19 “é necessário que o objeto in-
cendiado exponha risco a perigo o bem tutelado”, ou seja, incêndio é
o que acarreta risco para pessoas e coisas, entendido aqui como “fogo
perigoso”, e também conceituado como “incêndio florestal” pelo ar-
tigo 20 do Decreto 2.661/1998 que estabelece: “Para os efeitos desse
decreto, entende-se como incêndio florestal o fogo não controlado
em floresta ou qualquer outra forma de vegetação” (BRASIL, 1998).
Assim, o grande problema em questão é quando esses incêndios
advêm da ação humana e são irregulares e ilegais. O uso legal do fogo
é o autorizado, porém o uso ilegal, sem autorização, com falta de

16.  “Lei que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e ativi-
dades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências” (BRASIL, 1998).
17.  Art. 41 da referida Lei: “Provocar incêndio em mata ou floresta: Pena: reclusão de dois a
quatro anos e multa”.
18.  At.41 parágrafo único: “Se o crime é culposo, a pena é de detenção de seis meses a 1 ano,
e multa”.
19.  NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2003.

127
fiscalização dessa prática dificulta a recomposição do meio ambiente,
colocando a vida em risco e desencadeando danos imensuráveis, além
do desiquilíbrio ambiental.
O Tribunal de Justiça também já decidiu sobre o que é indispensável
para a existência de incêndio: “a prova da ocorrência de perigo efetivo
ou concreto para pessoas ou coisas indeterminadas”20, não importando,
portanto, a natureza da coisa incendiada, nem que ela seja de proprieda-
de do agente que o causou. Também não é relevante para a caracteriza-
ção do delito “os meios executórios” dos quais esse agente utilizou para
executar o incêndio. Será uma conduta criminosa comissiva se o agente
realizar essa conduta proibida e será conduta omissiva se o agente não
apagar o incêndio quando o provocou de forma involuntária. E conside-
ra-se crime omissivo impróprio quando colocar um número indetermi-
nado de pessoas em perigo, porém, precisa ser comprovado.
Segundo Franco, na reportagem “Queima Brasil, um projeto de
governo” 21:

A Polícia Federal afirma que a origem do fogo é criminosa. Fazendeiros


destruíram a vegetação nativa para abrir pastos. Em ano de seca atípica
as labaredas saíram do controle e se alastraram para áreas preservadas.
O governo demorou a se mexer para reduzir a extensão da catástrofe
(FRANCO, 2020).

Segundo dados da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, publica-


dos na reportagem “Resultado de crime e desequilíbrio” do Estadão
conteúdo (2020)22:

20.  Dentre as decisões: RTJ 65/230; RT 200/117, 224/282, 350/366, 405/113.


21.  FRANCO, Bernardo Mello. Reportagem “Queima Brasil, um projeto de governo”, de
16/09/2020, disponível em: <https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/
post/queima-brasil-um-projeto-de-governo.html>. Acesso em 20.dez.2020.
22.  ESTADÃO CONTEÚDO. Reportagem: “Resultado de crime e desequilíbrio”, de
14/09/2020, disponível em: <https://www.istoedinheiro.com.br/resultado-de-crime-e-de-
-desequilibrio/>. Acesso em 20.dez.2020.

128
Dados da Secretaria Estadual do Meio Ambiente de Mato Grosso
apontam que a maior parte dos focos de calor surgem justamente em
propriedades privadas. Mais de cinco mil foram registrados dentro de
áreas cercadas. Nas estimativas oficiais, 15% da cobertura natural panta-
neira virou pastagem.

E, ainda segundo reportagem veiculada por Ribeiro Junior, em 25


de setembro de 2020, no site da UOL23:

A Polícia Federal já possui um conjunto de informações que considera


suficiente para indiciar pelo menos quatro fazendeiros pelo início das
queimadas na região da Serra do Amolar, no Pantanal de Mato Grosso
do Sul.

Esses indícios convergem com as hipóteses de que há situações re-


correntes no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul em que produtores
rurais, que possuem gado (pecuaristas), estejam colocando fogo na
vegetação, para transformar as áreas queimadas em áreas de pasta-
gem. As fazendas, alvo de investigações, se enquadram no que confi-
gura “grandes propriedades” com áreas superiores à 15 módulos fis-
cais, segundo a classificação do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA).

23.  RIBEIRO JR, Amaury. Reportagem: “PF já tem provas para indiciar fazendeiros de MS
por queimadas no Pantanal”, em data de 25/09/2020, disponível em: <https://noticias.uol.
com.br/colunas/amaury-ribeiro-jr/2020/09/25/pf-ja-tem-provas-para-indiciar-fazendeiros-
-por-queimadas-no-pantanal.htm>. Acesso em 20.dez.2020.

129
Fonte: REPÓRTER BRASIL, 2020.

O desmonte dos órgãos ambientais e a flexibilização das Políti-


cas Públicas socioambientais para povos do campo e comunida-
des tradicionais, e, a continuidade do projeto “Queima Brasil”

Os desmontes dos órgãos ambientais têm relação direta com o fogo


nas florestas, afirma Segalla, em reportagem veiculada no site “Brasil
de Fato”24, pois o “governo sabia que a seca deste ano seria muito pior
que nos anos anteriores e mesmo assim preferiu cortar recursos da
pasta”. A reportagem de Segalla e a do site Congresso em Foco25 indi-
cam os possíveis fatores, dentre os quais:

24.  SEGALLA, Vinícius. Brasil de Fato. Reportagem: “Como o desmonte de órgãos ambien-
tais tem relação direta com o fogo nas florestas”, em data de 16/09/2020, disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2020/09/16/como-o-desmonte-de-orgaos-ambientais-
-tem-relacao-direta-com-o-fogo-nas-florestas#:~:text=Os%20motivos%20claros%20e%20
identificados,treinado%20para%20combater%20o%20fogo>. Acesso em 23.dez.2020.
25.  CONGRESSO EM FOCO. Reportagem: “Vinte e um fatos que comprovam o desmonte
da política ambiental”, em data de 20/08/2020, disponível em: <https://congressoemfoco.
uol.com.br/meio-ambiente/vinte-e-um-fatos-que-comprovam-o-desmonte-da-politica-am-
biental/>. Acesso em23.dez.2020.

130
- “o desmonte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-
cursos Naturais Renováveis (Ibama)” 26: que começou em 2019 com a
exoneração de 21 dos 27 superintendentes e a redução em 34% do nú-
mero multas por desmatamento ilegal no país e defendeu “soluções
capitalistas”27 para a preservação da Amazônia;
- “a militarização do Instituto Chico Mendes de Conservação e
Biodiversidade (ICMbio)”28: começando em maio deste ano com a
reestruturação do órgão que teve 11 coordenações regionais fecha-
das, com apenas 1 gerência em cada região do país, para cuidar de
todas as unidades de conservação existentes, sendo todos os chefes
dessas gerências regionais militares, ou seja, transformou cargos an-
tes ocupados por servidores de carreira em postos chave, sob a tutela
das Forças Armadas e Polícia Militar29; o ministro do Meio Ambiente
declarou ainda, que as unidades de conservação vão ser revistas e em
alguns casos extintas pois, foram feitas “sem critério técnico”30;

26.  SEGALLA, Vinícius. Brasil de Fato. Reportagem: “Como o desmonte de órgãos ambien-
tais tem relação direta com o fogo nas florestas”, em data de 16/09/2020, disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2020/09/16/como-o-desmonte-de-orgaos-ambientais-
-tem-relacao-direta-com-o-fogo-nas-florestas#:~:text=Os%20motivos%20claros%20e%20
identificados,treinado%20para%20combater%20o%20fogo. Acesso em 23.dez.2020.
27.  CONGRESSO EM FOCO. Reportagem: “Vinte e um fatos que comprovam o desmonte
da política ambiental”, em data de 20/08/2020, disponível em: https://congressoemfoco.
uol.com.br/meio-ambiente/vinte-e-um-fatos-que-comprovam-o-desmonte-da-politica-am-
biental/. Acesso em 23/12/2020.
28.  SEGALLA, Vinícius. Brasil de Fato. Reportagem: “Como o desmonte de órgãos ambien-
tais tem relação direta com o fogo nas florestas”, em data de 16/09/2020, disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2020/09/16/como-o-desmonte-de-orgaos-ambientais-
-tem-relacao-direta-com-o-fogo-nas-florestas#:~:text=Os%20motivos%20claros%20e%20
identificados,treinado%20para%20combater%20o%20fogo. Acesso em 23.dez.2020.
29.  SEGALLA, Vinícius. Brasil de Fato. Reportagem: “Como o desmonte de órgãos ambien-
tais tem relação direta com o fogo nas florestas”, em data de 16/09/2020, disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2020/09/16/como-o-desmonte-de-orgaos-ambientais-
-tem-relacao-direta-com-o-fogo-nas-florestas#:~:text=Os%20motivos%20claros%20e%20
identificados,treinado%20para%20combater%20o%20fogo. Acesso em 23.dez.2020.
30.  CONGRESSO EM FOCO. Reportagem: “Vinte e um fatos que comprovam o desmonte
da política ambiental”, em data de 20/08/2020, disponível em: <https://congressoemfoco.uol.

131
- a inação do governo e das autoridades diante da previsão de seca
ainda mais rigorosa prevista para este ano31: no ano de 2019, o minis-
tro do Meio Ambiente deixou de executar R$ 3,3 bilhões de orçamen-
to da pasta de seu ministério;
- “a demissão do Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espa-
ciais (Inpe)”: o ministro do Meio Ambiente alegou que a causa am-
biental tem como pano de fundo “uma pauta política”32, alinhando-se
às ideias que promovem o agronegócio; declarou ainda que o ex-pre-
sidente do Inpe “perdeu o cargo por colocar lenha na fogueira”33;
- “o Corte no orçamento do Ibama do ano de 2020”: segundo a repor-
tagem, “em abril deste ano, o Ministro do Meio ambiente determinou um
corte de 24% do orçamento anual previsto para o Ibama conforme consta-
va na Lei Orçamentária”34, este decreto será retomado mais adiante;
- “Anistia a multas ambientais”: o governo criou, em abril de 2020,
um órgão regulatório com a intenção de “perdoar ou revisar multas
ambientais”, que segundo o presidente da República visa combater “a

com.br/meio-ambiente/vinte-e-um-fatos-que-comprovam-o-desmonte-da-politica-ambien-
tal/>. Acesso em 23.dez.2020.
31.  SEGALLA, Vinícius. Brasil de Fato. Reportagem: “Como o desmonte de órgãos ambien-
tais tem relação direta com o fogo nas florestas”, em data de 16/09/2020, disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2020/09/16/como-o-desmonte-de-orgaos-ambientais-
-tem-relacao-direta-com-o-fogo-nas-florestas#:~:text=Os%20motivos%20claros%20e%20
identificados,treinado%20para%20combater%20o%20fogo>. Acesso em 23.dez.2020.
32.  CONGRESSO EM FOCO. Reportagem: “Vinte e um fatos que comprovam o desmonte
da política ambiental”, em data de 20/08/2020, disponível em: <https://congressoemfoco.
uol.com.br/meio-ambiente/vinte-e-um-fatos-que-comprovam-o-desmonte-da-politica-am-
biental>/. Acesso em 23.dez.2020.
33.  CONGRESSO EM FOCO. Reportagem: “Vinte e um fatos que comprovam o desmonte
da política ambiental”, em data de 20/08/2020, disponível em: <https://congressoemfoco.
uol.com.br/meio-ambiente/vinte-e-um-fatos-que-comprovam-o-desmonte-da-politica-am-
biental/>. Acesso em 23.dez.2020.
34.  CONGRESSO EM FOCO. Reportagem: “Vinte e um fatos que comprovam o desmonte
da política ambiental”, em data de 20/08/2020, disponível em: <https://congressoemfoco.
uol.com.br/meio-ambiente/vinte-e-um-fatos-que-comprovam-o-desmonte-da-politica-am-
biental/>. Acesso em 23.dez.2020.

132
indústria de multas”. “Já os ambientalistas entendem que este órgão
vai prejudicar o cumprimento das leis contra o desmatamento”35;
- perda de recursos para financiamentos de novos projetos de pro-
teção ambiental devido ao desmatamento na Amazônia: o recurso no
valor de R$ 154,5 milhões de reais que financia o Fundo Amazônia
deixou de ser repassado ao Brasil pela Alemanha e Noruega devido ao
desmatamento na Amazônia que cresceu 40% nos últimos 12 meses
(2019 a 2020)36; ainda, a rejeição dos países doadores teria ocorrido
porque o governo solicitou mudança sobre o uso da verba, ou seja,
que o recurso fosse usado para fomentar micro e pequenas empresas
que atuam na região da Amazônia37

Fonte: CONGRESSO EM FOCO, 2020.

35.  CONGRESSO EM FOCO. Reportagem: “Vinte e um fatos que comprovam o desmonte


da política ambiental”, em data de 20/08/2020, disponível em: <https://congressoemfoco.
uol.com.br/meio-ambiente/vinte-e-um-fatos-que-comprovam-o-desmonte-da-politica-am-
biental/>. Acesso em 23.dez.2020.
36.  BARBOSA, Marina. CONGRESSO EM FOCO. Reportagem: “Brasil perde R$ 154,5
milhões devido ao desmatamento na Amazônia”, em data de 10/08/2020, disponível em:
<https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/brasil-perde-r-1544-milhoes-devi-
do-ao-desmatamento-na-amazonia/>. Acesso em 23.dez.2020..
37.  CORREIO BRASILIENZE. Reportagem: “Herdamos o desmonte ambiental de gestões
anteriores, diz Salles no STF”, em data de 24/10/2020, disponível em: <https://www.cor-
reiobraziliense.com.br/politica/2020/10/4884393-herdamos-o-desmonte-ambiental-de-
-gestoes-anteriores-diz-salles-no-stf.html>. Acesso em 23.dez.2020.

133
Ainda, as flexibilizações da legislação socioambiental brasileira po-
dem ser interpretadas como parte do contexto de desmonte inclusive
das políticas públicas nesta área ambiental e também da retirada de
proteção aos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicio-
nais. Dentre as quais podemos citar:
- Projetos de leis que vêm no sentido, de instituir a tese do “marco
temporal”, e considerar como tendo direito às suas terras, apenas os po-
vos e comunidades tradicionais que estivessem ocupando suas terras na
data da promulgação da Constituição Federal desconsiderando todo o
processo de esbulho renitente, expulsão, ameaças e violências históricas
anteriores à Constituição Federal de 1988, sendo ainda possível inter-
pretá-la como como uma espécie de “anistia” à terra grilada de povos
indígenas. O Parecer n. 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU)
38
obriga a Administração Pública a aplicar a tese do marco temporal; ain-
da estabelece que as terras indígenas possam ser ocupadas por unidades,
postos e demais intervenções militares, estradas, ferrovias, empreen-
dimentos hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem consulta
aos povos indígenas; determina a revisão de todas as terras indígenas já
demarcadas e em processo de demarcação adequadas a tese do marco
temporal; e transfere para o ICMbio o controle das terras indígenas que
estão sobrepostas unidades de conservação. De acordo com a lei com-
plementar n. 73/1993, este parecer, aprovado pelo Presidente, ganha
força de lei alcançando toda a administração federal. No entanto, existe
uma movimentação para que o STF julgue os casos em andamento.
- O Decreto n. 9.711/201939, já em vigor, e que reduziu drastica-
mente o orçamento da Funai pelo Poder Executivo Federal. Em

38.  Contestada sua validade e aplicabilidade pelo Ministério Público Federal por violação
literal da Constituição Federal e Tratados internacionais de Direitos Humanos. NOTA TÉC-
NICA n. 02/2018-6 CCR. Disponível em <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/
documentos-e-publicacoes/publicacoes/nota-tecnica/2018/nt02_2018.pdf>. Acesso em
03/01/2020.
39.  BRASIL. Decreto n. 9.711, de 15 de fevereiro de 2019. Dispõe sobre a programação orça-
mentária e financeira, estabelece o cronograma mensal de desembolso do Poder Executivo

134
relação a Funai o decretou contingenciou 90% do orçamento previs-
to na Lei Orçamentária Anual (LOA) sendo as áreas mais afetadas:
as coordenações técnicas locais (CTLs) e as Frentes de Proteção Et-
noambiental (FPEs), unidades mais próximas às comunidades in-
dígenas.
- A Portaria n. 80/2017 do Ministério da Justiça e Cidadania40, já
em vigor, paralisou as demarcações de terras indígenas ao instituir
um grupo de trabalho que está revendo os procedimentos da demar-
cação no âmbito do Ministério da Justiça. Este grupo, inclusive pode
decidir pela desaprovação das identificações realizadas pela Funai e
devolver o processo à origem.
- O Projeto de Lei n. 1610/199641, que regulamenta a mineração
em terras indígenas, preceitua que caberá ao Congresso Nacional a
decisão final sobre a autorização do desenvolvimento dessas ativida-
des na área almejada, mesmo que a consulta aos povos indígenas for
contrária.
- O Projeto de lei n. 4.059/201242apensado ao PL n. 2.289/2002,
que promove a estrangeirização das terras nacionais, flexibilizando a
legislação atual que prevê restrições a compra de terras por estrangei-
ros na fronteira e em relação ao tamanho de área adquirida, uma vez
que este novo projeto não prevê limites e critérios para a compra ou
arrendamentos de terras nacionais por estrangeiros.

Federal para o exercício de 2019 e dá outras providências. Disponível em <http://www.pla-


nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9711.htm>. Acesso em 03/01/2020.
40.  BRASIL. Portaria n. 80, de 19 de janeiro de 2017. DOU de 20/01/2017 (n. 15, Seção
1, p.18). Disponível em<<http://www.lex.com.br/legis_27281363_PORTARIA_N_80_
DE_19_DE_JANEIRO_DE_2017.aspx>. Acesso em 03/01/2020.
41.  Aguardando criação de Comissão Temporária pela Mesa. Disponível em <https://
www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=16969>. Acesso em
03/01/2020.
42.  Projeto que versa sobre critérios de aquisição de áreas rurais e suas utilizações, por pes-
soas físicas e jurídicas estrangeiras, está na Câmara dos Deputados para criação de comissão
especial. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramita-
cao?idProposicao=548018>. Acesso em 04/01/2021.

135
- O Projeto de Lei n. 5.843/201643, que permite a transferência de
parte das terras devolutas (bens da União) para os estados e estes po-
derão destiná-las à ocupação urbana e atividades econômicas. O mes-
mo está aguardando votação na Comissão de Agricultura, Pecuárias,
Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR).
- O Projeto de Lei n. 654/201544, em tramitação no Senado, esta-
belece regras mais flexíveis e “a jato” para licenciamentos de obras
de infraestrutura e atividades de grande impacto ambiental, que na
realidade traduz-se no fim dos licenciamentos, por não preverem a
obrigatoriedade das audiências públicas e poderem ter a emissão de
licença por decurso de tempo, ou seja, após um determinado prazo,
não precisam esperar os pareceres técnicos dos órgãos competentes.
- O Projeto de Lei n. 3729/200445, pronto para a pauta no Plenário
(PLEN) e aguardando parecer do relator da Comissão de Constitui-
ção e Justiça e Cidadania (CCJC), também se traduz em instrumen-
to para o fim do licenciamento ambiental por vários pontos críticos,
elencados por Malerba e Pontes (2019, p.4):

[...] dispensa de licenciamento para atividade de agricultura, silvicultura


e pecuária embora seja inconstitucional a dispensa de licenciamento para
atividades potencialmente impactantes e já consolidado esse entendimen-
to pela Jurisprudência do STF46; reduz a participação e o acesso à infor-
mação prevendo apenas 1 audiência pública e somente para

43.  Regulamento o disposto no art. 20, inc. II, da Constituição Federal, que trata das terras
devolutas da União e dá outras providências. Disponível em <https://www.camara.leg.br/
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2091996>. Acesso em 04/01/2021
44.  Projeto de Lei do Senado que cria o licenciamento ambiental especial, procedimento ad-
ministrativo específico destinado a licenciar empreendimentos de infraestrutura estratégicos
e de interesse nacional. Está com a relatoria. Disponível em <https://www25.senado.leg.br/
web/atividade/materias/-/materia/123372>. Acesso em 04/01/2021.
45.  Dispõe sobre o licenciamento ambiental, regulamenta o inciso IV, parágrafo 1º do art.
225 da Constituição Federal e dá outras providências. Disponível em <https://www.camara.
leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=257161>. Acesso em 04/01/2021.
46.  ADI n. 1086-7/SC de 2011; ADI n. 5312/TO de 2018.

136
empreendimentos de alto impacto; prevê a emissão de licença por decur-
so de prazo e por isso órgãos que cuidam do patrimônio histórico e cultu-
ral não serão ouvidos violando os direitos dos povos e comunidades tra-
dicionais; retira o direito de veto dos órgãos responsáveis pela gestão das
unidades de conservação e que tiverem as atividades nessa área; conside-
ra a validação do Cadastro Ambiental rural (CAR) como licença ambien-
tal para atividades agropastoris; prevê a exclusão de licença de operação
para ferrovias, estradas, transmissão e distribuição de energia a critério
exclusivo do empreendedor; prevê processos de participação/consulta
apenas em terras indígenas e quilombolas tituladas com portaria declara-
tória; exclui a responsabilidade civil das instituições financeiras por danos
ambientais, sendo necessário apresentar apenas a licença válida.

- O Novo Código Mineral resulta das Medidas Provisórias a seguir


elencadas: a MP 789 foi convertida na lei n. 13.540/201747 e modifica as
regras da Compensação Financeira pela Exploração dos Recursos Mi-
nerais (CFERM); a MP 791 foi convertida na lei n. 13.575/201748 e cria
a Agência Nacional de Mineração (ANM) em substituição ao Depar-
tamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Essas alterações no
atual código mineral propõe o aumento na arrecadação dos royalties,
mas sem retirar as várias concessões fiscais e favorecimentos tributá-
rios que são dados a esse setor. Ainda há uma intenção de impor a mi-
neração acima da garantia do direito à terra, e também tem o objetivo
de simplificar os procedimentos de concessão e outorga de pesquisa
lavral e reduzir os prazos de início da operação dos projetos minerais.
- A Medida Provisória MP n. 759, que foi convertida na lei n.
13.465/2017 em vigor, simboliza um ataque à Reforma agrária no
país, pois modificou os regimes jurídicos relacionados à regularização

47.  BRASIL. Lei n. 13.540, de 18 de dezembro de 2017. Disponível em <http://www.planal-


to.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13540.htm>. Acesso em 04.jan.2021.
48.  BRASIL. Lei n. 13.575, de 26 de dezembro de 2017. Disponível em <http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13575.htm>. Acesso em 04.jan.2021.

137
fundiária urbana e rural, e ainda a regularização fundiária no âmbi-
to da Amazônia Legal bem como as regras de venda de imóveis da
União. Os mecanismos criados por essa lei facilitam a titulação e an-
tecipa a emancipação dos assentamentos para que os lotes estejam
disponíveis para a venda no mercado de terras. Facilita ainda, a lega-
lização de grilagem de terras, que pela lei é denominada de regulari-
zação fundiária de terras públicas e devolutas. Pela nova lei, a pessoa
que possui mais de um imóvel pode ter suas terras regularizadas e o
valor estabelecido para a venda de terras da União está muito abaixo
do valor de mercado. Ou seja, além de viabilizar a regularização da
grilagem ao facilitar a entrega de títulos em áreas irregulares, essa lei
também libera ao mercado terra públicas, hoje destinadas à reforma
agrária, e ainda, intensifica o desmatamento e a pressão sobre a fron-
teira agrícola pois existe um mercado ilegal de terras.
- Outra medida que afeta a Reforma Agrária é o Memorando/
Circular n. 06 de 2019 do INCRA49, pois determina a suspensão das
atividades de vistorias dos imóveis rurais (que impede a desapropria-
ção dos imóveis), para criação de novos assentamentos. A justificati-
va foi a insuficiência orçamentária do governo federal. Isso afeta 250
processos de aquisição de terras para assentamentos rurais que estão
tramitando.
- O Projeto de Lei n. 312/2015, que agora é o Projeto de Lei n.
5028/201950, aprovado na Câmara dos Deputados e aguardando san-
ção, institui a Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambien-
tais (PNPSA), ao equiparar a terra não produtiva como sendo terra
em estado de regeneração e podendo assim, estar cumprindo a fun-
ção socioambiental como prestadora de serviços ambientais. Este
projeto de lei vem no intuito de fortalecer a financeirização da terra,

49.  INCRA. Disponível em <https://static.poder360.com.br/2019/01/SEI_INCRA-


-2522126-Memorando-Circular.pdf>. Acesso em 04.jan.2021.
50.  Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?i-
dProposicao=946475>. Acesso em 04.jan.2021.

138
pois é considerada ativo financeiro que fica respaldado enquanto esti-
ver como prestadoras de serviço ambiental.
- A Lei n. 13.887/201951, em vigor, retira a previsão de prazo para
inscrição de propriedades rurais no Cadastro de Área Rural (CAR). O
CAR foi criado para estimular os proprietários a cumprirem a legisla-
ção ambiental e vem ao encontro dos interesses do agronegócio, pois
sem prazo para essa inscrição não será possível também o cumpri-
mento do código florestal.
- Instrução Normativa 09/2020 da FUNAI52, autorizando a certifi-
cação de propriedades privadas em áreas indígenas não homologadas
e Terras Indígenas (TIs) interditadas: essa instrução normativa, ao re-
tirar do sistema de gestão fundiária (SIGEF) todas as TIs não homolo-
gadas veio privilegiar a propriedade privada e desconsiderar o direito
originário, alterando ainda, a natureza jurídica da demarcação que
é um processo declaratório e não constitutivo de direito. Essa me-
dida administrativa agravou ainda mais os conflitos socioambientais.
Atualmente essa Instrução Normativa está suspensa, pois é objeto de
ação civil pública proposta pelo MPF e com pedido de antecipação de
tutela deferida53.
Essas inúmeras medidas provisórias, projetos de leis e leis aprova-
das apontam para estruturas políticas e econômicas que existem para
defender um direito absoluto à propriedade. Essa crise institucional a
partir dos desmontes dos órgãos ambientais e flexibilização de legis-
lação socioambiental coloca um dos seus desdobramentos de forma

51.  BRASIL. Lei n. 13.887 de 17 de outubro de 2019. Disponível em <http://www.planal-


to.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13887.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%20
13.887%2C%20DE%2017%20DE%20OUTUBRO%20DE%202019&text=Altera%20a%20
Lei%20n%C2%BA%2012.651,Art.>. Acesso em 04.jan.2021.
52.  FUNAI. Instrução Normativa n. 09 de 16 de abril de 2020. Disciplina o requerimento,
análise e emissão de declaração de reconhecimento de limites em relação a imóveis priva-
dos. Disponível em <https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-n-9-de-16-de-
-abril-de-2020-253343033>. Acesso em 04.jan.2021.
53.  JUSTIÇA FEDERAL. 1ª REGIÃO. Ação civil pública cível n. 1007376-21.2020.4.01.3600.
Decisão de 08.jun.2020 (pdf ).

139
evidente: a revelação da faceta mais cruel do Estado, tanto em relação
às omissões quanto violações de direitos para continuidade do proje-
to “Queima Brasil”.

As Populações Tradicionais Afetadas no Pantanal e a Possí-


vel Governança Colaborativa

Os incêndios no Pantanal ameaçam a vida de povos indígenas, qui-


lombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos e extrativistas e, segundo
a reportagem “Avanço no fogo do pantanal ameaça indígenas de Mato
Grosso”54, publicada em 14/09/2020, a etnia guató (um dos primeiros
habitantes do pantanal mato-grossense) estão ameaçados pelo fogo
em sua terra indígena Baía do Guató em Barão do Melgaço, no Esta-
do de Mato Grosso.
A reportagem55, as imagens do satélite Sentinel-2 e o levantamento
feito pelo Instituto Centro de Vida (ICV) até o dia 13/09, informam
que mais de 75% do seu território foi consumido pelo fogo, ou seja,
cerca de 8,1 mil hectares da Terra Indígena, sendo a mais impactada
pelo fogo deste ano. E a Terra Indígena Tereza Cristina perdeu 12%
da sua área para o fogo, ou seja, 3,3 mil hectares de terra. São três Ter-
ras Indígenas no Pantanal que estão sendo afetadas pelos incêndios: a
Baía do Guató lidera com 89 focos de incêndios, a TI Perigara com 48
e a TI Tereza Cristina com 11 focos.
A reportagem ainda alerta para vários problemas oriundos des-
ses incêndios: a falta de equipamento e pessoal para o combate ao
fogo; a mortandade de peixes devido a decoada, as tempestades

54.  ICV. Reportagem: “Avanço do fogo no Pantanal ameaça indígenas em Mato Grosso”, na
data de 14/09/2020, disponível em <https://www.icv.org.br/2020/09/avanco-do-fogo-no-
-pantanal-ameaca-indigenas-em-mato-grosso/>. Acesso em 04.jan.2021.
55.  ICV. Reportagem: “Avanço do fogo no Pantanal ameaça indígenas em Mato Grosso”, na
data de 14/09/2020, disponível em <https://www.icv.org.br/2020/09/avanco-do-fogo-no-
-pantanal-ameaca-indigenas-em-mato-grosso/>. Acesso em 04.jan.2021.

140
de cinzas e demais sujeiras caírem nos rios; riscos às moradias e
cultivo de subsistências nas aldeias; agravamento de doenças res-
piratórias para além dos casos de coronavírus. A reportagem tam-
bém informou que a taxa de letalidade do coronavírus entre os
indígenas atendidos no distrito sanitário é de 3,57% enquanto na
população não indígena é de 3,12%. Esse fato, expõe uma face de
confluência de crises sem precedentes, sanitária, ambiental, hídri-
ca e política.
Na TI Thereza Cristina, nos primeiros quinze dias de setembro,
foram 81 focos de incêndio em uma área de 34 mil hectares com 506
habitantes56, segundo reportagem publicada no site El Pais.

Fonte: ICV, TI Tereza Cristina, 2020.

56.  ARINI, Juliana. EL PAIS. Reportagem:“Incêndios no Pantanal obrigam remoção de


populações indígenas, que ficam expostas à covid-19. Avanço do fogo foi estopim para
decreto de situação de emergência em Mato Grosso. Governo não informou se houve
triagem para separar os infectados pelos novocoronavírus”, em data de 15/09/2020.
Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-09-15/incendios-no-pantanal-o-
brigam-remocao-de-populacoes-indigenas-que-ficam-expostas-a-covid-19.html?f bclid=I-
wAR1QQCppgfG6w1YXkhdBM0N7YELqeoqBZQtuT34a2KYQQc2kWJUcfKQPvoY>.
Acesso em 04.jan.2021.

141
Segundo a mesma reportagem57, os indígenas enfrentam outro
risco: a de contaminação por covid-19. Os dados da Associação dos
Povos Indígenas no Brasil, até setembro de 2020, confirmaram 31.707
casos e 806 indígenas mortos pelo vírus, embora o governo não tenha
computado entre os óbitos, os indígenas que vivem na cidade. E se-
gundo o site da APIB oficial58, o panorama geral de indígenas mortos
pela Covid-19, atualizado até 12/01/2020, foi de 920 indígenas e casos
confirmados foram 45.000, sendo 161 povos afetados.
Estas duas crises tendem a se encontrar no sistema de saúde públi-
co e intensificar a gravidade das doenças respiratórias com maiores
riscos de infectação da Covid-19. Por isso, é possível afirmar que exis-
te também uma crise de desabastecimento que associa perda de patri-
mônio genético, renda e subsistência que coloca em risco a soberania
alimentar dessas comunidades e a sua reprodução cultural.
O documento ICOMOS Brasil (2020) ressalta que a falta de pre-
venção indica a negligência do governo, ao não elaborar planos espe-
cíficos para cada um dos Estados do Pantanal e sugere:

1) Investigar e punir desmatadores e incendiários; 2) Prever que depois


do desmatamento e limpeza, virá a movimentação do solo para plan-
tio de monoculturas ou feitio de pasto, a movimentação de solo pode
impactar sítios arqueológicos pré-coloniais e históricos, compreendidos
como bens culturais e classificados como patrimônio material, dessa

57.  ARINI, Juliana. EL PAIS. Reportagem: “Incêndios no Pantanal obrigam remoção de po-
pulações indígenas, que ficam expostas à covid-19. Avanço do fogo foi estopim para decreto
de situação de emergência em Mato Grosso. Governo não informou se houve triagem para
separar os infectados pelos novocoronavírus”, em data de 15/09/2020. Disponível em <ht-
tps://brasil.elpais.com/brasil/2020-09-15/incendios-no-pantanal-obrigam-remocao-de-po-
pulacoes-indigenas-que-ficam-expostas-a-covid-19.html?f bclid=IwAR1QQCppgfG6w1YXkh-
dBM0N7YELqeoqBZQtuT34a2KYQQc2kWJUcfKQPvoY. Acesso em 04.jan.2021.
58.  O número de casos confirmados e casos de óbito apresentados representam o total de
dados apresentados pela SESAI e apurados pelo Comitê Nacional de Vida e Memória In-
digena. Informações disponíveis em https://emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_co-
vid19/. Acesso em 04.jan.2021.

142
maneira, deve ser objeto de monitoramento dos órgãos de fiscalização
e de promoção da justiça e da cidadania; 3) Pautar nos debates sobre
mudanças climáticas dos Estados de MT e MS, que o agravamento dos
efeitos destas mudanças são motivados por fatores antrópicos, dentre es-
tes, aqueles que impossibilitam o adequado aumento no nível dos rios, o
pulsar regular das águas, o conseqüente enchimento da planície alagada
e logo impede a contenção natural do espalhamento do fogo; 3) Consul-
tar povos e comunidades tradicionais nos processos de licenciamento so-
bre o impactos de obras de infra-estrutura ao meio ambiente manejado
e ao patrimônio cultural; 4) Estabelecer uma governança para combate
de incêndios no Pantanal, composta pelas instituições na linha de frente
do combate ao fogo; poder público como Secretaria de Meio-Ambiente,
de Finanças, de Planejamento, de Segurança; Assembleia Legislativa, As-
sociação dos Municípios; Organizações da Sociedade Civil, associações
e representações de povos indígenas e comunidades tradicionais e pes-
cadores artesanais, Conselhos Estaduais cabíveis para questão, OAB e
Ministério Público (ICOMOS BRASIL, 2020, p. 4).

Ainda sobre os incêndios no Pantanal, o documento do ICOMOS


Brasil (2020) pontua especificamente sobre a relação e diálogo que
deve haver entre o Poder Público e os povos e comunidades tradi-
cionais e, assim, poderem aprimorar juntos planos de combate aos
incêndios no Pantanal:

a) Oferecer respostas as emergências; b) Criar um Comitê no qual a


sociedade civil atue; c) Identificar potencial risco de deslocamento e
remoção forçada de povos e comunidades tradicionais; d) Identificar e
levantar a infraestrutura existente para o lixo e geração de energia; e) In-
ventariar e mapear potencialidades de invasão e intrusão de territórios;
f ) Monitorar o desenvolvimento ilegal ou não controlado; g) Levantar
acidentes provocados com os incêndios, prevenir lesões e mortalidades;
h) Inventariar os impactos da perda de fontes de subsistência ligadas aos

143
incêndios, como por exemplo, a pesca artesanal e de subsistência e a “de-
quada” - fenômeno químico causado pelas cinzas carreadas pelas chuvas
para os rios, esse contato provoca a falta de oxigenação e o aumento de
dióxido de carbono livre e causam a mortandade de peixes (ICOMOS
BRASIL, 2020, p. 5).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A postura negligente dos governos federal e estaduais (MT e MS) para
com os temas ambientais dá protagonismo constante à pauta do des-
mantelamento das políticas ambientais do país. Os demonstrativos da
atuação desregulamentadora das leis ambientais e do desmonte dos
órgãos responsáveis pela proteção ao meio ambiente são incontestá-
veis embora seja muito difícil ter acesso aos dados oficiais. Tais práti-
cas, no campo político, são consideradas como expressão “ultranacio-
nalista e de extrema direita” e se sustentam pela narrativa, para não
dizer “crença”, de que a preservação ambiental seria um obstáculo
ao progresso econômico. Neste cenário, destacamos: (a) o descaso do
Poder Público (federal e estadual) que disponibilizou uma infraestru-
tura incompatível com o tamanho da devastação causada pelos incên-
dios criminosos provocados no bioma do Pantanal; (b) plausibilidade
da hipótese de que parte dos incêndios se originaram em propriedade
privadas, sendo a principal causadora das queimadas a atividade pe-
cuária, visto que produtores agropecuários limpam a vegetação em
períodos de pouco chuva para transformar a região em pastos e cul-
turas para exportação; (c) a mais drástica reestruturação dos órgãos
ligados ao Ministério do Meio Ambiente, revelando o desmonte dos
órgãos responsáveis pelo processo de implementação das políticas
ambientais no país e dificultando o combate dos crimes ambientais,
por meio do esvaziamento dos órgãos de fiscalização; (d) as ameaças
a sobrevivência dos povos indígenas, quilombolas, pescadores artesa-
nais, ribeirinhos e extrativistas que habitam o Pantanal e dependem

144
deste bioma, que sofrem impactos tanto nas atividades econômicas
com perda do território, em decorrências das queimadas, quanto na
saúde dessas populações afetadas tornando-se mais vulneráveis inclu-
sive a COVID. Como a maior parte das queimadas são provenientes
das atividades ilegais, caberia aos Poderes Públicos dispor de seu apa-
rato institucional para coibir essa prática criminosa.

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148
5
DISPUTAS POR TERRAS INDÍGENAS NO
BRASIL: A LUTA POR RECONHECIMENTO
DE DIREITOS EM TEMPOS
PANDEMÔNICOS E CONSERVADORES
Wilson Madeira Filho
Ana Paula Joaquim Macedo

Introdução
Políticas neoliberais vêm sendo adotadas no Brasil desde os anos 1990,
tornando-se mais intensas na última década. Nas eleições de 2018, con-
tudo, elas assumem um patamar jamais visto ao tender para uma pers-
pectiva neocoservadora, onde o retrocesso de direitos não só ocorre na
prática, como também está explícito nos discursos do Governo. Nes-
se contexto, verifica-se não apenas retrocesso legislativo, mas também
desmantelamento da estrutura administrativa responsável pelas ações
de promoção de direitos, de modo a se verificar inclusive violação à
Constituição Federal por atos omissivos da Administração Pública.
Essa postura empresarial/governamental se reverbera nas disputas
pelas terras indígenas, opondo a esses povos originários o avanço das
fronteiras agrícolas e das commodities transgênicas. A complexidade
e robustez da natureza desse direito demonstram o quão profunda é a
sua violação no Brasil. Os reflexos nefastos dessa postura se agravam
sobremaneira em tempo de pandemia.
As disputas por terras indígenas no atual contexto brasileiro, por-
tanto, caracterizado por uma política governamental conservadora

149
e redutora de direitos, se vê ainda mais agravada pela crise sanitária
em razão da pandemia causada pela Covid-19. Nesse sentido, apre-
sentaremos, inicialmente, a compreensão indigenista do alcance do
texto constituinte. Em seguida, apontaremos os desafios da cultura
jurídica nesse cenário de ameaças institucionais. Ao final, levantare-
mos a questão das judicializações, em especial a ressonância do tema
junto ao Judiciário, nos conflitos judicializados que repercutirão em
tais movimentos, partindo da hipótese de que, no atual contexto con-
servador, de desmantelamento dos órgãos administrativos responsá-
veis pela demarcação de terras indígenas, o Judiciário será um meio
alternativo e, espera-se, eficaz, para o cumprimento do texto consti-
tucional.

Direitos dos povos indígenas


Para avaliar a postura do Poder Judiciário frente aos direitos dos po-
vos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, procurou-se,
no presente trabalho, compreender o conteúdo e significado da posi-
tivação dos direitos dos povos indígenas na Constituição Federal. Para
tanto, além de salientar o sentido do direito à terra tradicionalmente
ocupada, busca-se refletir sobre a importância da positivação dos di-
reitos, sobretudo por ser este o objetivo primeiro dos movimentos de
resistência e de luta por direitos.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, um novo
paradigma foi adotado pelo ordenamento jurídico com relação aos
povos indígenas. Assumiu-se uma perspectiva de reconhecimento do
direito à alteridade, superando os imbróglios integracionistas e assi-
milacionistas até então norteadores da legislação pátria.
Firmada nesta nova visão, a Constituição Federal de 1988 estabele-
ceu, no art. 67, dos seus Atos de Disposições Constitucionais Transi-
tórias, o prazo de cinco anos para a União concluir a demarcação das
terras indígenas no Brasil, a contar da promulgação da Constituição.

150
Contudo, tem-se no Brasil, 43 áreas delimitadas1, 75 declaradas2, 9
homologadas3, 440 regularizadas4, 115 em estudo5 e 6 com portaria de
interdição6 (FUNAI, s/d, online).
Já de acordo com o Sistema de Áreas Protegidas do Instituto So-
cioambiental existem 223 Terras Indígenas aguardando reconheci-
mento no Brasil (ISA, 2018a, online).
De acordo com Instituto Socioambiental, José Sarney homologou
67 Terras Indígenas; Fernando Collor 112; Itamar Franco 16; Fernando
Henrique Cardoso em seu primeiro mandato 114, e em seu segundo
mandato 31; Luiz Inácio Lula da Silva, em seu primeiro mandato, ho-
mologou 66 Terras Indígenas e, em seu segundo mandato 21. Dilma
Rousseff, em seu primeiro mandato, homologou 11, ao passo que, em
seu segundo mandato, homologou 10 (ISA, 2018b, online). Michel Te-
mer, por sua vez, homologou 1 Terra Indígena, a qual teve o seu de-
creto de homologação suspenso pela Justiça (BORGES, 2018, online).
O presidente Jair Bolsonaro, eleito para a legislatura de 2019-2022,
manifestou-se junto à imprensa nacional que não homologará ter-
ras indígenas em sua gestão, a exemplo de sua manifestação de 30
de agosto de 2019, em que reafirmou que não tem interesse em de-
marcar mais terras indígenas no Brasil e que pode até rever as que já
foram demarcadas. Na ocasião, ele mencionou ter 400 pedidos desse
tipo para analisar, mas que, por não ser obrigado a fazê-lo, não te-
ria mais terra indígena no Brasil. Questionou naquele momento se

1.  Terras com estudos aprovados pela FUNAI, publicada no Diário Oficial da União e do Es-
tado, que estão em fase de contraditório administrativo ou em análise pelo Ministério da Jus-
tiça, para decisão sobre a expedição de Portaria Declaratória da posse tradicional indígena.
2.  Terras com expedição da Portaria Declaratória pelo Ministro da Justiça, autorizadas para
demarcação física.
3.  Terras com limites materializados, homologadas por decreto Presidencial.
4.  Terras já homologadas que foram registradas em Cartório em nome da União.
5.  Realização dos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais,
que fundamentam a identificação e a delimitação da terra indígena.
6.  Áreas interditadas, com restrições de uso e ingresso de terceiros, para a proteção de povos
indígenas isolados.

151
não teria muita terra para pouco índio, inclusive (CONGRESSO EM
FOCO, 2019, online).
Além disso, o Governo Federal adotou medidas concretas para dar
início aos seus planos de alteração das políticas públicas no que se re-
fere às demarcações das terras indígenas. A título de exemplo, tem-se
a edição da Medida Provisória 870/2019 que retirou da Fundação Na-
cional do Índio (FUNAI) a competência para a demarcação de terras
indígenas, transferindo-a para o Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA), órgão estatal com objetivos apontados como
antagônicos aos interesses de preservação das terras indígenas.
A ação governamental gerou irresignação dos grupos comprome-
tidos com a causa indígena, de modo que o Partido Socialista Brasi-
leiro (PSB), o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e a Rede Sus-
tentabilidade ajuizaram ações perante o Supremo Tribunal Federal
(respectivamente as Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 6062,
6174 e 6172) para questionar a constitucionalidade da referida medida
provisória. Contudo, à época, os pedidos de imediata suspensão dos
efeitos da medida provisória foram indeferidos, sob o fundamento de
que a reestruturação de órgãos da Presidência da República inseria-se
na competência discricionária do Chefe do Executivo e porque a Me-
dida Provisória estava sob a apreciação do Congresso Nacional.
O Congresso Nacional, em seguida, rejeitou a transferência da
competência em questão, ocasião em que o Presidente da República
insistiu no tema, editando nova Medida Provisória n. 886/2019, que
reeditou o teor da medida provisória anterior, na mesma sessão legis-
lativa, o que é vedado pelo art. 62, §10, da Constituição Federal.
Os referidos partidos políticos, então, utilizando-se das ações in-
terpostas outrora, realizaram aditamento em seus pedidos, sendo
estes acatados pelo Ministro Relator, Luís Roberto Barroso, no dia
26/06/2019, que, considerando o teor do art. 62, §10, CF/1988, dos
precedentes do Supremo Tribunal Federal e da inequívoca mani-
festação do Congresso Nacional sobre a matéria, deferiu a medida

152
cautelar pleiteada para suspender o art. 1º da MP nº 886/2019, na
parte em que altera os artigos 21, inc. XIV e § 2º, e 37, XXI, da Lei nº
13.844/2019.
Concomitantemente, o Presidente da Mesa do Congresso Nacional,
Senador Davi Alcolumbre, emitiu o Ato Declaratório n. 42/2019, con-
siderando não escritas as alterações promovidas pelo art. 1º da MP n.
886, de 2019, negando-lhe tramitação, declarando a perda da eficácia
da referida norma, por ofensa ao art. 62, §10, da Constituição Federal.
Neste contexto, o Presidente da República não teve alternativa a
não ser manter a competência da FUNAI para a demarcação das ter-
ras indígenas.
Diante desta situação, alternativamente à questão da competência,
o Governo Federal já vem trabalhando para mudar o perfil da FUNAI,
por exemplo, com a nomeação, ocorrida em julho de 2020, do dele-
gado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva7 como novo
Presidente da Fundação Nacional do Índio, que outrora já havia se
posicionado como favorável à revisão de demarcações, no relatório fi-
nal da Comissão Parlamentar de Inquérito da FUNAI, criada em 2016
(SHALDERS, 2019, online).
Com efeito, nada impede que o Governo “viabilize” de um jeito
ou de outro a revisão da demarcação das terras indígenas, de modo

7.  De acordo com reportagem veiculada pela BBC News – Brasil, em 25 de julho de 2019,
Xavier, quando delegado, foi investigado em duas apurações internas da Polícia Federal, e
chegou a ser afastado do processo de retirada dos moradores não-índios da Terra Indígena
Marãiwatsébé, na região nordeste do Mato Grosso, por ter seu nome envolvido nos áudios
captados em interceptação telefônica deferida para apurar possível articulação de caráter cri-
minoso por trás das constantes reinvasões. Nos áudios, o nome de Xavier, segundo o Procu-
rador da República, Wilson Rocha Fernandes Assim, era mencionado o tempo inteiro como
se estivesse do lado dos invasores. Consta, ainda, que Xavier é uma pessoa relacionada ao
pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, atual Secretário de política fundiária do Ministério
da Agricultura (MAPA), responsável por assessorar o Presidente da República sobre política
indigenista e que, ao falar sobre o tema, “espuma ódio aos indígenas” (SHALDERS, 2019, on-
line). De acordo com o primeiro presidente da FUNAI na gestão de Jair Bolsonaro, o general
da reserva do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas, Bolsonaro está sendo mal assessora-
do sobre política indigenista.

153
que há potencial risco de fragilização das conquistas já galgadas pelos
povos indígenas, em inobservância à Constituição Federal e aos trata-
dos internacionais que avançam sobre o tema.
Assim, não obstante a luta dos povos indígenas pelo reconheci-
mento administrativo do direito às terras que ocupam tradicional-
mente, o atual contexto político coloca em tensão essas conquistas,
de modo que a compreensão de suas intersubjetividades parece retro-
ceder gradativamente.
Essa situação fez com que se levantasse um questionamento sobre
o comportamento da cultura jurídica diante de um governo que pre-
tende retroceder a conquista pelo reconhecimento de direitos, sobre-
tudo diante do direito dos povos indígenas à demarcação das terras
que tradicionalmente ocupam.

Cultura jurídica
A democracia liberal é a forma de governo mais difundida no pla-
neta. Conduz-se pelo modelo representativo com base no sufrágio
universal, onde a autonomia dos membros eleitos está vinculada ao
Estado de Direito. O seu modelo minimalista é ponto de partida para
os estudiosos considerarem sua eficácia explicativa bastante reduzida.
Nas atuais sociedades complexas, compreendidas como plurais, o real
sentido da democracia foi esvaziado, porque se reduziu ao direito ao
voto (SANTOS, 2010).
Trata-se do colapso gradual de um modelo político de representa-
ção e governança: a democracia liberal que se havia consolidado nos
dois últimos séculos, à custa de lágrimas, suor e sangue, contra os Es-
tados autoritários e o arbítrio institucional. Já faz algum tempo, seja
na Espanha, nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil, na Coreia do
Sul e em múltiplos países, assistimos a amplas mobilizações populares
contra o atual sistema de partidos políticos e democracia parlamentar
sob o lema “Não nos representam!” (CASTELLS, 2018, p. 8).

154
Quando contextualizamos a realidade dos povos indígenas, con-
siderados como minorias invisíveis, porque não tem voz, tampouco
representatividade política na sociedade envolvente, a carência demo-
crática fica ainda mais acentuada.
Isso porque os povos indígenas possuem particularidades culturais
compreensíveis apenas ao olhar interdisciplinar, numa perspectiva
de reconhecer-lhes direito à alteridade. Qualquer tentativa de pensar
os povos indígenas a partir de cosmovisões distintas, homogeneiza-
doras, corresponde à prática etnocêntrica, negadora de pluralidade,
com propósitos integracionistas, ou seja, tem como fim a imersão dos
povos indígenas nos valores ocidentais, compreendendo-os como pes-
soas submetidas a um processo de “civilização”.
Desde a chegada dos portugueses no Brasil até a Constituição de
1967 e a Emenda Constitucional de 1969, as políticas estatais indíge-
nas possuíram um viés integracionista, ou seja, consideravam o índio
como uma categoria transitória, até sua integração na sociedade en-
volvente (CUNHA, 2012).
Basta voltarmos à Assembleia Nacional Constituinte para verifi-
carmos como as discussões sobre o reconhecimento dos direitos dos
povos indígenas sofreu oposição, sobretudo da Comissão responsável
pela Ordem Econômica (KAYSER, 2010).
Apesar de ter sido árduo o diálogo dos constituintes com os mais
diversos grupos e setores da sociedade civil, a Constituição Federal
conseguiu romper com a política integracionista que vinha sendo
praticada desde o Brasil Colônia, reconhecendo, de forma inédita, o
direito à alteridade dos povos indígenas, vale dizer, o direito à diferen-
ça (SOUZA FILHO, 2010).
A demarcação das terras indígenas é um tema polêmico no Bra-
sil, sobretudo por externar de modo muito simbólico a narrativa he-
gemônica apropriada pela sociedade envolvente, que reduz os povos
tradicionais a visões homogeneizadoras e etnocêntricas a respeito do
ser humano (BARBOSA, 2001).

155
Nesse sentido, as conquistas de direitos dos últimos anos vêm sen-
do colocadas em xeque na atual legislatura do Governo Federal, que
aparenta ignorar o alcance dos direitos constitucionais dos povos in-
dígenas, reduzindo-os a uma lógica individualista, integracionista e
desenvolvimentista.
A releitura do direito e do papel da Justiça, nas últimas décadas, é
constatada diariamente com a hipertrofia da atuação do Poder Judi-
ciário frente aos demais poderes. Para Supiot (2005), a dogmática jurí-
dica seria a forma ocidental de vincular os homens, instaurar a justiça
e submetê-los ao império da razão. Em outras palavras, explica que é
a dogmática jurídica que converte cada um de nós em homem jurídi-
co. Seria um modo que o Ocidente encontrou de unir as dimensões
biológicas e simbólicas que constituem o ser humano.
Nesse sentido, o próprio manuseamento das ferramentas jurídi-
cas por indígenas tornou-se questão emergente, a ponto de invocar
forte contrariedade do Ministro do Gabinete de Segurança Institu-
cional (GSI), Augusto Heleno Ribeiro Pereira, general da Reserva do
Exército Brasileiro. Em Twitter de 18/09/2020, o General Heleno
comentou:

General Heleno @gen_heleno, 18 de set de 2020


A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) está por trás do site
http://defundbolsonaro.org, cujos objetivos são publicar fake news con-
tra o Brasil; imputar crimes ambientais ao Presidente da República; e
apoiar campanhas internacionais de boicote a produtos brasileiros.
4:29 PM · 18 de set de 2020·Twitter for iPhone
5,6 mil Retweets, 350 Tweets de comentário, 21 mil curtidas
 
General Heleno @gen_heleno, 18 de set de 2020
Em resposta a @gen_heleno
A administração da organização é de brasileiros, filiados a partidos de
esquerda. A Emergency APIB é presidida pela indígena Sônia Guajajara,

156
militante do PSOL e ligada ao ator Leonardo Di Caprio, crítico ferrenho
do nosso país.
425 Retweets, 2,8 mil Tweets de comentário, 12,7 mil curtidas
 
General Heleno @gen_heleno, 18 de set de 2020
O site da Apib se associa a diversos outros, que tb trabalham 24 horas
por dia para manchar a nossa imagem no exterior, em um crime de le-
sa-pátria.
2,9 mil Retweets, 121 Tweets de comentário, 13,7 mil curtidas

As informações do Ministro logo foram desmentidas por diversos


órgãos de imprensa, que destacaram a trajetória polêmica do Gene-
ral, denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos
por comandar massacre em favela no Haiti (FERNANDES, 2019),
como, ainda, haver contestado abertamente a política indigenista do
Governo Lula, ter feito diversas declarações contra a imprensa, nega-
do que tenha ocorrido ditadura militar no Brasil, senão uma contrar-
revolução, e cogitado a edição de um novo AI-5 (VARGAS, 2019).
Sonia Guajajara e a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Bra-
sil) apresentaram uma queixa-crime por difamação, onde informam
que a APIB existe desde 2005 e representa nacionalmente os povos
indígenas, reunindo as seguintes organizações indígenas regionais:
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas
Gerais e Espírito Santo (APOINME); Coordenação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB); Articulação dos Povos
Indígenas do Sul (ARPINSUL); Articulação dos Povos Indígenas do
Sudeste (ARPIN-SUDESTE); Conselho do Povo Terena; Aty Guasu
Guarani Kaiowá e Comissão Guarani Yvy Rupa (VALENTE, 2020).
Diante, portanto, de uma total desconstrução administrativa nos
temas sociais mais relevantes, estimulando ondas de Fake News e o
retorno a um modelo autoritário de Estado, com marcado cunho
ideológico, os direitos indígenas se encontram sob total ameaça. A

157
questão, colocada no senso comum pelos estrategistas do Governo
Federal, é a tomada de terras para a ampliação da fronteira agríco-
la, desconhecendo povos originários e demais povos e comunidades
tradicionais, desconhecendo, inclusive, a biodiversidade um eventual
direito da Natureza.
Todavia, para fins de emancipação dos povos, a Constituição Fe-
deral, em seu art. 231, reconheceu os diversos pilares de sustentabili-
dade da vida digna dos povos indígenas, sendo a terra um elemento
essencial.
Por isso, faz-se essencial, na atualidade, que a cultura jurídica se
posicione contra a revisão das demarcações de terras indígenas reali-
zadas no Brasil. Partimos do princípio de que nenhuma revisão pode-
rá ser realizada de modo a violar os direitos garantidos na Constitui-
ção Federal.

Perspectivas para a judicialização


No decorrer da história do Brasil, o “direito indígena” surge assumindo
um papel repressivo, como instrumento de domínio político e de con-
trole dos próprios povos indígenas. No seio desse papel ideológico, ele
atua para legitimar a imposição de interesses socioeconômicos e cultu-
rais da sociedade da maioria nacional. Sob este viés, os povos indígenas
são objeto de domínio político e de regulamentação jurídica.
Essa visão, contudo, contrapõe-se aos esforços levantados em
nome da função emancipatória, que conferem aos povos indígenas
um status de sujeito de direitos na ordem jurídica.
Desde a Constituição Federal, aos povos indígenas foram conferi-
dos direitos constitucionais subjetivos, o que indica uma mudança de
consciência jurídica que a sociedade política do Brasil realizou nas úl-
timas décadas. Cresce, por assim dizer, a compreensão de que repre-
sentam um coletivo autônomo, capaz de determinar e codeterminar
seu próprio destino.

158
Inaugurando a proteção à minoria indígena, o art. 231, da CF/88,
reconhece ao índio o seu direito sobre a terra tradicionalmente por
ele ocupada, além de sua organização social, costumes, línguas, cren-
ças e tradições, imputando à União a obrigação de protegê-los e fazer
respeitá-los. Assim o fez por reconhecer que o exercício dos direitos
indígenas está condicionado a um direito pressuposto, qual seja, ao
direito à terra. A demarcação das terras que tradicionalmente ocu-
pam, por sua vez, é o instrumento de concretização desse direito fun-
damental, pois, por meio dele, torna manifestos e publicamente reco-
nhecidos os limites concretos das terras indígenas.
Não foi à toa que a Constituição Federal estabeleceu no art. 67 dos
seus Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, o prazo de cin-
co anos à União para concluir a demarcação das terras indígenas no
Brasil, a contar de sua promulgação. Contudo, essa obrigação não foi
cumprida em sua integralidade, pois ainda há muitas terras indígenas
pendentes de homologação e demarcação.
De modo específico, o atual Presidente da República, encabeçan-
do uma linhagem política conservadora, já manifestou expressamen-
te que não homologará terras indígenas em sua gestão. Somam-se a
sua anunciada inércia, alterações administrativas que desmantelam a
estrutura de investigação, estudo e reconhecimento de áreas a serem
demarcadas pela FUNAI.
Impedido pelo Supremo Tribunal Federal (por violar o art. 62, §10,
CF/1988) de alterar a competência para a demarcação de terras indí-
genas da FUNAI para o MAPA, por meio da Medida Provisória MP
870/2019, o atual Presidente da República nomeou, como assinala-
mos, em julho de 2019, um delegado da Polícia Federal como novo
Presidente da FUNAI, por ser este manifestamente favorável à revisão
de demarcações.
Verifica-se, portanto, que o governo viabilizou, ao seu modo, im-
pedir o exercício dos povos indígenas ao direito à terra. A exemplo
disso tem-se a normativa da FUNAI, que restringiu a sua própria

159
atuação na proteção de áreas indígenas não homologadas, autorizan-
do, via de consequência, a certificação de terras privadas nessas áreas,
conduta que vinha sendo repudiada pela FUNAI desde 2012. Sob a
gestão do atual Presidente do Brasil, foram mais de 100 (cem) fazen-
das certificadas em áreas indígenas.
Todo esse contexto demanda da academia atenção aos movi-
mentos políticos, sociais e da atuação do Poder Judiciário, sobretu-
do porque neste último possivelmente desaguarão os conflitos mais
sensíveis e dele partirá a última palavra sobre o sentido da norma.
Justamente por isso, o movimento de lutas por diversas vezes vem
se socorrendo da judicialização para a conquista de direitos e aten-
tar-se à qualificação dos fatos é uma preocupação necessária no atual
contexto.
Não é por acaso que se tem atualmente perante o STF processos
decisivos para a questão da demarcação de terras indígenas, a exem-
plo do Recurso Extraordinário n. 1017365, no qual foi reconhecida
repercussão geral, e que discute a definição do estatuto jurídico-cons-
titucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação in-
dígena (Tema 1.031). Nele também foi determinada a suspensão de
todas as medidas de reintegração de posse em áreas indígenas, por
reconhecer que essas demandas podem agravar a situação dos indíge-
nas em relação ao risco de contágio da Covid-19. De igual modo, foi
determinada a suspensão dos efeitos do parecer da AGU sobre terras
indígenas até o julgamento final do recurso, sob o fundamento de
que ele aplica automaticamente as 19 condicionantes do caso Rapo-
sa/Serra do Sol, sem levar em consideração todo o contexto em que
ela foi prolatada.
Os Tribunais Superiores, por sua vez, oscilam com relação ao
olhar que deve ser lançado sobre o tema. Sabe-se que o julgamento
do caso Raposa/Serra do Sol foi muito emblemático e lá se registrou,
em parte, uma cosmovisão cuidadosa com relação àqueles povos. To-
davia, não se deve compreender o referido julgado como fixador de

160
paradigmas para as futuras demarcações, não obstante as várias limi-
nares concedidas por alguns ministros para sobrestar os efeitos das
portarias regulamentadoras dessas terras.
Já a Justiça de primeiro e segundo graus vem, com bastante fre-
quência, compreendendo o direito demarcatório de modo não con-
dizente com os dispositivos constitucionais sobre os povos indígenas.
Mormente magistrados e desembargadores pelo Brasil afirmam pre-
valecer as normas civis de propriedade em detrimento do direito à
terra dos povos indígenas, demonstrando total destrato das discus-
sões de envolvem o indigenato nos moldes desenvolvidos pela exege-
se constitucional.
Considera-se aqui que a cultura jurídica tem indicadores e elemen-
tos que são para além do que diz o texto legal. Parte-se da ideia então
de que se as premissas ficarem presas à noção de eficácia do direito,
poderão perder a perspectiva de que o direito tem um movimento
cultural que não vai pari passu sequer ao processo de positivação. Nes-
se contexto, reconhece-se que a positivação não necessariamente ace-
lera a transformação jurídica.
Leva-se também em consideração, nesta perspectiva, que a cultura
jurídica possui atores, podendo estes ser técnicos/especializados, leigos,
e o Estado (aqui considerado como norteador de políticas públicas).
Aqui se considera como atores técnicos/especializados os opera-
dores do direito como um todo, o juiz, o advogado, o doutrinador,
o legislador (reconhecendo-se neste último que a técnica subjaz ao
seu conhecimento de processo legislativo, o que pode ser atribuído,
na verdade, aos seus assessores). Importante ressaltar que se espera
que o conteúdo impresso pelos atores técnicos/especializados em
suas atividades seja predominantemente técnico. Mas, apesar disso,
reconhece-se que eles mantêm uma relação dialética com os demais
atores, leigos ou estadistas.
Considera-se como atores leigos a sociedade civil, os movimentos
sociais, para quem a normatividade deve corresponder a um sentido

161
de justiça e se a lei assim não compreende, pressionam para que se
compreenda; e se já compreende, pressionam para que assim seja
cumprida – veja-se, por exemplo, as ações da APIB anteriormente
descritas.
Por último, considera-se como terceiro ator o Estado, que é téc-
nico e leigo ao mesmo tempo, uma vez que só pode agir na legalida-
de, mas ao mesmo tempo, não agirá, a todo tempo, conscientemen-
te questionando acerca da adequação de determinada norma para
cumprir com os objetivos de sua ação. Nesse sentido, a linguagem
do Estado é o direito tradicionalmente compreendido, ou seja, a le-
galidade, em termos de categoria de análise. Se o Estado assim não o
faz, ele age ilegalmente, em análise técnica, ou abusa do direito, em
análise não necessariamente técnica, podendo ser política.
Sabe-se que a cultura jurídica é analisada com bastante frequência,
especialmente sob o ponto de vista do ator leigo. Mas considera-se
que, sob o ponto de vista do ator técnico, destacam-se elementos ob-
jetivos e, sob o ponto de vista do Estado, destacam-se as melhores
estratégias de gestão.
A proposta então é uma ênfase da atuação do ator técnico/espe-
cializado, inclinando-se para o ponto de vista cultural imanente.
Assumindo a existência de um movimento dialético entre os ato-
res da cultura jurídica, percebe-se uma tensão criativa que vai de um
ponto a outro. E aqui se percebe a importância desse movimento, so-
bretudo quando se fala em sociedades pós-autoritárias, como o Brasil,
uma vez que a criatividade do ator técnico/especializado se tem apre-
sentado como possibilidade de freio para o avanço de um Estado que
age com legalidade abusada.
Entretanto, entende-se que não necessariamente nos momentos de
retrocesso haverá adesão da cultura jurídica, uma vez que se pressu-
põe que ela tem um movimento próprio. Pode-se imaginar, então, que
diante de um governo progressista, ou pelo menos com discurso pro-
gressista, o ator técnico/especializado pode se tornar mais conservador

162
e menos inovador, como se observou quando do julgamento do caso
Raposa Serra do Sol, ocasião em que o Brasil possuía um governo com
discurso progressista. Sobre este caso específico, conclui-se que o ator
técnico/especializado, entre os quais o STF, restringiu os direitos dos po-
vos indígenas para aquém do que literalmente expresso no ordenamen-
to jurídico e desenvolvido pela doutrina especializada.
Com a assunção de um governo com discurso ultraconservador,
pode-se imaginar que o Brasil vive um período de fragilidade e vulne-
rabilidade dos direitos.
Até mesmo porque o Brasil estava anteriormente num contexto
em que era possível criticar o governo porque o direito positivo po-
deria nos levar a uma proteção mais ampla. Atualmente não parece
ser mais essa a realidade. De que modo, então, o direito dos povos
indígenas à terra e ao território poderão ser protegidos fora da lógica
do art. 231 da Constituição Federal?
Antes, a doutrina especializada buscava estender o artigo 231 da
CF/88 e não o restringir. Mas o sinal mudou a partir do julgamento
do caso Raposa/Serra do Sol e agora há grande possibilidade de re-
trocesso na positivação dos direitos. Então, a visão de proteção dos
direitos à terra dos povos indígenas precisa deixar de ser meramente
jurídica e passa a ser necessariamente também sociojurídica.
Assim, pergunta-se: dentro de um contexto de retrocesso de direi-
tos, a cultura jurídica vai ser benéfica ou vai confirmar o retrocesso na
proteção de direitos dos povos indígenas? O sinal dado pelo STF no
caso Raposa Serra do Sol está aquém da compreensão de ampliação
do art. 231 da CF/88. Viu-se uma compreensão, pois, restritiva e sem
criatividade. E no atual contexto? Como se comporta a cultura jurídica
nesta temática quando o sinal do governo é claramente de retração?
A cultura jurídica parece obedecer outra lógica que não se alinha
com o governo. Aqui, parece, portanto, que a cultura jurídica assu-
miria neste contexto a figura de última barreira para retrocessos de
direitos.

163
Conclusões
Com a presente análise, conclui-se que, diante do atual cenário po-
lítico conservador, o Poder Judiciário assume um papel essencial na
luta por reconhecimento e realização de direitos, sobretudo quando
se discute o direito às terras tradicionalmente ocupadas pelos povos
indígenas, uma vez que existe intenção expressa do Governo Federal
de manter uma política que imponha a eles os interesses socioeconô-
micos e culturais da sociedade circundante. As novas manifestações
do Supremo Tribunal Federal fazem recair sobre si uma expectativa
de que institucionalmente o órgão se abra para a defesa dos direitos
territoriais, de modo a atuar de forma mais progressista do que o fize-
ra outrora quando do julgamento da PET 3388/RR, em que foi ques-
tionada a demarcação de terras indígenas Raposa/Serra do Sol, loca-
lizada ao norte de Roraima e a ela imputada inúmeras condicionantes
não condizentes com a proteção do direito em questão.

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cias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/12/15/general-heleno-lider-indige-
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VARGAS, Matheus. “Se ele falou, tem de estudar como vai fazer”, diz Heleno sobre
AI-5: Ministro do GSI afirma que sugestão de Eduardo Bolsonaro teria de ser avalia-
da ‘em um monte de lugares’. In: O Estado de São Paulo, 31 de outubro de 2019.
Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,se-ele-falou-tem-de-
-estudar-como-vai-fazer-diz-heleno-sobre-ai-5,70003071502.

165
6
O ÚLTIMO DOS KARITIANAS
Wilson Madeira Filho
Nathalia Maria Gonzaga de Azevedo Accioly

Introdução
O último dos moicanos (The last of the mohicans: a narrative of 1757) é
uma das obras mais representativas do romantismo americano, de
autoria de James Fenimore Cooper (2018). O romance, lançado em
1826, aborda o ano de 1757 e baseia-se em acontecimentos relativos à
Guerra Franco-Indígena (1754-1763), travada entre os britânicos e os
franceses nas colônias na América do Norte, quando ambos os lados
possuíam povos nativos americanos como aliados. Ao final da trama,
morre o jovem herói indígena, restando apenas seu velho parente,
que narra a história de seu povo em extinção. Com o sucesso da obra,
a expressão “último dos moicanos” passou a simbolizar tanto a ima-
gem do último de uma espécie rara e valiosa como também a resis-
tência comunitarista, por vezes isolada, heróica e resiliente.
No Estado de Rondônia, em razão de suas bacias hidrográficas,
foi projetado um complexo de usinas hidrelétricas para ampliação do
fornecimento de energia para o país, sendo que três dessas usinas já
foram construídas e estão em atividade. O impacto desse modelo de
desenvolvimento na região, carreando levas migratórias para o ex-
-Território, somado às políticas de ampliação da Fronteira Agrícola,
intensificaram as pressões sobre os povos indígenas e comunidades
tradicionais locais, trazendo, como consequência, conflitos socioam-
bientais com a devastação de grandes áreas. Dentre esse complexo

167
de atividades, as obras de implantação das usinas hidrelétricas Santo
Antônio e Jirau, iniciadas em 2008, atingiram o território de diferen-
tes etnias indígenas diretamente, conforme os Relatórios Dhesca Bra-
sil (2011), as quais ainda buscam reparação pelos irreparáveis danos
sofridos.
Esse cenário de atividades, que, de um lado, apresenta, em suces-
sivos governos federais – FHC, Lula, Dilma Rousseff, Bolsonaro – a
constante do desenvolvimentismo e, de outro lado, aportes diferen-
ciados no campo dos direitos sociais – hora em refluxo – levam a in-
tensificação de um quadro de bem-estar social residual (Esping-An-
dersen, 1991), onde populações vulnerabilizadas encontram poucos
canais de negociação para reivindicações de direitos e para sua garan-
tia identitária e territorial.
Dentre essas situações extremas, está a questão da água para os
karitianas, que relatam ter sofrido diretamente os efeitos ambientais
das barragens, pois, após a construção das usinas hidrelétricas, no
ano de 2012, quando estas começaram a funcionar, duas de suas al-
deias sofreram com problemas relativos à água e viram um de seus
rios passar por períodos de seca total, além de perder seus poços
amazônicos onde não conseguem mais buscar água. Em razão da
ausência de estudos relativos às externalidades negativas ocasiona-
das pelas barragens, esses povos permanecem sem qualquer repara-
ção e hoje parte de suas aldeias encontra-se sem água, tornando-se
totalmente dependente de ajuda de projetos sociais e das institui-
ções do Governo que, apesar de terem ciência da situação, não bus-
cam a resolução.
A situação ficou ainda mais complexa com a pandemia provocada
pelo vírus SARS-CoV-2, ou simplesmente COVID-19, que trouxe à
tona a situação de vulnerabilidade em que se encontravam as comu-
nidades indígenas no Brasil, e os problemas que já vinham sendo en-
frentados diante de constantes perdas de direitos sobre suas terras nos
últimos anos.

168
Esse texto, através de uma entrevista com o jovem líder indígena
Cledson Karitiana, presidente da Associação dos Povos Karitianas, e
que permanece na luta pela reparação dos danos causados pelas usi-
nas e no enfrentamento da pandemia, irá retratar esse cenário pela
perspectiva de um povo mais uma vez ameaçado de extinção.

As usinas hidrelétricas do Complexo do Madeira e as popu-


lações indígenas atingidas

Desde a invasão das terras brasileiras o povo indígena sofreu e tam-


bém apresentou resistência diante dos processos de colonização. Fo-
ram séculos de luta até obterem o reconhecimento e autodetermi-
nação do seu modo de vida, cultura, produção e reprodução. Com a
promulgação da constituição de 1988 superou-se o modelo integra-
cionista previsto no Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), passando-se
a compreender a importância da proteção e respeito aos costumes e
culturas indígenas.
Nesse sentido, não cabe mais falar em “atrasos” civilizatórios, mas,
diversamente, da concorrência de povos e de culturas num contexto
constitucional complexo e plural:

Os povos indígenas, desse ponto de vista, eram apenas membros de


uma cultura que se perdera nos meandros do tempo, congelada no
passado por alguma contingência, e que deviam ser conduzidos ao ca-
minho do desenvolvimento pelas sociedades mais avançadas (SOUZA,
2015, p. 10)

A Constituição Federal traz um olhar exclusivo ao indígena, mas o


que por si foi e é insuficiente dentro de uma sociedade colonizadora,
estruturalmente etnofóbica e sob a égide de um modelo oligárquico
que opera junto ao sistema capitalista e desfralda a ideologia desen-
volvimentista.

169
Apesar dos avanços legais em direção ao reconhecimento de sua
diferença cultural, os conflitos entre indígenas e ocupantes de terras
têm-se ampliado nos últimos anos e sido marcados por episódios de
extrema violência. Este cenário tem se agravado diante da morosida-
de na demarcação das terras indígenas, aliado à crescente judicializa-
ção e, em muitos casos, à anulação de atos administrativos de demar-
cação por parte do Poder Judiciário e, por fim, com as propostas de
alteração constitucional em curso no Congresso Nacional as quais, se
implementadas, implicarão na supressão das garantias conquistadas
pelos povos indígenas em 1988.
Vale referir que, nos últimos anos, especialmente após as eleições
de 2014, que colocou uma grande bancada ruralista no Congresso
Nacional e, em 2018, com a eleição de Jair Messias Bolsonaro, a po-
pulação indígena tem sofrido ataques e perdas de direitos que haviam
sido conquistados com muita luta e resistência. Sob uma promessa de
campanha racista, que afirmava que não haveria nenhum centímetro
a mais de terra para os índios, e com aliados na intitulada bancada
ruralista, o governo federal foi eleito e o projeto de política anti-indí-
gena foi implementado.
O início do chamado ciclo das usinas hidrelétricas (UHE) na Ama-
zônia intensifica esse quadro. No Estado de Rondônia inicia-se na dé-
cada de 1980, e, em razão do potencial energético dos rios da região,
estes empreendimentos são logo impulsionados.

A primeira construção hidrelétrica em território rondoniense foi a


UHE Samuel, nos anos 80/90; depois, as UHE’s do Complexo do Ma-
deira - Jirau e Santo Antônio -, nos anos 2000/2010, que representam
duas das obras de um total de quatro previstas para o mencionado
Complexo do Madeira; e, mais recentemente, a UHE Tabajara, já
cogitada nos anos 80 e retomada com nova formatação em 2013 e
que encontra-se em disputa atualmente (ARAÚJO e MORET, 2016,
p.172).

170
A construção destas Usinas ocorreu sob forte disputa, carreando
resistências que afirmavam a necessidade de novos estudos, argumen-
tando a incompletude dos Relatórios de Impacto, ocasionando diver-
sos conflitos socioambientais.

Da idealização do projeto de construção do Complexo do Rio Madeira,


composto pelas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, há quase duas
décadas, até a sua apresentação na Comissão de Minas e Energia da Câ-
mara dos Deputados, em outubro de 2003, houve muita movimentação
política. No entanto, foi a partir da liberação, sob forte pressão política,
da Licença Prévia (LP) em julho de 2007, pelo IBAMA contrariando a po-
sição de seus técnicos (IBAMA, 2007g), é que se mostraram mais visíveis
os conflitos inerentes às obras destes empreendimentos elencados pelo
governo 2002-2010 como prioritários (ZIMMERLI, 2012, p. 16).

Todavia, é importante assinalar que esse conjunto de questões


se viu integrado ao Sistema Nacional de Recursos Hídricos e, con-
sequentemente, à Política Estadual de Recursos Hídricos do Estado
de Rondônia, conforme informa a Consultoria RHA (RONDÔNIA,
2019) em seu Relatório de apresentação de um Plano Estadual:

A Lei Federal nº 9.433, de 08 de janeiro de 1997, institui a Política Na-


cional de Recursos Hídricos (PNRH) e cria o Sistema Nacional de Ge-
renciamento de Recursos Hídricos. Ela apresenta, como um dos instru-
mentos da PNRH, os Planos de Recursos Hídricos, os quais são planos
diretores que visam fundamentar e orientar a implantação da Política
Nacional e o gerenciamento dos Recursos Hídricos, no âmbito da Ba-
cia Hidrográfica, do Estado e do País. A Lei Complementar Estadual nº
255, de 25 de janeiro de 2002, regulamentada pelo Decreto Estadual nº
10.114 de 20 de setembro de 2002, institui a Política Estadual de Recur-
sos Hídricos do Estado de Rondônia e define, para a gestão dos recur-
sos hídricos estaduais, os seguintes instrumentos: i) o Plano Estadual de

171
Recursos Hídricos – PERH/RO; ii) os Planos de Bacias Hidrográficas; iii)
a outorga de direito de uso das águas; iv) a cobrança pela utilização das
águas; v) o enquadramento dos corpos hídricos em classes, segundo os
seus usos preponderantes; e vi) o Sistema de Informações sobre Recur-
sos Hídricos.

Entretanto, em 2005, quando foi realizado o estudo para com-


por o EIA-RIMA dos empreendimentos do Rio Madeira para
FURNAS centrais elétricas, ainda que os estudos preliminares não
indicassem qualquer terra indígena passível de ser diretamente afe-
tada, foi constatado que haveria interferência nas terras indígenas
Karitiana, Karipuna, Lage, Ribeirão e Uru-Eu-Wauwau (ZIMMER-
LI, 2012).
Em 2013, quando as usinas já se encontravam construídas e fun-
cionando parcialmente, foi assinado um programa de proteção das
terras indígenas Karitianas e Karipunas para as áreas de influência das
UHE do complexo do Madeira.
O projeto realizado com apoio e sugestões da Fundação Nacional
do Índio (FUNAI), tendo como objetivo a promoção da sustentabi-
lidade para prevenir, corrigir, mitigar e/ou compensar os impactos
provocados pelas Usinas do Rio Madeira, como também garantir a
soberania alimentar e nutricional destes povos.
No entanto, apesar da intenção proferida, no projeto constava
meramente a promoção de cursos de capacitação e incentivo de pro-
dução de agricultura e agropecuária para estas diferentes terras indí-
genas que sofriam de formas diferentes o impacto das Usinas, não ha-
vendo qualquer especificidade para tratar dos problemas reais destas
etnias.
Todavia, nem mesmo este projeto foi realizado. Então, a partir das
lideranças karitianas, o conflito existente foi judicializado, através do
processo de número 1001655-48.2017.4.01.4100 em trâmite na 5ª Vara
Federal de Rondônia.

172
No caso dos karitianas, em entrevista realizada com a liderança
Cledson Karitiana, os relatos são de que hoje a comunidade vive em
total dependência com a cidade, contando com a ajuda de projetos
sociais e apoio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) e
da FUNAI.
Uma das causas de grande preocupação da liderança é quanto à
soberania da água em parte de seus territórios1, que após a cons-
trução e início das atividades das UHE relatam que um dos rios de
suas terras passa por períodos de seca total, e seus poços amazônicos
viraram lama.
É evidente que os resultados e transformações ambientais e sociais
em razão da construção das UHE de Rondônia permanecem em le-
vantamento, principalmente em razão da falta de participação efetiva
inicialmente nos estudos sobre os impactos sofridos pelas comunida-
des que vieram a ser atingidas por estas barragens.

Enfrentamento ao coronavírus em terras indígenas no Brasil


O primeiro caso confirmado de contaminação por Covid-19 entre indí-
genas brasileiros foi de uma jovem de 20 anos do povo kokama, no dia
25 de março de 2020, no município amazonense de Santo Antônio do
Içá (COMITÊ NACIONAL DE VIDA E MEMÓRIA INDÍGENA, 2020).
O contágio foi feito por um médico vindo de São Paulo a servi-
ço da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), que estava in-
fectado.
E é neste cenário, justamente, que demanda pela resistência destes
povos, quando o mundo atravessa uma pandemia, que essa situação
de liminaridade cívica torna-se ainda mais grave, pois exige o distan-
ciamento social para frear a contaminação e controlar a doença.

1.  Dados históricos apontam os rios Jamari, Candeias e Jacy-Paraná e seus afluentes como o
território de ocupação tradicional dos Karitiana (MARETTO, 2005, p. 55).

173
Com o avanço da doença e principalmente com a sua interioriza-
ção criou-se uma preocupação extra, sobre como este vírus atingiria
as comunidades indígenas. Pudemos observar, durante a pandemia
de COVID-19, que o vírus teve um índice de mortalidade mais alto
entre as pessoas acima de 60 anos, o que provocou mais um alerta às
sociedades indígenas, dada a grande relevância de seus idosos para
toda comunidade. São estes justamente os principais representantes
das aldeias e verdadeiros guardiões de seus saberes. Os responsáveis
por sua memória através da transmissão dos conhecimentos que fo-
ram perpassados por seus ancestrais para as próximas gerações, como
forma de garantir a continuidade e sobrevivência de suas etnias.
Considerando que a maioria das etnias indígenas possuía tradição
da transmissão do saber oral, acumulado e guardado por essas figuras
mais velhas que são como receptáculos dos ecos do mundo, obser-
va-se que, por consequência, possuem rituais fúnebres e períodos de
luto muito distintos daquelas da sociedade média urbana. Cada mor-
te representa a passagem de saberes milenares, a interagir nas forças
elementares da natureza circundante.
Em Rondônia, os indígenas da etnia karitiana perderam o seu líder
Gumercindo Karitiana, de 66 anos, e a sua mãe, a anciã Enedina Kari-
tiana, de 86 anos. Para além do sentimento de perda de pessoas mui-
to queridas pelo povo karitiana, suas mortes foram muito sentidas,
especialmente em razão das dificuldades enfrentadas para conseguir
enterrar os seus parentes em sua terra.
De acordo com as recomendações do Ministério da Saúde não
seria permitido o retorno dos corpos à aldeia, e isto ocasionou um
conflito entre os karitianas, os quais tiveram de acionar o Ministério
Público Federal (MPF) para encontrar soluções para realizar os seus
rituais com o seu parente morto e assim não ferir a história e a me-
mória do seu povo.
O Amazonas foi o primeiro estado federativo a ter a confirmação de
indígenas contaminados. Importar ressaltar o fato da Secretaria Especial

174
de Saúde Indígena (SESAI) ter sido um dos principais vetores de expan-
são da doença dentro dos territórios indígenas, alcançando a região
com maior número de povos isolados do mundo: o Vale do Javari.
Além disso, os dados apresentados pela SESAI são questionados
pelas lideranças indígenas, especialmente pela Associação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB) que decidiu contabilizar os casos de con-
tágio e morte independentemente da secretaria. A diferença entre as
duas contagens ocorre em razão da SESAI não registrar e não prestar
atendimento aos indígenas que vivem em territórios tradicionais e
em áreas urbanas e rurais.

Casa karitiana na aldeia Kyõwã.


Fonte: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003. Disponível em
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Karitiana

Em abril de 2020, quando a pandemia já havia chegado nos povos in-


dígenas, a FUNAI publicou a Instrução Normativa nº9, de 16 de abril de
2020, que disciplina o requerimento, análise e emissão da Declaração
de Reconhecimento de Limites em relação a imóveis privados.
A instrução normativa foi severamente criticada, pois permite a
regularização de terras por grileiros, posseiros e invasores em áreas
de terras indígenas, trazendo a intensificação de conflitos fundiários
e legitimando a ação dos inimigos dos povos que vivem na floresta.

175
Diante disto, lideranças políticas indígenas e indigenistas mobi-
lizaram-se junto ao poder judiciário e ao Congresso Nacional para
tentar diminuir os impactos dos projetos de governo (por ações e
negligência) nos ataques às comunidades indígenas. Foi apresenta-
do o projeto de Lei nº 1.142, de 2020, que dispõe sobre medidas de
proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da
Covid-19 nos territórios indígenas, criando um Plano Emergencial
para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas, o qual
foi aprovado no Congresso Nacional e no Senado Federal, mas san-
cionado com 16 vetos. Dentre estes, foram vetadas as partes que
previam o acesso das aldeias à água potável, materiais de higiene,
leitos hospitalares e respiradores mecânicos. (GOVERNO FEDE-
RAL, 2020)
Além disso, a APIB propôs a Ação de Descumprimento de Precei-
to Fundamental (ADPF) 709, que tem como objeto as falhas e omis-
sões do Poder Público no combate à pandemia da COVID-19 entre os
Povos Indígenas, com alto risco de contágio e mesmo de extermínio
de etnias, a qual foi recepcionada em parte e garantiu a articulação e
participação dos indígenas nos processos relativos ao enfrentamento
ao COVID-19 entre os seus povos.
Até 09 de outubro de 2020 a SESAI havia contabilizado 456 óbitos
por corona vírus em indígenas. No entanto, de acordo com balanço
da APIB, em 02 de outubro o número real de indígenas que faleceram
em decorrência da Covid-19 foi de 828, além dos 33.412 que teriam
sido infectados, tendo atingindo diretamente 158 povos.
O Censo IBGE 2010 revelou que das 896 mil pessoas que se de-
claravam ou se consideravam indígenas, 572 mil, ou 63,8%, viviam
na área rural e 517 mil, ou 57,7%, moravam em Terras Indígenas ofi-
cialmente reconhecidas. Além disso, do total de indígenas brasileiros
36,2% residem em área urbana.
Neste sentido, a decisão da SESAI de contabilizar o contágio e
mortes por Covid-19 somente de indígenas aldeados invisibiliza as

176
mortes e contaminação de mais de 324 mil indígenas que se encon-
tram em perímetro urbano.
Após a interiorização do vírus, e consequente contaminação de
populações indígenas, surgiram inúmeros problemas para implemen-
tação de medidas e políticas públicas de ajuda e apoio a essas comu-
nidades.
Faltam profissionais de saúde em locais mais distantes, onde ficam
as terras indígenas, uma situação que havia sido controlada com o
Programa Mais Médicos, com a contratação de médicos, brasileiros
e cubanos, para atender a essas populações em vulnerabilidade e que
viviam em locais de difícil acesso, mas o programa foi encerrado logo
no início do mandato do Presidente Bolsonaro.
Neste momento de pandemia, todo o mínimo existencial que vem
sendo alcançado para as populações indígena o tem sido através de
luta e resistência, e apesar de todas as ações anti-indígenas do Gover-
no Federal.

Os Karitianas e suas águas


O povo Karitiana faz parte de uma das etnias que se encontra em
grande proximidade com a capital de Porto Velho - RO, sendo indíge-
nas que possuem grande convivência com a cidade. De acordo com
o entrevistado Cledson Karitiana, os karitianas possuem hoje seis al-
deias, cinco no sentido Jaci-Paraná (distrito de Porto Velho), no perí-
metro da cidade de Porto Velho, e uma no Município de Candeias do
Jamarí, no Rio Candeias. Dentre estas, quatro já possuem a demarca-
ção da terra e duas ainda não foram demarcadas, mas estão lutando
para conseguir garantir a demarcação.

De acordo com suas narrativas históricas, os Karitiana experimentaram


um brutal declínio demográfico após o contato com os brancos; Darcy
Ribeiro considerou-os extintos em 1957. Quando então iniciaram um

177
processo de maior isolamento e de reprodução entre medidas extremas
para evitar sua completa extinção (VANDER VELDEN e STORTO, 2005).

A primeira referência a esse grupo data de 1909, pelo capitão Ma-


noel Teophilo da Costa Pinheiro, um dos membros da Comissão Ron-
don. Em 1910 o próprio Marechal Rondon menciona os Karitiana, en-
tão nas imediações do médio rio Jaci-Paraná (NIMUENDAJÚ, 2017).
Entrevistamos, em 22 de setembro de 2020, em Porto Velho, Cled-
son Karitiana, presidente da Associação do Povo Indígena Karitiana
Akot Pytim Adnipa, o qual, com 26 anos, tornou-se uma liderança
para o seu povo. Apesar de sua pouca idade, demonstra ter chegado
a esta posição por ser parte importante na luta de seu povo. De acor-
do com Cledson, a população dos Karitiana aumentou, e já são mais
de 400 indígenas que vivem nas suas diferentes aldeias, tornando-se
a maior das três etnias da capital Porto Velho. Esse aumento demo-
gráfico, apesar de comemorado em razão de sua quase extinção, traz
grandes preocupações a este povo. Cledson Karitiana afirma que a
aldeia não consegue mais a independência da cidade, pois hoje a agri-
cultura, a pesca e a caça são insuficientes para todos em razão dos
avanços da devastação em suas terras.

Hoje nós temos em torno de 400 karitianas e aumentou muito, uma época nós
quase fomos extintos de vez. Nós plantamos banana, macaxeira, alguns com
arroz, mas mais pra consumo mesmo. Nós estamos precisando hoje conversar
sobre geração de renda pra aldeia, por que é algo que a gente precisa. Na época a
gente não tinha essa preocupação de gerar renda na aldeia, mas depois do tem-
po, com passar do tempo, aí a população vai aumentando, as crianças crescendo.
Hoje nós temos 70 por cento de jovens que casaram mais cedo na aldeia, e esses
jovens não tem renda e já tem filhos [...] Hoje as caças, o peixe, a gente tem esse
impacto ambiental da Santo Antônio Energia. Não tem mais como era antes,
o rio baixou, secou, não chega mais peixe também, as caças estão mais longe,
entendeu? (CLEDSON, 2020)

178
Para os karitianas, a água é o insumo de maior importância para
sobrevivência, pois, além de meio navegável e de estuário de peixes,
também irriga a terra, guarda as florestas úmidas e torna-se direta-
mente responsável pela garantia de alimentos. Esse equilíbrio se vê
ameaçado, conforme os parâmetros de Segurança Alimentar e Nu-
tricional.

O conceito de Soberania Alimentar remete, além disso, a um conjunto


mais amplo de relações: ao direito dos povos de definir sua política agrá-
ria e alimentar, garantindo o abastecimento de suas populações, a Sobe-
rania Alimentar, agroecologia e mercados locais, preservação do meio
ambiente e a proteção de sua produção frente à concorrência desleal de
outros países.
Nesta perspectiva, a noção de Soberania Alimentar incorpora várias di-
mensões – econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais – relacio-
nadas ao direito de acesso ao alimento; à produção e oferta de produtos
alimentares; à qualidade sanitária e nutricional dos alimentos; à conser-
vação e controle da base genética do sistema alimentar (MEIRELLES,
2004, P. 11).

Neste sentido, a discussão em específico da soberania da água não


incide apenas sobre a disponibilidade universal dos recursos hídricos,
mas quanto à discussão da essencialidade da água acessível e potável
enquanto direito dos povos como forma de garantia à sua autodeter-
minação e independência.
As usinas hidrelétricas provocam mudanças físicas nos rios que
atingem, e na água disponível para as sociedades que vivem dos rios.
Em Rondônia, um dos medos trazidos em relatos anteriores pela co-
munidade karitiana era sobre a possibilidade do Igarapé Sapoti sofrer
com os alagamentos e ficar constantemente cheio, já que este sofre
influência direta das cheias do Rio Madeira, o que poderia provocar
um surto incessante de malária.

179
Se a barragem for utilizada para abastecimento, este volume de água
não retorna mais naquele trecho do rio ou, às vezes retorna na forma de
efluente tratado ou não, apresentando uma qualidade pior do que a que
foi retirada do sistema natural e em menor quantidade, devido a perdas
no sistema de distribuição de água e outros, o que também afeta a biota
aquática do rio (LIMA, 2014, p. 37).

Cledson Kitana Karitiana é formado em Engenharia de Pesca pela


Universidade Federal de Rondônia. Ele observa que após as constru-
ções das UHE ocorreram mudanças nos cursos dos rios e que duas
aldeias em especial foram prejudicadas em relação ao acesso à água
potável, como tinham antes.

Depois que fizeram a usina né, pessoal da usina foi lá em 2011. Aí, depois disso,
começou a ter esses problemas pra nós. [...] Na época o rio nunca chegou a secar
assim do jeito que está hoje. Hoje ele começa a secar e não dá pra acreditar que está
acontecendo isso, é seco mesmo, até ficar parado o rio, entendeu? Aí, no mês de
inverno, começa a encher de novo, no tempo da chuva. No tempo de seco, ele chega
a secar, o rio não dá nem pra beber água. O rio fica bem sujo, isso como eu te falei,
depois das usinas. [...] O rio Caracol é um rio grande, um braço do Caracol que en-
tre na aldeia, é esse braço que seca. E o poço amazônico também secou, é só lama,
não tira nada. A gente depende da água do vizinho. Na aldeia central secou, mas
temos dois poços artesianos (CLEDSON KARITIANA, 2020).

Apesar desta preocupante questão, não foram realizados quais-


quer estudos, prévios ou posteriores, direcionados aos rios e poços
desta etnia que comprovem que as mudanças se relacionam com a
construção das usinas, e essa falta de diagnóstico prejudica a etnia em
buscar os responsáveis pela reparação dos danos.

Não nunca foi feito [estudo]. A gente fala que é por causa da usina. Depois que
fizeram a usina né, o pessoal da usina foi lá em 2011. Aí, depois disso, começou

180
a ter esses problemas pra nós. Eles [Santo Antônio Energia] têm projetos de com-
pensação. É mais pra manter a comunidade na aldeia, mas não tem pra água.
Lá hoje tem poço artesiano, e aí fazemos distribuição de casa em casa. E atende
toda comunidade, mas somente na aldeia central, nas outras não tem. Lá no
rio Candeias que passa lá naquela aldeia, nas outras aldeias temos outros rios.
O rio Caracol, da aldeia Caracol, que chega a secar, seca mesmo, não tem rio. E
lá nos temos só poço amazônico que seca também. Ai nós que temos que man-
dar água pra eles, esse mês eu comprei 14 galões [de água mineral] só pra eles
beberem, 2 galões pra cada família, ai tem um poço amazônico do vizinho, que
ainda funciona, e ai ele é gente boa, e libera pra eles essa água, pra pelo menos
eles beberem. Agora a CASAI [Casa de Saúde Indígena] e a DSEI estão man-
dando caminhão pra lá, pra eles lavarem roupa, tomarem banho (CLEDSON
KARITIANA, 2020)

Parte da população indígena karitiana se tornou totalmente de-


pendente de recursos externos para garantir o fornecimento de água
limpa e potável para a sobrevivência e continuidade da permanência
em suas terras.
Não tendo água sequer para beber, os indígenas também ficam
inteiramente dependentes da doação e fornecimento de alimentos,
uma vez que na época da seca, não há como plantar, pescar e a caça
fica muito mais distante, uma vez que a água também atrai animais
para redondeza.

Depois que criaram a usina, o rio, se tu for hoje lá, Nathalia, a água to-
talmente secou, não era assim. Nunca tinha chegado a secar assim, então
os peixes, eu pescava do lado da minha casa, o rio passa bem assim perto
da nossa casa, hoje não. Hoje nós temos que ir longe, pra tentar buscar
peixes, e não era assim, mas depois que criaram as usinas começaram es-
sas dificuldades, começou a secar os rios, os rios hoje estão praticamente
secos. Esse ano praticamente a gente não trabalhou com roça. Tem alguns
profissionais indígenas que trabalham e recebem salário, aí eles compram

181
a comida e depois levam pra aldeia, e tem o apoio de cesta básica que re-
cebemos. Aí, por isso, não falta comida na aldeia (CLEDSON KARITIA-
NA, 2020).

Dentro deste cenário, em que a aldeia não possui mais condições


de manter-se, muitas preocupações surgem, dentre elas o perigo re-
presentado por invasores que rodeiam a Terra Indígena e oferecem
dinheiro para explorar aquela área.

Nós temos medo deles [invasores] entrarem lá e acabarem com a nossa floresta.
Por isso que a gente fala: esse ano, eu vou fazer oficio ao IBAMA [Instituto Bra-
sileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], FUNAI, ICMBio
[Instituto Chico Mendes de Biodiversidade], pra que no ano que vem fortaleça
a fiscalização e a proteção, que eles tem que fazer. Porque se não tiver fiscali-
zação, os caras entram mesmo, e aproveita dos problemas do indígena. Porque
assim os madeireiros entram na nossa terra, primeiro ele consulta os líderes,
por exemplo, eles querem aproveitar madeira ilegal. O índio, hoje, ele conhece o
que é dinheiro, entendeu? E às vezes as lideranças aceitam, e aí aproveitam essa
questão, e quando entram não querem mais sair. E aí não estão nem aí mais, já
entraram. Hoje eu falo pra nós, hoje a comunidade está passando por dificulda-
des de gerar renda, como eu já disse pra você, então nós temos que ter projetos
de sustentabilidade dentro da aldeia, pra que possa gerar renda. A gente está
cobrando a FUNAI, o Governo do Estado, o município, pra que a gente possa
gerar renda dentro da aldeia, fora não mexer a madeira, não mexer em nada.
Tem várias formas de gerar renda ali na aldeia, com agricultura familiar. Não
é só tirar madeira, só tirar minério, nós temos outras maneiras, e nós estamos
levantando essas pautas. Por que o pessoal fala: ah, vocês estão mexendo com
madeira, vocês estão mexendo com minério. Mas não tem jeito, não tem projeto,
a gente não pode ficar parado, esperando o apoio chegar, e não chega. Então, por
exemplo, o pessoal precisa comer, então precisa disso, e pra não acontecer mais
isso, a entrada do madeireiro, a entrada do garimpeiro e em geral, a gente preci-
sa ter projetos (CLEDSON KARITIANA, 2020).

182
Na fala do indígena soam traços da admoestação civilizatória/co-
lonizatória social-democrática, com expressões como “gerar renda”,
“ter projetos” etc. – introjetados enquanto identificação semiológi-
ca de parcerias instrumentais a enfrentar outros discursos “brancos”,
imperativistas e autoritários, de cerceamento, adulação e invasão. É
muito evidente a preocupação da liderança, a sua comunidade perdeu
a soberania da água e, por conseguinte, a soberania alimentar, e vive
em total dependência da cidade. A impossibilidade de conseguir, em
suas palavras, gerar renda para a comunidade os deixa vulneráveis aos
possíveis invasores, os quais, se aproveitando das suas necessidades,
oferecem dinheiro para explorar suas terras.
O medo é também de que estes invasores que ali rodeiam, após se
instalarem, não queiram mais sair da terra, tornando sem limites a ex-
ploração dos recursos da floresta, tornando iminente a ocorrência de
um conflito com os indígenas quando estes decidirem cessar o acesso.
É perceptível o sentimento de abandono relativo aos órgãos res-
ponsáveis que deveriam agir para garantir o bem-estar deste povo.
Não há como requerer a proteção das terras indígenas, sendo que se-
quer os pedidos urgentes relativos à sua subsistência são atendidos.

Nós estamos cobrando a DSEI. Por que isso é responsabilidade deles, da saúde
indígena, cobramos tanto aqui, quanto de Brasília. Os geólogos já vieram aqui
ver a situação real, por que precisa hoje, pra não acontecer mais isso. Porque
o rio seca e não tem como tomar água, e aí, por isso, nós estamos cobrando a
DSEI com projetos de fazer os poços pra nós. Se não tiver água, não tem nada.
[...] Nossa maior dificuldade que temos hoje é isso, estamos lutando para que a
SESAI faça o poço artesiano pra nós na aldeia Caracol. Nós temos poço ama-
zônico na aldeia Caracol, Juari e Rio Candeias, e no tempo de verão esses poços
amazônicos secam, e hoje então é necessário o poço artesiano. Na nossa aldeia
central nós temos até um pouco de água, mas não era como aquele rio que a
gente costumava ter, só no tempo de inverno que tudo volta (CLEDSON KARI-
TIANA, 2020).

183
O mundo se transformou num pires, que a liderança indígena car-
rega solicitando aos poderes instituídos o beneplácito caridoso de de-
positar moedas para a sobrevivência de seu povo marginalizado.

Quando o desenvolvimentismo chegou


Existe um discurso presente dentro de quase todas as fases da for-
mação histórica do Estado de Rondônia, que apresenta o território
estadual com grandes potenciais de desenvolvimento. Na verdade,
o que sempre ocorreu foram ciclos exploratórios, passando-se pela
borracha desde o século XIX, e ao longo do século XX pelas explora-
ções de minério, madeira, gado, e da capacidade hídrica energética de
seus rios.

A exploração da região foi resultado dos avanços iniciais do capitalismo,


que precisava avançar fronteiras europeias, em uma sociedade em tran-
sição pós-Idade Média. Aqueles que chegaram ao que se convencionou
como América, em busca de especiarias das “Índias”, encontraram ma-
deiras, drogas do sertão, seringa e exploração do minério (SILVA e AMA-
RAL, 2020, p. 31).

Cledson Karitiana nos relata que seu pai era professor, e que ele
próprio começou a estudar na aldeia, mas, na sua época, só tinha até
a 4ª série (5º ano) do ensino fundamental, e a fez duas vezes para não
parar de estudar, por isto veio morar na cidade de Porto Velho, onde
continuou seus estudos até o ensino médio e mudou-se para o inte-
rior para cursar Engenharia de Pesca na Universidade Federal de Ron-
dônia, no campus de Presidente Médici.
Cledson Karitiana afirma que dentro da Universidade, enquanto
acadêmico, conseguiu olhar criticamente para as suas lideranças, pois
visualizava que elas estavam se afastando e não buscando o interes-
se da comunidade e, diante disto, resolveu que iria candidatar-se à

184
presidência da Associação. Foi necessário recorrer a advogados para
dialogar com as lideranças, e após muita resistência dos que estavam
nos cargos e eram mais velhos conseguiu se eleger com apoio da co-
munidade karitiana.

O território karitiana em Rondônia


Fonte: Associação do Povo Karitiana (APK). Disponível em https://amazonia.org.
br/2020/06/coronavirus-memoria-acesa-nas-perdas-de-mae-e-filho-karitiana-em-rondonia/

Diante das diversas violências sofridas em razão do empreendi-


mento hidrelétrico que os atingiu, a Associação dos povos karitianas
propôs a ação de nº1001655-48.2017.401.4100, na Justiça Federal, para
que as atrocidades que os acometeram fossem reparadas na única for-
ma possível, financeiramente.
Cledson Karitiana afirma que os projetos de melhorias e de repa-
ração dos danos causados iriam começar no ano de 2020, mas que,
em razão da pandemia, tudo teve que ser postergado, estando assim a
comunidade em vulnerabilidade. Todavia, essa luta já tem quase uma
década e até hoje nada foi pago.

185
Em 2018 quando nós assumimos a presidência, o nosso foco foi isso, que a [usina
hidrelétrica] Santo Antônio e a FUNAI executem essa compensação. Aí a gente
tentou já com o MPF, e estava tudo paralisado. Se tivesse uma liderança bus-
cando, tudo já teria acontecido, não foi fácil. A gente buscou diálogo com MPF,
mandaram antropólogo, tudo, a gente tinha que entrar em todas aldeias pra
entrar com essa ação. Ai a desculpa era a FUNAI, não quer assinar, não estava
autorizando. Aí chegava em Santo Antônio, eles não autorizavam também. Aí
conversamos entre nós, aí fomos ao MPF e quem ficou à frente primeiro foi o Dr.
Daniel Lobo, e depois a Dra. Gisele, e essa Dra. é muito atuante e ela ajudou
muito nosso povo, e ela ajuizou. Fizemos ano passado a audiência na aldeia, e
estava tudo certo pra este ano. Nós íamos receber, eram três etapas, e a primeira
nem começou, então nós temos muito recurso pra receber ainda, não só os kari-
tianas, mas também os caripunas [...] Era pra ser executado em maio, mas aí
veio essa pandemia e estragou tudo. Aí, agora, vamos ver ano que vem. Esse ano
praticamente acabou já.

A água é uma grande preocupação para a liderança karitiana, para


quem sem comida até se vive, “mas sem água”? Vale dizer, a maior
luta enfrentada pelos karitiana no momento é garantir o abasteci-
mento de água em suas aldeias e, em consequência, a soberania de
seu povo.
De forma oposta, o ciclo das usinas hidrelétricas dá continuidade a
esta exploração do Norte, onde o avanço do capitalismo mercadoriza
os cursos da água, transformando-os em energia, e desconsiderando
a população que depende destes rios.
De acordo com o EIA/RIMA, a usina hidrelétrica Santo Antônio
atingiria 1.645 pessoas. Todavia, segundo o Movimento dos Atingidos
por Barragens (MAB) os dados ultrapassavam as 10 mil pessoas.

Os grandes projetos, e particularmente os hidrelétricos, são empreen-


dimentos capazes de modificar paisagens, de provocar o deslocamen-
to compulsório de milhares de pessoas, rompendo laços entre elas e o

186
espaço, enfim, alterando seus modos de vida. Tudo isto acontece num
curto período de tempo, ocorrendo de forma dramática, sobretudo para
os que são obrigados a sair de suas terras, deixar suas casas, abandonar
seu passado, sem muitas vezes compreender o significado de tal mudan-
ça e ainda sentindo-se, como um entrave ao “progresso” (MELO e PAU-
LA, 2008, p. 4).

Em 2005 foi feito um estudo socioeconômico (LEÃO, AZA-


NHA e MARETTO, 2005) sobre as terras e povos indígenas situa-
dos na área de influência dos empreendimentos do rio Madeira
(UHE Jirau e Santo Antônio) onde foi verificada uma grande vul-
nerabilidade dessas populações e de suas terras frente ao aprovei-
tamento energético do Rio Madeira e aos novos empreendimentos
a serem viabilizados.
A despeito de todo alerta sobre as terras indígenas que seriam atin-
gidas, a inclusão destes atores nos processos de debate e disputa sobre
a realização das usinas foi prejudicada. Após a apresentação do pro-
grama de proteção das terras indígenas karitianas e karipunas, com a
promessa de realização de cursos e projetos para o fortalecimento da
comunidade e geração de renda, os indígenas foram seduzidos pelo
discurso e resolveram então ceder para aprovação das usinas.

Eu não acompanhei, a gente não tinha aceitado a construção das usinas. E aí eu


não sei como foi eles chamaram só as lideranças e convenceram as lideranças. Pri-
meiro foi feito uma assembleia né, sempre a gente reunia com a comunidade, e a
comunidade falava que não, que não queria, e não aceitava. Aí jogaram essa ideia
de projeto, que ia ter benefício pra comunidade e não sei o quê. E aí a comunidade
achou que ia ser bom, e voltou atrás e aceitou a proposta [...] Até hoje não foi entre-
gue esse projeto que eles prometeram (CLEDSON KARITIANA, 2020).

As promessas de realização de melhorias e projetos de geração de


renda para uma comunidade que já se encontrava em vulnerabilidade,

187
prejudicou a possibilidade de resistência. Convencidos do progresso,
foram ludibriados, e a resistência hoje é institucionalizada, interme-
diada pelos órgãos independentes como o Ministério Público, den-
tro dos meios jurídicos na ação de reparação de danos causados a
este povo.
Cledson Karitiana afirma ainda que, diante das possibilidades apre-
sentadas, quando ele assumiu a presidência da Associação, resolveu
buscar a responsabilização daqueles que haviam provocado danos à
comunidade e ao igarapé Sapoti. Depois de muitas tentativas de con-
ciliação, juntamente com Ministério Público Federal, os indígenas
formalizaram processo judicial em face da FUNAI e da Santo Antônio
Energia.
Dentre os danos causados pelas usinas a maior preocupação per-
manece sendo a disponibilidade da água dentro das aldeias, com rios
e poços que secam, tornando-se preocupante a qualidade de vida e a
saúde dos indígenas.
Nesse sentido, vale a pena referir o trabalho de Howard e Bartram
(2003), realizado para Organização Mundial da Saúde, apontando que
o nível de acessibilidade à água é mensurado relacionando a distância
e tempo de alcance da água para a população.

The basic need for water includes water used for personal hygiene, but
defining a minimum has limited significance as the volume of water
used by households depends on accessibility as determined primarily
by distance and time, but also including reliability and potentially cost.
(BARTRAM e HOWARD, 2003, p. 3)

Além disso, em quadro explicativo, relacionam a acessibilidade à


água ao nível de preocupação com a saúde, onde considera-se que
quem se encontra há 1km ou a 30 minutos de acesso da fonte mais
próxima de água potável possui elevado risco de vida.

188
Fonte: Howard e Bartram (2003, p. 3)

No quadro, a consideração do acesso à água é tão somente sobre a


água para consumo, já que a água para higiene só pode ser considera-
da acessível quando diretamente da fonte.
Valendo-nos desses parâmetros, apenas enquanto exercício exem-
plificativo, podemos constatar que para os karitianas, nas épocas de
seca, nos meses de junho a novembro, os indígenas ficam há mais de
1km de distância das suas fontes de água potáveis, sendo totalmente
dependentes do fornecimento externo e rodoviário, o que provoca
preocupações relativas à saúde.
Com o início das movimentações reativas pelos indígenas, agora
agregadas pelas atuações percucientes do Ministério Público Federal
e do Ministério Público Estadual, os órgãos instados a se pronunciar
sobre a ameaça às culturas indígenas, como o Instituto do Patrimô-
nio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a FUNAI, informaram
que, apesar dos complementos, o projeto da Santo Antônio Energia
naquele território ainda apresentava lacunas, e que por isso eram ne-
cessários estudos complementares.
Instituições e pesquisadores externos apontaram até mesmo in-
dígenas isolados, que não foram considerados como atingidos nos

189
estudos prévios. No entanto, apesar de confirmarem a necessidade
de complementação destes estudos, as instituições não se opuseram
à execução das construções das barragens que atingiriam os índios.

[...] a FUNAI, em vista dos impactos a serem absorvidos pelas popu-


lações indígenas, reconhecidas inclusive pelos consórcios, emitiu do-
cumento não se opondo a liberação das licenças. Por fim, o caso do
IPHAN, também não reagiu à altura dos impactos previstos. Ainda que
tenham ambos, FUNAI e IPHAN, se pronunciado na análise dos EIA/
RIMA alertando a não contemplação de estudos a respeito dos assuntos
de sua responsabilidade, não colocaram nenhum óbice à concessão das
licenças (ZIMMERLI, 2012, p.73).

A participação dessas instituições enquanto resistência teria sido


de muita importância para impedir os empreendimentos, ou mesmo
mitigar os danos causados por eles, garantindo as adequações neces-
sárias. No entanto, teriam optado por desconsiderar os danos sociais
e ambientais que tinham ciência e anuir para execução do projeto.
A população karitiana apresentava-se, então, enquanto resistên-
cia aos empreendimentos, sendo totalmente inclinada à posição de
veto e, no entanto, acabou por sofrer com as investidas dos empreen-
dedores. Diante dos relatos, podemos observar a forma de agir dos
empreendimentos para desmobilizar as resistências construídas pelos
povos que seriam afetados. Diante das negativas foi promovida então
a ideia de progresso para aquele território indígena, que se tornaria
independente com os projetos ofertados pelos empreendedores.
O povo Karitiana já se encontrava em situação de vulnerabilidade
antes das hidrelétricas e, diante das promessas, decidiram em assem-
bleia que iriam apoiar o empreendimento, visando os programas fu-
turos que o empreendimento havia se comprometido de promover.
Ocorre que nenhum destes projetos foi realizado, e já faz mais
de uma década desde o início das construções. Observa-se que é

190
necessária cautela e considerações na permissão e mediação dos con-
tatos prévios destes empreendedores com os povos atingidos. A situa-
ção de desamparo também preocupa pela chamada evasão da aldeia,
uma vez que, sem renda e sem suporte para o mínimo, os mais jovens
decidem aventurar-se na cidade em busca de emprego para conseguir
viver melhor.

Eu mesmo falo pra minha comunidade: nós temos que fazer gerar renda na al-
deia. Principalmente essa questão dos indígenas saírem da aldeia e tentar viver
na cidade, às vezes o índio sai da aldeia por que não tem renda, né. E aí eles vão
procurar emprego, e muitas vezes o indígena é barrado já, e então precisamos
gerar renda. Nós já temos escola, nossos indígenas não saem pra estudar aqui,
nosso foco é esse aí, manter a nossa comunidade dentro da aldeia e gerar renda.
Então tem que ter esse tipo de coisa, roça, plantação. Pra nós mesmo fazer isso
gerar renda dentro da aldeia (CLEDSON KARITIANA, 2020).

É preciso falar a língua do branco, entender o sonho do branco e,


talvez, aprender a utilizar as ferramentas do branco. Na cosmologia
karitiana, tudo se deve a um caso ascentral:

Uma das versões do mito de Byjyty, neto de Botyj, o Deus “maior, che-
fão” – coletada em português, com dois informantes, em junho de 2003
–, reconta uma história de perdas diante do contato com os brancos, ain-
da que coloque os Karitiana como os principais responsáveis pelo seu
infortúnio. No “tempo antigamente” – forma Karitiana de, em portu-
guês, estabelecer a fratura entre o tempo atual e o tempo mítico ou a
história antiga –, Byjyty vivia entre os Karitiana. Certo dia avisou aos
índios que morreria e pouco depois voltaria na forma de uma grande ave
que os Karitiana não deveriam matar; morreu e foi enterrado dentro da
maloca. Seu espírito retornou – como alertara, na forma de um jaburu
–, e pousou em cima da maloca. Entretanto, os índios esqueceram-se do
aviso de Byjyty e mataram o pássaro. Foram, então, punidos pelo seu

191
“pecado”: Byjyty se foi para sempre, e nasceu de novo entre os bran-
cos. Fora Byjyty que tirara, tempos antes, os brancos de dentro da “água
grande”, dos domínios de Ora, “chefão das águas” e irmão de seu avô.
Para os brancos Byjyty transmitiu toda a sua sabedoria. Caso não tives-
sem “errado” ao matarem o pássaro, Byjyty teria nascido de novo entre
os índios, e hoje eles teriam todos os cobiçados bens de que dispõem os
brancos (VANDER VELDEN, 2003, s/p).

Recuperar o saber de Byjyty, seja cursando Engenharia de Pesca


e trabalhando também como assessor parlamentar, e retomar para
Ora seus domínios sobre as águas, fazem parte de uma herança mí-
tica diante das novas ameaças de extinção, sobretudo, o extermínio
cultural.

A bebida, a caça, o rito e o descanso


Tão logo chegou o vírus do COVID-19 nas aldeias dos karitianas es-
tes perderam dois parentes, o seu líder Gumercindo Karitiana, de 66
anos, e a mãe deste, Enedina Karitiana, de 86 anos.
O processo de luto, a representação da morte e da vida, possuem
especificidades nas diversas sociedades do mundo. É uma forma de
lidar com a disrupção ocorrida, com o esfacelamento de expectativas,
e com todos os sentimentos gerados pela perda de alguém próximo
e com isso compreender as diversas práticas funerárias aplicadas por
grupos humanos por todo o mundo. E é também por isso que, por
mais variadas que sejam essas práticas de tratamento dos mortos, a
sua existência é também um fenômeno universal à humanidade (BEL-
TRÃO, 2015. p. 207-208).
Cledson Karitiana afirma que, ao saberem do vírus, as aldeias fo-
ram avisadas sobre a necessidade do distanciamento social, tendo sido
determinado que os indígenas deveriam permanecer isolados nas al-
deias, sem irem para a cidade, em razão dos riscos de contaminação.

192
Gumercindo Karitiana e Enedina da Silva Karitiana
Fonte: Associação do Povo Karitiana (APK). Disponível em https://amazonia.org.
br/2020/06/coronavirus-memoria-acesa-nas-perdas-de-mae-e-filho-karitiana-em-rondonia/

No entanto, apesar dos esforços feitos pelos líderes, eles não con-
seguiram impedir a chegada do vírus em suas aldeias e, para a lide-
rança, a contaminação chegou em razão da busca pelo auxilio emer-
gencial nos bancos de Porto Velho.

O governo federal começou a lançar esse auxilio emergencial. Aí o pessoal começou


a fazer inscrição e quando foi no banco e teve contato com pessoal contaminado,
voltou e contaminou a aldeia. O primeiro caso que nós tivemos foi na aldeia Cara-
col, foram três casos. Quando nós ficamos sabendo disso, aí foi um desespero total.
Aí como quando começou esse contato, praticamente 80 por cento da aldeia foi con-
taminada. Em todas as seis aldeias (CLEDSON KARITIANA, 2020).

A Caixa Econômica Federal foi a única instituição financeira res-


ponsável, pela distribuição e organização do auxílio emergencial, sen-
do esta a principal medida de apoio econômico à população durante
a pandemia. Em razão da crise econômica, e do aprofundamento das
desigualdades sociais no Brasil, centenas de pessoas passaram a aglo-
merarem-se diariamente nos bancos da Caixa Econômica para sacar
o auxílio oferecido.
O fornecimento deste auxílio não veio acompanhado de um pro-
jeto de logística para evitar a aglomeração destas pessoas, que já se

193
encontravam em situação de vulnerabilidade, e tiveram de ir ao ban-
co e se expor. No caso dos indígenas, nada foi feito para evitar o des-
locamento destes na busca do auxílio, então estes tiveram de ir até as
cidades, onde foram aos bancos que já estavam sobrecarregados com
vários grupos em situação de vulnerabilidade.
Cledson Karitiana afirma ter recebido apoio dos órgãos de saúde
indígena, mas que foi insuficiente e lembrou-se disso ao lamentar a
morte da primeira vítima, Seu Gurmercindo:

Ele era ex-cacique, o pessoal falou que quando ele veio pra cá, ficou nem dez
dias, acho que foi cinco dias, e ele morreu. Nossa, foi triste pra nós. A gente falou
tanto pra comunidade que não era pra vir na cidade, pra permanecer na aldeia,
e chegou esse vírus e, depois de dez dias, chegou mais uma notícia ruim, que
era a mãe dele. Tem o Elivar, que é do Conselho Indígena, ele foi quem batalhou
mais pra conscientizar a comunidade, por que é uma responsabilidade nossa,
né? Aí foi chato pra nós, mas nós avisamos, fomos nas aldeias, fomos juntos
com a Saúde Indígena, conversar com pessoal, conversar sobre o vírus, através
do SESAI. Eles deram transporte e fizeram toda logística, com assistente social,
enfermeiras, fizeram testagem, entregamos panfletos.

O sentimento de luto e culpa pela perda dos seus parentes, fez com
que as lideranças mudassem em relação ao enfrentamento do vírus,
optaram então por utilizar os conhecimentos de seus ancestrais sobre
ervas e plantas medicinais.

O nosso ancião começou a se virar, por que falaram que não tinha cura e não
tinha vacina. Aí começamos a tomar nossos remédios tradicionais, e agora o
nosso povo não tem mais contaminação, nós zeramos. Hoje os karitianas até
duvidam do vírus, eles nem querem usar mais máscara. Aí o pessoal fala mais
assim, quando o pessoal vem na cidade eles intubam né, então eles pensam que
não era pra o nosso ancião ter morrido, eles acham que se ele tivesse ficado ele
teria sobrevivido (CLEDSON KARITIANA, 2020).

194
Esta afirmação vem diante de uma experiência do entrevistado,
que afirma ter passado o vírus para sua mãe, e que ela chegou a quase
morrer, mas que não quiseram deixá-la ir para cidade no hospital.

Minha mãe quase faleceu, vou te contar a história dela. Meu pai falou que mi-
nha mãe não tava conseguindo nem mais andar. Ela mora lá na aldeia, tava
ruim, mas ruim mesmo. Daí meu pai falou, chamou até o carro para buscar
ela. Aí uma enfermeira falou assim, o nome dele é Nelson, aí ela falou bem as-
sim: Nelson, se tu autorizar tua esposa a ir pra cidade, tu não vai ver mais tua
esposa, nem teus filhos vão mais vê-la. Ela quis dizer que ela ia falecer, né? Aí
meu pai falou: não, se for assim, então não vou deixar minha esposa ir, vou
deixar ela falecer aqui, perto de mim. Meu pai não estava mais aguentando a
dor da minha mãe, era falta de ar, dor no corpo, fraqueza total. Minha mãe já
é gordinha, então ela já tem esse problema. Aí meu pai não aguentou mais o
sofrimento, quis mandar ela pra cidade. Aí a enfermeira falou isso pra ele, e ai
ele decidiu ficar lá.

A permanência na aldeia, bem como a utilização das ervas medici-


nais, foram, na opinião de Cledson, essenciais para a sobrevivência de
sua mãe, como também de todo o resto da aldeia. Uma destas ervas é
a quina-quina, a qual possui propriedades anti-inflamatórias, vinda da
casca de uma árvore.

Aí, depois disso, eles começaram a tomar as ervas medicinais, uma delas é a qui-
na-quina. Tem vários remédios nossos, chás, plantas. Ixê, eles tomaram banho,
então através disso nosso povo está salvo [...] Só morreram esses dois primeiros,
o Gumercindo e a dona Enedina. Nosso povo ficou praticamente tudo na rede,
Nathalia. Não tinha mais ninguém sadio, todos passando mal, todos com sin-
tomas, fraqueza, falta de ar, dor no peito, tudo. Daí eu falei: meu Deus do céu,
agora nós vamos morrer tudinho. Aí nosso pessoal começou a tomar os remédios
caseiros, com isso o pessoal começou a não ter mais sintomas. A gente acredita
nos nossos remédios. Hoje a gente fala, se tiver alguém doente na cidade, manda

195
pra cá que nós vamos cuidar deles, manda pra cá que nós curamos! Aí nós va-
mos comprovar se funciona, se a gente curar essas pessoas aqui, a gente tem
remédio. O pessoal fala isso.

Diante de um governo federal que propagava o negativismo científi-


co, a medida desesperada, aplicando o conhecimento tradicional, anun-
ciado pelo entrevistado engenheiro enquanto paradigma científico con-
corrente, implica em se perceber a ambivalência do caso, que, de um
lado, simboliza a importância da autodeterminação destes povos nas es-
colhas de seus tratamentos de saúde, e a relevância de seus sentimentos
e identificação com seus próprios conhecimentos relativos às plantas e
raízes medicinais, mas, de outro lado, aponta para mais uma externa-
lidade negativa causada pela ausência de políticas indigenistas efetivas,
pois a autocura se aproxima também e temerosamente do negativismo.

As folhas medicinais do povo karitiana


Fonte: Conselho Distrital de Saúde Indígena. Disponível em https://amazonia.org.
br/2020/06/coronavirus-memoria-acesa-nas-perdas-de-mae-e-filho-karitiana-em-rondonia/

Para os indígenas Karitianas o processo de luto não é algo simples.


Após a morte de um dos seus, o ritual funerário atravessa um total de
cinco dias, existindo várias fases necessárias para que o espírito possa

196
ir embora, em paz. O enterro dos karitianas é feito numa rede, para o
descanso do corpo. No local onde o corpo será enterrado é construída
um tipo de casinha, e são colocados juntos ao corpo também uma plan-
ta e um arco-e-flecha e, após tudo isso, os parentes iniciam suas rezas.
O processo, que dura cinco dias, reúne toda a aldeia para tomar
chicha, uma bebida fermentada e comum a vários povos indígenas,
feita a partir da fermentação do milho, a qual é deixada ao lado do
corpo. Os caçadores da aldeia saem para caçar, trazem a caça e a dei-
xam próxima ao corpo, para que o espírito possa ser alimentado. De
acordo com a crença dos karitianas, o espírito vem e come tudo aqui-
lo para só depois poder ir embora.
Assim, a rede é também uma mortalha, que enreda o corpo e pre-
para seu descanso para a grande caçada simbólica. Ali, onde o grande
banquete ritual é elaborado e as rezas e o sumo do caule auxiliam a
abrir os caminhos, prepara-se o coletivo para o momento da devo-
lução à natureza circunspecta dessa força que a respeitou. O milho
redistribui os valores da terra, que dá e que agora recebe. E a casinha
final, endereço último do corpo, é a caricatura simpática do sonho do
homem, que o vento e a chuva vão tão logo também resgatar.

Os indígenas karitiana e o grupo musical BYJJYTY OSOP AKY


Fonte: (Foto APK). Disponível em https://amazonia.org.br/2020/06/coronavirus-
memoria-acesa-nas-perdas-de-mae-e-filho-karitiana-em-rondonia/

197
A relevância deste processo do luto para os karitianas, em que par-
ticipa toda a comunidade, é demonstrada pelo cuidado com o aquele
parente2 morto, bem como pela complexidade deste ritual, conside-
rando cada uma de suas etapas e cada um de seus significados.
Para os karitianas, as mortes inesperadas de seus líderes e sábios
provocaram um luto coletivo, um sintoma de perda que ultrapassa
a individualidade da família, sendo um momento difícil para todos
eles. Elvira Karitina, vice-presidente do Conselho de Saúde Indígena
do DSEI de Porto Velho, exemplifica o pesar da situação:

Gumercindo era uma enciclopédia de saber, contava histórias, muito ha-


bilidoso no trabalho com as mãos, era o nosso engenheiro e arquiteto.
Ele num instante levantava uma casa, nem fazia anotações no papel. Se
precisava abrir uma estrada, tomava a frente e liderava os mais jovens.
Nosso povo está muito sentido com sua partida, abalou muito a gente. É
como se uma árvore imensa que fazia sombra para muitos, tivesse sido
cortada, e de uma hora pra outra ficamos no sol quente (BRAGA, ELI-
ZEU 2020).

Diante destas mortes, os corpos não poderiam ser enterrados em


sua terra, e iriam seguir para o cemitério público da cidade, o que ge-
rou uma grande revolta do povo Karitianas.

A regra da prefeitura era não deixar levar de jeito nenhum, ai nós ficamos pen-
sando. Nossa comunidade não aceita! Não aceita enterrar nosso corpo aqui na
cidade, tem que ser enterrado na aldeia. Aí nós tivemos que lutar, junto com
pessoal grande, pra levar nossos corpos pra aldeia. O Elivar ligou pra mim e
falou: Cledson, como nós vamos fazer agora? A prefeitura não vai deixar a gente
levar o corpo pra aldeia. Aí eu falei: e agora? Então liguei pra Dra. Gisele, e

2.  O entrevistado karitiana utiliza o termo “parentes” para se referir ao conjunto dos in-
dígenas.

198
expliquei a situação. Eu disse: a gente não vai aceitar enterrar nossos parentes
aqui na cidade, temos que levar eles pra nossa terra, pra nossa aldeia. Aí a Dra.
falou: é impossível, é a regra do COVID, tem medidas. Daí eu falei: Dra. nós
não vamos aceitar, se não for por bem, nós vamos levar por mal (CLEDSON
KARITIANA, 2020).

A situação gerou um grande mal-estar na comunidade. A simples


ideia de ter um dos seus parentes enterrado longe da sua terra, em
um caixão, sem qualquer tipo de cerimônia apavorava as lideranças
que estavam à frente da luta.
Cledson revela ter ficado uma madrugada inteira acordado e, com
auxílio da Dra. Gisele, conseguiu contatos em Brasília para tentar
solucionar a questão. Foi, assim, atendendo parcialmente ao direito
cultural específico, permitido aos Karitianas levar seus corpos para
aldeia, mas com uma condição: os corpos seguiriam em caixões fe-
chados, para que não houvesse risco de contaminação.
As condições foram aceitas, e os corpos foram levados para al-
deia em caixões lacrados, para serem realizadas as cerimônias. Ainda
assim, foi difícil para os parentes karitianas aceitar as condições dos
procedimentos, tendo sido papel das lideranças acalmar os ânimos.
Quando os corpos chegaram à aldeia houve grande comoção, bem
como questionamentos sobre a veracidade da existência de corpos
nos caixões. Cledson afirma que a aldeia foi vítima das notícias fal-
sas propagadas nas redes sociais. Eles diziam que havia sido noticiado
que os caixões estariam recheados com pedras, e que, portanto, eles
deveriam abrir para verificar.

Nós levamos os corpos na aldeia, nós fizemos o procedimento, fizemos todo pro-
cedimento sem abrir... Foi muito triste pra nós, os familiares chorando, querendo
ver os corpos, por que chegou a ver no jornal que não estavam sendo enterrados
corpos, estavam sendo enterradas pedras. E aí eles queriam ver e abrir, queriam
abrir caixão por que o corpo não tava ali. Só que eu falei: o corpo está aqui, está

199
aqui dentro, o filho dele viu o corpo, conferiu e ele falou pra mãe: mãe, o corpo
do pai tá aqui, eu vi tudo e acompanhei. Aí a família se acalmou e acreditou no
filho, né (CLEDSON KARITIANA, 2020).

Era um difícil momento, um contraponto. Na medida em que exi-


gências sanitárias visavam finalmente tutelar a saúde daquele povo,
sua cultura se via ameaçada, eis que a cosmologia da morte entre os
karitianas perfazia outro compasso. Enterrar corpos “sem rosto” é
afinal como enterrar pedras. Como incorporar as forças do caçador
ou a sabedoria do plantio do milho e seu preparo através do lacre?
Como retesar o arco ou untar o mingau e transmitir o aprendizado
dos gestos se não há a visão das mãos altaneiras? Como manter consi-
go um mundo que se vai?

Todo procedimento nosso, nós temos ritual nosso, nós não enterramos com caixão,
nós enterramos na rede, nós fazemos uma casinha pra ele, nós colocamos planta,
arco-e-flecha, faz a reza. Nosso funeral é de cinco dias, entendeu? Aí tem tudo, nós
fazemos chicha, no outro dia tem que matar caça, deixar a caça perto do corpo, a
gente acredita que o espírito vem e o espírito come tudo aquilo lá, e depois ele vai
embora. E se a gente não fizer isso, o espírito não vai embora, e aí o espírito pode
não gostar e fazer mal pra família. Por isso que fazemos tudo isso. Nós fizemos
todo procedimento, não teve aglomeração, o corpo chegou e foi logo pro enterro,
fizemos o ritual mesmo assim, só ficou ruim não ver ele na hora de enterrar. Nós
colocamos o caixão na rede, colocamos o arco-e-flecha em cima do caixão. Aí, nos
outros dias, fizemos a caça, a chicha (CLEDSON KARITIANA, 2020).

Gumercindo da Silva Karitiana foi o primeiro indígena a morrer


com Covid-19 em Rondônia. O corpo do líder indígena foi enterrado
na aldeia onde vivia, da forma como foi possível, e deixou um senti-
mento de muita tristeza toda a sua comunidade.
Mas a luta dos karitiana ganhou forte representação no Esta-
do, a ponto de, com a chegada da primeira leva da vacina contra a

200
Covid-19, no dia 19 de janeiro de 2021, Elivar Karitiana estava entre
os três primeiros vacinados.

Em Rondônia, as primeiras pessoas imunizadas contra a Covid-19 foram a médica


Karina Negrão Zingra, o enfermeiro do Centro de Medicina Tropical de Rondônia
(Cemetron), Márcio James Jorge Santos e o indígena, Elivar Karitiana.
Fonte: Foto de Frank Nery. Secretaria de Estado da Saúde de Rondônia.
Disponível em: http://www.rondonia.ro.gov.br/governo-de-rondonia-
recebe-a-primeira-remessa-da-vacina-contra-a-covid-19/

Importa ressaltar que a luta dos karitianas em Rondônia culminou


também na Recomendação nº 21/2020, do Ministério Público Fede-
ral, a qual traz determinações e orientações para que todos os povos
indígenas de Rondônia sejam auxiliados pela SESAI e pelo DSEI, per-
mitindo que seus corpos sejam enterrados em suas respectivas terras.

Considerações finais
Aparentemente a promessa etnocida de Jair Messias Bolsonaro, quan-
to à eliminação das terras indígenas e supressão dos seus direitos tem
sido intensificada durante o período em que as pessoas se encontram
voltadas para os problemas relativos à pandemia. As diversas medidas

201
anti-indígenas que foram tomadas pelo Governo Federal e por insti-
tuições que deveriam estar em defesa do índio, como a FUNAI, so-
freram resistência e enfrentamento tanto através do Poder Judiciário
como pelos órgãos independentes (Ministério Púbico, Defensoria) e
representações parlamentares, como pelos próprios indígenas.
As usinas hidrelétricas do complexo do Rio Madeira, ocasionaram
danos sociais e ambientais aos povos indígenas, sobre os quais não
corresponderam adequadamente com sua responsabilidade social
corporativa. Houve prejuízo aos recursos hídricos do povo karitiana
após a construção das usinas que se encontram em situação de depen-
dência externa da água, atrelando sua sobrevivência ao recebimento
de caminhões e galões de água em uma de suas aldeias. Os conflitos
socioambientais que ocorrem se dão muito em razão do modelo de
desenvolvimento expropriatório e das práticas clientelistas assumidas
pelos acordos entre as empresas e o poder político estadual.
Porém, o que mais preocupa no caso concreto é que o Estado vem
realizando papel inverso ao pretendido pelas democracias liberais,
que buscam ampliar a cidadania social para diminuir a distinção de
classe subalternizada (Esping-Andersen, 1991). De forma inversa, es-
tão a ampliar as desigualdades e a achatar a cidadania. Isso se demons-
tra, por exemplo, na completa desestrutura dos quadros técnicos lo-
cais das instituições diretamente associadas ao modelo da democracia
social indígena, o IPHAM e, sobretudo, a FUNAI, que já deixavam a
desejar na proteção desses povos.
A FUNAI encontra-se, inclusive, como parte ré no processo judi-
cial que busca a materialização dos projetos prometidos como repa-
ração pelos danos causados às comunidades indígenas karitianas e
karipunas. Essencialmente, é perceptível que, nessa guerra “Franco-
-Indígena” as instituições não estão do lado dos indígenas, mas dos
empreendimentos, a luta pelos direitos dos povos karitianas dentro
do seu território só estão ocorrendo diante da mobilização e engaja-
mento feito pelas lideranças.

202
É necessário considerar, que houveram perdas significativas de di-
reitos para estas comunidades, pois o conflito se deu em um momen-
to de alta vulnerabilidade, marcado pelas exigências do distanciamen-
to social. Ainda assim, as políticas de enfrentamento ao COVID-19
dentro das comunidades indígenas só foram possíveis em razão da
luta e determinação de suas lideranças, que se movimentaram para
que seus povos resistissem e que os conflitos fossem amenizados.
Em Rondônia os karitianas, advindos de uma etnia de luta e re-
sistência que quase foi exterminada no passado, viram importantes
figuras de suas aldeias, logo no início da pandemia, serem vítimas des-
te vírus. É perceptível a existência de um sintoma de medo de aniqui-
lação das suas histórias, das suas vivências e de seus conhecimentos,
mas, além disso, também existe uma forte noção da necessidade de
luta por suas culturas, desde processos para a garantia de enterro dos
corpos dos seus mortos em suas terras, às proteções com barreiras
sanitárias e tentativas de arrecadação de produtos de segurança, leitos
e todo necessário para o enfrentamento da pandemia.
É possível perceber o sentimento de unidade dentro da luta do
povo karitiana e o interesse pelo bem-comum de toda etnia, quando
se utiliza sempre do pronome nós para relatar qualquer questão da
aldeia, bem como quando se conta que foi preciso ameaçar a ordem
para que os corpos dos seus fossem levados para suas terras.
É fácil constatar esta unidade no sentimento de culpa em razão
das mortes que ocorreram, como se elas fossem de responsabilidade
de toda a aldeia, mesmo tendo sido ocasionado por virem até a ci-
dade, e principalmente por culpa do despreparo do Governo Federal
ao não coordenar a ação de pagamento do auxílio às populações em
vulnerabilidade.
Considerando que a luta é coletiva, e os frutos dela também, po-
demos notar que a resistência, as conquistas e as perdas dos karitianas
puderam ultrapassar suas aldeias e reverberar para que fosse criada a
Recomendação do MPF, permitindo que as outras etnias do Estado

203
também pudessem enterrar os corpos dos seus, com auxílio dos ór-
gãos indígenas competentes.
Na noite dos tempos, se garantiu a bebida, a caça, o rito e o des-
canso. Mas, por cautela, estão lá também, no espaço fúnebre, o arco
e a flecha.
Em contexto correlato ao da imagem romântica que abriu esse
texto e que apresenta um indígena idílico na literatura americana, en-
cerramos trazendo à memória o maior clássico do romantismo brasi-
leiro, O guarani, de José Alencar. No romance, lançado em 1857, um
nobre português, Dom Antônio Mariz, em 1604, constrói verdadeiro
castelo medieval na Serra dos Órgãos, às margens do Rio Paquequer,
um afluente do Rio Paraíba, em terras que foram oferecidas por Mem
de Sá como retribuição a serviços prestados à Coroa portuguesa. Ali,
junto com sua filha Ceci, sofrerá o assédio do vilão Loredano, um ex-
-frei italiano e apóstata, que tramará, junto aos índios aimorés, o ata-
que à fortaleza, o que será bloqueado pelo herói, o índio Peri, da tribo
guarani. Na guerra, morrem todos os personagens e restam Ceci e
Peri que enfrentam um dilúvio de purificação/reinvenção do mundo,
juntos sobre uma palmeira que desaparece no horizonte.
Na versão branca dessa história, Dom Madeira, acastelado na
fortaleza acadêmica, transmite à Nathalia-Ceci a chama da pesquisa
militante que segue, mesmo diante do dilúvio político-ideológico, o
rumo da esperança.
A versão karitiana ainda está sendo escrita.

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207
7
ECONOMIA POLÍTICA DO
RESSENTIMENTO: UM RESULTADO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS QUE SE
TORNAM POLÍTICAS DE GOVERNO?
Ronaldo Lobão

Um preâmbulo: um pouco sobre características hierárquicas


da sociedade brasileira.

Faz algum tempo que foi feita a pergunta sobre o lugar que a nature-
za pode ocupar nos encontros e nas políticas ambientais desenvolvi-
das, defendidas, praticadas ou apenas estudadas em uma sociedade
relacional como a nossa (Barbosa e Drummond, 1994).
Essa perspectiva relacional corresponde a uma representação sim-
bólica de uma sociedade, onde se encontram imbricados de forma par-
ticular, valores distintos sobre indivíduo e pessoa. No Brasil, uma visão
de mundo seria construída a partir de representações particulares de
valores tais como honra, prestígio, hierarquia, parentesco, compadrio
e relações pessoais (idem). Ao mesmo tempo em que florescem insti-
tuições jurídicas, políticas e econômicas de corte individualista e liberal,
sua operação, de fato, privilegia as relações pessoais e hierárquicas.
Na gramática social brasileira o espaço assume um lugar de desven-
damento dessa lógica relacional. Por exemplo, “casa” e “rua” estão em
universos polares de significação. Na “casa” reinam as pessoas, as relações
afetivas e, nesse lócus, os processos de administração de conflitos acio-
nam um repertório de valores calcados em regras particulares, oriundas

209
das relações pessoais das partes. A estrutura que poderia transformar o
conflito em sociabilidade seria a família. Por outro lado, a “rua” é o reino
das regras universais e dos indivíduos, onde a resolução de conflitos se dá
através do acionamento de mecanismos impessoais, e estrutura corres-
pondente que deve agir sobre a produção da ordem está no Estado.
Onde estaria, nesse modelo, a Natureza, o espaço natural não
modificado pelo homem – o espaço não antropizado? Em uma re-
presentação gráfica podemos associar o eixo vertical a um contínuo
instrumental e o eixo horizontal a um contínuo de pessoalidade. No
pólo casa, estaríamos com um baixo grau de instrumentalidade, mas
um alto grau de pessoalidade. No pólo rua, teríamos um grau de ins-
trumentalidade maior e um grau de pessoalidade baixo. O espaço na-
tural pode ser pensado, então, como englobando os dois, e represen-
tado pelo grau máximo de instrumentalidade e um grau mínimo de
pessoalidade. A grande questão é que grande parte do movimento
ambientalista brasileiro na atualidade pretende estabelecer o pólo Na-
tureza como ocupando um grau mínimo de instrumentalidade.

Figura 1 – Gradiente de Instrumentalidade x Pessoalidade

Uma proposta: construir uma trajetória factível para as Re-


servas Extrativistas.
A análise que passo a desenvolver trata da trajetória de um proces-
so social que está longe de ter alcançado seu fim. Nesse sentido, esta
análise corresponde à minha interpretação de um período dessa

210
trajetória, sem nenhuma pretensão de determinar sua intensidade ou
direção futura. Desejo registrar, entretanto, um conjunto de inflexões
havidas no período considerado que podem iluminar ações no pre-
sente e potencializar novos desdobramentos no futuro.
Desde o início devo deixar claro que meu “objeto” não é nenhuma
“reserva extrativista” em particular, mas as “Reservas Extrativistas” – Re-
sex – enquanto um conjunto de paixões, ações e normas que caracteri-
zam uma política pública. Sigo, assim, a distinção de Mary Allegretti en-
tre políticas públicas e políticas de governo (Allegretti, 2002), para quem
o primeiro grupo corresponderia àquelas que tiveram a sociedade como
seu pólo deflagrador, e as Políticas de Governo seriam seu oposto3.
Minha “pergunta”, meu “foco” não está nem nos grupos locais,
centrais à política, nem em seus atores “secundários”, sejam eles
representantes de governo, de Organizações Não Governamentais
– ONGs –, ou de outros grupos com interesses no espaço, ou nos
recursos. Meu olhar esteve voltado para os “encontros” entre esses
personagens, para a “política em ação” em suas múltiplas vias.
Entendo que as Resex foram o resultado de uma luta pela afirma-
ção de um modo de vida em um espaço vivido. Em outras palavras,
seringueiros amazônicos se organizaram, lutaram contra modelos de
desenvolvimento que não os reconheciam no espaço local, recusaram
políticas de governo que não os colocavam no papel de sujeitos e con-
quistaram uma política pública. Na perspectiva da época, o poder ver-
dadeiro era o poder local.
As relações afetivas com a mata, com suas colocações, sua topophi-
lia (Tuan, 1977) foram um dos elementos centrais de sua resistência.

3.  Além desta distinção eu sugeriria uma classificação também em função da delegação de
poder e o sentido em que ela ocorre. Assim, poderíamos ter políticas públicas onde a dele-
gação do poder vem do estado em direção à sociedade ou seu contrário, quando a sociedade
perde poder frente ao Estado. O mesmo pode ocorrer com políticas de governo, onde a dele-
gação de poder pode ocorrer nos dois sentidos. Em termos de tipos ideais, podemos pensar
que em políticas públicas o poder está centrado na sociedade e em se tratando de políticas de
governo o poder está localizado no lado do Estado.

211
Outro foi um saber particular, tradicional, sobre os recursos natu-
rais que acumularam após vários anos reproduzindo-se socialmente
em um mesmo lugar4. Um terceiro, e um pouco mais polêmico, foi
a identidade partilhada pelos atores do processo. Independente de
suas trajetórias pessoais (nativos, filhos dos “soldados da borracha”,
ou emigrantes), todos se apresentavam como “seringueiros”. Esta era
sua “consciência coletiva” ou sua “auto-afirmação”.
Em novos espaços e envolvendo outros atores, as Resex mantive-
ram a conjugação de uma relação espacial com um saber naturalísti-
co como determinantes para a aplicação da política. Por exemplo, os
pescadores de Arraial do Cabo (RJ) e seus arrastos de praia, os extra-
tivistas dos manguezais de Soure (PA) ou os pescadores de canoa de
Corumbau (BA) demonstraram não só sua disposição de lutar pelos
seus “lugares”, como artes particulares para a extração dos recursos
naturais locais. Entretanto, os elementos de ligação entre os grupos lo-
cais perderam um estatuto em igual nível dos demais em prol de uma
ênfase maior no aspecto territorial da política enquanto formadora de
“áreas protegidas”, de “unidades de conservação da natureza”.
Isso porque os elementos táticos da luta dos seringueiros do Acre
foram, com o passar do tempo, sendo convertidos nos objetivos estra-
tégicos da política como um todo. A vinculação do espaço à imagem
de Gaia, um espaço indiferenciado, e não à de Réa, o espaço vivido, fez
com que os grupos locais não mais se reconhecessem pela vinculação
ao lugar, mas através de uma identidade e um “cadastro” estatais.
O saber tradicional não pode mais ser associado à sustentabilidade
de suas práticas. Uma vez que o Desenvolvimento Sustentável está
orientado para o futuro, é a Ciência da Conservação que passou a
ser o instrumento adequado à previsibilidade desejada. A “aliança dos
povos da floresta”, um pacto no presente, deu lugar a um “pacto gera-
cional”, a defesa do ambiente e dos recursos para as gerações futuras.

4.  Nunca é demais lembrar que Godelier já nos ensinou que tradição não é repetição.

212
Em conjunto com estas poderosas idéias-chave – Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável – foram introduzidos outros conceitos
que acabaram por transferir a condução das ações da política para as
mãos do governo e seus representantes (ou vice-versa?). Stakeholders,
empowerment, “gestão participativa”, “projetos” são palavras correntes
em discursos de lideranças locais, mas que acabam por evidenciar que
as Resex, de fato, deixaram de representar uma política pública para
conformar uma política de governo.
Acredito que essa passagem provocou, e ainda provoca, um rastro
de atos de desconsideração, de insultos morais (Cardoso de Oliveira,
2002; 2004), que acabam por despertar um forte ressentimento (Lo-
bão, 2006). É isto o que se percebe nos enunciados sobre o resultado
da política em vários espaços onde ela foi acionada: “falta fiscalização”,
“o Ibama não faz nada”, “a Resex é como um filho enjeitado. O governo pa-
riu e não quer criar”. O que não significa que a população tradicional
das várias localidades seja contra as Resex. Ruim com a Resex, pior
sem ela. Mas como se deu essa passagem? Como se instalou essa Polí-
tica do Ressentimento?
Em minha opinião, o mecanismo utilizado foi a constituição de
uma Cosmologia Política do Neocolonialismo, através da manipu-
lação das representações sobre o tempo e o espaço, cristalizada em
identidades sociais construídas de fora para dentro.
Nessa cosmologia tempo e espaço são manipulados de fora para
dentro e de cima para baixo, através de conceitos e idéias tais como
Unidades de Conservação, Áreas Protegidas, Biodiversidade, Desenvol-
vimento Sustentável, Empoderamento, Gestão Participativa, Associa-
tivismo entre outros. Histórias de vida que eram sustentadas por tra-
dições locais e pela probabilidade, pelos prognósticos foram colocadas
frente a frente com saberes que são orientados para o futuro, universali-
dade e para a previsão – marcas de nossa ciência ocidental. Lugares que
eram vivenciados afetivamente (Tuan, 1977), onde o habito estava as-
sociado ao diligo (Mello e Vogel, 2004) foram transformados em Áreas

213
Protegidas, em Meio Ambiente, em Unidades de Conservação,. Torna-
ram-se espaços indeterminados, bens sujeitos aos interesses difusos de
uma sociedade envolvente em escala planetária.
Para habitar os novos espaços é necessário incorporar identidades
distintivas do todo nacional ou regional. Em Áreas Protegidas (Terras
Indígenas, Territórios Quilombolas e Unidades de Conservação) so-
mente é permitido a presença de grupos étnicos – índios ou quilom-
bolas – e de “populações tradicionais”5. Além de uma “nova” identi-
dade, mesmo que construída ao abrigo do Decreto 5.051/20046, os
grupos locais candidatos a permanecer em Áreas Protegidas tiveram,
e os novos também terão, que incorporar novos discursos, novas for-
mas de organização social e novas práticas produtivas. Estas deverão
ser, obrigatoriamente, voltadas para o futuro e controladas pela Ciên-
cia da Conservação, em todas as suas vertentes.
Essas sugestões provêm do acompanhamento e reconstrução da
trajetória das Reservas Extrativistas – Resex – até sua concepção atual,
vinculadas à Diretoria de Desenvolvimento Sócio-Ambiental – DISAM
– do Ibama. O argumento e seu desenvolvimento foram objeto de
minha tese de doutorado defendida no PPGAS/UnB em fevereiro de
2006. Apresento a seguir uma breve compilação da síntese lá apresen-
tada, para finalizar com uma tentativa de resposta ao título deste texto.

Uma versão para a trajetória das Reservas Extrativistas


A reconstrução aqui apresentada foi construída a partir de relatos de
alguns dos intérpretes presentes desde os primeiros momentos de
formação da política até as Reservas Extrativistas chegarem a Arraial

5.  Mais adiante discuto este conceito.


6.  Que ratificou entre nós a Resolução 169 da OIT. O decreto brasileiro fala em “consciência
de identidade”, a versão inglesa em self-identification e a versão francesa em sentiment d’appar-
tenance. Apesar de possuírem o mesmo valor legal, em minha opinião, as três expressões
expressam processos de expressão do eu e da necessidade de reconhecimento distintos.

214
do Cabo, em 1995. A partir de 1996, entrou em cena o etnógrafo e au-
tor deste texto. O foco inicial foi o vale do Xapuri, no Acre. Outros ce-
nários foram importantes para o desenho da política, como Rondônia
e o Vale do Juruá, mas para a reconstrução efetuada, a centralidade
em Chico Mendes, permitiu uma abrangência maior para o desenho
do mosaico de influências e seus efeitos.
Na representação gráfica busquei considerar as esferas de interlocu-
ção, ou esferas sociais, que se formam em cada encontro que se esta-
beleceram e que exerceram um alcance diferenciado nos níveis micro,
meso e macro (Apel apud R. Cardoso de Oliveira, 2000, p. 175)7. A
apresentação bidimensional considera no eixo vertical o afastamen-
to espacial e no eixo horizontal a evolução temporal. O tamanho dos
“nós” não está vinculado a uma avaliação de sua importância. Mui-
tas vezes é apenas correspondente ao texto que o identifica. O tem-
po também se “acelera” – como na representação de Sahlins para um
campeonato de basebol em 1951 (Sahlins, 2004, p. 131) – em torno do
biênio 1988-1989, quando foram criadas as primeiras Resex, e em tor-
no do ano de 2000, quando da promulgação da Lei do Sistema Nacio-
nal de Unidades de Conservação – SNUC.
Como sugestão de leitura do quadro abaixo, percorrerei alguns
nós que podem ser interligados em um mesmo contexto. Tomo o as-
sociativismo, como um primeiro exemplo.
A primeira referência são as CEB – Comunidades Eclesiais de
Base. Elas representaram a retomada da reação ao período de exceção
da política brasileira no campo e tiveram na reorganização do movi-
mento sindical combativo seu paralelo no meio urbano. Um outro
pólo foram as lutas contra a agroindústria que buscava se instalar na
fronteira noroeste e as lutas contra o patronato nos seringais do Alto

7.  K.-O. Apel, A necessidade, a aparente dificuldade e a efetiva possibilidade de uma macro
ética planetária da (para a) humanidade, in Revista da Comunicação e Linguagem, nos 15-16 –
Ética e Comunicação - , 1992, pp. 11-26.

215
Juruá8. Os empates na região Xapuri foram frutos da organização ini-
cial dos seringueiros locais.

Quadro 1 – Representação da Trajetória das Reservas Extrativistas

Não devemos esquecer que, além do contexto político do país,


esses processos representavam uma reação ao modelo de desenvol-
vimento de então, contra a expansão da fronteira agrícola, contra o
rodoviarismo9 e em defesa do extrativismo em uma versão moderni-
zada nas matas da região.
O primeiro resultado dessas lutas foi a consolidação de uma Aliança
dos Povos da Floresta que propiciou a organização dos povos indígenas
para a defesa de seus interesses na Assembléia Nacional Constituinte e a
criação do Conselho Nacional dos Seringueiros. Nesse momento, fazia-se

8.  Eliane Cantarino O’Dwyer mostra esta trajetória para o vale do Juruá (O’Dwyer, 1998).
9.  Ver Costa, Alonso e Tomioka, “A re-significação das tradições: o Acre entre o rodoviaris-
mo e o socioambientalismo” (1999).

216
sentir nos contextos locais a movimentação de organizações internacio-
nais em defesa dos povos indígenas e da Floresta Amazônica, que entra-
ram em franco litígio com as agencias de financiamento internacionais.
No cenário internacional afirmou-se um conceito de Meio Ambiente,
com um sentido de resgate do paraíso perdido (Merchant, 2003) e do De-
senvolvimento Sustentável (Ribeiro, 1992) como uma utopia.
O CNS se posicionava fortemente contra a política fundiária do Ins-
tituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA –, princi-
palmente no que tocava ao fracionamento e à titulação individual das
terras (Allegretti, 2002). Defendiam o domínio da União sobre as terras
e o usufruto das colocações à população local. Neste sentido os Pro-
jetos de Assentamento Extrativista – PAE – não foram respostas ade-
quadas aos reclamos do movimento. Foi na Política Nacional do Meio
Ambiente – PNMA –, de 1981, que as Resex encontraram acolhida na
forma de Unidades de Conservação de Interesse Ecológico e Social.
Os acontecimentos da segunda metade da década de oitenta foram
decisivos. A projeção de Chico Mendes e do movimento, o seu assas-
sinato, a nova Constituição, a criação do Ibama se sucederam em alta
velocidade. Mas foi a conjuntura política da sucessão do governo de
José Sarney determinante para a criação das quatro primeiras Resex,
no início de 1990 (Cunha e Almeida, 1999, 2000)10.
Os preparativos para a Rio-92 trouxeram novos elementos para a
trajetória das Resex. Em 1992 foi criado o Centro Nacional de Desen-
volvimento Sustentado das Populações Tradicionais – CNPT – ligado
diretamente à direção do IBAMA. O CNPT consolidou a ênfase no
extrativismo “moderno” e trouxe dois conceitos novos para a polí-
tica: o “desenvolvimento sustentado” e “populações tradicionais”11.

10.  Eliane C. O’Dwyer lembra que as ações do Ministério Público Federal na defesa do di-
reito dos seringueiros do Alto Juruá em não “pagar renda” aos patrões também teve papel
importante na definição da política na região (O’Dwyer, 1998).
11.  A denominação do CNPT é por si só emblemática dos efeitos que as diversas ideolo-
gias tiveram sobre o processo. De sua denominação original, passou, em 2002, a se chamar

217
Os beneficiários da política passaram a ser não apenas os serin-
gueiros ou castanheiros. Enquanto populações tradicionais dedicadas
ao extrativismo, o leque de grupos sociais que puderam reivindicar o
abrigo na política cresceu exponencialmente. Manteve-se, entretanto,
a centralidade do modelo extrativista no saber local, com um docu-
mento sintetizando as práticas tradicionais e novos acordos de gestão
dos recursos naturais renováveis existentes no interior das Resex: o
Plano de Utilização, um documento “administrativo” que era apre-
sentado pela população local ao Ibama que o oficializava como um
documento governamental (CNPT, s.d.).
Esse documento era construído no interior das Associações da
Reserva, entidades criadas especialmente para realizar a co-gestão da
unidade de conservação, em um primeiro momento, e signatárias de
um Contrato de Cessão de Uso mais à frente. Em seus estatutos esta-
va definido o critério de pertencimento e conseqüente “autorização”
para usufruto dos recursos de cada Resex12. Em muitos casos esta as-
sociação confundia-se com a associação de moradores locais, mas à
media que a política foi sendo aplicada a outros espaços que não os
amazônicos, ou com um história de organização local enraizada, ela
mesma passou a ser um problema.
Ao mesmo tempo, consolidou-se na “development community” (Pe-
ter Fry, 2005) alguns novos conceitos para a obtenção de créditos jun-
to a agências de fomento multilaterais como o Banco Interamericano
para o Desenvolvimento – BID – ou ao Banco Mundial. Foram os

Centro Nacional para o Desenvolvimento Sustentável das Populações Tradicionais e, em


2005, Centro Nacional das Populações Tradicionais e do Desenvolvimento Sustentável. Em
outro lugar aprofundo esta questão, mas gostaria de destacar a mudança do sufixo do termo
“sustent”: começou como sustentado, cuja interpretação poderia ser que as práticas presen-
tes das populações tradicionais eram sustentadas. Ao passar para sustentável sugere que tais
práticas somente serão sustentáveis, no futuro, o que parece indicar a necessidade de intro-
dução de outras práticas e saberes junto às populações tradicionais (Lobão, 2006) Volto ao
conceito de “populações tradicionais mais adiante.
12.  Em Arraial do Cabo, o critério previsto no Plano de Manejo aprovado, em 1997, foi “pes-
car há mais de dez anos e votar há cinco anos em Arraial do Cabo” (Ibama/MMA, 1997).

218
conceitos de stakeholder, empowerment, gestão participativa, entre ou-
tros, e do modelo de apoio que teve a feliz denominação por Carol
Pareschi de “Projetismo” (Pareschi, 2002).
Na gestão da política, a ênfase havia se deslocado do extrativismo
para a conservação da biodiversidade, da conservação do Meio Am-
biente. A lei do SNUC veio apenas consagrar a vitória dos conserva-
cionistas. O Plano de Utilização, documento administrativo, passou
a ser o Plano de Manejo, um documento técnico. A gestão das Resex
passou a ser feita em parceria com um Conselho Deliberativo, onde
a população local, na maioria das vezes não plenamente reconhecida,
não tem a centralidade nas decisões.
No lado do financiamento, apesar da dependência dos recursos de
projetos já ter sido instalada, o fluxo dos recursos internacionais mi-
graram para outros motes protecionistas como o combate ao efeito
estuda e os acordos para negociação de créditos de carbono.
Na esteira da diminuição dos recursos o Incra contra-atacou. Para
a obtenção de créditos do Programa Nacional de Agricultura Fami-
liar em uma faixa mais favorável, a população tradicional das reservas
extrativistas deveria aderir ao programa fundiário do órgão e a área
da Resex titulada nominalmente às famílias moradoras. A população
local ganharia o crédito, mas perderia a gestão patrimonial de suas
terras e das terras comunais13.
No final do ano de 2004, o governo federal instituiu a Comissão
Nacional para o Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tra-
dicionais14. Havia a intenção de que houvesse paridade entre os re-

13.  Não há dúvida que as implicações desta política são profundas. No Quilombo Bela Au-
rora, no Pará, apesar do contentamento local pelo acesso ao crédito, várias famílias recla-
mavam que não poderiam mais abrigar, “dar” terras a familiares que voltavam a viver no
quilombo (Carlos Alexandre Barbosa, comunicação pessoal). Será que as implicações de uma
titulação quilombola, da inclusão no Programa Nacional de Assentamentos Extrativistas são
discutidas com os grupos locais? Discuto estas questões mais adiante.
14.  Destaque-se a terminologia “comunidades” e não “populações” que já havia sido consa-
grada pelo SNUC. Quanto à definição do SNUC, ver minha discussão em Lobão, 2005.

219
presentantes de vários órgãos governamentais e os representantes das
“comunidades tradicionais”. Diante da indefinição de quem seriam
as “comunidades”, os “povos” (Little, 2004) ou “populações” tradi-
cionais, a ampliação da política chegara a um momento de definição
crítico. Quais os beneficiários, quais os grupos detentores de direitos
e deveres sobre o uso de recursos naturais renováveis em unidades
de conservação ou quais estariam abrigados em políticas redistributi-
vas ou compensatórias? Foi organizado um Encontro para a definição
quanto ao preenchimento das vagas das “comunidades” na Comis-
são. É o que passo a descrever resumidamente.

Um Encontro Paradigmático
O I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais15, cujo tema
foi “Pautas para Políticas Públicas” teve a oportunidade de definir
parâmetros para uma definição sobre o conceito das “populações
tradicionais”, que serviria para orientar políticas públicas, mas
também permitir que grupos sociais se reconhecessem como de-
tentores de direitos ao exercício de suas distinções. Entretanto, teve
como resultado apenas o preenchimento das vagas relativas à “so-
ciedade civil”16 na Comissão Nacional de Desenvolvimento Susten-
tável das Comunidades Tradicionais e a indicação de um conjunto
de reivindicações que são de praticamente toda a população bra-
sileira.
Havia outros objetivos, tais como o expresso no mote do encon-
tro, “Pautas para Políticas Públicas”, detalhados na organização do
evento:

15.  O evento aconteceu nos dias 17, 18 e 19 de agosto de 2005, no centro de Formação do
Conselho Indigenista Missionário – CIMI, localizado na cidade de Luziânia, no entorno de
Brasília.
16.  Não pretendo aqui aprofundar a discussão sobre este conceito, apenas mantenho-o entre
aspas para indicar meu estranhamento sobre ele.

220
“a) promover a troca entre comunidades; b) dar-lhes maior visibilidade
pública; além de c) envolvê-las na construção participativa do conceito de
‘comunidades tradicionais’; d) na articulação entre demandas e ofertas, do
ponto de vista das políticas públicas já existentes; e, por fim, e) na definição
de seus representantes no âmbito da Comissão Nacional de Desenvolvi-
mento Sustentável das Comunidades Tradicionais” (Nogueira, 2005).

A sétima reunião da Comissão contou com a presença de repre-


sentantes da “comunidade científica”, todos antropólogos, embora
nem todos vinculados a universidades. Nela foram apresentadas algu-
mas questões balizadoras para o trabalho da comissão e da realização
do evento. Um resumo da discussão dos “assessores” dos movimen-
tos sociais reuniu as seguintes observações:

“- Comunidade é um grupo que interage diretamente, face a face e que é


capaz de agir coletivamente a partir destas interações.
- Comunidades tem de ser ecológicas, conservacionistas, etc.
- Tradição é um processo coletivo, [...] um laboratório verbal.
- O Fundamental é o Estado entrar com a Garantia de Território, mas
não parar por aí. [...] assistência técnica mais ou menos ecológica [...]
escoamento para o mercado em bases mais justas, ajudar na organiza-
ção etc.
- Qual é a categoria de auto-definição utilizada; qual é o movimento so-
cial que representa essa categoria; qual é o ato ou dispositivo de poder
que a reflete (constitucionais e infraconstitucionais). Os conhecimentos
também são materializados em dispositivos de ação, em regras, em nor-
mas, em formas de reconstruir a natureza.
- Não é que não era e passou a ser, é que essas identidades são mesmo
efeito de processos políticos ligados com território, mas também com a
autonomia política.
- O contexto atual dos conflitos socioambientais é propício para visibili-
zar identidades, para ampliação dos movimentos de resistência.

221
- A releitura do econômico não só é essencial do ponto de vista do enten-
dimento também simbólico, cultural ou que tenha a economia, mas que
também do lugar da mulher.
- Por que isso nos liberta da responsabilidade [...] não somos nós que
[...] porque senão nós podemos produzir limpezas étnicas e virar classi-
ficadores.
- A gente sempre cai num problema praticamente insolúvel quando a
gente tenta fazer uma definição substantiva do que é em si uma comu-
nidade tradicional.
- Comunidade é um pressuposto da ação, ela é o foco, mas ela é o resul-
tado esperado da ação ao mesmo tempo.
- Na hora de organizar isso talvez não seja por bioma, mas por grau de
vulnerabilidade que esses grupos têm em relação a acesso a terra e a
recursos naturais. [...] importa a luta comum que eles estão tendo para
manter ou reconquistar recursos que eles perderam por força do avan-
ço de fronteira, externalidades negativas de processos econômicos, que
estão se dando ali localmente, do qual eles não são atores, mas vítimas.”
(Boccato, 2005)

Uma outra questão que teve que ser enfrentada dizia respeito aos
participantes do evento. A fórmula adotada foi a indicação dos grupos
pela “comunidade científica” e Organizações Não Governamentais –
ONGs – “parceiras” dos órgãos públicos, que através de suas entidades
e associações indicaram os nomes dos seus representantes no evento.
Após a abertura do evento pelas autoridades presentes, o primeiro
ponto de pauta foi a apresentação sobre o conceito de “comunidades
tradicionais”, “povos tradicionais” ou “populações tradicionais”. Nela
foi sugerido um conjunto de possíveis critérios, que envolviam os se-
guintes conceitos:

“Uso sustentável da Terra: ciclos naturais e práticas produtivas; uso de


recursos naturais renováveis; práticas de uso comunitário dos recursos;

222
conhecimento profundo do seu ecossistema; tecnologias de baixo im-
pacto ambiental.
Destino da produção: venda para o mercado não é o único fim da pro-
dução; parte da produção é usada para manter laços sociais; parte da
produção é para auto-consumo.
Vínculo territorial: noção de pertencimento; condutas de territorialida-
de; memória coletiva vinculada ao território; identificação com um ecos-
sistema específico.
Situação fundiária/jurídica: qual a categoria fundiária do grupo? (Posse
permanente, uso comum, usufruto, etc.); existe reconhecimento jurídi-
co?; houve situação de expropriação, redução, expulsão?
Organização Social: importância da família extensa na organização co-
munitária; relações de parentesco baseadas na unidade doméstica; exis-
tência de regras ou costumes para o uso comunitários dos recursos.
Expressões Culturais: particulares do grupo; mitos e ritos associados ao
extrativismo; palavras ou expressões lingüísticas próprias; transmissão
oral geracional do conhecimento cultural e ambiental.
Interação com outros grupos: o grupo se considera diferente da maioria
da população da região?; quais os termos usados para marcar esta dis-
tinção?;
Auto-Identificação.” (Anotações pessoais).

Não há dúvida que este conjunto de questões reflete o que se dis-


cutia sobre o conceito de “populações tradicionais”. Entretanto, to-
mados em conjunto há que se notar que muitos são contraditórios
entre si, ou acabam por promover exclusões, ou “limpezas étnicas”.
A forma de organização dos grupos de discussão seguiu um pro-
cesso prévio de auto-identificação. Ou seja, os representantes das
entidades indígenas se reuniram entre si, os representantes dos qui-
lombolas da mesma forma, pescadores artesanais, etc. Se bem que
em alguns grupos havia uma indefinição e/ou uma singularidade
de identidades evidente. No caso do grupo que reuniu “pescadores

223
artesanais”, que se reconheciam como tal, estavam presentes repre-
sentantes que se denominavam “pantaneiras” e “caiçaras”. Não que
não pescassem, mas em suas identidades, e reivindicações traziam
questões particulares, por um lado, e gerais por outro.
Na parte da tarde, quando os grupos foram apresentar suas con-
clusões sobre o processo de reconhecimento identitário, visando
uma possível reorganização dos trabalhos e já apontar para a de-
finição dos representantes da Comissão Nacional, algumas falas
foram emblemáticas. A facilitadora encontrava dificuldades para
enquadrar os presentes nas categorias “produzidas”. Foi quando
uma mulher negra levantou-se e disse: “olha, eu sou mulher, negra,
quilombola, extrativista, quebradeira de coco de babaçu. Eu estou no que
a Ministra Marina Silva falou pela manhã, na transversalidade identitá-
ria”. Em seguida, um senhor pediu a palavra e disse: “a classificação
deve ser por bioma; os nativos devem se reunir para defender os biomas
contra o agronegócio. Se não fizermos isto, daqui a pouco acaba o cerrado,
acaba o pantanal”.
O segundo dia foi reservado para o diagnóstico dos problemas das
comunidades visando a construção de políticas públicas que seriam
discutidas na Comissão Nacional do Desenvolvimento Sustentável
das Comunidades Tradicionais. O terceiro dia definiu um conjunto
de demandas e os representantes dos grupos na Comissão, que foram
os seguintes17:

Coletadores de Produtos não Madeireiros (Grupo de Trabalho Ama-


zônico –); Sertanejos (Associação de Mulheres Agricultoras Sindicali-
zadas); Quilombolas (Coordenação Nacional de Quilombos); Povos
Indígenas (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira); Quebradeiras de Coco de Babaçu (Movimento Interes-
tadual das Quebradeiras de Coco de Babaçu); Pescadores Artesanais

17.  Entre parênteses está assinalada a entidade representativa.

224
(Movimento Nacional dos Pescadores); Caiçaras (Rede Caiçara de
Cultura); Geraizeiros (Rede Cerrado); Comunidades de Terreiro (As-
sociação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu); Pantaneiros
(Fórum Mato-Grossense pelo Meio Ambiente e Desenvolvimento –
FORMAD); Ciganos (Associação de Preservação da Cultura Cigana –
APRECI); Seringueiros (Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS);
Pomeranos (Associação dos Moradores e Amigos Proprietários dos
Pontões de Pancas e Águas Branca – AMAPPPAB); Comunidade de
Fundo de Pasto (Coordenação Estadual de Fundo de Pasto); Faxinais
(Rede Faxinais).

A sistematização das demandas prioritárias contemplou os seguin-


tes itens:

“Regularização fundiária e garantia de acesso aos recursos naturais;


educação diferenciada, de acordo com as características próprias a cada
um dos povos tradicionais; reconhecimento, fortalecimento e formali-
zação da cidadania (exemplo: documentação civil); não criar mais UCs
de proteção integral sobre territórios dos povos tradicionais; resolução
de conflitos decorrentes da criação de UCs de proteção integral sobre
territórios de povos tradicionais; dotação de infra-estrutura básica;
atenção diferenciada à saúde dos povos tradicionais, reconhecendo suas
características próprias, valorizando suas práticas e saberes; reconheci-
mento e fortalecimento de suas instituições e formas de organização
social; fomento e implementação de projetos de produção sustentável;
garantia de acesso às políticas públicas de inclusão social; garantia de
segurança às comunidades tradicionais e aos seus territórios; evitar os
grandes projetos com impactos diretos e/ou indiretos sobre territórios
de povos tradicionais e, quando inevitáveis, garantir o controle e gestão
social em todas as suas fases de implementação, minimizando seus im-
pactos sociais e ambientais.” (fonte: http://www.socioambiental.org/
nsa/detalhe?id=2080 )

225
Como sugestão para comparação, apresento um extrato das de-
liberações do I Encontro Nacional dos Seringueiros, realizado em
1987, no município de Ariquemes, em Rondônia:

“Desenvolvimento da Amazônia: exigimos uma política de desenvolvi-


mento para a Amazônia que atenda aos interesses dos seringueiros e que
respeite os nossos direitos. Não aceitamos uma política para o desenvol-
vimento da Amazônia que favoreça as grandes empresas que exploram
e massacram trabalhadores e destroem a natureza; não somos contra
a tecnologia, desde que ela esteja a serviço nosso e não ignore nosso
saber, nossas experiências, nossos interesses e nossos direitos. Queremos
que seja respeitada nossa cultura e que seja respeitado o modo de vi-
ver dos habitantes da floresta amazônica; exigimos a participação em
todos os projetos e planos de desenvolvimento para a região (Planacre,
Polonoroeste, Asfaltamento da BR 364, entre outros), através de nossos
órgãos de classe, durante sua formulação e execução; reivindicamos que
todos os projetos e planos incluam a preservação das matas ocupadas e
exploradas por nós, seringueiros; não aceitaremos mais projetos de co-
lonização do Incra em áreas de seringueiras e castanheiras; queremos
uma política de desenvolvimento que venha apoiar a luta dos trabalha-
dores amazônicos que se dedicam ao extrativismo, bem como às cultu-
ras permanentes e às outras culturas do seu interesse, e que preserve as
florestas e os recursos da natureza. Queremos uma política que traga
benefícios a nós trabalhadores e não aos latifundiários e empresas multi-
nacionais. Nós, seringueiros, exigimos sermos reconhecidos como pro-
dutores de borracha e como verdadeiros defensores da floresta.
Reforma Agrária: desapropriação dos seringais nativos; que as coloca-
ções ocupadas pelos seringueiros sejam marcadas pelos próprios serin-
gueiros, conforme as estradas de seringa. não divisão da terra em lotes;
definição das áreas ocupadas por seringueiros como reservas extrativis-
tas, assegurado seu uso pelos seringueiros; que não haja indenização das
áreas desapropriadas, não recaindo seu custo sobre os seringueiros; que

226
sejam respeitadas as decisões do 4º Congresso Nacional dos Trabalha-
dores Rurais, no que diz respeito a um modelo específico de Reforma
Agrária para a Amazônia, que garanta um mínimo de 300 hectares e
um máximo de 500 hectares por colocação, obedecendo à realidade ex-
trativista da região; que os seringueiros tenham assegurado o direito de
enviar seus delegados à Assembléia Nacional Constituinte pra defender
uma legislação florestal e fundiária de acordo com suas necessidades es-
pecíficas.” (fonte: Allegretti, 2002)

A primeira comparação é o sujeito de fala. Em 1989 eram os pró-


prios seringueiros. Em 2005, o tom é impessoal. Em 1989 exigiu-se di-
reitos, em 2005 pediu-se garantias. O desenvolvimento em 1989 devia
estar a serviço da classe trabalhadora, em 2005, buscou-se ser objeto
de programas de desenvolvimento. Os seringueiros em 1989 reclama-
vam pelo reconhecimento como produtores de borracha e defensores
da floresta. Em 2005 as “comunidades tradicionais” reivindicavam re-
conhecimento como cidadãos, através da obtenção de documentação
civil. É inegável que algumas categorias utilizadas em 1989 mostra-
vam o forte componente ideológico da luta da época: a classe traba-
lhadora em marcha. Em 2005, não se pode deixar de reconhecer um
forte apelo por tutela e proteção.
Várias hipóteses podem ser oferecidas para explicar o processo. Mu-
danças no mundo do trabalho. Novas configurações para o papel do
Estado. Um novo patamar para as demandas do capitalismo em sua
forma globalizada. Entretanto no cerne dessas mudanças, não há dúvi-
das que as novas configurações do tempo e do espaço na “modernida-
de avançada”, na “pós-modernidade”, na “modernização flexível”, ou
qualquer denominação que se dê ao momento presente da trajetória
do mundo ocidental, desempenham um papel fundamental.
Essas novas representações sobre tempo e espaço, e os efeitos de-
las decorrentes, precisam de “profetas”, de arautos que as apresentem
para aqueles que se encontram ainda “excluídos”. Para aqueles que

227
não estão submetidos a nova temporalidade ou mantenham relações
espaciais que não estejam regidas sob a égide de um cálculo racional,
capaz de maximizar de interesses e eliminar paixões, característico do
capitalismo moderno (Hirschman, 2002).
E, não tenho dúvidas que, nós, antropólogos, fizemos, e ainda fa-
zemos, parte desse grupo, de neo-colonizadores, mesmo quando im-
buídos das melhores das intenções. Afinal, quem pode dizer que jesuí-
tas, missionários não tinham boas intenções ao reduzir, evangelizar,
os grupos nativos das mais diversas partes do planeta? Quem pode
dizer que a própria Antropologia, enquanto disciplina que informou
grande parte da construção dos impérios coloniais modernos, não
estava, e ainda está impregnada das melhores intenções, de um com-
promisso ético com os grupos estudados? Portanto, passo a discutir o
papel dos antropólogos da trajetória das Resex.

Um olhar sobre o olhar dos antropólogos (e um pouco de re-


flexividade)

Entendo o trabalho dos antropólogos como sendo a busca de uma


compreensão comparativa sobre o outro que contribui para a auto-
consciência. Esta autocompreensão, por sua vez, permite a auto-refle-
xão e a auto-emancipação (ainda que parcial). É este interesse eman-
cipatório que torna a compreensão sobre o outro possível (Scholte,
1972). Entretanto, a dimensão ética normativa almejada pela vocação
crítica e reflexiva da Antropologia, não obtém resposta satisfatória
neste esquema. Ele é apenas um primeiro passo na direção de uma
emancipação e compreensão mútuas, que uma solidariedade na dife-
rença cultural poderá produzir, sempre na direção de várias possibili-
dades de se estar no mundo (idem).
Muitas vezes esquecemos que essas múltiplas possibilidades tam-
bém se aplicam a nós mesmos, e desde já quero deixar claro que
este não é o caso no presente texto. O sentido crítico recai sobre os

228
resultados da política ao longo do tempo, sobre os quais nem sempre
os antropólogos têm qualquer injunção. Entretanto, um olhar reflexi-
vo sobre a trajetória dos grupos e da política bem como sobre a nossa
participação pode aumentar a possibilidade da compreensão e eman-
cipação mútuas, não apenas a do antropólogo.
Da mesma forma que na análise da trajetória da política, meu
olhar cobre a participação dos antropólogos no mesmo período. Se-
gue também o mesmo esquema quanto as fontes. Para a fase inicial,
foram utilizados textos de autores que participaram do processo. A
partir de 1997, as inferências são minhas.
Em artigo que analisa a responsabilidade dos antropólogos,
Mauro Almeida apresenta uma interessante trajetória das relações
entre projetos de desenvolvimento e os antropólogos (Almeida,
1992). Nos anos setenta, nos vários projetos que envolviam peque-
nas comunidades, os antropólogos, que atuaram como interme-
diários, estabeleceram uma relação de colaboração (idem, p. 111).
Entretanto, dado o momento político e a natureza dos projetos,
sua realização não afetou as políticas oficiais, pois “o poder que
alimenta as políticas oficiais não é afetado pelos microprojetos” (p.
112). Em outros termos do autor, “não há passagem do local ao
global” (idem).
Como vimos, a década de oitenta viu o fortalecimento da orga-
nização dos grupos locais, mas também dos antropólogos. As Cen-
trais Sindicais, o Conselho Nacional dos Seringueiros, as Uniões
das Nações Indígenas, propiciaram, em uma nova conjuntura,
uma nova forma de atuação dos antropólogos. De um universo
em micro escala, “um antropólogo, uma comunidade um projeto
comunitário, um foco de investimento”, passou-se a uma atuação
em macro escala, “vários especialistas, uma população regional/
nacional, vários projetos interligados, investimentos simultâneos
no plano agrário, ambiental, tecnológico e jurídico” (p. 114). O
“‘fenômeno Chico Mendes’ deve ser visto [...] como um exemplo

229
[...] de novas estratégias para passar de lutas sociais a lutas globais”
(p. 115)18.
A nova conjuntura do final da década de oitenta propiciou que os an-
tropólogos abandonassem o papel como tradutores culturais, aqueles que
fazem “mensagens atravessarem fronteiras de poder”, e viram os próprios
grupos atravessarem essas fronteiras (p. 115). Os antropólogos tornaram-
-se desnecessários como “heróis” assumindo um papel de assessoria aos
movimentos sociais, à ONG, aos órgãos governamentais (p. 116).
Mas há um alerta, com respeito a esse novo papel: que “haja uma
superação de reivindicações apenas corporativistas por parte de gru-
pos como camponeses e indígenas” (p. 116). No lugar de grupos me-
recedores de políticas compensatórias, os grupos minoritários deve-
riam “apresentar-se como portadores de interesses gerais” (p. 117). O
papel dos antropólogos passaria a ser o de “despertar vocações uni-
versais em grupos de interesse” (p. 117).
O antropólogo surge mais forte que nunca como um ator políti-
co (Ramos, 1992). Ao analisar processos sociais dinâmicos, forças em
combate, o antropólogo abandonou de vez os sistemas homeostáti-
cos (p. 156). Mas o “tempo da antropologia, em contraste com o tem-
po do jornalismo [ou da política], por exemplo, exige um período de
maturação de idéias que acaba gerando uma defasagem entre refle-
xão antropológica e impulso histórico” (idem).
A assessoria antropológica aos movimentos sociais corre o risco
de perder o timing da política. O ethos antropológico parece ser “irre-
mediavelmente incompatível com uma participação mais direta com
aqueles que traçam as diretrizes da nação” (idem). Essa incompatibili-
dade viria de uma vocação relativizadora dos antropólogos frente aos
compromissos realistas do Estado (p. 157).
Para além de sua vocação relativizadora e da superação à crítica de
um antropocentrismo ou sociocentrismo imanentes, o trabalho dos

18.  Destaque no original.

230
antropólogos atravessou a década de noventa buscando alternativas.
Mesmo criticados por sermos poucos inovadores e até certo ponto
redutores (Lená, 1997). Estaríamos em busca de uma ecologia política
que unisse o local ao global, que despertasse a visão global a partir
do interesse particular, estaríamos a serviço de uma “desterritoriali-
zação” ou uma “reterritorialização” (idem, p. 312). Mas mecanismos
que associem interesse coletivo com bem comum ainda estão por ser
inventados (p. 327-328).
O que inventamos foi uma nova forma de nos relacionar com o
Estado: os laudos antropológicos. Na outra ponta, estivemos revestin-
do a “antropologia da ação” ou a “antropologia aplicada” com uma
nova roupagem, cunhada a partir da ressemantização dos conceitos
de grupos étnicos e de etnicidade. Não preciso dizer que o texto de
F. Barth, Os Grupos Étnicos e suas Fronteiras, foi o pilar do processo
(Barth, 2000), unificado com a perspectiva de sua fundamentação no
trabalho de campo (O’Dwyer, 2005).
Decerto que o convite, o chamamento dos grupos minoritários,
sejam eles indígenas, quilombolas, ou tradicionais, também produ-
ziu uma outra perspectiva. Em lugar de fazer “para”, ou fazer “por”,
deveríamos ter passado a fazer “com”. O que de certa forma nos co-
locaria como parceiros dos grupos estudados, acompanhados, ao lon-
go do tempo. Mas os laudos antropológicos quer sejam oficiais, quer
sejam judiciais, produzem na maioria das vezes híbridos19. Diversas
instâncias findam sendo responsáveis por um processo de purificação
e tradução, produtor do híbrido, um misto de natureza e cultura (La-
tour, 1994). De fato, para que se dê início à discussão acerca dos direi-
tos desses grupos, eles devem ser oficializados pelo Estado, ouvidos
aqueles autorizados a falar sobre identidades étnicas, ou culturais: os
antropólogos.

19.  Discuto em outro lugar (Lobão, 2005) o que aconteceu com a definição de “população
tradicional” vetada por ser abrangente ou restritiva demais, de acordo com o grupo de inte-
resse que enunciou suas críticas.

231
O processo percorre uma via dupla. Em uma, atores internos
aos grupos agem no sentido de construir uma argumentação que
seja aceita no universo oficial, pois as estruturas associadas a uma
identidade seriam afetadas pelas identidades construídas (Berger &
Luckmann, 2002). Em outra, busca-se uma concepção extensionista
(Cunha e Almeida, 1999, 2000) para o preenchimento do sentido de
“população tradicional”. Só que algumas macro-definições são cons-
truídas de acordo com sua inserção no Mercado, e já estão influencia-
das pelas concepções de tempo e espaço modernas. O resultado é que
não conseguem produzir identidades detentoras de direitos “fortes”,
como Índios ou Quilombolas20.
Com o advento dos laudos, e a conseqüente construção de híbri-
dos, foi dada uma nova perspectiva ao trabalho do antropólogo (Car-
doso de Oliveira, 2000). O que olhar? Resposta: o necessário para
responder a quesitos. O que ouvir? Resposta: o que puder ajudar a
sustentar a posição observada. O que escrever? Resposta: o que puder
maximizar as possibilidades do desfecho do processo jurídico ou ad-
ministrativo ser favorável aos interesses do grupo em questão21.
Por exemplo, em um curto espaço de tempo os moradores do
Bairro Mandira no sul de São Paulo, na região de Cananéia, foram
identificados de várias formas em “laudos” antropológicos. A primei-
ra como herdeiros das terras que ocupavam, ou que ainda consegui-
ram manter sob seu controle, mas a atividade extrativista que exer-
ciam no manguezal da região merecia a proteção de uma Reserva

20.  Em uma via este processo é comandado por uma lógica de antecedentes, (Rosen, 1990).
Na outra, a do Estado e seus agentes, a matriz argumentativa é concebida através de uma
lógica de conseqüências ( John Dewey apud Rosen, 1990). Há imbricado nesta dialética, um
choque de lógicas que tem posições temporais distintas, uma voltada para o passado, os ante-
cedentes, e a outra para o futuro, as conseqüências.
21.  A Carta de Ponta das Canas (ABA, 2005) radicalizou este ponto. Para os antropólogos
presentes à reunião, deverão ser levados a uma Comissão de Ética, os antropólogos que cau-
sarem “prejuízos a um grupo social [...] quando ocasionado por um exercício de trabalho
inadequado”. Não explicita quem, antes da Comissão de Ética julgará os “prejuízos” e o tra-
balho “inadequado”.

232
Extrativista22 e, portanto, uma “população tradicional”. A segunda
como quilombolas, para efeito de titulação de suas terras. A última,
em 2002, consagrou a dupla “identidade”: os Mandira são uma “po-
pulação tradicional” para efeitos de grupo beneficiário da Resex-Mar
de Mandira, através da extração e beneficiamento de ostras, e “rema-
nescente de quilombos” para as áreas terrestres onde vivem e exer-
cem suas atividades complementares.
Em conversa sobre essa “confusão” com um dos antropólogos mais
produtivos sobre a questão da ressemantização do conceito de quilom-
bo, ouvi a resposta que o jogo de identidades pelo menos conseguira
fixar o grupo na terra e na produção tradicional de ostras. O que é ver-
dade. E está em acordo com uma compreensão de que o saber

“antropológico se define pelo diálogo, pela tradução e explicitação de


categorias e discursividades nativas, capaz de relacionar as categorias ét-
nicas juridicamente formalizadas com as categorias e circuitos de rela-
ções próprios aos grupos sociais e aos contextos culturais investigados”
(ABA, 2005).

Mas com o passar do tempo, com a assunção de uma identidade


que nem sempre tem raízes na história do grupo, vemos que o peso

22.  O primeiro relato diz que a filha do “Senhor do Engenho” deixou uma fazenda para seus
meio-irmãos com aproximadamente 200 ha. No início do século XX houve uma disputa judi-
cial por conta de uma quebra na cadeia sucessória que durou mais de quarenta anos. Pouco
depois houve outra tentativa de grilagem, até que na década de sessenta, alguns herdeiros
começaram a vender suas terras. O resultado é que em 1998, só estavam sob controle dos
Mandira cerca de 13 ha. Em 2001, um outro relato afirma que o Quilombo do Mandira não
foi formado de escravos fugitivos e sim de escravos abandonados pelo senhor, tratar-se-ia
de uma antiga fazenda abandonada pelos donos, que deixaram os negros velhos, doentes e
crianças e que, contudo, a comunidade teria conseguido sobreviver e se multiplicar, gerando
os remanescentes Mandira. Participei do terceiro “relato” no ano de 2002. A liderança local,
Chico Mandira, se apresentou ao grupo como “sexta geração de quilombola”, a mesma que
havia sido indicada em Cananéia. Entretanto, em conversa com seu tio, um senhor de cerca
de oitenta anos, o primeiro relato prevaleceu, e a Sinhazinha era lembrada com carinho e a
condição de “proprietário” de suas terras era expressa com orgulho.

233
da mudança recai no lado do mais fraco (Meillassoux, 1992). Esque-
cemos da segunda tradução, de uma segunda explicitação: quais são
os “nossos” significados para as categorias étnicas formalizadas. Quais
são as armadilhas que o arcabouço jurídico da sociedade envolvente
prepara para os grupos inseridos de forma subalterna.

Olhar a história como cultura e vice versa


As várias trajetórias e posições aqui apresentadas, inclusive as minhas,
fazem parte da história da ciência ocidental. Nossa postura têm sido
a de neocolonizadores, apesar de nossas melhores intenções. Preten-
demos que a articulação do local ao global seja universalizada. Desde
que o global seja o espelho de uma determinada cultura, a cultura oci-
dental. Desejamos respeitar os saberes tradicionais, desde que eles se
transformem em mercadorias cujo regime de propriedade seja o nosso
(Kirsch, 2004) e sejam subordinados ao nosso saber científico sobre os
limites de conservação da biodiversidade. Oferecemos aos grupos in-
clusão e visibilidade social desde que em uma posição subalterna.
Porque, de fato, como assessores dos movimentos sociais em direção
à articulação do local com o global ou à visibilidade social, desejamos
que os grupos se construam mimeticamente tendo a nossa sociedade e
os nossos valores como modelo. Como tradutores do universo jurídico
e legal que possibilita a vindicação de direitos, não lhes apresentamos os
significados, as implicações discursivas dos nossos enunciados, para que
os grupos possam fazer suas avaliações autonomamente.
Na conjuntura atual, alguns sinais estão sendo emitidos. Cabe a
nós, antropólogos captá-los e decodificá-los. São sinais que mostram
que vêm dos mais variados lugares. De Resex terrestres onde grupos
locais reivindicam identidades mais diacríticas ainda23, com vistas a

23.  Há casos na Resex do Médio Juruá, no Acre, na Resex Tapajós-Arapiuns, no Pará, para
citar as que eu tenho conhecimento, do pleito de grupos étnicos indígenas pela desafetação
titulação de suas terras tradicionais.

234
sua inclusão em políticas mais protecionistas. De Resex marinhas
onde se pretende que se construa uma identidade coletiva diacrítica,
onde somente há uma identidade individual: pescador e pescadora.
Dos órfãos no presente e dos órfãos do futuro do projetismo, que
faz do projeto uma fonte de recursos e não da atividade local. Pois o
mercado que se oferece é um mercado que os obriga a assumirem a
condições de “pobres”, os obriga a quantificarem o que não é quan-
tificado. Que não os escuta enquanto grupos autônomos, mas como
grupos hipossuficientes que precisam de assessores e tradutores para
que sejam pretensamente ouvidos e vistos na sociedade nacional.
Mas seu lugar estará sempre reduzido aos espaços territoriais deli-
mitados e seus saberes subsumidos em práticas que não acreditamos
serem sustentáveis e como tal devem ser substituídas por outras que
acreditamos que serão. Por mais que a nossa práxis, a que praticamos
cotidianamente, sabidamente também não seja.
O que me leva a uma última consideração sobre nossa sociedade
e nossa forma particular de incorporar conceitos exógenos. A Reso-
lução 169 da OIT, hoje integrante do ordenamento jurídico brasileiro
através do decreto 5.051/2004, traz em seus artigos iniciais a chave
para a identificação dos grupos tradicionais e étnicos nas várias socie-
dades nacionais.
Como todas as convenções da ONU ela é publicada em dois idio-
mas, que tem igual efeito e validade: o francês e o inglês. Entretanto,
como sabemos, a tradução é promotora de grandes traições, ou de-
terminadas idéias são intraduzíveis em outro idioma. Roberto Kant
de Lima mostra que “verdade dos fatos” é uma expressão intraduzível
para o inglês, pois alguma coisa para ser “fato” precisa ser verdade,
mesmo que somente para aqueles que participam do acordo.
O que ocorreu com a Resolução 169 da OIT? Vejamos a versão
inglesa do seu artigo 2º: “Self-identification as indigenous or tribal shall
be regarded as a fundamental criterion for determining the groups to which
the provisions of this Convention apply”. Já a versão francesa diz que “Le

235
sentiment d’appartenance indigène ou tribale doit être considéré comme
un critère fondamental pour déterminer les groupes auxquels s’appliquent les
dispositions de la présente convention”.
Para mim, o corresponde em português de uma ou outra versão
tem significados e sentidos bastante diferentes. E o que é mais im-
portante, produz efeitos altamente diversos. Durante anos ouvimos
e falamos em “auto-identificação”. Transmitimos esta concepção e
assim ela tem sido interpretada pelos representantes dos grupos tra-
dicionais ou étnicos.
Entretanto, a versão que foi incorporada ao sistema jurídico bra-
sileiro fala que é a “consciência de sua identidade indígena ou tribal
deverá ser considerada como critério fundamental para determinar
os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.
Fica para um outro momento o aprofundamento desta distinção, mas
nunca é demais lembrar que quando fazemos nossas apostas em uma
interpretação ou em outra, quando disputamos concepções e filiações a
um modelo ou a outro, o fazemos com um cacife que não é nosso: a vida
das populações tradicionais locais e seus lugares de pertencimento.

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239
8
BACURAU PELAS LENTES DA
CRIMINOLOGIA CRÍTICA
Ana Maria Motta Ribeiro
Erika Macedo Moreira
Geovana Lara Clemente Rocha

NOTAS INTRODUTÓRIAS
O presente artigo tem sua origem no desenvolvimento do cine-de-
bate, realizado no âmbito da disciplina de criminologia do curso de
direito da Universidade Federal de Goiás/ Regional Goiás, em que
recorremos ao diálogo com a arte e a cultura para fazer frente ao mo-
delo central do ensino jurídico – pautado pela unidisciplinaridade,
descontextualização e dogmatismo (PORTO, 2000).
Soma-se, ao conjunto de práticas e políticas públicas desenvol-
vidas ao longo dos últimos 12 anos na Regional Goiás/ UFG, que
buscam, na interface entre o direito e a arte/ cultura, a constru-
ção de práticas pedagógicas que possam estimular as percepções
sobre às múltiplas realidades brasileiras. Em oposição ao modelo
central do ensino jurídico, com criatividade e valorização da com-
plexidade, buscamos a partir do reconhecimento da diversidade
das formas de conhecimento, do pluralismo jurídico e da valori-
zação da contradição (e das disputas que se refletem no âmbito da
produção e da aplicação da lei); construir um caminho para um
modelo de educação jurídica, que seja socialmente referendado e
que nos ajude a perceber e entender como se manifesta a estrutura

241
colonial-racial que orienta a atuação do sistema de (in)justiça nos
dias de hoje.
Bacurau é uma aula que nos permite perceber a continuidade do
projeto colonizador, em que a colonização, para além da sua dimen-
são econômica, impôs uma forma de ver, pensar e entender o outro,
aprisionando nossos corpos e mentes e mantendo a colonialidade do
poder como lógica dominante da razão jurídica moderna ocidental
(MOREIRA; ZEMA, 2019).
Nesse sentido, recorremos ao diálogo com a criminologia crítica
sistematizada em Alessandro Baratta (2002), para propor uma releitu-
ra do filme Bacurau na tentativa de compreender a ordem social, em
contraposição à ideologia oficial (que busca a manutenção do status
quo da ordem econômica e social). Nas palavras de Quinney (1980:
231): “É fazer o exercício de desmistificação, de remoção dos mitos –
a falsa consciência – criada pela realidade oficial”.
Richard Quinney, ao apresentar os quatro modelos centrais de pro-
dução do conhecimento (positivistas, construcionismo social, feno-
mologia e teoria crítica), nos ensina que a lei é o mito e a essência está
relacionado aos usos do poder de definição pela classe dominante.
No mesmo sentido, Baratta faz um percurso histórico das teorias
da escola clássica do direito penal, passando pelas diferentes escolas
da criminologia para demonstrar, como, cada uma, a seu tempo, e
pelo seu conjunto de métodos e teorias, contribuiu para implodir al-
gum dos princípios que dão sustentação à ideologia da defesa social.
Contemporânea à revolução burguesa, essa ideologia se manteve
com a passagem do estado liberal clássico ao estado social, e continua
como matriz de pensamento dominante na ciência jurídica e no senso
comum. Está sustentada nos seguintes princípios: a) legitimidade, b)
bem/ mal, c) culpabilidade, d) finalidade ou prevenção, e) igualdade,
f ) interesse social ou delito natural (BARATTA, 2002: 42).
Desta forma, a criminologia é uma ciência, empírica e interdiscipli-
nar, que se baseia na análise e observação da realidade, interpretando,

242
sistematizando e valorando os dados que produz, e, que, portanto,
não existe uma ciência criminológica, mas várias teorias criminoló-
gicas distintas, com objetos reais diversos e métodos diferentes de es-
tudo. Está relacionada a valores e conflitos de interesse (ou seja, de
relações sociais materiais) da sociedade. O que simboliza, simultanea-
mente, a controvérsia e a diversidade.
Assim, a função explícita da criminologia é o estudo das normas pe-
nais e sociais que estão relacionadas ao processo de criminalização do
comportamento desviante, desde a criação da norma proibitiva, na sua
forma e conteúdo, até seus efeitos; sendo sua função implícita dar supor-
te de aparência científica às atividades de controle social formalizado.
Nesse sentido, a criminalização é o resultado de processos de de-
finição e seleção que escolhem determinados indivíduos aos quais se
atribui status de criminoso. Esses processos se realizam por três fa-
ses distintas: a criminalização primária (criação dos tipos penais), a
criminalização secundária (que se relaciona com a seletividade penal
realizada pelos órgãos do controle social, como a Polícia, Ministé-
rio Público e Poder Judiciário) e, por fim, a criminalização terciária
(decorrente do ingresso de indivíduos no sistema prisional, e que se
mantêm pela rotulação/ estigmatização).
Na medida em que busca compreender as razões pelas quais alguém
toma uma postura contrária aos valores do grupo, a criminologia extra-
pola os limites do direito penal, obrigando uma imersão na realidade so-
cial para compreender as normas sociais colocadas e o comportamento
desviante. Assim, a postura que assumimos é a de considerar que o ob-
jeto da criminologia refere-se tanto ao comportamento delitivo, como
ao comportamento desviante, pois o comportamento anti-social não
se resume ao que está definido como delitivo. Assim, o delito pode ser
compreendido, dialeticamente, como construção e como realidade.
Desta forma, a pergunta que orienta o texto é: Como o filme Ba-
curau nos ajuda a refletir sobre o crime, o controle social e os limites
da ideologia da defesa social?

243
Recorremos aos textos mobilizados ao longo da disciplina, em es-
pecial, no diálogo com Baratta, ao filme Bacurau e as discussões pro-
piciadas pelo cine-debate. O objetivo central é desmistificar as múlti-
plas violências propiciadas pelo Estado e pelas elites dominantes, no
momento de impor seu projeto colonizador.
Portanto, o desafio está em construir uma teoria materialista (eco-
nômico-política) do desvio, dos comportamentos socialmente negati-
vos e da criminalização, como um caminho para a adoção do ponto
de vista das classes subaternizadas e garantia de uma práxis teórica e
política alternativa.

TOMADA INICIAL: QUEM É ESSA GENTE?


Quem nasce em Bacurau é o quê? É gente!
(BACURAU, 2019)

Bacurau (2019)24 é um filme brasileiro dirigido por Kleber Mendonça


Filho e Juliano Dornelles. Localizado na cidade de Serra Verde, no
agreste pernambucano, o Povoado Bacurau, inexplicavelmente some
do “mapa” e passa a sofrer uma série de acontecimentos misteriosos
(caminhão-pipa todo baleado, forasteiros desconhecidos, comunica-
ção interrompida e nativos baleados e mortos) que ameaçam ainda
mais a (re) existência daquela população.
Em um primeiro momento somos apresentados a uma socieda-
de matriarcal, que chora a perda de Carmelita (Lia de Itamaracá) e
de tudo o que ela representava. Assim como elucida seu filho, Plí-
nio (Wilson Rabelo) “(...) deixou em sua descendência médico, arqui-
teto, pedreiro, puta e michê – só não deixou ladrão.” E assim nessa

24.  Filme premiado e reconhecido. Em 2019 recebeu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes,
em 2020 vence em seis categorias no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e também leva o
prêmio de melhor filme estrangeiro nas premiações do New York Film Critics Circle Awards
e ARRI/Osram Award.

244
pluralidade de gentes é que encontramos a coletividade de Bacurau,
que vive em paz com médicas, professores, prostitutas, crianças e ido-
sos; e que pela diversidade e coletividade constrói seus sentidos de
vida e proteção comunitária.
Durante o funeral as vozes ecoam a música de Sérgio Ricardo, “Bichos
da Noite” (1967): “São muitas horas da noite/ são horas do bacurau”.
Bacurau, também conhecido como curiango, é um pássaro com há-
bitos noturnos, muito visto na região do cerrado. Espécie que costuma
viver no chão, onde facilmente se camufla em meio às folhagens25.
A simbologia do nome vai além da canção. O espaço que mantém
o pássaro seguro é o mesmo que os habitantes de Bacurau utilizam
para refúgio, o chão, que carrega as raízes daquele povo. Do fundo
falso do museu sai à força que combate o estrangeiro e a luta por nada
de cima para baixo, tudo de baixo para cima ganha personificação.
Quem é essa gente? Essa é a gente que foi estereotipada durante a
construção da identidade nacional pela sua origem geográfica. Pauta-
da na violência simbólica, Bourdieu afirma que a região é uma cons-
trução simbólica de um determinado grupo dominante. (BORDIEU,
1989) A dominação que tem como ferramentas a estigmatização e a
exclusão para enfraquecer e aniquilar o outro.

TOMADA DOIS: O PREFEITO E O REFLEXO DO ESTADO


Você quer viver ou morrer?
(BACURAU, 2019)

O cinema e a teledramaturgia brasileira são criadores de políticos fic-


tícios que ganham vida, notoriedade e (até) votos. Na novela O Rei
do Gado (1996) o Senador Roberto Caxias (Carlos Vereza) foi um

25.  ALVES, Vitor. Bacurau, ave noturna. Disponível em: https://www.portaldosanimais.


com.br/informacoes/bacurau-o-passaro-noturno/.Acesso em 12 de jan de 2021.

245
político dedicado e defensor dos direitos das minorias, envolvido na
luta pela reforma agrária. Totalmente oposto a figura do prefeito de
Bacurau, Tony Jr.(Thardelly Lima) o qual muito se assemelha ao pre-
feito de Tubiacanga, em Fera Ferida (1993)26 Feliciano Mota (Tarcísio
Meira) que convence a população a entregar suas economias para a
construção de uma mineradora na cidade e logo acontece a entrega
das suas riquezas que são convertidas em dólares.
Tony visita Bacurau a procura de votos e como um pior do assis-
tencialista, leva alimentos vencidos, livros velhos e sua demagogia.
Ele é recebido por uma cidade vazia, que se esconde diante do seu
jingle eleitoral e promessas superficiais.
A caricatura de prefeito é construída através do reflexo do Estado
brasileiro que exerce o papel de “administrador da morte” (ZAFFA-
RONI, 2012: 68) e tem a sua conduta positivada, assim como exempli-
fica Bertollt Brecht

Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tiran-


do o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo tra-
balhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra etc.
Só a primeira é proibida por nosso Estado (BRECHT, 2020)

As violências são muitas. O prefeito utiliza-se também da sua do-


minação de gênero e leva Sandra a força, diante do silêncio dos opri-
midos, o opressor naturaliza uma violência típica de interior, sob a
cafetina que pede pagamento e de Domingas que ameaça caso ma-
chucarem a garota. O despejo dos livros em frente à escola é a cena
mais violenta do filme. É o retrato do Brasil e de como ele trata a sua
educação pública. A falta de água é cena real da destruição das priva-
tizações e da entrega dos nossos recursos naturais e de sobrevivência.

26.  LISTA: Relembre os maiores políticos da ficção nas tramas da Rede Globo. Disponível
em http://redeglobo.globo.com/novidades/noticia/2010/09/lista-os-politicos-da-ficcao-
-nas-eleicoes-quem-levaria-o-seu-voto.html.Acesso em 12 de jan de 2021.

246
Os alimentos vencidos comprovam a falácia de um Brasil que voltou
ao mapa da fome.27
E nos dizeres do prefeito, Bacurau tem a melhor biblioteca da re-
gião e tantos outros motivos para sua reeleição, por isso é que Zaffa-
roni (2007: 77) afirma que “os políticos – presos na essência competi-
tiva de sua atividade – deixam de buscar o melhor para preocupar-se
apenas com o que pode ser transmitido de melhor e aumentar sua
clientela eleitoral”.
O prefeito se assemelha aos comportamentos intitulados pela
criminologia crítica como socialmente danosos, que pertencem ao
processo de exploração capitalista. Assim como na lógica do sistema
penal, a sociedade também é construída e reafirmada sobre os pos-
suidores de poderes econômicos, políticos e familiares. Como explica
Baratta:

privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do proces-


so de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos de
indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da
acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização,
principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas.
(BARATTA, 2002:165)

O Estado segundo a teoria marxista está sob os interesses de uma


ideologia dominante, que controla os meios de produção e os instru-
mentos de dominação simbólico-ideológico. Os responsáveis são as
classes dominantes que mantém o status quo exercendo um conjunto
de políticas de controle social, que tratam as classes subalternizadas
como inimigas, nas palavras de Achille Mbembe:

27.  BRASIL DE VOLTA AO MAPA DA FOME. Disponível em https://radis.ensp.fiocruz.br/


index.php/home/noticias/brasil-de-volta-ao-mapa-da-fome. Acesso em 12 de jan de 2021.

247
A noção de biopoder será suficiente para designar as práticas contem-
porâneas mediante as quais o político, sob a máscara da guerra, da resis-
tência ou da luta contra o terror, opta pela aniquilação do inimigo como
objetivo prioritário e absoluto? A guerra, não constitui apenas um meio
para obter a soberania, mas também um modo de exercer o direito de
matar. Se imaginarmos a política como uma forma, devemos interrogar-
-nos: qual é o lugar reservado à vida, à morte e ao corpo humano (em
particular o corpo ferido ou assassinado)? Que lugar ocupa dentro da
ordem do poder (MBEMBE, 2017: 108).

Há uma guerra invisível e uma banalização da política da morte. O


poder necropolítico do Estado escolhe quem vive e quem morre

o poder necropolítico opera por um gênero de reversão entre vida e mor-


te, como se a vida não fosse o médium da morte. Procura sempre abolir a
distinção entre os meios e os fins. Daí a sua indiferença aos sinais objetivos
de crueldade. Aos seus olhos, o crime é parte fundamental da revelação, e
a morte de seus inimigos, em princípio não possui qualquer simbolismo.
Este tipo de morte nada tem de trágico e, por isso, o poder necropolítico
pode multiplicá-lo infinitamente, quer em pequenas doses (o mundo celu-
lar e molecular), quer por surtos espasmódicos - a estratégia dos pequenos
massacres do dia-a-dia, segundo uma implacável lógica de separação, de
estrangulamento de vivissecção, como se pode ver em todos os teatros
contemporâneos do terror e do contraterror (MBEMBE, 2017: 65).

A lógica em Bacurau é a de um Estado que sua principal política é


a da destruição de inimigo criado pelas classes dominantes, a mesma
lógica do sistema penal. Portanto, fica evidente, a ausência do Estado
Social, materializador dos direitos sociais, enquanto o Estado Máxi-
mo Penal, que tem o poder de definir quem vive e quem morre, se
faz presente pela autorização do prefeito de retirar Bacurau do mapa,
de permitir que estrangeiros viessem brincar de caçada de humanos.

248
Assim, podemos verificar cair por terra o primeiro princípio que
sustenta a ideologia da defesa social: o princípio da legitimidade. De
acordo com esse princípio, o Estado está legitimado a fazer uso do
monopólio do poder punitivo para garantir a paz social. Mas, se o
Estado dos direitos sociais está ausente, e são as comunidades, sobre-
tudo as subalternizadas, quem estabelecem suas lógicas próprias de
regulação social, organização interna, de administração de espaço,
etc, como falar da legitimidade do Estado para promover a paz so-
cial, já que ele é a fonte da desordem dos direitos? Então, a dualidade
do Estado Máximo Penal/ Mínimo Social, nas palavras do Wacquant
(2003) se faz presente e legitima a própria a comunidade a constituir
suas estratégias de sobrevivência e resistência, uma forma própria de
organização de baixo para cima dos seus direitos, e portanto, do seu
Estado. Portanto, a partir de Bacurau há uma possibilidade real de
negação do Estado burguês, e do próprio direito.

TOMADA TRÊS: OS ESTRANGEIROS


Por que vocês estão fazendo isso?
(Bacurau, 2019)

A cidade de Bacurau tem na figura dos estrangeiros, um velho conhe-


cido brasileiro, o colonizador. E a maior simbologia está ao retirar a
cidade do “mapa”. Assim, ela pode ser descoberta pelo colonizador,
que começa o processo de invasão e genocídio da população originá-
ria em nome de uma superioridade cultural eurocêntrica. Processo
idêntico ao das colônias

No mesmo contexto, as colônias são semelhantes às fronteiras. Elas são


habitadas por “selvagens”. As colônias não são organizadas de forma
estatal e não criaram um mundo humano. Seus exércitos não formam
uma entidade distinta, e suas guerras não são guerras entre exércitos

249
regulares. Não implicam a mobilização de sujeitos soberanos (cidadãos)
que se respeitam mutuamente, mesmo que inimigos. Não estabelecem
distinção entre combatentes e não combatentes ou, novamente, “inimi-
go” e “criminoso”. [...] Em suma, as colônias são zonas em que guerra
e desordem, figuras internas e externas da política, ficam lado a lado ou
se alternam. Como tal, as colônias são o local por excelência em que os
controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos - a zona
em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço
da “civilização” (MBEMBE, 2017: 35).

A questão colonial além de explicar a necropolítica, exemplifica


todo e qualquer processo de violência:

[...] que a ordem democrática, a ordem da plantação e a ordem colonial


mantiveram, durante muito tempo relações geminadas. Estas relações
estão longe de ter sido acidentais. Democracia, plantação e império co-
lonial fazem objetivamente parte de uma mesma matriz histórica. Este
fato originário e estruturante é central a qualquer compreensão históri-
ca da violência da ordem mundial contemporânea (MBEMBE, 2017: 43).

E no jogo que se ganha pontos por mortes, a legitimidade dos es-


trangeiros está no “direito soberano de matar não está sujeito a qual-
quer regra nas colônias. Lá, o soberano pode matar a qualquer um
ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas
legais e institucionais” (MBEMBE, 2017: 36).
Os estrangeiros têm na sua equipe os estrangeiros nativos, que são
um casal sulista de forasteiros que vão a Bacurau e instalam o chip
que corta o sinal de comunicação. Durante a passagem por Bacurau é
nítido o complexo de superioridade da dupla que se apresenta como
sudestina e quando se recusam a visitar o museu, também deixam
claro que a história daquela gente não importava. Eles se identificam
com o estrangeiro e odeiam os mesmos, são os “narcisos às avessas,

250
que cospem na própria imagem” (RODRIGUES, 1993: 34) e possui-
dores do complexo de vira-lata que para Rodrigues “por complexo de
vira-lata entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, vo-
luntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores
(...)”. (RODRIGUES, 1993: 62)
No caminho de volta os dois forasteiros matam dois nativos e no
encontro com o grupo são surpreendidos pelos estrangeiros

Bob: Os dois que vocês mataram… Eram seus amigos? Forasteiro: Ami-
gos? A gente não mata amigos no Brasil. [pausa]. Mas não, a gente não
é dessa região. Willy: De que região vocês são? Forasteiro: A gente é do
sul do Brasil. Uma região muito rica. Com colônias alemãs e italianas.
Somos mais como vocês. Willy: Mais como a gente? [Risos] Forasteiro:
Sim! Willy: Eles não são brancos, são? Como podem ser como a gen-
te? Somos brancos. Vocês não são brancos. Eles são brancos? Terry: Eu
não sei eles… Bom… Sabe de uma coisa… Eles meio que parecem bran-
cos… Mas não são. Os lábios e o nariz dela entregam, tá vendo? Eles são
mais para mexicanos brancos (BACURAU, 2019).

E logo após os identificados como opressores tem o seu reconhe-


cimento de oprimidos e são mortos. E na verdade evidência na lógica
eurocêntrica o racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) com os latinos,
que também se faz presente na lógica da necropolítica

racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício


do biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na economia do
biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornas
possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a
condição para aceitabilidade do fazer morrer” (MBEMBE, 2018: 18).

A visão do estrangeiro sobre os moradores de Bacurau é uma vi-


são do não humano, que tudo é permitido diante da superioridade

251
racial. O inimigo é criado na figura do outro, a definição de conduta
adequada e inadequada, assim como toda lógica binária é mais um
instrumento de dominação.
Para entender os Brasis, precisamos entender quem são os inimi-
gos da ideologia dominante, como é feito a noção e a definição dos
criminosos/vítima, mal/bem, errado/certo e o inferno/céu. O Brasil
é constituído por Bacuraus. Assim, não há que se falar em princípio
da igualdade, já que na geopolítica do sistema mundo, impera o po-
der de definição de definir quem é o desenvolvido e quem é o primiti-
vo, não humano, coisa, que pode ser exterminada.

TOMADA CINCO: LUNGA


Estamos sendo atacados.
(BACURAU, 2019)

No início do filme quando Teresa retorna a Bacurau, na rádio do ca-


minhão, Lunga é apresentado como um criminoso fugitivo que está
sendo procurado. O desenvolvimento da história leva Pacote e os
moradores de Bacurau a recorrem ao poder e a resistência de Lunga,
que é uma personagem sem estereótipos de gênero, um “cangaceiro
queer”.28
Mas, que vive nas margens, longe do território de Bacurau, que
mesmo com toda a sua coletividade ainda vivem sobre a lógica do
bem x mal, e oprime e rotula as condutas ditam como criminosas na
visão hegemônica e assim mantém a (re) produção das desigualdades
sociais, com punições ainda mais gravosas sobre o aspecto de gênero,
raça e classe. Assim como indica Ribeiro

28.  Silvero Pereira: Há uma revolução LGBT+ no sertão. Disponível em: https://brasil.
elpais.com/brasil/2019/09/23/cultura/1569265659_610072.html. Acesso em 12 de jan
de 2021.

252
Zaffaroni indica que o processo seletivo de apuração dos comporta-
mentos delituosos na América latina adquire uma característica ainda
mais violenta, haja vista o grau acentuado de controle, ou até mesmo
de extermínio, das classes marginalizadas pelos organismos repressores
do Estado. Isto se dá por causa dos processos colonização e exploração
econômica que os países latinos vêm sofrendo ao longo do tempo, abrin-
do margem para a criação de um sistema penal deveras arbitrário (RI-
BEIRO, 2010: 972)

Bacurau não conta a história de Lunga, mas ela é a mesma que se


repete fora das telas de cinema, principalmente em países subdesen-
volvidos que foram colonizados.

A posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação,


falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar e es-
colar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais
baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia
liberal contemporânea são apontados como as causas da criminalidade,
revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de crimino-
so é atribuído (BARATTA, 2002:165)

Nessa perspectiva, também Baratta (2002), atribuí a criminalida-


de como o que será parâmetro para a rotulação e definição do bem
e do mal

O que é a criminalidade se aprende, de fato, pela observação da reação


social diante de um comportamento, no contexto da qual um ato é in-
terpretado (de modo valorativo) como criminoso, e o seu autor trata-
do consequentemente. Partindo de tal observação, pode-se facilmente
compreender que, para desencadear a reação social, o comportamento
deve ser capaz de perturbar a percepção habitual de routine, da “reali-
dade tomada-por-dada” ou seja, que suscita, entre as pessoas implicadas

253
indignação moral, embaraço, irritação sentimento de culpas e outros
sentimentos análogos. (BARATTA, 2002: 95).

Bacurau vive na dualidade do princípio do bem e do mal, pois ao


mesmo tempo em que afasta Lunga (mal) para o convívio harmô-
nico da sociedade (bem) recorre a ele como o protagonista na luta
pela volta da tranquilidade. Ele é a fonte da resistência, dos movimen-
tos de contra-hegemonia que orienta as ações do povoado para fazer
frente aos ataques e violências sofridas.
Lunga mesmo na sociedade que convive com putas, padres e pro-
fessores é criminalizado. O desvio é atrelado a Lunga e ele se torna
etiquetado pela teoria do labelling approach

[...] o Labelling parte dos conceitos de ‘conduta desviada’ e ‘reação so-


cial’ como termos reciprocamente independentes, para formular sua
tese central: a de que o desvio – e a criminalidade – não é uma qualida-
de intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica pré- -constituída
à reação social (ou controle social), mas uma qualidade (etiqueta) atri-
buída a determinados sujeitos através de complexos processos de intera-
ção social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção
(ANDRADE, 1997:205)

Os estereótipos que recaem sobre Lunga o tornam o mal que


deve ser combatido em nome de um modelo ideal de sociedade, que
o afasta de Bacurau, o que Baratta denomina como “criminalidade
identificada e perseguida” (BARATTA, 2002: 102) Bacurau se reco-
nhece no Brasil a qual

dentro da proposição de Friz Sack, portanto a criminalidade, como rea-


lidade social, não é uma entidade pré-constituída em relação à atividade
dos juízes, mas sim uma qualidade atribuída por estes últimos a determi-
nados indivíduos (BARATTA, 2002: 107)

254
Vera coloca a concepção liberal burguesa como responsável pela
criminalização das classes subalternas

a concepção liberal burguesa da questão criminal priorizou os interes-


ses das classes dominantes, imunizou seus comportamentos socialmente
danosos e dirigiu o processo de criminalização para as classes subalter-
nas (BATISTA, 2015: 90)

A sociedade Bacurau mesmo sendo subalternizada e invisível aos


olhos das políticas públicas também criminaliza. Lunga vive as mar-
gens de Bacurau, o princípio da prevenção para os moradores é o
afastamento. E essa metáfora ganha ainda mais força com Lunga sen-
do considerado um fora da lei, assim como explica Baratta:

A sentença cria uma nova qualidade para o imputado, coloca-o em um


status que, sem a sentença, não possuiria. A estrutura social de uma so-
ciedade, que distingue entre cidadãos fiéis a lei e cidadãos violadores da
lei, não é uma ordem dada, mas uma ordem produzida continuamente
de novo.(BARRATA, 2002: 107 e 108)

Lunga representa todas as figuras fronteiriças, que mesmo nas


sociedades mais harmônicas ainda se encontram nas margens e (r)
existem a necropolítica do Estado e dos estrangeiros. O periférico,
quilombola, negro, indígena, trans e Lunga são os atores de todos os
processos de resistência e subversão de uma sociedade que os crimi-
naliza mas que durante a luta recorre ao protagonismo de quem vive
as margens do perigo constante.

TOMADA SEIS: QUAL VIOLÊNCIA É CRITICADA?


A gente tá sob (o efeito de) um poderoso psicotrópico, e você vai morrer.
(BACURAU, 2019)

255
Bacurau reage à ameaça. O povo de Bacurau corta cabeça. Resiste
dentro da escola e mostra o poder da educação, vai para dentro do
museu para que a história não seja esquecida. E a violência da classe
subalternizada assusta aos críticos. Parece ironia. Não é. Aceitamos a
violência do colonizador, militarizado, mas não a do colonizado que
luta como o que tem. A violência não é do povoado

Daí que estabelecida a relação opressora, esteja inaugurada a violência,


que jamais foi até hoje, na história, deflagrada pelos oprimidos.
Como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são resultado
de uma violência? Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação
de violência que os conforma como violentados, numa situação objetiva
de opressão.
Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não
se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não
são reconhecidos pelos que os oprimem como outro. (FREIRE, 2015: 58)

Somente a autodefesa assusta, as mortes dos nativos e os pontos


acumulados são uma questão que Zaffaroni já indagava e ecoo nova-
mente, “há certos “cadáveres” que não entram para a conta das vio-
lências e genocídios?” (ZAFFARONI, 2012: 536)
A eliminação de subjetividades e identidades do povo é uma arma
para manter o status quo da classe dominante. A banalização da violên-
cia do colonizador é resultado de um “projeto de Estado” (FLAUZINA,
2008) que tem como o mesmo objetivo dos estrangeiros, o genocídio
da população das margens, quilombolas, favelados, indígenas e negros.
Bacurau, não pontua sobre as mortes e nem as comemora. A nos-
sa apatia de povo brasileiro continua, até com o líder dos estrangeiros
Michael que é recebido por Domingas com uma mesa com sucos e
comidas.
A violência em Bacurau é promovida pelas ausências e presenças
do Estado.

256
À GUISA DE CONCLUSÃO: OS “BACURAUS” DO BRASIL
NÃO ESTÃO NO MAPA

“Bacurau, se for vá na paz!”

Bacurau nos ensina a ver as realidades, como uma necessidade de re-


sistir a um olhar sobre a sociedade como homogênea, uma vez que
ela é decididamente diversa, se é que escolhermos olhar através das
diferentes experiências de vida dentro desse acontecimento huma-
no, o qual traduz, não apenas diferentes versões de possibilidades de
reprodução da vida. Até mesmo algumas formas diferentes da nor-
ma cuja situação se pauta por preconceito, justificando até mesmo
banimento e modos de violência extrema, sempre negadora de sua
própria possibilidade de reprodução humana e que ainda assim pode
chegar ao ponto de ser pensada como um “defeito a ser corrigido” e
ser tomada como “fora” da própria realidade social real, embora este-
ja dentro dela.
Assim, Bacurau nos ensina, do ponto de vista da teoria crítica, que
o apagamento social de experiências e memórias dos segmentos su-
balternizados é uma estratégia das relações de dominação, no sentido
de afirmarem seus interesses contra a classe que atingem e oprimem
para fazer valer a ideia de generalização e universalização das ideias
dominantes como única verdade socialmente válida. Nesse sentido,
Bacurau exemplifica e sintetiza três dialéticas da teoria crítica.
A primeira, a da Aparência versus Essência , indica o fundamento de
não se acreditar na realidade que é demostrada nos registros de mídia
e de posicionamentos apontados como “normais” e “aceitos” de cima
pra baixo e ratificados pelas mídias (só na América Latina, até recen-
temente, algo como cerca de não mais do que nove ou dez famílias di-
videm o monopólio das maiores e mais reproduzidas mídias tradicio-
nais) e nas formas mais atualizadas de comunicação via redes sociais a
coisa fica mais estreita e pouco mais de umas três ou quatro platafor-
mas dominam a distribuição da informação no planeta). Desta forma,

257
é preciso reconhecer as muitas e múltiplas versões do existir social
para poder se chegar ao ponto de afirmar que estamos próximos de
conhecer de fato a sociedade como diversidade. E é aí então que a
dialética, considerando os interesses da ideologia dominante, precisa
tomar como referência o fato de que a realidade é aquilo, escondido
intencionalmente e que se apresenta, portanto, como nada mais do
que uma aparência que quer se apresentar como universal, e então
é por isso que temos que seguir em frente, indo além, para buscar o
que determina de fato a realidade tal qual está sendo apresentada, por
quem e para ganhar o que? Que projeto e que interesses estão embu-
tidos e que precisam ser escondidos? O que está em jogo????
Nesta perspectiva podemos tomar as estranhas afirmações identi-
ficadoras da realidade história brasileira em cada período. Por exem-
plo, porque o êxodo rural dos anos 50 e 60 apresenta os nordestinos
como despossuídos e sem caráter civilizado como se fossem os culpa-
dos por “encher e saturar as cidades grandes” com sua pobreza e sua
baixa formação instrucional aponto de trazerem tormento e atraso
para todo o país, quando na verdade foram deslocados de sua con-
dição de reprodução sustentável onde viviam em terras alugadas da
qual foram expulsos e tocados como gado, devido a mudanças no
modelo econômico. Foram simplesmente proletarizados (separados
das suas condições de reprodução da vida com um pedaço de terra)
e sem qualquer compensação juridicamente razoável e cabível. Nes-
sas condições externas das quais não partilharam nenhum proveito
além de se tornarem despossuídos e sem chances de vida e trabalho
onde nasceram e que diante de nenhuma alternativa – nem legisla-
ção trabalhista de proteção que não por acaso chegou bem mais tarde
do que em relação ao meio urbano – passaram a ser vistos como “o
grande problema social nacional” e por conseguinte como o princi-
pal fator de atraso ao desenvolvimento nacional. Quando, na verda-
de, visto a contra pelo, eles foram, na real, um dos mais importantes
fatores do desempenho da industrialização e justamente porque, por

258
não receberem nenhum suporte em termos de habitação popular ou
apoio sindical, tornaram-se o fator mais barateado que a industriali-
zação usou para se desenvolver no país tendo essa condição mórbi-
da da precarização planejada e provocada como uma das principais
vantagens.
Até hoje se considera os nordestinos e o êxodo rural como uma es-
colha pessoal e equivocada, quando foi na verdade, a condição estra-
tégica de barateamento contábil a favor da instalação da industrializa-
ção. Sua pobreza e favelização, portanto, foi provocada e nunca uma
escolha pessoal por partes deles. Em outras palavras, esses nordesti-
nos desconsiderados e estigmatizados foram, na verdade, a chave do
acontecimento industrial e nessa linha demostram, que na verdade a
maior covardia caracteriza nossas elites e não a responsabilidade deles
pelo nosso atraso!
Quem quiser acreditar nisso vai acreditar na ideologia dominante,
como a gente não quer acreditar temos que desmontar a realidade.
Então tem que ter um exercício de estudo, de reflexão, ninguém faz
um estudo de criminologia crítica e faz um direito alternativo sem
muito estudo.
A segunda dialética é a do “Todo versus a Parte”. Vejam, é aí que
aparece firmemente a ideia de que Bacurau emerge no Brasil como
diversos “Bacurais” que se repetem. Bacurau pode ser apenas o
que se está vendo diretamente ali naquele lugar mostrado no filme
como específico, mas de repente tudo vai sendo aberto e gerando
conhecimento que vai além daquilo que se vê para sobretudo para
quem conhece o país e os segmentos subalternizados e suas formas
de exclusão social. Aí então as situações se complexificam, tudo co-
meça a ficar estranho e fora da medida do “normal”.
Começa a fazer sentido que o que se tem diante para considerar
e analisar é mais contraditório e difícil de se perceber. Bacurau fica
grande e traz elementos de fora da cena e que só podem ser com-
preendidos como externos mas ao mesmo tempo internos. Aquilo

259
que no ambiente urbano, onde esteve o bando de Lunga (moço de
origem local reconhecida e de conhecimento de sua infância, era cri-
minalizado, mas ali era protegido, por lealdade mas não eram inte-
grados). O povo de Bacurau tinha ciência do que fizeram e sabiam
que era “errado”, mas os escondiam e, entretanto, não se envolviam.
Sabiam que eram “perigosos” e “cuidavam”, mas não deixavam se
“misturar” com a vida deles. Mas tudo muda diante de uma situação
radical e de extermínio definida pelos “outros” e não por eles. Para
eles tudo se resumiu a uma necessidade defesa que mudou o para-
digma de comportamento e por isso foram “buscar” suas reservas de
defesa numa violência determinada por fora e sem saída e por isso
foram procurar o bando de Lunga como estratégia defensiva e que
passa a ser considerado então como sua própria reserva de violência
legítima, dada a radicalidade da situação de vida ou morte para um
lugar que nem no mapa se situava ou era fisicamente reconhecido.
Só mediante esse perigo extremo é que os moradores de Bacurau
entenderam que era necessário se armar – e foi possível perceber como
eles eram tradicionalmente pacíficos em sua rotina identitária. Enten-
deram essa necessidade, mas não eram adeptos dessa forma de ação
a ponto de terem antes disso aberto o lugar para os “marginais” e só
mediante o perigo de genocídio que aquele elemento de marginalidade
acabou sendo incorporado estrategicamente como parte deles e como
coordenação da ação armada mais qualificada. Isso é o que mostra em
que medida o todo se reconstitui e se impõe mesmo naquele pedacinho
de realidade localizada - o modo de produção e a sociabilidade capita-
lista se reconstitui, na sua escala global naquele pedacinho da realidade
que vai ser cortado, e que então pode passar a ser como parre da his-
tória mais geral de todo o mundo, e deixa de ser neste momento uma
realidade apenas singular e comum passando a ser também e simulta-
neamente parte da totalidade histórica que aparentemente ali era des-
conhecida. Assim, cada parte da realidade singular passa a demonstrar
que também reproduz dentro de si o todo mais amplo das relações de

260
reprodução do capital em seus diferentes estágios de acumulação cujas
características devem de ser consideradas: industrial, financeiro ou neo
extrativista coberto por discursos e explicações forjadas pelo neolibera-
lismo como sua maior ideologia hegemônica.
Em terceiro lugar define-se a dialética do Presente versus o Passado
e é quando as formas de compreensão devem ser ponderadas porque
a história humana não se conduz por uma sequência cronológica ou
por uma forma de acumulação de fatos em cima uns dos outros por-
que na verdade o passado não é um museu de guardados acontecidos,
etiquetados, classificados por descritores lógicos e coerentes. A his-
tória humana é acontecimento permanentemente tensionado e con-
traditório (enquanto existir a sociedade de classes onde uma peque-
na parte explora a outra e maior parte), e por conseguinte onde, de
algum modo, a hegemonia reproduzida nas relações de dominação
procuram fazer crer que apenas os vencedores devem ser levados em
conta. Não nos informam que o resultado final é o ponto de chegada
entre os que lutavam (e os subalternizados sempre resistem e lutam,
porque o humano, diferente dos animais e das plantas tem como con-
dição basilar inerente a punção libertária). E é por isso que dialetica-
mente a história precisa ser pensada como embate (assim também o
Estado, a Lei etc....) e, nesta medida o presente deve ser considerado
não como a vitória final dos dominantes, mas como parte dessa luta
maior, independente de quem venceu ou não!
E nesta medida é o presente quem passa a dirigir a reflexão e a
busca de conhecimento gerada e acontecida no passado e não o con-
trário. Em outras palavras, o presente é o guia das perguntas estraté-
gicas através das quais devemos buscar no passado o seu processo de
constituição. Aquilo que foi mantido no presente remete a possibili-
dade de que aquilo que não foi mantido perde significância estratégi-
ca. E neste sentido é que Marx afirma ao contrário de Darwin e sua
proposta de evolucionismo linear que é o Homem quem pode expli-
car o macaco e não o contrário.

261
O passado não pode ser linear, o presente é a síntese do passado,
a realidade é a síntese de determinação que não aparece e cada parte
da realidade é expressão da totalidade significativa se manifestado de
alguma maneira.
Portanto, para o exercício da Teoria Crítica torna-se muito impor-
tante lembrar que ninguém consegue ser um crítico da realidade se
não for o melhor do seu oficio. Na verdade quem quiser trabalhar
com a teoria critica vai precisar estudar muito, absurdamente, vai ter
que ler os autores conservadores para entender como eles articulam
os seus pensamentos, as relações de dominação como elas se estabe-
lecem, além de toda leitura a ser feita para compreender epistemolo-
gicamente a própria Teoria Crítica.
A partir do desaparecimento do mapa, Bacurau nos permite com-
preender o mapa como ideia e como construção identitária e de clas-
se. Estar no Mapa significa pertencimento, indicação, identidade,
definição de quem é e de quem se trata. De que experiência se está
falando e sendo colocada e localizada ali, como processo desenvolvi-
do e acontecido e como espaço, lugar, lugar de fala, lugar de vivência,
lugar de reprodução. Lugar de escolha. É uma identidade comunal,
de classe, de gênero, de raça, de cultura, história, que ajuda no pro-
cesso de identificação enquanto ser social.
A impossibilidade de reconhecimento, e de estar dentro de um mapa
localizado datado e situado na definição cartográfica do País, retira Bacu-
rau, enquanto parte da nação, do conjunto global dos direitos e deveres
do país. E permite, que as oligarquias do Brasil continuem a agir na re-
troalimentação entre o legal e o ilegal, impondo seu projeto conserva-
dor de “desenvolvimento”. É preciso que a gente sabia que as oligarquias
agrárias e rurais, possuem um braço legal que vai nos Congresso Nacio-
nais, no Senado e que vai fazer o golpe, mas que ela também possui seu
braço armado, nas mãos da segurança privada ou mesmo das milícias.
E por isso, nos cabe estudar as experiências concretas de resistên-
cia orgânica. Em Bacurau, ela está simbolizada em Lunga. Porque as

262
comunidades sobretudo as subalternizadas, elas sabem como se orga-
nizar, manter suas lógicas de organização internas, de administração
de espaço, do seu Estado. A negação do estadocentrismo e do direito
burguês centrismo tem que pensar a partir desses interesses que vem
de baixo. Essa contra hegemonia tem que se fazer considerando que
até mesmo o estado e o direito podem ser obstáculos e que o outro
estado e o outro direito, uma outra forma de ver precisa ser constituí-
da. E como dito anteriormente, tem que ser constituída com muito
estudo, muita leitura, com a razão e a compressão. A teoria é a nossa
metralhadora, a gente tem que ser bom de teoria, já que não somos
subalternizados. Mas a gente precisa da experiência concreta da con-
tra hegemonia para fortalecermos nossa aliança para romper com a
hegemonia da lógica dominante. Eles vão questionar a nossa teoria,
a experiência e as escolhas que eles vivem e é na tensão, e no conflito
que a gente vai chegar em algum lugar não é nunca passando a mão-
zinha na cabeça, tentando compreender. A guerrilha está rolando por
aí, as indicações de como pode ser o novo cenário do direto estão
sendo desenhadas nas comunidades, nos coletivos e nas experiências.
Atenção ao protagonismo indígena hoje no Brasil. Ele está entrando
na política tradicional não é para ser um deputado para ganhar di-
nheiro feito o Tiririca. Cuidado, cuidado estado burguês!

REFERÊNCIAS
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controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advo-
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BACURAU. Direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. São Paulo: Vi-
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade
do sistema penal. Rio de Janeiro. Editora Revan, 1991.
_____. O inimigo no direito penal. Tradução de Roberto Lamarão. Rio de Janeiro:
Revan, 2007.
_____. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Sa-
raiva, 2012.

264
9
PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO
A PARTIR DA TEORIA CRÍTICA:
AS CONTRIBUIÇÕES DA ESCOLA
TEÓRICO-METODOLÓGICA DO
PPGSD E DO OBSERVATÓRIO
FUNDIÁRIO FLUMINENSE (OBFF)
Ana Maria Motta Ribeiro
Emmanuel Oguri Freitas
Wilson Madeira Filho
Nadine Monteiro Borges
Roberta Brandão Novaes

Este texto aborda a relação entre pesquisa empírica e Teoria Crítica


no Direito. Trata-se da compilação de um debate ocorrido na mo-
dalidade remota como atividade da Jornada Virtual da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), da qual os (as) autores (as) deste
trabalho participaram. Tal evento, realizado entre julho e agosto de
2020, consistiu em um esforço de apresentar à comunidade acadêmi-
ca e à sociedade mais ampla os resultados de ensino/pesquisa/exten-
são desenvolvidos no âmbito da universidade.
As falas transcritas se condensam e se articulam, então, como
capítulo deste e-book, com o intuito de compartilhar com o público
leitor as reflexões e experiências acumuladas pelos (as) falantes do
referido debate, em torno do tema que lhe conferiu o título. Mais
do que isso: objetiva-se, também, publicizar e registrar a perspectiva
de trabalho da Linha de Pesquisa Conflitos Socioambientais Rurais

265
e Urbanos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
(PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF), que se consti-
tui como uma Escola de Pesquisa de Campo, Extensão e Assessoria
na Teoria Crítica. Como tradição, assume a proposição de formar
pesquisadores que entendem os conflitos sociais como lócus privi-
legiado de compreensão do universo social no qual imergem junto
aos sujeitos pesquisados.
Assim, o fio que conduz a estruturação das falas e desta escrita, se
inicia com a retomada da trajetória de formação do PPGSD, conforme
o professor Wilson Madeira Filho, demonstrando uma certa gênese
daquela perspectiva. A professora Ana Maria Motta Ribeiro destaca,
em sequência, a dimensão da Teoria Crítica na produção de um co-
nhecimento empírico e teórico produzido naquela Linha de Pesquisa.
Mais especificamente, Ana Motta Ribeiro recupera a produção condu-
zida pelo Grupo de Trabalho Ecossocial (GT Ecossocial) articulado ao
Observatório Fundiário Fluminense (OBFF)29, por ela coordenado, a
partir da conjugação entre diferentes campos do conhecimento - Di-
reito, Sociologia, Antropologia, Literatura -, entre outros.
Neste ponto, a respeito do debate sobre o conhecimento produ-
zido como diálogo fecundo entre áreas disciplinares diversas, Nadine
Borges enfatiza o caráter interdisciplinar do PPGSD e seus efeitos na
sua aprendizagem como pesquisadora, relatando algumas experiên-
cias de trabalho de campo e a transformação da sua percepção en-
quanto advogada. Emmanuel Oguri finaliza a exposição discorrendo
sobre a pesquisa empírica que resultou na sua tese de doutoramento,
e sobre os sentidos da pesquisa militante no âmbito da Teoria Crítica.
Este é, portanto, um artigo de cunho teórico-metodológico que
busca elucidar as bases de onde partimos: a pesquisa empírica, a Teo-
ria Crítica, o engajamento enquanto pesquisadores e militantes na

29.  O OBFF é um grupo de pesquisa certificado pelo CNPQ e que pode ter o espelho acessa-
do pelo link: dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2889252236035704

266
produção do conhecimento potencialmente transformador a partir e
ao lado de grupos sociais subalternizados nos campos, nas florestas,
nas cidades.
Vale observar que a exposição oral, agora transformada em texto,
contou com dois professores e dois egressos do PPGSD/UFF. Como
professores, Wilson Madeira Filho e Ana Motta Ribeiro adotam a prá-
tica da pesquisa de campo conjunta, como equipe, ao lado de seus
orientandos (as). Ambos compartem variadas e repetidas experiências
de orientação, cujos produtos refletem as características de uma tra-
jetória de trabalho coletivo como chave dos resultados acadêmicos na
Teoria Crítica, construídos em pesquisas empíricas no Direito. Como
egressos, Nadine Borges e Emmanuel Oguri, ex-orientandos de dou-
torado de Wilson e Ana (casos da experiência de orientação compar-
tida), refletem as possibilidades surgidas da articulação entre pesquisa
empírica e Teoria Crítica, respectivamente, na prática jurídica e na
docência universitária.
De minha parte, me insiro neste debate como ex-aluna da gradua-
ção em Ciências Sociais da UFF, professora de Metodologia da Pes-
quisa em cursos de graduação em Direito e antropóloga. E essas di-
ferentes formas de inserção, embora conjugadas enquanto parte de
meu caminho formativo e trajetória profissional, vislumbram, cada
uma a seu modo, as maneiras singulares com que me apropriei da dis-
cussão aqui colocada. Quero destacar cada uma dessas formas porque
entendo que, ao fazê-lo, contribuo para elucidar as diversas possibili-
dades daquela apropriação. Deixo ao (à) leitor (a) o exercício da “ima-
ginação sociológica” derivada da criatividade dos contornos teóricos
e metodológicos propostos por este grupo.
Ao longo da graduação em Ciências Sociais, a participação em reu-
niões do OBFF e na disciplina que fiz com a professora Ana Maria Mot-
ta Ribeiro - Sociologia do Trabalho -, teve o efeito de aprofundar em
mim, por um lado, um senso do compromisso com a pesquisa de cam-
po e com os grupos sociais pesquisados; e por outro, me fez enxergar a

267
importância do investimento de leitura e a necessidade de certa pujan-
ça na formação intelectual de quem pesquisa. E o sentido do conheci-
mento que se faz pelo coletivo, no coletivo, para o coletivo.
A minha formação como antropóloga dialoga com a proposta do
OBFF na priorização do trabalho de campo. São variadas as formas
de produção de dados, técnicas de pesquisa empírica e construção da
escrita reproduzidas pelos pesquisadores daquele grupo, em suas dis-
sertações e teses. Como exemplos, podemos citar a observação parti-
cipante, pesquisa- ação, etnografias, histórias de vida, cartografias so-
ciais, descrições densas. Sabemos que boas pesquisas são, entre outras
coisas, boas articulações de problemáticas, opções teóricas, perspecti-
vas metodológicas, técnicas de pesquisa, cumprimento dos objetivos
propostos. Em suma, um quadro bem articulado de escolhas tendo
em vista os objetivos e resultados esperados nessa trajetória. E, neste
sentido, a Antropologia e o arsenal teórico-metodológico da discipli-
na fornecem, em boa medida, ferramentas que permitem a apreen-
são das vozes e experiências sociais a partir dos observados, tal como
tem sido feito pelo OBFF.
Como professora, meu interesse e envolvimento com a discussão
sobre a pesquisa empírica em Direito se tecem em torno do processo
específico de diálogo/compartilhamento/construção com estudantes
de graduação de ensinar-aprender a pesquisar e escrever a pesquisa,
o que continuamente me obriga a repensar, tendo em vista tais pro-
pósitos, as operações metodológicas, teóricas e epistemológicas que
informam a produção do conhecimento dentro dos parâmetros da
cientificidade (ou da objetividade) das Ciências Sociais e Humanas.
Convido todos e todas à leitura e à imersão neste trabalho coletivo
de resgate da memória do PPGSD, do OBFF e de sistematização das
bases da pesquisa empírica em Direito na Teoria Crítica.

Roberta Brandão Novaes


Feira de Santana, janeiro de 2021.

268
A Pesquisa empírica em Direito na Teoria Crítica e suas di-
mensões

Emmanuel Oguri: Bom dia a todos e todas! Aqui, tratamos do de-


bate “Pesquisa empírica em Direito e Teoria Crítica”. Estamos rece-
bendo o professor Wilson Madeira Filho, professor do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), doutor em Letras
e diretor até o início de 2020 da Faculdade de Direito da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Nós vamos conversar com a pesquisado-
ra Nadine Borges, que é doutora pelo PPGSD da UFF, pesquisado-
ra da UFRJ e fez parte da Comissão da Verdade. E vamos conversar
também com a professora Ana Maria Motta Ribeiro, que é líder do
Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) e professora do PPGSD.
Eu sou Emmanuel Oguri, professor da UEFS, doutor pelo PPGSD. A
ideia é que a gente possa discutir um pouco a pesquisa empírica em
Direito, mas dentro de um certo território, que é o território da Teo-
ria Crítica. A gente está chamando de Teoria Crítica aquela que pensa
a partir dos subalternizados, aquela que tem um viés de pensamen-
to baseado nos escritos ou de Karl Marx ou da Escola de Frankfurt,
ou da Teoria Crítica latinoamericana. Vamos começar esse encontro
com a apresentação do professor Wilson Madeira Filho. A nossa dinâ-
mica vai ser cada palestrante apresenta sua fala e ao final a gente vai
viabilizar um espaço para o debate. O tempo é curto, então a gente
vai direto aos palestrantes, e na minha fala eu abordo um pouco da
minha experiência de pesquisa no Pará, que foi a investigação que re-
sultou na minha tese de doutoramento no PPGSD. Então, tenham
um bom dia, tenham um bom debate e que a gente possa sair daqui
acumulando um pouco para pensar os momentos de crise, a situação
que vive o Brasil e tentar construir um futuro melhor do que esse que
a gente está vivendo. É com um pé no presente, olhando para os es-
combros do passado, que a gente vai projetar um futuro melhor para
o povo brasileiro. Professor Wilson, muito obrigado por acatar o nos-
so convite, eu agradeço aos expositores, que com presteza aceitaram

269
o chamado para participar desse espaço. É um momento muito difícil
para a universidade pública, então, quanto mais a gente puder produ-
zir, acumular conhecimento e trocar, é importante. Professor Wilson,
por favor.

Wilson Madeira Filho: Muito obrigado, agradecendo ao professor


Emmanuel Oguri pelo convite, esta é também uma oportunidade de
estar aqui conversando com amigos, vários parceiros de trabalho. E
Emmanuel é um grande parceiro, já de muitos anos; Ana Motta é
uma companheira permanente, realizamos pesquisa juntos há quase
vinte anos; e Nadine também, trabalhamos juntos há um bom tem-
po. Então é sempre uma oportunidade de estar aqui numa roda tão
afetuosa. Mas vamos à questão que foi colocada, a da pesquisa empí-
rica e crítica, as quais, entendo que estão de certa forma imbricadas.
Quer dizer, fazer uma boa pesquisa empírica, naturalmente recebe
um viés crítico. Porque estar de frente a questões afetas à realidade é
perceber essa realidade numa complexidade, e não de uma forma di-
recionada, ou meramente técnica. Mas eu vou abordar a questão atra-
vés de um breve histórico na UFF e de algumas frentes que se fizeram
importantes. É claro que para criar uma série de ações, faz-se necessá-
rio, num primeiro momento, avançar institucionalmente, construin-
do sistematicamente espaços de trabalho a partir de uma conjuntura
que favorece, por ser estruturalmente subsidiada, por ser pública,
mas, ao mesmo tempo, possui diversos vícios, desde um modelo bu-
rocrático desajustado, pois voltado à reprodução de conhecimentos
dogmáticos, como repleto de meandros oligárquicos de poder. Desse
modo, partimos de um grupo de pesquisa que se consolida num pro-
grama de pós-graduação, que eleva o nível e elabora projetos mais
robustos. E foi mais ou menos o que ocorreu. Eu entrei na UFF em
1998, e, olhando retrospectivamente, constato alguns elementos con-
junturais. O primeiro deles foi a disposição de uma nova geração na
Faculdade de Direito, que diferente do curso de Sociologia da UFF,

270
que já estava muito mais adiantado, já tinha uma trajetória de pesqui-
sa de campo. Na época, a Sociologia fazia parte do curso de Ciências
Sociais, que congregava Antropologia e Ciência Política, o que fazia
do conjunto um curso bem dinâmico e com larga experiência. O Di-
reito, diferentemente, não tinha nada disso, era um curso padrão es-
colão positivista. Eu entrei como professor desse curso convencional,
mas era um curso onde quase não havia doutores em 98. Na verdade,
havia seis doutores apenas. E isso é significativo. Na época, em um
universo de 60 professores, só 10% tinham doutorado. Isso simboliza
bem não só a UFF, mas o perfil das faculdades de Direito do país na
década de 1990. Ou seja, a pesquisa tinha baixa aderência, pouca im-
portância. Mas com a mudança da Lei de Diretrizes e Bases, em 1994,
passa ser obrigatório o acesso por concurso, e preferencialmente para
professor adjunto, ou seja, aquele que possui o título de doutor. Essas
mudanças são muito importantes. A gente tem que lembrar que ali
na década de 1980, o ingresso na Faculdade de Direito era por indica-
ção. Então isso permitia alguns lapsos. Eventualmente, alguém pode-
ria ser indicado por ser amigo, parente etc. Mas depois fica regulado o
ingresso só pela seleção através de concurso público. E logo, com a lei
de 94, a exigência de doutorado. Então, na medida em que a Faculda-
de de Direito também era um curso de professores que já estavam há
muito tempo, ou seja, a média de idade era alta, vários passaram a ser
aposentar. E eu fui do primeiro concurso da “nova era”. Então tanto
eu quanto os que entraram comigo – o professor Joaquim Leonel de
Rezende Alvim e Roberto da Silva Fragale Filho – a nossa entrada
auxiliou a iniciar um processo de alteração que se mostrou significati-
vo. E é claro que encontramos – eu, Leonel e Roberto – três outros
bravos bandeirantes, digamos assim. Porque iniciaram o caminho –
professor José Ribas Vieira, professora Maria Arair Pinto Paiva e a
professora Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca. Esses três já esta-
vam na Faculdade de Direito e já faziam um trabalho substantivo. En-
tão nos juntamos a eles e passamos a ser seis. Já havia muita

271
experiência da Maria Arair, da Maria Guadalupe e do José Ribas e jun-
tou com a expectativa desses três jovens que haviam ingressado. Esse
é, se posso dizer, o núcleo da reestruturação da Faculdade de Direito
da UFF. Claro que fomos buscar na Sociologia, por influência do Ri-
bas, outros seis professores que viessem a somar conosco para criar
um corpo docente mínimo para que pudéssemos criarmos um pro-
grama de pós-graduação e construir uma proposta a ser remetida
para a Capes. Aí vieram Marcelo Pereira de Mello, Maurício Vieira,
Napoleão Miranda, André Laino, Selene Herculano e Luís Carlos
Fridman. Enfim, foi um grupo inicial que conseguiu a aprovação des-
se curso ainda em 1999. O programa ganhou o nome de Sociologia e
Direito, pois metade era da Sociologia e a outra metade era do Direi-
to. E todos queríamos enfrentar o dogma, havia isso em comum em
todos os professores. Essa proposta se mostrou acertada porque des-
de a primeira turma já formulamos um modelo de disciplinas. Então
não se tratava de trabalhar com nenhum elemento propriamente jurí-
dico, tampouco com nenhum elemento canônico da Sociologia, e
sim procurar confluir essas duas importantes áreas. Então nos dedica-
mos bastante a trabalhar em todas. As disciplinas eram oferecidas em
dupla, sempre procurando conjugar um docente da Sociologia com
outro do Direito. Essa metodologia perdurou nos primeiros anos do
Programa. Era sempre alguém do Direito com alguém da Sociologia
que oferecia uma disciplina. Isso foi muito bom porque o repertório
que cada professor utiliza – o repertório bibliográfico, o modelo de
pesquisa – é muito centrado, muitas vezes, na sua área. E ter que tra-
balhar junto te força a conhecer a sai da área de conforto e conhecer a
bibliografia e a metodologia do colega. E mais ainda, te leva a conhe-
cer os textos que esse seu colega produz. Aí fizemos uma revista, a
Confluências, onde começamos a ter publicações. Eu, particularmen-
te, fui editor dos primeiros números, e li todos aqueles artigos. Colo-
quei isso como tarefa como forma também de conhecer o que era
produzido por todo mundo. Então foi uma tarefa muito cansativa,

272
mas muito proveitosa. Ou seja, essa foi a base instrumental, mas no-
vas questões surgiram. Logo nas primeiras turmas, ainda que tivésse-
mos essa disposição interdisciplinar, o elemento chave que apareceu
logo na primeira turma, e isso se desdobrou na segunda, na terceira,
na quarta, na quinta, era a questão empírica. Lembro-me que, em re-
uniões acaloradas, chegamos à conclusão que iríamos trabalhar no
sentido de que os trabalhos finais de dissertação, e depois quando
conseguimos o doutorado, os trabalhos finais da tese de doutorado,
deveriam se centrar em estudos de caso com pesquisa empírica, com
visita local, com entrevistas, com participação na questão social, no
conflito social de forma mais abrupta. E o perfil dos próprios profes-
sores contribuiu muito para isso. Particularmente, eu sempre tive
uma queda pelo trabalho de campo. Eu faço trabalho de campo desde
antes de entrar na universidade. Ainda na graduação, fazendo discipli-
nas, eu já ia entrevistar pessoas na rua, me lembro de viajar para cole-
tar impressões. Além do gosto de viajar, que me pega desde os 14
anos de idade – já cruzei esse país por diversas vezes – e vários outros
países também, o interesse passa a ser nessa atuação. Uma atuação
que visasse o conflito social no país. Um país que é desigual social-
mente. Estamos diante do modelo de uma oligarquia somada a uma
espécie de oligofrenia estatal e observar esses campos de tensão a par-
tir da situação daqueles que se encontram em situação de subalterni-
dade, ou melhor, em situação de criar resistências e enfrentamentos,
é sempre algo que nos chamou muita atenção e muito interesse. En-
tão estruturamos esse leque de pesquisas que agora tem 20 anos, e
olhando essa trajetória a gente fica bem satisfeito com o papel que
conseguimos desempenhar. E eu diria mais ainda, pelo seguinte: se
anteriormente a Faculdade de Direito não tinha pesquisa nenhuma,
se como eu falei era em torno de 10% a titulação do corpo docente,
em 20 anos isso mudou. Hoje a Faculdade de Direito tem mais profes-
sores do que tinha há 20 anos atrás. Hoje tem 85 professores. Desses
85 apenas 6 não têm titulação. Veja como inverteu. E esses seis já

273
estavam na época em que eu entrei. Ou seja, são aqueles docentes,
em geral ligados a grandes escritórios de advocacia, que continuaram
sem interesse em progredir numa carreira propriamente acadêmica.
Então a aposentadoria desses se dará ano que vem e acho que se en-
cerra definitivamente essa era. Mas muitas outras faculdades de Di-
reito, de certa forma, e essa é uma crítica que eu fiz numa palestra na
OAB, no ano retrasado, as faculdades de Direito muitas vezes se preo-
cuparam em domesticar a pesquisa. Ou seja, todas elas passaram a ter
seus cursos de Direito, seus cursos de pós-graduação, mas naquilo
que eu considero de pesquisa domesticada: são grupos de estudos an-
corados em um autor ou de autores e que reproduzem um modelo
de conhecimento. O que a pesquisa empírica e crítica faz, para usar o
termo do nosso debate, é ampliar e inovar o campo de análise com
um impacto muito maior. Trata-se, definitivamente, não só de sair da
zona de conforto, mas de elaborar uma nova área interdisciplinar de
conhecimento. É olhar aquele autor, por mais importante que ele
seja, ajustado ou não aos fatos recortados, a partir das influências, das
correlações que são possíveis de serem realizadas com a realidade,
destacando, mais que a luta de classes, a tecedura das redes de atores
em conflito. Então, o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito da UFF, que tem a sigla PPGSD, alcançou alto impacto. Sou
suspeito para falar, pois fui coordenador do programa por três man-
datos, mas como fui também, por cinco anos, presidente da Associa-
ção Nacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades, conhecendo
cerca de 300 outras pós-graduações interdisciplinares no país, elabo-
rando documentos de áreas e relatórios comuns em diversas oficinas
em Brasília e em congressos anuais avalio que alteramos o paradig-
ma. Vou concluir dizendo que alterou o paradigma de duas maneiras.
Primeiro, pelo impacto que o próprio curso teve no conjunto de cur-
sos no país, colocando em nítido segundo plano os estudos técnicos e
positivistas. E de outro lado, a gente conseguiu atrair alunos do país
inteiro. Nossas turmas de mestrado e doutorado tem um número

274
expressivo de estudantes que vem de outros estados, no doutorado
mais de 50%. E hoje a gente tem o Minter em Rondônia, Dinter em
Roraima, ou seja, um mestrado interinstitucional e um doutorado in-
terinstitucional; temos um campus avançado no Pará. De certa forma
o PPGSD atua em vários estados e se as regras bizantinas do MEC e
da Capes se tornarem mais flexíveis certamente conseguiremos am-
pliar muito mais. E esse momento, causado pela pandemia do CO-
VID 19, que nos coloca em home office e com aulas através de class-
rooms na internet, eu entendo como um novo desafio. Porque quem
trabalha com a pesquisa empírica e crítica não fica parado. Hoje a
gente tem a dificuldade para a aula presencial e consequentemente
para a pesquisa empírica, e a gente tem que, de alguma maneira, se
reelaborar para lidar, e estamos procurando lidar com a questão da
pandemia da forma mais crítica e operacional possível. Mas eu diria
que essas são questões cruciais e eu não vejo como ser diferente.
Acho que o modelo do professor que fica em sala de aula cobrando a
matéria ou aplicando prova com resposta certa - esse é um lugar onde
particularmente eu nunca me encaixei. Eu nunca fui, nem soube ser e
nem quis ser esse professor. Por exemplo, eu nunca dei prova em ne-
nhum ano nem para a graduação. Sempre trabalho no sentido de rea-
lizar trabalhos críticos. O tema é, de certa forma, livre; a prova não
precisa ser prova. Mas eu entendo não apenas como uma trajetória
minha: é uma trajetória coletiva. Nenhum caminho obviamente se
faz sozinho. Com isso eu quero dizer que acho que estamos em um
caminho sem volta. Superamos um modelo canônico, superamos um
modelo positivista e estamos na construção coletiva de um conjunto
de formas de ensino-aprendizagem, pesquisa e extensão não aliena-
dos enquanto fortalezas eruditas. O chamado tripé ensino-pesquisa-
-extensão é bonito, todo mundo fala disso. Mas não são tantos os que
o praticam. É necessário que todos os pesquisadores abandonem as
“formas simples” e trabalhem no campo das complexidades e da in-
terdisciplinaridade. O ensino é essencial para criar as oficinas de

275
trabalho, que são as salas de aula. Daí, conjugadamente, se constrói a
pesquisa, elaborando conteúdo crítico maior, não só manuseando a
principal ferramenta de trabalho que é a tecnologia da escrita, mas
ampliando novas tecnologias. Essas oficinas, então, ganham novas di-
mensões. Mas a extensão, entendida aqui como ir para a rua, traba-
lhar com a população, é o essencial. E uma quarta etapa, que alguns
chamam de inovação, vem daí. E com isso eu concluo, e no debate
avançamos mais em alguns pontos. Obrigado mais uma vez.

Emmanuel Oguri: Obrigado, professor Wilson. Muito importante


resgatar esse histórico da construção do PPGSD que é uma referên-
cia. Tantos professores aqui da Bahia, e do Nordeste, que foram fazer
a sua pós-graduação, mestrado e doutoramento no PPGSD, que têm
formado um bloco crítico, que assim já o era, e vai lá para se aper-
feiçoar e retorna. Vamos ouvir agora a professora Ana Maria Motta
Ribeiro, líder do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF), profes-
sora de Sociologia do PPGSD da UFF e professora associada da gra-
duação em Sociologia e Ciências Sociais da UFF.

Ana Motta: A pesquisa empírica em Direito é uma marca de um gru-


po de pesquisa chamado Rede de Pesquisa Empírica em Direito que
organiza um Congresso Anual, o EPED no qual eu e meu grupo de
pesquisa na Teoria Crítica geralmente participamos. E essa chancela
tem nos recebido na forma de grupo de trabalho, onde a cada ano
participamos e temos podido receber e discutir trabalhos de pesquisa
em geral qualitativas e a partir de trabalho de campo referidas ao
tema do Direito e que se voltam para a ideia da aplicação do Direito
como problema de conhecimento. Aqui neste evento, entretanto, nos
parece necessário destacar que apesar de reconhecer o lugar do EPED
como núcleo de conhecimento mais amplo, pretendemos assegurar
que nossa proposta específica e que pede passagem ao grupo do
EPED, pode ser considerada dentro e para além desse núcleo de

276
argumentação quando toma o Direito em si como prática a ser pro-
blematizada histórica e epistemologicamente. Nossa proposta preten-
de se situar para além n dimensão de um pensamento questionador
relativo ao Direito como prática social. Neste sentido vale a pena des-
tacar o acúmulo que estamos produzindo em grupo através das pes-
quisas que desenvolvemos dentro e a partir das dissertações e teses de
mestrado e doutorado dentro do Programa interdisciplinar de Pós
Graduação em Sociologia e Direito da UFF, e, mais especificamente,
da Linha de Pesquisa Conflitos Socioambientais Rurais e Urbanos.
Nesse lugar existem algumas singularidades que merecem considera-
ção. A pesquisa empírica no geral, em Direito, costuma ser considera-
da aquela que tende a se desenvolver a partir ou em cima de docu-
mentos, de leis. Ou muitas vezes é aquela maiormente estruturada a
partir de elementos quantitativos. Mas no nosso caso, trabalhamos
bastante na dimensão qualitativa. No Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito da UFF priorizamos um início de formulação
e de construção do Objeto Teórico pela problematização do Direito
como ideia e como prática, como operação. Na verdade, a junção Di-
reito e Sociologia promove essa construção problematizadora. E aqui
vale a pena mencionar a minha parceria de trabalho acadêmico ao
lado do professor Wilson Madeira Filho que já dura mais do que uns
vinte anos no PPGSD. Começamos com um trabalho de assessoria/
extensão e pesquisa no Observatório Fundiário Fluminense que coor-
deno desde o ano 2000. Em 1999 recebi um convite do Reitor da Uni-
versidade Federal Fluminense, para resolver um conflito, na qualida-
de de mediador, entre Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da
Reforma Agrária. Havia um conflito envolvendo um acampamento
de trabalhadores rurais sem-terra, criado pelo INCRA dentro da polí-
tica de Reforma Agrária, autodenominado “Sebastião Lan”, situado
no entorno da Reserva Biológica Poço das Antas - a primeira reserva
biológica e de proteção integral, do Brasil. Os representantes do Mi-
nistério do Meio Ambiente foram acionados para reagirem

277
apontando que a presença dos trabalhadores rurais sem-terra atenta-
va contra a sobrevivência do mico-leão dourado que era o ícone desta
reserva. E o Ministério da Reforma Agrária pretendia defender a sua
pontuação no sentido de ratificar a correção da ocupação para fins de
agricultura familiar destra mesma área. A Universidade Pública então
emergiu como o ente federal capacitado para a mediação deste con-
flito de interesses e funções em um tema sabidamente tenso e pre-
conceituoso em termos de ocupação fundiária com essa finalidade e
que encontrava desta feita uma certa forma de explicação contra o
acesso à terra devoluta de agricultores sem-terra comprometendo
um mercado de terras ativo e excessivamente lucrativo definido pela
necessária exclusão da abertura de acesso a segmentos populares com
apoio do Estado. Escolhidos como mediadores nós, pesquisadores e
estudiosos da Universidade então procuramos tentar entender em
que medida os representantes dos grandes proprietários até então
não-mencionados como destruidores ambientais da Mata Atlântica
mas que a desmataram extensivamente, eram considerados segmen-
tos pacíficos legítimos e notáveis enquanto os recém assentados eram
vistos como perigosos e potenciais destruidores ambientais que esta-
riam comprometendo de modo radical a sobrevivência do mico leão
dourado e até decidindo a sua extinção. Para nosso trabalho de me-
diação aprovado pelos dois ministérios em choque, montamos uma
equipe multidisciplinar que o Reitor constituiu em Norma de Serviço
como o GT ECOSSOCIAL. Reunimos uma coordenação articulando
os departamentos de Sociologia, Geografia, Direito e Engenharia
Agrícola. Aprendemos com o professor Wilson na época a diferença
entre o multi e o interdisciplinar. O multidisciplinar é juntar conheci-
mentos um do lado do outro. E o interdisciplinar é colocar conheci-
mentos em diálogo, onde necessariamente não temos que concordar;
onde o debate é intenso, onde o conflito é muitas vezes violento, do
ponto de vista da paixão no debate, mas isso é que é o bom do traba-
lho crítico. Então a gente começou ali a entender que essa parceria

278
estabeleceu uma dimensão de trabalho tensionado, mas criativo que
foi avançando dentro da cobertura acadêmico. Nosso trabalho pela
Universidade não poderia perder o sentido pedagógico, então ao in-
vestigar o referido conflito real, também estávamos formando cientis-
tas do direito, da sociologia, da engenharia agrícola e da geografia.
Cada professor ficou com sua tarefa específica. Eu fiquei com o meu
grupo de orientandos e os demais com seus próprios formandos. Eu e
o professor Wilson acabamos por constituir um trabalho integrado
que se desenvolve até hoje em forma de orientação conjunta ou de
trabalho de campo partilhado. Ou ainda através de atuação conjunta
em disciplinas oferecidas no Programa. Até hoje caminhamos assim e
temos intercessões atualmente mais amplas através da rede social
whatsapp, envolvendo nossos orientandos independente de suas espe-
cificidades temáticas e através do que conseguimos manter uma rede
de pesquisadores em contato e em debate teórico, político e metodo-
lógico permanentes. Também procuramos estimular que na nossa
visão do Direito segundo a Teoria Crítica, torna-se imperativo que
exista a construção de uma coisa chamada intelectual coletivo tenso
sem medo de estar em pleno conflito de ideias e dentro de uma pro-
dução de conhecimento pensada em forma de uma situação que se
desenvolve em permanente movimento. O que significa isso? Proble-
matizar primeiro o Direito, para o nosso trabalho, o Direito é relação
social. O Direito não é dogma e nem doutrina. Enquanto relação so-
cial, temos que ponderar que existe o sujeito do Direito, que é o ope-
rador do Direito, e existe o sujeito no Direito, que inventa a sua ma-
neira de regular as relações sociais, desde baixo para cima. E não
dotado da necessidade de responder a dogmas e doutrinas, mas aque-
le que concebe a sua vida social de um modo, dentro do qual se ope-
ram algumas regras de convivência e de sociabilidade. E isso é Direi-
to. Podem ser dados vários nomes a isso: O Direito achado na rua, o
Direito achado no chão da aldeia, o Direito construído nas marés e
bebido nas águas e nos mares e nos rios ou o nome que se queira dar,

279
mas é um Direito que é produzido alternativamente ao Estado, e que
às vezes se choca com o Estado. Algumas vezes esse Direito que é ge-
rado nas relações sociais e na sociabilidade, ele chega a ser até alterna-
tivo ao Estado ou se coloca até como uma resistência ou uma reação
ao próprio Estado, às normas e às leis. É neste momento que se torna
necessário o alargamento do olhar, da compreensão e da construção
teórica que temos que fazer. Esse Direito como relação social e a par-
tir da teoria crítica é diferente. Nele é preciso que se estabeleça o que
é basilar. E é aqui que destaco minha escolha de trabalho com o mate-
rialismo histórico-dialético e em especial na perspectiva dos historia-
dores marxistas britânicos, entre eles E.P. Thompson, Hobsbawn,
Raymond Williams e Cristopher Hill, além de uma necessária consi-
deração a um olhar na chave do pensamento decolonizado, antirracis-
ta e antipatriarcal na perspectiva “desde abajo” que destaca o olhar da
vivência no ambiente social latinoamericano. Essa forma de conceber
o mundo pelos “de baixo” explica e expõe uma escolha de olhar na
observação. Uma que entende que a construção do objeto tem que
ser feita com uma base bastante erudita de produção de pensamento
teórico, mas que não negue a experiência histórica popular que é a da
maioria. E, por ser uma forma de olhas “a contra pelo” e fora da visão
dominante estimulada pelas relações de dominação em defesa de seu
projeto de interesse, esta forma de organizar criticamente o olhar
científico deve ser cuidada e organizada de modo sério, articulado e
intenso. Muito mais fácil é seguir o olhar da dominação que é hege-
mônica. O difícil é formar uma construção epistemológica crítica,
desconfiada, mas essencialmente objetiva (não neutra jamais porque
neutralidade na ciência sociologicamente não existe)! Por esta razão é
que a meu ver, quem quiser trabalhar com pesquisa empírica em Di-
reito na Teoria Crítica precisa sair do costumeiro e saber que é neces-
sário muito mais estudo para poder enfrentar uma nova visão man-
tendo a sua versão coerente dentro dos parâmetros da lógica formal
dominante, quer dizer, disputando nesse campo da ciência

280
reconhecida entre aqueles que pagam por ela e que defendem a sua
produtividade como esquema de reconhecimento aceito. Lamento
para os que podem querer trabalhar na Teoria Crítica, mas por tudo
isso, por ser parte de uma disputa que não pode negar a supremacia
hegemónica é que se torna necessário muito mais estudo e muito
mais leitura e correção formal! Torna-se necessário uma verdadeira
devoção para os interessados na produção crítica e isso para mim é
uma grande satisfação. Torna-se necessário uma quase obsessão onde
coisas aparentemente menores podem ser cobradas nesse caso apenas
para tentar diminuir ou tentar desqualificar os resultados da investiga-
ção. Torna-se fundamental então, por exemplo, revisar e “passar a
limpo”, rever literatura, bibliografia. Torna-se igualmente imperativo
emergir como o melhor estudante do mundo por vários motivos. Pri-
meiro, porque é a teoria que vai ajudá-lo a se antepor à realidade do-
minante e a respeitar essa realidade com o mínimo de humildade, e
como portador de conhecimento que pode se colocar num nível de
igualdade que gera dúvidas significativas. “Eu não vivo a experiência
do que vocês vivem, mas eu garanto que eu estudei e eu li com ho-
nestidade o máximo que eu pude, revisei o máximo que eu pude”.
Então é com esse tamanho que se pode chegar diante do outro que se
estuda e que se quer compreender, mostrando a ele a intensidade do
seu investimento de trabalho. Sendo não um bom estudante, mas o
melhor de todos. Esse é o sofrimento que você tem que sentir para se
colocar e dizer se o que você está vendo faz sentido ou não quando
você se antepõe. A nossa especialização de trabalho, nessa trajetória
mais longa onde a gente se coloca como intelectual coletivo em deba-
te permanente, tanto eu quanto o professor Wilson que vamos a
campo juntos, promove a ideia de que o que sabemos decorre do que
vemos e aprendemos na pesquisa de campo. E pesquisa de campo no
Direito que não é muito frequente. E naturalmente, a Sociologia
como mainstream – Sociologia, Ciência Política e Antropologia – que
também é a Geografia, a História, enfim passa pelo mesmo caminho

281
de dúvidas e de espanto diante do outro quando o outro nos fala e se
é que deixamos que ele nos fale. E é isso que pode nos oferecer um
acúmulo inusitado de desconhecimento que resulta do querer conhe-
cer. Nessa perspectiva, na nossa trajetória de pesquisadores tem trazi-
do até nós descobertas importantes para o ato de observar e conhe-
cer. Nosso trabalho na pesquisa de campo no PPGSD e em nossa
Linha de Pesquisa tem sido definida por uma certa escolha e por uma
certa descoberta. Chegamos ao ponto de identificar o sentido maior
de pesquisar a partir de “situações de conflito” por configurar um
momento de tensão no qual as diferentes versões e os diferentes agen-
tes do processo em curso aparecem de modo mais explícito! E as con-
tradições tornam-se mais claras e identificáveis. Por isso em nossas
pesquisas e orientações de projeto tendemos a escolher observar es-
sas situações tensionadas. Muitas vezes, e cada vez mais nas Ciências
Humanas ou Sociais onde existe uma prática crescente de recusa de
financiamento para propostas de investigações especulativas sobretu-
do por terem o potencial de trazer uma voz divergente ou por abri-
rem o ouvir relacionado a um outro social, dentro de condições cien-
tíficas torna-se imperativo considerar novas dimensões. Neste sentido
é que muitas vezes temos a necessidade de dimensionar e explicitar
certas divergências de temporalidade que precisam ser identificadas
como externalidades no padrão de conhecimento da academia. Algu-
mas vezes, é possível que a lógica de financiamento acadêmico ou a
lógica das soluções institucionais possam representar interveniências
significativas desde o ato de poder pesquisar. Desta forma é que se
deve levar em conta a relevância de se problematizar desde a nascente
o próprio ato da pesquisa nas Ciências do Social. Como um ato inicial
e fundante da própria a pesquisa em si que encontra sua primeira de-
finição nos exatos parcos recursos e restritas condições de exposição
para chegar ao possível e adequadamente aceito (algumas vezes Pro-
gramas inteiros quando pontuados segundo critérios não necessaria-
mente objetivos em termos de produção de conhecimento

282
meritoriamente científicos no âmbito da ciência do social, tendem a
ser levados a se situar como um grupo dependente para se manter
como um suposto “privilégio” desde que integrado enquanto uma
excelência que não pode jamais ser perdida). Na nossa forma de atua-
ção científica então, muitas vezes ao situar a pesquisa em situações de
conflito podemos simultaneamente constranger as etapas do proces-
so de investigação tendo em vista as precárias condições de trabalho
tanto quanto também podemos obter visões e manter a investigação
enquanto campo de disputa e quando podemos chegar a ver e a inte-
ragir de modo dinâmico e dialógico.
As contradições tornam-se mais claras e do mesmo modo as di-
vergências entre teoria e prática também se estabelecem. Ao mesmo
tempo em que as contradições se estabelecem a disputa de conheci-
mento também se levanta. Do tanto de teoria crítica que juntamos ao
lado da experiência real vivida qual deve ser a principal considerada?
A meu ver a disputa em si entre o pensar e o sentir se impõe e onde
o que pensamos na Teoria Crítica adquire mérito e cuidado e vale a
ponto de colocar a situação pragmática sem preocupação teórico crí-
tica valorada num lugar de diálogo necessário conosco. Aí está onde
somos necessários para a da tarefa da transformação e sempre quan-
do não nos colocarmos em prepotência ou soberba intelectual pelo
nosso desempenho não braçal. Assim se constitui a nossa tarefa. E
isso não tem ofício. Não é porque eu sou advogado, porque eu sou
economista, porque eu sou de Letras, porque eu sou da Educação.
Não interessa. Conhecer a realidade supõe que você entre em todas
as formas de conhecimento que a realidade assim o pedir. Se você
vai trabalhar com uma comunidade indígena por exemplo, se ela tem
as suas narrativas eivadas de histórias e de mitos, aprenda. Aprenda
mitos e histórias porque é com isso que você tem que lidar diante de
você. Assim como a gente vai com uma teoria montada que constrói
teoricamente o objeto, a comunidade humana que está sob observa-
ção, ela também nos indica o que devemos estudar, o que devemos

283
ler. Muitas vezes são coisas inéditas, coisas que a gente nem imagi-
naria que teria que se esforçar para fazer e para conhecer. Então esse
intercâmbio dialético tensionado entre o pensador e a realidade é a
alma do produto do trabalho da teoria crítica. De novo, temos uma
certa preferência pela ideia de que esse conhecimento que está sendo
gerado não é exclusivo da academia. A academia não pode ser dotada
de uma capacidade tal que a sua autoria seja absolutizada. A academia
tem que saber se curvar e compreender a produção de saberes que
emerge e que são historicamente datados. É provável que no caso de
análise documental ou no caso de pesquisas no passado não se pode
fazer esse tipo de contato mais direto. Mas então será necessária uma
redefinição. Pode-se buscar elementos da conjuntura e contextualizar
o dado frio que você recebe de um documento, de uma lei, como:
que forças geriram? Como chegou a esse ponto? Então o exercício de
pesquisa se amplia, o trabalho aumenta. Lamento! Se querem fazer
uma pesquisa na teoria crítica terão que trabalhar o dobro. E ainda
irão enfrentar, ao final do resultado, a falta de reconhecimento, um
questionamento dizendo que isso é trabalho ideológico. E tendo que
provar que não é ideológico, é estruturado na ciência e referido pela
objetividade. E é determinado pelo concreto da história, dado que a
história é um produto humano. É pelo homem, pela mulher que eu
posso concluir a construção desse conhecimento. Para avançar nessa
dimensão, nesse trabalho que é o do intelectual coletivo, nessas re-
des de whatsapp que nós temos, eu e o professor Wilson, o que faze-
mos permanentemente? A gente está permanentemente em contato
e discutindo. Desde coisas como saíram da última literatura, se há
um texto novo que acabamos de ler. Não se pode deixar de ver tal se-
minário, não se pode perder tal live. E em geral procuramos escrever
juntos, publicamos juntos, entramos em comum acordo em grupos
nas pesquisas. E questionamos e criticamos a todos nós, a cada um
de nós mutuamente. E a cada vez que descobrimos um novo saber,
nós distribuímos naquela rede. No final, vocês poderão dizer: mas de

284
quem é esse artigo? Esse artigo é de muitos. Jamais será um artigo
por pura vaidade, de um único produtor, de um único pesquisador.
Porque quando alguém se coletiviza, a capacidade de olhar, de pensar
e de sentir a realidade, se amplia. E se ela se amplia, isso é bom para
o conhecer. E o nosso projeto é um projeto de afirmar que a ciência,
que a pesquisa científica tem um lugar. A teoria é importante para a
ação transformadora, revolucionária para a nova sociedade que a gen-
te quer gerar. Então é preciso levar muito a sério esse tipo de compor-
tamento.

Emmanuel Oguri: Eu que agradeço a partilha, Ana. Te ouvir é sem-


pre emocionante. Essa pesquisa de Oriximiná é muito bacana. Pas-
sarei à próxima fala para termos tempo para o debate. Eu queria
chamar a professora, pesquisadora, advogada e militante dos Direi-
tos Humanos, Nadine Borges. A Nadine foi membro da Comissão da
Verdade; ela exerceu alguns cargos dentro da Comissão da Verdade.
Tomara que ela conte um pouco dessa história para a gente.

Nadine Borges: Em um primeiro momento, agradeço a oportunida-


de de conversar virtualmente, algo que atualmente tem sido constan-
te, mas que não impede nosso contato. Estar mais próximo de vocês
através dessa conversa e diante dessa oportunidade de conhecer ou-
tras pessoas que estão conosco nessa jornada em uma interação per-
manente constitui uma importante ferramenta de troca de saberes.
Faltam palavras para descrever o quanto bom é estar ao lado de Wil-
son, Ana Motta e Emmanuel. Esses professores me ensinaram a gos-
tar de pesquisar. A eles deixo meu muito obrigada. A ideia de pesqui-
sa empírica nem sempre encontra acolhida imediata no campo da
formação jurídica e muitas vezes quando se encerra o ciclo da forma-
ção em uma graduação em Direito raramente se faz trabalho de cam-
po. Não por acaso o judiciário é composto por uma elite que não pen-
sa onde os pés pisam. As decisões judiciais tendem a representar um

285
olhar de classe, um olhar de pessoas brancas, de pessoas ricas e de
pessoas que estudaram em escolas privadas. É nesse cenário que al-
guns professores merecem nosso reconhecimento justamente por
não se furtarem de aproximar saberes e nos mostram que é possível
vivenciar o Direito sem essa roupagem “chata”, muitas vezes fechada
em si mesma e voltada apenas para uma elite do sistema de justiça
que visa sempre a manutenção do capitalismo em sua essência. A
proposta de um curso interdisciplinar em Sociologia e Direito revela a
importância desse nadar contra a corrente. Eu e Emmanuel somos
produtos dessa resistência. Não fosse o Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito eu certamente não seria que eu sou. Quando
penso na experiência de pesquisa na Comissão da Verdade percebo o
diferencial por ter uma bagagem teórica e um conhecimento propor-
cionado por professores como Wilson Madeira Filho e Ana Motta Ri-
beiro. Importante mencionar que os cursos de Teoria Sociológica e
Teoria do Direito foram ministrados por sociólogos, juízes, pesquisa-
dores de diferentes áreas que demonstram o caráter cumulativo do
conhecimento. Não se trata de um conhecimento individual, uma
vez que qualquer saber só encontra sentido quando você o domina e
compartilha com a coletividade. É por isso “devo” parte da minha
trajetória no sentido mais genuíno de solidariedade aos professores
do PPGSD. Estar ao lado desses colegas nessa jornada traz à tona me-
mórias de experiências não muito distantes vivenciadas na região do
Araguaia, em Marabá no sul do Pará. E por falar em pesquisa empíri-
ca aproveito a oportunidade para mencionar alguns “causos” do Ara-
guaia, terra de resistência. Em uma dessas viagens à região em 2017
estive acompanhada dos colegas que dividem essa jornada comigo e
chegamos juntos em Marabá. Emmanuel estava concluindo sua pes-
quisa de doutorado. Cada um de nós tinha tarefas específicas. No
meu caso precisaria me deslocar para o território indígena Surui So-
roró. É importante dizer aos estudantes que nos leem o valor de che-
gar em uma pesquisa de campo acompanhada de professores e de um

286
colega prestes a concluir seu doutoramento. Isso significa inspiração,
apoio, solidariedade e sabemos o quão importante isso é em nossas
vidas, já que o mundo ao nosso redor insiste em nos privar de êxito
nessas investidas. As coisas estão orquestradas para que existam blo-
queios e para impedir acesso a esses lugares dessa forma. Chegar à
região do Araguaia acompanhada por esses professores foi uma segu-
rança muito importante para mim. E falar o quê do Araguaia? Acho
que foi para isso também que o Emmanuel me convidou. Quando eu
falei para vocês – e eu fiz mestrado e doutorado no PPGSD – o mes-
trado foi o meu primeiro contato com a Sociologia real, para além da
Sociologia Jurídica, que eu tive na graduação, mas a possibilidade de
pensar o saber sociológico e pensar a realidade é o que faz diferença
no mundo. A nossa cabeça tem que pensar onde a gente está pisando.
O nosso pé tem que se sujar de barro. Sem isso não conseguimos en-
tender e tampouco descrever. E o Direito não faz sentido algum sem
dialogar com a realidade. Para a maioria das pessoas que nos cercam
nesse momento, que são as pessoas com quem caminhamos juntos, é
desse lugar que podemos mudar a realidade em que vivemos. Quan-
do eu fiz o mestrado no PPGSD, minha experiência recente de traba-
lho como advogada era em uma organização não-governamental cha-
mada Justiça Global, situada no Rio de Janeiro e que faz denúncias
internacionais à ONU e OEA sobre violações de Direitos Humanos
perpetradas pelo Estado brasileiro. Na época em que trabalhei na Jus-
tiça Global, fui responsável, dentre outros casos, inclusive um dos ca-
sos eu gostaria de falar para que vocês prestassem atenção fica na
Bahia. Trata-se do caso da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus
a mais recente condenação do Brasil na Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos. Outro caso que merece menção é o de Damião Xi-
menes, que era portador de transtorno mental e foi torturado e mor-
to em uma clínica de saúde no interior de Sobral, no interior do
Ceará. Isso foi em 1999. E eu trabalhei no caso em 2005 e 2006, ano
em que ingressei no mestrado. Uma coisa foi trabalhar no caso, ver as

287
provas, os documentos, o que estava no processo e entender como o
caso chegou aos tribunais internacionais. Havia uma expectativa de
que esse caso pudesse resultar em uma condenação do Brasil, algo
que nunca havia acontecido em um tribunal internacional de Direitos
Humanos e eu trabalhava no caso como advogada: buscando os fatos,
as informações, vendo as notícias sentada em frente ao computador,
em uma sala comercial no Rio de Janeiro. Depois disso veio um turbi-
lhão em minha vida com o curso de mestrado em Direito e Sociolo-
gia. Quando eu entrei no mestrado, eu queria ter como objeto de
pesquisa “os pequenos”, os invisíveis, pessoas que em um determina-
do momento, assim como Ana Motta lembrou ao falar dos trabalha-
dores que o Julião levava para assistir às audiências. Minha questão de
pesquisa era: como esses pequenos se sentam à grande mesa? Como
se chega nesse lugar? Como alcançar um tribunal internacional?
Como conseguir êxito em uma ação que declare direitos indígenas no
Supremo Tribunal Federal (STF)? Como chegar nesses lugares? E eu
aprendi como chegar nesses lugares a partir do mestrado em Sociolo-
gia e Direito. Para além da pesquisa prática que eu fazia como advo-
gada foi o mestrado me levou a pensar: eu posso entender melhor o
caso do Damião Ximenes com novas lentes. Assim, em 2006 isso re-
sultou na primeira condenação do Brasil em um tribunal internacio-
nal de Direitos Humanos: a Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos. Depois disso eu saí daquele lugar, daquele escritório, que fazia
um trabalho incrível de denunciar e levar esse caso ao conhecimento
internacional. Sair desse lugar e chegar no interior do Ceará não foi
fácil, pois eu estava indo para a terra de Damião Ximenes. Cheguei lá
de ônibus, depois de muitas horas de viagem com ônibus quebrado
no caminho e outras histórias. Na viagem de ônibus conheci várias
pessoas que falavam muito bem da família Gomes, do Cid Gomes, do
Ciro Gomes e de outros coronéis do Ceará; conheci pessoas que fala-
vam muito mal deles; mas cheguei em um lugar que não conhecia,
apesar de conhecer o caso. Era a terra, a vida, a casa, a família, a irmã

288
de Damião Ximenes. Nesse momento um mundo se abriu, já que
aquilo que eu conhecia dos papéis não foi o que encontrei quando eu
pisei naquele chão. Foi quando ouvi as histórias dele, quando eu ouvi
como a loucura é produzida, a discriminação, o preconceito contra as
pessoas que têm transtorno mental nesse país. Como isso é excluden-
te e revela a estrutura de Estado em que estamos inseridos. Tudo
aquilo mexeu muito comigo, mas eu consegui e é exatamente isso
que significa pesquisa empírica em Direito, ou seja, colocar todo
aquele aporte teórico, metodológico, das aulas que o professor Wil-
son me deu em metodologia de pesquisa; as palestras dos cursos com
a professora Ana Motta, e todos os outros professores do PPGSD Na-
quele momento vi que eu poderia usar aquilo na prática, vi que pode-
ria transformar a minha atuação como advogada em algo que possa
fazer diferença para outros pesquisadores. Foi nesse momento que
nasceu minha dissertação de mestrado. E a partir de alguns recursos
teóricos, sobretudo na área de Sociologia, eu consegui aproximar isso
do Direito e transformar a luta do caso do Damião Ximenes, que era
uma luta antimanicomial, uma luta de desinternação, algo que mu-
dou a luta sobre a saúde mental no Brasil, em termos de não-interna-
ção, não-enclausuramento, e há um manancial teórico gigante por
trás disso que pode nos ajudar. Como esse caso singular, individual e
que poderia ser mais um caso particular de tortura e de maus-tratos e
de violação de Direitos Humanos virou uma causa coletiva. E sem o
Direito e sem a Sociologia caminhando juntos, a Antropologia, a His-
tória, a Saúde Pública, como disse a professora Ana Motta, não conse-
guimos pesquisar e fazer um bom trabalho se não reunirmos várias
áreas de trabalho ao mesmo tempo. Isso me deu segurança com base
nessa formação teórica em um programa interdisciplinar. Tenho dú-
vidas se eu teria feito isso se tivesse feito um programa de pós-gradua-
ção em Direito dogmático, fechado. Então é muito importante am-
pliar nossos horizontes e fico muito feliz de poder estar aqui com
vocês dividindo essa experiência. O tempo passou, eu fiz a minha

289
dissertação de mestrado, consegui publicar o livro da dissertação, pela
Editora Revan. O nome é “Damião Ximenes: Primeira Condenação
do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos”, que é o
nome do caso. É uma história muito triste, mas também de muita re-
sistência e muita luta da família, da irmã, que deu voz a essa violência
e conseguiu chegar a um tribunal internacional que resultou na con-
denação do Brasil. E aí eu acabo a minha dissertação e com todo esse
manancial teórico, prático que eu vinha acumulando e compartilhan-
do com pessoas ao meu redor e por ser uma militante, uma ativista
de Direitos Humanos, eu fui trabalhar no governo federal, no gover-
no da Dilma Rousseff. Convidada pela ministra Maria do Rosário, mi-
nistra dos Direitos Humanos. À época eu estava entrando no douto-
rado para pesquisar uma outra condenação do Brasil na Corte
Interamericana: a condenação da guerrilha do Araguaia no caso Julia
Gomes Lund. Caso não tenha ouvido falar é uma decisão que vale à
pena conhecer em sua integralidade. Eu queria investigar mais isso
no meu doutorado e entrando nessa estrutura do governo federal,
após a condenação do Brasil no caso Araguaia, com minha experiên-
cia no sistema interamericano, por ter trabalhado na Justiça Global e
ter feito um livro sobre a primeira condenação do Brasil na Corte,
acabei me envolvendo muito nos bastidores para que fosse criada a
Comissão Nacional da Verdade e me dediquei com afinco a isso. Tam-
bém atuei na Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. E
comecei a atuar com mais imersão na pauta de memória e verdade.
Eu jamais imaginaria que isso faria tanta diferença atualmente e eu
tampouco queria que fizesse. Eu almejava e ainda almejo que tenha-
mos um registro dos fatos e da história do Brasil. Mas nós não temos
e isso nos coloca em um patamar de comando de esquecimento per-
manente. É sobre isso que falo na tese e em breve espero poder com-
partilhar com todos, já que finalizei minha tese. E como entra o Ara-
guaia nisso? O Araguaia entra como uma guerrilha que aconteceu na
década de 70, na região do Araguaia, onde jovens militantes do PC do

290
B foram para a região para uma tentativa de organizar uma resistên-
cia a partir desse mundo rural para enfrentar a ditadura empresarial-
-militar daquele período. Só que essas pessoas foram para uma região
conhecida como Bico do Papagaio que era um lugar com mata fecha-
da à época, na década de 70, mas que tem uma área de reserva indíge-
na. E isso é pouco falado em relação à guerrilha do Araguaia. Nós
conhecemos a história da guerrilha, quem se interessa pela história da
ditadura empresarial-militar, quem pesquisa isso, a partir do relato do
Partido Comunista do Brasil, dos militantes que foram para lá. O pró-
prio relato das forças armadas, da enorme quantidade de soldados
que foi para a região para enfrentar, aniquilar, torturar, desaparecer,
matar esses guerrilheiros fala sobre essas pessoas que estavam tentan-
do enfrentar a ditadura. Mas pouco se fala da aldeia indígena Suruí
Sororó. Então o meu trabalho de doutorado foi sobre esse lugar; foi
nesse lugar que eu cheguei com o professor Wilson e a professora
Ana Motta em 2017, e que eu já havia estado desde 2011. E lá eu per-
cebi a importância da pesquisa empírica, não só naquele momento de
chegada. Porque para chegar lá, depois de ter atuado como agente do
Estado, como uma trabalhadora do governo não era fácil. E chegar
como uma pesquisadora, fazendo um trabalho acadêmico é diferen-
te. Eu só consegui chegar porque outras pessoas chegaram antes. Ou-
tras pessoas chegaram antes e compartilharam esse saber. E essa é
nossa obrigação como pesquisador. A antropóloga Iara Ferraz foi de-
terminante para essa entrada em campo. Então a minha dica, a minha
contribuição aqui para esse debate é que a gente sempre se valha des-
sas pessoas. E assim como algumas pessoas nos abriram as portas
para entrar, a gente tem que abrir a porta para que outros entrem.
Então é um pouco sobre esse compartilhamento e essa solidariedade
que me toca dividir com vocês. Retornar para aquela região, em 2017,
para concluir a minha pesquisa de doutorado foi um desafio muito
grande. Porque eu tinha estado lá outras vezes, mas num papel de
atuação de governo. Então o que eu fiz na pesquisa de doutorado foi

291
um estudo autoetnográfico. Eu falei um pouco dessa experiência et-
nográfica de entrar no lugar a partir da minha experiência pessoal,
mas não como algo singular e individual, mas como algo coletivo,
como um saber que eu aprendi fazendo. E quem são esses indígenas?
Quem são o Povo Aikewara que vive nessa região? São indígenas que
na década de 70 já viviam na região. Quando teve a guerrilha do Ara-
guaia era em torno de 70 guerrilheiros que foram para lá; eles não
passavam entre 30, 40 indígenas no máximo. Os soldados chegaram
na região e praticamente dizimaram essa população. Muitos desses
indígenas foram usados como escudos humanos para entrar na mata,
para identificar onde estavam esses guerrilheiros. Muitos deles não
tinham e ainda não têm compreensão da língua portuguesa. E a gente
tem que parar de achar que no Brasil só se fala português. Porque a
língua dos povos indígenas faz parte da nossa nação, do nosso país.
Então tratar como se o português fosse o único idioma do país é algo
que demonstra essa prática colonialista e excludente. Então esses in-
dígenas que viviam na região foram obrigados à força pelo exército
brasileiro a caçar as pistas desses guerrilheiros, alguns foram para a
mata, e há relatos de muita dor, muito sofrimento, muita tortura.
Sem comida, sem banho, sem nenhum tipo de aquecimento, sem po-
der descansar. E as mulheres e as crianças ficaram na aldeia proibidas
de sair, proibidas de caçar, de buscar seus alimentos. Sofreram todo
tipo de violências. Foi a partir desses relatos que construí minha pes-
quisa de doutorado. E lidar e estar próxima desses atores esquecidos,
desses conflitos de memórias, dessa perspectiva e desses olhares dis-
tintos, mas, sobretudo, e é isso que eu queria prezar aqui, de como
funciona a hierarquia e o esquecimento dos mortos no nosso país.
Como as forças armadas promoveram o terror naquela região e como
foi difícil trazer essas vozes para o presente. Trazer essas vozes silen-
ciadas também por um jeito de pesquisar, de se falar sobre a ditadura,
e que muitas vezes silencia os povos indígenas. E isso explica muito
do que está acontecendo hoje em nosso país. Recentemente o

292
procurador-geral, do Ministério Público Federal, Senhor Augusto
Aras, mandou arquivar um processo e pediu a extinção de uma ação
reparatória do povo indígena Kaiowá-Guarani, que foi retirado antes
da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Então a gente está vi-
vendo hoje, como disse a professora Ana Motta nesse estado milicia-
no, um comando de esquecimento perene e permanente. E talvez a
maior contribuição que a academia possa dar, que a universidade pos-
sa dar a partir da pesquisa, do ensino e da extensão é justamente re-
gistrar esses saberes, registrar esses conhecimentos. Porque as futuras
gerações dependerão disso, assim como nós dependemos daqueles
que nos antecederam, que realizaram pesquisa, que contribuíram
para a ciência e para o conhecimento, a gente pode, com o nosso tra-
balho trazer isso. Então a resistência do povo indígena Aikewara nos
traz isso e é essa dor que quero dividir com vocês. Na minha tese falei
dessa resistência do povo indígena Aikewara, do silenciamento que
foi imposto a essas pessoas, de como eles não só resistiram e sobrevi-
veram e daqueles 30, 40 indígenas que quase foram dizimados pelo
exército brasileiro, eles ressurgiram. E com os casamentos interétni-
cos, na própria comunidade indígena, e hoje eles têm uma comunida-
de de quase 500 pessoas. E aí nós tivemos todo um avanço, como dis-
se a professora Ana Motta, após a constituinte de 88, nos direitos dos
povos indígenas. Avanços cujos retrocessos estão cada vez mais inten-
sos. E aí eu trago um dado que é triste, mas espelha um pouco a práti-
ca genocida do governo atual do Brasil contra os povos indígenas. E
talvez esse seja o marco nesses 520 anos de invasão do território brasi-
leiro, seja um dos marcos mais elementares das práticas de preconcei-
to e violações de Direitos Humanos, já que mais de 80% dessa aldeia
indígena se infectou com covid19. E os principais personagens da mi-
nha tese morreram de covid19. São os mesmos indígenas usados
como escudos humanos pelos soldados para invadir e identificar os
lugares onde esses guerrilheiros estavam, sem entender o que estava
acontecendo. Eles achavam que terroristas eram pessoas que lutavam

293
pela terra. Então a gente vê essa questão da semântica, da linguagem
e de sua importância. Os personagens principais da tese morreram e
eu trago aqui a experiência de dizer que nós precisamos registrar o
conhecimento; nós precisamos dar voz a esses silêncios que são im-
postos pelo Estado. Porque é disso que depende as futuras gerações, é
disso que depende a pesquisa, é disso que depende o conhecimento
científico. E o conhecimento científico só faz diferença se a gente pu-
der mudar e transformar o mundo em que a gente vive em um mun-
do melhor. Agradeço ao professor Emmanuel, ao professor Wilson e
à professora Ana Motta por poder compartilhar um pouco isso.
Obrigada.

Emmanuel Oguri: Obrigado Nadine. Eu tenho agora um tempo de


fala, e estamos chegando próximos do nosso teto. Então ao final da
minha fala eu vou encaminhar as perguntas aos falantes e a gente faz
também as despedidas no debate. Eu quero agradecer mais uma vez a
vocês por aceitarem participar da Jornada Virtual da UEFS. Para nós,
é um grande desafio trabalhar com um evento dessa dimensão. Eu
quero agradecer à Comissão Organizadora que está fazendo um tra-
balho magnífico, é a semana inteira de atividades, e eu sei que o tra-
balho está bem corrido porque tem que fazer de tudo: desde “apagar
incêndio” até expulsar fascistas das mesas. Então eu sei que tem sido
um trabalho árduo o de vocês. Parabéns! Pesquisa empírica em Direi-
to na teoria crítica. Como a Ana falou, não é só pesquisa empírica em
Direito, é a pesquisa na Teoria Crítica. E a gente tem conduzido nos-
sas investigações pensando sempre em uma história narrada a contra-
pelo, como fala o Walter Benjamin em seu ensaio “Sobre o conceito
de história”. Para que possa ser contada, a história da classe trabalha-
dora e de suas lutas deve servir de alerta ou apelo a uma força messiâ-
nica que se coloca para salvar o presente e o futuro. É a história da
luta de classes. Então nós trabalhamos muito com sujeitos coletivos.
Sujeitos coletivos históricos, sujeitos coletivos de direitos. Pensamos a

294
partir da luta dos subalternizados. Nesse sentido, na minha tese de
doutoramento eu trabalhei com a luta pelo território na Fazenda Ca-
baceiras, no sudeste do Pará, a 25 quilômetros do município de Mara-
bá. É uma terra que pertencia a uma família dona de um estoque de
terras em torno de 200 mil hectares no estado do Pará. Um hectare é
um campo de futebol. Duzentos mil Maracanãs de terra. Realizamos
uma primeira pesquisa de campo em 2009 e depois retornamos em
2017 para fazer outra parte da pesquisa de campo e fazer o que esta-
mos denominando dentro da Teoria Crítica e da pesquisa militante
como “devolutiva”. Não basta fazer a pesquisa, como a Ana já nos
alertou, pois você tem que fazer a pesquisa e entregar o resultado des-
sa pesquisa para aqueles sujeitos que participam, que relatam as expe-
riências e constroem o nosso objeto de pesquisa junto com a gente.
De maneira mais objetiva, procedemos a construção dos objetos de
pesquisa através de uma boa revisão bibliográfica e um bom estudo
sobre a metodologia, para quando chegarmos na experiência de tra-
balho de campo estarmos com as ferramentas necessárias para poder
pensar o caso, para poder pensar o conflito. Trabalhamos com confli-
tos, pois possibilitam fazer emergir aquilo que está escondido por de-
baixo da aparência e, por conta disso, a gente vai para dentro das si-
tuações conflitivas. Muitas vezes vamos como assessoria, em outras,
realizamos a pesquisa-ação ou pesquisa militante. As comunidades,
movimentos, atingidos e outros grupos subalternizados pensam as
questões junto com a gente, pesquisadores-militantes constituídos
enquanto o(a) intelectual coletivo que a Ana Motta falou. Muitos dos
trabalhos são atividades de acompanhamento, mediação e assessoria,
que nos posicionam sempre no interior das lutas sociais. Estamos
com os pés na lama, estamos, geralmente, tendo que fazer traduções,
representações dessas trabalhadoras e trabalhadores, de comunidades
de fundo e fecho de pasto, quilombolas para a linguagem judicial e
judiciária. Fazemos essa mediação e, por conta disso, estamos imbuí-
dos de um espírito de luta muito forte. Fizemos os trabalhos de

295
campo, e são trabalhos de campo que geralmente resultam em pes-
quisas de muito fôlego. O Observatório Fundiário Fluminense, por
exemplo, é um grupo que tem pesquisas e atuação em várias áreas,
geralmente ligadas a questões territoriais como conflitos indígenas,
conflitos por terra relacionados ao MST e outros movimentos de luta
pela terra e moradia, bem como o auxílio nos processos de resistência
em territórios quilombolas. Nossa pesquisa tem sido feita com base
numa espécie de envolvimento afetivo, e aí eu acho importante a gen-
te falar do afeto. Somos afetados pelos sujeitos das nossas pesquisas e
procuramos depois afetá-los também. Não realizamos a pesquisa que
se diz neutra, imparcial. Procuramos nos envolver com a realidade
com a qual estamos trabalhando. E é nesse sentido que fizemos, em
outubro de 2017, uma devolutiva para a comunidade da Fazenda Ca-
baceiras que hoje é o Assentamento 26 de Março. O caso que eu estu-
dei no doutorado trata dos processos de luta e resistência que resulta-
ram na primeira fazenda desapropriada por reincidência na prática do
uso do trabalho escravo contemporâneo, do trabalho análogo ao de
escravo, previsto no Código Penal (art.149), e por degradação am-
biental. Os proprietários da fazenda estavam derrubando a mata nati-
va, a área de reserva florestal, para abrir pastos e utilizavam trabalho
escravo para essa abertura e manutenção de áreas de pecuária. Era
uma fazenda pertencente a uma família muito poderosa no Pará, a
família Mutran, que se tornou uma referência na criação de gado Ne-
lore às custas da derrubada da mata. Trata-se de um problema que
persiste até hoje na região amazônica e que está piorando por conta
da intenção clara e manifesta de “passar a boiada” do atual governo
federal. “Passar a boiada” é uma figura que ilustra bem o que eles ten-
tam fazer com a Amazônia, porque é isso o que eles querem: jogar a
boiada dentro da área de floresta, destruindo o território. Nessa devo-
lutiva que fizemos, fomos conversar com a comunidade para apresen-
tar os resultados da nossa tese dentro da Escola Estadual Carlos Ma-
righella, que se localiza no interior do assentamento. Foi um

296
momento importante, porque alguns elementos que havíamos des-
crito e analisado ao longo do estudo foram corroborados e outros ti-
veram que ser alterados com base em novos dados coletados na devo-
lutiva. Um exemplo de alteração foi que, a partir daquele momento,
eu e Ana Motta passamos a trabalhar com uma ideia de classe domi-
nante bandida: a classe que usa as brechas institucionais da lei e das
instituições públicas para modificar as estruturas territoriais e usur-
par partes consideráveis de territórios. Passamos a trabalhar com a
investigação sobre como essa classe dominante bandida mobiliza a
tensão entre legal e ilegal para proveito próprio. A gente teve também
uma experiência fantástica na devolutiva que foi a possibilidade de vi-
sitar o Acampamento Frei Henri des Rozier. É um acampamento de
uma fazenda pertencente a uma outra família tradicional na região, e
essa fazenda é a primeira em que a Justiça do Pará, a vara agrária de
Marabá, concedeu a reintegração de posse para os acampados. Du-
rante o processo de tentativa de despejo da fazenda, o Incra conse-
guiu comprovar que aquele imóvel era objeto de grilagem, como
muitas outras fazendas no sudeste do Pará. A devolutiva criou, ainda,
uma agenda de novas pesquisas proposta por parte da comunidade do
Assentamento 26 de Março e da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
uma vez que fomos mobilizados(as) a começar a pensar uma forma
tradicional de apropriação territorial pela oligarquia local que precisa
de investigações mais robustas: a grilagem por aforamento de casta-
nhais. Trata-se, portanto, de uma pesquisa que está por fazer e surge
quando a gente vai lá conversar com a comunidade. Destacam que
esse mecanismo de conceber aforamentos de territórios para a extra-
ção da castanha e a entrega dos castanhais para as grandes famílias e
empresas multinacionais naquela região no sudeste do Pará (denomi-
nada Polígono dos Castanhais) era uma forma estabelecida de grila-
gem de terras. Esse elemento surge a partir do momento em que a
gente vai fazer a devolutiva e que problematizamos o regime de ter-
ras estabelecido por compra e venda, refletindo sobre a forma de

297
exceção que se constitui pelo instituto dos aforamentos, que termina
por revisitar a lógica das concessões de sesmarias dos tempos da colo-
nização portuguesa. A dinâmica de efetuar a devolutiva foi um mo-
mento extremamente importante nessa pesquisa de campo marcada
pela teoria crítica. Ela me marcou/afetou enquanto pesquisador, ao
ponto de hoje eu não só fazer uma devolutiva final, mas passei a pro-
ceder a diversas devolutivas parciais nos trabalhos que temos feito na
Universidade Estadual de Feira de Santana. Elementos teóricos e me-
todológicos que começamos a discutir dentro da universidade já re-
tornamos rapidamente para essas comunidades em uma relação de
troca constante. Eu gostaria de mencionar a nossa atuação dentro de
um conflito no entorno de Feira de Santana, que é a tentativa de
usurpação de áreas quilombolas por uma linha de transmissão de
energia de alta tensão. A LT500kv, que está em processo de licencia-
mento e tentando atravessar territórios no entorno de Feira de Santa-
na e no município de Antônio Cardoso, que passou a constituir um
polo de lutas e pesquisa militante na região. A partir da mobilização
das comunidades atingidas, fomos chamados(as) enquanto universi-
dade e organizamos com outros colegas de algumas instituições um
Grupo de Trabalho (GT) interinstitucional envolvendo a UEFS, a
UFRB e o IFBA para poder realizar um enfrentamento técnico e qua-
lificado da empresa São Francisco, que foi criada para construir e gerir
a referida linha de transmissão. Passamos a atuar no conflito em di-
versas frentes através da produção de material técnico-científico nas
áreas de Engenharia Elétrica, Direito, Antropologia, Biologia e Urba-
nismo, retornando os resultados da assessoria para as comunidades
poderem prosseguir na luta pelo território. Realizamos algumas lives
durante a pandemia para dar visibilidade à luta e temos buscado arti-
cular o enfrentamento ao processo de licenciamento em todo trajeto
da linha de transmissão, com intuito de incorporar o maior número
possível de comunidades atingidas pelo empreendimento. Por fim, te-
mos tentado trazer o conhecimento que adquirimos com os estudos

298
no PPGSD e com essa convivência com a professora Ana Motta e o
professor Wilson Madeira para ampliar as possibilidades de defesa dos
territórios tradicionais. O Wilson foi meu orientador de mestrado e a
Ana Motta minha orientadora de doutorado, sendo que o Wilson foi
meu coorientador da tese. Sempre fizemos pesquisa de campo juntos
e eles sempre tiveram prontos para poder auxiliar nos espaços concre-
tos da pesquisa militante. Quando a Ana Motta está em pesquisa de
campo ela se transforma e faz pesquisa 24 horas por dia. É uma expe-
riência fantástica poder conviver com esses(as) pesquisadores(as). O
trabalho no Pará na ida para a devolutiva com a Nadine foi muito
tenso, porque ela estava dentro da aldeia com uma série de questões,
sofrendo até algumas ameaças durante o campo. No meu primeiro
campo, também sofri ameaças veladas e outras mais objetivas. Con-
cluo que essa experiência do trabalho de campo em Direito é muito
interessante e importante, e é uma necessidade para repensar o Direi-
to em bases de uma Teoria crítica. Esse é um campo de pesquisa mui-
to fértil, sendo que o PPGSD é uma referência junto a alguns outros
programas de pós-graduação que podem contribuir para a pesquisa
empírica em Direito na Teoria Crítica. Eu vi que aqui no chat temos a
professora Shirley Andrade da Universidade Federal do Sergipe, que
também faz pesquisa na linha do trabalho escravo contemporâneo e
tem um grupo na graduação muito atuante. Há vários caminhos para
a pesquisa empírica-crítica no direito e esperamos que essa mesa pos-
sa ser uma contribuição nesse campo, para continuarmos atuando
com fôlego em uma perspectiva emancipatória da sociedade.

Emmanuel Oguri: Eu separei algumas perguntas que encaminhei


aos membros da mesa; peço que respondam às perguntas e já façam
as considerações finais de vocês. Rapidamente, eu gostaria de men-
cionar que o professor Pedro Saavedra (UFF) teve recentemente um
estudo mencionado em um julgamento no STF; então entre as nos-
sas pesquisas e as instituições ainda há uma possibilidade de diálogo.

299
Invertemos agora, começamos com a Nadine, depois passamos à pro-
fessora Ana Motta e, por fim, ao professor Wilson. Se houver tempo,
eu me despeço, mas desde já quero agradecer. Muito obrigado pela
participação de vocês.
Shirley Andrade Silveira (professora da Universidade Federal do
Sergipe): Que estratégias os pesquisadores têm utilizado para en-
frentar a covid? Como fazer entrevistas, trabalhos de campo nessa
situação?

Wanessa Galindo (estudante da UEFS): Como vocês têm continuado


as pesquisas durante a pandemia? Como fazer uma pesquisa com os
cinco sentidos em um período de pandemia?

Vanessa Lopes (professora da UFF): Como fazer com que a pesquisa


empírica e crítica em Direito influencie mais o campo do judiciário e
a formulação de políticas públicas?

Hugo Belarmino (doutorando do PPGSD e professor da UFPB): Pro-


blematiza que se fale não só das vantagens da pesquisa empírica, mas
também dos desafios e dificuldades, e quais são as estratégias.

Nadine Borges: Obrigada, Emmanuel. Respondendo às perguntas:


eu acho que esse período da pandemia, demonstra, sobretudo, a im-
portância do direito que temos de acesso à informação; o direito à
internet, a ter um computador, a acessar esse mundo virtual que está
regrando a nossa vida hoje. E não é porque as pessoas são pobres,
moram longe, na periferia, ou porque são indígenas ou quilombolas
que elas não merecem ter esse mesmo direito. O acesso universal à
informação talvez seja uma das principais lutas desse momento para
encamparmos também. Porque não podemos parar. E para isso, pre-
cisamos conversar com essas pessoas também. Isso não pode ser ape-
nas um recurso da elite nesse país. Ter acesso à internet, participar

300
de uma reunião virtual. Porque qualquer pessoa tem condições de
fazer isso que estamos fazendo aqui. Independente da classe ou lu-
gar em que vive. O Estado precisa dar esse suporte. E se o Estado
não dá, acho que a universidade pública, organizações, a sociedade
civil precisa ser organizar melhor nesses locais para a gente inclusive
compartilhar nossos computadores se preciso for, para que ninguém
fique fora disso e desse momento histórico que estamos vivendo. En-
tão essa é a minha resposta a como continuar. Eu sei que lá no início
do programa do PPGSD, o Wilson e a Ana Motta devem lembrar, o
pessoal perguntou se alguém tinha computador sobrando, se podia
dar um laptop para um colega que estava precisando; é preciso que
a gente exerça a nossa solidariedade da maneira mais bonita nesse
momento, para ninguém ficar de fora disso, porque não vai ser por
não ter acesso ao mundo virtual que a gente vai deixar de ter acesso
a essa realidade. E é nosso dever. Não é privilégio nenhum fazer essa
quarentena. É direito. A gente precisa proteger a nossa saúde e preci-
sa proteger a saúde dos próximos. Então quero me despedir dizendo
que todo mundo tinha que ter acesso à internet. Obrigada.

Ana Motta: Sobre a pergunta da Shirley Silveira: eu gostaria de re-


tornar e dizer algo que não disse durante a minha primeira fala. A
política de cotas teve consequências inenarráveis para a universida-
de. No PPGSD, a gente abriu cotas para negros, recebemos quilom-
bolas; abrimos para indígenas. Eu tenho um orientando indígena
que é um índio Terena; e abrimos cotas também para transsexuais.
Então temos hoje no programa uma oficial transsexual da Marinha
reivindicando o direito de retornar às atividades no interior das for-
ças armadas. Isso ampliou, naturalmente, o nosso trabalho. A gen-
te está muito mais ocupado atualmente. A minha experiência de
orientação com esse índio Terena, que é uma pessoa notável, vimos
primeiro: que o protagonismo dos seguimentos sociais indígenas,
porque uma parte da realidade depende da gente. A nossa parte é

301
estudar na academia. A realidade se constitui. E é preciso respeitar
isso. O protagonismo indígena está claro nessa conjuntura neofascis-
ta no país. Eles se organizaram, estão se articulando com outras prá-
ticas e estratégias de lutas com as classes trabalhadoras de um modo
geral. Então os índios que eram considerados até a década passada
guardiões da floresta, em um sentido bem passivo e romântico, ago-
ra são guerreiros. São guerreiros e estão indo para a rua, pintando
a cara, levando machadinha, tacape e arco e flecha. E estão brigan-
do. Eles viraram classe. No sentido em que o Thompson chamaria.
Nesta forma orgânica e articulando-se aos demais seguimentos tra-
balhadores, eles viraram classe. Então nessa perspectiva, a subnotifi-
cação da covid é tão grave em relação aos indígenas, a quantidade de
mortos é tão severa e tão abusiva; essa política genocida. O profes-
sor Alfredo Wagner está fazendo uma reflexão sobre a morte, sobre
o significado científico da morte, nesse sentido, um trabalho lindo,
numa live que ele fez essa semana, e ao mesmo tempo, emocionante
e triste. Os índios se organizaram, através da Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil, a APIB, que é uma entidade, eles se constituí-
ram organicamente, e fizeram um sistema de coleta de dados para
entender o nível da contaminação da covid. Então se o governo sub-
notifica, se o Estado não cumpre o seu papel, a sua função de noti-
ficação e de planejamento, eles fazem. Fazem por conta deles. Bus-
cando a assembleia, que eles chamam de assembleia dos indígenas,
que foi realizada dentro de um acampamento que eles fizeram em
Brasília, uma ocupação importante. Então querida, para te respon-
der através dessa experiência: eles estão utilizando o whatsapp. São
várias formas. Mas o whatsapp me pareceu o mais criativo. Eles têm
contato com lideranças indígenas das comunidades. Então a cada
dia de manhã, esses whatsapp são acionados e um representante de
cada aldeia diz quantos mais estão comprometidos, quantos foram
levados para o hospital e quantos morreram. De tal modo que é um
conhecimento aproximado, mas é um conhecimento contra a ideia

302
do Estado de apagar a sua própria existência e de negá-los enquanto
sujeitos históricos ou de sujeitos de direitos. Se o Estado não faz, fa-
zem eles. A contrapelo do próprio Estado. A Flávia Pitta perguntou
sobre a devolutiva, eu já respondi. Agora gostaria de dizer: a escolha
do tema de pesquisa, nesse caso do intelectual coletivo, nos traba-
lhos que fazemos eu e o Wilson, não é uma escolha casual. Uma
vez que a gente entra em imersão nessas realidades, levando outros
pesquisadores, quando a gente volta, os temas e o objeto começam
a se desenhar com mais clareza na sua dimensão empírica, uma vez
que a gente entra lá dentro. Como faremos agora com essa pande-
mia? Não sei! Ora, vamos continuar fazendo. Sem caminhar antes
não há caminho. Se hace el camino al caminar! Vamos haciendo! Sobre a
pergunta da Vanessa Lopes a respeito da influência das pesquisas nas
políticas públicas e no campo judiciário. Ora, a própria Vanessa, mi-
nha querida orientanda que fez uma dissertação maravilhosa, muito
elogiada, que estudou a criminalização do MST em Goiás, ela sabe
que parte da pesquisa dela da dissertação foi utilizada no processo
de defesa do trabalhador que foi criminalizado. Então é assim que se
pode modificar o judiciário. Quero agradecer a presença de Hugo,
de Priscila, de Magda, de Maria, de Flávia, de Janaína, de Vanessa,
de Michele da UCSAL e da Roberta. Acho que a questão do afeto
no convívio, o Emmanuel falou claramente, isso está esclarecido,
e com relação à pergunta do Hugo sobre as dificuldades, e eu vou
encerrar por aqui, mas antes disso eu quero dizer sobre a importân-
cia do registro de memória. A fala do Wilson é uma fala-chave para
se compreender o modo de trabalho que nós temos. A gente vem
contando e registrando onde nós estamos, o lugar de onde falamos,
como produzimos esse conhecimento, no nível institucional, admi-
nistrativo, físico e pessoal também. A última pergunta do Hugo, de
que as dificuldades devem ser demonstradas também, eu gostaria
de mencionar duas dificuldades. A primeira é que o Emmanuel já
mencionou, que são as ameaças que a gente sofre quando está no

303
campo. Várias ordens de ameaça. Me lembro de uma delas em Açai-
lândia, em São Luís, quando a gente fazia uma pesquisa, de novo
esse grupão enorme, e aí a gente percebe um rapaz, de noite no bar,
dançando forró, que fica assediando sexualmente e oferecendo ma-
conha para um dos pesquisadores nossos, e a gente muito assustado,
todo mundo se retira, “vem, vamos pro hotel”, para a gente con-
versar o que era aquilo. A gente descobre que esse cara era o nosso
motorista, indicado pelo Secretaria de Meio Ambiente, e que na ver-
dade ele era um capanga do principal matador na cidade, que tinha
matado tanta gente, cujos corpos escondidos foram descobertos e
deram origem ao prêmio daquela organização não-governamental
chamada Justiça nos Trilhos. Então tem as suas dificuldades e os afe-
tos também. É isso! Obrigada, obrigada!

Wilson Madeira Filho: Para finalizar, eu só queria salientar que essa


mudança do Judiciário é um ponto de vista que a gente precisa man-
ter, que faz parte da realidade do Brasil, e a gente tem um Judiciá-
rio que muitas vezes é absolutamente conservador e pautado pelos
modelos oligárquicos a que vim me referindo. Mas como se trans-
forma isso? Primeiro, a própria devolutiva; em várias pesquisas que
nós realizamos, fizemos questão de levar para o Judiciário, ou para o
Ministério Público, enfim, para aqueles que foram os atores pesqui-
sados. Recebemos todo tipo de crítica, que a gente só fala mal etc.,
mas faz parte. É assim, na apresentação franca das questões, partindo
do pressuposto que somos todos seres em transformação, que apren-
dem coletivamente, que a gente vai construindo o caminho. E tanto
é assim que essa crítica inicial se reverteu: depois que o Programa
de Sociologia e Direito se consolidou, vários juízes e outros opera-
dores e operadoras do direito passaram a concorrer em nossas sele-
ções, a fazer mestrado e doutorado conosco. Vários aqui conhecem
esses profissionais, são magistrados, promotores, defensores, delega-
dos e advogados e advogadas de ponta que vieram nos procurar, não

304
só para ter um título, mas para ter um título conosco. Eles vêm nos
procurar justamente porque na atividade profissional também eles
necessitam desse perfil crítico. Então um último exemplo: eu me lem-
bro de um evento que fizemos lá na Corte Constitucional alemã, e
o que a gente constatou lá e eu tive a oportunidade de jantar com o
presidente da corte, todos os magistrados alemães têm doutorado.
Todos! Isso simboliza o interesse, o perfil de juiz daquele país, é o
perfil de alguém que tem a trajetória acadêmica também. Então a
gente precisa, de certa forma, fazer crescer essa cultura. E já cresceu
bastante. Em especial porque o inverso também ocorreu, e atraímos
militantes sociais, lideranças de movimento como o MST e o MTST,
criamos a maior cota de ingresso de negros e negras da América La-
tina, criamos cotas para transgêneros e travestis, criamos cota para
indígenas, estamos projetando fazer uma turma de mestrado exclusi-
va para indígenas em Roraima e uma turma de graduação exclusiva
para quilombolas no Pará e, sobretudo, viramos referência na postu-
ra antifascista com a ascensão da extrema direita. Hoje o número de
pós-graduações é muito grande. Mas a nossa procura cresceu muito
também nesse aspecto. Parece-me que isso é uma forma de transfor-
mação bastante importante. E com isso eu me despeço agradecendo
ao Emmanuel mais uma vez a oportunidade de estar aqui com a Ana
Motta e com a Nadine.

Emmanuel Oguri: Obrigado a todos e a todas! Se quiserem conhe-


cer mais, procurem o PPGSD, o GT de Conflitos Socioambientais
da UEFS e o Observatório Fundiário Fluminense. A gente continua
fazendo pesquisa militante, pesquisa-ação e observação participan-
te e estamos todos(as) sempre à disposição para construir pontes
para essa pesquisa que pretende transformar o mundo, melhorar
as condições de vida para a classe trabalhadora, para os subalter-
nizados, para os homens e mulheres do campo, para os indígenas,
quilombolas.

305
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p. 86-149.

307
SOBRE OS AUTORES

Ana Maria Motta Ribeiro (Org.)


Possui Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricul-
tura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/
CPDA (2008), Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (1987) e graduação
em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1974).
Atualmente é Professora Associada I do Departamento de Sociologia e
Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense,
Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociolo-
gia e Direito (PPGSD/UFF) e Coordenadora do Diretório de Grupo de
Pesquisas do CNPq “Observatório Fundiário Fluminense -UFF”. Tem
experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia Rural e
Teoria Sociológica, atuando principalmente nos seguintes temas: estu-
dos sobre o comum na América Latina; pesquisa empírica/de campo
com metodologias participativas; conflitos socioambientais e hidroter-
ritoriais; criminalização dos movimentos sociais; jusdiversidade e direi-
tos diversos de quilombolas, indígenas; materialismo histórico-dialético
e historiadores marxistas britânicos; questão agrária-ambiental e refor-
ma agrária; agroecologia como modelo agrícola; campesinato; sindica-
lismo e violência no campo; e narcotráfico.

Ana Paula Joaquim Macedo


Professora da Universidade Estadual de Roraima, Doutoranda no
Doutorado Interinstitucional DINTER-PPGSD-UFF em Roraima.

309
Cláudio Ribeiro Lopes
Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pelo PPGSD da Universidade
Federal Fluminense - UFF (2016), possui graduação em Direito pelo
Centro Universitário Toledo, de Presidente Prudente (1990). Especia-
lista em Direito pela UNOESTE (2000) e Mestre em Direito: Tutela
de Direitos Supraindividuais pela Universidade Estadual de Marin-
gá - UEM (2007). Atualmente lidera os Grupos de Pesquisa UFMS/
CNPq Direito Agrário e Práxis: diálogos transdisciplinares, Núcleo de
Pesquisas em Conflitualidade, Conflitos Socioambientais, Violências,
Controle Social, Política Criminal e Tutela Jurídica Constitucional-
-Penal de Bens Jurídicos Individuais e Supraindividuais e Estudos de
Direito Penal: vida e obra de Hans Welzel e suas contribuições para
a Ciência Penal contemporânea e reflexões críticas às propostas nor-
mativistas e participa dos Grupos de Pesquisa: UFMS/CNPq Tutela
Jurisdicional Punitiva na Modernidade, UFF/CNPq Grupo de Pesqui-
sa em Direitos Humanos e Sociedade e UFF/CNPq Laboratório Ci-
dadania, Territorialidade e Ambiente - LACTA. Liderou o Grupo de
Pesquisa UFMS/CNPq Casa da Vovó, Morada do Lobo Mau: estudos
sobre modelos autoritários, ditaduras e outras formas de indignida-
de humana e participou dos grupos de pesquisa UEM/CNPq Novas
Perspectivas da Proteção Jurídico-Penal do Ambiente e da Ordenação
do Território, Problemas Fundamentais do Direito Penal Contempo-
râneo. É Professor Adjunto 3 na Universidade Federal de Mato Gros-
so do Sul, Campus Três Lagoas, colunista do Portal Conteúdo Jurídi-
co (www.conteudojuridico.com.br) e foi professor de Criminologia,
Direito Penal, Direito Processual Penal e Estágio de Prática Jurídica
Penal, de abril de 2000 a janeiro de 2009, na UNOESTE, professor de
Direito Penal II, na Faculdade Integrado de Campo Mourão/PR, de
julho de 2008 a janeiro de 2009. Atualmente é membro da Associação
Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito - ABraSD. Tem
experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e em So-
ciologia, especificamente, Sociologia dos Conflitos Socioambientais.

310
As suas principais linhas de investigação são: Conflitualidade so-
cioambiental, sociologia da violência, consequências jurídico-penais
dos delitos: fundamentos, fins, limites, merecimento e necessidade de
pena; dignidade humana, delitos supraindividuais e Direito Penal do
inimigo. Atua nos últimos anos de pesquisa com o tema desertos ver-
des e conflitos socioambientais.

Emmanuel Oguri Freitas


Possui graduação em Direito pela Universidade Cândido Mendes
(2000-2004), mestrado (2005-2007) e doutorado (2014-2018) em So-
ciologia e Direito pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Direito (PPGSD), da Universidade Federal Fluminense, na linha de
conflitos socioambientais rurais e urbanos. É professor adjunto em
regime de dedicação exclusiva na Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS), na Bahia. Atualmente exerce a função de Coorde-
nador do Colegiado do Curso de Direito da UEFS. Durante parte do
ano de 2017, realizou estágio doutoral, trabalhando como pesqui-
sador convidado na École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS), sob supervisão do Professor Michael Löwy. Tem experiên-
cia nas áreas de Direito e da Sociologia, atuando principalmente nos
seguintes temas: direito do trabalho, direito agrário, sociologia jurídi-
ca, sociologia rural, história do direito, história agrária, movimentos
sociais, teoria crítica do direito e tecnologias democráticas.

Erika Macedo Moreira


Doutorado em Direito pela Universidade de Brasília (2014). Mestrado
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense
(2007). Graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense
(2004). Tem experiência em pesquisa empírica no Direito e prática in-
terdisciplinar. É professora da Universidade Federal de Goiás/ regional

311
Cidade de Goiás (2009). Fundadora do Observatório Fundiário Goia-
no (OFUNGO), espaço que articula pesquisadores-extensionistas nas
ações desenvolvidas desde 2007. Entre as ações que coordenou destaca
-se: Programa de Pós Graduação Direitos Sociais do Campo/ Residên-
cia Agrária - CNPq/ INCRA-PRONERA/ UFG (2013/2015); Estágio
Interdisciplinar de Residência Agrária/ MEC - PROEXT 2015; Progra-
ma Direitos Sociais do Campo/ MEC/ PROEXT 2016/2017). Atual-
mente é a coordenadora da 2a Turma de Direito para Beneficiários da
Reforma Agrária e Agricultores Familiares - UFG/ INCRA-PRONERA.

Eve Anne Bühler


Professora adjunto no Departamento de Geografia da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, lecionando na graduação e no
programa de pós-graduação em Geografia. Tem doutorado em geo-
grafia na especialidade ESSOR (Espaços, Sociedades Rurais e Lógicas
Econômicas) pelo Instituto Nacional Politécnico de Toulouse e mes-
trado pela Universidade de Toulouse II - Le Mirail, com experiência
de pesquisa e extensão na área de geografia econômica e geografia so-
cial dos espaços rurais, atuando nos seguintes temas: transformações
e territorialização das agriculturas, globalização e novas ruralidades
em contexto metropolitano, regulação ambiental da agropecuária.
Integra o Núcleo de Pesquisas Geoambientais (NUCLAMB), o gru-
po de pesquisa Fronteiras, e coordena a REAGRI (Rede de Pesquisa
sobre Regiões Agrícolas), todos registrados no CNPq. Atualmente,
é bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ e atua em
diversos projetos de pesquisa apoiados por órgãos de fomento.

Évelin Mara Cáceres Dan


Professora Adjunta do Curso de Direito na Universidade do Estado
de Mato Grosso (2008-atual). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais

312
da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense ( 2015-
2019). Pesquisadora associada do Grupo de pesquisa em Direito,
Estado e Sociedades (GPDES) da Universidade do Estado de Mato
Grosso. Atuação na área do Direito Público, com ênfase em Direito
Penal, Criminologia e Linguística (Análise de Discurso Materialista).
Palavras chave: pena - prisão - discurso - anormalidade - perversidade
- periculosidade - exame criminológico - responsabilidade penal.

Geovana Lara Clemente Rocha


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Goiás-Regional
Goiás. Coordenadora Geral do DCE-RCG. Membra do Fórum Per-
manente de Debate e Discussão de Políticas Públicas para Mulheres
no Município de Goiás. Participante do Coletivo Feminista GSEX.

Kilwangy Kya Kapitango-a-Samba


Pós-Doutor em Educação: Cultura, Memória e Teorias em Educação
pela Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT (Bolsista CAPES).
Doutor em Educação: Ensino de Ciências e Matemática pela Univer-
sidade de São Paulo - USP. Mestre em História da Ciência pela Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (Bolsista CNPq).
Mestre em Neuropsicopedagogia, pelo Instituto Superior de Psicolo-
gía y Educación (ISPEDUC), Espanha. Especialista de Formação Pro-
fissional em Neuropsicopedagogia Clínica, Institucional e Hospitalar,
pela Faculdade Global (FG), Porto Alegre/Rio Grande do Sul. Espe-
cialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior pela Univer-
sidade de Santo Amaro-UNISA, São Paulo. Graduado em Filosofia,
com habilitação em História e Psicologia, pelo Centro Universitário
Assunção (UNIFAI), São Paulo. Professor Adjunto da Universidade
do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, na Graduação (Matemáti-
ca, Computação, Direito, Arquitetura e Urbanismo e Engenharias)

313
e na Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática - Campus
Universitário da Barra do Bugres, Mato Grosso, Brasil. Coordenador
do Laboratório de Metodologia Científica (LMC). Líder do Grupo
de Pesquisa Profissão Docente e Ciência da Aprendizagem (PDCA/
CNPq) e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Direito, Estado e
Sociedade (PPDES/CNPq). Membro da International Society of the
Learning Sciences (ISLS). Membro da International Study Associa-
tion on Teachers and Teaching (ISATT). Membro do Conselho Bra-
sileiro de Superdotação (ConBraSD). Membro Titular Profissional da
Sociedade Brasileira de Neuropsicopedagogia (SBNPp). Membro da
Sociedade Brasileira de Progresso da Ciências (SBPC) e da Associação
Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE).
Coordenador Estadual de Mato Grosso da Associação Nacional pela
Formação dos Profissionais da Educação-ANFOPE (de fev./2021 à
jan./2023). Tem experiência e interesse de pesquisa nas áreas de Me-
todologia, Filosofia, Educação e Ciências da Aprendizagem com foco
em: Ensino-Aprendizagem; Formação de Professores; Aprendizagem
e Desenvolvimento Profissional Docente; Metodologia de Pesqui-
sa; Metodologia de Ensino, Avaliação e Currículo; Epistemologia,
História e Filosofia da Ciência no Ensino de Ciências e Matemática;
Políticas Públicas e Estratégia; Ciências da Aprendizagem e Neurop-
sicopedagogia; Dificuldades de Aprendizagem; Altas Habilidades/Su-
perdotação; Educação Especial e Tecnologia Assistiva.

Luciano Pereira da Silva


Graduado em História pela Universidade Federal do Paraná, mestra-
do em História com concentração em Arqueologia pela Universida-
de Federal da Grande Dourados, e atualmente realiza doutorado em
“Memória Social e Patrimônio Cultural” na Universidade Federal de
Pelotas. Professor do Curso de História da Universidade do Estado
de Mato Grosso (UNEMAT) desde 1998. Atua nas áreas de Teoria da

314
História, Arqueologia, Patrimônio Cultural, Diversidade Cultural.
Presidente fundador da Associação de Pesquisa Xaraiés (2015-2017).
Conselheiro do Setorial de Patrimônio Material do Conselho Nacio-
nal de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (CNPC-MINC) e
do Conselho Estadual de Pesca de Mato Grosso. Membro da Socie-
dade de Arqueologia Brasileira - SAB, Associação Nacional de Histó-
ria - ANPUH. No Conselho Internacional de Monumentos e Sítios ?
ICOMOS Brasil integra os comitês científicos de Patrimônio Imate-
rial,; Paisagens Culturais; e Mudanças Climáticas. Membro da equi-
pe do projeto de pesquisa “Observatório de Políticas Públicas sobre
o Covid-19 para Povos e Comunidades Tradicionais” (Portaria n.
1649/2020).

Maira de Souza Moreira


Doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre
em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense
(UFF) (2017). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade
Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
(2014). Foi professora substituta de Sociologia e Antropologia do Di-
reito da Universidade Federal de Juiz de Fora (2018- 2019). Pesquisa-
dora vinculada ao Projeto Morar, Trabalhar e Viver no Centro: mo-
bilizações e ações de promoção do direito à cidade na área central do
Rio de Janeiro, projeto de extensão universitária do Observatório das
Metrópoles (IPPUR/UFRJ). Integrou o grupo de pesquisa Núcleo de
Pesquisas sobre Práticas e Instituições Jurídicas (NUPIJ) da Universi-
dade Federal Fluminense, na condição de estudante da pós-gradua-
ção (2015-2016). Possui experiência em pesquisas nos marcos inter-
disciplinar e empírico, mobilizando as áreas de Direito, Sociologia e
Antropologia, com ênfase em Sociologia do Direito, Sociologia dos

315
Processos Sociais Rurais, Sociologia Urbana e Antropologia do Esta-
do. Atuando principalmente nos seguintes temas: cidadania, direito e
movimentos sociais, políticas públicas, etnicidade, políticas públicas
rurais e étnicas, principalmente as políticas de Reforma Agrária e de
Regularização de Territórios Quilombolas.

Maria José Andrade de Souza


Doutora em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Flumi-
nense. Mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal
Fluminense. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Fei-
ra de Santana. Professora Adjunta da Universidade Federal do Sul e
Sudeste do Pará. Atuação acadêmica com ênfase nos seguintes temas:
Assessoria Jurídica Popular, Conflitos Socioambientais, Sociologia Ju-
rídica com enfoque no estudo de decisões judiciais em conflitos agrá-
rios e ambientais.

Nadine Monteiro Borges


Advogada e Professora, Doutora e Mestre em Sociologia e Direito
pela Universidade Federal Fluminense. Autora do livro Damião Xi-
menes: Primeira Condenação do Brasil na Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Revan (2009). Atualmen-
te é Vice Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB RJ.
Coordenadora do curso de pós graduação em Processo Legislativo
no CEPED UERJ (2021). Atua como assessora jurídica parlamentar
na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (2021). Foi membro e
presidiu a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (2014).
Foi Coordenadora de Relações Externas e Institucionais da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro. Foi Gerente de Projetos e Assessora
da Comissão Nacional da Verdade (2012/2013) e Coordenadora Ge-
ral da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da

316
Presidência da República. Coordenou o Grupo de Trabalho respon-
sável pela exumação dos restos mortais do Presidente João Goulart
(2013) e o Grupo de Trabalho Araguaia ? GTA, encarregado do cum-
primento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
relativa ao caso ?Guerrilha do Araguaia?? (2011/2012). Foi Assessora
Especial, Diretora Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescen-
te e de Promoção dos Direitos Humanos da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República (2011/2012). Foi advogada da
Organização Justiça Global (2005/2006) e elaborou diversos relatórios
sobre as violações de direitos humanos do Estado brasileiro. Atual-
mente é membro do Conselho de Formulação Programática do Insi-
tuto Novos Paradigmas e Diretora Jurídica Adjunta do Instituto João
Goulart. Possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos - UNISINOS (2003). Realizou curso de extensão sobre
o Sistema Interamericano e Universal de Proteção dos Direitos Hu-
manos, organizado pela American University Washington College of
Law (WCL-AU), Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) e Internacional
Service Human Rights (ISHR) em Washington/DC (2005). Dedica-se
à pesquisa das violações de direitos humanos.

Napoleão Miranda
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de
Minas Gerais (1978), mestrado em Desenvolvimento Urbano por El
Colégio de México (1981) e doutorado em Sociologia pela Socieda-
de Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ (1991). Atualmente é Coor-
denador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
(PPGSD), foi Vice-diretor e Diretor em Exercício do Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Flumi-
nense (UFF), entre 2011 e 2015, e foi Coordenador do curso de Gra-
duação em Sociologia da mesma Universidade, entre 2012-2016. É

317
Professor ASSOCIADO IV do Departamento de Sociologia da UFF
e Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
(PPGSD/UFF). Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase
em Sociologia dos Movimentos Sociais, Cidadania, Sociedade Civil,
Terceiro Setor, Sociologia do Meio Ambiente, atuando principalmen-
te nos seguintes temas: cidadania, direitos humanos, sociedade civil,
desenvolvimento sustentável e meio ambiente, e participação social.
É também Bacharel em Direito (2010) pela Universidade Cândido
Mendes, Niterói.

Nathalia Maria Gonzaga de Azevedo Accioly


Possui graduação em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal de
Rondônia (2015). Já atuou como advogada na área de contencioso
massificado. Atualmente encontra-se atuando na área cível. É mes-
tranda no Mestrado Interinstitucional em Sociologia e Direito – MIN-
TER-PPGSD-UFF em Rondônia.

Roberta Brandão Novaes


Professora da Faculdade Nobre (FAN-BA), da Unidade de Ensino
Superior de Feira de Santana (UNEF) e da Faculdade Adventista da
Bahia (FADBA). Possui licenciatura e bacharelado em Ciências Sociais
pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Ciências Sociais
pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ)
e doutorado no Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Antro-
pologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ).
Possui experiência de pesquisa e extensão em Antropologia da Polí-
tica, Sociologia Rural e Sociologia e Antropologia do Trabalho, com
foco nos temas: juventude, mobilidade espacial, trabalho e agronegó-
cio, reforma agrária e cultura de classe trabalhadora urbana. É pes-
quisadora do NUAP (Núcleo de Antropologia da Política) do Museu

318
Nacional (UFRJ) e membro do Comitê Lutas Sociais e Ruralidades,
da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Disciplinas que leciona:
Trabalho de Conclusão de Curso, Projeto de Pesquisa, Metodologia
da Pesquisa, Sociologia do Direito, Ciência Política e Teoria do Esta-
do e Sociologia do Trabalho.

Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão (Org.)


Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense
(1997), mestre em Antropologia pela Universidade Federal Flumi-
nense (2000), doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília
(2006) e pós-doutor pelo Núcleo de Estudos Comparados da Ama-
zônia e do Caribe da UFRR (2015). Professor do Departamento de
Direito Público da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Gra-
duação em Sociologia e Direito PPGSD, integra o Instituto de Estu-
dos Comparados sobre Administração de Conflitos (INCT-InEAC) da
Universidade Federal Fluminense. Seus interesses estão voltados para
a interface entre o Direito e Sociedade, em objetos vinculados à justi-
ça socioambiental, à construção legal de identidades, à administração
alternativa de conflitos, à jusdiversidade e à interlegalidade em con-
textos pós-coloniais.

Valter Lucio de Oliveira (Org.)


Possui doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricul-
tura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(CPDA-UFRRJ), com estágio sanduíche na Ecole des Hautes Etudes
en Sciences Sociales (EHESS-Paris-França), mestrado em Desenvol-
vimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PG-
DR-UFRGS) e graduação em Agronomia pela Universidade Federal
de Lavras (UFLA). Foi bolsista de Pós-Doutorado do CNPq no Depto
de Sociologia da UFRGS. Atualmente é professor do Departamento

319
de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e dos Programas de
Pós Graduação em Sociologia e em Sociologia e Direito da Univer-
sidade Federal Fluminense - UFF. Membro da Diretoria da Rede de
Estudos Rurais (Gestão 2019-2021)

Vívian Lara Cáceres Dan


Pós doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós
graduação da Universidade Federal Fluminense (2020/2021). Douto-
ra em Sociologia e Direito (2016) pela Universidade Federal Flumi-
nense. Mestre em História Contemporânea (2010) pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. Possui graduação em licenciatura em
história pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2006), gradua-
ção em Bacharelado em Direito pela Universidade do Estado de Mato
Grosso (2004). Professora adjunta da Universidade do Estado de Mato
Grosso, área Teoria do Direito, curso de Direito em Barra do Bugres.
Integra o Grupo de Pesquisa e Investigação em Direito, Estado e So-
ciedades (GPDES) no CNPQ. Preside o Núcleo Docente Estruturante
do curso de Direito (2020/2023). Coordena o Projeto de Extensão:
“Formação de jovens lideranças para a sustentabilidade ambiental
(2018/2020). Coordena o Projeto de Pesquisa: “A invisibilização dos
pescadores artesanais tradicionais na região do Pantanal mato-gros-
sense” (2019/2021). Coordena o Projeto de Pesquisa: “Observatório
de Políticas Públicas sobre o covid-19 para povos e comunidades tra-
dicionais” (2020/2021).

Wilson Madeira Filho


Possui graduação na Faculdade de Direito da Universidade Federal
Fluminense (1983), Mestrado em Letras, com bolsa CNPq, pela Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1989) e Doutorado
em Letras, com bolsa CNPq, pela Pontifícia Universidade Católica

320
do Rio de Janeiro (1998), com um período de estudos comparados,
financiado pelo DAAD, na Universidade de Colônia, na Alemanha.
É professor Titular de Teoria do Direito com Dedicação Exclusiva.
Foi Diretor da Faculdade de Direito da UFF entre jan 2016-jan 2020.
Foi, por 3 mandatos intercalados (2002-2004, 2009-2013, 2013-2016),
coordenador do PPGSD (Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Direito), mestrado e doutorado, da UFF. Tem experiência na área de
Direito Ambiental e Urbanístico, com ênfase em Conflitos socioam-
bientais, rurais e urbanos, e com forte atuação na extensão universitá-
ria. Coordena projetos de pesquisa em Rondônia, Roraima e no Pará.
Coordenou por oito vezes equipes da UFF no Projeto Rondon. Coor-
dena o Projeto Laboratório de Justiça Ambiental, com forte atuação
em Oriximiná PA, no Campus Avançado José Veríssimo. Coordena o
pré-vestibular social Dr. Luiz Gama. Coordenou a mobilização social
e a redação do projeto de lei de diversos planos diretores municipais.
Participou da coordenação de diversas Conferências das Cidades. Foi
coordenador (2014-2017) do Projeto de Fortalecimento em Segurança
Alimentar e Nutricional nos estados RJ, MG e ES. Participou da coor-
denação de diversas Conferências municipais e estaduais de Segu-
rança Alimentar e Nutricional. Foi eleito, para o mandato out 2012-
out 2014, e reconduzido para o mandato 2014-2016, prorrogado até
02/2017, Presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gra-
duação Interdisciplinar em Sociais e Humanidades (ANINTER).É
consultor ad hoc do MEC e da Capes.

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Este livro foi composto em Dante
MT pela Editora Autografia.

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