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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
LINGUAGEM

RAÍSSA DA SILVA FERNANDES

DIÁRIO DE PERCURSO

2022
Este diário segue uma sequência cronológica. Construí ao longo do período e não se
trata de uma escrita homogênea, mas de um compilado de anotações, fichamentos,
associações com outras disciplinas e comentários particulares. Visando uma organização
mental dos conceitos e dos diferentes autores trabalhados, optei por arranjar a escrita dentro
de “blocos”. A primeira parte possui um aspecto fragmentado, e até tumultuado em alguns
momentos. Optei por deixar esses “ruídos” presentes na escrita pois o início do processo de
aprendizagem foi, de fato, marcado por um esforço mental para a organização dos
conceitos. Foi com o passar dos meses e com o avanço no conteúdo que as ideias
assumiram um certo contorno.

Breves primeiras impressões: o signo, o significado e os paradoxos que


constituem a psicologia

Fomos inseridos ao campo da linguagem através do diferenciamento de


semântica e sintática e a partir do paradoxo do signo. Considerando que o signo se
relaciona com a coisa que representa, é necessário que apareça e desapareça logo
em seguida, ou seja, para haver representação o signo precisa apontar, também,
para si mesmo, mas se ele é muito presente neste esquema, acaba por ocultar
aquilo que representa.
É esse raciocínio que nos encaminha para o esquema de ato e conteúdo. Além
disso, direciona para a relação entre o paradoxo do signo e a constituição do
idealismo cartesiano, que aparece na própria origem da psicologia

Temos que a ideia é signo de seu objeto. Assim, podemos indagar: a ideia de algo
existe por eu pensar, ou existe mesmo que eu não pense nela? O ponto central,
porém, não diz respeito à existência, ou não, da ideia. O ponto central é o fato do
signo só poder apontar para algo quando enfim aparecer. Por essa razão, é
fundamental que o signo seja diferente da ideia que representa, mesmo que exista
necessariamente um vínculo entre essas duas coisas. Nesse momento, começamos
a estruturar o ato mental.
O acesso que temos ao nosso pensamento é quando penso que penso naquilo
que penso. O pensamento ganha um estatuto quando aponto para o ato de
representar esse pensamento, e aqui chegamos a um campo de estudo da
psicologia. Diferentes campos de conhecimento dentro da psicologia vão dar
distintos sentidos para essa sentença.

Conteúdo, sujeito e uma reflexão sobre processos psicológicos, arte e


algoritmos

Retomando o esquema apresentado anteriormente, entendemos que para


apontar para o mundo o signo necessita apontar para si mesmo, no processo que
definimos como ato mental. Nesse esquema, o signo aparece e desaparece logo em
seguida. Isso escancara a ambiguidade já descrita nas primeiras impressões, visto
que quando penso no elemento X, penso que penso sobre X, não havendo
supressão do pensamento, nem do conteúdo.
No século 20, há a tentativa de dar fim a essa ambiguidade: tudo é
transformado em conteúdo. Com isso, há o aniquilamento do sujeito e do sentido de
mundo. Chegamos, neste momento, à articulação proposta pelo Behaviorismo. Para
os estudiosos desse campo, o ato aponta para uma consequência. Logo, podemos
dizer que não temos mais um mundo a ser contemplado, visto que o interesse é todo
direcionado para a consequência de cada ato.
Nesse momento, foi utilizado o exemplo da arte para o entendimento dessa
nova perspectiva. Se na arte moderna temos representações quase fidedignas do
mundo, do homem e dos seus sentimentos. Na arte contemporânea, essa
representação é suprimida e abre espaço para o aparecimento das ações. É
comum, quando pensamos em artistas contemporâneos, imaginá-los em cena: um
artista visual que tece uma tela a partir de movimentos bruscos e inesperados com o
pincel ou até uma performance que acontece a partir da interação espontânea entre
os atores e o público. Nesse segundo caso, é possível citar a artista Marina
Abramovic e o ato Rhythm 0, em que as pessoas interagem com a artista a partir de
objetos dispostos no espaço. Nesses exemplos, é a consequência da ação que está
em cena.
Voltado para a linha do tempo dos estudos sobre Linguagem, podemos dizer,
ainda, que ela centraliza as discussões durante todo o século XX. Isso porque o
corpo e a razão transcendental são deixados de lado e o sujeito é concebido, ou até
mesmo suprimido, pela linguagem, já que em dada perspectiva ela é autônoma ao
indivíduo. Esse foi um gancho interessante para pensarmos no funcionamento dos
algoritmos. No mundo virtual, podemos afirmar que a verdade é dada pelo reforço,
ou seja, pela consequência dos atos. Essa lógica contribui, ou viabiliza, a formação
das chamadas “bolhas”. O que no algoritmo entende que não nos interessa, pois
não não é reforçado por nós através do “like”, é excluído. Essa exclusão extrapola a
esfera virtual (cuja fronteira com o “real” é cada vez mais frágil) e permite que
vivamos dentro de círculos que reverberam infinitamente nossas próprias
preferências, crenças, valores.
Recapitulamos, ainda, conceitos do estruturalismo e do funcionalismo.
Enquanto a escola estruturalista do século 19 busca compreender a relação entre a
consciência e os fenômenos fisiológicos do corpo, o funcionalismo, pautado nos
estudos evolucionistas, busca entender os movimentos adaptativos do corpo
fisiológico. Essa adaptação, no behaviorismo, corresponde a uma seleção, logo, diz
respeito a uma consequência selecionadora. Detalhadamente, dizemos que temos
um estímulo que aponta para uma determinada consequência em função de uma
resposta, o que é caracterizado como estímulo operante.

Piaget e Vygotsky: considerações sobre o desenvolvimento humano da/na


linguagem

Nesse movimento, há uma valorização do aparecimento da linguagem e,


especificamente, das condições que permitem o seu aparecimento. Em Piaget,
vemos que são as ações da criança o foco para entendermos os processos de
desenvolvimento (nesse ponto, os conteúdos se entrelaçam com os aprendizados
transmitidos em outras disciplinas.
Temos, a partir desse momento, um encontro, e talvez uma resolução, entre
os mecanismos adaptativos e estruturais. É nessa perspectiva que Piaget nos traz a
ideia de que o sujeito necessita de uma determinada estrutura para realizar
determinadas ações. ou seja, existem momentos propícios no desenvolvimento
humano para certos aprendizados, sendo a fala o maior exemplo: quando não
aprendida na idade propícia, a criança tende a não desenvolver a fala oral durante a
vida. Assim, temos a conceituação de Ação, dada pelos os invariantes funcionais,
assimilação e acomodação (que ocorrem de forma contínua) e pela Estruturas do
desenvolvimento.
É a segunda vez que entro em contato com Piaget: antes de cursar
psicologia cursei alguns períodos de licenciatura em letras e na chamadas
disciplinas educacionais o autor é muito presente. Existe, porém, uma diferença
muito grande em ver Piaget em uma cadeira de desenvolvimento e em uma cadeira
de Linguagem: mesmo que tratemos do mesmo autor e material, a perspectiva
adotada é outra. Inclusive, considerando o caminho que tenho traçado dentro do
curso, vejo a Linguagem como uma disciplina como “auxiliar”. E não trago isso como
um demérito, muito pelo contrário, vejo que a partir das possibilidades trazidas até o
momento é possível estabelecer múltiplas relações com o que vimos até e com
interesses que aos poucos tomam forma.
Voltando a Piaget, devemos fazer um esforço para entender qual a
organização cognitiva que uma criança dá para os fatos, de acordo, inclusive, com o
espaço fisico que ocupa naquele ambiente. O exemplo utilizado foi o zoológico, mas
essa ideia de proporção é simples e válida para inúmeras situações. Um mercado,
por exemplo, é um espaço de fácil utilização para adultos, possui placas e obedece
uma estrutura lógica. Uma criança que se perde da família e durante alguns minutos
precisa se orientar nesse espaço é facilmente tomada por desespero. Além de ser
um espaço muito grande para ela, visto que é formulado para adultos, essa criança
muitas vezes não consegue estabelecer relações cognitivas que permitam que ela
guie-se sozinha, ou seja, o meio comportamental para ela é outro.
As ideias construídas por Piaget se mostram tão conectadas e sintéticas que,
quando somos introduzidos ao pensamento de Vygotsky, há um momento inicial de
surpresa, já que novos elementos e perspectivas são adotados pelo autor, o que
torna o estudo do desenvolvimento da linguagem ainda mais complexo e
interessante.
Piaget frisa a divisão sistemática entre a fala egocêntrica (no estágio pré
operatório) e socializada (no estágio operatório), sendo que esse segundo tipo de
comunicação teoricamente só surge quando a criança imerge nas regras do social,
principalmente através de jogos e brincadeiras. Seguindo essa lógica, no primeiro
estágio fala não é voltada a um outro sujeito, mas voltada para si, sendo utilizado,
nesse ponto, o exemplo do monólogo. Achei esse exemplo curioso, já que quando
pensamos no recurso discursivo do monólogo teatral, percebemos que mesmo que
se trate de um único ator em palco, existe uma platéia - mesmo que subentendida
pelo artista-, ou seja, mesmo que pareça, a fala não é voltada ao sujeito falante, no
caso, o ator. Ao contrário, é direcionada e construída para a plateia.
Esse raciocínio segue, de certa forma, a ideia de Vygotsky: para o autor, a
construção discursiva pautada no egocentrismo é parte fundamental para o
desenvolvimento, já que é nesse momento que ocorre a estruturação dos processos
cognitivos. Além disso, essa fala supostamente voltada para si é, muitas vezes,
direcionada para a solução de problemas e conflitos. Ou seja, já nesse momento a
criança está se integrando ao social, logo, já nesse momento trata-se de uma fala
comunicativa:a partir desse discurso a criança assimila as normas coletivas. Por
esse motivo, estabelece uma ordem para o desenvolvimento da linguagem, que
começa pela linguagem social, passa pela fala egocêntrica e chega até a elaboração
articulada dos pensamentos.

Linguagem, Lacan e o novo lugar do discurso


Nesse ponto, nossos diálogos precisam seguir uma outra perspectiva.
Retomamos o quadro das primeiras aulas, em que havia a relação entre signo e
outro signo (sintaxe), entre o signo e a coisa que ele representa (semântica), e entre
o signo e o ato mental (pragmatismo). Essa essa última relação fortemente marcada
pelos estudos behavioristas.
Ao retomarmos Saussure, temos a linguagem sendo colocada como a ciência
da língua, se afastando, em certo sentido, da psicologia da linguagem e suas
respectivas relações cognitivas. Saussure traz a relação sintática a partir da sua
localização no estruturalismo, aproximando-se, inclusive, de Lévi-Strauss. Nesse
ponto, destacam-se os estudos da gramática normativa e de um amplo estudo
histórico dos termos (origem greco-latica das palavras, por exemplo), bem como sua
mudança ao longo do tempo: de que forma a língua se articula em diferentes locais
do mundo. Surge, desse modo, um estudo voltado à gramática comparada e a
consequente percepção de que é possível traçar paralelos entre os diferentes
idiomas.
Esses estudos comparativos convergem para a ideia de que as línguas
possuem relações sintáticas semelhantes, ou seja, a partir desse momento é
possível falar do aspecto estrutural das línguas, localizando essas pesquisas dentro
do subcampo campo da semiótica, inserido, por sua vez, no campo da psicologia
social.
Em Saussure, temos que a palavra não é um som qualquer, ao contrário,
cada palavra possui uma propriedade acústica que, por sua vez, corresponde à
representação dessa palavra. Assim, cada sujeito possui um número quase infinito
de imagens acústicas, além de possuir um mecanismo fisiológico que “liga” o
cérebro até a boca, ou seja, transforma as imagens em um comportamento sonoro
que sairá pela boca. É possível dizer que, ao narrar esses mecanismos, o linguista
permite quase uma visualização do aparato que permite a fala e o entendimento do
que é falado. Esses processo, porém, não ocorre apenas isoladamente, o som
também é transformado em imagem acústica. São esses arranjos fisiológicos que
permitem, em conjunto, a comunicação dos conceitos, ou seja, das ideias que se
passam na mente de um indivíduo. É nesse momento que somos introduzidos ao
aspecto psicológico da linguagem, já que ao falar transformamos conceitos em
imagens acústicas, que são processadas e foneticamente traduzidas.
Essas novas discussões, quando levadas à luz do signo linguístico,
recebem mais contorno. Isso porque devemos lembrar que um signo pode se referir
a um conjunto de significantes, logo, processos de forma distinta os diferentes
signos de acordo com o significante que está em jogo na cena. Avançando no
entendimento desse processo, ao invés de pensarmos em palavras isoladas,
podemos passar a pensar na construção de uma frase. Quando pensamos nas
ideias comunicadas através de uma sentença, precisamos necessariamente ter em
mente de que a ideia é transmitida através de uma sequência estabelecida.
Podemos, enfim, falar de cadeia de significante.
De forma a construir um bom substrato antes de tecermos pontes mais
concretas com a psicanálise, retomamos o fato do valor do signo ser determinado
pela sua relação com outro signo, ou seja, através de sua relação com outro
significado é outro significante. Chegamos também a um segundo fato muito
importante: o fato do signo não apenas se relacionar com os signos presentes, mas
com os signos ausentes!
Esse ponto é um eixo muito básico para entender as formulações de Saussure
porque introduz a idéia de sincronicidade, já que a relação simultânea entre todos os
signos determina o valor de um signo específico. Temos, então, o primeiro eixo (A-B)
, o eixo da sincronicidade. Já o eixo diacrônico (CD) corresponde à propriedade
"eclipse" da fala, visto que para relacionar-se com os signos presentes, estabelece
relações com os signos que não fazem parte da construção frasal. É preciso atentar
para o síncrono e diacrônico pois mesmo que a fala, e consequentemente a escrita,
sigam formulações que obedecem uma sequência lógica no tempo, a língua não é
fixa no tempo, ao contrário, as relações de sentido são refeitas ao longo da história e
da transformação do espaço.
Assim, retornando a ideia de que o signo é dado pela simultaneidade da sua
relação entre os outros signos, temos que a dinamicidade do tempo atua na própria
cadeia de significantes. Esse raciocínio tece uma ponte para chegarmos em Lacan,
que não apenas se pauta nos estudos de Saussure e outros linguistas, mas vai
além, subvertendo termos e invertendo preposições e promovendo encontros e
distensões com a obra Freudiana (estava ansiosa pra esse momento da disciplina.
Me interesso muitíssimo pelo assunto. Adorei as aulas)
No seminário 11 temos a marcação de uma ruptura. Lacan abandona a ideia de
um inconsciente estruturado como uma “coisa”, como era tido em Freud, e passa a
conceber um inconsciente estruturado na linguagem. Esse momento não foi apenas
um afastamento da teoria Freudiana, foi a marca de uma rachadura, uma fenda
teórica que reverbera continuamente.
Houve, ainda, uma breve discussão sobre a leitura lacaniana de Freud para
marcar embates com a tradução inglesa da obra freudiana. Essa discussão já
apareceu em diferentes disciplinas e percebo que vão além de uma mudança
arbitrária, e tampouco são resolvidos com simples notas de rodapé: a diferenciação
dos termos na língua inglesa e na língua alemã são a “pontinha” de choques teóricos
muito maiores.
É nesse momento de aproximação máxima entre a linguagem e a psicanálise
que a narrativa passa a ocupar um local de privilégio, já que o sujeito surge do
próprio discurso. Mais do que nunca a ideia basilar de cadeia significante precisa ser
retomada para o entendimento de conceitos lacanianos mais complexos.
Em lacan, temos o valor do significante atrelado ao lugar que o sujeito ocupa
dentro do discurso, ou seja, a análise da cadeia significante é fundamental. Essa
ideia de uma estrutura que constitui o sujeito antes mesmo do surgimento do próprio
sujeito não é, entretanto, uma grande novidade, mas um retorno (mesmo que exista
um distanciamento conceitual orientado, inclusive, pelos conflitos da época).
Encaminhando para a finalização do diário, lembrei que quando me inscrevi
para a disciplina achei muito curioso o nome ser tão simples: Linguagem. Ao longo
do período, e especialmente nas últimas aulas, percebo que o nome é muito preciso.
As discussões envolveram semiótica, desenvolvimento humano da fala e
culminaram para o estudo de Lacan, onde temos a linguagem aparecendo em seu
“brilho máximo”, não como produto ou consequências, mas como fundadora do
sujeito.
O “nascimento” do sujeito se dá a partir da relação entre os significantes, sendo
que cada significante inclui uma série de outros significantes, em uma relação que
se complementa continuamente. Temos que a marcação da existência de um sujeito
para o outro, implica a utilização das palavras que não suas, surge, assim, o grande
Outro, ou inconsciente. Mas se nenhum significante representa plenamente o
sujeito, já que todo significante é necessariamente do outro, a incompletude é a
marca fundamental do sujeito. Embora necessite desses significantes externos para
se situar no mundo, o sujeito não tem consciência, tampouco controle desses
discursos anteriores ao seu próprio surgimento. Nessa perspectiva, podemos contar
algo apenas depois de termos sido “contados” por significantes anteriores, que já
orientaram e ditaram sobre as mais diversas questões de uma vida, em outras
palavras, o sujeito não surge aleatoriamente dentro da cadeia, pois está inserido
previamente dentro dela.
Essa incompletude obrigatória ditada pelo significante estabelece a relação de
falta, o que constitui o campo do desejo. Nesse raciocínio, temos antes a linguagem
e depois o sujeito e o objeto, sendo o sujeito barrado e incompleto e o objeto um
filho da falta. Isso contribui para o entendimento da análise como uma sustentação
da busca de determinantes passíveis de identificação, mesmo que momentâneos.
Penso que a busca, e o reconhecimento da busca desses significantes, é muito mais
interessante do que um suposto encontro.

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