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O ESTADO CAPITALISTA PERIFÉRICO BRASILEIRO: determinações históricas e

manifestações contemporâneas
Alzira do Carmo Carvalho Ericeira1

RESUMO: Neste artigo são apresentadas reflexões sobre as


determinações históricas do Estado capitalista contemporâneo
e suas manifestações na realidade brasileira. Apresentam-se
as discussões conceituais sobre a constituição do Estado
moderno a partir da perspectiva marxista e o papel central que
este possui para a manutenção do sistema capitalista.
Destaca-se a particularidade brasileira dando ênfase às
transformações ocorridas a partir dos anos 1990 e seus
rebatimentos para a política social.
Palavras-chave: Estado; Capitalismo; Política Social.

ABSTRACT: This article presents reflections on the historical


determinations of the contemporary capitalist state and its
manifestations in the Brazilian reality. The conceptual
discussions about the constitution of the modern state from the
Marxist perspective and the central role that it has for the
maintenance of the capitalist system are presented. The
Brazilian particularity is emphasized, emphasizing the
transformations that have occurred since the 1990s and its
repercussions for social policy.
Keywords: State; Capitalism; Social Policy.

1. INTRODUÇÃO

O Estado e o capital são considerados formas historicamente determinadas de


existência social, isto é, como fenômenos situados na estrutura complexa do ser social,
podendo, portanto, ser abordados por intermédio do método dialético e materialista” (Farias,
2001a, p. 13 – 14).
Dessa forma, a análise desenvolvida neste artigo, contrapõe-se a uma concepção
burguesa de Estado, que o julga acima da luta de classes à concepção desenvolvida por
Marx (1818 e 1883), em que o Estado é uma relação historicamente determinada, de
dominação e subordinação mantida entre as classes sociais diferentes e antagônicas entre
si. Destaca-se que a formulação marxista de que “a história de todas as sociedades
existentes até hoje é a história da luta de classes” (MARX, 1987, p.102) serve de esteio das

1
Assistente Social, Professora na Faculdade do Maranhão – FACAM, Mestre em Políticas Públicas pela
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do
Maranhão – UFMA. E-mail: alziradocarmo@hotmail.com
argumentações desenvolvidas aqui, uma vez que tampouco se comunga com a máxima
ideológica do „fim da luta de classes‟ propagada pelas teorias neoliberais.
Evidencia-se em primeiro lugar alguns comentários em torno da polêmica discussão
sobre a existência ou não de uma doutrina marxista do Estado, problemática esta que se
constitui numa tarefa que dia após dia, se refaz no campo teórico. Esta dimensão já foi
abordada por Noberto Bobio (1979), um severo crítico ao marxismo, em um instigante artigo
onde questiona: “existe uma doutrina marxista de Estado?”. A resposta que o autor vai dar
por si só já é motivo para polêmica, pois, por não existirem delineamentos em tal teoria, este
compreende que a abordagem marxista do Estado é genérica, incompleta, sumária e irreal,
afirmando por fim que não existe tal elaboração no pensamento marxista ou até mesmo
socialista.
Dessa forma, embora não exista na teoria marxista a ou as obras que tenham como
objetivo específico caracterizar o Estado, Ianni (1992, p.31) afirma que, a análise marxista
do capitalismo seria ininteligível se Marx não tivesse elaborado, também e necessariamente,
uma compreensão dialética do Estado e das classes sociais, haja vista que todas as
contradições e antagonismos vividos no sistema capitalista permeiam essas categorias.
Assim, o presente estudo busca desvelar as determinações concertas do Estado e
suas manifestações na particularidade brasileira. Em seguida, discute-se sobre o papel que
o Estado brasileiro assume no sistema capitalista, sobretudo a partir dos ajustes neoliberais
impostos à periferia do sistema que promovem rebatimentos perversos na política social.

2. ESTADO E CAPITALISMO: determinações históricas

O Estado capitalista é frequentemente analisado enquanto uma totalidade concreta,


complexa e contraditória, como ser social e histórico que só pode ser apreendido no
contexto de uma dada formação econômica e social. Conforme Farias (2001a), o Estado
representativo moderno é um ser social situado no tempo e no espaço, rico em
determinações. Sendo assim, para que se possa analisar a natureza e o papel do Estado no
cerne do capitalismo, deve-se abandonar a perspectiva que reduz o ser social estatal à sua
ação sobre a base econômica e técnica.
Nesse sentido, se por um lado, o Estado pode ser visto enquanto categoria abstrata
pela análise de uma ou algumas determinações do fenômeno, por outro, a maior quantidade
de determinações aproxima a análise de uma construção mais concreta do mesmo Estado.
Então, pode-se resumir o Estado a um instrumento de dominação de uma classe sobre as
outras, o que não será necessariamente uma postura metodologicamente incorreta,
entretanto, é uma postura que não absorve o fenômeno estatal em suas outras
determinações. Assim,
“Contrariamente aos autores que reduzem a questão da natureza do Estado aos
conflitos de classe, é a partir do trabalho num contexto mercantil desenvolvido que
se deve apreender a emergência e a constituição do Estado como forma social
concreta, complexa e contraditória. Trata-se de uma forma que é autônoma
relativamente à base, pois dispõe dos meios de existência na sua esfera particular,
separada das outras formas da sociedade capitalista para assumir nesta um papel
teleológico e reificado” (Idem, p.28).

O referido autor apreende o Estado como uma totalidade concreta que se situa no
tempo e no espaço, sendo assim, é um silogismo, que assume a forma-Estado
(generalidade), a forma de Estado (particularidade) e a forma do Estado (singularidade).
Ambas as formas estão interligadas dialeticamente à terceira através da segunda.
No pensamento marxista, o Estado se manifesta como uma instituição acima de
todas as outras (BOTTOMORE, 2001, p. 133), cuja função é a de assegurar e conservar a
dominação e a exploração da classe burguesa sobre o proletariado. Isto equivale a dizer,
que “a categoria Estado corresponde a um ser social rico em determinações que se
estruturam material e socialmente tanto no fenomênico quanto no essencial” (FARIAS,
2001a, p. 30).
No primeiro nível manifestam-se as relações sob a forma de aparência, que é a sua
forma de governo, a legitimação do Estado por meio da democracia formal burguesa. Nesse
sentido, [...] “o governo não deve ser confundido com o Estado propriamente dito, que é a
sua substância oculta. Esta essência da forma-Estado resulta da luta entre as classes
sociais, tendo por eixo a divisão capitalista do trabalho, constituindo um todo [...]” (Idem, p.
30).
No segundo, sob o aspecto de ocultação, encontra-se a forma- Estado, que é a sua
essência, resultante da divisão capitalista do trabalho, cujo eixo é a manutenção da
dominação política de uma classe sobre as demais, onde a base de ação política é a luta de
classes.
Nessa sociedade capitalista fixada na propriedade privada dos meios de produção e
na exploração dos operários assalariados despojados dos meios de produção e compelidos
a vender invariavelmente sua força de trabalho, a função do Estado é defender os
interesses da classe dominante sobre o conjunto da sociedade. Entretanto, o Estado
moderno capitalista aparece aos olhos, mentes e corações do grosso da população
enquanto Estado de todos e não apenas de uma fração de classe ou classes, isto se dá
porque segundo Marx, tal instituição tem quatro funções basilares a especificar: em primeiro,
a ordem, o Estado exerce a função de capitalista coletivo ideal, criando e mantendo as
condições materiais gerais para a produção (infraestrutura básica para o desenvolvimento
do capital em seus diferentes ramos de atuação). Ou seja, o Estado garante, mantém e
estimula o avanço das forças produtivas.
A segunda função (no nível da superestrutura) é a personificação da ordem jurídica,
o Estado apresenta-se enquanto árbitro nas relações de produção por meio de toda uma
legislação destinada a normatizar as relações sociais constituídas no interior do processo de
produção de mercadorias. O Estado é o mediador por excelência das relações entre capital
e trabalho assalariado, intervindo como se não fizesse parte das relações de produção
(neutro), isto é, age como um ente exterior no conflito de classes e assim completa o círculo
das condições internas para a produção e reprodução do capital.
A terceira função é a fisco-finança, isto é, o Estado gera fundos coletivamente que
lhe permite subsidiar sua ação estatal: “a permanência do Estado como forma particular e
relativamente autônoma diante das classes sociais e portanto, de sua existência para si
depende da geração de fundos” (FARIAS, 2001a, p. 35).
A quarta e derradeira função consiste na política comercial externa preenchida pelos
diferentes Estados nacionais contemporâneos no mercado internacional, cuja lógica é regida
pelos ditames dos países de capitalismo avançado. Por fim, o Estado burguês realiza uma
função estratégica no desenvolvimento, manutenção e conservação da sociedade
capitalista, condição essencial à formação do capital social coletivo, negando as
contradições inerentes e historicamente determinadas da relação capital e trabalho, em que
a alienação máxima ocorre da reificação entre o que é objeto e o que é sujeito.
Portanto, segundo Farias (1988 apud Farias, 2001b, p. 231) o Estado é um ser social
arraigado num modo de produção, cujas formas concretas mudam continuamente antes de
se tornar mediação real, relativa e transitória das contradições mercantis. Sendo assim, toda
análise das funções do Estado tem necessariamente que ser precedida do exame da forma-
Estado.

3. A FORMAÇÃO DO ESTADO CAPITALISTA PERIFÉRICO: a singularidade brasileira

Segundo Farias (2001b, p. 231), “o sucesso da teoria da dependência difundiu uma


visão das sociedades latino-americanas, onde o fator tempo é introduzido por intermédio de
uma periodização que vem de fora, supondo que as formações capitalistas periféricas
fossem simples subprodutos da dependência do país, da predominância econômica e da
hegemonia política e cultural das grandes potências, que lhes impõem uma existência
apática e uma submissão absoluta a uma divisão internacional do trabalho favorável ao
centro”. Assim, segundo o referido autor, ao se observar as particularidades das situações
concretas, deve-se perceber que o desenvolvimento de uma sociedade historicamente
atrasada é resultado das diversas fases do desenvolvimento histórico.
Corrobora com essa perspectiva a crítica que Tavares (2000, p.130) faz à obra
“Desenvolvimento e subdesenvolvimento”, de Celso Furtado, onde:
Sua visão do que é o subdesenvolvimento representa um enorme avanço sobre a
dicotomia atraso/modernização e, em particular, sobre a visão “etapista” que
predominava nos centros de pensamentos hegemônicos e também no debate
acadêmico e político. Aborda, além disso, o tema da dominação internacional a partir
da situação de dependência tecnológica, financeira e cultural que marcam o
comportamento das classes dominantes brasileiras e de suas elites dirigentes.
Assim, da sua teoria do subdesenvolvimento desprende-se uma teoria da
dependência”.

Tal visão abordada por inúmeros autores que buscam respostas às questões das
diversas formas de dominação internacional deixam de lado o caráter de particularidade
dessas situações concretas. Assim, defendem que o desenvolvimento capitalista periférico é
apenas uma cópia fiel da forma de industrialização dos países centrais, esquecendo as
determinações históricas do processo de desenvolvimento da nação que agregam fatores
determinantes para a manutenção do perfil de um Estado como forma de capitalismo
periférico.
Nesse sentido, Farias (2001b, p. 231), afirma que,
As análises correntes da dependência elaboram, ao contrário, uma espécie de sub-
história ou história negativa, referente aos obstáculos à constituição de uma
economia capitalista, de um Estado democrático burguês, de uma ordem social
pluralista e competitiva, de uma cultura verdadeiramente nacional etc.

Assim, segundo o autor em tela, tal perspectiva nega as múltiplas determinações


particulares desta forma de Estado vinculadas dialeticamente a suas determinações
universais. Nesse caso, Farias (1988 apud Farias, 2001, p. 232), explica que trata-se nessa
particularidade, da manifestação do Estado capitalista num Estado capitalista particular, o
Estado como forma capitalista periférica, correspondendo às peculiaridades e às restrições
concretas que encontra a acumulação capitalista em diversos tempos e lugares, ou seja,
próprias a um regime de acumulação particular.
Na abordagem do desenvolvimento do capitalismo no Brasil deve-se considerar por
um lado, o que é próprio ao modo de produção capitalista como tal; por outro, o que lhe é
atribuído em razão de suas especificidades, manteve a escravidão até bem próximo do
século XX e o predomínio da agricultura até as primeiras décadas deste século; atingiu
tardiamente a industrialização, controlada pela modalidade de exportação do capital por
intermédio de empresas multinacionais.
Nesse sentido,
Existem fundadas razões para atribuir importância fundamental às dimensões
econômicas e políticas da ocupação e do domínio privado e político no território.
Entre as dimensões econômicas mais importantes para o processo de acumulação
de capital, a expansão da fronteira pelos negócios de produção e exportação do
agrobusiness e da exploração de recursos naturais mantém-se ao longo de toda a
história econômica brasileira. Assim, a ocupação mercantil e o domínio político do
território tornam os “donos da terra” indispensáveis ao pacto de dominação nacional
(TAVARES, 2000, P.136).

A referida autora aponta tais questões como cruciais para entender a natureza da
construção nacional. Para tanto, afirma que há um tipo particular de dominação que
prevalece no Brasil para além dos ditames internacionais, a qual é denominada de pacto de
dominação interna. Assim, somente com a análise de tal dominação e da luta de classe,
pode-se entender a permanência da desigualdade e do subdesenvolvimento no Brasil, bem
como a difícil construção de uma nação democrática no país. Estas interrogações pedem
respostas estruturais que vão além de qualquer “teoria da dependência”, mesmo na mais
rigorosa versão centro-periferia.
Esquematicamente, Tavares (2000, p.137) enuncia o problema afirmando que a
peculiar “revolução burguesa”, em vez de permitir a passagem a uma “ordem competitiva”,
manteve um pacto de dominação social férreo entre os donos da terra, o Estado e os donos
do dinheiro que se caracterizou do ponto de vista político por uma oscilação permanente
entre uma ordem liberal oligárquica e um Estado interventor autoritário.
Para que se entenda ainda a dominação interna e externa do país é preciso que se
tenha claro a natureza e o papel do Estado. Segundo Farias (2001b, p.233), no Brasil o
Estado torna-se veículo e instrumento da penetração rápida, incompleta e desigual das
relações mercantis capitalistas somente depois da década de 1930, assumindo a tarefa de
mediar a difusão dessas relações submetidas às necessidades do centro e à valorização
dos capitais hegemônicos.
Nessa perspectiva, Tavares (200, p.138) aponta que as relações de dominação e
cumplicidade entre os agentes do dinheiro mundial e as burocracias do dinheiro nacional
foram a moldura estrutural que enquadrou a formação de nossas elites “cosmopolitas” e o
caráter mais ou menos dependente, ou associado, de nossa burguesia com o capitalismo
financeiro internacional. Dessa forma, as relações financeiras desiguais terminam em geral
num processo de endividamento externo do Estado que conduz periodicamente ao
estrangulamento das finanças públicas e alimenta os conflitos do governo central com as
elites locais por tornar escassos os “fundos públicos”.
Segue a autora,
Essas relações de dependência financeira externa dificultam o processo de
arbitragem pelo Estado do valor do dinheiro nacional, como forma de denominação e
equivalência geral dos capitais particulares. O resultado histórico é que nossa
moeda foi quase sempre inconversível e tende secularmente à depreciação,
tornando vulneráveis várias frações da burguesia, além, naturalmente, de prejudicar
as condições de vida do povo (TAVARES, 2000, p. 138).
É nesse sentido que Farias (2001b, p. 234) chama atenção para o fato da difícil
constituição de um Estado representativo burguês moderno em um país como o Brasil que é
essencialmente marcado por uma industrialização tardia. Tal fato é representado pelos
governos desenvolvimentistas que se sucedem desde a segunda metade dos anos 1950,
“cuja ação longe de se definir unicamente por padrões nacionalistas, é fundada numa
dinâmica de acumulação e sobre um sistema de defesa, manutenção e justificação da
iniciativa privada”.
Prevalecem nesse cenário, os capitais privados das nações imperialistas,
especialmente dos Estados Unidos e associados locais, que tem sua dominação baseada
na inserção de multinacionais nos países periféricos que muitas vezes absorvem as
empresas locais, a exemplo Farias (2001b, p. 235) cita o caso brasileiro de privatização de
empresas públicas, como a Vale, Embratel etc.
A partir dos anos 1980 e 1990 percebe-se uma desarticulação formal na estrutura do
Estado brasileiro decorrente, sobretudo, das novas configurações que o capital assume, a
financeirização e a mundialização. Nesse sentido, Chesnais (1996, p.25) chama atenção
para a imposição posta aos países periféricos de adaptarem-se “ao jogo dos mercados
financeiros”, às novas formas de produção e intercâmbio, à desregulamentação financeira,
ao desenvolvimento cada vez maior da globalização financeira, e à utilização das novas
tecnologias. Assim,
No plano industrial, é então aos novos modos de organização da produção,
adotados pelas empresas multinacionais, que deveria se fazer a inevitável
adaptação. O problema, já a esse nível, é que a liberalização e a
desregulamentação, combinadas com as possibilidades proporcionadas pelas novas
tecnologias de comunicação decuplicaram a capacidade intrínseca do capital
produtivo de se comprometer e descomprometer, de investir e desinvestir; numa
palavra, sua propensão à mobilidade. Agora o capital está à vontade para pôr em
concorrência as diferenças no preço da força de trabalho entre um país – e, se for o
caso, uma parte do mundo – e outra. Para isso, o capital concentrado pode atuar,
seja pela via do investimento, seja pela da terceirização (CHESNAIS, 1996, p. 28).

No sentido de adaptar-se aos novos ordenamentos do capital observou-se no Brasil


um retrocesso das conquistas pela ampliação de direitos sociais que foram assimilados pela
Constituição Brasileira de 1988. Assim, esse processo de ampliação de direitos sociais rumo
à universalização, que se construiu no âmbito do avanço da democratização da sociedade
brasileira, passou a ser fortemente combatido e interrompido durante toda a década de
1990, quando o Governo Brasileiro passou a adotar tardiamente o chamado projeto de
desenvolvimento econômico, sob a orientação da ideologia neoliberal, na busca de inserção
do país na chamada competitividade da economia globalizada. Registra-se também forte
reação das elites conservadoras no Congresso, impedindo a regulamentação dos direitos
sociais indicados na Constituição de 1988.
Ressalta-se que a Constituição Federal de 1988 passa a ser considerada
instrumento inviabilizador da inserção do Brasil na economia internacional, o que vem
justificando investidas de reformas na economia, no Estado e no Sistema de Proteção Social
durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Esse
aspecto foi retomado, em 2003, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sustentado por
uma ampla aliança integrada pelo Partido dos Trabalhadores que se constitui sujeito
fundamental na luta social pelo avanço das conquistas sociais dos anos 1980, no Brasil.
Nesse emaranhado de contradições é que Farias (2001b, p.235) chama atenção
para que se compreenda a contradição do Estado propriamente dito, numa totalização
concreta entre a divisão capitalista do trabalho e a luta de classes, num movimento de
unidade e de oposição. Assim, sob o ângulo da divisão internacional do trabalho, a adesão à
globalização neoliberal passa pela mediação de uma brutal expulsão do trabalho vivo da
constituição.
Portanto, segundo Farias (2001b, p.236), sob a égide do neoliberalismo, se tem o
desemprego, o aumento de tamanho e de complexidade da superpopulação relativa
(trabalho temporário, em tempo parcial, informal, domiciliar, auto-emprego etc.). Isto implica,
ainda, para a divisão técnica do trabalho a busca por um assalariado fragilizado frente à
reestruturação econômica que determina flexibilização do trabalho, desemprego,
subemprego etc., combinado com políticas de massa comprometidas com a colaboração de
classes.
Consequentemente, tem-se, um processo que inviabiliza o que se considerava
trabalho estável e seguro, representado pela carteira de trabalho assinada e pela proteção
de riscos e contingências sociais, asseguradas pelo Estado de Bem-Estar Social dos países
de economia desenvolvida, e pelos precários Sistemas de Proteção Social, engendrados
nos países em desenvolvimento. Tem-se o incremento das chamadas ocupações
terceirizadas, autônomas, temporárias, instáveis e de baixa remuneração e o avanço do já
superdimensionado mercado informal de trabalho, que caracterizava as sociedades de
capitalismo periférico, desempenhando papel funcional a reprodução e ao desenvolvimento
da economia capitalista desses países (SILVA et al, 2011, p. 28).
A opção pelo ajuste econômico no Brasil, como em outros países, sobretudo nos
denominados periféricos, teve ainda consequência na proteção social esboçada
Constituição de 1988. Dessa forma, nos anos 1990, teve-se um verdadeiro desmonte do
Sistema Brasileiro de Proteção Social que parecia apontar, a partir dos anos 1980, em
direção à universalização dos direitos sociais básicos, evidenciando retrocessos nas ofertas
de serviços, mesmo nas áreas sociais básicas.
É possível afirma que, esse Estado vem cristalizando uma estrutura de benefícios
que só tem contribuído para manutenção da profunda desigualdade social que tem marcado
a sociedade brasileira, impedindo a expansão horizontal das conquistas sociais. Tem-se
desenvolvido um conjunto amplo, embora disperso, desfocalizado, descontínuo e
insuficiente de programas sociais, com marcas prevalentes de traços meramente
compensatórios e residuais.
Outro ponto de igual destaque apontado por Farias (2001b, p. 236), é a justiça
formal, que na forma do Estado capitalista periférico brasileiro se “manifesta como um
emaranhado de normas e leis que erigem uma espécie de muralha da China em torno dos
acusados de abuso do poder econômico, de privilégios e até mesmo de prevaricações,
roubos etc.”.
Nesse sentido,
[...] essa é uma sociedade em que a descoberta da lei e dos direitos sociais convive
com uma incivilidade cotidiana feita de violência, preconceitos e discriminações; em
que existe uma espantosa confusão entre direitos e privilégios; em que a defesa de
interesses se faz em um terreno muito ambíguo que desfaz as fronteiras entre a
conquista de direitos legítimos e o mais estreito corporativismo; em que a
experiência democrática coexiste com a aceitação ou mesmo convivência com
práticas as mais autoritárias; em que a demanda por direitos de faz muitas vezes
numa combinação aberta ou encoberta com práticas renovadas de clientelismo e
favoritismo que repõem diferenças onde deveriam prevalecer critérios públicos
igualitários (TELLES, 1994, p.93).

Tais elementos são vistos no espetáculo público armado em torno do Estado, feito de
corrupção e impunidade, inoperância e irracionalidade das burocracias estatais, parecem
fornecer as provas de verdade de um discurso que prega o mercado como paradigma de
modernidade e elide a questão da responsabilidade pública que nunca teve lugar na cultura
política deste país. O assim chamado discurso neoliberal tenta a espantosa façanha de
conferir título de modernidade ao que há de mais atrasado na sociedade brasileira, um
privatismo selvagem que faz do interesse privado a medida de todas as coisas.

4. CONCLUSÃO

No presente estudo partiu-se da noção de que o Estado é um ser historicamente


determinado, que adquire uma forma particular e relativamente autônoma, estruturada e
reificada, existindo em si e para si, com fins sistêmicos e anti-sistêmicos. O estado
capitalista torna-se uma totalidade concreta, contraditória, cujo movimento obedece a leis
(FARIAS, 2001a, p102).
Dessa forma, a partir do silogismo do Estado é possível identificar as suas
generalidade, particularidade e singularidade, no movimento que vai do aparente ao
concreto, do fenomênico ao abstrato. Nesse sentido, partindo-se de uma análise concreta
de uma situação concreta (Farias, 2001) como o caso brasileiro, é que se pode identificar as
peculiaridades próprias ao Estado brasileiro e à formação da sociedade, que historicamente
é marcada por avanços e retrocessos na relação entre Estado e interesses sociais.
É importante ressaltar que o processo de subdesenvolvimento brasileiro encontra
suas raízes explicativas no período de colonização, a qual determinou um país baseado na
agro-exportação e tinha no modelo escravista a base do trabalho no país, característica que
predominou até bem próximo ao século XX. O país teve, ainda, um processo de
industrialização tardio e desigual, e o Estado serviu de meio para a penetração nas relações
mercantis capitalistas, sob o predomínio do capital hegenômico norte-americano e
atualmente sob a hegemonia do capital financeiro e mundializado, que se materializou nos
anos 1990, a partir da adoção das regras das políticas neoliberais que determinaram a
adequação do modelo de Estado às exigências internacionais, contudo, tal adequação
determinou retrocessos em termos das conquistas sociais da década de 1980 que se
materializaram na Constituição de 1988.
Nesse cenário, o mais grave que se percebe é que essa avalanche de medidas pró-
capital e contra as mínimas conquistas da classe trabalhadora vem sendo colocada como
necessária e parte de um „movimento avançado‟ do capitalismo contemporâneo. Só não se
diz que as tais políticas neoliberais atendem a interesses exclusivos das frações da classe
burguesa retentoras do já „crescido‟ capital financeiro e, por conseguinte, a ele pouco
interessa o tão visível e nada „incômodo‟ crescimento das questão social.
A questão que se percebe diz respeito à possibilidade de construção democrática
de uma ordem pública fundada na representação plural dos interesses e na garantia de
direitos. Para sair de um terreno muito minado pela tradição conservadora, talvez seja mais
interessante colocar a questão em outros termos, para evocar a possibilidade de que neste
país se dê a construção de uma noção de bem público e de responsabilidade pública que
tenham como parâmetro a garantia dos direitos sociais básicos de toda a população.
Neste sentido, a noção de luta social permanece válida, pois, possibilita apreender a
presença da luta de classes no interior do Estado, assim sabe-se que somente, a partir de
um amplo movimento de base popular e com forte capacidade de luta social é que pode-se
pensar em uma verdadeira afronta popular face das políticas neoliberais implantadas desde
o final dos anos 70 até os nossos dias por parte do Estado capitalista atual. As
circunstâncias históricas existentes atualmente estão a pedir medidas “revolucionárias
urgentes”, a menos que se queira viver na barbárie contemporânea instaurada pela sede
implacável do capital.

REFERÊNCIAS

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