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CITTON, Y.

POR UMA ECOLOGIA DA ATENÇÃO


SEGUNDA PARTE: A ATENÇÃO CONJUNTA
**essa é uma versão ainda não plenamente revisada da tradução, a ser utilizada apenas
para fins pedagógicos em sala de aula

Capítulo 4: A Atenção Presencial

Nós sempre prestamos atenção no seio de uma situação particular. A imensa maioria
de pesquisas científicas dedicadas à atenção, se esforça por simplificar esta situação ao
extremo. Pedimos ao sujeito que siga o percurso de uma bola de basquete, que se concentre
nas letras ou imagens rolando em uma tela, que se recorde delas depois de alguns minutos de
distração. Nós raramente levamos em consideração a situação social que, no entanto,
estrutura (e sobredetermina) a experimentação psicológica. Ora, o sujeito cujas capacidades
atencionais são quantificadas é ele mesmo objeto de uma certa atenção por parte do
experimentador. E ele sabe disso. A atenção que ele dá às letras ou à bola de basquete é
função daquela que ele supõe que o cientista prestará a seu comportamento.
Afirmar que nunca presto atenção sozinho pode, no entanto, ser entendido de duas
maneiras muito diferentes. Isso pode indicar, como pudemos observar nos capítulos
anteriores, que mesmo quando pareço estar sozinho na frente de uma página de livro, de
jornal ou mesmo em um site na internet que absorve toda minha atenção, isso é resultado de
uma interação muito complexa entre enfeitiçamentos midiáticos, alinhamentos seletivos,
estratégias vetorialistas, sede de lucro e de vontade de resistência - que juntas implicam uma
vasta gama de relações sociais no seio do relacionamento aparentemente isolado que meus
olhos mantém com o papel ou a tela. Mas isso pode também designar um conjunto de
situações mais específicas e mais localizadas, nas quais sei que não estou sozinho no lugar
onde estou e que minha consciência da atenção dos outros afeta a direção da minha própria
atenção. Estas são situações de atenção conjunta - às quais serão dedicadas a segunda parte
deste trabalho.

Atenção Conjunta

Na psicologia do desenvolvimento, fala-se de atenção conjunta para designar o


fato que, a partir de nove meses, quando uma figura parental direciona seu olhar para um
objeto que não a criança, esta começa a dirigir seu próprio olhar para o objeto em questão1.
As atenções de muitos sujeitos são, portanto, conjuntas, uma vez que por estarem atentos uns
aos outros, a direção tomada pela atenção de um impulsiona a atenção do outro a se orientar
na mesma direção.
Sob o reinado da notoriedade e da visibilidade que se estende e se intensifica ao ritmo
dos desenvolvimentos midiáticos que marcaram a modernidade, seria sem dúvida justificado
considerar toda forma de atenção como (ao menos virtualmente) 'conjunta'. Sem retornar ao
papel que La Rochefoucauld atribuía ao amor próprio, Sartre ao ser-para-o-outro ou Honnet
ao reconhecimento - que nos dizem que o conceito que eu faço de mim mesmo é função do
que eu percebo do olhar que os outros tem de mim -, é praticamente cada instante de nossa
existência cotidiana que nos faz sentir a que ponto a atenção do outro interfere na nossa.
Quando as câmeras de segurança registram meus feitos e gestos ou um amigo os exibe no
Facebook, quando uma agência governamental recolhe os metadados das minhas chamadas
telefônicas e das minhas conexões na internet, o PageRank contabiliza meus cliques ou a
Amazon computa minhas compras para indicar aos outros clientes que eles amarão o novo
CD da Mary Halvorson se amaram o último de Tim Berne - em todos os casos deste tipo, nós
suspeitamos que nossa atenção é objeto de atenção de um outro mais ou menos precisamente
determinado. Muito além dos psicólogos, das agências de informações, das crianças e de seus
pais, estamos todos imersos em intrincadas redes de atenção interligadas. Quando escolhemos
um CD, um filme, uma página na web sob influência da escolha de outros, nossas atenções
são efetivamente ligadas entre si sob o modo característico da atenção conjunta: eu viro meu
olhar para esta direção em consequência do fato de que alguém, ao meu redor, anteriormente
virou o seu nessa mesma direção.
Uma ecologia da atenção, no entanto, se beneficiará de dar à atenção conjunta uma
definição mais precisa. A fim de distinguir a atenção conjunta da atenção coletiva, as páginas
que seguem se concentrarão nas situações de co-atenção presencial, caracterizadas pelo fato
de que muitas pessoas, conscientes da presença de outras, interagem em tempo real com
base no que percebem da atenção de outros participantes. Isto exclui todas as formas de
influência entre desconhecidos mediados por algoritmos, por efeitos de moda ou de difusão
midiática, e isso reduz os efeitos de convergência gregária às situações de co-presença
limitadas no espaço, no tempo e no número de participantes envolvidos. É (em parte) por
meio de mecanismos de atenção conjunta que cardumes de peixes ou espectadores em

1
Sobre atenção conjunta, que constitui um domínio recente de pesquisas, cf. Chris Moore et Phil
Dunham (dir.), Joint Attention: Its Origin and Role in Development, Hillsdale (Mich.), Lawrence
estádios voltam seus olhares e seus corpos de maneira admiravelmente homogênea e
sincronizada nesta ou naquela direção - produzindo às vezes uma sensação de coagência
fusional celebrada pelo ritual da ola.
Que dois amantes olhem juntos na mesma direção ou que uma multidão de várias
dezenas de milhares de participantes imitem o movimento de uma onda nas arquibancadas de
um estádio, a atenção conjunta implica o sentimento partilhado de uma co-presença sensível
às variações afetivas dos indivíduos envolvidos. O caso mais simples é, sem dúvida, aquele
em que duas pessoas ficam de frente uma para a outra verificando periodicamente no rosto e
nos olhos do outro suas reações à evolução de suas relações (por exemplo, durante uma
conversa). Que essa sensibilidade às emoções de outros participantes passe por um
dispositivo de telepresença como o Skype, ao invés de se desdobrar na imediaticidade de uma
co-presença física, não muda muita coisa (na medida em que o congelamento de imagens não
venha a dificultar a conexão). A 'presença' que compartilhamos em tais situações é, portanto,
mais temporal e sensível que estritamente espacial e física, já que dispositivos como estes não
lhes são um obstáculo.
Além da co-presença, três fenômenos parecem ter que caracterizar as situações de
atenção conjunta. O primeiro é um PRINCÍPIO DE RECIPROCIDADE: a atenção deve
poder circular de maneira bidirecional entre as partes envolvidas. A criança aprende a seguir
o olhar de seus pais em um relacionamento em que estes também se esforçam para seguir o
olhar da criança. O modelo é fornecido pela situação de conversação, cuja etimologia indica
precisamente que é uma questão de saber como 'voltar-se um para o outro' (con-vertere). Há
conversa (ao invés de discurso) na medida em que um princípio de reciprocidade convida a
uma alternância de papéis entre quem fala e quem escuta. Esta exigência de reciprocidade não
implica necessariamente uma relação de perfeita igualdade, não mais que uma partilha
equivalente de tempo de fala. Um mestre pode conversar com seu discípulo sem desistir de
seu status superior, assim como uma pessoa lacônica pode se contentar com algumas palavras
para manter sua posição num debate.
É à luz deste princípio de reciprocidade que Vilém Flusser distinguiu dois grandes
modelos de sistemas de comunicação:
No sistema rádio, um transmissor central é conectado de maneira única (unívoca) a
uma pluralidade de receptores periféricos. O processo comunicacional é o 'discurso'. No
sistema em rede, os múltiplos participantes estão conectados entre si, de maneira (biunívoca)
que todos podem enviar e receber; o processo de comunicação é o 'diálogo'. O objetivo do
primeiro sistema é espalhar uma informação préexistente; [...] o objetivo do segundo sistema
é sintetizar as informações parciais préexistentes; [...] no segundo, o nível de informação é
aumentado; no primeiro, ele é simplesmente armazenado. O correio e o telefone são
exemplos mais ou menos puros do sistema em rede, o rádio e o jornal são exemplos mais ou
menos puros do sistema rádio2.
Como o ressalta Georg Franck, as formas massivas de exploração que caracterizam
nossa atual economia de atenção se devem a não-reciprocidade induzida pelos dispositivos de
mídia de massa organizados de acordo com o “sistema rádio”. Até as esperanças de um futuro
pós-mídia despertadas pelo advento deste "sistema em rede" que é a Internet - antecipado por
Flusser, que escreveu essas linhas em 1974 -, as indústrias culturais basearam seu lucro e sua
autoridade em um regime de troca desigual, que difundia a atenção elétrica (reproduzível a
um preço baixo) para coletar a atenção viva (muito mais rara e mais cara). Ao passar da
análise da atenção coletiva, agenciada pelos dispositivos profundamente assimétricos
característicos das mídias de massa, para a atenção conjunta tomando como modelo as
conversas recíprocas favorecidas pelo telefone ou pelo correio, faz-se assim muito mais do
que mudar simplesmente o número de participantes envolvidos. Muda-se sobretudo a
estrutura relacional. Mais do que o tamanho, é o modo de interação que caracteriza os
ambientes propícios à atenção conjunta. A reciprocidade inerente às situações de atenção
conjunta constitui, de certa forma, o antídoto para as assimetrias que estruturam nossa
economia da atenção midiática.
O segundo fenômeno característico da atenção conjunta é o ESFORÇO DE
SINTONIA AFETIVA que a subjaz constantemente: não podemos ser verdadeiramente
atentos ao outro sem nos importarmos com ele. Uma condição de êxito em qualquer conversa
requer um trabalho incessante de ajuste recíproco entre a fala de uns e a escuta de outros. Um
"discurso" pode ser difundido enquanto permanece largamente indiferente às reações que ele
desperta entre seus ouvintes, como é o caso nos sistemas de rádio que geralmente não
permitem nenhum retorno direto da parte destes. Pelo contrário, um "diálogo" só progride
graças aos microgestos de encorajamento, de simpatia, de prevenção, de precaução ou de
conforto - em outras palavras, graças às múltiplas "atenções" - que cada um dos participantes
dirige ao outro para manter entre eles uma boa ressonância afetiva, que é ainda mais
determinante para o desenrolar de suas trocas do que qualquer rigor de raciocínio
argumentativo.

2
Vilém Flusser, La Civilisation des médias, op. cit,. p. 103.
A importância deste trabalho delicado e geralmente espontâneo de sintonia afetiva é
evidente nas condições de comunicação em que ela é impossibilitada. Quem nunca foi pego
em disputas absurdas, tão comuns em grupos de mensagens eletrônicas, nos quais uma
pequena e insignificante desavença cresce até degenerar em insultos homéricos? Se fossem
apresentados os mesmos argumentos em um diálogo no qual cada um pode observar os
efeitos de suas palavras no rosto do outro, e assim corrigir desvios no segundo seguinte, isso
se resolveria por um piscar de olhos cúmplice, um sorriso travesso, uma correção imediata ou
um gesto de pacificação impedindo a formação do conflito. Uma vez que os interlocutores do
email, em constante defasagem temporal, não podem ver os micromovimentos do rosto do
outro, nem ouvir as sutis entonações de suas vozes, o choque dos discursos se agrava e se
exacerba mesmo diante de propostas de apaziguamento por parte dos participantes (essas são
também frequentemente mal interpretadas porque não estão enraizadas em uma situação real
de diálogo). A difusão recente de emoticons (LOL), cujas primeiras ocorrências parecem
remontar aos anos de 1840, é apenas um substituto bem pobre na tentativa de atenuar a
infinita delicadeza de olhares, gestos, atitudes e tonalidades que milhares de anos de prática
de conversação nos ensinaram a desenvolver para ajustar nossas palavras e nossa escuta de
uma maneira atenciosa em relação a nossos interlocutores.
Como Daniel Bougnoux demonstrou ao ressaltar “o primado da comunicação sobre a
informação”, esta atenção emocional assegura a manutenção de uma conexão fundamental
entre os participantes de um diálogo, já que “o trançado dos laços, o prolongamento do
contato”, são as pré-condições de qualquer troca argumentativa3. Antes de poder se
preocupar com informações (verdadeiras ou falsas, relevantes ou não), é necessário começar
estabelecendo e especialmente mantendo a ligação que permite aos dialogantes
permanecerem no mesmo comprimento de onda emocional.
Tal trabalho de ajuste e de sintonia recíproca não pode jamais ser completamente
preparado antecipadamente, pois depende de singularidades afetivas cujas reações são muito
difíceis de prever. O terceiro fenômeno característico de situações de atenção conjunta deve
ser buscado nas PRÁTICAS DE IMPROVISAÇÃO, uma vez que elas necessariamente o
implicam: mostrar-se atento para com a atenção do outro requer aprender a sair das rotinas
programadas com antecedência, para se abrir aos riscos (e técnicas) de improvisação.
Todos sabem improvisar, já que todos aprenderam a participar de uma conversa - onde
ninguém sabe de antemão o que seus interlocutores dirão. Para além dos raros casos em que

3
Daniel Bougnoux, Introduction aux sciences de la communication, Paris, La Découverte, 2001, p.
72-73.
somos levados a recitar fórmulas rituais ou a desempenhar papéis previamente escritos, nunca
começamos uma frase sem nos expor ao risco da micro-improvisação que a conduzirá a sua
completude - se tudo correr bem porque, na verdade, muitas vezes sacrificamos o rigor
sintático a impulsos expressivos.
As situações de atenção conjunta abrangidas no sistema em rede exemplificadas pelo
diálogo, merecem, também nesse aspecto, ser contrastadas com as situações observadas no
sistema de rádio característico das mídias de massa. Exceto por alguns casos muito raros,
tudo o que vem da televisão, se não foi editado com antecedência, foi meticulosamente pré-
programado mesmo quando é transmitido ao vivo. Aqui também, a principal diferença está
menos no tamanho do público do que na modalidade de comunicação: o discurso dos meios
de massa transmite unidirecionalmente uma mensagem pré-programada, mesmo em talk
shows ou programas de reality show supostamente baseados nas performances “espontâneas”
de pessoas “reais”. Tudo ali é feito para se proteger, tanto quanto possível, desses imprevistos
que fazem o charme e a vitalidade das estruturas dialógicas dinâmicas (live) , onde a atenção
conjunta se desenvolve.
Entende-se que essas considerações nos colocam no centro do que uma ecologia da
atenção deve analisar. Os três fenômenos mencionados acima afetam menos as propriedades
de certos atos do que as características que definem certos ambientes. O que nos interessa
neste capítulo, são os ambientes humanos, enquanto são estruturados pela atenção presencial
dos outros. O princípio da reciprocidade, os esforços de sintonia afetiva e as práticas de
improvisação são vinculados, dentro de um ecossistema que permitiu aos humanos "se
comunicar" por milênios - no sentido mais forte dessa palavra, muitas vezes sublinhado por
Daniel Bougnoux, que é muito mais sobre comunhão e cuidado comunitário do que sobre a
simples transferência de informação.
Sem ter a insolência de culpar os pais pelo transtorno de déficit de atenção enfrentado
por seus filhos - uma vez que as etiologias ainda são pouco compreendidas e, de qualquer
modo, ligadas a múltiplos níveis de causalidade -, pode-se notar que a maioria dos
tratamentos considerados para o TDAH envolve, quando eles vão além do único curto-
circuito médico, o que os terapeutas chamam de “métodos ambientais”. Quaisquer que sejam
os processos bioquímicos envolvidos no nível neurológico, os TDAH’s são pelo menos
parte do sintoma das assimetrias, desconexões emocionais e rigidez de comunicação que
fazem nossos ecossistemas familiares, escolares e midiáticos tão precários e desequilibrados.
Temos razão de apresentar as vezes crianças distraídas ou hiperativas como canários da mina,
cujo sofrimento sinaliza que nosso ambiente de atenção ameaça se tornar irrespirável.
Na esperança de esclarecer e aprofundar a análise das questões de atenção conjunta,
cujos equilíbrios são tão frágeis e cujas falhas são tão prejudiciais, o resto deste capítulo será
dedicado a dois casos muito peculiares e muito sugestivos das dificuldades e promessas
envolvidas na atenção mútua face a face - as situações de ensino e a experiência de
espetáculos ao vivo.

Tradução: Carolina Forastieri


Primeira Revisão: Gustavo Ferraz

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