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FAMÍLIA E ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL NO ENSINO SUPERIOR: ALGUMAS


REFLEXÕES SOBRE ESSA RELAÇÃO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
CARIRI (UFCA)

Mayéwe Elyênia Alves dos Santos1

RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir acerca do conceito de família presente na política
de assistência estudantil do ensino superior federal, especialmente em suas regulamentações
na Universidade Federal do Cariri (UFCA). Para tanto, realizamos uma pesquisa documental
e revisão de literatura tendo como método o crítico dialético. Os achados nos permitiram
vislumbrar avanços, contradições e retrocessos na concepção e no uso do conceito de família
como elemento-chave para acesso dos estudantes à assistência estudantil, corroborando a
perspectiva ―familista‖ tão buscada e defendida no capitalismo dos monopólios,
especialmente em sua fase neoliberal.

PALAVRAS-CHAVE: Família. Política Social. Assistência Estudantil.

1 INTRODUÇÃO

No capitalismo dos monopólios, especialmente em seu contexto de avanço das


políticas de cunho neoliberal - que retiram do Estado a responsabilidade pela proteção social
dos sujeitos sociais, transferindo-a para o sujeito individual -, a família é colocada como
centro de intervenção das políticas sociais e na assistência estudantil isso não é diferente.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é refletir acerca do conceito de família presente
na política de assistência estudantil do ensino superior federal, especialmente em suas
regulamentações na Universidade Federal do Cariri (UFCA), a partir de uma pesquisa do tipo
documental e revisão de literatura, tendo como norte orientador o método crítico-dialético.
Assim, a exposição do objeto foi feita em dois pontos: no primeiro, refletimos acerca da
relação entre estado, políticas sociais e família; já no segundo, fazemos a mediação entre o
substrato do item anterior e a realidade da assistência estudantil da UFCA.
O motivo da escolha do tema passa pela vivência da autora enquanto estudante de Pós-
graduação em Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e
enquanto Assistente Social da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis da UFCA (PRAE-UFCA).
Ademais, o trabalho com família tem se constituído, conforme Mioto (2004), numa fonte de
preocupação para os profissionais de Serviço Social tanto no que tange à atualidade quanto à

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Assistente Social da Universidade Federal do Cariri (UFCA). Mestre em Serviço Social pela UEPB e
Doutoranda em Serviço Social pela UFRN.
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complexidade do tema, exigindo estudos e reflexões, o que torna o presente trabalho relevante
para o Serviço Social e demais profissionais que atual na assistência estudantil.

2 ESTADO, POLÍTICA SOCIAL E FAMÍLIA: algumas reflexões

A necessidade de se discutir o papel do Estado é secular: de Maquiavel a Rousseau,


essa categoria esteve no centro do debate político2, dadas às transformações sociais que
emergiam. Mas é especialmente no bojo do capitalismo monopolista que essa categoria ganha
contornos muito mais importantes, uma vez que nesse contexto atua como uma força motriz
para o capital, saindo de uma condição de apoio esporádico para uma âncora de sustentação.
Nas proposições de Marx – contexto de emersão do capitalismo monopolista -, o
Estado é concebido como uma categoria que se ergueu à base das contradições sociais: as
forças produtivas e as relações sociais de produção, as quais consubstanciam o nível da
infraestrutura da sociedade. Para ele, o Estado nasce com a divisão das classes sociais e
dispõe de um núcleo, que o acompanha em qualquer contexto histórico, que é a sua
capacidade de se moldar às relações sociais estabelecidas como forma de manter o status quo.
Na análise da sociedade capitalista, Marx compreende o Estado como um ―comitê
executivo dos interesses em comum da burguesia‖ (MARX, 2003), ou seja, atua de forma a
impor os interesses da classe dominante sobre as demais, uma vez que sua função precípua é
conservar e reproduzir a divisão das classes sociais antagônicas, ainda que suas funções sejam
ampliadas em contextos sociais específicos.
Essa concepção de Estado não é, de maneira alguma, determinista. Marx, inclusive,
reconheceu o peso e a importância das lutas dos trabalhadores no sentido de impor limites à
exploração pelo capital quando se referiu à luta pela regulação da jornada de trabalho na
Inglaterra como resultado desse processo de luta, que é secular, tendo o Estado como um
importante instrumento nessa limitação.
A concepção de Marx sobre o estado nos deu elementos insubstituíveis para pensar
essa categoria e, a partir de análises conjunturais que não foram vivenciadas por ele,
compreendê-la como um instrumento que também é passível de desempenhar funções para
além dos interesses monopolistas, embora não se possa perder de vista sua funcionalidade à
reprodução do capital. Exemplo disso são os direitos sociais, que, ―nos marcos do Estado
Social, é resultado de longo e secular conflito de classes, crivado por perspectivas
revolucionárias e reformistas‖ (BOCHETTI, 2018, p. 137).
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Esse debate tinha como centro a concepção do Estado como um ―mediador civilizador‖, cujo papel era
controlar os desejos insaciáveis próprios de seu ―estado de natureza‖.
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Segundo Coutinho (1992), Gramsci inovou essas descobertas essenciais de Marx,


enriquecendo-as, ampliando-as e concretizando-as ―no quadro de uma aceitação plena do
materialismo histórico‖ (COUTINHO, 1992, p. 74). Essa inovação se deu, segundo o autor,
numa relação dialética de conservação e renovação e não de uma simples continuidade, sendo
expressa em sua teoria ampliada do Estado, que tem na política – no seu conceito de
sociedade civil - seu ponto central.
Na teoria ampliada do Estado de Gramsci, esse é formado por duas esferas –
autônomas, concretas e com modus operandi diferente -, quais sejam: sociedade política e
sociedade civil. A primeira é o Estado estrito, aquele estudado por Marx, e que é constituído
por mecanismos de coerção através dos quais a classe dominante legaliza, de forma
monopólica, a repressão e a violência. Já a sociedade civil é constituída por organizações
políticas (aparelhos privados de hegemonia) que elaboram e difundem as ideologias
(COUTINHO, 1992).
Nesse diapasão, a inovação de Gramsci em relação a Marx é exatamente a constatação
da existência dessa sociedade civil, que atua, no âmbito do Estado, como uma mediação entre
a estrutura econômica e o Estado-coerção ou sociedade política, a qual depende da autonomia
de cada uma das esferas, que está diretamente relacionada com o grau de socialização da
política e com a correção de forças entre as classes sociais em disputa.
Essa concepção influenciou inúmeros autores contemporâneos, a exemplo de Nicos
Poulantzas (1985), para o qual, o ―estado apresenta uma ossatura material própria que não
pode de maneira alguma ser reduzida à simples dominação política‖, isso porque ele está
presente no próprio processo de produção: tanto em sua formação quanto em sua reprodução.
É, portanto, uma relação social, um complexo social, que não pode ser apenas ―apropriado‖
pela classe dominante, ―produzindo-o à sua maneira e à sua conveniência‖ (IDEM, 1985, P.
14), o que difere da concepção de Mandel e Netto, para os quais o Estado foi capturado pelos
monopólios que o transformam em ―seu Estado‖.
Expliquemos melhor: o processo de produção, que constitui a base material da
sociedade - conforma uma unidade entre forças produtivas e relações de produção, tendo
estas últimas a primazia na realização dessa unidade e, portanto, confere a essa relação a
forma de processo (de produção). Disso decorre a existência de relações políticas e
ideológicas no seio das relações de produção, as quais são expressas sob a forma de poderes
de classes e que estão presentes, de modo específico, em cada modo de produção.
Dessa forma, como o Estado já está presente na formação dessas relações sociais,
desemprenha um papel essencial na produção e reprodução das classes sociais, porque não se
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limita apenas à repressão física. Assim, tem um papel específico na organização das relações
ideológicas3 dominantes, sendo por elas invadido. Assim,

a dominação política está ela própria inscrita na materialidade


institucional do Estado [...] o poder do Estado (o da burguesia, no caso
do Estado capitalista) está inscrito nessa materialidade. Nem todas as
ações do Estado se reduzem à dominação política, mas nem por isso
são constitutivamente menos marcadas (POULANTZAS, 1985, p. 17,
grifos nossos).

Em outros termos, o autor compreende que não há uma relação ―natural‖, enquanto
teoria geral, entre Estado e dominação - que o faz comportar-se como árbitro e monopolizador
da arbitrariedade de uma única classe -, embora isso não signifique que as ações desse mesmo
Estado não estejam marcadas pela dominação política, uma vez que no capitalismo esse
Estado apresenta tais elementos.
O que ocorre, para o autor, é que as relações de forças entre as classes sociais e suas
frações são permeadas por contradições que constituem a base material do estado e são
condensadas nele. Essa condensação conforma uma unidade do bloco no poder, sob a
liderança de uma das forças sociais. Por esse motivo, a ideia de que esse estado terá,
necessariamente, a função de dominação política não tem fundamento, pois o Estado age
constantemente na produção de um substrato material do consenso entre as massas e o poder
por meio de ―medidas materiais positivas‖. Ou seja, ―o Estado também age de maneira
positiva, cria, transforma, realiza‖, podendo favorecer os interesses da classe operária, ainda
que em menor medida, ainda que reflitam concessões impostas pelas lutas dos trabalhadores,
ainda que sob o aspecto ―ideológico-engodo‖ (POULANTZAS, 1985).
A possibilidade acima mencionada é real e fora colocada pela ordem capitalista
―madura e consolidada‖ (capitalismo monopolista) que se ampliou no contexto em questão.
Quando o capitalismo recoloca em patamares mais altos as suas contradições fundamentais -
combinando-as com novas características -, novos processos complexos são deflagrados no
sentido de contrariar as consequências4 de seu objetivo primário, que é o ―acréscimo dos
lucros por meio dos monopólios‖ (NETTO, 2011, p. 21), entre os quais o mais importante é a
refuncionalização estrutural do Estado.

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Para Poulantzas (1985), a ideologia vai muito além de um sistema de ideias e representações. Compreende a
materialidade da vida cotidiana das pessoas
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Entre suas consequências está a dificuldade de valorização do capital excedente, dada a supercapitalização e o
parasitismo, próprios desse modo de produção no estágio monopolista.
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Na idade do monopólio, ademais da preservação das condições


externas da produção capitalista, a intervenção estatal incide na
organização e na dinâmica econômicas desde dentro, e de forma
contínua e sistemática. Mais exatamente, no capitalismo monopolista,
as funções políticas do Estado imbricam-se organicamente com as
suas funções econômicas (IDEM, 2011, p. 25. Grifos do autor).

A mudança no papel do Estado se dá exatamente a partir da integração orgânica entre


os aparelhos privados dos monopólios e as instituições estatais como forma de garantir o
alcance dos objetivos econômicos do capital a partir do alargamento das funções do Estado de
forma contínua e sistemática, assumindo, portanto, a responsabilidade de assegurar a
reprodução e a manutenção da força de trabalho, seja ela ocupada ou excedente. Nesse
diapasão, a luta dos trabalhadores teve importante participação, pois foi ela que colocou em
cena a necessidade pela intervenção nas expressões da ―Questão Social‖, as quais passam a
ser alvo de políticas sociais.

Através da política social, o Estado burguês no capitalismo


monopolista procura administrar as expressões da ―questão social‖ de
forma a atender às demandas da ordem monopólica conformando, pela
adesão que recebe das categorias e setores cujas demandas incorpora,
sistemas de consenso variáveis, mas operantes (NETO, 2011, p. 30)

Assim, a política social é funcional às requisições do capital, porque ela intervém nas
expressões da ―questão social‖ fragmentando-a em problemas sociais individuais,
incorporando à sua perspectiva ―pública‖ o ―substrato individualista da tradição liberal‖, ou
seja, para o Estado no capitalismo monopolista, ―o destino pessoal é função do indivíduo
como tal‖ (NETTO, 2011, p. 38).
Assim, dá-se a responsabilização dos indivíduos - demarcada pela ―família‖ como
núcleo de intervenção no marco legal das políticas sociais – pela atenuação ou resolução dos
seus ―problemas‖ sociais, de onde decorrem os trabalhos e/ou estratégias públicas de
ajustamento e modificação das características pessoais dos indivíduos e, portanto, das
famílias.
Essa perspectiva de intervenção estatal nas refrações da ―questão social‖ é respaldada
por um patrimônio teórico-cultural que se configura o pensamento conservador: o
positivismo, que tem um estilo de pensar o social, naturalizando-o e, em razão disso,
especificando o ser social a partir da esfera moral (IDEM, 2011). Assim, o Estado deve atuar
numa linha de controle social, buscando garantir a vigência de comportamentos ―normais‖ e
considerar ―disfuncional‖ tudo àquilo que foge a esse modelo.
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Desse modo, a família é inserida nas políticas sociais como núcleo central de
intervenção, sendo considerada a principal mediação para acesso ao indivíduo e, portanto, sua
responsabilização pelas mazelas sociais as quais lhe atinge. Mioto (2004, p. 04), ao refletir
sobre o trabalho dos Assistentes Sociais com famílias, faz menção ao fato dessa intervenção
estar calcada em uma lógica arcaica e culturalmente enraizada nas instituições, as quais tiram
―de foco a discussão da família no contexto de uma sociedade desigual e excludente‖,
fortalecendo uma ―visão da família como produtora de patologia‖.
Conforme sinalizamos, as Políticas Sociais são os principais instrumentos de
intervenção estatal nas expressões da ―Questão Social‖ e é nelas que o conceito de família é
colocado numa perspectiva ―familista‖, cuja ideia central, segundo Mioto (2010), é que a
esfera pública só deve prover a satisfação das necessidades sociais quando os dois canais
naturais falharem, que é o mercado e a família. ―A ideia que vem embutida no campo da
incorporação da família na política social é a ideia de falência da família. Isso corresponde a
uma menor provisão de bem-estar por parte do Estado‖ (MIOTO, 2010, p. 169-170).
Contraditoriamente à sua incorporação pelo Estado nas políticas sociais, a família é
uma relação social complexa, construída e reconstruída historicamente entre os diversos
âmbitos da sociedade, a exemplo do Estado, do mercado, do trabalho, entre outros (MIOTO,
2010), não podendo, portanto, ser resumida apenas a construção privada responsável pelo
bem-estar da dos seus membros.

3 PROGRAMA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL (PNAES) E O


CONCEITO DE FAMÍLIA: a particularidade da Universidade Federal do Cariri
(UFCA)

A Assistência Estudantil é uma forma de subsídio aos estudantes do ensino superior,


cujo campo é dinâmico e multidimensional, configurando-se como uma das dimensões da
Assistência Social, pensada na perspectiva do direito à educação.
Embora tenha ganhado notoriedade em meados dos anos 2000, com a ―mudança de
rota5‖ das políticas sociais brasileiras, a origem da Assistência Estudantil não é recente. pois
deita raízes na Constituição Federal de 1824 (resguardadas as suas especificidades), quando
suas primeiras ações encontram-se no contexto do Estado Novo (1937-1945) com os

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Os anos que sucederam a Constituição Federal de 1988 são marcados pelo avanço neoliberal no Brasil, cujas
consequências são a regressão dos direitos sociais. Entretanto, nos anos 2000, com a eleição de um governo que
teve como origem bandeiras de esquerda vislumbrou-se uma mudança de rota, especialmente nas políticas de
Assistência Social e Educação, muito embora a política macroeconômica tenha sido mantida.
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programas de alimentação e moradia universitária, cuja expansão se deu a partir da Reforma


Francisco Campos, que instituiu a Lei Orgânica do Ensino Superior.
Entretanto, o divisor de águas quanto a esse direito foi a Constituição Federal de 1988,
a qual teve a sua efetivação abortada pela onda neoliberalista a partir dos anos 1990. Nesse
contexto de avanço das políticas neoliberais, os anos 2000 expressaram uma tendência
diferente no que tange aos direitos sociais, especialmente a partir da expansão do ensino
superior, conforme sinalizado anteriormente.
A expansão desse ensino superior, que teve como pano de fundo a sua democratização
e a sua interiorização, trouxe como consequência uma mudança no perfil socioeconômico e
cultural da comunidade acadêmica6.
Em face disso, houve a necessidade de regulamentar uma política voltada à
intervenção direta nos aspectos supramencionados. Dessa forma, em 2007, por meio da
Portaria Normativa 39, foi aprovado o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES)
e, em 2010, foi alterado por meio do Decreto nº 7.234, de 19 de julho de 2010.
O público-alvo do PNAES são, prioritariamente, ―os estudantes oriundos da rede
pública de educação básica ou com renda per capta de até um salário mínimo e meio, sem
prejuízo de demais requisitos fixados pelas instituições de educação superior em ato próprio‖
(BRASIL, 2010). Em outros termos, o programa restringe os beneficiários quanto à renda
bem como apresenta um caráter individual quando foca suas intervenções apenas no
estudante, ao mesmo tempo em que considera a família como base para definição do perfil
socioeconômico mencionado.
Nesse sentido, a Universidade Federal do Cariri instituiu a Assistência Estudantil
através da Resolução Nº 16/CONSUP, DE 20 DE MAIO DE 2014, na qual a instituição
define seus programas de assistência estudantil, assim como estabelece os critérios para
acesso, os quais devem comprovar situação de ―vulnerabilidade‖ socioeconômica7 do
estudante e de sua família.
Na resolução supramencionada e nos editais posteriores divulgados pela instituição,
―entende-se por Núcleo Familiar o conjunto formado por uma ou mais pessoas, que
contribuam para o rendimento familiar ou tenham as despesas atendidas por este conjunto,
6
41% das famílias dos estudantes recebem até três salários mínimos [...] Essa distribuição ocorre de forma
desigual nas regiões brasileiras. No Nordeste e no Norte, esse percentual é de 50% e 63%, respectivamente,
enquanto nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste é de aproximadamente 30% (IMPERATORI, 2017, p. 291).
7
Vulnerabilidade socioeconômica é um conceito muito utilizado pela perspectiva social-liberal, por isso a
usamos aspeada. A respeito do social-liberalismo, ver Rodrigo Castelo (2008), disponível em:
https://revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/112/110.
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sendo todos moradores em um mesmo domicílio, desde que comprovada mediante


documentação‖ (PRAE, 2021, p. 11, grifos nossos).
Observa-se que a instituição avança quando vai de encontro ao conceito patriarcal de
família ao não definir por quem é formado esse grupo, apenas por pessoas, independente de
sua quantidade, gênero, etc. Ao mesmo tempo, a instituição regride muito ao exigir a
comprovação de que todos residam em um mesmo domicílio e, no caso do estudante, cujo
grupo familiar informado se limite a si mesmo,

deverá comprovar que a própria renda é capaz de suportar suas


despesas, conforme seu padrão de vida e de consumo, sob pena de
indeferimento‖ e, caso não possua rendimento próprio suficiente,
deverá declarar a renda do seu grupo familiar de origem, ainda que
residente em local diverso do seu domicílio (PRAE, 2021, p. 12).

Os dados corroboram a análise de Gueiros (2010), que afirma que a noção ampliada de
família ainda encontra limites nas ações institucionais, as quais desconsideram os aspectos
sociais, especialmente da região local, que historicamente encara o processo de emigração,
assim como parte do pressuposto de que ―a educação superior conta com a família para a
manutenção de seu membro na universidade‖ (BRAGA & PRÁ, 2021, p. 128).
Ademais, os critérios são ainda mais limitadores ao considerar, para o cálculo da renda
bruta familiar, todas as pessoas que ―usufruem com a renda familiar ou contribuem com ela,
residentes ou não no mesmo domicílio‖ (PRAE, 2021, p. 11), mas a percapita depende da
quantidade de pessoas que residem no mesmo domicílio, o que acaba sendo um critério
excludente, especialmente a estudantes que recebem contribuições financeiras de terceiros.
Assim, percebe-se que
o consenso existente sobre as transformações da família tem se
concentrado apenas nos aspectos referentes à sua estrutura e
composição, pois as expectativas sociais sobre suas tarefas e
obrigações continuam preservadas. Ou seja, espera-se um mesmo
padrão de funcionalidade das famílias, independente do lugar em que
estão localizadas na linha da estratificação social, padrão este calcado
em postulações culturais tradicionais referentes aos papéis paterno e
materno, principalmente (MIOTO, 2004, p. 04)

Nesse processo é importante situar o trabalho dos Assistentes Sociais que realizam a
análise socioeconômica e que têm a autonomia na emissão de um parecer social ao considerar
criticamente o perfil apresentado por cada estudante, o que permite contrabalancear os
critérios conservadores.
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O principal desafio nesse contexto é interferir nessa relação dialética entre a realidade
dos estudantes e as legislações que regulamentam a assistência estudantil na perspectiva da
noção de família ampliada, considerando a ―heterogeneidade de arranjos familiares presentes
atualmente na sociedade brasileira, não se podendo falar em um único conceito de família,
mas sim de ‗famílias‘‖ (ALVARES & FILHO, 2008, p. 11).

a família pode ser definida como um núcleo de pessoas que convivem


em determinado lugar, durante um lapso de tempo mais ou menos
longo e que se acham unidas (ou não) por laços consanguíneos. Ela
tem como tarefa primordial o cuidado e a proteção de seus membros, e
se encontra dialeticamente articulada com a estrutura na qual está
inserida (MIOTO, 1997, p.120 apud ALVARES & FILHO, 2008, p.
11).

Esse desafio é ainda maior ao considerarmos o contexto de monopolização do capital,


a consequente instrumentalização da vida e das pessoas, tendo como principal mediador o
estado, conforme apontamos anteriormente.

APROXIMAÇÕES CONCLUSIVAS

As reflexões tecidas neste artigo possibilitaram-nos compreender a relação entre


família, Estado e Política Social. No contexto dos monopólios, o Estado tem suas funções
modificadas e em razão disso incorpora a família como importante mediação para intervenção
nos sujeitos individuais através das políticas sociais.
A supramencionada incorporação é concebida numa perspectiva ―familista‖, pois se
trata a família como principal responsável pela satisfação das necessidades sociais dos seus
membros e o consequente afastamento do Estado nesse provimento.
No âmbito da Assistência Estudantil – com destaque para a UFCA, lócus de nosso
objeto -, percebem-se avanços, contradições e retrocessos na concepção e no uso do conceito
de família como elemento-chave para acesso dos estudantes à assistência estudantil,
corroborando a perspectiva anteriormente explicitada.

REFERÊNCIAS
10

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06.10.2020.pdf

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