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2.

DO ESTADO LIBERAL AO SOCIAL

Os valores como a dignidade da pessoa humana, ser privado da vida pública e, portanto, de dignidade
liberdade e igualdade entre os homens já eram tidos plena, somente observada aos homens livres no pen-
tanto na filosofia clássica quanto no pensamento cris- samento.
tão; tanto é assim que a democracia foi idealizada em Ensina Fábio Rodrigues Gomes que, a partir des-
Atenas e tinha como mote a noção de que o homem ta perspectiva, a noção de privacidade significava
era livre e detentor de individualidade, exercida na que o indivíduo estava sendo “privado” daquilo que
polis, local onde o “homem livre” poderia exercitar ele considerava mais importante: a participação na
com igual liberdade a fala, expressando-se, somente esfera pública. Assim, “os homens que precisassem
existindo enquanto pessoa no espaço público. laborar e tivessem restritos o seu convívio na polis
Evidente que não se pode afirmar sejam tais em- em virtude das necessidades ordinárias da vida esta-
brionários direitos tidos como fundamentais segun- riam inferiorizados perante os demais, pois não lhes
do a versão moderna, porquanto somente o homem seria dada a oportunidade de mostrar quem realmen-
não trabalhador e liberto da necessidade de laborar te eram”(1). Concebia-se o escravo como algo seme-
para sobreviver era considerado homem livre, sen- lhante ao animal doméstico, tendo-se que este não
do ignorada na Antiguidade a noção de que todos tinha acesso à esfera pública, perdendo, “além da sua
os homens, por simplesmente serem humanos, são liberdade, todo o seu mérito, ficando alijado de qual-
detentores dos mesmos direitos. quer pretensão de imortalidade, visto que por serem
O próprio conceito de privacidade era bem di- obscuros, morreriam sem deixar vestígio algum de
verso do modernamente concebido. O homem, gre- terem existido”(2).
go ou romano, tinha noção da sua mortalidade e, Nesse contexto de exclusão, não se pode afirmar
como desejava vencer tal condição, somente lograva que havia direitos fundamentais, segundo a noção
conseguir tal intento com o pensamento, considera- moderna, já na antiguidade.
do imortal, e o fazia através do discurso no espaço Todavia, tanto na Grécia, berço da democracia,
público, na vã tentativa de edificar uma dignidade quanto em Roma, estuário da república, não se fazia
extraordinária a marcar a sua existência na Terra de presente a ideia de poder político ilimitado, tão en-
modo peremptório. contrada na Idade Média nos governantes e até nas
Com tanta obsessão em se eternizar, por ter certe- próprias relações privadas, através do feudalismo.
za de sua existência passageira e terrena, as necessi- Konder Comparato(3), citando Aristóteles, in-
dades básicas e fisiológicas humanas eram relegadas forma que este, em sua Ética a Nicômaco, relata o
aos homens não livres, assim considerados aqueles diálogo havido entre o rei dos persas, Xerxes, e um
que estavam privados da expressão na esfera públi- antigo rei de Esparta. Na oportunidade, o soberano
ca, pois precisavam laborar para sobreviver. Surge o persa, prestes a invadir a Grécia, manifestou o pro-
animal laborans, homem tido como o mais desenvol- fundo desprezo que lhe inspirou aquele povo pouco
vido dentre todos os animais presentes na Terra, mas numeroso, composto de pessoas todas iguais e livres
não apto a ser tratado como homem, exatamente por e que não obedeciam a um chefe único. O espartano

(1) GOMES, Fábio Rodrigues. O direito fundamental ao trabalho: perspectivas histórica, filosófica e dogmático-analítica.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 274-275.
(2) GOMES, Fábio Rodrigues. O direito fundamental ao trabalho: perspectivas histórica, filosófica e dogmático-analítica.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 274-275.
(3) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 41.
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retrucou, dizendo que se os gregos são livres, a sua ao Parlamento, criando-se, assim, a divisão de pode-
liberdade não é completa: eles têm um senhor, a lei, res, recusando-se, por consequência, o arbítrio a que
que eles temem mais do que os súditos ao rei. Surgiu os súditos se submetiam pela força do monarca.
aí, nesse momento da história, o embrião da ideia de
Estado de direito. 2.1 O PARADIGMA DO ESTADO LIBERAL DE
Após a queda do império romano do Ocidente, DIREITO
em 453 da era cristã, instalou-se uma nova civiliza-
ção, fortemente marcada pela concentração de poder Mesmo antes de as colônias britânicas se decla-
na figura da nobreza e do clero, o que ensejou a pró- rarem independentes, reuniram-se em um congres-
pria ideia de limitação do poder, com sucesso apenas so continental, em 1774, tendo-se recomendado, na
no final do século XVIII, através da libertação das oportunidade, a formação de governos independentes.
treze colônias inglesas no território hoje reconhecido O Estado da Virgínia esteve na vanguarda e, em 12 de
como Estados Unidos da América, em 1776, e a revo- janeiro de 1776, fez publicar a sua própria declara-
lução burguesa de 1789, ocorrida na França. ção de direitos, documento intitulado “Declaração do
O marco inicial sobre a evolução dos direitos Bom Povo da Virgínia”, onde se lê, no artigo I, que
humanos é tido como a Magna Charta Libertatum, todos os homens são por natureza igualmente
firmada em 1215 pelo Rei João Sem Terra e pelos bis- livres e independentes, e têm certos direitos ine-
pos e barões ingleses para garantir aos nobres alguns rentes, dos quais, quando entram em qualquer es-
direitos feudais, relegando-se, no entanto, tais “di- tado de sociedade, não podem por qualquer acor-
reitos” à população (mais adiante, na Idade Média, do, privar ou despojar os pósteros; quer dizer, o
considerado o “Terceiro Estado”) não nobre e fora do gozo da vida e liberdade, com os meios de ad-
clero, o que demonstra igualmente o intuito exclu- quirir a possuir propriedade, e perseguir e obter
dente de tal carta de direitos, que apenas serviu como felicidade e segurança(5).
ponto de partida de alguns direitos e liberdades civis
clássicos, como o habeas corpus, o devido processo Duas semanas após, a “liberdade” e a busca da
legal e a garantia da propriedade, não trazendo à baila “felicidade” foram repetidas na Declaração da Inde-
reais direitos fundamentais com intuito generalizan- pendência dos Estados Unidos como direitos ineren-
te. tes à condição humana, tendo a referida carta a im-
Ingo Wolfgang Sarlet aponta que todos os docu- portância de ter sido o primeiro documento político a
mentos libertários firmados nos séculos XVI e XVII, reconhecer a existência de direitos inerentes a todo ser
a exemplo do Édito de Nantes, promulgado por Hen- humano, independente das diferenças de sexo, raça,
rique IV na França, em 1598, que tratou da liberdade religião, cultura ou posição social, tudo a partir da le-
religiosa, apesar de terem contribuído decisivamente gitimidade da soberania popular, o que, na Europa,
para a formação teórica do movimento liberal bur- somente ocorreu com a revolução burguesa de 1789.
guês, não podem ser tidos como documentos que Em 1787, onze anos após a criação dos Estados
encerravam direitos fundamentais, pois poderiam confederados, surgiu a primeira Constituição escrita
ser arbitrariamente substituídos pela autoridade mo- e federal, unificando as treze colônias estadunidenses
nárquica(4). que, apesar de primar pela liberdade do ser humano
A tirania, fruto da concentração de poderes nas de forma inata, não previu um rol de direitos, falta
mãos da monarquia, perdurou na Europa durante somente sanada em 1791, ano da aprovação de dez
os dois séculos que sucederam a Idade Média, o que emendas que formavam o Bill of Rights americano,
também desencadeou, sobretudo na Inglaterra, um tratando de liberdades públicas e garantias constitu-
forte movimento no sentido oposto, com algum su- cionais em prol dos cidadãos americanos.
cesso, a exemplo da Bill of Rights (1689), que afastou Igual ideia de liberdade foi talhada na Declaração
a ideia segundo a qual todo poder emana do rei e em dos Direitos do Homem e do Cidadão, carta francesa
seu nome é exercido, reservando o poder de legislar de 1789 que, embora burguesa e extremamente libe-

(4) SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 42.
(5) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 176.
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ral, também pretendeu consagrar a ideia de direitos fraternidade – por esta razão, uma das primeiras pro-
humanos de forma universal, sobretudo a ideia de vidências para o alcance libertário foi a publicação da
autonomia entre os homens, que já não podiam mais Lei Le Chapelier, em 1791, que suprimiu as corpora-
ser protegidos pelas mãos de ferro do Estado, agora ções de ofício e as assembleias provinciais, então ofen-
inimigo dos direitos humanos, diante da chegada da sivas à plena autonomia do indivíduo. Como afiança
nova ordem ideológica, antitética ao absolutismo e Paulo Bonavides, com a chegada do Estado liberal, o
também contrária a qualquer forma de intervenção “homem-cidadão sucedia ao homem-súdito”(6).
nas relações privadas, mais adiante intitulada de li- Entrementes, é interessante perceber que, con-
beralismo. trariando o teor da liberdade em seu clássico senti-
Diferentemente da Declaração de Direitos dos do, que somente concebia livre o homem na polis,
diversos Estados americanos, bem como a primeira expressando suas ideias de forma democrática, a li-
Constituição escrita de 1787, que intentavam asse- berdade para os franceses significava justamente o
gurar a liberdade e a independência, passando ne- oposto, sendo considerado livre o homem em sua
cessariamente pelo individualismo extremado, que privacidade e autonomia. Este ideal, com o tempo,
é observado naquela sociedade até os dias atuais, a foi o golpe de misericórdia da própria liberdade, já
Declaração de Direitos francesa teve por fim assegu- que o indivíduo isolado era despido de poder, pois
rar a liberdade do homem universal, pretendendo, este, teoricamente advindo do povo, era na prática
de forma grandiosa, apresentar os valores libertários representado pela burguesia através do voto censitá-
para todos os Estados, independentemente de reli- rio, que apenas repetia e legitimava o status quo.
gião, classe social, etnia e tudo o mais que pudesse O ideal libertário que, embora tivesse intenção
servir de empecilho para a plena liberdade humana. universal, somente vislumbrava o ser humano de
Todavia, a liberdade, tão apregoada pelos france- forma abstrata, terminou por quebrar todas as bases
ses, não visava ao homem em sua concretude, con- sobre as quais se assentavam a sociedade, já que fa-
cebendo-o tão somente no aspecto abstrato; tanto mília, trabalho e posse eram estruturados segundo a
assim que não se previu como a real liberdade seria lógica feudal e, quando esta restou esfacelada, nada
alçada ao patamar legislativo, nem se tratou de fra- veio para substituí-la. Assim, apenas o homem, iso-
ternidade, que somente passou a constituir a famosa lado em sua privacidade, agora longe do Estado e
tríade na Constituição francesa de 1848. de um senhor, poderia usufruir plenamente de sua
Os ideais libertários, oriundos, sem dúvida, das liberdade.
cartas americanas de independência, influenciaram Ressalte-se que esta era a liberdade formal que,
fortemente a Europa, durante todo o século XIX, e pela abstenção plena do Estado, representado pela
no Brasil foram supedâneo para revoltas contra a burguesia ascendente, transmudava-se materialmen-
monarquia, como se percebe na Conspiração Baiana te na liberdade de não poder e não ter, embora fosse
de 1798, bem como na Inconfidência Mineira, que o homem livre.
chegou a utilizar os três princípios apregoados pela A concepção moderna de liberdade é contrária
Revolução Francesa. à concepção clássica, tanto que alguns estudiosos(7)
A liberdade, para os franceses de então, significava advogam que não havia liberdade, quer na polis ou
o total afastamento do Estado, sendo este contraposto na urbis, pois o homem de então era plenamente li-
à igualdade e opressor do homem livre e abstrato em vre na sua acepção coletiva, jamais individual. A vida
sua liberdade. Entretanto, na tríade, foi a igualdade o sequer lhe pertencia, pois os homens espartanos ti-
centro ao redor do qual gravitavam a liberdade e a nham por obrigação o serviço militar já na primeira

(6) BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 30.
(7) Nesse sentido, afirma Fustel de Coulanges que o Leviatã da Antiguidade queria a alma e o corpo do indivíduo, sendo “erro
grosseiro, entre todos os erros humanos, acreditar-se em que, nas Cidades antigas, o homem gozava de liberdade. O homem
não tinha sequer a mais ligeira ideia do que esta fosse. O homem não julgava que pudesse existir com direitos em face da Ci-
dade e dos seus deuses. [...] O sistema de governo tomou vários nomes, sendo uma vez monarquia, de outra vez aristocracia,
ou ainda uma democracia, mas com nenhuma dessas revoluções ganhou o homem a sua verdadeira liberdade, a liberdade
individual. Ter direitos políticos, poder votar e nomear magistrados, ser arconte, a isto se chamou liberdade, mas o homem, no
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infância, o que perdurava por toda a existência, sen- nomia, enquanto neste vigorava a racionalidade tam-
do sua vida exaltada e dignificada na medida em que bém da autonomia, mas autonomia para agir de todo
era perdida nas guerras em prol da pátria. Em Roma, modo não proibido ou limitado pelo Estado que, por
o serviço militar era obrigatório até os 46 (quaren- ser abstencionista, não intervinha nas relações priva-
ta e seis) anos de idade. Era a racionalidade de uma das; ao revés, era o principal promotor da igualdade
época, cuja liberdade passava necessariamente pelo em seu sentido formal, afirmando, através da legisla-
homem em seu sentido coletivo e não segundo uma ção, formada pela classe censitariamente burguesa,
concepção individualista. que todos os cidadãos são livres e regidos pelas leis,
Bobbio, citando passagem da obra de Benjamin elaboradas por um Poder Legislativo que não encon-
Constant sobre a antítese firmada ente o liberalismo trava limites na Constituição e apenas formalizava
e a democracia, afirmou que o objetivo dos antigos direitos até então tidos como inatos ao homem.
era “a distribuição do poder político entre todos os O jusnaturalismo, então considerado metafísico e
cidadãos de uma mesma pátria: era isso que eles cha- incapaz de traduzir as vicissitudes humanas, passou
mavam de liberdade. O objetivo dos modernos é a se- a ser positivado, o que, com o tempo, redundou no
gurança nas fruições privadas: eles chamam de liber- seu sepultamento enquanto conteúdo revolucionário
dade às garantias acordadas pelas instituições para e transcendente ao homem.
aquelas fruições”(8). O Estado passou a se preocupar em assegurar
O Estado liberal trouxe assim a ideia de liberdade formalmente direitos inquestionáveis segundo a con-
perante o Estado, sendo este abstencionista, negati- cepção evolucionista, o que terminou por condenar
vo, para que se pudesse alcançar a plena individuali- à morte os próprios direitos do homem, que se viu
dade, ao revés do que mais adiante, já no século XX, amarrado à legislação viciada de vontades nem sem-
se intitulou Estado social, trazendo este à baila uma pre correspondentes à maioria, cenário que se reafir-
outra noção de liberdade, que então se realizava atra- mava pela ausência de controle de constitucionalidade
vés do Estado, e não por exclusão deste. e pela exaltação do Parlamento, teoricamente repre-
A liberdade individual seguia a lógica do Estado sentante do povo, mas materialmente defensor da mi-
liberal, que exaltava a separação entre Estado e socie- noria representada por pessoas mais aquinhoadas.
dade. Se, em face do Estado, o homem era sujeito de Os europeus, talvez impressionados e preocupa-
direitos individuais, assim entendidos como direitos dos em frear o poder do Executivo, não perceberam
à plena liberdade e autonomia, na sociedade o ho- que um mal maior se apresentava na sociedade su-
mem era igualmente livre para firmar negócios, no postamente livre, constituído em torno da onipotên-
sistema laissez faire, sendo esta seara impermeável cia do Poder Legislativo, que não encontrava limites
à tutela estatal, porquanto “o Estado deveria reduzir sequer na própria legislação.
ao mínimo a sua ação, para que a sociedade pudesse A sociedade de então vivenciou um período de
se desenvolver de forma harmoniosa”(9). Estado e so- completa desigualdade firmada pela legislação, que
ciedade formavam seguimentos diversos, apenas se não poderia ser analisada pelo Poder Judiciário, este
imiscuindo quando o indivíduo tinha a sua esfera de fiel representante da “boca da lei”, não lhe sendo de-
individualidade invadida por aquele que, segundo a vida a interpretação das normas editadas pelo ilimi-
racionalidade absenteísta, deveria ser mínimo, inter- tado e onipotente Poder Legislativo, reservando-se à
vindo limitadamente na autonomia privada. pequenez do silogismo, cenário, infelizmente, ainda
O direito acompanhou essa mesma lógica liberal, encontrado em alguns julgados de magistrados mais
bipartindo-se entre público e privado, sendo aquele conservadores.
regido pelas regras próprias dos direitos fundamen- Enquanto na Europa grassava a ideia do culto à
tais, assegurando ao cidadão a plena liberdade e auto- lei, nos Estados Unidos da América vigorava ideolo-

fundo, nunca foi mais do que escravo do Estado. Os antigos, sobretudo os gregos, exageraram sempre a importância e os
direitos da sociedade, e isto, sem dúvida alguma, devido ao caráter sagrado e religioso de que, originariamente, a sociedade
se revestiu”. Vide COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2012, p. 50.
(8) BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011, p. 08.
(9) SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 13.
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gia oposta, fundada na Constituição como o topo da uma intervenção do Estado nas relações de trabalho
cadeia normativa, devendo todas as outras normas que afrontavam a dignidade do ser humano, dimi-
inferiores a ela se adequar, até porque eram passíveis nuindo-o a uma mera peça na engrenagem do capital.
de controle de constitucionalidade, o que a Europa Iniciava-se assim o que posteriormente veio a ser
somente veio a estabelecer no início do século XX. denominada de doutrina social da Igreja. Posterior-
mente, no ano de 1931, o Papa Pio XII segue os pas-
2.2 A TRANSPOSIÇÃO DO ESTADO LIBERAL sos já percorridos pelo renovado clero, publicando a
PARA O SOCIAL Quadragesimo Anno, sendo a questão social sempre
lembrada em documentos posteriores, a exemplo das
Sem abandonar o sistema capitalista(10), o século Encíclicas Master et Magistra (1961) e Pacem in Terris
XX foi testemunha da transmudação do Estado libe- (1963), ambas publicadas por João XXIII. Respecti-
ral para o social, lembrando Bonavides que o Estado vamente, em 1967 e 1969, Paulo VI publicou Popu-
social, assim como os demais sistemas de organização lorum Progressio e Humanae Vitae.
política, encontra-se no capitalismo, tanto que “a Ale- Se era verdade que o homem era livre e o poder
manha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, dele derivava, não menos correto era perceber que,
o Portugal salazarista foram ‘Estados sociais’”(11). na realidade, essa liberdade era apenas formal, pois
A ideia de um Estado social esteve presente ainda não contemplava o povo oprimido, fraco em repre-
sob os auspícios da época de ouro do Estado liberal. sentatividade e esquálido em seu isolamento, ocasio-
Em um primeiro momento, com a chegada de um nando a sua não representação de forma coletiva e
Estado de direito cuja pregação da autonomia do in- consequente piora das condições sociais.
divíduo através do pleno exercício da liberdade era o Com o passar dos anos, firmou-se a ideia se-
grande paradigma, houve a euforia própria das revo- gundo a qual de nada adiantava o homem possuir
luções ideológicas. Todavia, assim como na miopia, liberdade, pois, para ser plenamente liberto, neces-
quanto mais a população “livre” se aproximava da sitava da intervenção estatal, racionalidade propaga-
autonomia, menos percebia que esta, ao revés do pre- da, sobretudo, na classe trabalhadora, já ascendente
tendido, escravizava mais do que libertava. e evidentemente oprimida pelo capital, regido pelas
O homem no Estado liberal era apenas um meio próprias leis do mercado, impermeável aos direitos
para o alcance do fim capitalista, o que ensejou, lo- fundamentais.
gicamente, uma grande insatisfação do proletariado, A insatisfação popular era evidente e o velho libe-
que se viu coisificado pela necessidade de acumula- ralismo não era capaz de resolver o grave problema
ção de capital. social, advindo da desigualdade econômica, que se
Décadas se passaram até o Manifesto Comunista, tornava ainda mais presente diante do afastamento
de 1848, que somente teve as suas ideias implantadas do Estado. A ideia liberal, que antes parecia a pana-
no alvorecer do século XX com a revolução bolche- ceia para todos os males, agora se descortinava como
vista, até que houvesse uma real preocupação com o um grande mal, mostrando a sua verdadeira face to-
que Bonavides chamou de “quarto estado”(12), o povo. talitária, diante do capital, cada vez mais concentra-
A Igreja, antes da implantação do regime liberal, do nas mãos dos que não representavam, nem sequer
beneficiada de forma diferenciada, juntamente com de longe, o proletariado, embora, por um critério
a monarquia, agora desejava mudança nas relações eminentemente censitário, formalmente representas-
sempre tensas firmadas entre o capital e o trabalho, se a todos.
tanto que, em 1891, o sumo pontífice Leão XIII fez Não resolvendo o liberalismo a tensão social rela-
publicar a Encíclica Rerum Novarum, requisitando tada, entrou em falência e o fruto colhido foi a revo-

(10) “Pode-se estabelecer a distinção entre duas modalidades de Estado de Direito: o liberal e o social, bem entendido que
este último não significa a ruptura com o primeiro, senão uma intenção de adaptação das notas clássicas do Estado de Direito
ao seu novo conteúdo e a suas condições ambientais”. Tradução nossa. Vide PÉREZ, José Luiz Monereo. Derechos sociales
de la cidadania y ordenamiento laboral. Madrid: CES, 1996, p. 118.
(11) BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 184.
(12) BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 185.
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lução do período, ocorrida nos mais diversos recan- a representar interesses da classe antes relegada pela
tos do mundo ocidental capitalista. burguesia, fiel representante no Parlamento. Direitos
Uma das primeiras transformações ocorreu no como saúde, educação e previdência, antes ignora-
modo de participação popular na formação da legis- dos, passaram a fazer parte da grande pauta para for-
lação. Saía de cena o sufrágio censitário para estrear mulação das leis, com o fito, sobretudo, de não fazer
a liberdade política, exercida através do sufrágio uni- ruir o sistema capitalista que, bem ou mal, dependia
versal. Perdia aí o liberalismo clássico. da classe operária apaziguada e isso só era possível
Através do sufrágio universal, o “quarto estado com uma legislação mais interventiva, que assegu-
ingressava, de fato, na democracia política e o libe- rasse materialmente a igualdade e, principalmente,
ralismo, por sua vez, dava mais um passo para o de- a liberdade.
saparecimento, numa decadência que deixou de ser Toda essa mudança na legislação não foi fruto do
apenas doutrinária para se converter em decadência agraciamento incauto do legislador, mas foi um mo-
efetiva, com a plena ingerência do Estado na ordem vimento necessário para que o próprio capitalismo se
econômica”(13). transformasse e sobrevivesse, ficando evidente que o
O Estado liberal, embora decadente, não desapa- trabalhador depende do capital, mas esse não sobre-
receu, apenas se transformou e o seu maior ideal, a vive sem aquele em um sistema simbiótico e, para
liberdade moderna, manteve-se presente através da que ambos coexistam, a dialética se impõe.
intervenção estatal nas relações privadas, sobretudo A redefinição do papel estatal não foi vivenciada
as econômicas, dando vez, assim, à liberdade e igual- somente no mundo capitalista, sendo certo que tam-
dade em seu sentido material. O homem deixava de bém nos países que passaram a adotar o sistema so-
ser visto de forma abstrata e passava a ser enxergado cialista houve forte intervenção do Estado, com olhos
concretamente, visando-se às suas necessidades bási- para o acúmulo coletivo dos meios de produção.
cas, alcançadas através do Estado e não perante este. Nesse mesmo sentido, Daniel Sarmento, explican-
Na primeira metade do século XIX, Robert Peel do a transformação do Estado liberal em social, ob-
editava na Inglaterra as primeiras normas sociais, serva que a livre concorrência, sem qualquer amarra,
com fins evidentemente protetivos ao trabalhador, estimulava a concentração de capital e, consequen-
objetivando minimizar o horrendo impacto trazido temente, a formação de monopólios e oligopólios, o
pela Revolução Industrial na classe operária. Com que desfavorecia o capital. Assim, “até para a pre-
Bismarck, a Alemanha, nas décadas de 1860 e 1870, servação do próprio sistema capitalista, tornava-se
também editou normas protetivas à classe operária, necessário que o Estado assumisse uma posição mais
talvez para conter os avanços dos ideais socialistas, ativa no cenário econômico, para disciplinar e impor
que ocupavam cada vez mais lugar nas mentes tra- certos limites às forças presentes no mercado”(15). No
balhadoras(14). dizer de Eros Grau, a atuação mais intervencionista
A Revolução Russa de 1917, sob forte influência do Estado
do marxismo, disseminou ideias opostas aos inte-
não conduz à substituição do sistema capitalista
resses capitalistas e o temor de que processos revo-
por outro, pois é justamente a fim de impedir tal
lucionários eclodissem de vez e tomassem o poder,
substituição – seja pela via da transição para o
menosprezando o capitalismo, acelerou o processo
socialismo, seja mediante a superação do capita-
do que, mais adiante, seria chamado de welfare State,
lismo e do socialismo – que o Estado é chamado
impondo assim a transição do Estado liberal para o
a atuar sobre e no domínio econômico(16).
Estado social.
A queda do sufrágio censitário e a mudança para A Constituição Mexicana de 1917 dedicou um
o sufrágio universal também trouxeram significativas capítulo inteiro à definição dos princípios a serem
mudanças na formulação da legislação, que passava aplicados ao trabalho e à previdência social, mas ape-

(13) BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 189.
(14) SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 17.
(15) SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 18.
(16) GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 43.
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nas como um convite à legislação infraconstitucional, venção nas relações econômicas, para que o capital,
sem, de fato, normatizar a ordem social. Nessa mes- assim, pudesse sobreviver à crise. O presidente Roo-
ma linha de programaticidade, na Alemanha, a nova sevelt adotou a ideário keynesiano, formulando um
Constituição, publicada no ano de 1919 em Weimar, pacote econômico que entrou para a história como
refletiu a nova racionalidade social, dedicando boa o New Deal, objetivando firmar de uma vez o poder
parte de suas disposições ao trato dos direitos do ho- estadunidense.
mem, à vida social, à religião e sociedades religiosas, O Estado liberal se transformava em Estado so-
à instrução e estabelecimento de ensino e à vida eco- cial, preocupado com o bem-estar do povo, forma-
nômica. A propriedade passou a ter função social, do eminentemente pela classe operária. O conceito
voltada para o interesse geral; previu-se a reforma de igualdade era modificado, passando o governo a
agrária e a socialização das empresas; protegeu-se o adotar políticas de inserção social, através, sobretu-
trabalho; garantiu-se o direito à sindicalização, a pre- do, das normas trabalhistas, que passaram a ocupar
vidência social e a cogestão das empresas(17). espaço apartado do direito civil, com racionalidade
É dizer, embora as Constituições tenham passado própria, voltada, eminentemente, para a proteção
a tratar sobre a questão social, não conceberam seria- material do cidadão trabalhador. Se antes a igualda-
mente o programa, tendo-o sempre sob o aspecto pro- de era prevista em lei, agora ela passava a ser asse-
gramático, aproximando-se mais ainda da Constitui- gurada por esta, através de forte intervencionismo
ção formal, quando se necessitava de uma Constituição estatal, plenamente ocupado das questões sociais e
material, mas interventiva e, de fato, comprometida econômicas, para que as liberdades humanas cons-
com a mudança. O que se via era um mero engodo, titucionalmente previstas não fossem postas de lado
para apaziguar todos os conflitos sociais trazidos pela por pura impossibilidade de usufruto, diante da ex-
acumulação de capital, que gerava tanta desigualdade, clusão social.
pois, como já disse Grau, “só o processo de produção O Estado, anteriormente tido como grande opo-
é social; o processo de acumulação capitalista é essen- nente dos direitos fundamentais, agora se descortina-
cialmente individualista”(18). va como o grande realizador dos mesmos, pois o que
A grande superação do modelo liberal clássico se buscava superar era “a contradição entre a igualda-
ocorreu após a quebra da Bolsa de Nova York, em de política e a desigualdade social(20), desvelando um
1929, durante o hiato formado entre o “fim” da Pri- outro tipo de Estado, o social, que é intervencionista
meira Grande Guerra e o “início” da Segunda. Depois e necessita “sempre da presença militante do poder
do colapso econômico no país que pregava a plena político nas esferas sociais, onde cresceu a dependên-
liberdade da economia, viu-se a necessidade de ado- cia do indivíduo, pela impossibilidade em que este se
ção de políticas econômicas materialmente inter- acha, perante fatores alheios à sua vontade, de prover
ventivas, com o objetivo de redução do desemprego, certas necessidades existenciais mínimas”(21).
pois, como já se disse em outras palavras, o emprega- Em 1948, após o fim da Segunda Guerra Mun-
do – com vínculo de emprego vivo, lógico – interessa dial, a Assembleia Geral da ONU (Organização das
ao capital, que não subsiste solitariamente e jamais Nações Unidas) promulgou a Declaração Universal
poderá prescindir da força humana. dos Direitos do Homem, destacando os direitos so-
Nesse cenário, prevaleceram as ideias de John ciais, que passaram a conviver com os direitos civis
Maynard Keynes(19), que vislumbrou uma atitude e políticos, integrando, pela primeira vez, o rol dos
mais enérgica por parte do Estado em relação à inter- direitos humanos.

(17) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 49.
(18) GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 42.
(19) PÉREZ, José Luiz Monereo. Derechos sociales de la cidadania y ordenamiento laboral. Madrid: CES, 1996, p. 126.
(20) BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 185.
(21) BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 200.

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