Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo:
O presente trabalho tem por objetivo construir uma crítica da reforma constitucional no
processo de transição da ditadura civil-militar brasileira à democracia, entendendo-a como elemento
essencial para os contornos do presente quadro jurídico-político. Para tanto, faz uso de ampla
revisão bibliográfica, assim como referências à legislação. Inicialmente, busca-se apresentar a
crítica marxista ao Direito enquanto plexo necessário à apreensão da especificidade da ideologia
jurídica da reforma constitucional. Num momento seguinte, intenta-se alcançar a determinação
particular do processo ocorrido em fins dos anos 1980 no Brasil, para então voltar-se a seus
desdobramentos contraditórios na trama conjuntural, partindo de sua sobredeterminação jurídica.
Por fim, identificam-se caminhos possíveis e necessários para a superação do tempo presente.
Palavras-chaves: constituição; conjuntura; marxismo.
Abstract:
This paper aims to build a critique of the constitutional reform in the process of transition
from the Brazilian civil-military dictatorship to democracy, understanding it as an essential element
to the contours of the current legal-political framework. To this end, it makes use of extensive
literature review, as well as references to legislation. Initially, we seek to present the Marxist
critique of Law as a necessary plexus to grasp the specificity of the legal ideology of constitutional
reform. In a subsequent moment, the intention is to reach the peculiar determination of the process
that occurred in the late 1980s in Brazil, and then turn to its contradictory developments in the
conjuncture, starting from its legal overdetermination. Finally, we identify possible and necessary
ways to overcome the present time.
Key-words: constitution; conjuncture; Marxism.
Metodologia
A metodologia utilizada foi a hipotético-dedutiva, valendo-se de vasta pesquisa bibliográfica
em campos como a Filosofia do Direito, História e Ciências Sociais, além de referências
documentais no âmbito da legislação.
Introdução
Das esperanças de redenção através do aprimoramento das estruturas jurídicas na transição
da ditadura civil-militar brasileira à democracia, até o fato do cotidiano necropolítico 1, a
instabilidade institucional, a crise das formas sociais no capitalismo, o desarme das perspectivas
juspostivistas para apontar alternativas de saída da crise. O espírito autoritário de 1964 está em 1988
e se manifesta com vigor em 2016, como molde a arquitetação do golpe parlamentar. Entre a
estrutura jurídica, a carta magna e o bloco no poder, o capitalismo interpela sujeitos pela lógica da
valorização do valor, e os faz expressarem-se gaguejando em uma linguagem que não lhes pertence,
a linguagem jurídica2. Nesse ínterim, as alternativas da ideologia da reforma constitucional
reaparecem clamando aos princípios e à correção textual pela superação do tempo presente.
No ponto mais alto da crítica ao Direito3, Evgeni B. Pachukanis, em 1924 em sua clássica
obra A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, edifica a compreensão do fenômeno jurídico nas suas
determinações mais profundas, a saber: a crítica das formas sociais. Partindo de O Capital de Karl
Marx, obra que se inicia com a análise da mercadoria, apreende o Direito como uma forma social
derivada da forma-mercadoria, tendo a categoria de sujeito de direito no interior da trama jurídica a
mesma posição que a mercadoria no capitalismo 4.
O Direito é, então, uma forma do capital e sua lógica reside na circulação das mercadorias.
A realização concreta dos princípios da liberdade e igualdade, a expressão jurídica do movimento
real do valor, o processo que vai da subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital e leva
ao ser do "homem" o revestimento da forma do valor na forma jurídica, a constituição da
subjetividade jurídica.5
Essa perspectiva encontra-se nas antípodas do senso comum jurídico contemporâneo, que
tem no juspositivismo e na leitura conjuntural a partir de suas categorias o centro nucleador da
reflexão e da produção prática e teórica do fenômeno jurídico 6. Aristóteles, na Metafísica,
referindo-se aos filósofos pré-socráticos aponta que estes, em sua maior parte, “consideravam como
os únicos princípios de todas as coisas os que são da natureza da matéria.” (PESSANHA, 1996, p.
40). Fazendo uma analogia com o juspositivismo, estes a tudo compreendem com a condição de
1
ALMEIDA, 2019, p. 113-29
2
Ver EDELMAN, 2016.
3
MASCARO, 2016, p. 276-84.
4
Ver PACHUKANIS, 2017.
5
Ver MARX, 2013b; NAVES, 2014; KASHIURA JR., 2014; MASCARO, 2019.
6
MASCARO, 2018.
tudo reduziram a norma, dessa forma não compreendendo a coisa em si, mas a norma construída
para a coisa, a dimensão jurídica de origem Estatal por sobre os fenômenos. Logo, temos não uma
teoria científica mas “o deserto infértil da escolástica” (PACHUKANIS, 2017, p. 232), o claro-
escuro onde a amplitude do conceito de direito acomoda até mesmo a escravidão.
A predominância do paradigma juspositivista na mentalidade jurídica contemporânea
estorva o alcance das determinações mais profundas do Direito e constrói a ambiência ideológica
onde “[...] juízes, promotores e advogados se veem ou como técnicos guardiões da moral
(juspositivismo eclético), ou como técnicos neutros, a serviço de uma ciência necessária
(juspositivismo estrito), ou como agentes políticos cuja prática é investida de qualidades sociais
efetivamente superiores (juspositivismo ético).” (MASCARO, 2018, p. 61).
Nesse ínterim, os sujeitos estabelecem uma representação da relação imaginária com as
condições reais de existência 7 do processo de construção normativa, no que nos interessa aqui, uma
“ideologia da reforma constitucional” na qual
[...] independentemente do conteúdo da reforma - da matéria constitucional que vai
ser objeto de deliberação, - a forma jurídica no quadro da qual se verifica a reforma
remete, necessariamente, para a reprodução de determinadas condições políticas de
dominação de classe burguesa, ao mesmo tempo em que essa dominação
permanece obscurecida por uma representação imaginária da política.
(BILHARINHO, 2006, p. 2)
Desenvolvimento
Jaime Osório critica a sociologia política que pensa a transição das ditaduras latino-
americanas para o regime democrático por terem dado uma maior ênfase na questão da mudança na
forma do exercício do poder político em detrimento da questão sobre quem detém tal poder. Ainda
segundo o autor, se a pesquisa é feita balizada pela segunda questão, quem detém o poder político, é
possível perceber uma alteração da classe reinante, mas não da classe dominante. Portanto, o poder
político permanece nas mesmas mãos após o período de transição, não ocorrendo mudanças
substânciais no bloco no poder e na hegemonia construída no período anterior. Tem-se na transição
um processo de neo-oligarquização do Estado (OSÓRIO, 2014, p. 227-30).
Em sentido similar caminha Alysson Mascaro (2008, p. 164-5), em análise particular da
reforma constitucional na transição brasileira. Ao afirmar a incapacidade do autoritarismo do
regime político militar em lograr uma estabilidade ao regime econômico do qual ensejava ser
7
Ver ALTHUSSER, 1985.
suporte, explica ele que os movimentos pela redemocratização no país, ao longo dos anos 1980
defrontam-se, por um lado, com os entulhos da estrutura política autoritária e, por outro, com o peso
social de um sistema capitalista de viés nacional-desenvolvimentista conservador, com
direcionamento predominantemente exportador e associado aos capitais privados internacionais,
onde o Estado ocupava a fundamental posição de fomentador das relações de dominação
econômica. As perceptíveis conquistas em direitos sociais no período não são acompanhadas pela
substituição do modelo econômico vigente e em processo de deterioramento. Desta forma, no plano
político
[...] a crise da década de 80 é em grande parte a crise dos arranjos das oligarquias
tradicionais e da burguesia nacional que, vendo entrar em colapso um modelo que
era controlado manu militare, não logram persistir no mesmo nível de domínio
institucional e, ao mesmo tempo, não conseguem postular um novo quadro estável
de arranjos políticos. Nas fissuras desse desarranjo dão-se avanços políticos sociais
e populares pontuais e específicos, que, de certa forma, começam por perfazer
novas perspectivas e demandas econômicas, políticas e sociais para dentro do
direito e de suas declarações legais – como o caso da Constituição Federal – mas
que, no entanto, não é um modelo uníssono nem tampouco hegemônico na
realidade política daquele momento. Os ganhos da redemocratização ainda se dão
no espaço da persistência da dominação tradicional. (MASCARO, 2008, p. 168)
8
BRASIL, 1983.
9
Ver MARIN, 2018; MASCARO, 2018.
avença prevalece sobre a hostilidade, só é possível aos que não têm dimensão
histórica. (MARIN, 2018, p. 31)
Podemos retomar, assim, o sentido da política numa sociedade completamente cindida por
divisões de classe, de miseráveis a ultrarricos, e entorpecida por uma carga histórica de
autoritarismo e dominação descomunal, como não podendo ser outro senão o conflito social
permanente. Se a pretensa pacificação social, sob o manto do Estado de direito e da ideologia
jurídica que o acompanha, foi suficientemente forte ideologicamente para assumir quase por
completo as concepções teóricas dos intelectuais, partidos e organizações progressistas da sociedade
brasileira10, é agora o conflito explícito, ilustrado pela bruteza do golpe de Estado a serviço das
elites econômicas nacionais e internacionais, bem como pela discórdia política permanente que o
sucede, que traz de volta a possibilidade de desvelamento desse conteúdo inevitável. Diante destes,
a ambição, corriqueira em nossos tempos, de “retorno à normalidade” configurada por 1988, revela-
se como um sonho infértil. Acompanhamos, deste modo, as conclusões de Mascaro em sua
interpretação do golpe institucional:
[...] Se 2016 está no espírito de 1988, é porque 1988 é uma variante do espírito de
1964. Proponho que os quase trinta anos que separam 1988 de 2016 sejam lidos, na
verdade, como modulações de um processo estrutural que remonta a 1964, quando
se dão as bases definitivas da relação de dependência entre capital nacional e
capital externo, uso do Estado por setores burgueses e políticos assentados em
modelos específicos de corrupção na interação entre os negócios públicos e
privados, repressão e efetiva militarização do controle das populações e dos
movimentos políticos, concreção do judiciário como instrumento do capital e do
poder militar, tecnificação acrítica e conservadora dos agentes do Estado.
(MASCARO, 2018, p. 80)
Considerações finais
Com o corpo de reflexões aqui reunidas, não pretendemos outra coisa senão somar-nos a um
debate maior, cuja dimensão deverá ser dada pela proporcionalidade do desafio histórico de nossas
gerações presentes e futuras no enfrentamento à barbárie social. Para nós, um passo urgente nesse
sentido é a construção de um pensamento jurídico que se coloque numa dimensão científica diversa
daquela dos antigos juspositivismos, que recupere a dimensão mais concreta e objetiva da política
identificada na luta de classes, e que vise romper com a ideologia jurídica, sabendo ser esta
[...] responsável por ilusões reformistas; de canalização de lutas para que não
eclodam, de tal sorte que deságuem em políticas públicas e por elas sejam
10
MASCARO, 2018.
administradas; de respeito aos poderes judiciários como guardiões das democracias
etc. (MASCARO, 2018, p. 60)
Que o sentido desses esforços pareça servir mais para despir nosso pensamento crítico de
enganosos juízos consolidados, não é senão esperado. Acreditamos que a caminhada histórica que
hoje encaramos não terá possibilidade de início sem que se passe por arrancar “as flores imaginárias
dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou consolo, mas para
que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche” (MARX, 2013a, p.152).
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
PESSANHA, José Américo Motta (Comp.). Os Pré-Socráticos: vida e obra. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da
República, 5 out. 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20 set. 2019.
______. Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Brasília, DF: Presidência da República, 14 dez.
1983. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm>. Acesso em: 20 set.
2019.
EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.
PACHUKANIS, Evgeni B. Teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-
1929). São Paulo: Sundermann, 2017.
OSÓRIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São
Paulo: Outras Expressões, 2014.
MASCARO, Alysson Leandro. Crise e Golpe. São Paulo: Boitempo. 2018.
______. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
______. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
______. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
______. Pachukanis e Stutchka: o direito, entre o poder e o capital. In: NAVES, Márcio Bilharinho.
(Org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. São Paulo: UNICAMP,
2009.
MARIN, Pedro. Golpe é Guerra: teses para enterrar 2016. 1. ed. São Paulo: Baioneta, 2018.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2013a.
______. O capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produção do capital. São
Paulo: Boitempo, 2013b.
KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de Direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões,
2014.
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões, 2014.
______. Reforma constitucional e ideologia jurídica. Revista de Sociologia e Política, Paraná, n.1,
1993.
CARVALHO, Edmilson. A produção dialética do conhecimento. Maceió: Coletivo Veredas,
2017.
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de
1988. In: O que resta da ditadura: a exceção brasileira. SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson.
(Orgs.). São Paulo: Boitempo, 2010.