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FORMAÇÃO DO ESTADO CONSTITUCIONAL


DE DIREITO E NEOCONSTITUCIONALISMO

O paradigma juspositivista impõe a compreensão 3.1 O ESTADO CONSTITUCIONAL DE


do direito como um conjunto hierarquizado de regras, DIREITO
cujo ápice no ordenamento de cada Estado correspon-
de à Constituição Federal. Esta compreensão, todavia, Após a Segunda Guerra Mundial e a derrocada dos
coloca a Constituição como norma supralegal, mas ao regimes nazifascistas, percebeu-se que a ordem jurí-
mesmo tempo lhe retira a importância, pois sustenta dica positivista e sua assepsia valorativa não seriam
que a sua força normativa é mediada pela lei. Assim, capazes de atender às demandas sociais emergentes.
sem lei que a regulamente, a Constituição carece de O constitucionalismo contemporâneo surge com o
força normativa porque não pode ser aplicada ime- advento de Constituições fortemente normativas,
diatamente aos fatos da vida social. A sua efetividade dotadas de amplo sistema de garantias e texto mi-
depende do legislador onipotente. O entendimento nudente sobre garantias fundamentais. Incorporam,
tradicional legalista sufraga que a Constituição não é desta maneira, um amplo conteúdo substancial que
uma verdadeira norma, apta a reger todos os cidadãos aponta para uma profunda reformulação de institui-
e todos os âmbitos da vida social, mas uma norma sui ções sociais. Em oposição às Constituições do século
generis, de alcance limitado – uma norma de organiza- XIX, que se limitavam à organização estatal e delimi-
ção do Estado sem maiores pretensões de garantia de tação de competências, as Constituições do século
direitos positivos a serem prestados pelo poder público. XX se propõem à transformação social e inauguram
O positivismo é construído sobre a exaltação um novo modelo de Estado: o Estado constitucional
dogmática da legalidade, do monismo jurídico, da de direito, pautado na supremacia de uma Constitui-
centralização do poder e do protagonismo do poder ção dotada de ingente força normativa e que versa
legislativo sobre as demais instâncias produtoras de sobre um amplo espectro de direitos sociais.
direito. A Constituição, por conseguinte, deve ser As constituições ocidentais do pós-guerra, em ge-
sucinta e limitada, sendo dirigida precipuamente ao ral, apresentam-se como normas diretivas que con-
legislador, para obediência à hierarquia de normas. densam um extenso catálogo de direitos, visando
Ao legislador cumpre o papel de concretização de di- ordenar a vida social e política conforme a pauta axio-
reitos – o que coloca nas mãos do governo eleito um lógica nelas insculpidas. O legicentrismo positivista
enorme poder político, em face da tessitura singela é definitivamente superado e em seu lugar adquire
e sucinta do texto constitucional. Neste contexto, supremacia material a Constituição. A Constituição,
compõem o sustentáculo do ordenamento jurídico por conseguinte, traz ínsito o projeto de sociedade
as colunas do direito civil e do direito administrativo, a ser implementado por aquele Estado – as normas
efetivos centros de produção normativa, na medida programáticas, que também são dotadas de força nor-
em que o poder se desloca para os governantes. No mativa. O Estado se torna obrigado a prestações posi-
discurso, a Constituição se sobrepõe ao Estado; na tivas direcionadas aos seus cidadãos; o Estado cons-
realidade fática, a Constituição se submete ao Estado. titucional de direito está intimamente imbricado ao
O constitucionalismo contemporâneo, entremen- Estado social de direito, que erige princípios a serem
tes, subverterá esta ordem de ideias. observados por todos os poderes constituídos.
Formação do Estado Constitucional de Direito e Neoconstitucionalismo • 37
As constituições do século XX são políticas, não tônica primacial é a centralidade da Constituição no
apenas estatais(1), pois englobam os princípios de le- ordenamento jurídico e o entendimento de imperio-
gitimação do poder e não apenas a sua organização. sa necessidade de efetivação das normas constitucio-
Surge a teoria material da Constituição, de Carl Sch- nais. Leciona Luís Roberto Barroso que a Constitui-
mitt e Rudolf Smend, também sufragada por José Joa- ção passou a ser “a lente através da qual se leem e se
quim Gomes Canotilho(2), segundo a qual o conjunto interpretam todas as normas infraconstitucionais”(4).
total de condições jurídicas, políticas e sociais recon- O termo, contudo, não é unívoco, o que talvez ex-
figuram o Estado constitucional e democrático de di- plique a ausência de convergência entre os diversos
reito. As Constituições, por conseguinte, tornam-se modelos do pensamento neoconstitucionalista.
dirigentes da atividade estatal e da implementação e A crítica de Ronald Dworkin à teoria positivista,
concretização de direitos fundamentais. As funções no início dos anos 1970, representou uma ruptura de
da Constituição podem ser sintetizadas, para Hans paradigma e uma dramática modificação das concep-
Peter Schneider, em três dimensões: a dimensão de- ções de direito até então prevalecentes. O traço pri-
mocrática (formação da unidade política), a dimen- mordial da sua teoria é o de conceber o direito como
são liberal (coordenação e limitação do poder estatal) um conjunto de regras e princípios, estabelecendo os
e a dimensão social (configuração social das condi- critérios de ponderação entre princípios e a distinção
ções de vida). Todas estas funções são interligadas, na forma de aplicação entre uns e outros, no caso
condicionando-se mutuamente, e formam um todo concreto.
orgânico(3).
Para o positivismo, o direito é concebido como
O neoconstitucionalismo teve início com a re- um ordenamento hermeticamente fechado, que não
constitucionalização da Europa continental, após a possui lacunas, fundado na antiga teoria das fontes.
Segunda Guerra Mundial, especialmente na Alema- Destarte, o direito privado é o grande vetor de apli-
nha, com a Constituição de Bonn (1949) e na Itália cabilidade das normas – em outras palavras, as fontes
(1947). A partir de então o movimento se espraiou de direito estão dissociadas do direito constitucional.
por toda a Europa, tendo seu ápice na década de
A passagem do positivismo para o neoconstitu-
1970, com a democratização e reconstitucionalização
cionalismo pós-positivista ocorreu de modo gradual
de Portugal (1976) e da Espanha (1978).
e por etapas.
No Brasil, devido à ditadura militar (1964-1985),
O pós-positivismo surge com a quebra de paradig-
o neoconstitucionalismo somente ganha força e ím-
mas da modernidade, que foram construídos sobre o
peto com a Constituição de 1988, que logrou promo-
cientificismo, a hegemonia do poder estatal, o legalis-
ver a passagem do regime autoritário para o regime
mo e o mito da neutralidade do jurista. Na pós-moder-
democrático. Com o novo constitucionalismo, a ideia
nidade, o direito é plural, discursivo, relativo e busca
de efetividade da Constituição e de força vinculante
resgatar os valores e reconhecer a sua normatividade.
tornou-se vitoriosa e hegemônica.
A diferença, no panorama atual, é que a doutrina tem
reconhecido, reiteradamente, a normatividade dos
3.2 O NEOCONSTITUCIONALISMO princípios. Na lição de Luís Roberto Barroso:
O neoconstitucionalismo é a denominação genéri- O pós-positivismo é a designação provisória e
ca utilizada para designar diversos segmentos da teoria genérica de um ideário difuso, no qual se incluem
constitucional após a Segunda Guerra Mundial, cuja a definição das relações entre valores, princípios e

(1) FIORAVANTI, Maurizio. Stato e costituzione: materiali per una storia delle dottrine costituzionali. Turim: Giappichelli
Editore, 1993, p. 144-145.
(2) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão
das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 59-61, 172-177, 189-193.
(3) SCHNEIDER, Hans Peter. Democracia y constitución. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 39-47.
(4) BARROSO, Luís Roberto. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito
brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e
relações privadas. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 327-378.
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regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e que esta mudança de paradigma, quanto à importân-
a teoria dos direitos fundamentais(5). cia da Constituição no ordenamento jurídico, pode
ser comparada à revolução heliocêntrica, de Nicolau
O pós-positivismo engloba, dentre outras teorias, Copérnico. Deste entendimento também não discre-
o neoconstitucionalismo, cujas balizas são a onipre- pa Canotilho, ao afirmar que a “principal manifesta-
sença da constituição e a sua força invasora, afetan- ção da preeminência normativa da Constituição con-
do a interpretação do direito, a teoria da norma e a siste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz
teoria das fontes jurídicas. O movimento doutriná- dela e passada pelo seu crivo”(10).
rio, por seu turno, também pode ser subdividido em
O neoconstitucionalismo total, sustentado por
duas correntes, a depender da tônica defendida por
Alfonso Garcia Figueroa,(11) Santiago Sastre Ariza(12)
cada doutrinador: neoconstitucionalismo teórico e
e Lenio Luiz Streck, admite todas as premissas con-
neoconstitucionalismo total, que divergem entre si
quistadas pelo neoconstitucionalismo teórico como
quanto à gradação e aos limites de sua atuação(6).
ponto de partida, porém aprofunda e amplia estas
São premissas do neoconstitucionalismo teórico diretrizes, imiscuindo-se em temas antes limitados à
a oposição enérgica ao positivismo jurídico e ao mes- teoria política do Estado, sempre comprometido com
mo tempo ao jusnaturalismo. O direito, nesta ordem as questões da democracia participativa. Os princí-
de ideias, é um sistema aberto(7) composto por re- pios, portanto, agem como diretrizes constitucionais
gras e princípios, competindo ao intérprete/ aplica- contínuas, incidindo a todo momento, mesmo quan-
dor convencer os seus pares e também as partes do do há regra disciplinando a matéria. Não pretende
conflito quanto ao acerto de sua decisão, através da ser apenas uma teoria do direito, mas um amálgama
argumentação racional. O Estado, para o neocons- entre o direito constitucional e a filosofia do direi-
titucionalista, deve proceder à ponderação entre os to, inaugurando um paradigma que nenhum outro
bens da vida, a fim de realizar a justiça na demanda modelo jamais sustentou. Os principais elementos
sob sua análise. A Constituição ocupa o centro de defendidos pelo neoconstitucionalismo total são a ar-
todo o ordenamento jurídico, fazendo com que todas gumentação jurídica e outros temas de filosofia de di-
as normas infraconstitucionais sejam interpretadas e reito aplicada, como a coerência e razoabilidade, bem
aplicadas sob a sua égide, denominando-se tal fenô- como a pretensão de correção do sistema normativo e
meno de filtragem constitucional(8). Com escólio em as transformações da realidade social pelo direito. Na
Lenio Luiz Streck(9), é possível até mesmo asseverar dicção de Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo:

(5) BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade,
teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, di-
reitos fundamentais e relações privadas. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 01-48.
(6) MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo: a invasão da constituição. Coleção Professor Gilmar Mendes, v. 7.
São Paulo: Método, 2008, p. 48.
(7) Vide CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução de A.
Menezes Cordeiro. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 281: “Este sistema não é fechado, mas antes aber-
to. Isto vale tanto para o sistema de proposições doutrinárias ou ‘sistema científico’, como para o próprio sistema da ordem
jurídica, o ‘sistema objectivo’. A propósito do primeiro, a abertura significa a incompletude do conhecimento científico, e a
propósito do último, a mutabilidade dos valores jurídicos fundamentais.”
(8) SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio An-
tonio Fabris, 1999, p. 118.
(9) STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucio-
nalismo. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. São Leo-
poldo: UNISINOS, 2005, p. 153-185.
(10) CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991,
p. 45.
(11) FIGUEROA, Alfonso Garcia. La teoría del derecho en tiempos de constitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel (Org.).
Neoconstitucionalismo(s). 4. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 159-186.
(12) ARIZA, Santiago Sastre. La ciencia juridica ante el neoconstitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel (Org.).
Neoconstitucionalismo(s). 4. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 239-258.
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Por sua vez, o desenvolvimento das teorias da nou concreto o Estado federal e as garantias funda-
argumentação jurídica empreendidas a partir dos mentais. A Constituição, portanto, ocupa o ápice de
trabalhos fundacionais de Viehweg, Toulmin, Pe- todo o ordenamento e deve ser protegida e resguar-
relman e Recaséns Siches, no princípio dos anos dada pelo Poder Judiciário, que exerce importante
cinquenta do século XX, pelas quais iniciaram- papel no cenário político, social e jurídico do país.
-se estudos que sustentam a possibilidade de um No direito alemão, a Constituição é um documen-
pensamento prático (racional) mais além da ló- to extenso e minudente, que se destina a estipular os
gica dedutiva e que, posteriormente recebeu, por programas e metas a serem perseguidos pelo Estado,
parte de autores como Aarnio, Alexy, MacCor- possuindo força vinculante em relação à elaboração
mick ou Peczenick um delineamento mais espe- ou execução de leis, programas de governo, políticas
cífico da atividade argumentativa inerente à prá- públicas e toda sorte de atos legislativos ou adminis-
tica jurídica, inserem-se, numa dimensão política trativos, ressaltando-se ainda a força vinculante ho-
de conexão com o denominado sentido profundo rizontal, ou seja, nas relações entre particulares. Na
da democracia(13). Constituição americana, ao revés, extremamente sin-
O neoconstitucionalismo teórico nega veemen- tética, somente são determinadas as regras formais e
temente a proposta do neoconstitucionalismo total procedimentais para a atuação do Estado.
como filosofia do direito e principalmente como fi- Em conhecida classificação, Ana Paula de Bar-
losofia política do Estado, em face da amplitude exa- cellos(14) delineia a existência de cinco elementos do
cerbada desta tese. neoconstitucionalismo. Do ponto de vista metodoló-
Estabelecidas as vertentes do neoconstituciona- gico-formal, o movimento doutrinário está alicerça-
lismo, cumpre adentrar os seus elementos fulcrais, do em três premissas básicas: a) a normatividade da
para melhor compreensão do Estado constitucional Constituição, ou seja, o reconhecimento de que as
de direito. disposições constitucionais são normas jurídicas e,
como tal, imperativas; b) a superioridade da Consti-
tuição sobre o restante da ordem jurídica (cuidando-
3.2.1 Elementos do neoconstitucionalismo -se de Constituições rígidas); e c) a centralidade da
Constituição nos sistemas jurídicos, de modo que os
O neoconstitucionalismo na Europa foi resultado
demais ramos do direito devem ser interpretados à
da fusão entre os sistemas constitucionais americano
luz do que dispõe a Carta Magna. Sob a ótica ma-
e alemão. Do sistema americano, o neoconstitucio-
terial, assenta-se em duas teses fundamentais: a) a
nalismo herdou as premissas da supremacia constitu-
incorporação explícita de valores e opções políticas
cional e a ênfase na garantia jurisdicional. Do sistema
nos textos constitucionais, especialmente no tocante
alemão, absorveu a característica de ser a Constitui-
à dignidade humana e aos direitos fundamentais; e
ção considerada norma fundamental de caráter vin-
b) a expansão de conflitos específicos e gerais exis-
culante e direcionada para o futuro, bem como de
tentes dentro do próprio sistema constitucional, ou
ser um texto mais prolixo e pormenorizado, pois visa
seja, conflitos específicos entre princípios ou entre
estabelecer programas e metas para o Estado.
direitos fundamentais de mesma hierarquia consti-
No direito americano, há uma verdadeira reve- tucional, bem como o conflito geral sobre o próprio
rência por parte da doutrina e da jurisprudência com papel da Constituição, entre substancialistas e proce-
relação à Constituição federal, carta política que tor- dimentalistas(15).

(13) DUARTE, Écio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico. São Paulo: Landy
Editora, 2010, p. 57-58.
(14) BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. In: NO-
VELINO, Marcelo (Org.). Leituras complementares em direito constitucional. Direitos humanos e direitos fundamentais.
Salvador: Juspodivm, 2008, p. 131-152.
(15) Segundo Ana Paula Barcellos, “trata-se da oposição entre duas ideias diversas acerca desse ponto. A primeira delas sus-
tenta que cabe à Constituição impor ao cenário político um conjunto de decisões valorativas que se consideram essenciais
e consensuais. Essa primeira concepção pode ser descrita, por simplicidade, como substancialista. Um grupo importante de
autores, no entanto, sustenta que apenas cabe à Constituição garantir o funcionamento adequado do sistema de participação
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A sistematização mais abrangente e mais consen- nothing)(19). Significa que, em um caso concreto, ou
tânea com a moderna doutrina, contudo, foi traçada uma regra é válida e deve incidir sobre a hipótese fáti-
por Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo(16), for- ca, ou não é válida e não se aplica.
tes nas lições da doutrina espanhola e italiana sobre Ao se deparar com uma regra, o jurista deve ob-
a matéria, desde Alfonso García Figueroa, passando servar se os fatos nela estabelecidos como premissa
por Luís Prieto Sanchís, Santiago Sastre Ariza, Paolo de incidência se encontram consumados na realidade
Comanducci e Ricardo Guastini. concreta; uma vez verificada a hipótese, a norma in-
A primeira tese sufragada pelo neoconstituciona- cide de forma imediata, ordinariamente por subsun-
lismo é denominada de sincretismo ou ecletismo me- ção, não dando margem a elaborações mais sofistica-
todológico, significando que a exegese, a hermenêuti- das acerca de sua incidência. A regra, portanto, pode
ca e a aplicação das normas jurídicas não obedecem ser válida ou inválida para o caso vertente. Existindo
a um único método previamente determinado pelo colisão entre regras, somente uma delas prevalecerá,
operador, mas comportam a utilização de diferentes pelos postulados de que a lei posterior revoga a ante-
métodos, consentâneos com o caso concreto. Em ou- rior, a lei especial sobrepõe-se à geral e pelo princípio
tras palavras, a metodologia empregada terá cunho máximo da hierarquia, cujo enunciado é de que as
relativo e não absoluto, e sempre estará sujeita a con- regras de maior hierarquia devem sempre prevalecer.
dicionantes temporais, históricas e culturais. Os princípios, ao revés, densificam uma carga va-
A perspectiva principiológica do direito(17), por seu lorativa e abrigam decisões políticas. Por esta razão, a
turno, informa que o direito, concebido como um or- colisão entre princípios não se resolve pela exclusão
denamento fechado pela teoria positivista, é na ver- de um deles, mas pela ponderação, ou seja, utiliza-se
dade um sistema aberto de regras e princípios, sendo uma técnica pela qual se busca estabelecer os pesos
que estes últimos são responsáveis pela conexão en- de cada um dos princípios envolvidos(20). Na decisão,
tre as esferas moral e jurídica. Em consonância com serão contrabalançados os princípios, para determi-
o pensamento de Ronald Dworkin(18), as regras são nar em que medida cada um irá ceder em função do
normas jurídicas das quais se extraem consequên- outro, porquanto ambos serão aplicados e terão inci-
cias jurídicas específicas, ou seja, uma vez ocorridos dência sobre o caso concreto. Em algumas hipóteses,
os fatos descritos em seu enunciado, a consequência todavia, a interpretação pode conduzir à ilação de
jurídica é tangível e delimitada. Dos princípios, ao que o afastamento de um dos princípios estabeleceria
contrário, não se extraem consequências específicas, a decisão mais justa; este é um caso possível e até ad-
automáticas; apenas enunciam uma razão que con- missível, em face da flexibilidade, maleabilidade e in-
duz ao argumento em uma certa direção. determinação que caracterizam os princípios. Como
Desta conceituação extraem-se ilações muito re- ensina Robert Alexy(21), regras veiculam mandados de
levantes. A primeira é de que as regras são logica- definição, ao passo que os princípios são mandados
mente aplicadas à maneira do tudo-ou-nada (all or de otimização. As regras, destarte, possuem natureza

democrático, ficando a cargo da maioria, em cada momento histórico, a definição de seus valores e de suas opções políticas.
Nenhuma geração poderia impor à seguinte suas próprias convicções materiais. Esta segunda forma de visualizar a Consti-
tuição pode ser designada de procedimentalismo”. Para maiores esclarecimentos, vide BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconsti-
tucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. In: NOVELINO, Marcelo (Org.). Leituras complemen-
tares em direito constitucional. Direitos humanos e direitos fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 131-152.
(16) DUARTE, Écio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico. São Paulo: Landy
Editora, 2010, p. 63-73.
(17) Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo denominam esta característica de principialismo, nomenclatura que não é
adequada, porque ordinariamente relacionada à bioética, não ao neoconstitucionalismo.
(18) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 40-42.
(19) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 39. Tudo ou nada. Tradução nossa.
(20) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 42-44.
(21) ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 81 et seq.
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jurídica biunívoca, ou seja, somente admitem duas mudança de paradigma, por outro lado, reflete ainda
situações: ou são válidas e se aplicam à hipótese, ou na necessidade de um judicialismo ético-jurídico, ou
não se aplicam porque inválidas. Quanto aos princí- seja, comprometido com a ética e a cidadania, e não
pios, é possível uma aplicação por gradações mais ou apenas com a aplicação de técnicas de subsunção dos
menos intensas, de acordo com a possibilidade fática, fatos à norma. Relaciona-se esta característica com
sem o comprometimento de sua validade. a superação do mito da neutralidade do julgador e
Cumpre destacar, contudo, que a corrente positi- com a exigência de critérios racionais de controle do
vista sempre reconheceu a existência dos princípios; conteúdo substancial das normas. A questão da vali-
o que se modifica na atualidade é a importância que dade dos enunciados prescritivos, portanto, torna-se
desempenham no ordenamento jurídico e o reconhe- menos relevante do que o conteúdo axiológico neles
cimento de sua normatividade, ou seja, de que têm veiculado.
eficácia direta e imediata. Quanto à hermenêutica, adota o neoconstitucio-
Intimamente relacionada à perspectiva princi- nalismo a tese de que a interpretação deve obedecer
piológica do direito encontra-se a característica de a critérios diferentes dos tradicionais, que são insu-
utilização de juízos de ponderação para solução de ficientes para elucidação de toda a carga valorativa
casos difíceis. A doutrina positivista propugna que, do enunciado linguístico. Há, destarte, uma espe-
em situações nas quais não existe uma regra espe- cificidade interpretativa. Afirma-se a insuficiência
cífica a regulamentar as condutas no ordenamento dos métodos tradicionais de interpretação (método
jurídico, abrir-se-ia para o juiz a faculdade de exercí- gramatical, lógico, sistemático, histórico, teleológico
cio de verdadeiro poder discricionário, que iria criar etc.), porém não há que se cogitar da negativa de sua
regras – e criar no sentido de inovar, de ser inédito(22). utilização. Ao contrário, os critérios tradicionais são
Para os adeptos do neoconstitucionalismo, todavia, conjugados a outros princípios, tais como o princípio
a solução dos casos difíceis encontra-se no exercício da unidade da Constituição, da concordância prática,
legítimo, razoável e fundamentado do juízo de pon- do efeito integrador, da correção funcional, da colo-
deração, ocupando a teoria da argumentação papel quialidade, da máxima efetividade, da proporcionali-
fulcral no desenlace do litígio. Assim, para que o Es- dade, da interpretação conforme a Constituição, en-
tado-Juiz aplique um determinado princípio em de- tre muitos outros, para deslinde do sentido e alcance
trimento de outro, é imperiosa a fundamentação dos das normas constitucionais. Esta característica está
elementos sopesados, de modo que possa convencer também imbricada à questão da interpretação valora-
o seu público, na dicção habermasiana, da veracida- tiva ou moral da Constituição, que pretende alcançar
de, inteligibilidade e, precipuamente, da justiça de o seu conteúdo material a partir de uma revisitação
sua decisão. construtiva dos valores vigentes em um regime de-
Urge elucidar, todavia, que não há uma negativa mocrático. É rechaçada a ótica tecnicista da Carta
de utilização dos métodos tradicionais de aplicação de Magna. Um texto que plasma direitos fundamentais,
normas (cronológico, hierárquico e de especialidade), por conseguinte, não pode ser interpretado à margem
mas o reconhecimento de sua insuficiência nos casos de critérios sociais, morais, éticos, culturais, histó-
difíceis. ricos e econômicos; ao revés, deve ser construído e
A concepção do Estado como garantidor e promo- ponderado de acordo com a realidade fática, porém
tor dos direitos fundamentais, também denominada ao mesmo tempo projetando-a para o futuro, no es-
de estatalismo garantista, é a tônica do neoconstitu- copo de realização destes mesmos direitos.
cionalismo, que reforça a necessidade de que a ins- Como já asseverado, propugna o neoconstitucio-
tituição pública abandone a postura de neutralidade nalismo a superação do positivismo, na medida em
ou de mero garantidor das “regras do jogo”. O Estado, que compreende o direito como sistema aberto de
nesta ordem de ideias, passa a adotar políticas públi- regras e princípios. Supera, portanto, o paradigma
cas, programas de governo ou normas regulamenta- de limitação do jurista à mera descrição do ordena-
res com o intuito de concretização dos direitos fun- mento, sem poder criativo na aplicação das normas,
damentais, à luz da normatividade dos princípios. A bem como o distanciamento e a neutralidade, que

(22) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 50-56.
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impedem a consecução da igualdade substancial. Estado de direito. A concretização da Constituição,


Atrelado a esta superação encontra-se o primado da portanto, estava condicionada à liberdade do legisla-
força normativa da Constituição, ou seja, a convicção dor para elaboração da norma infraconstitucional e à
de que as normas constitucionais são efetivamente discricionariedade do gestor público, sendo negado
normas, e não simples programas ou ideais a serem ao Judiciário papel relevante para materialização dos
cumpridos algum dia pelo Estado. Por esta razão, são direitos fundamentais.
dotadas de coercibilidade e possuem instrumentos Atualmente, tornou-se indene de dúvidas a for-
adequados para sancionar a sua violação. Incumbe ça vinculante da Constituição e o caráter obrigatório
ao jurista, portanto, conferir a máxima efetividade às de suas normas, tendo sido pioneiro quanto a este
normas constitucionais, especialmente quando trata- entendimento o alemão Konrad Hesse(23). Assevera o
rem de direitos sociais. É a consagração da tese de que referido autor que a Constituição não é uma simples
o direito não é uma superestrutura ideológica desti- folha de papel, como assinalado por Lassalle(24); ao
nada a manter o status quo e a conservar suas institui- contrário, possui uma força normativa própria, que a
ções e elites; pelo contrário, deve ser compreendido torna um verdadeiro fator real de poder. A sua força
como instrumento de transformação social. Desta- normativa não está condicionada apenas à sua adap-
ca-se, assim, o pragmatismo inerente à concepção tabilidade aos fatos concretos e forças políticas da
neoconstitucionalista, no sentido de que as normas época de sua vigência. Como existe a interdependên-
constitucionais devem ser aplicadas e efetivadas, des- cia entre o texto e a realidade, a Constituição jurídica
tinando-se à vida prática e não ao mero discurso ou acaba por se converter em força ativa, pois embora
ao diletantismo intelectual. não possa realizar nada, por si só, pode impor ta-
Por derradeiro, o neoconstitucionalismo ainda refas – e a realização destas tarefas contribui ainda
traz a invocação de um conteúdo material e axiológi- mais para a relação de interdependência, num círculo
co para a Grundnorm. De acordo com o pensamento virtuoso. Assim:
kelseniano, o critério de validade de uma norma ju-
rídica é precisamente a sua derivação de uma outra A Constituição não configura, portanto, ape-
norma também válida, encontrando-se do ápice da nas expressão de um ser, mas também de um
pirâmide do ordenamento jurídico a denominada dever ser; ela significa mais do que o simples
Grundnorm, ou norma fundamental, da qual deri- reflexo das condições fáticas de sua vigência, par-
variam todas as outras, e que poderia açambarcar ticularmente as forças sociais e políticas. Graças
qualquer conteúdo ético ou moral, indiferentemen- à pretensão de eficácia, a Constituição procura
te. O neoconstitucionalismo afasta esta neutralidade imprimir ordem e conformação à realidade po-
e afirma que a norma fundamental deve possuir um lítica e social. Determinada pela realidade social
conteúdo moral e que todo o sistema de normas deve e, ao mesmo tempo, determinante em relação a
ser avaliado de acordo com a pretensão de correção ela, não se pode definir como fundamental nem
e de justiça. a pura normatividade, nem a simples eficácia das
condições sócio-políticas e econômicas. A força
Uma vez delineados os principais elementos do condicionante da realidade e a normatividade da
neoconstitucionalismo, urge pormenorizar alguns Constituição podem ser diferençadas; elas não
aspectos relevantes de dois elementos que interessam podem, todavia, ser definitivamente separadas ou
sobremaneira ao Estado constitucional de direito: a confundidas(25).
força normativa da Constituição e a ampliação da ju-
risdição constitucional. A relação entre realidade social e Constituição,
Até o início do século XX, ainda se fazia tabula rasa portanto, é dialética – um eterno e ininterrupto ir e vir.
das normas constitucionais, relegando-as ao papel de Quanto à ampliação da jurisdição constitucio-
simples normas de conformação procedimental do nal, é imperioso notar que, em período anterior a

(23) HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 15-19.
(24) LASSALE, Ferdinand. O que é uma constituição? Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. 3. ed. Campinas: Russell Edi-
tores, 2009, p. 46.
(25) HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 15.
Formação do Estado Constitucional de Direito e Neoconstitucionalismo • 43
1945, prevalecia na Europa continental um modelo mas infraconstitucionais pertence a todos os órgãos
de supremacia do Poder Legislativo, com inspiração do Poder Judiciário, que o exercitam incidentalmente,
na doutrina inglesa de supremacia do Parlamento, quando decidem as causas de sua competência. O
herdada da Revolução Gloriosa de 1688(26). Após a modelo concentrado, por seu turno, determina que o
Segunda Guerra Mundial, contudo, este modelo foi controle de constitucionalidade será exercido por um
sendo paulatinamente abandonado, dando lugar ao único órgão, que não julga nenhum caso singular,
modelo americano de supremacia da Constituição. mas somente o problema abstrato de compatibilidade
Esse modelo, também denominado de judicial re- material e procedimental entre uma lei e uma norma
view, confere maior relevância ao Poder Judiciário, da Constituição. Este órgão, denominado de Tribu-
como garantidor dos direitos fundamentais e do sis- nal Constitucional na maioria dos países da Europa,
tema de freios e contrapesos, tornando efetivamen- por vezes se constitui na cúpula do Poder Judiciário,
te os direitos individuais e sociais matéria de cunho por vezes encontra-se à parte de sua estrutura.
jurídico. Neste contexto, diversos países da Europa No Brasil, a Constituição de 1988 manteve a
criaram um Tribunal Constitucional, inserido ou ex- fórmula de controle misto de constitucionalidade,
cluído da estrutura do Poder Judiciário, a depender adotando-se os dois sistemas: controle difuso (inci-
da confiança que era depositada nos juízes(27). Atual- dental e concreto) e controle concentrado no Supre-
mente, na Europa, apenas o Reino Unido e Holanda mo Tribunal Federal (direto e abstrato). O controle
ainda mantêm o modelo de supremacia do Parlamen- difuso de constitucionalidade existe no ordenamento
to, sem adoção do sistema do judicial review. jurídico pátrio desde a Constituição de 1891; o con-
Na França, contudo, diferentemente dos demais centrado, por outro lado, foi introduzido na ordem
países da Europa, houve séria resistência ao sistema constitucional por meio da Emenda n. 16, de 1965.
de controle judicial de constitucionalidade, cujos re- Em síntese, portanto, é a partir da superação do
flexos se fazem sentir até os dias atuais. Na época paradigma positivista que às normas constitucionais
anterior à Revolução Francesa, os juízes eram pro- passam a ser atribuídos efeitos concretos, indepen-
venientes da aristocracia; eram membros da elite no- dentemente da atuação legislativa ou da administra-
meados pelo rei. Esta circunstância, aliada ao fato de ção pública, e a preponderar o entendimento de que
que prevalecia o entendimento de que a lei represen- os direitos sociais fundamentais não são um mero
tava o consenso da maioria e a vontade popular, fez compromisso dilatório.
com que houvesse muita desconfiança em um poder
não popular que pudesse modificar as leis elaboradas 3.2.2 Diferenças entre neoconstitucionalismo e o
pelos representantes do povo. Como anota Streck(28), ativismo judicial americano
os revolucionários conferiam importância apenas ao
Legislativo e ao Executivo, pois a função jurisdicio- A doutrina americana, de forma geral, não se re-
nal consistia na mera realização de silogismo entre porta ao neoconstitucionalismo, porquanto o pró-
a lei e o fato concreto, sendo o juiz tão-somente la prio movimento doutrinário do positivismo não
bouche qui pronounce les paroles de la loi(29). É por esta teve grande repercussão nos EUA, como na Europa
razão que, no sistema francês, em contraste com o continental, considerando-se a adoção do sistema de
direito americano, o controle de constitucionalidade common law. Assim, predomina na jurisprudência
é feito por um órgão de natureza política. dos Estados Unidos a força dos precedentes, sendo
De acordo com o modelo de controle difuso de que as grandes discussões se reportam: a) à ampli-
constitucionalidade, que tem a sua gênese no judi- tude das competências dos Estados e da federação, e
cial review americano, o poder de controle das nor- b) às posturas quanto à interpretação da Constitui-

(26) CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 267-268.
(27) Em 1951, foi criado o Tribunal Constitucional Federal alemão; em 1956, o italiano, e em seguida diversos países segui-
ram o mesmo exemplo.
(28) STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica ao direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002, p. 276-277.
(29) A boca que pronuncia as palavras da lei. Tradução nossa.
44 • CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO

ção, se conservadores ou propensas a um maior ati- Sob a presidência do juiz John Marshall, a Supre-
vismo judicial. ma Corte decidiu dois casos que modificaram a sua
No mesmo momento histórico em que o positi- história: Willian Marbury versus James Madison, de
vismo influenciou o pensamento jurídico na Europa 1803 e o McCulloch versus Maryland, de 1816(33). No
(do século XIX até a segunda metade do século XX), primeiro, ficou assentado o poder do Judiciário de
floresceu nos Estados Unidos a denominada Escola controlar os atos do Poder Legislativo e do próprio
do Realismo Jurídico, cuja principal premissa era a Executivo, podendo declará-los inconstitucionais.
de que os juízes primeiro decidiam e depois procu- No segundo, ficou estabelecida a supremacia do di-
ravam os fundamentos jurídicos para sua escolha, reito federal sobre o direito estadual, mediante cláu-
que tinha uma tônica eminentemente pessoal, in- sula dos poderes próprios e necessários, tendo sido
fluenciada pelas suas preferências e idiossincrasias, decidido que a cobrança de um imposto estadual em
face do Banco Central significaria a limitação dos po-
bem como por seu estado de ânimo no momento de
deres da União, implícitos ou explícitos.
sentenciar. Segundo Bobbio(30), o grande mentor in-
telectual das correntes realistas modernas foi Oliver É necessário afirmar, todavia, que o ativismo judi-
Wendell Holmes, por muitos anos juiz da Suprema cial nos Estados Unidos nem sempre teve conotação
Corte dos Estados Unidos, que desmistificou o tra- progressista ou de afirmação de direitos fundamen-
dicionalismo jurídico das cortes e introduziu uma tais. No caso Dred Scott versus Sandford(34), de 1857,
interpretação evolutiva do direito, mais sensível às sob a presidência do Juiz Taney, decidiu a Suprema
mudanças sociais. Corte que os negros e seus descendentes, escravos
ou não, não eram cidadãos, não eram tutelados pela
Jerome Frank foi o grande impulsionador da Constituição e sequer poderiam pleitear em Tribu-
doutrina e levou suas conclusões mais adiante que nais. A decisão prosseguiu ainda afirmando que o
o Juiz Holmes. Asseverou que as sentenças judiciais Congresso Nacional não tinha o poder de proibir a
são desenvolvidas retrospectivamente a partir de escravidão nos Estados, e que os cativos, assim como
conclusões previamente formuladas(31); desta sorte, a a propriedade móvel ou imóvel, não poderiam ser re-
subsunção dos fatos à norma faz parte de um mito, tirados de seus titulares sem o devido processo legal.
derivado de uma espécie de aceitação infantil frente A decisão foi revogada pela décima quarta Emenda
ao princípio da autoridade, que precisa ser superado, Constitucional, em 1868. O mesmo conservadoris-
vez que as decisões estão baseadas nos impulsos do mo pode ser observado no caso Hammer versus Da-
juiz, fundados em fatores individuais, como pré-juí- genhart, de 1918, sobre trabalho infantil, no qual a
zos políticos, econômicos ou morais(32). Suprema Corte considerou inconstitucional uma lei
Historicamente, verifica-se que um dos maiores federal que proibia o transporte de mercadorias de
entraves ao ativismo judicial americano, até o início fábricas que empregassem crianças.
do século XIX, era precisamente o forte sentimento O ativismo judicial teve o seu apogeu, em matéria
de independência entre os Estados que compunham de garantia de direitos fundamentais, no período com-
a federação, no sentido de rechaçar a interferência do preendido entre os anos 1950 e 1970. É paradigmática
Poder Judiciário federal nas leis estaduais, negando a decisão no caso Brown versus Board Education, de
a possibilidade de declaração de eventual inconstitu- 1954, em que se pôs fim à doutrina do equal but separa-
cionalidade. te e se introduziu a dessegregação racial(35). Também no

(30) BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 38.
(31) FRANK, Jerome. Law and the modern mind. Birmingham: The Legal Classics Library, 1985, p. 101.
(32) FRANK, Jerome. Law and the modern mind. Birmingham: The Legal Classics Library, 1985, p. 103-105.
(33) CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 269-274.
(34) GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/ aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009,
p. 127.
(35) Conquanto a décima quarta Emenda tenha conferido cidadania aos afrodescendentes norte-americanos, ficou consolida-
da durante muitas décadas a doutrina do equal but separate, que preconizava uma “igualdade” de direitos entre brancos e ne-
gros, porém com a separação em lugares públicas, escolas, hospitais etc. No caso, Linda Brown era uma aluna da terceira série
forçada a caminhar mais de 1,6 quilômetros para estudar em uma escola para afro americanos, enquanto existia uma escola
Formação do Estado Constitucional de Direito e Neoconstitucionalismo • 45
caso Mapp versus Ohio, de 1961, foi estabelecido que entretanto, porque a criança já havia nascido quando
quaisquer provas obtidas por buscas e apreensões em de sua prolação. Em 1987, porém, Norma McCorvey
violação à Constituição federal seriam inadmissíveis admitiu ter mentido para o Tribunal no escopo de ace-
numa corte estadual. Já no caso Gideon versus Wain- lerar o processo, pois teria havido consentimento na
right, de 1963, foi estabelecido o pleno direito de defe- relação sexual que originou a gravidez.
sa, especialmente a presença de um advogado durante Em síntese, portanto, é mister considerar que a
o julgamento. Em Miranda versus Arizona, de 1966, questão do neoconstitucionalismo diz respeito pri-
de que resultou a famosa Miranda rule, ficou assente a mordialmente a países de civil law, nos quais o direi-
regra de que o acusado, ao ser preso, pode permanecer to é geralmente identificado com a lei. Nos países de
calado e exigir a presença de um advogado(36). common law, ao revés, a lei é uma fonte subsidiária
A demanda judicial que causou maior fragor e em face do direito criado pela magistratura. Por esta
convulsão sociais, inquestionavelmente, foi o caso razão, os juízes são impulsionados a orientar e mo-
Roe versus Wade, no qual litigavam Norma L. McCor- dernizar o direito a partir de suas decisões, as quais
vey, que então utilizava o pseudônimo de Jane Roe, vinculam os demais membros em face do princípio
para preservação de sua identidade, e o Promotor do do stare decisis. Nos países de civil law, onde flores-
Condado de Dallas, no Texas, Henry Wade, acerca ceu o positivismo, como no Brasil, a criação do direi-
da realização de um aborto que, segundo a autora, to pelo Judiciário é fenômeno relativamente recente,
havia sido decorrente de um estupro(37). Na época, a viabilizada pela incorporação de normas abertas aos
lei estadual do Texas proibia o aborto, somente per- textos constitucionais e pelas subsequentes interpre-
mitindo-o em caso de risco para a vida da gestante. tações mais consentâneas com a efetivação dos direi-
A Suprema Corte decidiu pela realização do procedi- tos fundamentais.
mento, em 1973, sob fundamento de que o feto não
gozava de proteção constitucional e que, portanto, a 3.2.3 Críticas da doutrina estrangeira ao
lei não poderia impedir a sua remoção do ventre ma- neoconstitucionalismo
terno. O segundo argumento foi o de que a proibição
do aborto infringia o direito à privacidade da mu- O movimento neoconstitucionalista é fortemente
lher. A decisão termina por classificar a gestação em refutado na doutrina francesa, ao passo que a doutrina
três trimestres: durante o primeiro trimestre, o Esta- italiana, capitaneada por Susanna Pozzolo, o admite
do não poderia proibir o aborto, e somente poderia parcialmente, somente aceitando as suas teses quanto
regulamentá-lo como faz com relação a outros proce- à ponderação de princípios e quanto ao seu aspecto
dimentos médicos ordinários; no segundo trimestre, pragmático, já descrito. Seus maiores defensores, por-
também não seria admissível a proibição do aborto, tanto, encontram-se entre os espanhóis e alemães.
porém a sua regulamentação poderia ser mais rigo- A primeira crítica da doutrina italiana sustenta
rosa, em face da necessidade de proteção da saúde da que o direito, no neoconstitucionalismo, é muito in-
mulher. No último estágio, por seu turno, poderia a certo e subjetivo, pois a interpretação das normas se
lei estadual proibir o aborto, mas apenas se neces- baseia na pretensão de correção e, ao mesmo tempo,
sário para preservar a vida ou a saúde da gestante. exige justiça para o caso concreto. Ademais, a moral
Esta sentença, que foi interpretada como a legaliza- e a justiça podem assumir plúrimos significados(38).
ção do aborto nos EUA, não chegou a ser executada, Refuta-se tal ideia sob o argumento de que, de fato,

para brancos a apenas sete quarteirões de sua casa. A ação foi proposta em face do Distrito Escolar da cidade de Topeka,
no Kansas, em nome de Linda Brown, e teve o apoio da NAACP (National Association for the Advancement of Colored
People – Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor), uma importante entidade civil de defesa dos direitos
raciais nos EUA. Na decisão, a Suprema Corte asseverou que a doutrina do equal but separate jamais iria proporcionar aos
afro-americanos o mesmo padrão de qualidade das escolas para brancos.
(36) ROCHA, Lincoln Magalhães. Federalismo e ativismo judicial nos EE. UU. Revista da Faculdade de Direito da Univer-
sidade Federal de Uberlândia, v. 2, n. 14, p. 265-284, 1985.
(37) CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. 3. ed. New York: Aspen Publishers, 2006, p. 820-822.
(38) POZZOLO, Susanna. Un constitucionalismo ambiguo. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). 4.
ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 187-210.
46 • CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO

os princípios nos quais são baseadas as decisões são asseverado, o neoconstitucionalismo surgiu na se-
abertos, porém somente serão válidos para a deman- gunda metade do século XX, após a Segunda Guerra
da se o seu uso, sua abrangência e sua conceituação Mundial, e seus defensores ainda não são uníssonos,
forem fundamentados argumentativamente. O uso embora sejam coerentes com relação às teses sufraga-
do princípio, por conseguinte, não é arbitrário e não das. Ademais, o próprio positivismo nunca teve uma
pode conduzir ao absurdo ou à negativa dos demais unanimidade entre os adeptos, possuindo diversas
direitos fundamentais; ao contrário, deve ser baliza- vertentes ao longo de sua trajetória.
do e fundamentado. De acordo com a doutrina posi-
Observa-se, destarte, que a postura da doutrina
tivista, nos casos onde não houvesse regulamentação
italiana em relação ao neoconstitucionalismo é res-
legal, o juiz teria o poder de criar uma nova regra,
tritiva, conquanto reconheça alguns acertos do mo-
inédita no ordenamento jurídico – e esta conduta,
delo. Na doutrina espanhola, os professores Alfonso
muito mais que a interpretação aberta, conduziria à
insegurança. Figueroa e Sastre Ariza são os grandes baluartes do
neoconstitucionalismo total, como já asseverado.
Susanna Pozzolo vislumbra ainda dificuldades
Já Pietro Sanchís(40) revela-se adepto do movimento
em relação ao princípio da separação entre os pode-
doutrinário, porém discorre sobre algumas preocu-
res, o que poderia levar a uma ruptura do modelo
pações quanto à ponderação de princípios e, de ma-
constitucional. Convém destacar que a clássica se-
neira muito original, quanto à excessiva jurisdicio-
paração de poderes, preconizada por Montesquieu,
está sendo paulatinamente superada pelo sistema nalização da moral, que perderia sua função social e
de freios e contrapesos do direito norte-americano. filosófica de ajuste para ser tragada pelas vicissitudes
Neste sistema, cada poder exerce todas as funções jurídicas.
estatais (legislativa, executiva e judiciária), com a Na doutrina brasileira, um grande número de
predominância de uma delas, porém sem afastar ou constitucionalistas aderiu ao movimento, entenden-
negar a existência das duas outras. do-o como uma vitória do modelo constitucional,
Afirma-se ainda(39) que o neoconstitucionalismo somente possível após a redemocratização do país na
deveria estar mais preocupado com a efetividade das década de 1980, com o final da ditadura militar. A
normas constitucionais e com o caráter pragmático doutrina perpassa por adaptações às especificidades
do direito, ao invés de apenas criticar o positivismo. brasileiras, especialmente considerando que o con-
Esta crítica não procede, com efeito, porque a defesa trole de constitucionalidade, no Brasil, é misto, ou
mais ardorosa do neoconstitucionalismo está funda- seja, tanto é exercido de forma centralizada, pelo Su-
mentada, precisamente, na necessidade de tutela dos premo Tribunal Federal, quanto é exercido de forma
direitos e garantias fundamentais. difusa, por qualquer órgão do Poder Judiciário.
Por derradeiro, Susanna Pozzolo critica o neo- O neoconstitucionalismo no Brasil, portanto, me-
constitucionalismo por possuir significado ambíguo rece ser temperado com algumas nuanças culturais e
e ainda por pretender, contraditoriamente, ser uma históricas, precipuamente no que diz respeito à relati-
teoria do direito e uma filosofia do direito. Como já va pequena vivência democrática do povo brasileiro.

(39) DUARTE, Écio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico. São Paulo: Landy
Editora, 2010, p. 178-183.
(40) SANCHÍS, Luís Pietro. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitu-
cionalismo(s). 4. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 123-158.

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