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Ludoterapia Centrada na Criança: facilitação do resgate da


autonomia no processo de vir-a-ser
Maria Luíza Rocha de Andrade1

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão [...]
Milton Nascimento

Há em cada um, algo da criança que um dia existiu. Talvez seja a parte mais
bem guardada, a mais alegre ou talvez se encontre esquecida em algum lugar...
Mas ela está lá, sempre pronta para retornar, se o adulto lhe der uma chance. O fato
é que um dia esta criança existiu. Mas é comum que, com o passar dos anos, a
leveza e o lúdico, experimentados na infância, cedam lugar às preocupações,
responsabilidades, ocupações e tantas outras coisas próprias da idade adulta.
Algumas pessoas desaprendem a alegria, o lúdico, a espontaneidade. Como no
diálogo da tartaruga com a libélula, personagens de ALVES (2004):

[...] Os adultos fazem assim. E vivem nos mais diferentes tipos de buracos,
que vão de casas até empregos públicos. Minha carapaça é forte. Nem
martelo consegue quebrá-la. Você é mole. Eu sou dura. Moles são as
crianças, os poetas, os artistas, os sonhadores. Duros são os banqueiros,
os policiais, as pessoas de convicções sólidas, possuidoras da verdade.
Todas as libélulas devem se tornar tartarugas. Para isto existe a educação.
(ALVES, 2004, p. 8).

Mas o mundo das crianças não é tão feliz quanto se pensa, ou quanto parece
ser. Nele também existem medos, angústia, tristeza, dor. É preciso entender um
pouco do funcionamento psíquico da criança para poder ajudá-la a compreender e
elaborar suas próprias experiências2.

1
Psicóloga, Psicoterapeuta, Facilitadora de Grupos, Professora Universitária e Supervisora Clínica. Mestre em
Educação, Especialista em Sexualidade Humana, Coordenadora da Célula de Psicologia do Programa
Educacional Diabetes Weekend, Vice-Coordenadora Geral da Associação Ibero-americana da Abordagem
Centrada na Pessoa. National Focusing Coordinator (Coordenadora Nacional de Focusing) e Focusing Trainer
pelo The Focusing Institute (NY-EUA). Coordenadora de Focusing e Diretora Presidente do CPHMINAS.
2
O termo experiência é usado por Rogers e deve ser entendido no sentido fenomenológico: é tudo que se
passa no organismo em um determinado momento e que é potencialmente disponível à consciência. O mesmo
que campo fenomenológico.

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Antes de aprender sobre a técnica de ludoterapia, é necessário conhecer este ser


que se pretende ajudar e beneficiar com esta técnica, a criança.

Diversas maneiras de se pensar a criança

Não é fácil definir criança, talvez seja melhor começar a dizer o que não é
criança. Criança não é inferior, não é melhor nem pior, não é objeto, não é o futuro
da nação, não é anjo, nem demônio. É preciso deixar que ela ocupe o lugar que lhe
é devido que, segundo Damazio (1988, p.8) é: “um sujeito em seu momento
específico de vida”. Como tal, merece reconhecimento e respeito por sua
capacidade, por sua autonomia, por seu momento presente, tão peculiar em sua
forma de ser, de pensar, de se expressar.
Ao longo da história, a criança já foi vista e tratada de diversas formas
conforme a ótica adotada; e esta fase da vida sempre esteve ligada à ideia de
dependência, de fragilidade, de alguém que ainda não é, mas com a perspectiva de
vir-a-ser. (PHILIPE ARIÉS, 1981).
Há duas teorias clássicas que buscam explicar a relação do ser humano com
o mundo, estas são o ponto de partida para as abordagens científicas que surgem
construindo suas teorias. São elas o Empirismo e o Racionalismo.
Para o Empirismo, o pensamento é o resultado da ação do mundo externo
sobre o cérebro. Tudo que se sabe é resultado do que os órgãos dos sentidos
conseguem captar. Então a criança é um ser passivo da ação externa, do ambiente.
(DAMAZIO, 1988).
Para o Racionalismo, a compreensão do mundo só é possível pela razão. O
representante clássico da corrente racionalista foi o filósofo francês René Descartes,
que cunhou a célebre frase do penso, logo existo. De acordo com este pensamento,
então a criança é um futuro sujeito. (DAMAZIO, 1988).
Em ambas as formas de pensar, a criança não é considerada em sua forma
singular de interagir com o mundo, de atuar no mundo, não é considerada no
momento presente de sua existência.
Segundo Áries (1981) a infância era considerada como um período de
transição até o século XVII. Somente a partir daí é que a infância passou a ser
reconhecida como uma etapa distinta no desenvolvimento humano, marcada por
características próprias.
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Ao longo da história apareceram várias formas de se pensar a criança;


nascem abordagens teóricas importantes neste intento de compreender a criança
em suas particularidades, em suas maneiras próprias de interagir com o mundo e
buscar seu desenvolvimento.
As mudanças foram progressivas no sentido de valorizar o lugar ocupado pela
criança na família e na sociedade. A criança vem, gradativamente, assumindo
identidade, voz e até um estatuto legal, o que faz com que a criança passe a ser
compreendida dentro do contexto histórico em que está inserida. (GAÍVA e PAIÃO,
1999).
Em seu livro O que é Criança, Damazio (1988) destaca três abordagens que
lhe parecem importantes: o Behaviorismo de John B. Watson, a Psicanálise de
Sigmund Freud e a Psicologia Genética de Jean Piaget.
Para o behaviorismo a criança pode ser moldada para qualquer função, sendo
treinada a reagir aos estímulos, problemas e obstáculos. A relação do homem com o
mundo é basicamente a partir de estímulos e respostas.
Sobre John Watson, psicólogo norte-americano, Damazio (1988), diz:

É desse autor a curiosa afirmação de que, se lhe fossem dadas crianças


sadias nas condições que ele estabelecesse (formal e arbitrariamente), ele
as transformaria, através do treinamento, em médicos, advogados, artistas
ou até mendigos, se assim o desejasse. Segundo esta teoria, o homem é
plenamente adaptável e condicionado pelo meio em que vive (Damazio,
1988, p. 14).

Para o criador da psicanálise, o psiquiatra alemão Sigmund Freud, os sete


primeiros anos da vida nortearão toda a estrutura psicológica do indivíduo.
Segundo Damazio (1988) para a psicanálise

A criança vai elaborando seus códigos de comportamento conforme


experimenta a satisfação ou não de suas necessidades em contato com o
mundo externo e as pessoas. O seio materno, a descoberta dos órgãos
genitais, os conflitos com as figuras do pai e da mãe, as necessidades
orgânicas, a troca de afetividades, tudo isso irá tecendo a rede de
experiências cotidianas e simbólicas que representarão o reverencial para a
formação da personalidade da criança. (Damazio, 1988, p. 20).

Essa formação se dará a partir da projeção do mundo interior da criança no


mundo exterior e a incorporação de experiências com fatos do mundo concreto
sobre seu mundo interior. Sendo o comportamento entendido como resultante dessa
projeção e desta incorporação concomitantemente.
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Jean Piaget – biólogo suíço, com especialização em psicologia – é apontado


como o responsável por uma importante modificação na teoria sobre a criança. “Sua
perspectiva é a do homem como sujeito de ação sobre o meio”. (Damazio, 1988,
p.16).
Para Piaget a compreensão da realidade, assim como o desenvolvimento do
raciocínio, acontece através de uma sucessão de momentos, também chamados de
estágios, de maturação e interação do indivíduo com o meio.
O que acontece é um processo de troca, segundo a ótica da psicologia genética de
Piaget. O homem busca informações no mundo, recebe-as e as assimila. Estas
informações são incorporadas e transformadas em novas informações, o que recebe
o nome de acomodação.
Entendendo que o “processo de assimilação-acomodação implica um trabalho
ativo do sujeito, pois o homem não só recebe estímulos como os reelabora, os
decodifica” (Damazio, 1988, p.17). O tempo todo o homem está criando e recriando
informações, sendo que a acomodação não significa o fim do processo, antes disso,
este estágio prepara o sujeito para novos avanços de aquisição.
Visando compreender as crianças, Piaget buscou observar nelas a evolução
das descobertas: a elaboração do conhecimento, o pensamento, a maneira de
interagir e significar o mundo, a formação do pensamento e do sentimento.

Isso significa reconhecer que a vida é um processo de maturação


intermitente, uma sucessão de momentos inter-relacionados e
interdependentes. E, junto com tal reconhecimento, a evidencia de que a
criança é um sujeito em seu processo de crescimento, com suas
possibilidades orgânicas e mentais e portadora de seus próprios meios de
viver e conhecer a realidade. (DAMAZIO, 1988, p.17).

Outro ponto importante a ser ressaltado dentro desta perspectiva é que o


desenvolvimento da criança é que vai propiciar seu aprendizado. “Isto é, as crianças
são diferentes e têm seu jeito de crescer como pessoa. (...) Não se pode impor, ao
menos saudavelmente, um crescimento generalizado e forçado”. (DAMAZIO, 1988,
p. 18).
Lev Vygotski, psicólogo bielo-russo, apresentou sua contribuição na busca da
compreensão do desenvolvimento humano, trazendo uma perspectiva sócio-
histórica, onde aponta que o papel desempenhado pela linguagem é de fundamental
importância na aprendizagem. Para este autor “os fundamentos da periodização das

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idades não devem ser buscados nos sintomas ou indícios externos, mas nas
mudanças internas do processo de desenvolvimento infantil”. (VYGOTSKI, 1991, p.
256).
Vygotski afirma que a origem das formas superiores de comportamento
consciente deve ser achada nas relações sociais que o homem mantém. O homem
é visto como um ser ativo, que incide sobre o mundo através de suas relações
sociais. O desenvolvimento infantil é compreendido a partir dos aspectos
instrumental, cultural e histórico. História da sociedade e desenvolvimento humano
caminham juntos. (BOCK, 1999).

Um pensamento inovador

Dando continuidade à evolução dos conceitos, elaboração de teoria e


aplicação prática, é de grande importância a corrente de pensamento de um dos
maiores representantes da Psicologia Humanista e criador da Abordagem Centrada
na Pessoa (ACP): o psicólogo norte-americano Carl Ransom Rogers.
O pensamento de Rogers é pautado na confiança no potencial humano de
crescimento e autorrealização. Sendo o conceito de Tendência Atualizante, central
em sua teoria da personalidade:

A tendência a atualização é a mais fundamental do organismo em sua


totalidade. Preside o exercício de todas as funções, tanto físicas quanto
experienciais. E visa constantemente desenvolver as potencialidades do
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individuo para assegurar sua conservação e seu enriquecimento , levando-
se em conta as possibilidades e os limites do meio. (ROGERS & KINGET,
1977, I p.41).

A Tendência Atualizante ou Tendência a Atualização é inerente a todo


organismo vivo e não visa somente a manutenção das condições elementares de
subsistência, como as necessidades básicas propostas por Abrahan Maslow,
estando presente em todas as atividades mais complexas e mais evoluídas.
A confiança na Tendência a Atualização revela a confiança no potencial
criador humano, “considerando que o homem é seu próprio arquiteto”. (ROGERS &
ROSEMBERG, 1977, apud Gobbi et al, 2002, p. 145).

3
O termo enriquecimento deve ser entendido no sentido fenomenológico e refere-se a tudo que favorece o
desenvolvimento integral do indivíduo pelo crescimento de tudo o que possui e de tudo o que é – importância,
saber, poder, felicidade, talentos, prazer, posses e tudo o que aumenta a satisfação que ele obtém disso.
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Consequente com este conceito central, Rogers & Kinget (1977: I) afirmam
que a criança
[...] é equipada com um sistema inato de motivação (a tendência à
atualização própria de todo ser vivo) e de um sistema inato de controle (o
processo de avaliação “organísmica”) que, por meio de comunicação interna
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automática , mantém o organismo a par do nível de satisfação das
necessidades que emanam da tendência à atualização (ROGERS &
KINGET, 1977: I, p. 196).

Em sua teoria da personalidade, Rogers & Kinget (1977: I) postulam que no


período da infância, o indivíduo possui as seguintes características:

1. Ele percebe sua experiência como sendo a realidade. Sua experiência é


a sua realidade. a) Disto resulta que, melhor que ninguém, é capaz de
apreender o que é para ele a realidade, já que nenhum outro indivíduo é
capaz de se imergir totalmente no seu ponto de referência interno. 2. Possui
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uma tendência inerente a atualizar as potencialidades de seu “organismo” .
3. Reage ante a (isto é, ante “sua”) realidade em função desta tendência
fundamental à atualização. Seu comportamento representa um esforço
constante e orientado (goal-directed) do organismo a fim de satisfazer suas
necessidades de atualização tal como ele as percebe, na realidade, tal
como a percebe. 4. Na sua interação com a realidade (com seu meio), o
indivíduo se comporta como um todo organizado, isto é, como uma “Gestalt”
ou estrutura. 5. Sua experiência é acompanhada de um processo contínuo
de avaliação. Esta avaliação pode se denominar “organísmica”, já que é a
tendência atualizante que lhe serve de critério. Atribui um valor positivo às
experiências que percebe como favoráveis à preservação e à valorização
do organismo; e atribui um valor negativo às experiências que percebe
como contrárias à preservação e à valorização do organismo (à totalidade
do seu ser). 6. Tende a procurar as experiências que percebe como
positivas e a evitar as experiências que percebe como negativas. (ROGERS
& KINGET, 1977: I, p. 195).

Pode-se concluir que a criança cria seu próprio mundo, um mundo que existe
somente para ela, ou seja, a realidade da criança é constituída pela representação
que ela faz de seu meio. Seu comportamento é determinado pela percepção que ela
tem da realidade ou do estímulo. Evidentemente, a realidade que afeta seu
comportamento é a realidade vivida.
Dentro desta sua realidade, de acordo com suas experiências, a criança
muitas vezes padece seus conflitos, medos, sentimentos e muitas vezes não
encontra forma, lugar ou a pessoa adequada para ouvi-la e compreendê-la, gerando
precocemente adoecimentos de ordem psicológica, dificultando o desenvolvimento

4
Rogers afirma que este sistema de controle é de ordem cibernética, isto é, até certo ponto comparável aos
mecanismos do autocontrole de certas máquinas.
5
A totalidade do indivíduo, a partir de uma visão holística da pessoa. É uma totalidade que interage com o
ambiente. Diz respeito às experiências vividas pelo indivíduo, o que envolve sentimentos, pensamentos,
emoções, etc.

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emocional saudável, gerando prejuízos na formação de seu autoconceito, sua


autoestima, sua autoimagem, enfim, na formação de seu self – que geralmente é
definido como o “si-mesmo, como o núcleo central da personalidade”. (GOBBI et AL,
2002, p. 139).
O self pode ser definido como:

[...] a configuração experiencial composta de percepções relativas ao eu, as


relações do eu com o outro, com o meio e com a vida, em geral, assim
como os valores que o indivíduo atribui a estas diversas percepções. Esta
configuração se encontra num estado de fluxo contínuo, isto é, muda
constantemente, ainda que seja sempre organizada e coerente. (ROGERS
& KINGET, 1977: I, p. 165).

Tendo a criança sua maneira muito própria de pensar, de se expressar, de


interagir com o mundo e de expressar seus sentimentos; a Psicologia buscou
alcançá-la, aproximar-se de seu mundo, entender sua linguagem e encontrar meios
para facilitar a expressão de suas experiências. Surgiu, assim, a abordagem clínica
com criança, denominada ludoterapia.

Entendendo o que é Ludoterapia

Ludoterapia é uma abordagem psicoterapêutica com crianças que se


desenvolve a partir de uma relação interpessoal entre o terapeuta e a criança, em
um clima acolhedor, onde a criança sente-se livre para entrar em contato com suas
experiências e expressá-las da melhor maneira que lhe for possível.
“A palavra ludoterapia é derivada da palavra inglesa play-therapy, podendo
ser literalmente traduzida como terapia pelo brincar”. (HOMEM, 2009, p. 21).
Logicamente este brincar é diferente do brincar cotidiano.
Segundo Rogers (1992, p. 269) “a ludoterapia parece ter sido originada de
tentativas de aplicar a terapia psicanalítica a crianças”. Anna Freud modificou a
técnica analítica clássica, pois as crianças não faziam associação livre como os
adultos. O brincar surgiu como uma técnica para produzir um envolvimento
emocional positivo com a criança, conquistando sua confiança, tornando possível a
realização da psicoterapia.
Nesta mesma época, Melanie Klein acreditou que as atividades lúdicas da
criança e suas verbalizações correspondentes, tais quais as livres associações dos
adultos, eram determinadas pela motivação. Chamou esta abordagem de

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ludoanálise e a caracterizou por precoces e profundas interpretações do


comportamento infantil. (ROGERS, 1992).
Depois de Anna Freud e Melanie Klein, outros terapeutas aplicaram a teoria
de Otto Rank, modificando os objetivos e os métodos da ludoterapia, assim como a
concepção da própria relação terapêutica com a criança.
A ênfase passou a ser dado no presente imediato, independente da história
da criança e dos problemas emocionais apresentados, o que levou a uma importante
redução no tempo de duração da psicoterapia.

Ludoterapia centrada na criança

Carl Rogers dedicou os primeiros anos de sua vida profissional, ao trabalho


com crianças e adolescentes, em Rochester, trabalhando como psicoterapeuta,
dedicado à clínica, ao diagnóstico e a pesquisa com crianças e jovens delinquentes.
O que lhe permitiu a mudança em sua compreensão sobre o processo
psicoterapêutico, a formulação de sua teoria e a mudança em sua prática clínica.
(FADIMAN e FRAGER, 1986).
Pouco a pouco Rogers foi reduzindo a quantidade de dados que recolhia nas
entrevistas para fazer o diagnóstico da criança, passou a ouvir simplesmente, sem
tentar induzir a uma compreensão diagnóstica. Passou a valorizar mais as relações,
que foram ficando cada vez mais pessoais e mais autênticas.
A partir desta nova maneira de lidar com a criança, familiares ou
responsáveis, começou a transformar sua prática clínica, deixando que a criança
fosse o guia no processo psicoterapêutico, por entender que é o cliente quem
melhor sabe de si e quem deve escolher o caminho a seguir.

É o próprio cliente quem sabe o que sofre, qual deve ser a direção a seguir,
quais são os problemas cruciais. Comecei a compreender que mais
importante que demonstrar minha clarividência e sabedoria, o melhor era
deixar com o cliente a direção do movimento no processo psicoterapêutico.
(ROGERS, 1997, p. 13).

Rogers foi desenvolvendo essa nova proposta de ludoterapia, baseada na


confiança na capacidade do indivíduo para buscar seu crescimento e
autodirecionamento e percebendo os benefícios que ela trazia à criança,
concomitantemente.

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Por mais que possa parecer o contrário, existe autonomia e conhecimento,


por parte da criança, de qual caminho para ela é melhor seguir, quando lhe é
oferecido um ambiente seguro, onde se fazem presentes a confiança e a estima
através de uma relação interpessoal que visa facilitar seu crescimento e
desenvolvimento.
Foi abrindo-se a novas possibilidades de relações com os clientes que Rogers
começou a construir a ludoterapia centrada na criança.
Virginia Mae Axline foi aluna e colabora de Rogers, teve uma larga
experiência com o atendimento infantil e deixou seu legado em trabalhos teóricos e
práticos. Ela foi a principal terapeuta a aplicar a ACP no atendimento com crianças.
(GARCIA, 2002).
A ludoterapia é uma abordagem psicoterapêutica com crianças, que tem o
brinquedo e o brincar como as bases para a comunicação entre o terapeuta e a
criança. O brinquedo é um meio natural de expressão da criança, é uma linguagem
utilizada pela criança para dizer de si, de suas relações, seus desejos, seus
sentimentos, ele facilita a comunicação.
Axline propõe oito princípios básicos para facilitar o contato com a criança e o
processo de ludoterapia. São eles:

1. O terapeuta deve desenvolver um amistoso e cálido relacionamento com


a criança, de forma que se estabeleça o “rapport”; 2- O terapeuta aceita a
criança exatamente como ela é; 3- O terapeuta estabelece uma sensação
de permissividade no relacionamento, de tal modo que a criança se sinta
completamente livre para expressar seus sentimentos; 4- O terapeuta está
sempre alerta para identificar os sentimentos que a criança está
expressando e para refleti-los para ela, de tal forma que ela adquira
conhecimento sobre seu comportamento. 5- o terapeuta mantém profundo
respeito pela capacidade da criança em resolver seus próprios problemas,
dando-lhe oportunidade para isto. A responsabilidade de escolher e de fazer
mudanças é deixada à criança. 6- O terapeuta não tenta dirigir as ações ou
conversas da criança de forma alguma. Ela indica o caminho e o terapeuta
o segue. 7- O terapeuta não tenta abreviar a duração da terapia. O
processo é gradativo e assim deve ser reconhecido por ele. 8- O terapeuta
estabelece somente as limitações necessárias para fundamentar a terapia
no mundo da realidade e fazer a criança consciente de sua
responsabilidade no relacionamento. (AXLINE, 1972, p.67).

Igualmente na psicoterapia com adultos, na ludoterapia é imprescindível que


o psicoterapeuta vivencie com seu cliente as atitudes que Rogers chamou de
facilitadoras, responsáveis pela criação de um clima não ameaçador, que possibilite
à criança entrar em contato com suas experiências, conscientizar-se delas e
expressá-las com liberdade e aceitação.
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As Atitudes Facilitadoras do processo

O psicoterapeuta deve estar inteiro na relação, sendo o máximo possível ele


mesmo, transparente, havendo um acordo interno entre sua experiência e
representação desta na consciência, podendo comunicá-la, se for conveniente. Esta
descrição refere-se à atitude denominada por Rogers de Autenticidade ou
Congruência.
O terapeuta deve ser uma pessoa íntegra, verdadeira e saber vivenciar com
a criança o que há de mais profundo nela, ambos devem estar interligados,
pois, a criança com toda sua sensibilidade percebe se o adulto está sendo
ou não sincero com ela. (GARCIA, 2002, p. 191).

A segunda atitude facilitadora é a que recebe o nome de Compreensão


Empática. Significa dizer que o psicoterapeuta é capaz de se colocar no lugar de seu
cliente para perceber o que este expressa do seu ponto de vista. É a capacidade de
participar do mundo interno do outro, conforme Rogers, a capacidade empática
consiste em:

[...] captar e refletir sobre a significação pessoal das palavras do cliente –


bem mais do que em responder a seu conteúdo intelectual. Para ser bem
sucedido nesta tarefa, é preciso que o profissional saiba fazer abstração de
seus próprios valores, sentimentos e necessidades e que se abstenha de
aplicar os critérios realistas, objetivos e racionais que o guiam quando está
fora de sua interação com seus clientes. (ROGERS & KINGET, 1977, p.
104).

Uma terceira atitude facilitadora é a denominada Consideração Positiva


Incondicional. Inicialmente descrita como Aceitação Positiva Incondicional, consiste
em aceitar, considerar, respeitar o que o indivíduo oferece de si mesmo. Aceitar não
significa aprovar ou concordar, mas sim acolher o que se oferece.
Segundo Gobbi apud Puente (1970), a consideração positiva incondicional é

aceitação calorosa de cada aspecto da experiência do cliente como ela é


propriamente, sem impor condições a esta aceitação, de maneira a fornecer
ao cliente uma atmosfera de segurança e de liberdade de expressão. Trata-
se de uma atenção (caring) pelo cliente, que não é possessiva, mas
respeitosa, uma afeição (liking) pelo cliente.[...] (Gobbi apud Puente, 1970,
p. 117).

A confiança na tendência atualizante, juntamente com presença de tais


atitudes na relação, fará com que as forças de crescimento do cliente sejam
liberadas, podendo este se encaminhar para o exercício de sua autonomia, para o

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resgate da autoconfiança, para a reconstrução de seu autoconceito, de sua


autoimagem, de sua autoestima.

Brincadeira séria

A palavra criança simboliza o próprio ato de criar. O dia a dia da criança está
repleto de criatividade e, por isso, a brincadeira e o brincar, representam o que de
mais sério ela realiza. Consequentemente, no atendimento a essas pessoas de
pouca idade, o brincar é a forma mais natural dela se mostrar.
O brincar é uma importante forma de comunicação para a criança e é por
meio dele que a criança consegue criar, reproduzir, expressar e até mesmo revelar
seus sentimentos. É no brincar que ela expõe suas maiores dificuldades, facilidades,
medos, angústias, sofrimentos, conflitos, prazeres (GARCIA, 2002).
Segundo Axline (1972), a criança que não brinca não elabora situações
difíceis da vida, pois o faz-de-conta auxilia no desenvolvimento da criatividade e da
autonomia. Pode-se dizer que brincando a criança está se preparando para a vida
adulta. Brincando ela aprende a lidar com as suas frustrações, conflitos, sofrimentos
e alegrias.
O lúdico é a forma natural de expressão das crianças. Sendo assim, através
do brinquedo e de uma relação interpessoal facilitadora, a criança libera seus
sentimentos, conscientizando-se deles, expressa, aceita e começa a construir seu
caminho, tomando a responsabilidade por seus próprios atos, indo ao encontro do
seu verdadeiro eu.

Considerações Finais

Dos vários olhares lançados à criança com vistas a compreendê-la e ajudá-la


no seu processo de vir-a-ser, o da Psicologia Humanista consegue captar sua
essência e confiar em sua poderosa força de crescimento e autorrealização,
preconizando que a criança é capaz de exercer sua autonomia, de se conhecer, de
escolher a direção que quer seguir dentro do processo de ludoterapia, de
operacionalizar mudanças construtivas em sua personalidade e em seu
comportamento.

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Vai haver o cuidado e o compromisso com o vir-a-ser, porém sem desmerecer


ou ignorar o momento presente, a fase de desenvolvimento importante chamado
infância, o fato de que a criança é igualmente pessoa e, portanto, digna e
merecedora de todo respeito.
Sendo o brinquedo e o brincar os meios de expressão da criança, a
ludoterapia lança mão deste recurso para estabelecer o vínculo, a relação de
confiança com a criança, aprendendo a se comunicar com ela através deste meio, e
ajudando-a a tomar consciência de suas experiências para elaborá-las,
compreendê-las, aceitá-las e expressá-las.
À medida que o psicoterapeuta desenvolve a confiança na capacidade, na
liberdade e na responsabilidade da criança, ele confia em seu organismo e em sua
tendência a autoatualização, facilitando uma relação segura, criando um clima não
ameaçador onde a criança sentir-se-á livre para experienciar. E a criança vai
exercendo sua autonomia, aprendendo a confiar em si mesma, a respeitar-se, a
identificar seus sentimentos, alterando também alguns de seus comportamentos,
arcando com a responsabilidade de ser o que é.

REFERÊNCIAS

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BOCK, Ana M. M; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes: Psicologias:


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