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Dialética em Piaget

Anallú Lorenzon e Luiza C. Drago

Resumo
O presente artigo pretende investigar a utilização do jogo Cara a cara como
instrumento adequado para descrever a dialética de Piaget. Para tal fim, partiremos
da elucidação do conceito de dialética em Piaget. Em sequência, abordaremos
alguns pontos da teoria de desenvolvimento de Piaget, a título de conhecimento
acerca das capacidades desenvolvidas pelas crianças na faixa etária do jogo. Por
fim, buscamos verificar as condições “genéticas ou epistemológicas” do jogo Cara a
cara para examinar a constituição dialética do conhecimento em Piaget.

1. Introdução
Para abordar o tema da Dialética em Piaget se faz necessário,
primeiramente, elucidar em qual sentido o autor se apropriou deste conceito
filosófico. A dialética é termo muito utilizado na História da Filosofia. Seus usos são
variados e comportam uma série de particularidades relativas ao sistema filosófico a
qual se insere. Não adentraremos nas perspectivas filosóficas que fundamentam
Piaget, pois acreditamos que este caminho promoverá um desvio de nossa questão
central. Optaremos por concentrar nossos esforços em compreender como Piaget
define a dialética em sua obra As formas elementares da dialética. Suas
conceituações e explicações nos parecem suficientes para compreendermos o
sentido que o termo ganha em sua psicologia genética.
Abordaremos a dialética, em Piaget, como um “método” para a constituição
do conhecimento. Enquanto método para o conhecimento, concentraremos nossa
análise em compreender como a dialética permite interpretar a dinâmica do
desenvolvimento cognitivo. Piaget compreende o processo do desenvolvimento
como uma interação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, interação
complexa, pensada a partir de uma perspectiva metodológica dialética. Situar a
dialética enquanto método deste processo implica considerá-la como o caminho, a
via, o meio através do qual o desenvolvimento ocorre. Segundo Piaget (1996),
“há processos dialéticos em todos os níveis do pensamento, e mesmo
da ação, em todos os casos em que se torna necessário construir novas
formas que não se deduzam por vias simplesmente “discursivas” das
estruturas ou das propostas já conhecidas anteriormente: donde o caráter
muito elementar de certas provas das quais nos serviremos e para a solução
das quais só se esperaria a utilização de inferências imediatamente
evidentes, enquanto a análise dos níveis iniciais mostra que essas soluções
exigem sínteses e a construção de interdependências às quais não se pode
negar um caráter dialético (p. 11)”
Deste modo, a dialética é a forma da atividade cognitiva, o que não significa
que podemos reduzi-la a qualquer atividade cognitiva. Em todo desenvolvimento
cognitivo há alternância entre as fases dialéticas e as fases discursivas. Castorina e
Baquero (2005) afirmam que Piaget sustenta a alternância entre a construção de
estruturas e as inferências dedutivas, próprias ao pensamento estrutural (p.62). A
dialética está relacionada à construção de estruturas, que pode ser descrito como o
encadeamento de conhecimento produtor de novidades que não se deduzem de
premissas (p.63). Como se dá esta experiência de conhecimento? A partir da
interação com objetos diferentes, a criança revela um tipo de inferência, extraído da
situação precedente, a partir de partes chega-se a um todo, mas sem ser uma
conclusão lógica do que lhe era apresentado previamente. Este tipo de produção de
conhecimento não pode ser relacionada a lógica formal, uma vez que o
conhecimento produzido não aparece como uma consequência lógica. Deste modo,
concordamos com Konder (1995) quando afirma que a dialética piagetiana
transcende os limites da lógica formal.
A dialética, na perspectiva piagetiana, não se resume a clássica forma tese,
antítese e síntese. Segundo Piaget (1996), “há dialética quando dois sistemas, até
então distintos e separados, mas não opostos um ou outro, fundem-se numa
totalidade nova, cujas propriedades os ultrapassam e até mesmo, às vezes, em
muito” (p.197). Deste modo, não é necessário que haja objetos ou situações
contrárias para que no processo do conhecimento o sujeito chegue a uma
conclusão que supere a contradição. O conhecimento, neste caso, não está na
resolução da contradição, mas no exercício de chegar a uma unidade a partir de
uma multiplicidade prévia, que lhe aparecia como distinta e conflituosa. Um exemplo
elucidativo citado por Piaget é o aprendizado dos números naturais. O número
aparece como uma síntese das operações: classificar e ordenar. Para classificar
objetos o sujeito precisa concentrar sua atenção nas semelhanças, a fim de fazer os
agrupamentos necessários. Por outro lado, para ordenar é necessário se ater as
diferenças, pois é o reconhecimento das singularidades que permite a classificação.
Ao aprender a contar, o sujeito adquire uma função que comporta duas operações
diferentes.
Piaget (1996) enumerou seis características comuns produção de
conhecimento por via da dialética, e, segundo o autor, cada uma delas carrega ou
supõe todas as outras (p.198). A primeira afirma que é necessário que haja a
construção de interdependências até então não realizadas entre dois sistemas
distintos, a fim de considerá-los como subsistemas de uma nova totalidade, cuja
característica de conjunto não correspondem a nenhum dos dois sistemas antes da
reunião. A segunda aponta que mesmo antes de se estabelecer relações entre os
objetos, já existe dialética nas interdependências estabelecidas entre as partes de
um mesmo objeto. A terceira característica é que toda nova interdependência gera
“superações” quando, acrescida às precedentes, leva a uma nova totalidade T2 da
qual a precedente T1 se torna um subsistema. A quarta menciona a intervenção de
circularidades ou espirais na construção das interdependências. A quinta marca o
fato de toda dialetização levar a relativização, pois um caráter anteriormente
compreendido como isolado é posto em relação com outros pelo jogo das
interdependências. E a sexta afirma que a dialética constitui o aspecto inferencial de
toda equilibração.
A dialética, deste modo, nos permite pensar a capacidade do sujeito de se
encontrar em permanente abertura para a novidade, para a produção do novo. Este
movimento encontra momentos de equilíbrio, formas articuladas ou totalidades
estruturadas, mas estes estados não são inertes, imóveis. Em Seis estudos de
Psicologia (1999), para definir o equilíbrio em psicologia, Piaget destaca três
características: o equilíbrio se caracteriza por sua estabilidade, o que não quer dizer
imobilidade; todo sistema pode sofrer pertubações exteriores que tendem a
modificá-lo; e o equilíbrio não é passivo, mais essencialmente ativo. Esta
caracterização de equilíbrio nos dá base para compreendermos a noção de
equilibração proposta na definição de dialética presente na sexta característica.
Enquanto a equilibração é o processo construtivo que conduz a formação de
estruturas, o equilíbrio é o estado estável atingido por estas estruturas uma vez
construídas (1996, p. 200).
Tendo visto que a equilibração remete a uma estabilidade que comporta a
possibilidade da mudança, resta-nos pensar o que seria o “aspecto inferencial”
mencionado por Piaget em sua definição do método dialético. A inferência é
diferente de uma dedução típica da lógica formal. Na dedução o sujeito conclui a
partir de premissas dadas, através de uma redução lógica, do geral para o
particular. Partindo de princípios reconhecidos como verdadeiros (premissa maior),
o pesquisador estabelece relações com uma segunda proposição(premissa menor)
para, a partir de raciocínio lógico, chegar à verdade daquilo que propõe (Definição
da Wikipédia). Na inferência, por outro lado, conclui-se algo, em um sistema aberto,
sobre alguma coisa partindo de uma hipótese. Na inferência, a partir de fragmentos
de informação chega-se a um todo.

2. Desenvolvimento
A escolha de um jogo para explicitar a dialética se deve a capacidade deste
ser um veículo para o processo do desenvolvimento. Além disso ele solicita, por sua
estrutura e conteúdo, uma qualidade de interação de natureza construtiva, ou seja,
que supõe formas de interdependência relacional ou dialética (Macedo, 1996, in:
Piaget, 1996). Os jogos viabilizam a descrição de processos, eles são instrumentos
propícios para a análise ao qual visamos. Deste modo, utilizaremos neste artigo o
jogo Cara a cara como instrumento de analise da dialética. Antes da analisar as
propriedades dialéticas do Cara a cara, forneceremos algumas informações sobre o
jogo, assim como alguns pontos da teoria do desenvolvimento de Piaget, que
consideramos essencial para a posterior compreensão da análise.
O jogo Cara a cara é a versão brasileira baseado no jogo Guest who?, jogo
criado e fabricado pela empresa norte americana Milton Bradley Company,
responsável também pela criação do jogo The Checkered Game of Life (Em
tradução livre: O xadrez do jogo da vida). O jogo chegou em 1986 no Brasil, através
da empresa brasileira Estrela - conhecida tradicionalmente por fabricar jogos de
tabuleiro como o banco imobiliário –, apresentando posteriormente outras versões
inspiradas em desenho e filmes, com os personagens dos mesmos nas molduras.
O Cara a cara é constituído por dois tabuleiros, nos quais são apresentados
vinte e quatro rostos de personagens, sendo eles homens e mulheres, em imagens
fixadas em molduras, em que para ambos os jogadores aparecem os mesmos
personagens. A princípio todas as molduras do jogo devem estar levantadas, de
modo a apenas o jogador visualizá-las. O jogo inicia-se quando cada jogador adquiri
uma carta com um personagem em um baralho. Assim, o proposito do jogo é
descobrir através de perguntas qual é o personagem na carta do adversário.
O jogo ao todo são cinco rodadas, em que no final o jogador que tiver mais
pontos ganha o jogo. Os pontos podem ser obtidos quando restar apenas uma
moldura no tabuleiro e acertar o personagem da carta do adversário, ou quando em
qualquer momento da partida resolver tentar adivinhar, neste caso, se errar o ponto
vai para o oponente.
As regras estabelecem uma pergunta por vez a cada jogador, estas devem
ser acerca características dos personagens, como cor do cabelo, pele e olho,
formato do rosto e sobre os acessórios, tudo o que pode diferenciar e ajudar a
descobrir a carta do oponente, no entanto, a pergunta a respeito do gênero da carta
apenas pode ser realizada após a segunda rodada. O jogador ao responder aos
questionamentos, por sugestão do jogo, deve responder apenas “sim” ou “não”, afim
de evitar fornecer muitas informações. A cada pergunta feita e resposta obtida do
outro competidor, o jogador abaixa as molduras que não se adequam com as
características descobertas do personagem.
Visto as regras do jogo, propusemos, como tentativa, utilizar o jogo como
instrumento para a descrição da dialética de Piaget, correlacionando com a teoria do
mesmo em relação ao desenvolvimento infantil.
Piaget formulou uma teoria afim de explicar e descrever, de forma
sistemática, da origem e do desenvolvimento das estruturas intelectuais e do
conhecimento, elaborando uma teoria a respeito do desenvolvimento da inteligência
(Wadsworth, 1997, p.1). O desenvolvimento da criança foi classificado em quatro
estágios, sendo eles: sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e
operatório formal. Esses estágios não substituem o estagio anterior, mas sim o
superam, visto que as características vão se desenvolvendo e se complementando
a cada fase.
O desenvolvimento que acontece através da desequilibração e da
equilibração, ou seja, em ações proativas e retroativas, erros e acertos, são estes
processos circulares que compõe a dialética, fazendo com que as fases
estabelecidas por Piaget evoluam a partir desse movimento.
A classificação de idade indicada pelo fabricante do jogo, se enquadra no
estágio pré-operatório, em que a criança já desenvolveu as características do
estágio anterior, o sensório motor, principalmente a capacidade de representação,
que marca a passagem de um nível de inteligencia sensório-motora para uma
inteligencia representacional.
O estágio pré-operatório, que ocorre dos dois aos sete anos em média, é
caracterizado pelos aparecimento das habilidades representacionais, em que tipos
de representação distintos se desenvolvem como o jogo simbólico, a imitação
diferida, e a linguagem falada, assim como o desenvolvimento da e a sociabilização
do comportamento,do egocentrismo, centração, a ausência de reversibilidade e a
inabilidade de acompanhar transformações. Se mostra necessário ressaltar que
embora a linguagem falada se manifeste apenas aos dois anos de idade, não
implica que o pensamento era inexistente, mas sim o oposto. Isto porque antes da
linguagem, a inteligencia se mostra prática baseando-se na manipulação de objetos
e no uso de preceitos e movimentos organizacionais em “esquemas de ações”, que
após a linguagem ser adquirida utiliza-se de palavras e conceitos, ou seja, um
comportamento verbal.
A manifestação da linguagem na criança possibilita a execução de
comportamentos verbais, em que permite a representação de muitas ações
rapidamente, alem de viabilizar o pensamento e adaptação para além da atividade
presente (Wadsworth, 1997, p. 72).
Outra característica importante que se desenvolve no estágio pré operatório é
o entendimento e a adesão das regras, assim como a exigência do cumprimento
das mesmas por outros (Wadsworth, 1997, p. 120). No entanto é só a partir dos sete
anos ou oito anos - estágio operação concreta - que as crianças começam a
compreender a importância das regras para um jogo correto (Wadsworth, 1997, p.
121).
O desenvolvimento da linguagem e o inicio do compreendimento das regras,
assim como a capacidade de julgar o que deve ser respondido, e planejar o que
deve ser perguntado, justificam a classificação de idade indicada, que se enquadra
no estágio operatório. Visto que este estágio inicia-se aos dois anos, e a idade
minima do jogo seja cinco anos, supõe-se a necessidade de um vocabulário mais
amplo para as perguntas, e até mesmo para a manipulação dos elementos físicos
que constituem o jogo. O fabricante optou definir cinco anos como idade mínima
provavelmente julgando que as crianças teriam mais êxito no jogo com esta idade. A
verificação desses estágio mostra-se importante devido a compreensão de qual
capacidade já foram desenvolvidas e qual ainda estão em progressão.
Para utilizar o jogo Cara a cara como instrumento de análise da dialética,
partiremos de uma retomada dos conceitos: julgamento, predicado, conceito e
inferência, essenciais para compreendermos o processo de produção de
conhecimento e desenvolvimento na epistemologia genética piagetiana.
Primeiramente devemos sustentar que os conceitos C são amalgamas de
predicados P, que os julgamentos J são relações entre conceitos C e que as
inferências I são compostos de julgamentos J (Piaget, 1996, p. 16). Mas também,
todo julgamento repousa em inferências, que o emprego de todo conceito C exige
julgamento J e que todos os predicados P resultam da comparação de vários
aspectos. Estas relações são indissociáveis, pois trata-se de uma circularidade
dialética fundamental.
O jogo se desenvolve através de perguntas simples, a respeito das
características físicas dos personagens, como por exemplo: “a cor do cabelo é
preto?” ou “o personagem usa um chapéu?” A resposta sim ou não a questão
colocada permite ao jogador uma precipitação. Se a cor do cabelo do personagem
que está oculta e procuro adivinhar não é preta, suponho que seja de uma outra cor.
Os personagens do jogo podem ser chamados de “objetos conceituais”,
sendo este constituído por um conjunto de predicados em um único objeto, porém
ao atribuir algum predicado à um personagem, existe a possibilidade de não atribuí-
la á outros. Se isto acontecer durante o jogo Cara a cara, a possibilidade de sujeito
esquecer molduras levantadas, e assim perder pontos, é alta.
Uma predicação depende do contexto da ação ou do nível de
desenvolvimento em que se encontra o sujeito. Predicados existem como função de
uma necessidade que temos de qualificar coisas, seja em virtude das demandas
impostas pela sobrevivência social ou porque precisamos atender aos apelos das
ideologias das quais fazemos parte (Queiroz, 2000), assim ao responder uma
pergunta do oponente, ocorre ali uma predicação. Como dito por Macedo citado por
Queiroz (2000):
“Predica-se ao se afirmar ou negar sobre alguma coisa em ato.
Também pode-se predicar em pensamento, fantasia, sonho, desejo, como
um problema, como uma resposta, uma proposta, pode-se predicar como
uma decisão. Porque predicar é o mesmo que agir, que atuar. Essa
qualidade que, em ato ou em pensamento, afirma ou nega alguma coisa. Na
verdade, estamos sempre inseridos num sistema de predicação. (Macedo,
1997)_.”
Somente ao ser jogado por crianças de dez aos doze anos, é possível
visualizar os outros conceitos - julgamento, inferência e conceito -, assim
teoricamente, através do jogo é provável identificar o estágio do desenvolvimento
das capacidades das crianças.
Os conceitos necessitam da linguagem, e que esta seja compreendida por
ambos os jogadores, pois são os que nos permitem estabelecer que as coisas que
nos cercam possuem alguns atributos que, totalizados, determinam a possibilidade
de denominação (Queiroz, 2000). No caso do jogo, os conceitos seriam acerca cor,
objetos e gênero. O julgamento se articula diretamente com o conceito, pois para o
ato de julgar, necessita-se de conceitos, ou seja, para julgar se um personagem
possui cabelo loira, exija-se o conhecimento do conceito de loira, e que seja o
mesmo para ambos os jogadores.
Por ultima a inferência, é um tipo de julgamento, em que não existe
ambivalência. A inferência tem a ver com conclusão, ou seja, inferir é deduzir, é
concluir algo à respeito de alguma coisa (Queiroz, 200). É concluir, através do
julgamento, inferir sim ou não às respostas dos adversários. A descoberta do
personagem é possível pela utilização de inferências imediatamente evidentes,
exigindo sínteses e construções de interdependências com características
dialéticas.

Conclusão:

Acreditamos que o jogo Cara a cara é um instrumento adequado para representar a


dialética piagetiana uma vez que o seu funcionamento nos permite reproduzir a
produção de conhecimento pelo método dialético da epistemologia genética.

Referências Bibliográficas:

● Castorina, J. A., & Baquero, R. J. (2008). Dialética e psicologia do


desenvolvimento: o pensamento de Piaget e Vygotsky. Artmed.
● Konder, L. O que é dialética. 27ª ed. SP: Brasiliense, 1995. 87 p. (Coleção
Primeiros Passos, vol. 23)
● Milton Bradley <http://www.biography.com/people/milton-bradley-9223556>
● Piaget, J. (1996). Formas Elementares Da Dialética, as. Casa do Psicólogo.
● Piaget, J. (1999). Seis estudos de psicologia. Forense Universitária.
● Queiroz, S. D. (2000). Inteligência e afetividade na dialética de Jean Piaget:
um estudo com o jogo da senha. São Paulo: Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.
● Wadsworth, B. J., Rovai, E., & Maluf, M. R. (1992). Inteligência e afetividade
da criança na teoria de Piaget.

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