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Ficha Técnica

Título: Municipalismo

Propriedade: ATAM - Associação dos Trabalhadores da Administração Local


Praça do Município | Apartado 219 | 2001-903 Santarém
Telefs. 243 330 270 / 273 / 274 / 275 / 278 | Fax: 243 322 927
e-mail: municipalismo@atam.pt | www.atam.pt

Editor: ATAM - Associação dos Trabalhadores da Administração Local

Diretor: Francisco José Alveirinho Correia


Conselho Consultivo:
António Cândido de Oliveira | Universidade do Minho | CEJUR
Universidade do Minho | NEDAL

João
Paulo Zbyszewski | UATLA - Universidade Atlântica

Jorge Faria | IPS - Instituto Politécnico de Santarém


Câmara Municipal do Entroncamento

Helena Curto | UAL - Universidade Autónoma de Lisboa

Carlos Rodrigues | ISLA Santarém

Redação: Praça do Município | Apartado 219 | 2001-903 Santarém

Periodicidade: Bianual

Tiragem: 500 exemplares

Depósito Legal n.º: 304256/10

ISBN: 978-972-8896-11-9

ERC Registo n.º: 125735

Impressão: Europress

Edição Gráfica e Paginação: Gina Coelho | Gabinete de Comunicação | ATAM

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer processo eletrónico,
mecânico ou fotográfico, sem autorização prévia do editor
ÍNDICE

Editorial
- Diretor .................................................................................................................5

Artigos
A Constituição do urbanismo

- Cláudio Monteiro .............................................................................................. 9

Articulação de Programas, Planos e Regulamentos:


contributo para uma análise das suas relações

- Dulce Lopes.......................................................................................................29

Expropriação, execução do plano e perequação: como articular?

- Fernanda Paula Oliveira....................................................................................55

Bairros Sociais - Urbanismo para pobres?

- José Nicolau Ferreira........................................................................................89

Mera Comunicação Prévia sem fiscalização?


Toda a gente ralha e ninguém tem razão!

- Marcelo Caetano Delgado..............................................................................105

Estatuto da Revista Científica...............................................................................131

Normas de Colaboração.......................................................................................133

Estatuto Editorial ................................................................................................ 134

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 3
EDITORIAL
Criada em 2009, a revista “Municipalismo”, propriedade da ATAM -
Associação dos Trabalhadores da Administração Local, agora com publicação
bienal, passou, a ser de natureza temática, a partir do presente número que é
dedicado ao Urbanismo.

De acordo com o novo estatuto editorial, a revista é uma publicação de


índole técnico-científica, que pretende ocupar um novo espaço a nível autár-
quico e que privilegia a divulgação de trabalhos finais de mestrado e de dou-
toramento, bem como estudos e ensaios de trabalhos de natureza técnica e
experimental, elaborados no seio do Poder Local e que visa contribuir, não só
para uma melhor informação, formação e valorização profissional e cultural dos
trabalhadores e eleitos locais, mas também para um mais elevado desempenho
profissional e político.

Na sequência de vários convites a diversas personalidades e associados,


em geral, o Conselho Consultivo da revista procedeu à revisão dos trabalhos
recebidos, de acordo com as normas de colaboração aprovadas, pelo que o
presente número do “Municipalismo” inclui os temas e autores que seguida-
mente se indicam:

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 5
- A Constituição do urbanismo, Cláudio Monteiro

- Articulação de Programas, Planos e Regulamentos: contributo para uma


análise das suas relações, Dulce Lopes

- Expropriação, execução do plano e perequação: como articular?, Fernanda


Paula Oliveira

Bairros Sociais - Urbanismo para pobres?, José Nicolau Ferreira

Mera Comunicação Prévia sem fiscalização? Toda a gente ralha e ninguém


tem razão!, Marcelo Caetano Delgado

Aos autores dos trabalhos agora publicados, a Direção da ATAM agradece a


atenção e a disponibilidade manifestadas, uma vez que, tendo em conta a vasta
experiência patenteada na área específica deste número da revista, contribuíram
com valiosos e consistentes artigos que muito irão valorizar o estudo e a discussão
desta temática no seio da Administração Local.

Francisco Alveirinho Correia


Diretor
A CONSTITUIÇÃO
DO URBANISMO

Claudio Monteiro
Juiz do Tribunal Constitucional
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 7
RESUMO

O presente artigo identifica e analisa as bases constitucionais do Urbanismo,


concluindo que o mesmo é reconhecido pela Constituição portuguesa de
1976 como uma função pública de âmbito local, que se desenvolve através
da definição do aproveitamento urbanístico dos solos por instrumentos de
planeamento.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição; Ordenamento do Território; Urbanismo;


Habitação; Autonomia Local; Planos Municipais

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 9
O urbanismo está presente na Constituição portuguesa de 1976 desde a
sua versão originária1, onde surgiu no artigo 65º funcionalizado à satisfação
do direito fundamental à habitação, mas desde então, sobretudo a partir da
revisão constitucional de 1997, tem vindo a autonomizar-se e a afirmar-se
enquanto um bem constitucional a se2.

Não nos interessa, aqui, elencar exaustivamente todas as normas e


princípios jurídicos que compõem a Constituição do urbanismo, nem fazer
a sua análise detalhada, mas antes identificar as principais questões de
que aquelas normas e princípios se ocupam.

Da leitura que fazemos do texto constitucional emergem três questões


centrais, que podemos reunir numa única conclusão: a de que a Constituição
reconhece o urbanismo como uma função pública de âmbito local, que se
desenvolve através da definição do aproveitamento urbanístico dos solos
por instrumentos de planeamento.

Analisemos então, separadamente, cada uma dessas questões.

1 Seguimos aqui de perto aquilo que escrevemos sobre a Constituição do urbanismo na nossa dissertação de doutoramento O domínio da cidade. A
propriedade à prova no Direito do Urbanismo, AAFDL, Lisboa, 2013. Sobre a mesma matéria v. também Fausto de Quadros, “Princípios fundamentais
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo em matéria de Direito do Urbanismo”, In Direito do Urbanismo (Comunicações apresentadas no
curso realizado no Instituto Nacional da Administração), Instituto Nacional de Administração, Oeiras, 1989, pp. 269-300; Fernando Alves Correia, Manual
de Direito do Urbanismo (Vol I), 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 115 ss. e Maria da Glória Garcia, Direito do Urbanismo, Lex, Lisboa, 1999, pp.
49-52 e Maria da Glória Garcia, “Constituição e ordenamento do território”, In Os dez anos da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e
de Urbanismo. Genése e evolução do sistema de gestão territorial, 1998-2008, Ad Urbem, Lisboa, 2010. Para uma perspetiva comparada da dimensão
constitucional do urbanismo, v. Gabriella Mangione, Jus aedificandi e valori costituzionali. Uno studio comparatistico su alcuni aspetti della problematica in
tre ordinamenti dell’Europa attuale, Giuffrè, Milão, 2004 e Barbara Giuliani, “La nozione costituzionale di «governo del territorio»: un’analisi comparata”,
In Rivista Giuridica dell’Edilizia, 2005, pp. 285-302.

2 Esta perspetiva é defendida, entre outros, por Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo (Vol I), p. 121. Referindo-se à instrumentalidade
do urbanismo em relação ao direito à habitação, ainda hoje, v. Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 4ª edição, Coimbra
Editora, Coimbra, 2007, p. 834.

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1. O urbanismo como função pública

Não temos grandes dúvidas em afirmar que o urbanismo é, e sempre foi,


entendido como uma função pública3, sobretudo se usarmos a expressão
como sinónimo de urbanização.

Fazer cidade, no sentido de abrir novas ruas, praças e jardins, e dotá-las


das infraestruturas necessárias para suportarem a edificação é, de facto,
uma tarefa própria da Administração, não obstante em certas circunstâncias
poder ser realizada por particulares, em regime de concessão, de delegação
ou de empreitada4.

Como afirmou de forma expressiva García de Enterría, referindo-se ao


monopólio público da criação de solo urbano estabelecido pela Lei
dos Solos espanhola de 1956, “enquanto facto, a cidade é um facto
caracteristicamente coletivo, de onde resulta que ela deve ser coletivamente
controlada, ou melhor, coletivamente decidida”5.

As duas expressões utilizadas por García de Enterría não são inocentes,


já que existe uma diferença sensível entre uma urbanização apenas
«controlada» e uma urbanização «decidida» pela Administração. Na
primeira perspetiva, a iniciativa do processo de urbanização é, ainda assim,
deixada aos particulares, cuja atividade urbanística é objeto de um controlo
prévio pela Administração, destinado exclusivamente a verificar a sua
conformidade com as normas legais e regulamentares que estabelecem

3 Neste sentido v., entre nós, Diogo Freitas do Amaral, “Opções políticas e ideológicas subjacentes à legislação urbanística”, In Direito do Urbanismo
(Comunicações apresentadas no curso realizado no Instituto Nacional da Administração), p. 99, Maria da Glória Garcia, “O Direito do Urbanismo entre
a liberdade individual e a política urbana”, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente (13), p. 98; Fernando Alves Correia, Manual de Direito do
Urbanismo (Vol I), pp. 140-142; Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes, “O papel dos privados no planeamento: que formas de intervenção?”, In Revista
Jurídica do Urbanismo e do Ambiente (20), pp. 44 ss. e João Miranda, A função pública urbanística e o seu exercício por particulares, Coimbra Editora,
Coimbra, 2012, pp. 129 ss.

4 Sobre o papel dos particulares no planeamento urbanístico, v. Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes, “O papel dos privados no planeamento”; sobre o
seu papel na execução dos planos, v. João Miranda, “O papel dos particulares na execução dos planos territoriais - uma breve abordagem à luz do direito
português”, In Revista de Derecho de la Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2006, pp. 497 ss., e A função pública urbanística e o seu exercício
por particulares.

5 Cfr. Eduardo García de Enterría, “La Ley del suelo y el futuro del urbanismo”, In Anuario de Derecho Civil, XI, p. 492.

12 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
os respetivos limites. Já na segunda, a Administração tem o controlo
absoluto daquele processo, tomando todas as decisões fundamentais a
seu respeito.

É nesta última perspetiva que o urbanismo surge na Constituição


portuguesa de 1976, que postula uma ordenação global, tanto da cidade
existente, através do “efetivo controlo do parque imobiliário urbano”, como
da sua expansão, através “da necessária nacionalização ou municipalização
dos solos urbanos” e da definição do “respetivo direito de utilização”6.

É nesse sentido, nomeadamente, que a Lei dos Solos, aprovada


imediatamente após a entrada em vigor da Constituição7, dispôs que
a criação de novos aglomerados urbanos, bem como a expansão ou o
desenvolvimento dos existentes, são realizações “planeadas, decididas e
concretizadas pela Administração”8, sugerindo assim que a Administração
não se limita a ordenar a cidade, como inclusive assume a responsabilidade
pela sua transformação física9.

A Lei dos Solos admitia, é certo, que fossem confiadas a particulares a


realização de algumas tarefas urbanísticas, nomeadamente a realização
de obras de edificação em terrenos cedido pela própria Administração
“para a execução de empreendimentos compreendidos em planos por ela
aprovados”10, ou de obras de urbanização e de edificação em terrenos por
ela adquiridos para essas finalidades11. Mas a atividade urbanística dos
particulares era inteiramente subordinada ou dependente da iniciativa da
Administração, com a qual aqueles apenas «colaboram».

6 Cfr. artigo 65º/4 da CRP 1976.

7 Cfr. Decreto-Lei nº 794/76, de 5 de Novembro.

8 Cfr. artigo 3º/1; v. também artigo 2º/1/a) e b) da mesma lei.

9 A distinção entre «ordenação» e «transformação» é proposta por Maria Pardo Álvarez, com o objetivo de reconduzir a função pública urbanística àquela
primeira atividade. Segundo a autora, enquanto a ordenação corresponde à direção e controlo público da atividade urbanística, a transformação física
corresponde à atividade de urbanização e edificação, entendidas aqui no seu sentido estrito de realização das correspondentes obras - cfr. María Pardo
Álvarez, La potestad de planeamiento urbanístico bajo el Estado, social, autonómico y democrático de Derecho, Marcial Pons, Madrid, 2005, pp. 127 e 133 ss.

10 Cfr. artigo 3º/2/b) da LS.

11 Cfr. artigo 3º/2/c) da LS.

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O disposto na Lei dos Solos de 1976 é, aliás, fundamental para compreender
a ratio da redação originária do número 4 do artigo 65º da Constituição,
quando este se propunha promover a socialização integral dos solos
urbanos e a definição do “respetivo direito de utilização”.

Ao estabelecer que a construção privada - no sentido de construção feita


para utilidade particular do seu proprietário - só podia ser realizada em
terrenos cedidos para o efeito pela própria Administração, em propriedade
plena ou em direito de superfície12, a Lei dos Solos pressupunha que o direito
de utilização dos referidos terrenos foi por ela previamente definido, sendo
concedido ao privado juntamente com os respetivos terrenos ou direitos.

A ausência, no texto original da Constituição, de uma referência explícita


ao planeamento urbanístico enquanto instrumento de definição do referido
direito de utilização13 resulta, assim, da desnecessidade de regular as
relações com os particulares através de instrumentos normativos, sendo a
sua vinculação obtida preferencialmente por via obrigacional ou real.

As sucessivas revisões constitucionais, ao inverterem a marcha no caminho


da socialização integral dos solos urbanos, e ao privilegiarem a definição
do respetivo direito de utilização - das respetivas regras de ocupação, uso
e transformação - por instrumentos de planeamento, alteraram o modo
como a função pública urbanística é prosseguida, mas não eliminaram a
sua vocação de ordenação global, não apenas da cidade, mas agora de
todo o território.

No seu texto revisto, sucessivamente, em 1982 e em 1989, a Constituição


reconheceu o ordenamento do território como uma tarefa fundamental do
Estado, associando-o, entre outros, à proteção e valorização do património
cultural do povo português, à defesa da natureza e do ambiente, e à
preservação dos recursos naturais14.

12 Cfr. art. 5º da LS.

13 No texto da CRP 1976 existe apenas uma referência aos planos de urbanização como instrumento de «apoio» da política de habitação - cfr. artigo 65º/2ª).

14 Cfr. artigo 9º/e) da CRP 1982 e da CRP 1989. Também foi introduzida no artigo 66º/2/b) pela revisão constitucional de 1989 a incumbência de o Estado
“ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correta localização das atividades, um equilibrado desenvolvimento socioeconómico

14 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Por seu turno, não obstante a maior autonomia reconhecida ao urbanismo
pela revisão constitucional de 1997, a Constituição não deixou de
reconhecer também a íntima relação desta função com a tarefa fundamental
do Estado de promover o correto ordenamento do território, determinado
que a definição das regras de ocupação, uso e transformação dos solos
urbanos seja feita por instrumentos de planeamento, no quadro das leis
respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo15.

O legislador de revisão constitucional optou, assim, decisivamente,


pela disciplina do aproveitamento urbanístico dos solos através da
conformação social do conteúdo do direito de propriedade privada, apenas
permitindo a sua expropriação para a satisfação de fins de utilidade pública
urbanística, nos casos de comprovada necessidade da sua aquisição pela
Administração.

A Constituição pressupõe, por isso, o planeamento integral do território,


que configura aliás como um dever administrativo16, cuja prossecução,
para além dos objetivos próprios que prossegue, nomeadamente na
promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e a igualdade real
entre os portugueses17, é indispensável à satisfação de, pelo menos, dois
direitos económicos, sociais e culturais - o direito à habitação e o direito
ao ambiente18.

e a valorização da paisagem”. Uma relação entre o ordenamento do território e a política de habitação também pode ser encontrada, desde o texto
originário da Constituição, no artigo 65º/2/a), quando estabelece a incumbência do Estado de “programar uma política de habitação inserida em planos
de ordenamento geral do território”.

15 Cfr. artigo 65º/4 da CRP 1997. Referindo-se a essa relação «íntima», v. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo (Vol I), p. 137.

16 Esse dever está, expresso, nomeadamente, no artigo 8º da Lei de Bases Gerais da Política de Solos, do Ordenamento do Território e do Urbanismo
(LBPSOTU), que dispõe na alínea a) do seu número 2, entre outros, que “o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais têm o dever de planear
e programar o uso do solo e promover a respetiva concretização”, sendo concretizado, entre outros também, na obrigatoriedade da elaboração do
plano diretor municipal imposta pelo artigo 95º/4 do RJIGT. Na doutrina, no sentido da consagração deste dever de planear o território, v. Fernando
Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo (Vol I), pp. 140-142; Maria da Glória Garcia, Direito do Urbanismo, p. 76; João Miranda, A dinâmica do
planeamento territorial, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 69 e Gonçalo Reino Pires, A classificação e a qualificação do solo por plano municipal de
ordenamento do território, Edições Alumni FDL, Lisboa, 2015, pp. 53 ss.

17 Cfr. artigo 9º/d) da CRP 1997.

18 Como nota Maria da Glória Garcia, Direito do Urbanismo, p. 50, a relação do direito do urbanismo com os direitos fundamentais não se resume à sua
instrumentalidade em relação ao direito à habitação e ao ambiente, inserindo-se antes “numa política urbana global e integrada”.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 15
Já se disse a esse propósito que vivemos num “Estado de planeamento
e ordenamento do território”, que envolve juspublicamente a atividade
urbanística dos particulares e conforma as suas posições jurídicas subjetiva
patrimoniais, nomeadamente o seu direito de propriedade19.

Deste modo, e apesar do espaço de autonomia que devolveu aos


particulares, a Constituição manteve na Administração a direção e o
controlo do processo de urbanização, confinando o particular à execução
da transformação física do território “com subordinação ao interesse geral”20,
e à colaboração com as autoridades públicas no exercício de tarefas
urbanísticas.

2. O urbanismo como uma responsabilidade local

A Constituição de 1976 definiu um quadro institucional para a governação


política das cidades, que no domínio do urbanismo permitiu substituir
a legitimidade tecnocrática das decisões urbanísticas impostas pela
Administração Central do Estado pela legitimidade democrática das
decisões tomadas pelos órgãos representativos das autarquias locais21.

A própria legislação herdada do Estado Novo em matéria de planeamento


e licenciamento das operações urbanísticas22, que no essencial vigorou

19 Cfr. Mário Esteves de Oliveira, “O direito de propriedade e o jus aedificandi no direito português”, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente (3), p.
194.

20 Cfr. artigo 65º/2/c), onde se estabelece como incumbência do Estado, para garantir o acesso à habitação própria ou arrendada, “promover a construção
privada com subordinação ao interesse geral”.

21 Sobre a centralização como uma característica da Administração Pública do urbanismo em Portugal ao longo da história, v. o que escrevemos em
Claudio Monteiro, Escrever Direito por linhas rectas. Legislação e planeamento urbanístico na Baixa de Lisboa (1755-1833), AAFDL, Lisboa, 2010, pp.
253-256. V. também Fernando Gonçalves, “Evolução histórica do Direito do Urbanismo em Portugal”, in Comunicações apresentadas no curso realizado
no Instituto Nacional da Administração, pp. 225-268 e Fernando Gonçalves, “A organização institucional do planeamento urbanístico em Portugal:
problemas e dificuldades”, In Urbanismo e Poder Local, Centro de Estudos e Formação Autárquica, Coimbra, 1989, pp. 115-162.

22 As prioridades políticas do novo regime foram dirigidas a enquadrar juridicamente o fenómeno da construção clandestina, através da aprovação do
Decreto-Lei nº 804/76, de 6.11, e a controlar o mercado privado de terrenos para construção, através da aprovação de um novo Código das Expropriações,
pelo Decreto-Lei nº 71/76, de 27.1, e de uma nova Lei dos Solos, pelo Decreto-Lei nº 794/76, de 5.11. O que de certa forma era imposto pela própria
Constituição, cujo artigo 65º, na sua redação originária, subordinava a política pública de urbanismo à política de habitação.

16 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
até ao final da década de oitenta do século passado23, ganhou uma nova
dimensão com a emergência de um poder local democrático, tendo
assegurado, pelo menos numa primeira fase do regime, uma considerável
autonomia de decisão às câmaras municipais em matéria urbanística.

Como temos vindo a defender24, a Constituição de 1976 fez uma opção


clara por uma orientação descentralizadora na repartição de atribuições
entre o Estado e as autarquias locais, estabelecendo assim um critério
normativo de preferência local25.

As autarquias locais passaram, por isso, a dispor de um conjunto de


poderes próprios que lhes permitem prosseguir as suas atribuições de
modo pleno e completo.

De acordo com a Constituição, essas atribuições não se restringem a


um círculo de interesses exclusivamente locais, visando de forma mais
ampla a prossecução de todos os «interesses próprios» das populações
respetivas26, ou seja, de todos os interesses que com elas tenham uma
relação específica.

A ideia de que o legislador apenas está limitado pelo respeito do «conteúdo


essencial» da autonomia local, fora do qual todos os interesses têm uma
dimensão regional ou nacional e podem ser prosseguidos em comum
pelo Estado e pelas autarquias locais não encontra apoio no nosso texto
constitucional27.

23 O Decreto-Lei nº 560/71, de 17.12, que estabelecia o regime dos planos de urbanização e de pormenor, vigorou até à aprovação do Decreto-Lei nº 69/90,
de 2.3, que estabeleceu o regime jurídico dos planos municipais de ordenamento do território. O Decreto-Lei nº 166/70, de 15.4, que estabelecia o regime
de licenciamento municipal de obras particulares, vigorou até à aprovação do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, que o substituiu. Só o Decreto-
Lei nº 289/73, de 6.6, que estabelecia o regime do licenciamento municipal de operações de loteamento foi substituído mais cedo, pelo Decreto-Lei nº
400/84, de 31.12.

24 V., nomeadamente, o que escrevemos em Claudio Monteiro, “Cidade, Democracia e Direito. A autonomia do poder local em matéria urbanística”, In
Cidade e Democracia. 30 Anos Transformação Urbana em Portugal, Argumentum, Lisboa, 2006, pp. 349-399, cujas principais conclusões seguimos aqui
de perto, não obstante as correntes doutrinárias e jurisprudenciais maioritariamente adversas que se consolidaram e se desenvolveram desde então.

25 Sobre a descentralização administrativa territorial na Constituição, v. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo (Vol. I), Almedina,
Coimbra, 206, pp. 479 ss. e 873 ss.

26 Cfr. artigo 235º/2 da CRP.

27 Conforme refere António Cândido de Oliveira, a Constituição portuguesa não se limitou a garantir uma autonomia local de conteúdo mínimo, mas o

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 17
A autonomia local não se restringe a uma garantia institucional desprovida
de conteúdo material e assente exclusivamente em normas organizatórias.
Não basta que existam autarquias locais, designadamente municípios e
freguesias, e que as mesmas participem no processo de formação das
decisões que afetem as respetivas populações.

A prossecução de «interesses próprios» tem, por isso, de ter correspondência


necessária num elenco de matérias relativamente às quais as autarquias
locais disponham de competência dispositiva própria para definir as suas
opções políticas.

E o urbanismo é inquestionavelmente uma dessas matérias.

O sentido descentralizador para que aponta a nossa Constituição não foi,


contudo, o caminho seguido pela legislação urbanística produzida ao longo
destes mais de quarenta anos de vigência da Constituição, sobretudo a
partir do momento em que o planeamento urbano substituiu a política de
solos nas prioridades políticas do governo público das cidades.

A estreita relação existente entre o ordenamento do território e o urbanismo


tem sido repetidamente invocada para justificar a invasão pelo Estado
da esfera de competências próprias das autarquias locais em matéria
urbanística.

Com base na ideia de que “os seus contornos são praticamente


impercetíveis”28, o ordenamento do território tem sido visto como uma
«continuação do urbanismo», como uma espécie de urbanismo estratégico
e supramunicipal, a ponto de o legislador praticamente já não estabelecer
qualquer distinção entre aquelas duas realidades.

Assim, os amplos poderes de intervenção estadual em matéria urbanística


têm sido justificados com base nas normas constitucionais que cometem

máximo de autonomia dentro do respeito pelos princípios da eficácia e da unidade de ação na prossecução do interesse público - cfr. António Cândido de
Oliveira, Direito das Autarquias Locais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 225-226.

28 Cfr. Fernando Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Almedina, Coimbra, 1989, p. 64.

18 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
ao Estado a obrigação de assegurar um “correto ordenamento do território”29,
no pressuposto de que esta incumbência abarca tudo o que respeita
à ocupação, uso e transformação dos solos, incluindo aquilo que era
tradicionalmente reservado à competência dos órgãos municipais.

É isso que explica, nomeadamente, que desde a reforma legislativa levada


a cabo no início da década de noventa sob a orientação política do Ministro
Valente de Oliveira, todos os instrumentos de planeamento municipal
passaram a ser genericamente designados por «planos municipais de
ordenamento do território»30, ainda que tenham ou devam ter funções
exclusivamente urbanísticas, como o plano de urbanização ou o plano de
pormenor.

A própria Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de


Urbanismo31, e o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial32,
que, entretanto, vieram suceder aos diplomas aprovados naquela reforma,
não apenas mantiveram como, inclusive, ampliaram consideravelmente os
poderes de intervenção de órgãos estaduais, nomeadamente no âmbito
dos procedimentos de elaboração dos planos municipais. Tendência que
apenas foi ligeiramente invertida em 2007, com a aprovação do Decreto-Lei
n.º 316/2007, de 19 de Setembro, que entre outras alterações ao regime
jurídico dos instrumentos de gestão territorial então vigente, suprimiu a
obrigatoriedade da ratificação governamental dos planos municipais33.

Aqueles instrumentos estão sujeitos, não obstante, a um controlo externo


de tal forma exigente, nomeadamente através do acompanhamento feito
pelas comissões de coordenação e desenvolvimento regional, e pela

29 Cfr. artigos 9.º/1/e) e 66.º/2/b da CRP.

30 V., entre outros, o Decreto-Lei nº 69/90, de 2 de Março, que aprovou o regime dos planos municipais de ordenamento do território.

31 Cfr. Lei n.º 48/98, de 11 de agosto, entretanto substituída Lei n.º 31/2014, de 30 de maio, que aprovou as bases gerais da política de solos, de ordenamento
do território e de urbanismo.

32 Cfr. Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, por diversas vezes alterado e finalmente substituído pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio.

33 Com a redação que aquele diploma legal deu então ao artigo 80.º/2 do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, a ratificação pelo Governo do plano
diretor municipal passou a ocorrer a solicitação da câmara municipal, deixando de ser genericamente exigível. A mesma solução resulta atualmente do
artigo 91.º/2 do novo RJIGT.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 19
intervenção de múltiplas entidades encarregues de tutelar interesses
públicos diferenciados do Estado, que na prática nem sempre é possível
identificar com clareza a autoria material dos planos.

Na base do entendimento perfilhado na Lei de Bases, e de uma forma


geral em toda a legislação respeitante ao ordenamento do território e ao
urbanismo, está a ideia de que os poderes do Governo e dos demais
órgãos da Administração Central em matéria urbanística são autónomos
em relação aos poderes dos órgãos municipais sobre a mesma matéria,
porque visam a prossecução de interesses próprios do Estado, inerentes
às suas atribuições em matéria de ordenamento do território34.

O referido entendimento é, aliás, sustentado pela maioria da doutrina,


que viu nas alterações introduzidas pela revisão constitucional de 1997
a positivação do entendimento de que o ordenamento do território e o
urbanismo são domínios abertos à intervenção concorrente das autarquias
locais, das regiões autónomas e do Estado35, bem como por jurisprudência
do Tribunal Constitucional, que a este propósito tem afirmado reiteradamente
a tese do «condomínio de atribuições» estaduais e locais36.

Nesta perspetiva doutrinária e jurisprudencial, quaisquer intromissões do


Estado em matérias urbanísticas que sejam da competência dos órgãos
autárquicos não podem ser juridicamente entendidas como manifestações

34 Rejeitando a adoção de um critério material de distinção entre o ordenamento do território e o urbanismo, e justificando as competências de intervenção
do Estado em matéria urbanística pela necessidade de este prosseguir as suas atribuições próprias relativas ao ordenamento do território v., na doutrina,
Fernando Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, pp. 64 e ss., 165 e 271-272, Fernando Alves Correia, As grandes linhas da recente
reforma do Direito do Urbanismo português, Almedina, Coimbra, 1993, pp. 34 e ss., 86 e ss., 105-106 e 120-122 e Fernando Alves Correia, Manual de
Direito do Urbanismo (Vol I), pp. 72 ss., José Perestrelo de Oliveira, Planos Municipais de Ordenamento do Território, Almedina, Coimbra, 1991, pp. 14 e
20 e ss. e Rui Chancerelle de Machete, “Privilégio da Execução Prévia. Embargo de obra nova”, In Estudos de Direito Público e Ciência Política, Lisboa, 1991,
p.511 ss.

35 Neste sentido, em especial, Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo (Vol I), pp. 215 ss.; v. também Gonçalo Reino Pires, A classificação
e a qualificação do solo pelos planos municipais de ordenamento do território, pp. 66-67, Jorge Reis Novais, “Ainda sobre o jus aedificandi”, in Estudos
jurídicos e económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 517 e Rui Medeiros, “Comentário
ao artigo 65º (Habitação e Urbanismo)”, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Anotada (i Vol.), 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, p. 1336.

36 A expressão, aliás, é de Fernando Alves Correia, “Problemas actuais do Direito do Urbanismo em Portugal”, In Revista do Centro de Estudos de Direito do
Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, Ano I (2), p. 15. Na jurisprudência do Tribunal Constitucional, v. Acórdãos nºs 432/93 (Conselheiro António
Vitorino), 379/96 (Conselheiro Messias Bento), 548/97 (Conselheiro Monteiro Diniz), 329/99 (Conselheiro Messias Bento) e 517/99 (Conselheiro Messias
Bento), todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

20 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
de tutela administrativa, e não estão por isso sujeitas aos limites
constitucionais estabelecidos para este tipo de atuações37.

Isso significa, concretamente, que o Estado não se limita a verificar


a legalidade da atuação do órgão autárquico, tendo também uma
palavra a dizer sobre o mérito da decisão. Na prática, isso significa que
aquelas competências, nomeadamente as de planeamento, são exercidas
simultaneamente por órgãos do Estado e por órgãos do Município em
regime concorrencial.

Em nossa opinião, porém, o conceito que melhor traduz a relação entre


as atribuições e competências do Estado e das autarquias locais em
matéria de ordenamento do território e urbanismo, respetivamente, é o de
concertação de interesses38, e não o de condomínio de interesses.

Não está obviamente em causa que os poderes urbanísticos dos municípios


não possam e até devam ser limitados pelos poderes do Estado, na
exata medida em que isso se revele adequado e necessário para tutelar
outros interesses públicos que a Constituição e a lei reputem como mais
relevantes, designadamente os relativos ao ordenamento do território ou
ao ambiente.

Mas ainda assim é essencial reconhecer a existência de um espaço de


atuação autónoma dos municípios para a prossecução de interesses
próprios das respetivas populações locais, ainda que esse espaço se tenha
de conter dentro dos limites das opções políticas de âmbito mais vasto,
contidas em outros planos ou instrumentos de gestão territorial de âmbito
regional ou nacional.

Nessa perspetiva, continuamos a entender que se justifica recuperar a


distinção material entre ordenamento do território e urbanismo como
principal critério de repartição de atribuições e competências entre o

37 Contra este entendimento pronunciou-se, no âmbito da legislação produzida na referida reforma do Ministro Valente de Oliveira, Diogo Freitas do Amaral,
Direito do Urbanismo (Sumários), policopiado, 1993, pp. 57 ss.

38 Referindo-se à concertação de interesses como a ideia chave expressa pelo artigo 65º/4 CRP, v. Maria da Glória Garcia, Direito do Urbanismo, p. 50.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 21
Estado e as autarquias locais neste domínio39.

A própria Constituição pressupõe a distinção entre estas duas esferas de


atribuições40, ao estabelecer no número 4 do seu artigo 65º que a definição
das regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos é feita
através de instrumentos de planeamento “no quadro das leis respeitantes
ao ordenamento do território e ao urbanismo”41.

A este propósito, é significativo referir que o legislador constituinte não


incluiu a disciplina da ocupação, uso e transformação dos solos urbanos
no âmbito dos fins do ordenamento do território previstos no número 2 do
artigo 66º42, matéria que apenas é objeto de uma referência constitucional
no citado artigo número 4 do artigo 65.º, exclusivamente a propósito dos
solos urbanos.

Com efeito, é na definição da vocação urbana dos solos e do seu regime de


aproveitamento, ou, noutra perspetiva, na definição da forma das cidades,
que reside a singularidade do urbanismo, ao qual deve ser reconhecida
uma função conformadora do direito de propriedade privada que, por
princípio, é estranha ao ordenamento do território.

A estas duas esferas de atribuições devem, pois, corresponder níveis


de responsabilidade distintos, sendo certo que enquanto a Constituição
incumbe expressamente o Estado de proceder a um correto ordenamento
do território43, o urbanismo, pela natureza dos interesses envolvidos, é uma

39 Sobre a distinção entre ordenamento do território e urbanismo, v. o que escrevemos em Claudio Monteiro, O embargo e a demolição de obras no
Direito do Urbanismo, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995, pp. 5-10. V. também
Diogo Freitas do Amaral, “Ordenamento do Território, Urbanismo e Ambiente: Objecto, autonomia e distinções”, In Revista Jurídica do Urbanismo e do
Ambiente, Junho (1) e Fernanda Paula Oliveira, Portugal: Território e odenamento, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 7 ss., e em especial pp. 26 ss. Na doutrina
estrangeira v. María Pardo Álvarez, La potestad de planeamiento urbanístico bajo el Estado social, autonomico y democratico de Derecho, pp. 33 ss.

40 O que, inclusive, é reconhecido por Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo (Vol I), pp. 127 e 137.

41 Do mesmo modo que no artigo 165º/1/z) CRP se estabelece uma reserva relativa de competência da Assembleia da República quanto às “bases do
ordenamento do território e do urbanismo”.

42 Cfr. artigo 66º/2/b).

43 Cfr. artigos 9º/1/e) e 66º/2/b da CRP.

22 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
atribuição própria das autarquias locais44.

O facto de o número 4 do artigo 65.º da Constituição atribuir a


responsabilidade pela definição de regras de ocupação, uso e transformação
dos solos urbanos, em conjunto, ao Estado, às regiões autónomas e
às autarquias locais, também não afasta este entendimento, já que a
referência ali feita ao Estado deve ser interpretada no contexto global do
artigo, tendo em conta, nomeadamente, a relação de compatibilidade
necessária existente entre planos de ordenamento do território e planos
urbanísticos.

Dentro dos respetivos níveis de atuação, Estado e autarquias locais


contribuem ambos para a definição do aproveitamento urbanístico dos
solos de que trata aquele preceito constitucional, e que depende da
atuação em “cascata” dos diversos instrumentos de planeamento físico do
território previstos na lei45.

É, pois, ao nível da elaboração e aprovação dos referidos instrumentos de


planeamento urbanístico que devem ser dirimidos os conflitos de interesse
entre o Estado e as autarquias locais46, razão pela qual, aliás, estes
planos são submetidos a um apertado controlo de legalidade, destinado
a assegurar a sua conformidade com as opções contidas em planos
de ordenamento do território, nomeadamente no Programa Nacional da
Política de Ordenamento do Território (PNPOT) e nos Programas Regionais
de Ordenamento do Território (PROT) ou em outras disposições legais.

44 Não é sequer evidente que o Estado de que falam os preceitos constitucionais em questão seja sempre o Estado-Administração, e que estas atribuições
não possam ser prosseguidas por outros entes territoriais, designadamente as próprias autarquias locais. No artigo 9º/e), por exemplo, a referência ao
Estado tem de ser interpretada no seu contexto sistemático, relacionando-se com os fins da comunidade política em geral, e não apenas com o exercício
da função administrativa.

45 Sobre as relações entre planos municipais e planos estaduais no sistema de gestão territorial v. o que escrevemos em Claudio Monteiro, “A lei do mais
próximo: as relações entre planos no sistema de gestão territorial”, In GeoINova - Revista do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (7), 2003.

46 Já nos havíamos pronunciado neste sentido em Claudio Monteiro, “Urbanismo e interesses públicos diferenciados. O novo regime de consultas a
entidades externas nos procedimentos de controlo prévio das operações urbanísticas”, In Revista de Direito Local e Regional (4), 2008.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 23
3. O plano como instrumento preferencial de atuação
urbanística da Administração

Na sua versão inicial, a Constituição de 1976 estabelecia como princípio


fundamental da organização económica a “apropriação coletiva dos principais
meios de produção e solos”47, estabelecendo como incumbência do Estado
e das autarquias locais a “necessária nacionalização e municipalização dos
solos urbanos”48.

À luz daquelas orientações, a nacionalização ou municipalização dos


solos urbanos conferiria à Administração o poder de livremente definir o
respetivo direito de utilização, o que ela fazia, desde logo, adquirindo a sua
propriedade ou a titularidade dos respetivos poderes dominiais.

Não seria por isso necessário controlar a ocupação, o uso e a transformação


do território através de planos urbanísticos vinculativos para os particulares,
como aliás já não tinha sido necessário no passado, nomeadamente no
período em que Duarte Pacheco esteve à frente da Câmara Municipal de
Lisboa e do Ministério das Obras Públicas, quando a expansão urbana foi
sustentada numa política de expropriação sistemática dos solos destinados
a esse fim.

No entanto, mesmo na sua versão inicial a Constituição de 1976 não


deixava de garantir a liberdade de iniciativa privada49 e o direito de
propriedade privada50 e, nessa medida, de permitir, como viria na prática a
suceder, a adoção pelos sucessivos governos constitucionais de políticas
urbanísticas intermédias51, assentes na procura de um equilíbrio entre a
intervenção pública e a livre atuação dos particulares.

47 Cfr. artigo 80º/c da CRP 1976.

48 Cfr. artigo 65º/4 da CRP 1976.

49 Cfr. artigo 61º da CRP 1976.

50 Cfr. artigo 62º da CRP 1976.

51 A expressão é de Diogo Freitas do Amaral, em “Opções políticas e ideológicas subjacentes à legislação urbanística”, p. 99.

24 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
A revisão constitucional de 1989 consolidaria definitivamente o modelo de
economia mista, ou economia social de mercado, no quadro de um Estado
de Direito democrático.

Passou então a dispor-se que só haveria lugar a apropriação coletiva de


meios de produção e solos de acordo com o interesse público52, pelo que,
em consequência, o Estado e as autarquias locais deixavam de ter como
incumbência a nacionalização e a municipalização de solos urbanos, os
quais apenas seriam expropriados quando se revelassem necessários de
acordo com o interesse público53, ou seja, quando necessários à satisfação
de necessidades coletivas concretas.

Na formulação que lhe foi dada pela revisão constitucional de 1997, o


artigo 65º, que passou a ter por epígrafe “Habitação e Urbanismo”, dispõe
que “o Estado e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e
transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos
de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território
e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem
necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística”.

Com essa formulação, ficou clara a opção preferencial da Constituição


pelo plano como instrumento de atuação da Administração em matéria
urbanística. Mais até do que uma preferência, podemos afirmar que a
Constituição exige a utilização do plano para certos fins, nomeadamente
para a definição do aproveitamento urbanístico dos solos, indo inclusive
ao ponto de estabelecer nesse domínio uma verdadeira reserva de plano54.

Esta opção clara que a Constituição faz pelo plano como instrumento de

52 Cfr. artigo 80º/c) da CRP 1989.

53 Cfr. artigo 65º/4 da CRP 1989.

54 O entendimento de que vigora no nosso ordenamento jurídico um «princípio da reserva de plano», fundado no artigo 65º/4 CRP e na legislação ordinária
que o concretiza, é defendido por Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo (Vol I) e João Miranda, A dinâmica do planeamento territorial,
p. 301. No direito alemão, onde estas posições se fundam, v. Harald Dähne, „Die so genannte baufreiheit: das bauen und die eigentumsgarantie „, In
Jura, 25 (7), 2003, p. 459 e Werner Hoppe, et al., Öffentliches Baurecht, Beck, Munique, 2004, p. 30. Num sentido ligeiramente diferente, mas mais
próximo daquele com que o empregaremos adiante, referindo-se a uma “reserva de ponderação da Administração através do plano”, ou a uma “reserva
de planeamento territorial”, v., respetivamente, Gonçalo Reino Pires, A classificação e a qualificação do solo por planos municipais de ordenamento do
território, p. 134 e Rui Medeiros, “Comentário ao artigo 65º (Habitação e Urbanismo)”, p. 1337.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 25
atuação urbanística da Administração tem duas consequências importantes.

A primeira é que esta opção torna mais exigente o recurso à expropriação,


funcionando como um parâmetro concreto de proporcionalidade da
respetiva decisão55, na medida em que a Administração só pode lançar
mão dela ali onde a satisfação do interesse público urbanístico não se
possa obter através da conformação social do direito de propriedade do
particular.

Isso não significa que a Administração possa utilizar o plano como um


meio de fugir à sua responsabilidade pelo dever de indemnizar o sacrifício
injustificado e injusto das posições subjetivas patrimoniais do particular,
pois o alargamento do conceito constitucional de expropriação a isso se
opõe, exigindo também a indemnização das chamadas «expropriações do
plano».

Pelo contrário, até, o número 4 do artigo 65º da Constituição funciona


como critério de extensão do conceito constitucional de expropriação56,
na medida em que, restringindo o recurso à expropriação aos casos
estritamente necessários à “satisfação de fins de utilidade pública urbanística”,
alarga o leque de situações não abrangidas por aquela finalidade, para as
quais não existe causa expropriandi, comprimindo assim substancialmente
o âmbito das intervenções do plano meramente conformadoras do direito
de propriedade.

A segunda consequência da referida opção constitucional é a de que


o plano prefere sobre as demais formas de agir da Administração em
matéria urbanística, tanto nos casos em que ele regula situações gerais,
apresentando-se como uma opção alternativa em relação ao regulamento

55 O princípio da proporcionalidade constitui um pressuposto geral de legitimidade da expropriação por utilidade pública, nos termos do artigo 62º/2 CRP
e 3º do CE. Sobre a matéria v. Fernando Alves Correia, As garantias do particular na expropriação por utilidade pública, Coimbra Editora, Coimbra, 1982,
pp. 117 ss. e Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo (Vol. II), pp. 194 ss., e José Osvaldo Gomes, Expropriações por utilidade pública, Lex,
Lisboa, 1997, pp. 126 ss.

56 Em sentido próximo pronuncia-se Gonçalo Reino Pires, A classificação e a qualificação do solo por planos municipais de ordenamento do território, pp.
68-69.

26 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
administrativo57, como inclusive nos casos em que ele procede à definição
de situações jurídicas concretas, apresentando-se como opção alternativa
ao ato administrativo58.

A opção, como se percebe, é indiferente à questão doutrinária da natureza


jurídica do plano59, pois tanto num caso como noutro, pesam sobretudo
as razões de natureza funcional, que fazem do plano um instrumento
privilegiado de ponderação de interesses, e consequentemente mais apto
para proceder à conformação do conteúdo do aproveitamento urbanístico
dos solos.

Prova disso, aliás, é o relevo concedido pela Constituição à participação


dos interessados na formação das decisões de planeamento, que é objeto
de uma garantia própria no número 5 do artigo 65º, não se bastando,
nessa matéria, com o princípio geral da participação dos interessados na
formação das decisões administrativas estabelecido no número 5 do artigo
267º.

Da redação do citado preceito, retemos, além do mais, aquilo que nos


parece igualmente ser o sinal claro de um segundo nível de preferência
constitucional, desta feita uma preferência pelo plano urbanístico em
detrimento dos restantes “instrumentos de planeamento físico do território”,
nomeadamente os planos de ordenamento do território e os planos ou
programas de natureza sectorial ou especial.

Sem prejuízo das relações paramétricas que se estabelecem entre eles no

57 A questão coloca-se, sobretudo, na relação entre os planos e os regulamentos municipais de urbanização e de edificação, previstos no artigo 3º RJUE, mas
também na relação entre aqueles primeiros e outros regulamentos administrativos com incidência territorial.

58 A questão coloca-se, sobretudo, na opção entre a elaboração e aprovação de um plano de pormenor e o licenciamento de uma operação de loteamento
urbano como modos «alternativos» de estabelecer a disciplina concreta da ocupação, uso e transformação de uma zona particularizada, podendo dizer-se
a esse respeito que a Constituição estabelece um critério normativo de preferência do plano, sobretudo num quadro legal – como é atualmente o nosso,
que atribui aos particulares iniciativa para fazer propostas de elaboração de planos de pormenor, os quais podem ter efeitos equivalentes às operações de
loteamento urbano no domínio da reestruturação fundiária­­– cfr. artigos 81º/1 e 108º do RJIGT.

59 Sobre a natureza jurídica do plano, v. Fernando Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade., pp. 217 ss. e Manual de Direito do Urbanismo
(Vol. I), pp. 602 ss.; Diogo Freitas do Amaral, “Apreciação da dissertação de doutoramento do Licenciado Fernando ALves Correia “O plano urbanístico
e o princípio da igualdade”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXXII, 1991, pp. 96 ss. e João Miranda, A dinâmica do
planeamento territorial, pp. 45 ss.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 27
quadro do sistema de gestão territorial desenhado pela LBPSOTU60, é aos
planos urbanísticos, e não aos demais instrumentos de planeamento físico
do território, que cabe proceder à definição das regras de ocupação, uso
e transformação dos solos61, o que justifica um maior nível de exigência
constitucional em relação à participação dos interessados na sua formação.

60 A LBPSOTU é, necessariamente, a primeira das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo a que se refere o artigo 65º/4 CRP, como
resulta evidente da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República que o artigo 165º./1/z) passou a prever após a revisão
constitucional de 1997.

61 Cfr. artigos 9º/3 da LBPSOTU e 70º do RJIGT.

28 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
ARTICULAÇÃO DE PROGRAMAS,
PLANOS E REGULAMENTOS

CONTRIBUTO PARA UMA ANÁLISE

DAS SUAS RELAÇÕES

Dulce Lopes
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 29
RESUMO

Aos planos (inter)municipais encontra-se reservada a tarefa “primordial”


de qualificação e classificação dos solos, bem como de recepção das con-
dicionantes e dos programas sobre o ordenamento do território. No en-
tanto, há cada vez mais regras dispersas em regulamentos municipais e
estaduais que condicionam e, por vezes, inviabilizam a concretização das
regras de planeamento territorial, pelo que se verifica uma aproximação
ou um continuum, em termos de ocupação do solo, das regras previstas
nos planos e nos vários regulamentos urbanísticos com eficácia externa.
Ao ponto de se questionar se fará sentido que se insista num sistema de
gestão territorial que assenta em tipos limitados de planos com efeitos plu-
risubjectivos, quando cada vez mais se prevêem e admitem regulamentos e
diversos instrumentos normativos que vinculam privados.

PALAVRAS CHAVE: planos, programas, regulamentos, eficácia pluri-


subjectiva, gestão

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 31
1. Introdução

Com as mais recentes alterações da legislação urbanística - em especial


com a Lei de Bases Gerais de Política Pública de Solos, do Ordenamento
do Território e do Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio, doravante LB),
bem como da revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Ter-
ritorial (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio, doravante RJIGT) -, e com
as modificações mais genericamente ocorridas no panorama administrativo
português - em particular com o novo Código de Procedimento Administra-
tivo ou CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro - é no-
tória a valorização dos regulamentos administrativos na gestão do território.

É sobre esta valorização que nos pronunciaremos, tendo em linha de


conta a evolução do sistema de planeamento e a introdução de novas figu-
ras jurídicas que têm vindo a colocar em causa a tendencial “exaustividade”
dos planos territoriais (dotados da característica da plurisubjectividade, ou
da eficácia directa e imediata relativamente a terceiros) na definição das
regras de uso, ocupação e transformação do solo.

2. A Evolução recente do sistema de planeamento

i. De acordo com o actual Sistema de Gestão Territorial, apesar de as


opções de ordenamento e planeamento se desdobrarem (e tendencialmen-
te coordenarem e articularem) em quatro âmbitos distintos (o nacional, re-
gional, intermunicipal e municipal), cada um deles concretizável através de
distintos, mas típicos, instrumentos (cfr. artigo 2.º do RJIGT, que diferencia
entre programas e planos), apenas estes últimos - os planos territoriais -

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 33
vinculam as entidades públicas e, direta e imediatamente, os particulares1.

Acresce que, de acordo com este sistema, os planos especiais de or-


denamento do território hoje existentes devem converter-se em programas
especiais, apenas vinculando entidades públicas (aquelas que aprovaram o
plano e todas as demais), estando as suas prescrições dependentes da sua
recepção e densificação nos planos que vinculam directa e imediatamente
as entidades privadas para poderem a estas ser oponíveis e por elas invo-
cadas: os planos intermunicipais e os planos municipais de ordenamento
do território.

Ou seja, estes programas não são imediatamente exequíveis, muito


embora possam conter normas de afectação dos solos bastante preci-
sas, dependendo, sempre, a sua execução, da intervenção posterior de
instrumentos com eficácia plurisubjectiva, que, por uma questão de pre-
visibilidade e segurança jurídica dos particulares, são estabelecidos em
menor número.

Deste modo, a diferenciação, que tem por base o círculo dos destinatá-
rios do plano e o grau de vinculatividade das suas normas, permite distin-
guir entre os planos que gozam da característica da autoplanificação, me-
diante a qual o plano vincula a entidade pública que o aprovou, forçando-o,
sem excepções, a conformar com aquele a sua actividade urbanística; da
heteroplanificação, segundo a qual um plano urbanístico, quando vigente,
vincula todas as demais entidades públicas, que com ele se devem confor-
mar, impossibilitando a concretização de um projecto público em violação
de disposições de planeamento; e a planificação plurisubjectiva que ca-
racteriza os planos que vinculam directa e imediatamente os particulares,
podendo ser-lhes opostos e por eles invocados.

Os problemas levantados por cada um destes tipos de instrumentos são


distintos. Dos planos dotados de eficácia plurisubjectiva são específicos

1 Sobre este sistema, cfr. Carlos José Batalhão, “A Revisão do Regime Jurídico de Gestão Territorial de 2015: as novas regras de gestão territorial”, Questões
Atuais de Direito, n.º 6, Abril/Junho, 2015, pp. 41 e ss; e Margarida Pereira, “Sistema de Gestão Territorial. Tipologia e Conteúdo dos Programas e Planos
Territoriais”, O Novo Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, coord. João Miranda, Cláudio Monteiro e Mário Vale, Coimbra, Almedina,
2016 pp. 51 e ss.

34 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
alguns institutos jurídicos de importância primacial no direito do urbanismo,
tais como as medidas cautelares, a perequação, o recurso ao embargo e às
contraordenações, bem como a afirmação da nulidade dos actos de gestão
urbanística contrários àqueles planos 2.

No caso dos programas que, por definição, não gozam de eficácia plu-
risubjectiva, a discussão centra-se nos termos e prazos mediante os quais
as suas opções devem ser incluídas nos planos intermunicipais e munici-
pais de ordenamento do território, o que ocorrerá por intermédio de pro-
cedimentos de dinâmica de planos, em especial por via de alterações por
adaptação 3.

Acresce que esta integração é devida, sob pena da aplicação das dis-
posições sancionatórias previstas nos n.os 5 e 6 do artigo 46.º da LB e do
artigo 29.º do RJIGT, segundo os quais ocorrerá uma suspensão do plano
(inter)municipal e da gestão urbanística na parte afectada; bem como a sus-
pensão do direito de candidatura a apoios financeiros nacionais e comuni-
tários, bem como à não celebração de contratos programa, sempre que a
falta de iniciativa por parte do município, tendente a desencadear o proce-
dimento de actualização ocorra por facto que lhe seja imputável.

Mesmo os planos especiais hodiernamente vigentes e que foram adop-


tados numa altura em que a legislação lhe reconhecia essa característica
deixarão de ter um carácter diretamente vinculativo das suas disposições
em relação aos particulares, podendo estas apenas ser oponíveis aos pri-
vados se vertidas nos planos municipais de ordenamento do território (cfr.
artigo 3.º do RJIGT).

Esta perda de eficácia dos planos especiais tem como consequência a


necessidade de as suas opções serem necessariamente concretizadas e/

2 Sobre estas diferenças cfr. o nosso “Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial: evoluções recentes e desafios futuros”, Direito do Urbanismo
e do Ambiente – Estudos Compilados, Quid Iuris, 2010, pp. 77 e ss.

3 Aquele procedimento apenas é, no entanto, passível de ser mobilizado nos casos em que as opções previstas nos planos de nível superior sejam suficien-
temente densas e caracterizadas, que tornem inútil uma qualquer fase adicional de participação dos interessados e de outras entidades públicas. Caso
contrário, necessário será definir outros modos de ajustamento dos planos municipais àqueles instrumentos desprovidos agora de eficácia plurisubjectiva
e que passarão, usualmente, pelo recurso aos procedimentos de alteração (normal) dos planos (cfr. artigos 121.º e 118.º do RJIGT)

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 35
ou integradas nos planos municipais (na medida em que não foram ainda
aprovados planos intermunicipais) para terem aquele tipo de eficácia, tal
como dispõe o n.º 5 do artigo 3.º. do RJIGT Deste modo, o actual sistema
determina a integração ou transposição para os planos municipais de orde-
namento do território, em especial para o plano director municipal, de todas
as opções dos níveis superiores que se pretendam diretamente vinculativas
dos particulares, inicialmente até 29 de Junho de 2017, e, com a alteração
introduzida pela Lei n.º 74/2017, de 16 de Agosto, até 3 de Julho de 2020
(alteração ao artigo 78.º da LB).

Caso este prazo não seja respeitado, o plano especial continuará a vigo-
rar (no sentido de que continua a impender sobre os Municípios a obrigação
do seu respeito e da sua integração, de modo a obviar, logo que possível, à
aplicação das consequências previstas no artigo 46.º, n.ºs 5 e 6 da LB), mas
deixa de ser directamente vinculativo dos particulares.

ii. Esta importante alteração legislativa, ao diferenciar entre Programas


e Planos 4, visou limitar, mais ainda do que anteriormente, o leque dos ins-
trumentos que podem ser mobilizados pela Administração contra preten-
sões particulares, passando estes apenas a ser os planos municipais ou os
planos intermunicipais, sabendo que estes últimos, por ora, não existem 5,
são de elaboração facultativa e em princípio não se aplicam a áreas para as
quais já existam planos municipais do mesmo nível, por não dever haver du-
plicação de planos territoriais com o mesmo conteúdo para a mesma área
territorial (artigo 44.º, n.º 5 da Lei de Bases e artigo 27.º, n.º 4 do RJIGT).

Os planos municipais e, bem assim, os intermunicipais são, portanto,

4 De acordo com a legislação, os programas: “estabelecem o quadro estratégico de desenvolvimento territorial e as suas diretrizes programáticas ou
definem a incidência espacial de políticas nacionais a considerar em cada nível de planeamento”, enquanto que os planos “estabelecem opções e ações
concretas em matéria de planeamento e organização do território bem como definem o uso do solo”.

5 Quanto a este novo nível de planeamento, coloca-se a questão de saber se os interesses supralocais que lhe estão subjacentes são efectivamente diferen-
ciados dos interesses meramente municipais ou se serão, afinal, interesses comuns aos vários municípios, que estes decidem trabalhar conjuntamente.
Na Lei de Bases de 1998 e no anterior RJIGT (Decreto-Lei n.º 380/99) o nível intermunicipal (que compreendia planos, hoje programas, sem eficácia
plurisubjectiva) abrangia apenas interesses municipais agregados, mas hoje, por poderem tais planos ser directamente oponíveis aos particulares e a
circunstância de poderem ser aprovados pela comissão executiva metropolitana e pelo conselho intermunicipal [artigo 65.º, n.º 1, alínea a) e 111.º] parece
apontar no sentido de os mesmos incorporarem interesses próprios da respectiva comunidade.

36 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
o exemplo acabado de intervenção no território e de ordenamento tanto
urbano, como rústico, devendo neles concentrar-se as regras que regem a
ocupação, uso e transformação do solo. Assim se visou evitar a prolifera-
ção de mecanismos de intervenção urbanística dispersos e desconhecidos
dos seus destinatários. São essencialmente, então, razões de previsibilida-
de da actuação administrativa e de segurança jurídica dos administrados
que justificam esta estreita vinculação do sistema de gestão territorial ao
princípio da legalidade, na sua dimensão de tipicidade.

O que significa que outras figuras que não se reconduzam à tipologia


dos planos territoriais, como sucede com os anteplanos, planos estratégi-
cos, estudos de conjunto ou estudos de tráfego apenas servem propósitos
de orientação, não podendo ser opostos diretamente aos particulares 6. Isto
por muito que as suas regras sejam muito precisas e similares às de um
plano municipal.

iii. Uma das questões que se colocam a propósito do regime jurídico


dos instrumentos de planeamento de carácter plurisubjectivo é a da res-
pectiva natureza jurídica, questionando-se se estamos perante uma das
formas típicas de actuação da Administração (acto administrativo geral ou
regulamento) ou se, pelo contrário, não será esta uma forma de actuação
sui generis (ou um acto misto) que, atentas as suas características típicas,
não se enquadra naquelas.

A dificuldade em determinar a natureza jurídica destes instrumentos de-


corre da complexidade do seu conteúdo, designadamente do seu conteúdo
documental, já que o mesmo é composto por elementos desenhados e es-
critos que não assumem sempre a mesma importância (enquanto uns são
fundamentais na determinação das regras aplicáveis à área de intervenção,

6 Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 5 de Fevereiro de 2015, proferido no proc. 01238/12, “apenas com a aprovação do
PDM se poderia concluir com segurança se efetivamente viriam a ser vedados o loteamento e a construção nos referidos terrenos, já que os estudos só
passariam a ser vinculativos se viessem a ser consagrados no PDM”. Não obstante, o mesmo Tribunal, no seu Acórdão de 8 de Julho de 2009, proferido
no proc. 0814/08, admitia que tais estudos, previstos em planos, pudessem constituir-se como “estudo autónomo de índole arquitectónica e paisagística,
que deve instruir o pedido de licenciamento”.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 37
outros são meros auxiliares na compreensão e interpretação destes). Em
face destas dificuldades, a doutrina tem limitado a questão da natureza
jurídica dos planos ao seu elemento documental escrito mais importante - o
regulamento -, entendendo dominantemente que este tem natureza normati-
va na medida em que, embora tenha, na maior parte das vezes, um carácter
concreto (ao definir as regras de ocupação e os parâmetros urbanísticos
aplicáveis a cada parcela do território), têm um pretensão de duração tra-
duzida no facto de não se esgotarem numa única aplicação 7.

Em muitos ordenamentos, o legislador faz uma opção clara a este pro-


pósito (determinando terem os planos natureza regulamentar), o que assu-
me particular importância para efeitos contenciosos, pelo menos naquelas
ordens jurídicas em que as vias de reacção judicial contra a Administração
dependem do tipo de actividade administrativa em causa. Em Portugal, a
opção do legislador passou, precisamente, por qualificar os planos territo-
riais como regulamentos (artigo 69.º do RJIGT), não sem que esta opção
tenha encontrado os seus críticos, sobretudo tendo em considerações as
suas implicações do ponto de vista contencioso 8.

Não obstante, mesmo que sejam considerados como instrumentos regu-


lamentares não há que escamotear as especificidades dos planos face aos
demais regulamentos administrativos, tanto ao nível procedimental, como de
conteúdo e de efeitos.

Ao nível procedimental pela circunstância de os planos territoriais esta-

7 Em geral, neste sentido, cfr. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2008, pp. 602 e ss.

8 Cfr. Gonçalo Reino Pires, A Classificação e a Qualificação do Solo por Planos Municipais de Ordenamento do Território (contributo para a compreensão do
seu regime substantivo e para a determinação do regime da sua impugnação contenciosa), Associação de Antigos Alunos da Faculdade de Direito de Lisboa,
2015, disponível online em www.alumnifdl.pt, pp. 588 ss., para quem “o contencioso da classificação e qualificação do solo, encarado como um contencioso
de normas jurídicas, não surge efectivamente como um meio de garantia acessória tanto do direito de propriedade como dos outros direitos fundamentais
com expressão territorial, nem tão pouco funcionalizado à prossecução de um correcto ordenamento do território enquanto tarefa fundamental do Estado”,
propugnando pela natureza jurídica da classificação e qualificação do solo como acto administrativo real. Em sentido idêntico, que o princípio da tutela judicial
efectiva e a regra da interpretação conforme à Constituição impõem, na ausência de reponderação das opções legislativas, uma harmonização do regime geral
da declaração de ilegalidade de normas administrativas com a garantia da impugnação directa de planos, abrindo a possibilidade de acesso ao tribunal para
contestar planos com fundamento em razões que não se reflectem, necessariamente, numa ou noutra disposição eventualmente lesiva, cfr. António Duarte
de Almeida, “A garantia da impugnação directa de planos territoriais e urbanísticos”, Os dez anos da lei de bases da política de ordenamento do território e
de urbanismo: génese e evolução do sistema de gestão territorial 1998-2008 : Actas do encontro anual da AD URBEM de 12 de Dezembro de 2008, coord.
Fernando Gonçalves, João Ferreira Bento, Zélia Gil Pinheiro, Lisboa, Ad Urbem, DGOTDU, FCT, 2010, pp. 51 e ss.

38 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
rem sujeitos a um conjunto amplo de exigências de publicidade (do início
do procedimento e do seu decurso), participação (preventiva e sucessiva) e
acompanhamento e concertação, bem como a uma tarefa de ponderação
de interesses e de fundamentação das soluções a adoptar que não têm pa-
ralelo no procedimento regulamentar definido no Código do Procedimento
Administrativo e nos procedimentos regulamentares especialmente estabe-
lecidos na lei (como sucede com os regulamentos identificados no artigo 3.º
do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-
-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, doravante RJUE) 9.

Nestes, é certo que é hoje mais claro e detalhado o procedimento a se-


guir, que deve constar sempre de uma deliberação do início do procedimento
(n.º 1 do artigo 98.º do CPA), na qual se definam os fundamentos e objecto
do procedimento e se definam os termos de delegação da direcção do
procedimento (artigo 55.º do CPA) bem como a forma como se pode pro-
cessar a constituição como interessados e a apresentação de contributos
para a elaboração do regulamento (n.º 1 do artigo 98.º do CPA). Segue-se
a fase instrutória na qual é elaborado um projecto de regulamento e da sua
nota justificativa fundamentada, que contém quer a fundamentação jurídica
(incluindo, desde logo, as normas legais ou constitucionais que servem de
base à elaboração do regulamento) quer a fundamentação administrativa
(que compreende a alusão aos interesses públicos coenvolvidos e, hoje
ainda, obrigatoriamente, uma ponderação dos custos e do benefícios das
medidas projetada (artigo 99.º do CPA), projecto este que será submetido
seja a audiência dos interessados, seja a consulta pública ou a ambas (arti-
gos 100.º e 101.º do CPA). Finda a fase da participação, segue-se um fase
de ponderação dos resultados da mesma com vista à elaboração do pro-
jecto final do regulamento administrativo e à sua aprovação pela entidade
competente, findando com a publicação do regulamento, condição da sua

9 Note-se que não existe um procedimento regulamentar único e sempre utilizável: o CPA e o RJUE enunciam alguns trâmites que terão sempre lugar, mas
para além de o legislador poder “desenhar” procedimentos regulamentares especiais. O próprio CPA dota o responsável pela direção do procedimento, na
ausência de normas jurídicas injuntivas, de discricionariedade na respetiva estruturação (principio da adequação procedimental previsto no artigo 56.º).
O que significa a existência de uma multiplicidade possível de procedimentos regulamentares no âmbito urbanístico.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 39
eficácia (cfr. artigo 139.º do CPA) 10.

No entanto, mesmo com esta sequência procedimental hoje definida na


lei, - por contraposição aos passos genéricos e nem sempre obrigatórios
previstos no anterior Código do Procedimento Administrativo -, as exigên-
cias formais dos planos territoriais (o conjunto de elementos que os com-
põem e acompanham), a necessidade de neles se proceder a uma ponde-
ração complexa de interesses de várias proveniências e encabeçados por
várias entidades públicas e privadas, conduzem a que os passos procedi-
mentais e exigências formais reguladas no RJIGT sejam mais complexas
e morosas do que as genericamente aplicáveis aos demais regulamentos
administrativos.

Ao nível do respectivo conteúdo, aos planos territoriais são reservadas as


tarefas de classificação e qualificação do solo, devendo deles constar ainda
a respectiva programação e execução (artigos 9.º e 10.º da Lei de Bases, e
69.º a 74.º do RJIGT), portanto as decisões essenciais sobre uso, ocupação
e transformação do solo que mais conformam a propriedade e os direitos
que sobre ela incidem. O que significa que há decisões que são exclusivas
dos planos (inter)municipais, não podendo ser relegadas seja para progra-
mas, seja para quaisquer regulamentos administrativos.

Na actual redação do RJUE tal é expressamente referido na alínea j), do n


º 2 deste artigo 3.º, segundo o qual cabe a estes regulamentos de urbaniza-
ção e edificação “regular outros aspetos relativos à urbanização e edificação
cuja disciplina não esteja reservada por lei a instrumentos de gestão territorial.”
Devem, por isso, os municípios e demais entidades públicas atuar com a
máxima cautela evitando a tentação de deslocar para meros regulamentos
administrativos questões pertencentes ao âmbito material dos instrumen-
tos de planeamento, sujeitos a um procedimentos especial, quer quanto à
respetiva elaboração, quer quanto à sua alteração ou revisão.

Efectivamente, os procedimentos referentes aos planos municipais são,

10 Cfr., para maiores desenvolvimentos, Fernanda Paula Oliveira, Dulce Lopes e Maria José Castanheira Neves, “Regulamentos Municipais em Matéria Urba-
nística: Perspetivas Atuais”, Questões Atuais de Direito Local, N.º 10, Abril, Junho, 2016, pp. 13 e ss.

40 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
como vimos, extremamente formalizados, obedecendo a uma tramitação
própria que, no caso da revisão, corresponde ao mesmo procedimento que
o da sua elaboração inicial e, no caso da alteração, embora mais simplifi-
cado, cumpre trâmites próprios, ainda assim com alguma complexidade. A
introdução noutro tipo de regulamentos municipais de normas cuja inser-
ção apenas se pode admitir em instrumentos de planeamento municipal
configurará, pois, um verdadeiro desvio de procedimento determinante da
ilegalidade das respetivas normas, para além de se traduzir numa violação
do princípio da tipicidade dos planos e do respectivo conteúdo. De fac-
to, se são nulas as orientações e as normas dos programas e dos planos
territoriais que extravasem o respetivo âmbito material (artigo 3.º, n.º 4 do
RJIGT), também o terão de ser as normas dos regulamentos administrati-
vos que se imiscuam no âmbito àqueles reservado.

A lógica seria, portanto, a de introduzir nos planos (inter)municipais ape-


nas as questões que materialmente aí tenham de ser introduzidas e deixar
para os restantes regulamentos, muito mais flexíveis, todas as restantes,
designadamente as de carácter mais técnico. Não obstante, essa “repar-
tição” de esferas de regulação encontra-se hoje em crise, por o número e
amplitude dos regulamentos administrativos ter vindo a crescer, não es-
tando em causa apenas de regulamentos de execução (que visam a boa
aplicação e interpretação da lei, concretizando-a) mas também de regu-
lamentos complementares (que completam as bases gerais estabelecidas
ou ajustam as normas definidas a situações especiais) e regulamentos in-
dependentes do Governo ou autónomos (que correspondem à regulação
primária ou à disciplina inicial de certas relações sociais).

Por último, do ponto de vista dos efeitos, a violação de um plano territorial


gera a nulidade de quaisquer actos administrativos que o contrariem, dan-
do lugar, portanto, ao vício mais grave previsto na legislação administrativa.
Como resulta do artigo 130.º do RJIGT, “são nulos os atos praticados em
violação de qualquer plano de âmbito intermunicipal ou municipal aplicá-
vel”, sendo-lhes aplicável o disposto nos artigos 68.º e 69.º do RJUE. Já a
violação de outros regulamentos administrativos cairá na previsão geral e
menos gravosa da anulabilidade, a não ser que legislação específica preveja

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 41
o contrário (como, aliás, sucede com alguns importantes actos regulamen-
tares ligados com o fenómeno urbanístico, como as medidas preventivas e
as normas provisórias - artigo 143.º do RJIGT; e, bem assim, com algumas
condicionantes, como sucede com a violação de regimes jurídicos como os
da Reserva Ecológica e Agrícola Nacional).

3. Múltipla função dos regulamentos administrativos em


matéria urbanística

i. Os regulamentos em matéria urbanística incluem as normas ema-


nadas por órgãos ou autoridades competentes no exercício de funções
administrativas com impacte territorial, com valor infra-legal, mas dotadas
de uma pretensão imanente de duração e acompanhadas, em regra, por
disposições sancionatórias que promovem a sua observância.

Em regra, estes regulamentos são gerais, pois dirigem-se a todos os


cidadãos (que se incluam dentro do âmbito normativo regulamentar, isto
é que caiam na sua esfera de aplicação pessoal, temporal e material),
ainda que possa haver regulamentos especiais (como os regulamentos de
fiscalização) que regulam relações especiais de direito administrativo (de
especial subordinação) e que são de particular relevância para a adequa-
da condução da Administração e para a eficácia das medidas de polícia
administrativa por esta adoptadas 11.

Detendo os regulamentos gerais eficácia externa perante terceiros,


haverá ainda que diferenciar os tipos de efeitos que deles dimanam, na

11 Os regulamentos gerais são sempre externos pois projetam os seus efeitos para o exterior da Administração que os emana (quer relativamente a outras
entidades administrativas, quer em relação aos particulares), os regulamentos especiais são, tendencialmente regulamentos internos (esgotam a sua
eficácia no interior da Administração, não sendo suscetíveis de impugnação contenciosa e podendo não ser seguidos pela Administração). Nem sempre,
porém, se verifica esta coincidência, já que os regulamentos internos criam obrigações para os trabalhadores administrativos (pense-se, por exemplo,
nos regulamentos de serviços de fiscalização, que definem comportamentos aos trabalhadores municipais e prevêem sanções pelo seu incumprimento)
ao mesmo passo que criam expectativas de atuação por parte de todos os interessados na condução e resultado das operações de fiscalização municipal.
Deve, por isso, ter-se cuidado para colocar as disposições que podem gerar efeitos externos (tais como a identificação das situações e dos requisitos
mediante os quais a fiscalização intervirá a solicitação de terceiros) nos regulamentos municipais com eficácia externa, de modo a assegurar as devidas
condições de publicitação daquelas normas (publicitação que hoje passa, por força do artigo 139.º do CPA pela sua publicação no Diário da República).

42 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
medida em que podem ser directamente operativos, quando produzem
efeitos na esfera dos seus destinatários sem necessidade de um específi-
co acto (é o caso de regulamentos que proíbem ou impõem condutas que
não carecem da emissão actos autorizativos) ou mediata ou indiretamente
operativos, nos casos em que necessitem, para produzir os seus efeitos
jurídicos na esfera dos seus destinatários, de actos concretos para a sua
aplicação, sobretudo de actos administrativos.

ii. Ampliação do relevo da técnica regulamentar no direito urbanístico


No âmbito administrativo e, em especial, no direito urbanístico, a téc-
nica regulamentar tem conhecido significativos desenvolvimentos, posi-
cionando-se, em diversos momentos do processo de planeamento, visto
não de forma estática mas como um processo contínuo que abrange não
apenas o momento da sua elaboração, mas também o da respetiva pro-
gramação e concretização, a qual se apresenta como o fim último do pla-
no, já que este apenas tem a razão de ser se for executado.

a) Pode, desde logo, enunciar-se um conjunto de regulamentos que


condicionam ou se relacionam com os planos territoriais, ainda antes de
estes serem adoptados.

Referimo-nos, desde logo, às medidas preventivas e às normas pro-


visórias que visam enquadrar normativamente os procedimentos de di-
nâmica dos planos territoriais e que são qualificados como instrumentos
regulamentares (artigo 136.º do RJIGT).

Mas, mais do que estes regulamentos que são, por inerência, provisó-
rios, outros existem que condicionam a tarefa de planeamento, determinan-
do, ainda que com alguma margem de flexibilidade, as opções a inscrever
nos planos territoriais. De facto, para além dos programas, outros instru-
mentos há que funcionam como condicionantes à tarefa de planeamento,
inscrevendo regimes restritivos públicos e que são qualificados pela juris-
prudência como regulamentos administrativos.

É o caso, por exemplo, da aprovação da cartografia da Reserva Agríco-

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 43
la Nacional, nos termos que ainda hoje se têm por aplicáveis do Acórdão
do Supremo Tribunal Administrativo de 25 de Junho de 1997, proferido no
proc. 030808. Este decidiu que a então Portaria, elaborada ao abrigo do re-
gime jurídico vigente da Reserva Agrícola Nacional tem natureza normativa,
não sendo, por isso, acto administrativo, sendo aquela natureza “corrobo-
rada pela sua génese, porquanto a Administração procedeu à respectiva
elaboração no exercício de poder que lhe foi conferido pelo legislador, ante
a impossibilidade de ele próprio proceder à definição da RAN em causa”.
Nos mesmos termos, também a cartografia da Reserva Ecológica Nacional
é percebida como um regulamento administrativo (cfr. Acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo de 30 de Janeiro de 2013, proferido no processo
044729), uma vez que “embora sejam actos normativos, não podem ser
considerados como praticados no exercício da função política ou legisla-
tiva, mas sim actos praticados no exercício da função administrativa, pois
que apenas trataram de reger a vida social, executando prévias escolhas
políticas, procedendo à satisfação das necessidades colectivas definidas,
seleccionadas e ordenadas pela lei” (cfr. Acórdão de 23 de Setembro de
2003, proferido no proc. 01087/03).

É certo que estas condicionantes têm uma especial força normativa De


facto, nem todas as situações de limitação à edificabilidade inscritas nos
planos resultam inovadoramente destes, já que a função integradora dos
instrumentos de gestão territorial, em especial dos planos municipais de
ordenamento do território, passa pela inclusão neles de disposições que
são resultantes de servidões ou de restrições de utilidade pública que
haviam previamente sido impostas aos particulares em virtude de atos
administrativos ou de atos regulamentares. O que significa que tais limi-
tações têm um âmbito de irradiação distinto dos instrumentos de gestão
territorial preexistentes, dando corpo à sua vocação de standards urba-
nísticos de operatividade imediata 12, isto é que valem mesmo sem plano
territorial ou contra ele.

Há instrumentos, porém, cuja natureza jurídica e efeitos ainda hoje conti-

12 Para a caracterização dos standards urbanísticos, cfr. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, cit., p. 668-672.

44 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
nuam a ser difíceis de qualificar, como sucede com os planos municipais de
defesa da floresta contra incêndios (PMDFCI). Estes instrumentos são simi-
lares, em termos de conteúdo e forma às condicionantes ao uso do solo,
mas encontravam-se tradicionalmente dependentes da sua integração em
planos territoriais, devendo nestes ser vertidos, sob pena de ineficácia pe-
rante os particulares, já que aqueles planos não eram objecto de consulta
pública e de publicação13 . Admitia-se, porém, ainda que sem certezas, que
ao abrigo da LB os PMDFCI pudessem ser considerados regulamentos
«em matéria de recursos florestais» - subsumíveis no n.º 3 do artigo 46.º
deste diploma - podendo dispor de vinculatividade direta e imediata sobre
os particulares, mas apenas se publicados14 .

Neste sentido veio a recente alteração ao Decreto-Lei n.º 124/2006, de


28 de Junho, operada pela Lei n.º 76/2017, de 17 de Agosto, que previu
uma fase de consulta pública no procedimento de elaboração dos PMDFCI
e a sua publicação obrigatória (cfr. artigo 10.º, n.º 12). O que significa que
passaram estes planos, agora de nítida imputação municipal, a assumir
efeitos externos imediatos (como o corrobora o artigo 11.º, n.º 2), ainda que
algumas das suas disposições, precisamente as que contenham normas
de ocupação, uso e transformação do território, continuem a dever ser inte-
gradas nos planos municipais ou intermunicipais previstos no RJIGT (neste
sentido, cfr. artigo 10.º, n.º 5) .

Como nota última quanto a instrumentos regulamentares que condicio-


nam ou se relacionam com os planos territoriais, ainda antes de estes serem
adoptados, há que assinalar que os mesmos não são, em regra, sujeitos
a consulta pública (as normas provisórias e, agora, os PMDFCI são uma
excepção, nos termos do artigo 138.º, n.º 5 do RJIGT). Poder-se-ia pensar

13 Neste sentido, cfr. o nosso artigo “Defesa das pessoas e bens contra incêndios: A legislação florestal revisitada”, O Municipal, n.º 316, Maio, 2007, pp.
12-13. Cfr. igualmente, a Recomendação do Provedor de Justiça de 1 de Junho de 2009, com o número 6/A/2009, que acentua a ausência de publicação
para que os PMDFCI possam ser opostos directamente aos particulares, para além do défice de cumprimento do princípio da participação democrática).
Esta necessidade de “transposição” em instrumentos de gestão territorial dá-se com excepção das disposições do artigo 16.º, n.º 3 do diploma legal,
que sempre defendemos inscrever normas de eficácia imediata (no mesmo sentido quanto ao artigo 3.º, n.º 3 do RJIGT, Fernanda Paula Oliveira, Regime
Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial Comentado, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 34-36).

14 Cfr. a informação da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional Norte, disponível em http://www.ccdr-n.pt/sites/default/files/ficheiros_


ccdrn/administracaolocal/municipio_incendios.pdf

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 45
que este trâmite seria dispensável em face da integração daqueles con-
teúdos regulamentares nos planos (inter)municipais [ou do seu carácter ur-
gente ou, ainda, da sua radicação legislativa], não obstante, à semelhança
do que sucede com os programas territoriais, a influência dos mesmos no
ordenamento do território, nalguns casos até como regras de operatividade
imediata (como sucede com as condicionantes legais ao uso do solo) ou
como medidas de cariz antecipatório (como acontece com algumas medidas
preventivas), justificaria plenamente a sua sujeição, no respectivo procedi-
mento, a requisitos de participação previstos genericamente hoje no CPA
e, de maneira jusfundamental, na Constituição da República Portuguesa.

b) Seguidamente, há que apontar o destacado papel de regulamentos


que cumprem funções similares às dos planos.

É o caso da reabilitação urbana, na qual o instrumento próprio, apesar


de não ser um plano municipal (de pormenor de reabilitação urbana), não
podendo poder produzir o mesmo tipo de efeitos que a estes são reconhe-
cidos, dispensa, na maioria dos casos, a aprovação daqueles planos (já que
a delimitação de áreas de reabilitação urbana com a respectiva operação
simples ou sistemática pode ser feita quer por plano, quer por instrumento
próprio) e preenche as exigências necessárias para, indirectamente, justifi-
car o indeferimento ou a reacção face a uma concreta operação urbanísti-
ca). De facto, o Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro (que aprovou o
Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, RJRU), veio aditar um novo moti-
vo de indeferimento das licenças aos previstos no RJUE (e de acordo com
a nova formatação legal das comunicações prévias, um fundamento para
reacção às mesmas ou para o seu controlo a posteriori): a susceptibilidade
de as operações causarem um prejuízo manifesto à reabilitação do edifício
(no caso de operação de reabilitação urbana simples) ou de causarem um
prejuízo manifesto à operação de reabilitação urbana da área em que o
mesmo se insere, no caso de operações de reabilitação urbana sistemáti-
cas (cfr. artigo 52.º do RJRU).

O que significa a possibilidade de mobilização indirecta da estratégia

46 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
de reabilitação urbana ou do programa estratégico de reabilitação urbana
como parâmetros para a apreciação das concretas operações urbanísticas,
já que, com base neles (no seu incumprimento) é possível invocar-se aque-
les fundamentos genéricos e, assim, indeferir-se uma licença ou reagir-se
contra uma comunicação prévia. Para além destas previsões “postas ao
serviço” do instrumento próprio existe ainda um outro mecanismo que per-
mite retirar dele efeitos jurídicos. Trata-se daquele que se encontra inscrito
no RJUE, que passou a admitir a alteração das condições da licença ou co-
municação prévia de operação de loteamento por iniciativa pública, desde
que tal alteração se mostre necessária à execução de área de reabilitação
urbana (artigo 48.º, n.º 1), o que logicamente apenas pode visar as áreas
delimitadas em instrumento próprio, já que, quanto às demais a existência
de plano de pormenor permitiria chegar acriticamente à mesma solução.
Por último um instrumento próprio dá origem, tal como um plano de por-
menor, à possibilidade de a entidade gestora utilizar, consoante o tipo da
respetiva operação de reabilitação urbana, instrumentos de execução de
política urbana (artigo 54.º do RJRU).

Assim, a aprovação da área de reabilitação em instrumento próprio, em


face das menções (conteúdo) que deve inscrever apresenta-se como um
instrumento muito próximo do plano de pormenor de reabilitação urbana.
Trata-se, assim, de um instrumento sui generis (daí a ausência de desig-
nação legal), que se coloca a meio caminho entre o plano e o projecto,
advindo-lhe a sua força jurídica dos mecanismos que legislativamente são
dispostos para a sua execução e que podem conduzir, em última linha, à
expropriação e à venda forçada do imóvel. Consideramos, porém, em face
do seu conteúdo e do procedimento da respectiva aprovação (que inclui
momentos de participação pública, de parecer a entidade externa ao Muni-
cípio e de publicação, de acordo com o artigo 17.º do RJRU), que esta de-
liberação tem natureza normativa ou regulamentar, permitindo a o recurso à
declaração de ilegalidade de normas quando, preenchidos os pressupostos
processuais, os interessados pretendam contestar a delimitação da área e
respectivos pressupostos e a definição da estratégia ou programa estra-
tégico - designadamente por assentar numa errada ou incompleta ponde-

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ração de interesses - ou à impugnação incidental do acto administrativo
praticado, por se fundar numa disposição normativa ilegal 15.

Um outro exemplo pode ser encontrado no modelo dos programas es-


peciais de ordenamento do território e, interregnamente, no dos planos
especiais. Nestes é claro, como tivemos já oportunidade de analisar, que
as normas de uso, ocupação e transformação urbanística devem ser inte-
gradas nos panos (inter)municipais para que possam ser diretamente vin-
culativas dos particulares. Tal disposição não se aplica, porém, às normas
de gestão dessas mesmas áreas “nomeadamente, as relativas à circulação
de pessoas, veículos ou animais, à prática de atividades desportivas ou a
quaisquer comportamentos suscetíveis de afetar ou comprometer os recur-
sos ou valores naturais a salvaguardar”, que “podem ser desenvolvidas em
regulamento próprio, nas situações e nos termos que o programa admitir”
(artigo 44.º, n.º 3 do RJIGT).

Fernanda Paula Oliveira, pronunciando-se sobre estes regulamentos de


gestão, entende que a sua previsão resulta de um erro de acordo com o
qual o conceito de programa é inconciliável com o de regulamento, admitin-
do que estes regulamentos, ao contrário do que resulta da legislação - que
determina que estes sejam aprovados em procedimento próprio e após a
publicação do programa especial - possam ser aprovados contemporanea-
mente com este programa e integrados na sua parte normativa 16.

Quanto a nós, julgamos que a grande questão se coloca, pelo menos


prementemente, numa outra perspectiva: a do período temporal em que
não haverá qua tale programas especiais (apenas planos especiais “degra-
dados” em programas, isto é que deixem de ter efeitos plurisubjectivos) e
a integração feita nos planos (inter)municipais das normas destes planos
especiais não abranja - porque não pode abranger, já que não se trata de
competências urbanísticas dos Municípios - as normas de gestão hoje pre-
vistas em planos especiais.

15 Para maiores desenvolvimentos, cfr. o nosso Fernanda Paula Oliveira, Dulce Lopes e Cláudia Alves, Regime Jurídico da Reabilitação Urbana – Anotado,
Coimbra, Almedina, 2011, pp. 90-92, anotação ao artigo 14.

16 “Algumas Questões relativas aos Programas enquanto Instrumentos de Gestão Territorial”, O Novo Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial,
coord. João Miranda, Cláudio Monteiro e Mário Vale, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 84-85.

48 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Que fazer, portanto, nestes casos, em que às entidades públicas es-
taduais compete salvaguardar regras relacionadas essencialmente com
actividades que se desenvolvem no solo rústico e que podem ter seve-
ros impactes ambientais (por exemplo actividades desportivas ou especi-
ficamente agrícolas e pecuárias, que não têm lastro urbanístico de maior)?
Pensamos que, neste caso, a remissão do artigo 44.º, n.º 3, in fine, para
a admissão de tais regulamentos em programa deve ser adequadamen-
te interpretada, de modo a permitir, contemporaneamente à cessação de
eficácia directa dos planos especiais de ordenamento do território (ou no
prazo de 30 dias após o termo do prazo para o efeito) a aprovação daqueles
regulamentos de gestão, de acordo com o procedimento previsto no arti-
go 44.º, n.º 3 do RJIGT. Apenas assim, por um lado, se evita a criação de
vazios normativos, já que, sendo os regulamentos de gestão directamente
vinculativos dos particulares, continuariam portanto, a vinculá-los quanto à
exigência de boas práticas ambientais. E, por outro lado, se demonstra que
pode fazer sentido destacar temporalmente os regulamentos de gestão dos
programas que os enquadram, antecipando os primeiros relativamente a es-
tes últimos nas situações de “transposição” em curso dos planos especiais
nos planos territoriais.

E não se diga que é irrelevante este exercício, uma vez que os regula-
mentos orientados para a gestão de interesses específicos têm vindo a ser
previstos amiúde na nossa legislação (pense-se, por exemplo, nos planos
de gestão da rede natura ou nos planos de gestão florestal), sendo neces-
sária uma melhor compreensão dos seus efeitos e limites, para que os mes-
mos não coloquem em causa a lógica de “pirâmide invertida” subjacente ao
sistema de gestão territorial.

c) Apesar de o presente artigo não se deter com profundidade sobre


os regulamentos que regulam matérias urbanísticas “secundárias”, por estes
sempre terem sido vistos com normalidade em sede do direito do urbanis-
mo, não podemos deixar de anotar como os mesmos têm vindo a ser reva-
lorizados nas mais recentes mutações legislativas neste domínio.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 49
É o que se passa com os regulamentos municipais de urbanização e
edificação e de taxas urbanísticas que, muito embora não possam con-
trariar nem incluir normas que integram o elenco típico de questões que
pertencem à esfera de planeamento, contribuem para a plena execução
destes planos e da legislação urbanística, bem como para a integração ou
ampliação do âmbito de aplicação de algumas das suas soluções (pense-
-se, entre muitos outros exemplos, na definição de operações de impacte
urbanístico relevante).

Admite ainda o legislador urbanístico que estes regulamentos, sobretudo


na esfera da legalização urbanística (cfr. artigo 3.º e 102.º-A do RJUE), esta-
beleçam regras especiais e derrogatórias relativamente ao previsto em dis-
posições normativas, como concessão à necessidade de enquadramento
das especificidades das situações de regularização de edifícios preexisten-
tes que, vastas vezes, não conseguem conformar-se com a integralidade
do ordenamento jurídico urbanístico aplicável à data da legalização.

d) Por último, é devida uma breve menção a um tipo de regulamentos que


dispõem sobre actividades acessórias aos planos, dos quais os exemplos
mais marcantes são os regulamentos adoptados na sequência do licencia-
mento zero (Decreto-lei n.º 48/2011, de 1 de Abril) e do regime de acesso
e de exercício de diversas atividades de comércio, serviços e restauração
(Decreto-lei n º 10/2015, de 16 de Janeiro).

De facto, há regulamentos dispersos que assumem relevo no domínio


urbanístico, por incidirem sobre matérias conexas com este, como a da
ocupação do espaço público, da regulação da publicidade exterior, dos
horários de funcionamento e do exercício de atividades económicas, que
muito influenciam a actividade urbanística 17.

Mesmo para além destes regulamentos, outros há, como os de atribui-

17 Sobre esta influência cfr. o nosso “Repercussões do Licenciamento Zero na Gestão (Urbanística) Municipal”, na Revista Direito Regional e Local, n.º 17,
Janeiro/Março, 2012, pp. 18-29.

50 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
ção de direitos sobre prédios e lotes municipais, que são de particular im-
portância para os objectivos urbanísticos e de ordenamento territorial muni-
cipal. No sentido desta qualificação jurídica, veja-se o Acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo, de 21 de Maio de 2008, de acordo com o qual “O
acto publicitado num Edital camarário que se dirige aos moradores de de-
terminado Bairro, estabelecendo as condições a que ficará sujeito o direito
de superfície a transmitir pela Câmara aos moradores que se encontram em
determinadas condições, é um regulamento e não um acto administrativo”,
o que demanda que, hoje, tais actuações fiquem sujeitas às regras de par-
ticipação e publicidade previstas no CPA, não havendo legislação especial
aplicável.

4. Notas conclusivas

No decurso da nossa análise tivemos a oportunidade de acentuar a


existência de um desacerto no enquadramento gizado pelo legislador:
se, por um lado, continuou a encetar a senda da limitação dos planos
(agora estritamente designados como tal e não programas) que podem
ser eficazes perante os particulares, por outro, passou a prever e a ad-
mitir um conjunto muito amplo e relevante de regulamentos administra-
tivos com eficácia externa que têm como efeito, precisamente, vincular
privados.

E é essencialmente da combinação entre aqueles planos e estes re-


gulamentos que se compõe o conjunto de referentes que devem ser
observados nas concretas operações urbanísticas, podendo estas ser
plenamente conformes com os planos territoriais mas, ainda assim, in-
viabilizadas in totuum ou de acordo com o projecto apresentado, por
violarem outras disposições regulamentares.

Assim, ainda que aos planos (inter)municipais seja reservada a ta-


refa “primordial” de qualificação e classificação dos solos, bem como

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 51
de recepção das condicionantes sobre o ordenamento do território, há
cada vez mais regras dispersas em vários regulamentos externos que
condicionam e, por vezes, inviabilizam a concretização das regras de
planeamento territorial (porque não se cumprem afastamentos, porque
não se mobilizam os materiais ou técnicas aceitáveis, etc.).

Por isso mesmo, estipula o artigo 75.º da Lei de Bases que é obri-
gatória, nos termos e condições previstos na lei, a disponibilização de
informação relativa a regulamentos administrativos e programas e pla-
nos territoriais, incluindo todo o conteúdo documental destes, o que
denuncia as conclusões a que chegámos: as de uma aproximação ou de
continuum, em termos de ocupação do solo, das regras previstas nos
planos e nos vários regulamentos urbanísticos com eficácia externa.

Todavia, há que ter alguma moderação na previsão destas dispersas


figuras regulamentares, sob pena de, como o referia já a Recomenda-
ção do Provedor de Justiça de 1 de Junho de 2009, com o número
6/A/200916, se produzir a subversão dos princípios que norteiam a le-
gislação urbanística, “na medida em que se pretende levar a cabo a
alteração (lato sensu) daqueles planos sem observar o procedimento
instituído para esse efeito”. Ao mesmo passo que se multiplicam formas
de acção administrativa sem que se conheçam de antemão e em pleno
os seus efeitos, sobretudo na relação com os planos (inter)municipais.

52 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
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54 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
EXPROPRIAÇÃO,
EXECUÇÃO DO PLANO
E PEREQUAÇÃO:
COMO ARTICULAR?

Fernanda Paula Oliveira


Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 55
RESUMO

O presente texto visa refletir sobre a necessária articulação entre expro-


priações por utilidade pública, planeamento, e perequação de benefícios e
encargos. Em concreto discute-se como deve ser classificado, para efei-
tos de indemnização por expropriação, uma parcela com a condicionante
REN, inserida, segundo o Plano Diretor Municipal, numa unidade operativa
de planeamento e gestão que dispõe de parâmetros urbanísticos para os
solos por ela abrangida, designadamente um índice médio de utilização
perequativo.

PALAVRAS-CHAVE: expropriação por utilidade pública; execução de pla-


nos municipais; perequação nos planos, indemnização

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 57
A. O problema de base

Pretendemos, com o presente texto, refletir sobre uma questão que se co-
loca com alguma frequência no âmbito do direito do urbanismo. Ainda que
a mesma tenha subjacente uma situação concreta que tivemos a oportuni-
dade de analisar, tentaremos aborda-la aqui de uma forma genérica, já que
as reflexões que então formulamos são perfeitamente extensíveis a outras
hipóteses práticas.

A situação de partida prende-se com a expropriação por utilidade pública


como instrumento de aquisição de bens imóveis com vista à execução de
planos municipais.

Na situação que então analisamos estava em causa a expropriação de par-


te de um prédio devidamente identificado no despacho do membro de go-
verno competente que declarou a utilidade pública, com vista à “Requalifi-
cação das Margens de um Rio”. A referida parcela e uma parte considerável
do prédio enquadram-se, no plano diretor municipal em vigor à data da
declaração de utilidade pública (DUP), em “Estrutura Ecológica Municipal” e
“Espaços Verdes de Enquadramento” e estavam inseridas, do ponto de vista
das condicionantes, em Reserva Ecológica Nacional (categoria de área de
máxima infiltração) e numa zona de Concessão de Água Mineral Natural.

O Regulamento do Plano Diretor Municipal em vigor estabelecia que “Os


Espaços verdes de enquadramento correspondem a áreas de enquadramen-
to dos principais elementos estruturantes dos aglomerados urbanos, como
infraestruturas viárias e linhas de água, criando a transição entre as áreas ver-
des de proteção e as áreas urbanizadas ou, simplesmente, respeitando a pe-
quenas parcelas sem aptidão para a edificação por razões essencialmente
topográficas ou paisagísticas”. Não obstante este facto, a parcela em causa
inseria-se numa Unidade Operativa de Planeamento e Gestão (UOPG), que
referia na sua alínea a): “Objetivos: Libertar solos afetos a produção agrícola
para a habitação, comércio, serviços, recreio e lazer; criar e garantir espaços
verdes e de utilização coletiva, criando espaços de circulação pedonal; imple-

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 59
mentação de equipamentos de utilização coletiva, nomeadamente o campo
de iniciação e aprendizagem de golf, parques infantis e espaços de socializa-
ção.” Por sua vez, segundo a alínea b) desta UOPG, os parâmetros urbanís-
ticos médios definidos eram: “Altura média da fachada admitida de 9 metros
acima da cota da soleira, índice médio de utilização de 0,4 e índice médio de
impermeabilização de 20 % da área total do prédio”.

Determinou-se, no auto de peritagem assinado pelos senhores peritos do


tribunal e da entidade expropriante o seguinte quanto à avaliação da par-
cela:

a. O prédio de onde é destacada a parcela, dispondo das infraestrutu-


ras, situando-se no aglomerado urbano e encontrando-se integrado em
sede de Plano Diretor Municipal numa Unidade Operativa de Planea-
mento e Gestão que tem por objetivos “Libertar solos afetos a produção
agrícola para a habitação, comércio, serviços, recreio e lazer” e com ín-
dices de ocupação média e parâmetros urbanísticos definidos, deveria
ser classificado, à luz da interpretação do n.º 2 do artigo 25.º do Código
das Expropriações, como “solo apto para a construção”.

b. No entanto, e porque decorre da Planta de Condicionantes que a parce-


la em causa (e uma parte considerável do prédio) se insere em Reserva
Ecológica Nacional, não é possível classifica-lo dessa forma.

c. Invoca-se, para fundamentar esta sua posição, o Acórdão do Tribunal


da Relação do Porto n.º RP201401215969 /09.7TBMTS.P1, de 21 de
janeiro de 2014 segundo o qual: “Um terreno integrado na REN deve ser
considerado solo para outros fins, por não ser suscetível de classificação
como solo apto para construção, não sendo aplicável o disposto no artigo
26.º, n.º 12, do CE, não só porque a sua aplicação pressupõe a prévia
classificação do solo como apto para construção, mas também porque é
inconceptível de aplicação analógica ou por interpretação extensiva, ainda
que tenha sido adquirido pelo expropriado antes da sua integração em tal
reserva e mesmo que detenha, objetivamente, as características previstas
nas alíneas do n.º 2 do art.º 25.º do mesmo Código.”

60 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
d. E invoca-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de abril de
2011 segundo o qual “Os terrenos integrados, seja em Reserva Agrícola
Nacional (RAN), seja em Reserva Ecológica Nacional (REN), por força do
regime legal a que estão sujeitos, não podem ser classificados como «solo
apto para construção», nos termos do artigo 25º, nº 1, alínea a) e 2 do
Código das Expropriações, aprovado pelo artº 1º da Lei 168/99, de 18 de
Setembro, ainda que preencham os requisitos previstos naquele nº 2.”

e. Donde resulta que o solo da parcela expropriada deve ser classificado


como “solo para outros fins”.

O senhor perito dos expropriados não concordou com esta classificação


com base, genericamente, no fundamento de que a parcela em causa es-
tava integrada numa Unidade Operativa de Gestão, cujos objetivos eram,
precisamente, a libertação dos solos afetos à produção agrícola para ha-
bitação, comércio, serviços, recreio e lazer e para a criação de espaços
verdes e de utilização coletiva integrada, dispondo tal UOPG de parâmetros
urbanísticos para os solos por ela abrangida, designadamente um índice
médio de utilização do solo 0,4m2/m2; sendo que o plano em causa prevê
perequação. Por estes motivos entendia este perito que a parcela expro-
priada devia ser classificada, para efeitos de avaliação, como “solo apto
para construção”.

O problema está, pois, em saber se em situações, como vertente - em que


se pretende expropriar uma parcela enquadrada num plano diretor muni-
cipal nos termos expostos, mas igualmente abrangida pela restrição de
utilidade pública REN -, a mesma deve ser classificada, para efeitos de
avaliação com vista à determinação do montante da indemnização por ex-
propriação, como solo apto para construção ou como solo para outros fins.

B. Ponto de ordem

Para uma análise completa da questão colocada iniciaremos as nossas re-

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 61
flexões com a identificação da função da indemnização nas expropriações
por utilidade pública (1), incidindo de seguida a nossa atenção no papel
que as expropriações desempenham num momento, como o atual, em que
o território nacional se encontra coberto por instrumentos de planeamento
territorial, maxime, por planos municipais. Uma vez que aquela função está
dependente da função que estes mesmos instrumentos de planeamento
desempenham, não pode deixar de se lhe fazer uma referência particular,
bem como à problemática que lhes está associada, da perequação de be-
nefícios e encargos decorrentes dos planos (2).

Analisar-se-á, ainda, se bem que de forma sumária, sobre o regime apli-


cável às restrições de utilidade pública, em especial da Reserva Ecológica
Nacional (3.)

Vistas todas estas questões, - que nos levarão à conclusão, adiantamo-lo


desde já, de que são os planos municipais os instrumentos de definição
das regras de ocupação do território com os quais todos os atos adminis-
trativos, incluindo os de cariz expropriativo, se têm de conformar sob pena
de nulidade1 - estaremos em condições de dar uma resposta à questão
colocada supra (4.).

1. A justa indemnização nas expropriações

Ao estabelecer que a expropriação só pode ser efetuada com base na lei


e mediante o pagamento de uma justa indemnização, o artigo 62.º, n.º 2 da
Constituição da República Portuguesa consagra claramente o princípio da
indemnização como um pressuposto de legitimidade do ato expropriativo,
sendo esta, também, um seu elemento integrativo.

Com efeito, o pagamento de uma justa indemnização nas expropriações


por utilidade pública apresenta-se como uma das formas de concretização
do princípio geral ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, de

1 Cfr. atual artigo 130.º do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio (que coincide no essencial com o artigo 103.º do Decreto-lei n.º 380/99, de 22 de
setembro na versão em vigor à data dos factos).

62 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
harmonia com o qual os atos lesivos de direitos e os danos causados a
outrem determinam uma indemnização.

Questão fundamental que se coloca em face do referido normativo cons-


titucional é a de saber qual o sentido que deve ser atribuído à expressão
“justa indemnização”, já que nele não são identificados quaisquer critérios
indemnizatórios de aplicação direta e objetiva, nem é fornecida qualquer
indicação sobre o método ou mecanismo de avaliação do prejuízo derivado
da expropriação. Este é, pois, um problema de técnica legislativa, cuja esco-
lha foi deixada pela Constituição ao legislador ordinário2.

Não obstante este facto, a expressão “justa indemnização” constante da


Constituição da República Portuguesa tem sido considerada uma “fórmula
carregada de sentido”, que determina importantes limites à discricionarie-
dade do legislador ordinário. A jurisprudência do Tribunal Constitucional
forneceu, em inúmeros arestos, critérios para a determinação do que deva
entender-se por justa indemnização: é aquela que visa compensar o sa-
crifício suportado pelo expropriado e garantir a observância do princípio
fundamental da igualdade de encargos que tenha sido violada com a expro-
priação, apresentando-se como uma reconstituição, em termos de valor, da
posição jurídica que o expropriado detinha3.

De acordo com esta jurisprudência, a fórmula justa indemnização deve ser


entendida em vários sentidos.

Por um lado, como a proibição de uma indemnização meramente nominal,


irrisória ou simbólica (aparente), o que significa que a indemnização deve
traduzir-se numa compensação adequada ao dano infligido ao expropriado.

Por outro lado, como a indemnização que respeita o princípio da igualdade


de encargos, devendo traduzir-se numa indemnização que compense ple-
namente o sacrifício especial suportado pelo expropriado, de tal modo que

2 Cfr Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, Coimbra, Almedina, 2010, p. 209.

3 Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, cit., p. 210 e ss..

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 63
a perda patrimonial que lhe foi imposta seja equitativamente repartida entre
todos os cidadãos.

O respeito pelo princípio da igualdade é aqui entendido quer na sua ver-


tente interna - as regras da indemnização aplicáveis aos diferentes tipos
de expropriação devem tratar de um modo igual os vários sujeitos expro-
priados - quer no sua vertente externa - no sentido de que, analisando-se
comparativamente as situações jurídico-patrimoniais dos proprietários ex-
propriados e dos proprietários não expropriados, os critérios da indemniza-
ção devem possibilitar um tratamento jurídico igual entre estes dois grupos
de cidadãos.4

Ainda de acordo com a ampla jurisprudência do Tribunal Constitucional so-


bre esta questão, a justa indemnização é aquela que respeita o princípio da
equivalência de valores: não só, como afirmado antes, a indemnização não
deve ser tão reduzida que o seu montante se torne irrisório ou meramente
simbólico, como nela não deve atender-se a quaisquer valores especula-
tivos ou ficcionados, que possam distorcer (positiva ou negativamente) a
necessária proporção que deve existir entre as consequências da expro-
priação e a sua reparação.

Note-se, porém, que no conceito constitucional da justa indemnização está


igualmente implícita a ideia de que a indemnização deve também ser justa
na perspetiva do interesse público que a expropriação visa prosseguir: preci-
samente por a expropriação ser um instituto voltado para a realização de in-
teresses públicos, a indemnização só poderá ser considerada justa se, para
além de satisfazer o interesse do particular expropriado, tiver igualmente
em consideração a realização desse interesse público. É por este motivo que
se justifica a possibilidade de introdução de cláusulas de redução ao critério
legal da justa indemnização com uma dupla finalidade: “eliminar da indem-
nização elementos de valorização puramente especulativos e mais-valias ou
aumentos de valor que tenham a sua origem na própria declaração de utilidade

4 Sobre estas duas vertentes do princípio da igualdade na determinação do montante da justa indemnização vide Fernando Alves Correia, Manual de Direito
do Urbanismo, cit., pp. 211-213.

64 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Pública da expropriação.”5.

A não integração destas valorizações no cômputo da indemnização surge,


pois, como um imperativo de justiça.

Como referimos supra, a Constituição não fixou, in concretu, os critérios que


permitam determinar o conceito de justa indemnização, tendo deixado ao
legislador ordinário a sua definição. Tais critérios legais terão sempre, con-
tudo, de respeitar não só na sua formulação como na sua concretização, os
princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da justiça
da indemnização.

De modo a dar cumprimento a estas exigências, tem-se entendido que o


princípio da justa indemnização não deve ser concretizado através de um
critério abstrato e rígido que não permita ter em consideração as particu-
lares circunstâncias de cada bem expropriado. E a este propósito veio o
Código das Expropriações, seguindo de perto a jurisprudência do Tribunal
Constitucional, classificar os solos em aptos para construção e para ou-
tros fins: nos primeiros atenta-se a elementos certos e objetivos, mas sem
desconsiderar o regime legal e regulamentar para eles estabelecidos; nos
segundos integram-se todos os restantes solos.

A lei não deixou de considerar, porém, nos termos supra referidos, a neces-
sidade de a justa indemnização ter em conta o interesse público que com a
expropriação se pretende prosseguir. É por isso que, nos termos do Código
das Expropriações, não pode tomar-se em consideração, na determinação
do valor dos bens expropriados, as mais-valias que resultarem da própria
declaração de utilidade pública; de obras ou empreendimentos públicos
concluídos há menos de cinco anos, no caso de não ter sido liquidado
encargo de mais-valias e na medida deste; de benfeitorias voluptuárias ou
úteis ulteriores à notificação da resolução de expropriar; e de informações
de viabilidade, licenças ou autorizações administrativas também ulteriores
àquela notificação (artigo 23.º, n.º 2). Na fixação da indemnização não são
também considerados quaisquer fatores, circunstâncias ou situações cria-

5 Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, cit., pp. 214-217.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 65
das com o propósito de aumentar o valor do bem (artigo 23.º, n.º 3).

É por este motivo que se afirma que, se bem que o critério para a deter-
minação do conceito de justa indemnização seja o do valor de mercado
(valor venal, comum ou de compra e venda) do bem expropriado, o mes-
mo não pode ser entendido em sentido estrito mas em sentido normativo,
precisamente por ditar a necessidade de efetuar reduções impostas pela
especial ponderação do interesse público que a expropriação serve, bem
como majorações devido à natureza dos danos provocados pelo ato ex-
propriativo.6

De tudo quanto foi afirmado realçam-se os seguintes pontos, que aqui


relevam:

i. a indemnização nas expropriações apresenta-se como uma exigência


de justiça;

ii. para ser justa a indemnização deve respeitar o principio da equivalên-


cia de valores entre a situação patrimonial que o expropriado detinha
antes da expropriação e a sua situação após esta, devendo a indem-
nização fornecer uma compensação adequada ao dano infligido ao ex-
propriado;

iii. a indemnização por expropriação deve respeitar o principio da igual-


dade não só na relação interna, mas também na relação externa signifi-
cando, neste último caso, que o expropriado não deve ser beneficiado,
mas também não deve ser prejudicado comparativamente com os res-
tantes cidadãos não expropriados colocados na mesma situação;

iv. a indemnização deve ser justa não apenas da perspetiva do expropria-


do, mas também do interesse público que com a expropriação se visa
prosseguir.

6 Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, cit., p. 214.

66 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
2. A função das expropriações num sistema jurídico assente
em instrumentos de planeamento territorial: a necessidade
de consideração integrada dos dois regimes

a) No momento atual as questões atinentes ao planeamento territorial en-


contram-se reguladas no Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, que
veio proceder à revisão do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro
[diploma este que havia aprovado o Regime Jurídico dos Instrumen-
tos de Gestão Territorial (RJIGT)]7. No entanto, e porque o plano diretor
municipal em vigor à data da declaração de utilidade pública aqui em
causa foi elaborado e aprovado à luz desse regime, é à luz das suas
disposições, e não das que constam do Decreto-Lei n.º 80/2015, que
as questões serão aqui tratadas. Situação que ainda acontece com
bastante frequência no território nacional, ainda que a solução não fos-
se diferente se nos ativéssemos já ao atual regime dos instrumentos de
gestão territorial.

Tendo presente este facto, refira-se, antes de mais, que todo o território
nacional se encontra, no momento atual, coberto por planos, com parti-
cular relevo para os planos municipais. É a estes que cabe a importante
tarefa de classificar e qualificar os solos: nos termos dos artigos 72.º e
73.º do RJIGT, os planos procedem, em primeiro lugar, à classificação
dos solos - determinando o destino básico dos mesmos com base na
distinção fundamental entre solo rural e solo urbano - e efetuam, de se-
guida, a sua qualificação - tarefa que se exprime na determinação das
potencialidades dos terrenos em função do uso dominante que neles
pode ser desenvolvido, estabelecendo, para além dos correspondentes
usos, também, quando admissível, a respetiva edificabilidade.8

7 Este Decreto-Lei foi alterado sucessivamente por vários diplomas, sendo a última alteração mais relevante a do Decreto-Lei n.º 46/2009, de 20 de
fevereiro.

8 Esta matéria encontra-se atualmente disciplinada nos artigos 70.º a 74.º do Decreto-Lei n.º 80/2015, de um modo distinto. Sobre as novidades em matéria
de classificação e qualificação dos solos cfr. Jorge Carvalho e Fernanda Paula Oliveira, Classificação do Solo no Novo Quadro Legal, Coimbra, Almedina,
2016.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 67
Segundo o disposto no n.º 4 do artigo 73.º do RJIGT, a qualificação do
solo urbano determina a definição do perímetro urbano - área desti-
nada pelo plano ao processo urbano, isto é, a ser infraestruturada e
edificada -, e compreende os solos urbanizados; os solos cuja urbaniza-
ção é possível programar; e, ainda, os solos afetos à estrutura ecológica
necessários ao equilíbrio do sistema urbano. É esta última categoria de
solo que aqui pretendemos realçar já que, segundo o RJIGT, os solos
urbanos abrangem não apenas as categorias funcionais dos espaços
centrais (destinados a desempenhar funções de centralidade para o
conjunto do aglomerado urbano, com concentração de atividades ter-
ciárias e funções residenciais); dos espaços residenciais; dos espaços
de atividades económicas; dos espaços de uso especial e dos espaços
urbanos de baixa densidade - e isto independentemente de já esta-
rem infraestruturados (solos urbanizados) ou se destinarem a ser in-
fraestruturados (solos com urbanização a programar) -, mas também
a categoria dos espaços verdes (com funções de equilíbrio ecológico
e de acolhimento de atividades ao ar livre de recreio, lazer, desporto
e cultura).9 Ainda que estejamos aqui perante solos que, em princí-
pio, não dispõe de (ou dispõe de diminuta) capacidade edificativa, não
deixam estes espaços verdes de se considerar solos urbanos (desig-
nados de espaços verdes urbanos), valorizando os espaços urbaniza-
dos e edificados (ou a urbanizar e a edificar) envolventes por criarem
externalidades positivas que, sem eles, não existiriam: pense-se na
mais-valia de um terreno localizado na bordadura de um parque verde
urbano ou contiguo a um corredor ecológico dentro de um aglomerado
urbano.

b) Atendendo a esta função - de classificação e qualificação do solo,


isto é, de definição do regime de uso do solo -, uma das caraterísticas
típicas da atividade de planeamento municipal é a sua inerente desi-
gualdade: ao diferenciar usos, o plano diferencia, necessariamente, as
posições jurídicas dos seus proprietários e as respetivas rendas fundiá-

9 De um modo tendencialmente equivalente cfr. Decreto Regulamentar n.º 15/2915, de 19 de agosto.

68 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
rias (neste casos porque o valor dos solos depende substancialmente
daquilo que neles se pode fazer).

É relativamente a estas situações que o princípio da igualdade - que


encontra o seu fundamento direto nos princípios da Justiça e do Estado
de Direito e que se impõe a toda a atividade administrativa, incluindo a
planificadora - é chamado a intervir no sentido de fornecer respostas “…
corretivas desta situação e criar instrumentos ou mecanismos suscetíveis
de restabelecer a igualdade entre os diferentes destinatários dos planos”10.
Este princípio contém, de facto, uma exigência de criação, pelo sistema
jurídico, de mecanismos ou formas de reposição ou restabelecimento
da igualdade de tratamento dos destinatários abrangidos pelos planos
urbanísticos - medidas sem as quais “...é (...) a própria legitimidade do
ordenamento urbanístico que está em causa...”11 -, obrigando os entes
públicos a assegurar a reposição das relações de igualdade afetadas
pelo plano. Referimo-nos, precisamente, à perequação e às medidas pe-
requativas.

Estas medidas têm por finalidade direta a repartição proporcional pelos


destinatários das normas dos planos, das consequências benéficas e
onerosas delas decorrentes.

c) É na execução dos planos que a perequação é operacionalizada, mo-


tivo pelo qual ela integra, por regra, a designada gestão urbanística (se
a previsão da perequação tem de constar dos instrumentos de planea-
mento, é na sua execução, que ocorre no momento da gestão urbanís-
tica, que a mesma é levada a cabo e deve ser concretizada).

Refira-se que à luz do nosso ordenamento jurídico, todos os planos de-


vem resolver os problemas de perequação que se colocam ao respetivo
nível, ou seja, devem contemplar a perequação adequada à respetiva
escala de modo a que se possam corrigir as desigualdades deles decor-

10 Fernando Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, Almedina, 1989, p. 390.

11 Fernando Alves Correia, “A Execução dos Planos Diretores Municipais. Algumas Questões”, in RJUA, n.º 3, 1995, p. 71.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 69
rentes. Há, assim, uma obrigatoriedade de os planos municipais regula-
rem as questões perequativas e de darem resposta, do ponto de vista
jurídico, às desigualdades por eles introduzidas, o que decorre de a
lei considerar a perequação como um direito dos cidadãos e como
um dever da Administração.12

d) No que concerne à determinação dos concretos mecanismos de pere-


quação a adotar, a lei deixa uma ampla margem de discricionariedade
aos municípios na sua escolha e conformação. Com efeito, embora a
lei identifique mecanismos que podem ser utilizados para este efeito
[cfr. as alíneas a) a c) do artigo 138.º do RJIGT] e conforme o seu
conteúdo (artigos 139.º a 142.º do RJIGT), a verdade é que aquela
enumeração é meramente exemplificativa, não tendo os mecanismos
que venham a ser criados pelos municípios de ser a eles reconduzi-
dos.13

Fundamental é que estes instrumentos cumpram os objetivos que o


legislador lhes fixa (cfr. artigo 137.º do RJIGT) e funcionem segundo
uma lógica perequativa. Devem, assim, estes mecanismos basear-
-se, sempre, na definição de um “benefício-padrão” - que equivale
ao benefício que o plano teria atribuído a todos caso os tratasse de
forma igual -, e de um encargo padrão, relativo a um “benefício uni-
tário”, fixando, depois, um sistema de compensações a funcionar em
casos de desvio ao padrão definido (a quem for conferido, por ato de
licenciamento, um beneficio superior à média deve pagar uma com-
pensação pelo excesso, e a quem for conferido um beneficio inferior
à média, deve ser compensado pelo “defeito”). Esta compensação,
que deve ser paga/recebida aquando da execução do plano - isto é,
no momento da prática dos atos administrativos em que esta se tra-
duz (por exemplo, aquando da emissão de alvarás de licenciamento

12 Ainda que nos refiramos aqui às questões da perequação à luz do Decreto-Lei n.º 380/99, as mesmas têm, no Decreto-Lei n.º 80/2015, um enquadramento
e regulamentação substancialmente idênticos.

13 Cfr. artigos 176.º a 183.º do Decreto-Lei n.º 80/2016.

70 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
- cfr. a título de exemplo, o n.º 7 do artigo 139.º14) -, demonstra que
os proprietários não têm direito à edificabilidade abstrata prevista no
plano para os seus terrenos (e que se traduzirá numa edificabilidade
concreta quando for emitido um ato de licenciamento), na medida em
que se esta edificabilidade concreta for superior à média, o proprietá-
rio terá sempre de pagar por esse excesso (a título de compensação)
- a significar que o proprietário nunca poderia incorporar (nem incor-
poraria) esse excesso de edificabilidade na sua esfera patrimonial.15

Refira-se que a concreta conformação do mecanismo de perequação


depende da abrangência geográfica de cada processo perequativo,
a ser fixada no plano a que ele se reporta: a perequação poderá
reportar-se à totalidade do território municipal; à totalidade de um
aglomerado urbano; a cada uma das partes em que, para o efeito,
poderá ser dividido o aglomerado urbano; a cada unidade de execu-
ção.

Sobre esta questão, e como temos defendido16, a primeira hipótese,


pelo menos para os concelhos com grandes áreas rurais, traduzir-se-
-ia num “benefício-padrão” muito pequeno e, consequentemente, na
socialização do direito de urbanizar, o que se afigura pouco compa-
tível com os paradigmas da sociedade atual; a última hipótese, para
a qual parece apontar a lei e tem sido adotada por muitos planos
municipais, é demasiado limitada já que se é certo que terá de haver
perequação no interior de uma unidade de execução, tal não é sufi-

14 Quanto a operação se traduza num reparcelamento dentro de uma unidade de execução previamente delimitada, o alvará a que se refere o artigo
mencionado no texto é o correspondente a esta operação, o que significa que nessas situações a perequação não terá por referência cada um dos prédios
que integram a operação de reparcelamento, mas a totalidade da área da unidade de execução. Neste caso, a perequação funciona a uma escala mais
ampla (entre unidades de execução), o que não nos parece problemático por, dentro da unidade de execução, na medida em que o reparcelamento se
baseia no critério da proporcionalidade, a perequação estar à partida garantida (para além de que não rigidifica as regras de relacionamento dentro da
unidade).

15 Ou seja, e dito de outro modo, por força dos mecanismos de perequação, independentemente das concretas opções constantes do plano para cada
parcela, os proprietários somente terão direito à edificabilidade média, apenas podendo utilizar a edificabilidade restante prevista no plano (nas situações
em que a edificabilidade concreta é superior à média) “pagando” por ela (designadamente por via da cedência de terrenos). Donde não terem direito a
esse excesso (só o têm se pagarem por ele), o que significa que ele não integra, à partida, a sua esfera patrimonial.

16 Cfr. o nosso A Discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática Geral da Discricionariedade Administrativa, Coimbra, Almedina,
Coleção Teses, 2011, pp. 451-452.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 71
ciente, porque deixaria de fora todas as operações urbanísticas não
inseridas em unidade de execução e dificilmente asseguraria as cedên-
cias de terreno para infraestruturas gerais.

Sempre consideramos, por isso, mais adequado que as regras pere-


quativas, a estabelecer pelo município, abranjam a globalidade do aglo-
merado urbano ou, em alternativa, grandes áreas, similares à partida, em
que para o efeito este seja dividido (por exemplo, unidades operativas
de planeamento e gestão). Consideramos igualmente adequado que as
regras perequativas possam funcionar quer em operações sistemáticas
(englobadas no âmbito dos sistemas de execução previstos no RJIGT,
onde se integra o sistema de cooperação, e concretizadas em opera-
ções conjuntas) quer em operações assistemáticas (ou isoladas), isto é,
fora daqueles sistemas.17

e) Regressando agora às expropriações, e considerando a polissemia do


conceito, cabe referir que aquela que aqui interessa é a usualmente de-
signada de expropriação em sentido clássico: procedimento de aquisição
de bens que determina a privação ou subtração de um direito e a sua
apropriação por um sujeito diferente, para a realização de um fim públi-
co18. Dela se distinguem as expropriações de sacrifício, correspondentes
a atuações de entidades públicas cuja finalidade não é a aquisição de
bens para a realização de um interesse público (não determinando, por
isso a perda da titularidade de um direito), mas que provocam uma li-
mitação de tal forma intensa no direito de propriedade que têm efeitos
equivalentes àquelas, devendo, por isso, dar origem a indemnização.19

17 É isso que determina atualmente o artigo 64.º da Lei das Bases Gerais das Políticas Públicas de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo, apro-
vada pela Lei n.º 31/2014 de 30 de maio, que tem por epígrafe, precisamente, redistribuição de benefícios e encargos, segundo o qual “A redistribuição de
benefícios e encargos a efetivar nos termos do número anterior, aplica-se a todas as operações urbanísticas sistemáticas e não sistemáticas que ocorram
no território em causa, concretizando a afetação das mais-valias decorrentes do plano ou de ato administrativo” (n.º 4, com sublinhado nosso).

18 Como procedimento de aquisição de bens, a expropriação envolve sempre uma relação entre três polos: de um lado, o expropriado (o sujeito que é
privado do bem ou do direito), de outro lado o beneficiário da expropriação (aquele que integra, na sua esfera jurídica, o bem ou o direito objeto de
expropriação) e, do outro lado, ainda, a entidade expropriante (aquela que declara a utilidade pública do bem ou do direito para efeitos expropriativos,
isto é, a que é dotada de poder expropriativo).

19 Exemplo típico destas situações no direito do urbanismo é a das previstas no artigo 143.º do RJIGT que podem ser designadas de expropriações do plano
(atualmente previstas no artigo 171.º do Decreto-lei n.º 80/2015).

72 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Correspondendo as expropriações clássicas a um procedimento de
aquisição de bens destinado à prossecução de interesses públicos e
sendo esses bens, essencialmente, bens imóveis (terrenos e edifícios),
resulta claro que existente uma intima ligação entre as expropriações por
utilidade pública e o fenómeno planificador, com particular relevo para as
duas que se seguem:

i. incidência das expropriações sobre solos classificados pelos planos


(como urbanos ou rurais em função do seu destino básico para o
processo de urbanização e edificação ou para usos “naturais, respe-
tivamente) e por ele qualificados de acordo com uma determinada
categorização (que varia consoante os usos dominantes neles pre-
vistos);

ii. incidência das expropriações sobre áreas em relação às quais se


encontram em vigor mecanismos de perequação que visam corrigir
as desigualdades decorrentes dos instrumentos de planeamento.

Cada uma destas situações tem, como veremos (e como não pode dei-
xar de ser, dado o princípio da unidade do sistema jurídico), claras re-
percussões no regime das expropriações e da avaliação dos solos para
efeito de determinação do montante indemnizatório a pagar no seu âm-
bito.

Igual relevo tem o facto de poder ocorrer sobre as mesmas parcelas


sobreposição de situações de expropriação clássica (para execução do
que está previsto no plano) e de expropriações do plano. Nesta situa-
ção, naturalmente, tendo já sido paga uma indemnização a título da
expropriação de sacrifício, o interessado não poderá voltar a ser ressar-
cido do prejuízo imputável a esta na situação em que venha, posterior-
mente, a ser objeto de uma expropriação em sentido clássico. Porque
esta não é a questão que aqui nos traz, a ela não faremos aqui desen-
volvida referência; mas a mesma não deixa de relevar no que aqui pre-
tendemos realçar: que o Código das Expropriações não pode ser visto
como um diploma legal com plena autonomia e perfeita independência

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 73
em matéria de determinação do montante da indemnização, devendo
ser articulado com a legislação relativa ao planeamento territorial e sua
execução, sob pena a indemnização que se venha a atribuir não cumprir
a exigência que a Constituição lhe faz: de que seja justa.

Note-se que é esta ligação íntima entre estas duas realidades que tem leva-
do a doutrina a tratar as expropriações quase exclusivamente como instru-
mentos jurídicos de execução dos planos ou como expropriações acessórias
aos planos. O que tem consequências a vários níveis, dos quais aqui realça-
mos os que mais relevam no caso em apreço:

i. que a declaração de utilidade pública, como ato administrativo de exe-


cução de um plano, não pode, como qualquer outro ato administrativo,
e sob pena de nulidade, contrariar o disposto nos instrumentos de pla-
neamento territorial em vigor (artigo 103.º do RJIGT, atual artigo 130.º do
Decreto-Lei n.º 80/2015);

ii. que o cumprimento dos planos por parte do ato expropriativo determi-
na que a avaliação dos bens expropriados, para efeitos da determina-
ção do montante indemnizatório, não pode ignorar nem a classificação/
qualificação dos solos que é feita pelo plano municipal nem o funciona-
mento dos mecanismos que visam corrigir as desigualdades que aquela
classificação/ qualificação introduz (mecanismos de perequação);

3. As restrições de utilidade pública

Incidamos agora a nossa atenção, ainda que de forma necessariamente


breve, sobre regimes da RAN e da REN, que têm um relevo determinante
na presente situação.

De acordo com os regimes legais em vigor, a RAN e a REN têm a natureza


de restrições de utilidade pública condicionadoras das opções de planea-
mento. Trata-se pois, de áreas que, em função das suas características
específicas (aptidão agrícola, no caso da RAN, e a sensibilidade ambiental

74 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
no caso da REN20), estão sujeitas a um regime particularmente limitativo à
ocorrência de determinadas atividades, especialmente de cariz urbanístico.

Tendo em conta este aspeto, e fixando-nos na REN, que é aquela que in-
teressa para a economia do presente texto, não pode ignorar-se que, não
obstante o regime particularmente restritivo da ocupação e utilização ur-
banística destes solos, os mesmos não correspondem (nem nunca corres-
ponderam), de modo algum, a zonas com um estatuto non aedificandi. Aliás,
precisamente porque a visão destas áreas como áreas de “tudo ou nada”
(sistema proibitivo) potenciou o abandono crescente destes solos, o legis-
lador mudou radicalmente o respetivo regime, tendo estes deixado de fun-
cionar exclusivamente pela negativa - particularmente preocupados com a
proibição de atividades urbanísticas (que podiam ser excecionalmente au-
torizadas) -, para passarem a conter uma regulamentação pela positiva, isto
é, pela identificação daquilo que naqueles solos pode e deve ocorrer, por
ser compatível e até desejável, do ponto de vista dos valores fundamentais
a proteger (incluindo algumas ocupações de cariz urbano, isto é, operações
urbanísticas, ainda que limitadas21).

Para além do esclarecimento deste ponto específico do regime, conside-


rou-se igualmente relevante garantir a integração das opções referentes a
estas áreas nos instrumentos de planeamento diretamente vinculativos dos
particulares, instrumentos que, como vimos, têm por função proceder à
classificação e à qualificação dos solos (incluindo-se nesta última, a defi-
nição dos regimes de edificabilidade). A articulação entre estes dois tipos
de instrumentos passa pelo cumprimento de dois tipos de exigências fei-

20 Os solos integrados na REN representam valores ambientais fundamentais necessitados de especial proteção, embora de cariz diferenciado, na medida
em que não visam apenas a proteção de determinados ecossistemas ambientalmente sensíveis, mas igualmente a salvaguarda da ocorrência de riscos
naturais, isto é, de riscos decorrentes das características biofísicas dos solos.

21 O aspeto mais marcante ou visível, a este propósito, da alteração do regime da REN consistiu na identificação, num Anexo IV do Decreto-Lei n.º 180/2006,
de 6 de setembro, das ações insuscetíveis de prejudicar o equilíbrio ecológico das áreas integradas na REN (cfr. artigo 4.º, n.º 2), correspondendo, às ações
compatíveis com o seu regime de proteção, cabendo ao Anexo V a determinação, para cada uma daquelas ações, dos requisitos de carácter material a que
as mesmas devem obedecer para a sua viabilização.
Com este novo regime, como foi, então, devidamente explicitado, para além de se pretender garantir uma maior proporcionalidade entre os interesses
privados de ocupação do território e o interesse público da salvaguarda dos recursos, bem como a viabilização de usos e ações que não levantassem
objeções por, reconhecidamente, não colocarem em causa a permanência dos recursos, valores e processos que a REN visa preservar, pretendeu-se,
igualmente, permitir a realização atividades relevantes que não se enquadravam nos procedimentos de reconhecimento de interesse público.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 75
tas aos planos municipais: por um lado a necessidade de estes acolherem
aquelas restrições de utilidade pública como sua determinante heterónoma
(condicionante do planeamento), logo, como limite à margem de confor-
mação das suas regras jurídicas urbanísticas; por outro lado a exigência
de que estes planos não se desonerem da definição de normas de uso,
ocupação e transformação do solo aplicáveis às suas áreas, já que estes
regimes admitem estas afetações - quer em termos normais, desde que
consideradas compatíveis com o regime desta reserva, quer em termos ex-
cecionais -, podendo ainda, se bem que de forma mais excecional, admitir-
-se desafetações.22

Os planos devem, por isso, abarcar todo o território municipal (incluindo as


áreas abrangidas pela REN), integrando cada parcela em classes e cate-
gorias e definindo o respetivo regime de edificabilidade. No caso de a área
ser abrangida por esta restrição de utilidade pública, o que se exige é que
a categoria de uso do solo estabelecida pelo plano seja com ela compatível
(e já referimos que não é com ela incompatível a classe de solo urbano,
designadamente na categoria de espaços verdes urbanos indispensáveis
para garantir um adequado ambiente urbano), sendo aplicável à mesma
as regras decorrentes do plano cumulativamente com as limitações que
decorrem daquelas restrições.

Assim, e a título de exemplo, cabendo ao plano diretor municipal identi-


ficar uma estrutura ecológica municipal, esta pode integrar solos da REN:
aquela “categoria” é perfeitamente compatível com esta restrição. Mais, a
estrutura ecológica municipal, se for corretamente considerada (como um
corredor ecológico dentro do município), poderá abranger, em simultâneo,
solos urbanos e solos rurais (e, portanto, áreas de REN integradas em cada
uma das classes de espaço em apreço). O que comprova que o estatuto de
reserva que estes solos detêm é independente e autónomo da classificação
que aos mesmos é deferida pelos planos: pode, efetivamente, existir REN
em solo urbano.

22 Nestes casos, valerão as regras plasmadas nos planos municipais que, caso as não contenham, deixam a área em causa sem regras de ocupação dos solos,
atribuindo às entidades competentes grandes margens de discricionariedade na gestão urbanística corrente.

76 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Ou seja, e melhor explicitando, porque a REN não corresponde (não deve
corresponder) nem a uma classe nem a uma categoria de uso do solo, a clas-
sificação e qualificação deste (tarefa do plano municipal), deve abranger
todo o território, incluindo o que está sujeito àquelas condicionantes: nas
áreas abrangidas por servidões administrativas e restrições de utilidade pú-
blica, a disciplina de uso, ocupação e transformação do solo é a inerente à
da classe e categoria de espaço sobre que recaem, condicionada, contudo,
pelas disposições vinculativas que regem tais servidões ou restrições; nos
restantes casos, as referidas áreas estarão descondicionadas.

O que significa, e registamo-lo aqui, que estas áreas (de REN em solo ur-
bano) podem ter (e na maior parte das vezes têm) uma edificabilidade as-
sociada. Esta situação é particularmente visível naquelas situações em que
parte da parcela é abrangida por esta restrição e se pretende ocupar a parte
restante com uma operação urbanística: a não ser que o plano o afaste, no
prédio integrado no perímetro urbano parcialmente ocupado com a REN
apenas poderá haver ocupação urbanística na parte restante, mas a parte
inserida na REN (e que faz parte integrante do prédio objeto da operação
urbanística) pode ser contabilizada para efeitos do cálculo dos parâmetros
urbanísticos a concretizar na outra parte da mesma parcela.23

Para uma melhor compreensão do que acabamos de afirmar é necessário


ter presente que muitas vezes a REN não se apresenta como contínua,
mas como dispersa24, sendo razoável perguntar nestes casos se se deve
impor ao proprietário que pretenda, por exemplo, lotear o seu terreno in-
tegrado em perímetro urbano, mas com “pedaços” de REN dentro dele,
que tenha de recortar milimetricamente aquelas áreas desse loteamento.
Ora, a resposta a esta questão tem de ser negativa, já que tal determina-
ria, na maior parte das vezes, a apresentação de soluções de ocupação

23 Sobre esta posição, que não é pacífica na jurisprudência, cfr. o nosso “Áreas e Índices em Loteamentos Urbanos Abrangidos por RAN e REN: Brutos ou
Líquidos, Eis a Questão?” – Anotação ao Acórdão do STA de 6.11.2014, P. 1422/13, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 111, maio/junho de 2015,
pp. 33-52.

24 Com efeito nem sempre as áreas da REN, dado o carater diferenciado dos bens que a integram, detêm uma continuidade territorial, o que significa que
podemos estar, e muitas vezes estamos, perante uma REN dispersa, como ocorre com aquela que se atém à proteção de riscos naturais (essencialmente
riscos de deslizamento) aliados em regra a encostas com um determinado declive.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 77
do solo incoerentes e desconformes com os desígnios de uma racional e
ocupação urbana do mesmo. O que significa, em consequência, a possi-
bilidade de integrar num loteamento urbano áreas da REN, possibilidade
que se encontra atualmente expressamente prevista no artigo 26.º do
Regime desta restrição de utilidade publica, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 166/2008, de 22 de agosto com as alterações do Decreto-Lei n.º
239/2012, de 2 de novembro, normativo que declaradamente determi-
na, no seu n.º 1, que “as áreas integradas em REN podem ser incluídas
em operações de loteamento desde que não sejam destinadas a usos ou
ações incompatíveis com os objetivos de proteção ecológica e ambiental
e de prevenção e redução de riscos naturais”, dispondo ainda o n.º 2
que “as áreas integradas na REN podem ser consideradas para efeitos de
cedências destinadas a espaços verdes públicos e de utilização coletiva,
infraestruturas e equipamentos que sejam compatíveis, nos termos do
presente decreto-lei, com os objetivos de proteção ecológica e ambiental
e de prevenção e redução de riscos naturais daquelas áreas”.

Não se diga que esta solução é contraditória com a previsão legal de


proibição de loteamentos em REN, já que não é isso que aqui sucede:
com efeito não se pode afirmar que neste caso o loteamento se inscre-
ve em área de REN; o que se verifica é a inscrição de algumas áreas de
REN dentro do loteamento, o que é bem diferente. Mas, mesmo que se
considerasse que esta hipótese enquadra um loteamento em REN, não
haverá aqui uma qualquer violação do seu regime, o qual deve ser in-
terpretado de acordo com a sua teleologia: esta proibição apenas vale
para aqueles loteamentos que inscrevam alguma regulamentação que
contrarie os objetivos da mesma, o que não sucede com a integração
de áreas de REN dentro do loteamento, desde que não se verifique
qualquer implantação urbanística nas mesmas. E é isso que prevê o re-
ferido artigo 26.º, n.º 1 do Regime desta restrição de utilidade pública.
E estas áreas podem, ademais, ser contabilizadas para efeitos dos pa-
râmetros urbanísticos da operação (no exemplo que temos estado a
dar, da operação de loteamento) a realizar nos prédios que parcial-
mente as integrem, o que não coloca em causa a finalidade última do

78 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
seu regime que é o de, para a salvaguarda dos interesses que lhes
estão subjacentes, impedir a implantação de atividades urbanísticas
nas mesmas. Esta posição era já defendida pela Informação n.º 112/
DGS, de 14 de abril de 2004, homologada pelo então Diretor-geral do
Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano em 19 de maio
de 2004, que incidiu, precisamente, sobre a relevância das áreas inte-
gradas na REN para efeitos de cálculo de índice de construção, onde
se concluiu que, na ausência de disposição legal impeditiva, “não se
pode concluir que o legislador não tenha querido contabilizar as áreas da
Reserva Agrícola e da Reserva Ecológica Nacionais no cálculo dos índices
de construção”, apesar de, em princípio, tal edificação só ser permitida
fora das mesmas. Ainda segundo esta informação, tendo em conta que
a forma de contabilização dos parâmetros urbanísticos diz respeito ao
regime do uso do solo de cada classe de espaço ou categoria, esta
matéria é tratada no regime jurídico dos instrumentos de gestão territo-
rial e no regime jurídico da urbanização e edificação, e não no daquelas
restrições de utilidade pública, concluindo, assim, aquela Informação
- que já então aplaudíamos -, que cabe aos municípios definir se as
referidas áreas devem ou não ser contabilizadas no cálculo dos parâ-
metros urbanísticos, embora a edificabilidade apenas possa, na maior
parte das vezes, ser permitida fora das mesmas.25

A Informação supra referida, homologada pelo Diretor-geral do Orde-


namento do Território e do Urbanismo, sugeria, inclusive, às equipas
projetistas dos planos, bem como as entidades responsáveis pela res-
petiva elaboração e acompanhamento, que contabilizem as áreas da
RAN e da REN para efeitos de cálculo dos respetivos índices de edifi-
cabilidade assim como no âmbito dos mecanismos de perequação dos

25 Aos argumentos constantes da Informação n.º 112/DGS, de 14 de abril de 2004, acrescentávamos um outro no nosso “A Reserva Ecológica Nacional e o
Planeamento do Território: a Necessária Consideração Integrada de Distintos Interesses Públicos”, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º
27/28, 2007, p. 33-52: de que uma solução que passe por proibir a contabilização destas áreas para efeitos dos parâmetros urbanísticos corresponderá,
atenta à titularidade privada da maioria delas, à imputação de uma oneração excessiva e desproporcional dos proprietários dos mesmos: tratando-se de
restrições à edificabilidade de terrenos particulares, aquelas devem decorrer explicitamente da lei, que, no entanto, só proíbe a edificação dentro das
áreas das Reservas, não sendo lícito acrescentar a essa restrição uma restrição extra, que consista em descontar a parte de um prédio incluída naquelas
do cálculo da taxa de ocupação da parte restante. Uma adequada ponderação do interesse público e do interesse dos particulares aponta, de facto e
incontornavelmente, para a conclusão de que o direito de propriedade privada não deve ser mais sacrificado do que aquilo que é exigido pela necessidade
de proteção dos interesses públicos subjacentes ao regime da REN e da RAN.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 79
planos, nos termos que decorrem da lei.26

Todas estas sugestões foram acolhidas no atual regime da REN (não ha-
vendo qualquer motivo para que não se estenda, com as devidas adap-
tações, ao regime da RAN) já que aí se determina não só que as áreas
da REN devem ser consideradas, na elaboração dos planos municipais,
para efeitos de estabelecimento dos mecanismos de perequação com-
pensatória dos benefícios e encargos entre os proprietários (n.º 1 do artigo
35.º), como ainda que as mesmas apenas não são contabilizadas para o
cálculo da edificabilidade nos casos em que os planos municipais de assim
o determinem (n.º 2 do artigo 35.º).27

É certo que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2011, de


uniformização de jurisprudência (DR, 1ª Série n.º 95 de 17 de maio de
2011) veio determinar que os solos integrados em REN e RAN, por força
do regime legal a que estão sujeitos, não podem ser classificados como
“solo apto para a construção”, nos termos do artigo 25º do Código das Ex-
propriações, ainda que as parcelas em causa estejam dotadas de todas as
infraestruturas a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 25.º. Não pode,
no entanto, extrapolar-se as conclusões a que aí se chega - e com as quais
concordamos inteiramente tendo em consideração as situações de partida
discutidas nesses acórdãos - para todas as restantes situações, já que
uma solução distinta pode ser imposta pelo próprio plano que fundamenta
a expropriação. Assim, dele tanto pode decorrer a integração destas par-
celas na classe do solo urbano com a contabilização das suas áreas para
o índice de edificabilidade das parcelas parcialmente por ela abrangidas,
como pode decorrer a necessidade de integração daquelas parcelas nos
mecanismos de perequação de benefícios e encargos decorrentes destes
instrumentos de planeamento. Questões estas que não foram consideradas

26 Apenas se exigia, para esta opção municipal, a necessidade de ponderação dos resultados da mesma no sentido de aferir se, com a contabilização das
áreas destas reservas, se não estaria a concentrar excessivamente áreas de construção nas áreas nelas não incluídas ou a sobrecarregar a edificabilidade
junto das mesmas; essa ponderação tanto pode levar à não consideração daquelas áreas para efeitos do cálculo dos parâmetros urbanísticos, ou então,
como ocorre com mais frequência, à diminuição dos índices aplicáveis, precisamente por se ter em consideração a contabilização que é feita da área
daquelas reservas.

27 Consideramos que estas normas não têm caráter inovador, mas meramente declarativo, na medida em que se limitam a consagrar um regime que era o
adequado à natureza jurídica destas restrições.

80 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
naquele Aresto na medida em que as parcelas da REN que aí estavam em
causa e foram objeto de expropriação não estavam nem integradas em solo
urbano nem em área de aplicação de mecanismos de perequação que as
tivessem de ter em consideração.

Em conclusão, a consideração de parcelas da REN como solo apto para


construção ou solo para outros fins para efeitos da determinação do mon-
tante da indemnização a atribuir no âmbito de uma expropriação por utili-
dade pública não pode ser desligado (pelo contrário, está dependente), de
cada concreto instrumento de planeamento em vigor aplicável e do regime
que ele estabelece para as parcelas em causa. O que significa que a res-
posta para a questão a que nos propomos responder com o presente texto
tem de ser buscada no plano diretor municipal mobilizável: apenas a partir
dele é possível determinar adequadamente como deve a parcela em causa
(integrada em REN) ser avaliada para efeitos de expropriação.

4. Síntese conclusiva: a solução do problema base enuncia-


do

a) Tendo em consideração tudo quanto foi referido anteriormente, o pri-


meiro facto com relevo que se retirava do regulamento do Plano Diretor
Municipal em causa, era o de que a parcela objeto de expropriação se
encontrava integrada na classe do solo urbano, na categoria de espaços
verdes urbanos (ainda que, nos termos do artigo 22.º se inscrevesse na
estrutura ecológica municipal identificada na Planta de Ordenamento, a
qual englobava todas as áreas que desempenhavam um papel determi-
nante na proteção e valorização ambiental e na garantia da salvaguarda
dos ecossistemas e da intensificação dos processos biofísicos). Esta in-
tegração dos espaços verdes urbanos na estrutura ecológica municipal
fazia sentido tendo em conta que, nos termos do n.º 2 do referido arti-
go 22.º do Plano Diretor Municipal mobilizável, esta se subdividia “em
estrutura ecológica em solo rural e estrutura ecológica em solo urbano,
consoante esteja localizada, respetivamente, em solo rural ou em solo ur-

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 81
bano, estando a última totalmente integrada na categoria de solo espaços
verdes.” (sublinhados nossos).

O regime aplicável à estrutura ecológica em solo urbano constava, dos


artigos 65.º a 68.º do regulamento do referido Plano Diretor Municipal,
não sendo reconhecido a estes solos, por regra, qualquer edificabilidade
concreta. Com efeito, e nos termos dos referidos normativos, qualquer
das categorias dos espaços verdes urbanos (de utilização coletiva; de
proteção e salvaguarda e de enquadramento) correspondiam “a espa-
ços com reduzida ou nenhuma capacidade edificatória, integrados nos
perímetros urbanos e englobando as áreas e sistemas fundamentais para
a proteção e valorização ambiental do solo urbano, incluindo as áreas da
estrutura ecológica municipal referidas na alínea g) do artigo 22.º”.

Relevante neste normativo era o facto de, embora afirmando expressa-


mente terem estes espaços, em si mesmos, reduzida ou nenhuma ca-
pacidade edificatória, se reconhecer, de forma clara, que os mesmos se
integram nos perímetros urbanos, desempenhando uma função relevante
de proteção e de valorização ambiental destes (função que era expres-
samente reconhecida para os espaços verdes de enquadramento num
daqueles normativos, que previa a utilização destes solos em projetos
de valorização ambiental ou paisagística).

Decorria, assim, deste Plano, que a parcela em causa, embora estivesse


classificada como solo urbano, tinha, por força do seu estatuto de REN,
em si mesma, isto é, considerada isoladamente, uma edificabilidade con-
creta muito baixa. Decorria, porém, igualmente deste Plano, que aquela
parcela não podia ser considerada isoladamente; por isso surgia integra-
da numa unidade UOPG em solo urbano e para fins urbanos.

A consideração integrada desta parcela juntamente com as restantes


inseridas na mesma UOPG - que corresponderia, após a respetiva con-
cretização, a uma área de usos urbanos mistos (habitação, comércio e
serviços) servida por adequados espaços verdes e de utilização coletiva
que promovem a sua valorização ambiental - era traduzida no facto de

82 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
o Plano definir para a totalidade da UOPG parâmetros urbanísticos e pa-
râmetros perequativos (em especial um índice médio de utilização). Tal
não significa que nessa UOPG os referidos espaços verdes pudessem
ser destinados para edificação, mas também não significava que o Pla-
no não lhes reconhecia edificabilidade, na medida em que os integrava
nos mecanismos de perequação com vista à distribuição, entre todos os
proprietários abrangidos por aquela UOPG, dos benefícios (edificabili-
dade) decorrentes do Plano.

A integração desta parcela na perequação resultava, desde logo, de um


artigo do regulamento do Plano Diretor Municipal, que determinava que
o princípio de perequação compensatória seria aplicado nas áreas das
Unidades Operativas de Planeamento e Gestão (UOPG), através do me-
canismo do índice médio de utilização. Precisamente, a parcela objeto
de expropriação integrava-se numa UOPG que definia um índice médio
de utilização para os terrenos nela integrados de 0,40.

Ainda nos termos desse artigo, era fixado, para cada um dos prédios
abrangidos pelas UOPGs, um direito abstrato de construir dado pelo
produto do índice médio de utilização pela área do respetivo prédio, que
se designava por edificabilidade média, determinando-se que quando a
edificabilidade do prédio fosse superior à edificabilidade média, o pro-
prietário tinha de pagar por isso (através da cedência para o domínio
privado do município da área de terreno com a possibilidade construtiva
em excesso, concentrada num ou mais prédios) - o que significava que
o proprietário apenas tinha direito à edificabilidade média: se por acaso
tivesse de ser expropriado, era apenas o correspondente a esse valor
que deveria receber, na medida em que o excesso em relação a essa
média não se incorporaria na sua esfera patrimonial, já que para o incor-
porar o proprietário sempre teria de pagar por ele - e quando a edifica-
bilidade do prédio fosse inferior à edificabilidade média, o proprietário
tinha de ser compensado - o que significava que teria sempre direito a
essa média, mesmo no âmbito de um processo expropriativo, na me-
dida em que, de acordo com o plano, sempre teria o direito de receber

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 83
pela diferença entre o que podia efetivamente fazer (no caso, não fazer)
e a média.

O referido Plano, porém, e quanto a nós bem, embora reconhecendo


que os terrenos da REN integrados na UOPG deviam ser considerados
na perequação (porque apesar de neles não se poder construir, cria-
vam externalidades positivas nos terrenos envolventes, valorizando-os
- por isso o Plano lhes reconhecia uma edificabilidade média que, não
podendo ser concretizada no terreno, teria de ser paga ao proprietá-
rio), não deixava, no entanto, de reconhecer, dadas as condicionantes
que incidiam sobre estas parcelas, a sua diferença de raiz em relação
às restantes, motivo pelo qual o índice médio que lhes reconhecia era
inferior ao destas. Era isso, efetivamente, que decorria do artigo do re-
gulamento o Plano Diretor Municipal que determinava que “Nas áreas
incluídas em RAN, em REN ou, simultaneamente, em RAN e REN e para
efeitos perequativos, face à sua vinculação situacional, a edificabilidade
média é de, respetivamente, 40 %, 30 % e 20 % da calculada em acor-
do com o número anterior”. O que significa que o plano reconhecia
aos proprietários deste tipo de solos o direito de incorporar na sua
esfera jurídico-patrimonial uma certa edificabilidade: a edificabilidade
média. É certo, que, estando em causa uma situação de vinculação
situacional, o Plano mandava considerar estas parcelas diferenciada-
mente das restantes, mas não há margem para qualquer dúvida de
que o Plano reconhecia de forma clara que tais prédios contribuíam
para a valorização ambiental e, portanto, para o valor dos restantes
prédios da UOPG (que era maior à custa das externalidades positivas
que decorriam dos solos REN nela integrados), devendo os respetivos
proprietários ser compensados por esse facto, isto é, pela valorização
que das suas parcelas resultava para as restantes integradas na mes-
ma UOPG.

b) Tendo em consideração tudo quanto foi referido, entendemos que a re-


ferida parcela objeto de expropriação não podia deixar de ser conside-
rada como “solo apto para construção” à luz do n.º 2 do artigo 25.º do

84 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Código de Expropriações. Isto porque a parcela em causa:

(a) era destacada de um prédio servido por um conjunto vasto de


infraestruturas (cfr. ponto 3.3 do relatório de peritagem);

(b) situava-se em aglomerado urbano (área classificada no Plano Dire-


tor Municipal como solo urbano e integrada no respetivo perímetro
urbano);

(c) encontrava-se integrada, em sede de Plano Diretor Municipal, numa


Unidade Operativa de Planeamento e Gestão com finalidades urba-
nas [o objetivo era o de concretizar um projeto urbano sustentável
onde convivessem (e se misturassem) funções habitacionais, de
comércio e de serviços juntamente com espaços verdes e de utili-
zação coletiva];

Acresce que o Plano lhe reconhecia índices de ocupação média, ainda


que inferiores aos restantes, atenta a sua vinculação situacional, índices
estes que não podiam deixar de se tidos em consideração quando, para
a sua execução, tivesse de se lançar mão da expropriação: mandando
o Código das Expropriações atender aos planos municipais em vigor,
e estabelecendo estes índices perequativos - que correspondem aos
direitos que são conferidos pelo plano e que integram a esfera patrimo-
nial dos proprietários -, a aplicação dos referidos planos para a deter-
minação do valor dos solos implicava necessariamente a consideração,
nessa determinação, dos referidos índices perequativos.

O pagamento de uma indemnização que atente aos índices perequativos


previstos no plano é, aliás, a única solução que, para além do objetivo da
distribuição dos benefícios e encargos decorrentes dos planos, permite o
respeito pelo princípio da igualdade na relação externa das expropriações
cujo cumprimento é, como se viu, uma exigência do princípio da justa
indemnização: caso o proprietário de um solo com edificabilidade superior
à média pudesse receber uma indemnização correspondente a esse valor,

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 85
seria beneficiado em relação a todos os outros que, não sendo expropria-
dos, tivessem de concretizar uma operação urbanística de execução deste
plano. E caso o proprietário de um solo com edificabilidade inferior à média
só recebesse uma indemnização correspondente a esse valor inferior, seria
prejudicado em relação a todos os outros não expropriados.

Consideramos, por isso, que a parcela em causa objeto da expropriação a


que aqui nos referimos não podia deixar de ser considerada como solo apto
para construção à luz do n.º 2 do artigo 25º do Código de Expropriações.

86 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
BIBLIOGRAFIA

Fernando Alves Correia

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Execução dos Planos Diretores Municipais. Algumas Questões”, in RJUA,
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Jorge Carvalho e Fernanda Paula Oliveira

Classificação do Solo no Novo Quadro Legal, Coimbra, Almedina, 2016

fpaula@fd.uc.pt

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 87
BAIRROS SOCIAIS
– URBANISMO PARA POBRES?

José Nicolau Nobre Ferreira


Dirigente municipal aposentado
Doutorado em Políticas Públicas

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 89
RESUMO

Só posteriormente a 1974 é que a intervenção municipal passou a ser mais consis-


tente na habitação social, mas praticamente sempre em parceria com as institui-
ções estatais interventoras nesta área, nomeadamente com o Fundo de Fomento
de Habitação e os outros institutos que lhe sucederam, através da participação em
programas de construção e reparação de habitação essencialmente para carencia-
dos. Também a colaboração municipal com cooperativas de habitação se mostrou
relevante, nomeadamente na disponibilização de terrenos infraestruturados para
construção.

Segundo a ANMP, esta é a área onde, ao longo dos anos, sucessivos governos
tiveram uma atuação ambígua, confusa e indefinida, pois apesar dos municípios
não terem assumido qualquer competência nesta área, há entretanto no terreno
numerosas e confusas intervenções cruzadas de organismos estatais e autarquias
locais. Considera a Associação que só após serem clarificadas e consolidadas as
responsabilidades de cada parte interveniente, se poderá avançar para uma des-
centralização de competências na habitação social.1

O relacionamento nesta área entre os municípios e a administração central é


praticamente inexistente, havendo uma grande indefinição de responsabilidades,
legalmente atribuídas neste campo, a estes dois órgãos de poder. E o relaciona-
mento que se impunha, ou pelo menos desejado pelos municípios, tem a ver com
dois aspetos, o da conservação de fogos arrendados a custos controlados, tanto
propriedade do Estado como municipal, e o da intervenção social para melhoria
das condições de vida das famílias carenciadas instaladas nesses fogos.

PALAVRAS-CHAVE: municípios, bairros sociais, habitação social, descentraliza-


ção de competências.

1 XIII Congresso da ANMP – Defender e consolidar a autonomia na 1ª década do século XXI.

91 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
1 - COMPETÊNCIAS DOS MUNICÍPIOS NA HABITAÇÃO SOCIAL

Os municípios nunca detiveram competências exclusivas no domínio da habi-


tação social, nomeadamente no que se refere à promoção habitacional. A sua
intervenção neste setor, ainda que possível sob a forma de pequenos programas,
esteve sempre dependente de financiamento central. Esta situação registava-se
já antes do 25 de Abril, como comprova o n.º 13 do artigo 49.º do último Código
Administrativo, onde era determinado que, no uso das atribuições respeitantes à
salubridade pública, pertencia às Câmaras deliberar sobre a construção de casas
económicas.

Posteriormente em relação ao 25 de Abril, mais concretamente em 31 de Julho de


1974, surgiu o programa SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), projeto que
juntou arquitetos, juristas, geógrafos, sociólogos e moradores de bairros degra-
dados para o planeamento e construção de habitações em conjunto. Foi uma
medida eficaz e elogiada, inclusivamente por outros países da Europa (Cannatàa e
Fernandes, 2003). Foi uma nova forma de conceber o espaço que favorecia a par-
ticipação ativa popular e tinha como principal objetivo satisfazer as necessidades
das populações, que se organizaram em comissões locais (Fernandes, 2006). Este
programa terminou em 31 de Outubro de 1976, sendo responsável pela construção
de 170 fogos em todo o país.

A partir dessa data, a construção da habitação social sofre um considerável


incremento, essencialmente motivado pela colaboração desenvolvida entre os
municípios e o Fundo de Fomento de Habitação. Para acompanhar tal evolução,
o Decreto-Lei n.º 797/76 criou os Serviços Municipais de Habitação, definindo-os
como “serviços especiais dotados de autonomia administrativa e financeira e com
personalidade jurídica ou, se e quando a dimensão do parque habitacional a seu
cargo o justificar, a de serviços municipalizados”. Definia como atribuições princi-
pais desses serviços:

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 93
- A gestão dos parques habitacionais dos municípios;

- A atribuição de fogos construídos ou adquiridos para fins habitacionais pelo


Estado, seus organismos autónomos, institutos públicos personalizados, pes-
soas coletivas de direito público, instituições de previdência e misericórdias
situadas na respetiva área.

Como atribuições complementares eram apontadas:

- A inventariação e perspetivação das necessidades habitacionais, em colabora-


ção com os organismos competentes da administração central;

- A colaboração na reparação e conservação dos parques habitacionais;

- A divulgação da informação e esclarecimentos sobre as diferentes modalidades


de acesso à habitação social, programas de construção ou recuperação de
fogos, etc.;

- A colaboração nos programas especiais de recuperação de prédios degradados;

- O exercício de outras atribuições que lhes viessem a ser cometidas por lei ou
pelos órgãos competentes da administração municipal.

Os Serviços Municipais de Habitação foram criados essencialmente nas grandes


cidades com graves problemas habitacionais e durante a década de 80 começa-
ram a perder a sua importância.

Através da publicação do Decreto-Lei n.º 817/76, os municípios passaram a ter


acesso ao crédito bonificado para promoção de habitação, por via do Fundo de
Fomento de Habitação. Esta entidade também ficou autorizada, pelo Decreto-Lei
n.º 704/76, a lançar um programa especial para reparação de fogos ou imóveis
em degradação (PRID), destinado à concessão de empréstimos e subsídios para
obras de reparação e conservação do património habitacional público e privado,
urbano e rural. Este programa era regionalizado, sendo atribuídas dotações con-
celhias anuais, na base do inventário com a previsão da verba global necessária
aos trabalhos a efetuar.

94 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Conhecida a dotação concelhia, havia que selecionar as intervenções prioritárias
de forma a caberem na verba concedida. Podiam concorrer ao PRID as câmaras
municipais e os particulares. As câmaras tinham grande intervenção neste progra-
ma habitacional, uma vez que informava os processos dos particulares candidatos
ao programa e competia-lhes toda a gestão de ordem técnica e administrativa das
obras executadas.

2 – HABITAÇÃO SOCIAL: RESPONSABILIDADE DO PODER


CENTRAL OU DO PODER LOCAL?

Em 1982, com a extinção do Fundo de Fomento de Habitação, organismo respon-


sável pela promoção pública de habitação, e na ausência de uma regulamentação
específica da delimitação de competências entre as administrações central e
local, o Governo advoga que “é às câmaras municipais que fundamentalmente deve
competir a iniciativa da promoção direta da habitação social,… com os seus recursos
próprios e por meio de empréstimos…”.2 Foi neste sentido que se definiu um novo
regime de crédito para o lançamento de programas de habitação pelos municípios,
alargado igualmente a outros organismos públicos e privados.3

Entretanto, começou-se a registar um retrocesso na promoção habitacional e nem


o aparecimento do Fundo de Apoio ao Investimento para a Habitação (FAIH) veio
alterar esta tendência. O acesso dos municípios aos financiamentos apoiados pelo
Estado estava condicionado à apresentação de programas trienais de promoção
de habitação que englobassem a promoção habitacional levada a efeito pelos
municípios, por cooperativas, por promotores privados de contratos de desen-
volvimento de habitação (CDH) e por particulares interessados no PRID. Como
os municípios ainda estavam deficientemente apetrechados de meios técnicos
para estabelecerem esses programas trienais e porque o FAIH desconhecia essa
realidade autárquica, verificou-se um acentuado decréscimo na promoção habita-
cional.

2 Resolução do Conselho de Ministros nº 11/83, tendo por justificação a “descentralização administrativa, decisivamente impulsionada pela Lei nº 1/79, de
2 de Janeiro, que estabelece o regime de autonomia financeira das autarquias locais…”.

3 Decreto-Lei nº 220/83, de 26 de Maio.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 95
A partir de Janeiro de 1983 foi publicado um conjunto de diplomas sobre a inter-
venção dos municípios na área da habitação social. O FAIH é extinto pelo Decreto-
Lei nº 177/84, de 25 de Maio, e criado em sua substituição o Instituto Nacional de
Habitação (INH). Em Fevereiro de 1987 é criado o Instituto de Gestão e Alienação
do Património Habitacional do Estado (IGAPHE). O programa PRID foi substituído
pelo RECRIA, para o qual o Estado estabeleceu, de forma arbitrária, uma interven-
ção financeira dos municípios. No entanto, tais medidas não conseguiram alcançar
os efeitos práticos desejados.

Através da publicação do Decreto-Lei nº 366/85, de 11 de Setembro, o Governo


reconheceu que a responsabilidade da promoção da habitação social não era
exclusiva quer das autarquias locais, quer da administração central. O Decreto-Lei
nº 77/84, de 29 de Março, não tinha reconhecido qualquer competência exclusiva
dos municípios na construção de habitação. O regime de cooperação entre a admi-
nistração central e os municípios em matéria de habitação não alterou de forma
significativa o estatuto autárquico nesta área, uma vez que sempre pertenceu ao
poder central a definição das regras das diversas intervenções na habitação, assim
como as tornou dependentes de financiamentos por si concedidos. O decreto-Lei
nº 384/87, de 24 de Dezembro, que definiu os princípios e regras orientadoras dos
sistemas financeiros de apoio ao desenvolvimento local, previu a celebração de
contratos-programa para investimentos na área da habitação social.

Posteriormente foram implementados pela administração central programas de


promoção de habitação a custos controlados, que contavam com o apoio finan-
ceiro do Estado e que constituíam o único instrumento de política habitacional. O
citado apoio traduzia-se no financiamento bonificado ou na concessão de benefí-
cios fiscais e parafiscais, destinados à aquisição e infraestruturação dos terrenos
e à construção ou aquisição de habitação. A intervenção do Estado na habitação
de custos controlados processava-se fundamentalmente através da celebração
de acordos de colaboração ou protocolos, contratos de comparticipação ou de
financiamento, com promotores institucionais, tais como municípios, instituições
particulares de solidariedade social e cooperativas de habitação económica, e na
celebração de contratos de desenvolvimento sobre a habitação (CDH) com empre-
sas privadas. A promoção de habitação de custos controlados através dos muni-
cípios foi feita com acordos de colaboração estabelecidos com o IGAPHE e o INH,

96 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
e visavam a realização de programas de habitação social para arrendamento no
regime de renda apoiada, destinada principalmente ao realojamento da população
residente em barracas, e a construção de habitação de custos controlados desti-
nada a venda. O quadro legal que regeu a promoção dos programas de habitação
social antes citados foi definido pelos Decretos-Lei nº 226/87, de 6 de Junho, e nº
278/88, de 5 de Agosto, com as alterações estabelecidas pelo Decreto-Lei nº 150-
A/91, de 22 de Abril, que regulava também os financiamentos a que os municípios
poderiam aceder para a concretização desses programas.

A política de habitação conjugava duas orientações: a “reprivatização” e a “munici-


palização forçada”. Na verdade, ao mesmo tempo que ocorreu a liberalização pro-
gressiva das regras de intervenção do setor, reforçando-se o papel regulador do
mercado, verificava-se a atribuição de novas e alargadas funções aos municípios
na promoção habitacional e exigiu-se a sua efetiva comparticipação financeira,
mas sem que tal se registasse no contexto de um processo de transferência de
competências financeiramente enquadrado (Ferreira, 1988).

O Programa Especial de Realojamento (PER), criado pelo Decreto-Lei nº 163/93,


de 7 de Maio, na sequência do Programa Nacional de Luta contra a Pobreza, lan-
çado em 1991, destinou-se às áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, e visava
proporcionar aos municípios daquelas áreas condições para procederem à erradi-
cação das barracas existentes e ao consequente realojamento dos seus ocupantes
em habitações de custos controlados. O PER foi de facto um forte impulso em
matéria de construção de habitação social, revelando-se particularmente dinâmico
na segunda metade da década 90 do século passado, em que foram contratualiza-
dos até aquela data cerca de 65% dos mais de 31 mil fogos construídos no âmbito
deste programa, que durou até 2005.4

Da análise aos sistemas de financiamento estabelecidos pelos diplomas legais


reguladores dos vários programas habitacionais de cariz social, verifica-se que “o
recurso ao sistema exige disponibilidades financeiras de complemento significati-
vas e, apesar das bonificações, as atuais taxas de juro e os prazos de amortização
são incompatíveis com a produção de habitação social para a população total

4 Contributos para o Plano Estratégico de Habitação: 2008-2013 – Relatório 2 – Políticas de Habitação.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 97
ou parcialmente insolvente” (Ferreira, 1988). O Estado demonstrou, ao longo dos
anos, a sua intenção de intervir cada vez menos na área habitacional, deixando
tal tarefa para o setor privado, nomeadamente a regulação dos custos de cons-
trução através do mercado, e atribuindo aos municípios responsabilidades de
financiamento em programas (por exemplo, o RECRIA) sem que, em contrapar-
tida, previsse as necessárias transferências de recursos do OE para tal fim, em
conformidade com a lei vigente.

A Lei nº 159/99, de 14 de Setembro, que estabeleceu o quadro de transferências


de atribuições e competências para os municípios, veio atribuir, no âmbito da
habitação, as seguintes competências:

a) Disponibilizar terrenos para a construção de habitação social;

b) Promover programas de habitação a custos controlados e de renovação urba-


na;

c) Garantir a conservação e manutenção do parque habitacional privado e coo-


perativo, designadamente através da concessão de incentivos e da realização
de obras coercivas de recuperação dos edifícios;

d) Fomentar e gerir o parque habitacional de arrendamento social;

e) Propor e participar na viabilização de programas de recuperação ou substitui-


ção de habitações degradadas, habitadas pelos proprietários ou por arrenda-
tários.

Na Lei nº 75/2013, de 12 de Setembro,5 continua a constar a habitação como


atribuição dos municípios a habitação, mas mais nada é acrescentado em termos
de competências.

“A habitação social é porventura o sector onde, ao longo dos anos, sucessivos


Governos foram criando maior ambiguidade, confusão e indefinição. Sem que jamais
os Municípios a tivessem assumido como uma sua competência, há entretanto, no
terreno, numerosas e confusas intervenções cruzadas de institutos públicos e de

5 Alínea i), nº 2. Artigo 23º.

98 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
autarquias locais. Trata-se, também aqui, de matéria em que só depois de clarificar
e consolidar o que já existe, será possível conseguir avançar na regulamentação da
Lei n.º 159/99, concretizando a quem compete o quê”.6

É inquestionável que os municípios têm de intervir na área da habitação social. O


problema é determinar o que podem e devem fazer, como o fazer e quando o fazer.
Há muito que se reclama a elaboração de um estudo nacional sobre o setor, com
vista à elaboração de um Plano, de que alguns partidos chegaram a apresentar
propostas, e posteriormente o Programa Nacional de Habitação, porventura mais
consonante com as estratégias comunitárias. O facto é que não existe uma orien-
tação na intervenção dos vários agentes na produção, conservação e recuperação
de habitação, ao nível nacional, regional e local, numa perspetiva de médio e longo
prazo.

O reconhecimento da vigência do regime de coordenação e cooperação entre a


administração central e os municípios em matéria de habitação não veio alterar
significativamente o estatuto autárquico nesta área, uma vez que os seus termos
têm sido definidos unilateralmente pela administração central e em condições
que se têm revelado desajustadas face aos rendimentos das famílias e à situação
financeira dos municípios.

Saliente-se que praticamente todos os municípios intervêm, quer pontualmente,


quer com programas específicos para o efeito, na conservação de fogos cons-
truídos ao abrigo de programas de habitação social, arrendados a famílias caren-
ciadas, sejam propriedade municipal ou do Estado. Estas intervenções assumem
montantes consideráveis dos orçamentos municipais, criando sérias dificuldades
financeiras a um número significativo de autarquias.

Para além do problema da conservação dos fogos, tem-se também vindo a ques-
tionar a eficiência das políticas de habitação social, no tocante ao favorecimento
da coesão social, à promoção e reforço da cidadania, ao acesso ao emprego e
à melhoria das condições de vida das famílias carenciadas. A intervenção nos
bairros sociais, necessária para melhorar tais aspectos, nunca foi assumida pelos
organismos do Estado e pouco foi feito neste sentido pelos municípios.

6 XIII Congresso da ANMP – Linhas Gerais de Atuação – Defender e Consolidar a Autonomia na 1ª Década do Século XXI.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 99
3 – BAIRROS SOCIAIS: UMA VIVÊNCIA ESTIGMATIZADA?

A construção dos chamados bairros sociais tem levantado um conjunto de ques-


tões no que concerne à eficácia e eficiência das políticas de habitação social. A
forma generalista como as especificidades destes espaços têm sido tratadas refle-
te-se na crescente incapacidade para gerir as suas relações internas. Por outro
lado, a habitação social não tem contribuído para uma lógica nem de integração,
nem de inserção urbana dos grupos mais desfavorecidos.

“É (…) aparentemente evidente que não se pode equacionar a questão da partici-


pação social dos grupos, famílias e pessoas pobres sem dar o necessário relevo à
dimensão territorial” (Capucha, 2000: 10).

A construção destes espaços surge geralmente de uma forma descontínua em


relação ao crescimento urbano, criando sentimentos de segregação e de exclusão.
A “guetização” é, muitas vezes, a principal consequência de todo este processo
(Guerra, 1994). Para além de excluídos das vantagens do centro, os residentes
estão igualmente afastados dos processos de decisão, isto é, desinseridos. No
entanto, esta desinserção deverá referir-se ao relacionamente com o exterior ao
bairro social, uma vez que, internamente e de acordo com Capucha (2000), “quan-
do a escala social desce ao terreno, se percebe como os pobres organizam os
seus modos de vida, constroem estratégias de rentabilização dos escassos recur-
sos, tecem teias que muitas vezes acabam por enclausurá-los. A relação com o
espaço é uma relação “total”, no sentido em que se envolvem todos os parâmetros
da vida em sociedade.” (Capucha, 2000: 10)

As fragilidades do ordenamento, assim como as características arquitetónicas e


sociais, rapidamente ganham contornos simbólicos que facilmente conduzem a
uma estigmatização dos bairros sociais. A negativização das identidades em rela-
ção ao bairro e o sentimento de exclusão convertem-se em características centrais
deste processo de estigmatização (Pinto, 1994). Os obstáculos à emancipação e
autonomia dos residentes multiplicam-se à medida que os procedimentos institu-
cionais se complexificam. A condição de residente nestes espaços confina-se mui-
tas vezes à de recetor passivo ou beneficiário, face a uma estratégia fundamen-
talmente assistencialista do providencialismo tradicional. Por estar desidentificado
com o bairro, o indivíduo não o promove, nem o defende e dificilmente consegue
gerar lógicas de ação coletiva (Guerra, 1994).

100 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
De um modo geral, os bairros sociais são para além de espaços segregados e
estigmatizados, lugares caracterizados por uma escassez de equipamentos de
lazer e de sociabilidade (Guerra, 1994; Pinto, 1994).

Refira-se ainda, sobre esta temática, que muitos poucos municípios,7 em alterna-
tiva à construção de bairros sociais, foram ao longo do tempo adquirindo fogos
situados em urbanizações de iniciativa privada, para depois os arrendarem a famí-
lias carenciadas, evitando assim a concentração de famílias carenciados em urba-
nizações construídas especificamente para o efeito e instalando-as aleatoriamente
pelo tecido urbano, no sentido de evitarem a “guetização” (Guerra, 1994) que os
bairros sociais originavam. De acordo com Capucha, “há de facto uma relação
entre o modo de entender os factores de pobreza e exclusão social, o modo de
conceber a luta contra esses fenómenos e a focagem dos processos de territo-
rialização” (Capucha, 2004: 188) e “onde dizemos que os bairros pobres são os
bairros onde os pobres habitam, é preciso acrescentar que são também os bairros
que os tornam pobres ou tecem as redes que os impedem de romper com as suas
condições de vida” (Capucha, 2004: 191).

4 - DESCENTRALIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO LOCAL

A descentralização da política social de habitação nos municípios revelou uma des-


coincidência entre a descentralização de responsabilidades e competências político-
-administrativas e a descentralização de recursos técnicos e financeiros, isto é,
aumentou a sua legitimidade de intervenção na habitação social, mas não foi asse-
gurada a correspondente viabilidade financeira (Ruivo, 2000). Verifica-se também
uma descoincidência entre as competências legais nesta área e as competências
assumidas pelos municípios sem cobertura jurídica, o que leva a uma indefinição no
pedir de (sobre a quem imputar) responsabilidades por parte dos utentes das habi-
tações. Por isso, com o objetivo de uma maior celeridade e eficácia de intervenção,
muitas vezes imposta pela urgência das situações a acorrer, a atuação informal dos
municípios vai muito para além das suas competências legais.

Esta situação reflete-se de forma mais acentuada na necessidade de conservação

7 Como o caso do município de Benavente.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 101
e requalificação de fogos arrendados a custos controlados, onde os municípios,
apesar do acesso a empréstimos com juros bonificados (disponibilizados pelo
IHRU), não conseguem garantir a sua parte de autofinanciamento para executarem
tais obras.

A habitação social continua a aglutinar um tecido social caracterizado pela ilitera-


cia, níveis baixos de consciência e participação cívica, pouca formação e empe-
nho escolar e profissional, que em tudo contribuem para uma maior propensão
à marginalidade e à exclusão, apesar da lenta superação da pobreza material e
financeira (Mucha, 2004; 71). Os processos de intervenção em espaços de habi-
tação social para promoção de medidas de política habitacional revelam um defi-
ciente relacionamento entre os residentes e a entidade gestora competente. A esta
desarticulação de relacionamento acrescenta-se a desarticulação entre diversas
entidades com intervenção no mesmo território urbano.

Em espaços de habitação social intervencionados pela administração central,


pelos municípios ou por ambos, o desenvolvimento de ações mais ou menos
articuladas entre estas duas instâncias de poder tem originado consideráveis
mudanças ao nível de condições de habitabilidade, propícias a uma melhoria de
qualidade de vida dos habitantes, mas as mudanças ao nível de apropriação das
novas condições que começam a ser oferecidas aos residentes para superação
de estigmas alimentados por eles e pelas comunidades envolventes, fruto da tra-
dicional segregação socio-espacial em contextos urbanos, são bem mais lentas.

A desarticulação entre as entidades gestoras e as populações, bem como uma


certa indefinição de competências entre os poderes central e local, origina lacu-
nas e sobreposições, levando a que os habitantes raramente saibam quem é
o organismo responsável pela gestão dos espaços habitacionais. Num cenário
político-financeiro marcado pela austeridade, traduzida na escassez de recursos
financeiros não só do poder local, mas também das delegações regionais do poder
central, terá que ser encontrada uma estratégia de financiamento que viabilize a
reabilitação de fogos, assim como a intervenção social que possibilite o usufruto
da condição de cidadania dos seus habitantes.

Logo, para haver um entendimento entre os municípios e o Estado, afigura-se que


a solução deverá passar, em termos institucionais, pela negociação de políticas de

102 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
intervenção na conservação do edificado, propriedade do Estado e dos municí-
pios, arrendado a preços controlados a famílias carenciadas, assim como de inter-
venção no meio social, para apropriação das políticas e exercício da cidadania.

Apesar de não ver com agrado a assunção de novas competências na área da


habitação social, a ANMP admite uma negociação com a administração central,
com vista a ser encontrada uma estratégia de intervenção financeiramente parti-
lhada, já que por vezes, face à urgência de intervenção dos pedidos de apoio sur-
gidos, os municípios são “obrigados” a intervir no património habitacional estatal,
arrendado a custos controlados, devido à inoperância da administração central na
sua conservação e requalificação.

Depreende-se assim que um processo de descentralização da política habitacional


deve abranger, de forma integrada, as questões relacionadas com o meio institu-
cional (produção e negociação de políticas), assim como as preocupações obser-
vadas no meio social local (apropriação das políticas e exercício de cidadania).

Por último, afigura-se que os municípios terão de salvaguardar um pormenor


importante na negociação do pacote financeiro que acompanhará a eventual
descentralização da conservação da habitação social património do Estado.
Tal volume financeiro terá de ser majorado em relação à actual despesa que
o Estado suporta com a conservação desse património pela seguinte razão: é
que os utentes da habitação social do Estado têm actualmente uma capacidade
reivindicativa pela conservação das suas casas reduzida, por o acesso a essa
reivindicação junto a um organismo público estatal, situado “algures” em Lisboa,
por vezes a ter de ser veiculado por carta elaborada por utentes com baixa
escolaridade, ser mais difícil do que ser apresentada verbalmente num depar-
tamento da Câmara Municipal, de fácil acesso e personalizado ou pelo técnico
responsável, ou, no limite, pelo seu Presidente. Por isso, adivinha-se que esta
competência descentralizada sairá mais dispendiosa para o erário público se for
concretizada pelo poder local, em substituição do poder central, uma vez que
a capacidade reivindicativa dos utentes de habitação social ficará facilitada (e,
consequentemente, aumentada) pela proximidade da entidade responsável pela
conservação e pelo conhecimento do órgão decisor da concretização da conser-
vação (técnico/vereador/presidente).

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANMP (2002), Linhas gerais de atuação 2002/2005 – defender e consolidar a auto-


nomia na 1ª década do século XXI, documento apresentado no XIII Congresso,
realizado em 12 e 13 de Abril, Lisboa.

Cannatà, Michele e Fátima Fernandes (2003), Habitação Contemporânea. Formas


de habitar, Porto, Edições Asa.

Capucha, Luis, (2000), “Territórios de Pobreza, onde é preciso voltar”, Sociedade


e Território - Revista de Estudos Urbanos e Regionais, 30, Marginalidades e
Exclusão, Porto, Edições Afrontamento.

Capucha, Luís, (2004) Desafios da Pobreza, Tese de Doutoramento em Sociologia,


Lisboa, ISCTE.

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Mestrado em Relações Interculturais, Lisboa, Universidade Aberta.

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Cadernos Municipais, 46/47, Lisboa, Fundação Antero de Quental.

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Cidadania e Políticas, Atas dos Ateliers do Vº Congresso de Sociologia, p. 71, 12
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Casa e o Desgosto Pelo Bairro, Sociedade e Território, 20, Ed. Afrontamento, Porto,
pp. 36-43.

Ruivo, Fernando (2000), O Estado labiríntico: o poder relacional entre poderes local e
central em Portugal, Porto, Edições Afrontamento.

104 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
MERA COMUNICAÇÃO
PRÉVIA SEM FISCALIZAÇÃO?
TODA A GENTE RALHA
E NINGUÉM TEM RAZÃO!

Marcelo Caetano Martins Delgado


Diretor de Departamento
de Coordenação Geral
Câmara Municipal de Chaves

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 105
I – ENQUADRAMENTO

Com a publicação do denominado regime jurídico do licenciamento zero, cuja


consagração normativa veio a ter lugar, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º
48/2011, de 01 de abril1, veio a ser introduzido, no ordenamento jurídico português,
um conjunto significativo de medidas de simplificação, todas elas voltadas para
a desburocratização dos procedimentos administrativos associados à instalação,
exploração e modificação das diversas atividades económicas e urbanísticas.

Do sentido da bússola que presidiu, a tal iniciativa legislativa, a qual veio a ter
concretização nas sucessivas reformas que foram introduzidas, nas diversas áreas
de licenciamento municipal, importa destacar, pela sua importância prática, a
publicação dos seguintes diplomas legais que, com outros zeros, pretenderam dar
corpo e alma a tal espírito centrado, fundamentalmente, na ideia da simplificação
administrativa, a saber:

a) Decreto-Lei n.º 136/2014, de 09 de setembro, diploma que procedeu à 13ª


alteração ao Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, o qual estabelece
o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, doravante designado por
“RJUE”;

b) Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, diploma que veio a aprovar, sob


a forma de anexo, o regime jurídico de acesso e exercício de atividades de
comércio, serviços e restauração, doravante designado por “RJACSRS”;

1 Com a publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei nº. 10/2015, de 16 de janeiro, diploma que veio a aprovar, sob a forma de anexo, o regime jurídico
de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração (RJACSRS),o mesmo veio a determinar a revogação, diga-se, quase arrasadora, do
regime do Licenciamento Zero.
De facto, com a exceção das normas atinentes à definição e fixação de mensagens publicitárias e da ocupação do espaço público, em regime simplificado,
todas os demais regimes consagrados, em tal diploma legal, particularmente, no que concerne à instalação e exploração de estabelecimento comerciais,
foram objeto do “vistori” revisionista do legislador, solução, juridicamente, pouco compreensível, fragmentária do quadro normativo, em vigor, sobre
a matéria, e nada compaginável com a “bandeira” da simplificação que esteve subjacente à reforma “Zero”, cujo mérito veio a ser reconhecido, pelas
instâncias da UE.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 107
c) Por último, Decreto-Lei n.º 73/2015, de 11 de maio, diploma que procedeu à
1.ª alteração ao Sistema de Industria Responsável, doravante designado por
“SIR”, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº. 169/12, de 01 de agosto 2.

Embora não seja nosso propósito proceder, nesta sede, a uma análise exaustiva
de todas as implicações emergentes da entrada em vigor de tais diplomas legais,
voltados, pela ordem indicada, para a gestão urbanística, para a instalação e
exploração das atividades económicas e para o exercício da atividade industrial,
não podemos deixar de destacar, no entanto, que, entre todos eles, existe um
denominador comum, e cuja concretização deve ser procurada nos seguintes
pressupostos fundamentais:

- alteração do posicionamento da Administração Pública, no que concerne


ao controlo público e administrativo das diversas atividades - económicas e
urbanísticas - desenvolvidas, pelos particulares, intensificando, cada vez mais,
a sua ação, no seu controlo sucessivo, reduzindo e ou eliminando, concomi-
tantemente, a sua atuação, ao nível do seu controlo prévio, claramente, asso-
ciado à prática de atos permissivos e ou autorizadores (licença administrativa,
autorização administrativa, entre outros);

- aposta numa lógica de atuação assente nos princípios da confiança e da autor-


responsabilidade dos cidadãos e das empresas, responsabilizando os atores
privados, pelo cumprimento das regras legais e regulamentares que devem ser
observadas, em vista ao legítimo desenvolvimento de tais atividades, na sal-
vaguarda do interesse público, em causa, particularmente, no que diz respeito
à prevenção dos perigos e ou danos que daí possam resultar para a saúde
pública e segurança de pessoas e bens.

É inquestionável que esta nova lógica de atuação da Administração Pública, mais


operacional do que formal, mais simplificadora e menos retardadora da inicia-
tiva privada, tem, transversalmente, tradução, na introdução e consolidação do
procedimento de mera comunicação prévia, enquanto figura central desta nova
tendência legislativa, diga-se, irreversível, de simplificação e desburocratização da

2 Tudo isto, sem prejuízo de outras reformas legislativas envolvidas do mesmo espírito de simplificação e com incidência em outras áreas e ou setores de
atividade, nomeadamente, na área da instalação e exploração de empreendimentos turísticos, alojamento local, entre outras.

108 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
ação administrativa, no âmbito do controlo público - que não prévio - das diversas
atividades económicas, industriais e urbanísticas.

Perante tal nova realidade administrativa, fácil se torna concluir que o papel da
fiscalização municipal deve ser recentrado, no sentido da sua intervenção, nos
diversos procedimentos de controlo público, ser cada vez mais exigente, ao nível
do controlo sucessivo, em prejuízo do controlo prévio das diversas atividades
económicas e urbanísticas.

Importa, assim, dotar a administração municipal de um modelo de fiscalização que


possa dar resposta, eficaz e eficiente, a este novo paradigma de atuação da admi-
nistração, passando os municípios a dispor de um corpo e ou setor de fiscalização
dotado dos meios indispensáveis ao adequado acompanhamento - sistemático e
preventivo - das atividades económicas e urbanísticas, integrando, para o efeito,
na sua estrutura orgânica, equipas de fiscalização, de natureza pluridisciplinar,
exemplarmente, preparadas que possam dar resposta, quer no plano técnico,
quer no plano administrativo, aos atuais desafios que se colocam à atividade de
fiscalização municipal.

Desafios esses que estão, hoje, reconhecidamente, ligados ao poder/dever pro-


tagonizado pela Administração, substantivado no efetivo controlo sucessivo das
atividades desenvolvidas, pelos particulares, inviabilizando, em tempo oportuno,
com segurança e certeza jurídicas, as eventuais infrações, por estes, cometidas,
no exercício das suas atividades - urbanísticas e ou económicas -, as quais consti-
tuem nítidos desvios ao quadro legal e regulamentar, em vigor, colocando em risco
os dois valores fundamentais que, salvo melhor opinião, ainda determinam uma
intervenção enérgica, embora sucessiva, dos poderes fiscalizadores, nestas áreas
de intervenção: a segurança de pessoas e bens e a saúde pública das populações.

Neste contexto, parece-nos inevitável que, a curto prazo, as Autarquias Locais


terão de, necessariamente, promover, nesta área de intervenção - fiscalização
municipal - investimentos significativos que tornem possível acompanhar a lógica
de agilização e simplificação dos procedimentos de mera comunicação prévia,
focada, sobretudo, na eliminação do controlo prévio e no reforço da cultura de
responsabilidade dos seus promotores e respetivos técnicos, com o correspon-

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 109
dente melhoramento do controlo sucessivo das atividades que ficam sujeitas ao
seu regime, meramente, declarativo.

Partindo de tal enquadramento, torna-se imperioso o desenvolvimento de políticas


públicas efetivas que permitam dar resposta a esta nova realidade de controlo
público das atividades económicas e urbanísticas, indissociáveis do alargamento
sistemático do perímetro de ação da mera comunicação prévia, contrabalançando,
tal realidade administrativa, cujos ganhos de simplificação são evidentes, com o
reforço da ação de fiscalização confiada às Autarquias Locais.

Por razões de economia do presente comentário, pretendendo o mesmo consti-


tuir, essencialmente, um humilde contributo para a valorização e melhoramento
da atividade de fiscalização desenvolvida pelas Autarquias Locais, não faz parte
das suas preocupações capitais, o estabelecimento de uma desejável e interes-
sante conexão, técnica e administrativa, entre os regimes jurídicos consagrados,
no âmbito do RJUE, do RJACSRS e do SIR, embora sendo inquestionável que,
entre as reformas legislativas operadas, recentemente, a tais regimes jurídicos,
existe, claramente, um elemento de ligação verdadeiramente importante: a intro-
dução da figura da mera comunicação prévia, enquanto procedimento adminis-
trativo central, embora declaratório, que legitima os promotores a desenvolver
as suas atividades económicas - instalação e exploração de estabelecimentos
comerciais - industriais -, no caso, instalação de estabelecimentos industriais do
tipo 3 - e urbanísticas, nas situações consagradas, no atual RJUE, em matéria de
sujeição das operações urbanísticas ao regime da mera comunicação prévia 3.

3 O estabelecimento de uma adequada conexão ou “mix”, entre o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação e os demais regimes de licenciamento,
quer das atividades económicas, quer das atividades industriais, constitui uma tarefa fundamental, na busca de soluções, técnicas e administrativas,
adequadas.
E por uma simples razão: os estabelecimentos comerciais e industriais instalam-se – ato de instalação – regra geral, mediante o desenvolvimento de ope-
rações urbanísticas, designadamente, loteamento e ou edificação, sendo, como tal, absolutamente, incontornável, a existência de uma boa coordenação
entre as soluções normativas previstas, sobre a matéria, no regimes especiais de licenciamento – SIR e RJACSRS- com o RJUE.
Por outro lado, considerando que tais atividades não nascem no “Céu”, as mesmas pressupõem, sempre, o apuramento da sua compatibilidade – uso
comercial, de serviços ou industrial – com os usos urbanísticos, preestabelecidos, à luz do RJUE, por força da aplicação do plano urbanístico ou do próprio
loteamento, em vigor.
Estamos convictos de que, nesta dimensão, deverá, no futuro, ser feita uma aposta, por parte da administração municipal, na consagração, sempre que
seja, urbanisticamente, possível, nos respetivos títulos de utilização – autorização – de usos urbanísticos genéricos, de natureza mista, facilitando ou
agilizando a sua compatibilidade com o desenvolvimento das atividades económicas e industriais, simplificando, assim, o correspondente procedimento
de instalação e exploração dos respetivos estabelecimentos - comércio, serviços e ou indústria -, com todas as vantagens daí emergentes para o desenvol-
vimento do tecido económico e para a simplificação do procedimento de instalação e exploração, diga-se, complexo, de tais atividades.
Veja-se, nesse sentido, a solução consagrada no artigo 18º do SIR, admitindo, tal disposição legal, em edifícios ou frações dotados de uma utilização
destinada a habitação, o desenvolvimento de determinadas atividades industriais, legalmente, estatuídas, não sendo, procedimentalmente, necessário
recorrer, para o efeito, ao regime de alteração da utilização, desde que observados todos os pressupostos legais fixados no citado artigo.

110 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Optamos, assim, por desenvolver os presentes comentários, com incidência na
ação de fiscalização protagonizada, pelas Autarquias Locais, com particular inci-
dência, na gestão urbanística, partindo de uma abordagem, não exaustiva, dos
seguintes três tópicos, a saber:

Primeiro, a identificação do regime da mera comunicação prévia, no âmbito dos


procedimentos de aprovação das diversas operações urbanísticas, normativa-
mente, previstos, no RJUE, destacando-se, aqui, por razões óbvias, a natureza,
tramitação e efeitos, de tal procedimento administrativo, constituindo o mesmo,
inequivocamente, a “via verde”, ora, facultada, aos interessados, em vista à ade-
quada e legítima promoção das operações urbanísticas;

Segundo, uma abordagem sobre a resposta, atualmente, consagrada, no âmbito


do RJUE, no que concerne ao modelo de fiscalização proposto, no sentido de ser
garantido um adequado acompanhamento e ou monitorização de todas as opera-
ções urbanísticas sujeitas ao procedimento de mera comunicação prévia;

Terceiro e último ponto de abordagem, o qual, seguramente, constitui o núcleo


central do tema, em apreciação, e consubstanciado na apresentação, na medida
do possível, de algumas medidas concretas que, a curto prazo, poderão permitir
introduzir ações de melhoria, no modelo de fiscalização municipal, partindo da
identificação de algumas das principais debilidades, atualmente, existentes.

II – A MERA COMUNICAÇÃO PRÉVIA E O CONTRO-


LO SUCESSIVO DAS OPERAÇÕES URBANÍSTICAS, NO
ÂMBITO DO RJUE

A - Enquadramento

Partindo da ponderação das notas preambulares enquadradoras do Decreto-Lei


n.º 136/2014, de 9 de setembro, diploma que procedeu à décima terceira alte-
ração do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, um dos objetivos centrais
justificadores da revisão do regime jurídico da urbanização e da edificação, teve,

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precisamente, em vista a introdução de mecanismos de simplificação do controlo
das operações urbanísticas efetuado mediante procedimento de comunicação
prévia com prazo4, a qual, quando corretamente instruída, dispensa a prática de
atos permissivos.

A inspiração normativa que esteve subjacente à consagração, no RJUE, de novos


mecanismos de simplificação do controlo administrativo das operações urbanís-
ticas deve ser procurada na Lei de bases gerais da política pública de solos, de
ordenamento do território e de urbanismo, aprovada pela Lei n.º 31/2014, de 30 de
maio, doravante, designada por “LBPSOTU”.

O perímetro de intervenção da atual Lei n.º 31/2014, de 30 de maio, estabelecendo


a mesma as bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território
e de urbanismo, é, manifestamente, mais amplo e ambicioso, tendo por referência
a latitude dos propósitos e ou objetivos prosseguidos, pela anterior Lei de Bases,
em vigor, sobre a matéria, no caso, pela revogada Lei n.º 48/98, de 11 de agosto,
alterada pela Lei n.º 54/2007, de 31 de agosto.

Esta nova conceção da Lei nº 31/2014, definindo políticas públicas no domínio


dos solos, do ordenamento do território e do urbanismo, acabou por estabelecer,
nesta sua última dimensão, ou seja, políticas públicas de urbanismo, um conjunto
de princípios reitores com incidência direta na gestão urbanística, particularmente,
no que concerne ao controlo administrativo das operações urbanísticas.

De facto, nos termos do disposto no art. 58º da retrocitada Lei, sob a epígrafe,
“controlo administrativo das operações urbanísticas”, tal regime procedimental
deve, essencialmente, assegurar a conformidade das operações urbanísticas com
as disposições legais e regulamentares aplicáveis e a prevenir os perigos ou danos
que da sua realização possam resultar para a saúde pública e segurança de pes-
soas e bens.

A referida Lei aponta, inequivocamente, um novo caminho procedimental, em

4 Na verdade, o regime inovador de aprovação das operações urbanísticas, consagrado no Decreto-Lei nº 136/2014, de 9 de setembro, não se traduz na
introdução da figura da comunicação prévia com prazo, como, erradamente, se anuncia, no preâmbulo do diploma, mas sim, face à natureza e traços ca-
raterizadores do procedimento, à sujeição de determinadas operações urbanísticas ao regime da mera comunicação prévia, considerando a sua natureza,
localização, dimensão e, sobretudo, a prévia formatação de todos os parâmetros urbanísticos relevantes aplicáveis, ficando, assim, as mesmas isentas de
controlo prévio municipal.

112 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
matéria de controlo administrativo das operações urbanísticas, assente na ideia
da redução do arco de intervenção, sempre que possível, dos procedimentos de
controlo prévio, reforçando-se, concomitantemente, os mecanismos de controlo
sucessivo ou à posteriori das operações urbanísticas.

Tal mudança de paradigma de atuação da Administração Pública, enquanto farol


apontado, pela atual Lei de Bases, em vista à simplificação e agilização dos pro-
cedimentos de controlo administrativo das diversas operações urbanísticas, acaba
por ter, expressa, consagração, no n.º 3, do citado art. 58.º, estabelecendo-se, em
tal comando normativo, que, nas situações em que a salvaguarda dos interesses
em causa seja compatível com a existência de um mero controlo sucessivo, a Lei
pode isentar de controlo prévio a realização de determinadas operações urbanís-
ticas, desde que as condições de realização sejam suficientemente definidas em
plano municipal.

Em síntese: a simplificação efetiva dos procedimentos de controlo administrativo


das operações urbanísticas veio a constituir um objetivo estratégico acolhido nas
políticas públicas definidas, em matéria de urbanismo, na atual LBPSOTU, objetivo
esse que acabou por ter consagração, no âmbito do RJUE, mediante a revisão dos
mecanismos de controlo administrativo das operações urbanísticas, nele, regula-
dos, com especial destaque para a disponibilização procedimental, com caráter
inovador, da figura da mera comunicação prévia5.

B - Natureza da mera comunicação prévia, à luz do RJUE, na redação do


Decreto-Lei nº 136/2014, de 9 de setembro

O procedimento da mera comunicação prévia, consagrado no RJUE, na sequên-


cia das alterações que lhe foram introduzidas, pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, tem
previsão no art. 34.º e ss do diploma, consistindo o mesmo, nos termos do n.º 2,
do citado artigo, numa declaração que, desde que corretamente instruída, permite

5 Nesse sentido, veja-se, ainda, os princípios definidos, em tal Lei, em matéria de regularização de operações urbanísticas, à luz do seu art. 59º, os quais
acabaram por ter consagração, no âmbito do RJUE, com a criação de um procedimento especial para a legalização de operações urbanísticas, conforme
resulta do disposto no seu art. 102º-A.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 113
ao interessado proceder imediatamente à realização de determinadas operações
urbanísticas, após o pagamento das taxas devidas, dispensando a prática de
quaisquer atos permissivos.

A primeira questão que deve ser colocada, face à definição legal de tal procedi-
mento de mera comunicação prévia, - embora o elemento literal da norma, em
apreço, se refira, expressamente, a comunicação prévia – é saber se tal procedi-
mento constitui, ou não, um verdadeiro regime de controlo prévio de aprovação
das operações urbanísticas previstas no RJUE, a par da licença administrativa e
da autorização administrativa, tanto mais que, nos termos do capítulo II do RJUE,
sob a epígrafe “Controlo Prévio”, são, normativamente, identificados os procedi-
mentos de licença, comunicação prévia6 e autorização de utilização, sendo, para
o efeito, concretizados, nessa área sistemática de intervenção do RJUE, o âmbito
e competência de tais procedimentos de aprovação das operações urbanísticas,
mediante a identificação das operações urbanísticas sujeitas a licença administra-
tiva, a comunicação prévia (mera comunicação) e a autorização de utilização, nos
termos do seu art. 4.º.

Ora, partindo da lógica procedimental que está confiada, no âmbito do RJUE, à


figura da comunicação prévia (mera comunicação), poder-se-á afirmar, sem gran-
des hesitações, que tal procedimento não constitui um verdadeiro controlo prévio
de aprovação das operações urbanísticas e pela razão essencial de que o mesmo
não determina ou implica a prática de qualquer ato permissivo, por parte da
Administração municipal competente, que legitime a materialização, pelo comuni-
cante, da sua pretensão urbanística.

De facto, os traços caracterizadores do procedimento de mera comunicação


prévia, atualmente, regulada no RJUE, enquanto procedimento administrativo de
aprovação das operações urbanísticas, são, sumariamente, os seguintes:

6 Sem grande rigor terminológico, o nº1, do art. 4º do RJUE acaba por fazer, expressa, menção ao procedimento de comunicação prévia com prazo, sendo
certo que, pela sua natureza, efeitos e tramitação, o RJUE, na redação do Decreto-Lei nº 136/2014, passou a contemplar, na coleção dos procedimentos
administrativos de aprovação das operações urbanísticas, um verdadeiro procedimento de mera comunicação prévia, não estando esta sujeita a qualquer
prazo.
A comunicação prévia com prazo encontra-se definida na alínea a), do nº. 2, do art. 8º, do Decreto-Lei 92/2010, de 26 de julho, consistindo numa declara-
ção efetuada pelo prestador de serviços necessária ao início da atividade, que permita o exercício da mesma quando a autoridade administrativa não se
pronuncie após o decurso de um determinado prazo, procedimento que nada tem a ver com a geometria procedimental associada à mera comunicação
prévia.

114 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
- é uma declaração apresentada, pelo interessado, acompanhada de todos os
documentos instrutórios de apresentação obrigatória;

- tal declaração, permite ao interessado/comunicante proceder, imediatamente,


à realização da correspondente operação urbanística, não tendo o mesmo que
aguardar, para o efeito, pela prática de qualquer ato, de natureza permissiva, por
parte da Administração municipal;

- a Administração municipal não dispõe de qualquer prazo ou reserva de reação, -


como acontecia na anterior figura da comunicação prévia, consagrada no RJUE,
até à publicação do Decreto-Lei nº 136/2014 – face à declaração apresentada,
pelo comunicante, titulando a mesma a respetiva operação urbanística que pre-
tende realizar;

- os efeitos de tal declaração, enquanto “via verde” para a realização das opera-
ções urbanísticas ficam, sempre, condicionados ao prévio pagamento das taxas
urbanísticas devidas7;

- tal procedimento não pode ser objeto de declaração de nulidade e não é susce-
tível de revogação, nos termos do disposto nos artigos 68º, 69º e 73º, todos do
RJUE;

- as operações urbanísticas sujeitas a tal procedimento administrativo são titula-


das pelo comprovativo eletrónico da sua apresentação, emitido pela plataforma
eletrónica, acompanhado do documento comprovativo do pagamento das taxas,
sem prejuízo dos demais documentos obrigatórios associados à operação de
loteamento, não dando, por isso, a mesma, origem à emissão de alvará;

- toda a instrução, sob pena de rejeição liminar do procedimento, deve ser con-

7 Pela natureza do procedimento de mera comunicação prévia, não implicando o mesmo a prática de qualquer ato permissivo, por parte da Adminis-
tração municipal, em vista à legítima concretização da operação urbanística, parece-nos que não existe, atualmente, facto tributário justificador, no
âmbito deste procedimento, da liquidação de taxas administrativas associadas à sua tramitação.
Todavia, é de admitir, desde que devidamente fundamentada, nos termos legais, a criação de uma taxa municipal, de natureza administrativa, asso-
ciada ao serviço prestado, pela Administração municipal, no âmbito do saneamento e apreciação liminar da mera comunicação prévia apresentada,
pelo comunicante, acompanhada de todos os documentos de apresentação obrigatória, sendo, nesta sede, defensável a existência de um verdadeiro
sinalagma, entre o serviço público prestado, pela Administração municipal, na apreciação, ainda que preliminar e formal, de tal declaração e a contra-
prestação - taxa - aplicável.
Como é evidente, não se encontra prejudicada, no âmbito da mera comunicação prévia, a liquidação e cobrança das taxas urbanísticas correlacionadas
com a realização, manutenção e reforço de infraestruturas urbanísticas, previstas no art. 116º do RJUE.

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quistada no momento da apresentação da respetiva declaração que titula a mera
comunicação prévia;

- por último, na linha do perfilhado, sobre a matéria, para os demais procedi-


mentos administrativos de aprovação das operações urbanísticas reguladas no
RJUE, trata-se de um procedimento cuja tramitação deve ser feita, informatica-
mente, através de plataforma eletrónica.

Em coerência com as razões, anteriormente, evidenciadas poder-se-á afirmar


que, face aos elementos caracterizadores do procedimento de mera comunicação
prévia, atualmente, previsto no RJUE, a mesma não constitui um procedimento
de controlo prévio das operações urbanísticas, consubstanciando, ao invés, uma
clara e relevante zona de isenção de controlo prévio.

Isto não significa, porém, que tais operações urbanísticas fiquem, absolutamente,
entregues à sua sorte e arredadas, como tal, de qualquer controlo público muni-
cipal, situação que seria, manifestamente, prejudicial, em geral, para o adequado
ordenamento do território, e, em particular, para a correta e efetiva utilização do
solo para fins urbanísticos.

O que se verifica, na prática, é uma alteração do posicionamento da Administração


Pública, em sede de controlo público de tais ações urbanísticas, remetendo-se o
apuramento do efetivo cumprimento de todas as normas legais e regulamentares
aplicáveis, em matéria de urbanismo, para um momento posterior e indissociável
do controlo sucessivo das operações urbanísticas, controlo esse que deve ser,
prioritariamente, assegurado, pela ação desenvolvida por parte da fiscalização
municipal.

Neste contexto, falhando tal controlo sucessivo, por parte dos serviços de fis-
calização municipal, assente numa lógica sistemática e preventiva de acompa-
nhamento das operações urbanísticas, então, as mesmas serão, perigosamente,
desenvolvidas, sem qualquer controlo público - prévio e ou sucessivo -, com
todas as desvantagens daí emergentes para a prossecução do interesse público,
particularmente, no que concerne à tutela efetiva dos valores da saúde pública e
da segurança, prejudicando, simultaneamente, a criação de uma cultura efetiva

116 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
e consistente de responsabilidade, a qual deve pautar a ação de todos os atores
envolvidos, direta ou indiretamente, no processo urbanístico: proprietários dos
solos, promotores, construtores civis, técnicos legalmente habilitados8.

O êxito ou inêxito do procedimento da mera comunicação prévia, decorridos mais


de 2 anos sobre a entrada em vigor do Decreto-Lei 136/2014, deve ser avaliado
partindo do nível de adesão voluntária dos interessados, a tal procedimento mais
simplificado de aprovação das operações urbanísticas9.

O próprio legislador, logo à partida, parece ter desconfiado da sua própria refor-
ma, na área do controlo público das operações urbanísticas, com a introdução do
regime da mera comunicação prévia, quando veio a consagrar, no nº 6 do art. 4º,
do RJUE, a possibilidade dos interessados poderem optar pelo procedimento da
licença administrativa, no perímetro de intervenção, preestabelecido, da comuni-
cação prévia.

Tal desconfiança, sobre a bondade e grau de aceitabilidade dos interessados, face


ao regime da mera comunicação prévia, sai, ainda, reforçada, pelo facto do RJUE,
na versão do Decreto-Lei n.º 136/2014, ter elevado o regime da licença adminis-
trativa a controlo padrão das operações urbanísticas, em detrimento da solução,
anteriormente, consagrada e consubstanciada na atribuição de tal papel procedi-
mental à comunicação prévia.

C - Tramitação da mera comunicação prévia

Embora a mera comunicação prévia, atualmente, prevista no RJUE não constitua


um procedimento de controlo prévio das operações urbanísticas, a mesma é, sob

8 A matéria fundamental relacionada com a responsabilidade dos diversos intervenientes no desenvolvimento das operações urbanísticas foi alvo das
preocupações, quer na LBPSOTU, quer no RJUE, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei 136/2014, de 09 de setembro.
Veja-se, nesse sentido, o disposto no artigo 58º da LBPSOTU e a consagração, no RJUE, do novo artigo 100º- A, sobre responsabilidade civil dos interve-
nientes nas operações urbanísticas.

9 A exigente carga instrutória que está determinada para o procedimento de mera comunicação prévia e a ausência, formal, de diálogo técnico e de
compromisso, entre o comunicante e a administração municipal, constituem fatores dissuasores da escolha, pelo interessado, do procedimento de mera
comunicação prévia.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 117
o ponto de vista da sua tramitação, desenvolvida de acordo com as seguintes
fases fundamentais:

1.ª Fase: Fase da Iniciativa:

O procedimento da mera comunicação prévia inicia-se com a apresentação da


mesma, através da plataforma eletrónica10, prevista no art. 8º-A, do RJUE, pro-
cedimento que deve ser, obrigatoriamente, instruído com todos os documentos
previstos, sobre a matéria, na Portaria nº. 113/2015, de 22 de abril11.

2.ª Fase: Fase da Instrução:

Esta fase do procedimento corporiza-se, fundamentalmente, no saneamento admi-


nistrativo e formal da mera comunicação prévia, de acordo com a remissão, cirur-
gicamente, feita no n.º 7, do art. 35.º do RJUE para a alínea a), do n.º 2 e do n.º 3,
do seu art. 11.º, o que significa, do ponto de vista procedimental, que os contornos
de tal controlo administrativo desenvolvido, nesta fase, pela Administração muni-
cipal, se circunscrevem, exclusivamente, à apreciação de quaisquer questões de
ordem formal e processual que possam obstar ao conhecimento da mera comuni-
cação prévia, estando arredada do arco, de tal intervenção, qualquer apreciação
substantiva e ou de mérito urbanístico, relacionada com a operação urbanística
comunicada.

Nesta fase, no prazo de 8 dias a contar da apresentação da comunicação, pode ser


proferido um despacho de aperfeiçoamento da comunicação quando da mesma
não conste a identificação do comunicante, da sua pretensão ou localização da
operação urbanística pretendida, bem como, no caso de faltar algum documento
instrutório exigível que seja indispensável ao conhecimento da pretensão e cuja
falta não possa ser, oficiosamente, suprida.

A confirmar-se a prática de tal despacho, o comunicante é notificado, por uma

10 Sobre esta matéria, torna-se decisiva a aposta centrada na efetiva disponibilização desta plataforma, em vista a ser assegurada a plena tramitação in-
formática do procedimento, sob pena de ficarem, seriamente, comprometidas muitas das virtualidades associadas à simplificação do procedimento e à
segurança e celeridade administrativas do mesmo.

11 Tal Portaria veio a identificar os elementos instrutórios dos procedimentos previstos no RJUE.

118 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
única vez, para, no prazo de 15 dias, compor ou completar a sua comunicação,
sob pena de rejeição liminar da mera comunicação prévia12

3ª Fase: Fase da conclusão:

Esta fase traduz-se, no essencial, no pagamento, por parte do comunicante, das


taxas urbanísticas previstas, no regulamento municipal, em vigor, sobre a matéria,
em regime de autoliquidação, e dentro do prazo estabelecido no n.º 3, do art. 34.º,
do RJUE, prazo esse que não pode ser inferior a 60 dias, contados do termo do
prazo fixado no seu n.º 2, do art. 11.º.

4ª Fase: Fase da Execução:

Esta fase diz respeito ao início efetivo das obras e ou trabalhos sujeitos ao regime
da mera comunicação prévia, sendo recomendável que o regulamento municipal
da urbanização e da edificação consagre, expressamente, que tais operações
urbanísticas ficam, também, sujeitas ao dever de informação, sobre o início dos
correspondentes trabalhos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 80º-A
do RJUE.

Tal dever de informação é essencial, em vista a permitir desenvolver, de forma


planeada, a atividade de fiscalização municipal centrada no controlo sucessivo e
oportuno de tais operações urbanísticas.

D – Controlo sucessivo das operações urbanísticas sujeitas a mera comuni-


cação prévia

Nos termos do disposto no nº8, do art. 35º, do RJUE, na sua redação atual, a

12 Embora esta atuação não tenha consagração na disciplina normativa fixada, no RJUE, em matéria de saneamento e apreciação liminar da mera comunica-
ção prévia, julgamos recomendável, por razões de natureza preventiva e em homenagem aos princípios da boa fé procedimental e da boa administração,
que a Administração municipal, perante uma mera comunicação prévia apresentada e que evidencie, grosseiramente, a violação das normas legais e
ou regulamentares aplicáveis, não tenha sido antecedida dos pareceres, autorizações ou aprovações legalmente exigidas ou não se conforme com os
mesmos, emita um “alerta”, dirigido ao comunicante, nesta fase de saneamento, evidenciando, tal desconformidade substantiva, dando-lhe, simulta-
neamente, nota que, do procedimento, em apreciação, não poderão ser extraídos os efeitos associados à declaração apresentada, particularmente, no
que concerne à imediata realização da operação urbanística, sob pena de acionamento dos mecanismos legais colocados à disposição da Administração
- cassação da comunicação e eventual embargo administrativo - que tornem inviável a efetiva materialização da operação urbanística, e desde que o
comunicante não manifeste intenção de proceder à regularização do pedido.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 119
Câmara Municipal deve, em sede de fiscalização sucessiva, inviabilizar a execução
das operações urbanísticas objeto de comunicação prévia e promover as medidas
necessárias à reposição da legalidade urbanística, quando verifique que não foram
cumpridas as normas e condicionantes legais e regulamentares, ou que estas não
tenham sido precedidas de pronúncia, obrigatória, nos termos da lei, das entida-
des externas competentes, ou com ela não se conformem.

Sendo certo que tal dever de fiscalização, nos termos anteriormente configurados,
caduca 10 anos após a data de emissão do título da comunicação prévia13.

A previsão, na atual redação do RJUE, de um regime próprio de fiscalização das


operações urbanísticas sujeitas a mera comunicação prévia, embora sendo uma
solução, técnica e administrativamente, compreensível, face à natureza do próprio
procedimento e, sobretudo, ao facto do mesmo consubstanciar uma verdadeira
isenção de controlo prévio municipal, tem suscitado algumas dificuldades inter-
pretativas e operacionais, as quais, não sendo dirimidas, poderão comprometer o
efetivo controlo sucessivo destas operações urbanísticas.

Tais inquietações poderão ser recortadas e ou sintetizadas em três dimensões ou


planos de análise, a saber:

Primeira dimensão: coordenação e ou compatibilização das ações de fiscalização


perspetivadas, agora, para as operações urbanísticas sujeitas a mera comunica-
ção prévia, à luz do citado n.º 8, do art. 35.º do RJUE, com a clássica fiscalização
administrativas das operações urbanísticas, desde sempre, prevista no seu art.
93.º, estabelecendo-se, em tal disposição legal, um princípio fundamental associa-
do ao facto de que a realização de quaisquer operações urbanísticas está sempre
sujeita a fiscalização administrativa, independentemente de estarem isentas de
controlo prévio ou da sua sujeição a prévio licenciamento, comunicação prévia ou
autorização de utilização;

13 Este regime de caducidade previsto no nº. 9, do art. 35º do RJUE não pode atingir, salvo melhor opinião, a ação de fiscalização, diga-se, permanente e
intemporal, confiada à Administração municipal, nos termos do disposto no art. 93º do RJUE, ou seja, a fiscalização administrativa que incide sobre a
realização de quaisquer operações urbanísticas, independentemente da sua sujeição, ou não, a controlo prévio municipal.
Tal ação de fiscalização administrativa não pode, nesta perspetiva, sair prejudicada, pela previsão da norma retrocitada, contida no nº. 9, do art. 35º,
devendo a mesma ser, exclusivamente, contextualizada, em sede de controlo sucessivo – que não fiscalização administrativa – das operações urbanísticas
abrangidas por mera comunicação prévia.

120 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Segunda dimensão: definição, do ponto de vista competencial, dos órgãos muni-
cipais que devem assegurar e coordenar as ações de fiscalização municipal, quer
no âmbito das operações urbanísticas sujeitas a mera comunicação prévia – con-
trolo sucessivo -, quer no âmbito das diversas operações urbanísticas sujeitas a
fiscalização administrativa, aplicando-se, se necessário, as medidas de reposição
da legalidade urbanística ofendida previstas no RJUE;

Terceira dimensão: identificação, no âmbito da fiscalização sucessiva, prevista no


n.º 8, do artigo 35.º do RJUE, tendo por objeto as operações urbanísticas sujei-
tas a mera comunicação prévia, das medidas concretas, colocadas, legalmente,
à disposição da entidade municipal, que possam inviabilizar a execução de tais
operações que se desviem do princípio da legalidade.

Começando pela primeira dimensão da matéria, anteriormente, delimitada e, apa-


rentemente, controvertida, parece ter sido intenção do legislador proceder a uma
distinção material, entre a ação de controlo público das operações urbanísticas
sujeitas a mera comunicação prévia, relativamente à clássica ação de fiscaliza-
ção administrativa que, em geral, se encontra prevista para todas as operações
urbanísticas, independentemente do controlo prévio aplicável ou sua isenção, de
acordo com o artigo 93.º do RJUE.

De facto, a ação de fiscalização das operações urbanísticas abrangidas por mera


comunicação prévia, mais do que um controlo administrativo, à posteriori, da sua
conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis - fiscalização
administrativa - exige uma ação, integrada e sucessiva, sobre o comportamento
do comunicante, no sentido de inviabilizar que o mesmo promova e ou execute,
embora estribado na declaração apresentada - “mcp” -, a operação urbanística
ao arrepio do quadro normativo, em vigor, e, mais do que isso, adote as medidas
necessárias, em tempo oportuno, à reposição da legalidade urbanística.

Trata-se, assim, de uma ação de fiscalização que consubstancia, mais do que


uma fiscalização sucessiva, um verdadeiro controlo sucessivo, de tais operações
urbanísticas, sempre perspetivado numa dupla dimensão:

-i nviabilização da execução de tais operações urbanísticas que se mostrem con-


trárias ao princípio da legalidade;

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 121
- aplicação das medidas de reposição da legalidade que se mostrem adequadas
e proporcionais ao devido cumprimento do quadro normativo urbanístico que,
eventualmente, seja ofendido.

Esta visão integrada, agora, conferida ao acompanhamento das operações


urbanísticas sujeitas a mera comunicação prévia, transformou, tal tarefa muni-
cipal, desenvolvida pelos serviços municipais de fiscalização, num verdadeiro
controlo sucessivo que, para além dos aspetos administrativos que devem ser
observados, em sede de execução das operações urbanísticas, deve também,
acautelar, de forma sistemática, preventiva e integrada, a conformidade das
mesmas, com todas as normas legais e regulamentares, de natureza urbanísti-
ca, aplicáveis, adotando, em caso de desvio a tal bloco de legalidade, as medi-
das que se mostrem adequadas à sua inviabilização e à reposição da legalidade
urbanística ofendida.

E é, precisamente, partindo deste conceito mais rico e exigente, indissociável


do controlo sucessivo das operações urbanísticas, agregando todo o ciclo de
vida da sua execução e determinando a aplicação de todas as medidas que
garantam a sua inviabilização material, em caso de ilegalidade, que justifica
que, organicamente, tal competência esteja, legalmente, confiada à Câmara
Municipal, nos termos do disposto no n.º 8, do art. 35.º do RJUE.

Sendo certo que a inércia e ou inoportunidade na adoção de tais medidas, par-


ticularmente, de todas aquelas que possam impedir e ou inviabilizar tais ope-
rações urbanísticas, por violação do quadro legal, em vigor, podem determinar
o apuramento, junto dos membros da Câmara Municipal, de responsabilidade
civil, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 3, do art. 70.º do RJUE.

Tanto mais que o retardamento inusitado na aplicação, pelo órgão executivo


municipal, de tais medidas de inviabilização da realização das operações urba-
nísticas abrangidas por mera comunicação prévia, violadoras do quadro legal,
em vigor, pode ser, potencialmente, gerador de prejuízos, junto do comunican-
te, os quais são suscetíveis de configurar o apuramento de responsabilidade
civil, à luz da citada disposição legal do RJUE (alínea d), do n.º 3, do art. 70.º),
sendo, para o efeito, solidariamente responsáveis todos os membros do exe-
cutivo municipal.

122 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
Neste plano de análise, e em resposta à segunda dimensão da matéria, ora, em
apreciação, - competência -, poder-se-á afirmar que o controlo sucessivo das
operações urbanísticas sujeitas a mera comunicação prévia, à luz do argumen-
tário, anteriormente, perfilhado, está, legalmente, confiado, a favor da Câmara
Municipal, não havendo qualquer sobreposição ou conflito com as competências
confiadas, a favor do Presidente da Câmara, no âmbito da fiscalização administra-
tiva das operações urbanísticas prevista no art. 93.º do RJUE.14

Por último, e no que concerne à identificação de medidas concretas que devem


ser postas em marcha, pela Câmara Municipal, em vista à inviabilização das ope-
rações urbanísticas sujeitas a mera comunicação prévia, cuja realização viole o
princípio da legalidade, devem ser destacadas as seguintes medidas, tendo em
atenção o seu grau de eficácia e de eficiência:

- existindo uma séria probabilidade de que operação urbanística comunicada


vai ser, efetivamente, realizada, em desconformidade com as normas legais e
regulamentares, em vigor, na medida em que o comunicante já autoliquidou
as taxas urbanísticas correspondentes, tendo, também, comunicado o início
dos trabalhos, para efeitos do art. 80.º-A, do RJUE, deverá ser determinado
o embargo administrativo, mesmo que a obra, em causa, ainda não se tenha
iniciado, ficando, os efeitos administrativos da ordem de embargo, sujeitos a
uma condição suspensiva, no caso, o efetivo desenvolvimento dos trabalhos,
a qual, logo que verificada, permitirá a plena produção dos seus efeitos15;

14 É de admitir, nos termos das disposições combinadas previstas, sobre a matéria, no anexo I, da Lei 75/2013, de 18 de setembro, diploma que estabelece
o regime jurídico das Autarquias Locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências
do Estado para as Autarquias Locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico, e no CPA, em vigor, a
delegação, de tal competência, no Presidente da Câmara, desde que cumpridos todos os pressupostos legais indispensáveis à prática do ato de delegação.

15 Veja-se, nesse sentido, o disposto no nº.2, do art. 149º do CPA.


No âmbito da ponderação da aplicação desta medida administrativa, devem, também, merecer a devida atenção todos os aspetos correlacionados com
eventuais infrações cometidas, pelos autores dos projetos, nas declarações, por estes, emitidas, para efeitos do disposto no art. 10º do RJUE, sob a
epígrafe “ Termo de responsabilidade”.
De facto, nos termos do disposto no nº6, do retrocitado artigo, sempre que forem detetadas irregularidades nos termos de responsabilidade, no que
respeita às normas legais e regulamentares aplicáveis e à conformidade do projeto com os planos municipais ou intermunicipais de ordenamento do
território ou licença de loteamento, quando exista, devem as mesmas ser comunicadas à associação pública de natureza profissional onde o técnico está
inscrito ou ao organismo público legalmente reconhecido no caso dos técnicos cuja atividade não esteja abrangida por associação pública.
Dentro deste feixe de responsabilidades, dever-se-á, ainda, salientar que, nos termos das disposições combinadas previstas na alínea f), do nº1, do art.
98º e art. 100º, todos do RJUE, as falsas declarações no termo de responsabilidade constituem, sem prejuízo da responsabilidade civil ou disciplinar,
contraordenação sendo, também, suscetíveis de apuramento de responsabilidade criminal, integrando o crime de falsificação de documentos, nos termos
do art. 256º do Código Penal.

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- cassação do título da comunicação prévia, pelo Presidente da Câmara, quan-
do a mesma comunicação caduque, não cumpra as normas legais ou regula-
mentares aplicáveis, não tenha sido antecedida dos pareceres, autorização ou
aprovações legalmente exigidos ou não se conforme com os mesmos, à luz
do art. 79º do RJUE, sendo certo que tal decisão deverá ser operacionalizada
através do averbamento da referida cassação à informação constante da pla-
taforma eletrónica;

- declaração de caducidade do procedimento da mera comunicação prévia, nos


termos do disposto no º. 2, do art. 71º do RJUE, quando o comunicante, nos
termos do prazo legalmente concedido, não proceda ao pagamento das taxas
urbanísticas devidas, sendo determinada a imediata cessação da operação
urbanística e a cassação do respetivo título.

III - MODELO DE FISCALIZAÇÃO MUNICIPAL:


DEBILIDADES E SOLUÇÕES

Os contributos, seguidamente, apresentados têm como objetivo nuclear, no âmbi-


to do RJUE, proceder a uma identificação, diga-se, não exaustiva, das principais
debilidades registadas no exercício regular, por parte dos Municípios, do seu
poder-dever de fiscalização das operações urbanísticas, e, bem assim, da oportu-
na aplicação das medidas de reposição da legalidade urbanística, com incidência,
no plano orgânico, procedimental e operacional, identificando, simultaneamente,
possíveis ações de melhoria, com projeção no modelo de fiscalização municipal.

Na perspetiva orgânica, compulsados diversos regulamentos, em vigor, sobre a


organização dos serviços municipais, os mesmos apontam, na sua generalidade,
para a integração da unidade orgânica municipal responsável, pela fiscalização
municipal, no âmbito de uma unidade nuclear responsável pela gestão urbanística,
assegurando esta, no seu arco nuclear de atuação, a tramitação e acompanha-
mento dos pedidos de aprovação das operações urbanísticas reguladas no RJUE.

Ora, de acordo com o quadro legal em vigor, a realização de qualquer operação

124 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
urbanística está sujeita a fiscalização administrativa, tendo a mesma como objeto
garantir a adequada conformidade daquelas operações com as normas urbanís-
ticas aplicáveis.

Trata-se, assim, de uma fiscalização eminentemente administrativa, repousando


a sua eficácia na adequada ponderação e aplicação de todos os procedimentos
legais, preocupação que deve ser reforçada quando, na sequência de tais ações
de fiscalização, as mesmas vêm a determinar a aplicação de medidas de tutela
da legalidade urbanística, enquanto resposta adequada à reposição da legalidade
urbanística ofendida - entre outras, embargo, legalização, demolição da obra ou
cessação da utilização -.

Sendo certo que, com alguma frequência, tais decisões administrativas acabam
por ser, indevidamente, fundamentadas, não dando cumprimento aos pressupos-
tos, formais e materiais, que estão, legalmente, estatuídos, sobre a matéria, cons-
tituindo, por isso, presa fácil no sentido da sua ulterior impugnação, por parte dos
infratores, com todos os inconvenientes daí decorrentes para a credibilização do
sistema de fiscalização municipal.

Acresce que, qualquer que seja o modelo de fiscalização municipal concebido, o


mesmo não poderá ignorar o novo regime de controlo sucessivo das operações
urbanísticas sujeitas a mera comunicação prévia, controlo esse, sublinhe-se,
muito mais exigente, no sentido de permitir inviabilizar, com oportunidade e segu-
rança jurídicas, a execução de tais operações quando as mesmas se afastam da
legalidade associada ao pleno cumprimento das normas legais e regulamentares,
em vigor.

Tudo isto, sob pena da realização de tais operações urbanísticas ficarem, exclusi-
vamente, dependentes da sua sorte e da lealdade e ou boa vontade dos comuni-
cantes, ficando, as mesmas, destituídas, quer do controlo prévio, quer do controlo
sucessivo, com claros prejuízos para o interesse público prosseguido, na gestão
do território municipal, comprometendo, ainda, o clima de paz e segurança que
deve prevalecer nas relações que se estabelecem entre todos os atores do pro-
cesso urbanístico.

A conciliação desejável de interesses - público e privado - será, assim, seriamente,

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abalada pelo desgoverno e ou irresponsabilidade indissociáveis de um controlo
público sucessivo das operações urbanísticas sujeitas a mera comunicação prévia,
formalmente, concebido mas, na prática, operacionalmente, inexistente, realidade
que, a verificar-se, acabaria por traduzir a metáfora que deu título aos presentes
comentários, ou seja, “toda a gente ralha e ninguém tem razão!”.

Para além de tal debilidade orgânica, poder-se-ão destacar outras fragilidades


que, sem correr o risco de um juízo generalizado de atuação, diga-se, sempre
perigoso, marcam a ação da fiscalização municipal, a saber:

- ausência de um modelo de fiscalização municipal;

- excessiva politização do setor de fiscalização municipal;

- ausência de trabalho em equipa;

- indesejável confusão entre a atividade administrativa de fiscalização e a ativi-


dade de fiscalização associada à inspeção técnica;

- ausência de padronização de procedimentos de atuação;

- ausência de uma fiscalização municipal permanente16.

Neste quadro de análise, impõe-se, salvo melhor opinião, uma reponderação do


modelo organizacional perfilhado para o setor de fiscalização municipal, o qual
deve passar a assentar nos seguintes pressupostos fundamentais:

- criação de um corpo de fiscais municipais especialmente vocacionado para a


área de intervenção municipal associada ao acompanhamento, técnico e admi-
nistrativo, das operações urbanísticas, quer no plano da fiscalização admi-
nistrativa - intervenção clássica -, quer no plano do controlo sucessivo, com
incidência nas operações urbanísticas sujeitas a mera comunicação prévia.

Neste contexto, impõe-se, salvo melhor opinião, uma revisão da carreira de fiscal
municipal, no sentido da mesma ser constituída por diferentes categorias, garan-

16 Dá mesmo vontade de dizer, numa perspetiva caricatural, que, no atual modelo de fiscalização municipal, com honrosas exceções, durante o fim-de-
-semana, não há cometimento de infrações!

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tindo, por esta via, a pluridisciplinaridade da ação de fiscalização, dando a mesma
resposta, não só à componente administrativa, mas também à sua não menos
importante componente técnica, fiscalizando e controlando, sucessivamente, o
cumprimento de todos os projetos, de natureza técnica, que dão suporte à apro-
vação da operação urbanística, em execução, devendo, nesse sentido, tal carreira,
contar com a integração de uma categoria técnica superior 17/18.

- sua integração, em unidade orgânica municipal, que disponha de apoio jurídi-


co permanente e necessário ao acompanhamento da ação desenvolvida pelo
setor de fiscalização19.

- introdução de uma cultura cada vez mais preventiva de atuação, em detri-


mento de uma postura quase sempre reativa, objetivo que apenas poderá ser
conquistado, desde que:

a) seja devidamente planeada a atividade do setor, calendarizando as ações de


fiscalização municipal tendo por base as operações urbanísticas aprovadas e
em execução e sua projeção na correspondente área de intervenção territorial;

b) seja dotado o setor de um adequado regulamento municipal, prevendo, de


forma geral e abstrata, as regras que deverão ser observadas, no exercício das
suas competências - padronização de procedimentos - sendo, nele, consagra-
das duas medidas tidas como basilares, em vista à boa eficiência e eficácia da
ação de fiscalização, a saber:

17 A convite da Associação Nacional de Fiscais Municipais, veio a ser preparada proposta técnica tendo, precisamente, como objeto a revisão da carreira
de Fiscal Municipal e a criação de uma categoria correspondente a técnico superior. A referida proposta encontra-se, em fase de apreciação, junto da
Secretaria de Estado das Autarquias Locais.

18 A agregação funcional de técnicos superiores, designadamente nas áreas da engenharia e ou da arquitetura, no âmbito das ações de fiscalização municipal
- fiscalização administrativa e ou controlo sucessivo das operações urbanísticas -, constitui, seguramente, uma boa medida de gestão, em vista à melhoria
qualitativa do papel, quotidianamente, desenvolvido, pelas equipas de fiscalização, conferindo-lhes, por esta via, uma dimensão pluridisciplinar, com
ganhos efetivos no controlo técnico, à posteriori, das operações urbanísticas.
Esta solução gestionária dos recursos humanos da Autarquia, afetos à atividade de fiscalização, tem enquadramento legal, nos termos do disposto no
nº. 3, do art. 94º do RJUE, prevendo-se, em tal norma jurídica, que, no exercício da fiscalização, o Presidente da Câmara é auxiliado por funcionários
municipais com formação adequada a quem incumbe preparar e executar as suas decisões.
Neste contexto, na qualidade de técnicos superiores, poderão, tais colaboradores municipais, participar, ativamente, nas ações de fiscalização, aportando,
os mesmos, do ponto de vista técnico, uma resposta mais qualificada, sobretudo, em sede de controlo sucessivo das operações urbanísticas sujeitas a
mera comunicação prévia.

19 O modelo de fiscalização municipal deverá ser recentrado no sentido de permitir uma adequada distribuição de tarefas: os agentes de fiscalização narram
com objetividade os factos suscetíveis de infração; o setor jurídico enquadra, juridicamente, tais factos e propõe as respetivas medidas; os agentes
políticos competentes decidem com oportunidade.

M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a 127
i) identificação de um prazo máximo que deve ser observado, pelo setor
de fiscalização, em vista à realização do primeiro episódio de fiscalização
às operações urbanísticas, em curso, sendo certo, que tal prazo máximo
deverá ser, substantivamente, mais curto, nas operações urbanísticas
sujeitas a mera comunicação prévia, no caso, e como regra geral, 8 dias
contados desde a comunicação do início dos trabalhos, feita, pelo comu-
nicante, à luz do art. 80º-A do RJUE (autovinculação ao primeiro episódio
de fiscalização ou de controlo sucessivo);

ii) autovinculação dos órgãos municipais competentes à prática da compe-


tente decisão administrativa emergente das ações de fiscalização – medida
de reposição da legalidade, instauração de processo de contraordenação,
entre outras – dentro do prazo máximo, para o efeito, fixado no regula-
mento, sendo o mesmo contado, a partir do momento em que os órgãos
municipais competentes, na área de intervenção da fiscalização municipal,
tomam, efetivo, conhecimento do relatório de fiscalização contendo este,
com objetividade, a proposta de atuação a adotar, legalmente, fundamen-
tada, sugerindo-se, para o efeito, o prazo máximo de 8 dias, sem prejuízo
das situações urgentes, em que tais decisões devem ser praticadas de
forma imediata, após o formal conhecimento de tal relatório (autovincula-
ção à decisão).

- introdução de mecanismos eletrónicos, no exercício da atividade de fiscaliza-


ção: aplicação do livro de obra eletrónico e criação de uma plataforma eletró-
nica de fiscalização municipal centralizadora de toda a informação relevante;

- por último, desenvolvimento da atividade de fiscalização às operações urba-


nísticas relevantes, repousando a mesma em três etapas ou fases fundamen-
tais e traduzidas em efetivas visitas ou inspeções da fiscalização municipal:

i) Primeira fase: início dos trabalhos;

ii) Segunda fase: imediatamente após a operação urbanística se encontrar


em estado avançado de execução;

iii) Terceira fase: conclusão da operação urbanística.

128 M U N I C I PA L I S M O | R e v i s t a C i e n t í f i c a
IV - CONCLUSÕES FINAIS

Atendendo a este “novo tempo” decorrente das sucessivas reformas introdu-


zidas ao regime jurídico da urbanização e da edificação, fácil se torna concluir
que, num futuro muito próximo, o papel da Administração Local deve ser
recentrado no sentido da sua intervenção ser cada vez mais exigente ao nível
do controlo sucessivo das operações urbanísticas, em prejuízo do seu controlo
prévio, cada vez mais simplificado e com menor intervenção administrativa,
repousando este nos princípios da confiança e da responsabilidade orienta-
dores da ação desenvolvida por todos os atores envolvidos no processo de
urbanização - Administração Pública, promotores e projetistas -.

A ser assim, importa dotar a Administração Municipal de um modelo de fis-


calização que possa dar resposta, eficaz e eficiente, a este novo paradigma
de aprovação das diversas operações urbanísticas, passando a dispor de um
setor municipal de fiscalização servido dos meios indispensáveis ao adequado
acompanhamento – sistemático e preventivo – das operações urbanísticas,
permitindo, simultaneamente, punir, com exemplaridade, todos os prevarica-
dores.

Esta parece ser a única via possível, no sentido de repor a necessária credi-
bilidade, nesta área tão decisiva de intervenção municipal, sobre a qual recai,
atualmente, um manto de desconfiança, particularmente, no que concerne à
efetiva aplicação das medidas de tutela da legalidade urbanística.

Julgamos que a eficácia da ação fiscalizadora confiada aos Municípios, em


matéria de acompanhamento das operações urbanísticas, não se ganha por
Decreto. Ganha-se com organização e atitude no sentido de cumprir e fazer
cumprir as normas urbanísticas em vigor, tarefa insubstituível, em vista a garan-
tir a boa organização do nosso território, nada compaginável com o conjunto
de infrações urbanísticas que, lamentavelmente, continuam a passar incólumes
por entre as gotas da chuva.

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E S TAT U T O D A R E V I S TA
Artigo 1.º
Natureza e objeto
a) “Municipalismo” é uma revista científica nas áreas temáticas do Poder Local e afins, cujos
objetivos, estrutura e funcionamento se encontram regulados no presente estatuto.
b) A revista pretende constituir-se como uma referência e um meio de comunicação entre
a comunidade científica, investigadores, docentes, estudantes e profissionais ligados à
Administração Autárquica.
Artigo 2.º
Conteúdo
Os artigos a publicar na revista devem ser originais, sendo sujeitos a parecer prévio do Con-
selho Consultivo.
Artigo 3.º
Difusão
A revista é distribuída às entidades definidas pela Associação dos Trabalhadores da Adminis-
tração Local (ATAM) e vendida mediante preços por esta fixados.
Artigo 4.º
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A revista destina-se a ser divulgada pelos municípios e demais entidades ligadas ao Poder
Local, e a ser vendida a todos os interessados da comunidade científica, investigadores, do-
centes, estudantes e profissionais das áreas da Administração Autárquica.
Artigo 5.º
Propriedade
A revista “Municipalismo” é uma publicação que é propriedade da ATAM.

Artigo 6.º
Órgãos
São órgãos da revista “Municipalismo”:
a) Direção;
b) O Conselho Consultivo.
Artigo 7.º
Direção
1. A Direção é constituída por um Diretor e dois Diretores Adjuntos.
2. O Diretor é, por inerência, o Presidente da Direção da ATAM.
3. O Diretor é coadjuvado pelos Diretores Adjuntos, sendo o primeiro, por inerência, um Dele-
gado Distrital ou Regional da ATAM, e o segundo escolhido de entre os parceiros da ATAM.

4. Compete à Direção:
a) Aprovar o Regulamento Interno;

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b) Propor à Direção da ATAM a nomeação, renovação e destituição dos membros do Conse-
lho Consultivo;
c) Sugerir à Direção da ATAM as entidades a quem deve ser distribuída a revista, e o preço de
venda;
d) Manter em sigilo os autores dos artigos recebidos, até decisão da publicação pelo Conse-
lho Consultivo, bem como daqueles que, por decisão do mesmo órgão, não sejam publi-
cados;
e) Deliberar sobre quaisquer assuntos que não estejam previstos no presente estatuto e no
regulamento.
Artigo 8.º
Conselho Consultivo
1. O Conselho Consultivo é composto por cinco membros.
2. Os membros são nomeados pela Direção da ATAM, pelo período de dois anos, renovável.
3. Compete ao Conselho Consultivo:
a) Analisar o teor dos artigos para publicação;
b) Definir o conteúdo da revista e promover a publicação dos artigos, de forma a salvaguardar
a sua coerência e objetivos.
c) Devolver à Direção todos os artigos que não se enquadrem nas áreas científicas da revista;
Artigo 9.º
Remuneração dos Órgãos
Os titulares dos órgãos da revista científica, têm direito a senhas de presença e despesas de
deslocação, nos termos a definir pela Direção da ATAM.

Artigo 10.º
Autonomia
1. A revista científica deverá garantir o pluralismo, de forma a gerar um debate no âmbito do
municipalismo.
2. A revista científica tem autonomia editorial perante a ATAM e será dotada de orçamento
próprio, a suportar por aquela, e por receitas próprias.

Artigo 11.º
Incompatibilidades
1. São incompatíveis as funções de membro da Direção da ATAM e do Conselho Consultivo.
2. Os membros da Direção da ATAM e do Conselho Consultivo só podem apresentar artigos
para publicação se aprovados por aquela.

Artigo 12.º
Interpretação
A resolução de quaisquer dúvidas que, porventura, sejam suscitadas na aplicação do presente
estatuto, são da competência da Direção da ATAM.

Artigo 13.º
Publicidade
O presente estatuto é publicitado na revista e disponibilizado no website da ATAM.

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Os artigos não devem ultrapassar as 20 páginas, com entrelinha a 1,5, em caracteres Times
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liação institucional do(s) autor(es), resumo do artigo (não excedendo as 250 palavras).

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sentados, preferencialmente, no corpo do artigo, numerado sequencialmente e com
título. A indicação da sua localização deve ser feita no corpo do artigo entre parêntesis.

Notas – Devem ser reduzidas ao mínimo, numeradas sequencialmente as notas colo-


cadas em rodapé.

Referências – Devem ser citadas ao longo do texto, segundo as normas do Publication


Manual da American Psychological Association (APA), como ilustram os seguintes
exemplos:

Hill, M., & Cochran, W. (1997). Into print: A pratical guide to writing, illustrating, and pub-
lishing. Los Altos. CA: William Kaufman.

Reisman, S.J. (1962). A style manual for technical writers and editors. New Work:
Macmillan.

A lista de referências bibliográficas deve ser organizada alfabeticamente.

Direitos de autor – Depois da sua publicação, os artigos passam a ser propriedade


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bilidade dos autores.

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A revista “Municipalismo”, criada em 2009, é propriedade da ATAM – Associação dos


Trabalhadores da Administração Local, tem uma periodicidade bianual e é impressa
pela Ediliber – Editora de publicações, Ld.ª, de Coimbra.

É uma publicação de natureza técnico-científica, que pretende ocupar um novo espa-


ço a nível autárquico e que privilegia a divulgação de trabalhos finais de mestrado e
de doutoramento, bem como estudos e ensaios de trabalhos de natureza técnica e
experimental, elaborados no seio da Poder Local. Visa contribuir, não só para uma
melhor informação, formação e valorização profissional e cultural dos trabalhadores
e eleitos da Administração Local, mas também para um mais elevado desempenho
profissional e político.

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