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Revista Encontros

I. Apresentação ou de onde partimos quando analisamos a

contrarreforma do ensino médio?

O artigo em tela é fruto da minha participação no evento “Rede de

Diálogos: o Ensino Médio que temos e o que queremos”, organizado pelo Núcleo

de Pesquisas em Ensino de História (NUPEH) do Departamento de História do

Colégio Pedro II. De início, portanto, cabe duas notas. Embora seja um

pesquisador da área das políticas públicas educacionais, a contrarreforma do

ensino médio não é objeto central de minhas pesquisas e reflexões. Por outro

lado, a minha proximidade com os movimentos sociais, em especial com o

movimento sindical docente, faz com que parte das reflexões aqui elencadas

sejam, a bem da verdade, fruto da ação coletiva dessas trabalhadoras e

trabalhadores organizados e podem ser facilmente encontrados não apenas nas

publicações e redes dessas entidades, mas, fundamentalmente, no bojo das

bandeiras apresentadas em suas pautas e lutas. É ao conjunto das trabalhadoras

e trabalhadores organizados em defesa da educação pública que o presente texto

é dedicado. Com especial atenção aos servidores e estudantes do Colégio Pedro

II onde tive a honra de ser aluno e, posteriormente, docente, mesmo que em

ambos os casos por um curto período de tempo.

O presente texto busca analisar a Base Nacional Curricular Comum

(BNCC) bem como a (contra)Reforma do Ensino Médio 1 a partir da perspectiva da

teoria crítica cujo aporte teórico principal se encontra no materialismo histórico.

1
Utilizaremos a expressão contrarreforma para explicitar o cerne da proposta que, a nosso ver, aponta para
a retração ao direito ao acesso ao pensamento histórica e socialmente acumulado cuja escola e seu
currículo são elementos axiais.
Isto posto, partimos da concepção que a educação e as políticas educacionais

resultam, historicamente, das lutas acumuladas das distintas classes sociais bem

como de sua correlação de forças em determinadas conjunturas. Neste sentido,

afirmamos de maneira mais categórica que as disputas em torno da educação e

das políticas educacionais são cortadas pelas organizações das distintas classes

sociais no terreno da sociedade civil, e nisso nos inspiramos diretamente nas

reflexões do filólogo e militante político italiano Antônio Gramsci, em especial, a

sua formulação de Estado ampliado2. Outrossim, estas propostas inscritas na

BNCC e no “novo” modelo de ensino médio, não podem ser tomadas

isoladamente, fracionariamente, como o fenômeno, em sua aparência, pode nos

sugerir, afinal tratam-se de distintas propostas de leis 3. Este é um equívoco que,

infelizmente, muitos de nós, pesquisadores da educação incorremos. Elas

precisam ser postas em contraste com uma conjuntura mais ampla, como já dito

com a correlação de forças das distintas classes em determinado momento

histórico em suas disputas na sociedade civil, bem como cotejá-las com outras

medidas e iniciativas da sociedade política ou do Estado stricto sensu. A busca,

portanto, por estes nexos determinantes é que permite tomar as políticas públicas
2
Para Gramsci, de forma sumária, era um equívoco comum tratar da análise do Estado apenas por aquilo
que ele denominou de sociedade política. A sociedade política é o aparato próprio do Estado e suas
instituições como, p.ex. judiciário, polícia, leis, exército, receita fiscal e tributária, funcionários da
burocracia, etc. Sem desprezar a importância desse termo, Gramsci atenta para as disputas que ocorrem
na sociedade civil, dentre as classes sociais e aquilo que denominará de aparelhos privados de hegemonia.
Os aparelhos privados de hegemonia buscam tornar aquilo que é demanda específica, particular de uma
classe como uma ideia universal, comum as distintas classes ou benéfica a “nação”, na construção desse
consenso encontra-se um importante pilar da sua hegemonia, o outro pilar, segundo Gramsci, seria a
coerção cujo aparato material mais bem elaborado seria, justamente, a sociedade política. Todavia, como
nota analítica é importante ressaltar que a coerção não é exclusiva da sociedade política e bem como o
consenso não o é da sociedade civil. Mais do que estáticos estes termos estão em profunda relação
dialética.
3
No conjunto dessas medidas que buscam dar novos formatos ao Estado e que precisam ser postas num
mesmo conjunto dialético não estão apenas o conjunto de propostas educacionais (como a Base Nacional
Curricular Comum, a contrarreforma do Ensino Médio, o Future-se, as escolas cívico-militares, o avanço do
assédio ao docente, beócia e brilhantemente representado pelo Movimento Escola Sem Partido, dentre
outros) mas, também, aquelas que, em princípio, tratam de outras searas como a PEC do Teto dos Gastos
ou a Contrarreforma administrativa (PEC 32/2020) entre tantas outras políticas.
em seu sentido mais profundo, para além da aparência fenomênica. De acordo

com Fontes (2021), o materialismo histórico tem como propósito

Penetrar no núcleo dos processos determinantes na e da


sociedade, em sua expansão alucinada, não apenas para lista-los,
mas para apresenta-los como síntese de contradições diversas,
como resultado histórico de lutas complexas, como formas
capazes de apreender as relações sociais concretas, envolvendo
a atividade humana objetiva e subjetiva na e pela relação
sociometabólica com a natureza. (FONTES, 2021, p. 47)
Além disso, aquilo que hoje se produz como ideologias só as tornam

possíveis de serem críveis e ganharem força material se tiverem raízes fincadas

na realidade material. Em outras palavras, existe uma unidade dialética entre as

relações sociais de produção da vida com aquilo que cremos ideologicamente,

mesmo em seus mais distintos matizes. Assim, o surgimento de determinados

fenômenos sociais só se dão como possíveis na medida em que encontram

terreno fértil na realidade. Se, por um lado, as relações materiais de produção são

determinantes nas formas históricas da política, da ideologia, das religiões, da

linguagem e da cultura no seu sentido latu, por outro lado, estas não deixam

também de imprimir uma marca naquelas relações sociais de produção. É,

portanto, no encontro conflitivo de categorias como Estado ampliado, classes

sociais, totalidade dialética, relações sociais de produção da vida material que

constituímos o bojo de nossa análise sobre a escola pública no capitalismo

dependente brasileiro. De forma mais objetiva, partimos da concepção que as

políticas educacionais expressam um momento da correlação de forças das

distintas classes sociais, com especial atenção as classes fundamentais do

capitalismo que operam material e ideologicamente tendo a escola e as políticas

educacionais como objeto. Estas políticas educacionais não são mera carta de

intenções, desprovidas de conteúdo de classes e, portanto, síntese da vontade


coletiva. Nem se dão em uma sociedade abstrata, em uma escola abstrata, mas

sim no Brasil, marcado por uma formação social específica que denominaremos

de capitalismo dependente, seguindo os passos de Florestan Fernandes, onde a

escola (ou a ausência de) cumpre papel determinante na reafirmação da

autocracia burguesa e na nossa heteronomia cultural, conforme analisamos em

outro estudo (LAMARÃO, 2021) inspirados nas reflexões de Roberto Leher

(2018).

Isto posto, o presente artigo se organizará sob a seguinte estrutura textual:

Uma primeira parte abordará aquilo que entendemos como capitalismo

dependente e o papel da escola pública na formação para o trabalho simples;

uma segunda parte onde nos deteremos na análise da contrarreforma do ensino

médio e, por fim, uma terceira parte à guisa de conclusão.

II. O capitalismo dependente brasileiro e o papel da escola pública: educar

para o quê?

Não nos cabe aqui fazer uma remissão detalhada sobre a produção da

categoria capitalismo dependente nas ciências sociais brasileiras. Àqueles que

desejarem aprofundar-se no tema, por óbvio, contam com vasta literatura (que ora

nos serve de suporte) sobre este debate. Destaco, no entanto, três importantes

obras que condensam parte substancial dos aspectos que analisamos. A primeira

dela é de autoria de Florestan Fernandes (2008) intitulada “Sociedade de classes

e Subdesenvolvimento”. Ali Florestan Fernandes discordará da concepção acerca

de nossa formação social onde- como dilema para o seu desenvolvimento- se

conflitaria dois “brasis” de um lado, o Brasil arcaico, herdeiro direto da colônia de

exploração e da plantation e, de outro, um Brasil modernos, oriundo dos núcleos


urbanos e industriais que, de forma espasmódica, se apresentava como uma

alternativa àquele Brasil refém do atraso. Para Florestan não se tratava de um

antagonismo entre o moderno e o arcaico, mas sim de sua relação dialética que

ante ao seu antagonismo e sua complementariedade dava origem a algo

particular. Ainda mais, o desenvolvimento desigual e combinado, marca do

desenvolvimento capitalista em termo globais entre as nações e pela divisão

internacional do trabalho, era uma importante categoria para entender-se a

dinâmica interna do desenvolvimento do capitalismo dependente e suas relações

com o centro imperialista. Ainda, destaca o autor, que as classes dominantes

brasileiras não tinham um projeto nacional, de nação, ao contrário, ante ao seu

papel de sócio minoritário do capital internacional, tratava de ativamente manter o

papel de subordinação e de subdesenvolvimento da nossa economia, reforçando

aspectos da nossa heteronomia econômica, política e cultural. Além disso, essas

burguesias podiam impor internamente seus projetos políticos pois contavam com

relações calcadas na autocracia. Segundo Fernandes

As elites das sociedades subdesenvolvidas cumprem suas


funções históricas invertendo os seus papéis. Em vez de pugnar
pela autonomia crescente de suas sociedades nacionais, agindo
como inventores de cultura e de técnicas sociais novas, operam
como agentes e principais responsáveis de uma especialização
que converte aquelas sociedades em consumidoras retardatárias
e frustradas do progresso sociocultural alheio (FERNANDES,
2008, p. 150)

Prosseguindo nesta crítica ao dualismo, encontramos o clássico texto de

Francisco de Oliveira (2013) cujo título “Crítica à Razão Dualista” já enseja bem o

propósito daquela reflexão. Sem mais delongas, Chico de Oliveira nos presenteia

com uma analise onde aponta para a complementariedade do trabalho análogo a

escravidão no campo que leva ao barateamento da produção alimentícia e reduz,


por sua vez, o custo de reprodução do trabalhador nas cidades. Ademais, o autor

aponta para a hipertrofia do setor terciário em nossa economia apontando essa

característica como típica dos países periféricos.

Analisando os círculos de valorização do capital no capitalismo

dependente, Ruy Mauro Marini, em seu texto clássico “A dialética da

dependência” (xxxx) chega a fundamentais conclusões sobre a peculiaridade

desse processo, bem com as manifestações das determinações internas se

materializando quando se dá as trocas internacionais que reforçariam os nossos

laços de dependência. Não obstante, para além de identificar os elementos

produtores daquilo que Raul Presbich denominou deterioração dos termos de

troca, Marini chama atenção para um traço fundamental das relações sociais de

produção no capitalismo dependente, a saber: a superexploração da classe

trabalhadora. Esta superexploração sobre as trabalhadoras e trabalhadores

brasileiro cumpriria a função econômica de ampliar a taxa de extração de mais-

valor como forma de reprodução ampliada do capital em seu circuito interno

(frações burguesas brasileiras) quanto no seu circuito externo (frações burguesas

internacionais). Aqui chegamos a um ponto nodal. Pois que é exatamente para

essa classe trabalhadora que a escola pública se destinará. Classe trabalhadora

esta que, vale recordar, crivada pela superexploração sobre o trabalho, em um

país capitalista dependente que, todavia, tem sua parte no capital-imperialismo,

num país exportador de comodities cuja força motriz está no trabalho simples de

grandes contingentes de massas trabalhadoras.

De acordo com Antônio Gramsci, a escola detém um papel fundamental

nas sociedades de classe, ela- em conjunto com outras instituições como a


polícia, a Igreja, a imprensa, o judiciário- buscará conformar subjetiva e

objetivamente o homem massa consoante as suas vicissitudes, imprimindo-lhes,

ora pelo consenso, ora pela coerção, valores sociais de uma sociabilidade

consoante àqueles que conseguem construir a hegemonia.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Economia. Proposta de Emenda à Constituição nº 32 de


03/09/2020. Altera disposições sobre servidores, empregados públicos e
organização administrativa. 2020
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 5ª ed. rev.
– São Paulo : Global, 2005.
FONTES, Virgínia. A criação do marxismo: polêmicas sobre Marx e Engels. Págs.
43-73 IN: MASCARO, A. L. [et al.]. Curso livre Engels: vida e obra. 1ª ed.- São
Paulo : Boitempo, 2021.
LAMARÃO, M. V. M. Aspectos históricos do financiamento da educação básica
pública brasileira: a “democratização autocrática”. Revista Vértices, v. 23, n. 3, p.
803-820, 27 ago. 2021.
LEHER, Roberto. Universidade e heteronomia cultural no capitalismo dependente;
um estudo a partir de Florestan Fernandes. – Rio de Janeiro: Consequencia,
2018.
OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista- O Ornitorrinco. São Paulo: Ed.
Boitempo, 2003.

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